silêncio = morte [silence = death]

March 27, 2017 | Author: Victorio Branco Paiva | Category: N/A
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1 2 silêncio = morte [silence = death] Nos campos de concentração nazistas, os homossexuais foram ma...

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silêncio = morte [silence = death] Nos campos de concentração nazistas, os homossexuais foram marcados com um triângulo rosa e invertido, assim como os judeus com a Estrela de Davi. Nos Estados Unidos dos anos 1970, o símbolo, subvertido por alguns ativistas, passava a figurar de pé, em sinal de apoio à luta por direitos iguais que então despontava no país. No início da epidemia de AIDS, em 1987, um grupo de seis homens gays espalharam por Nova York cartazes com o triângulo rosa, sob um fundo preto, e as palavras SILENCE = DEATH (silêncio = morte), nome pelo qual o projeto ficou conhecido. O triângulo rosa passou de símbolo de humilhação e perseguição a signo de luta, orgulho e resistência queer.

Ministério da Cultura, Itaú e Fundação Municipal de Cultura apresentam

festival do filme documentário e etnográfico fórum de antropologia e cinema

sumÁRIO Apresentação  7 Sessão de Abertura  21 Mostra Queer e a Câmera  25 Mostra Contemporânea Brasileira  59 Mostra Contemporânea Internacional  Sessões especiais  99 Lançamentos  105 Seminário Queer e a câmera  111 Ensaios  121

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Martírio: o genocídio lento e angustiante de um povo indígena nas lentes de Vincent Carelli Ruben Caixeta de Queiroz  123 Maracâmera – o tekoha contra o capital Leandro Saraiva  141 Retomada: teses sobre o conceito de história André Brasil  145 Manifesto Queer Nation  163 New Queer Cinema B. Ruby Rich  177 Desmontando a Caravela Queer Jota Mombaça  195 Cinema queer? Sugestões de-formativas Vitor Grunvald  203 Horizontes reduzidos Kiki Mazzucchelli  211 Cidade-sexo, mas não é sex in the city Eduardo de Jesus  215 Trânsitos, (des)aprendizados e cinema: uma conversa com Camila José Donoso, diretora de Naomi Campbel Marcos Martins  221 Pontes e cercas entre Teoria Queer e Movimento LGBT Anna Paula Vencato  227

Quando os Tikmu ’̃ u ̃n viraram soldados sobre Grin, de Roney Freitas e Isael Maxakali

Roberto Romero  239 Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos sobre filme de Sérgio Oliveira

Jair Fonseca  247 Cabelo Mágico inspirado em Deixa na Régua, um filme de Emílio Domingues e seus amigos dos morros cariocas

Junia Torres  249 Cinema Novo: do didatismo ao absoluto sobre filme de Eryk Rocha

Leonardo Amaral  253 Olha a nossa situação aqui!: nós, espectadores, na missão com Kadu sobre filme de Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito

Paula Kimo  257 Junho no plural sobre Vozerio, de Vladimir Seixas

Vinícius de Andrade  261 A cidade onde envelheço sobre filme de Marília Rocha

Carla Maia  265 E nada do que foi ouvido pode ser repetido com as mesmas palavras sobre Taego Ãwa, de Marcela Borela e Henrique Borela

Ewerton Belico  269 A impureza da forma sobre Filme de Aborto, de Lincoln Péricles

Marcelo Miranda  273 Câmara de espelhos sobre filme de Dea Ferraz

Carla Italiano, Julia Fagioli  277 Quando dois mundos colidem sobre When Two Worlds Collide, de Heidi Brandenburg, Mathew Orzel

Wellington Cançado  281 Ava Yvy Vera – a terra do povo do raio Ana Carvalho  287

Programação  Índices  296 Créditos  298

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Evoé! forumdoc.bh.20Anos!

> Moi, un Noir, devir negro Oumarou Ganda, um imigrante que trabalha como estivador na cidade de Abidjan, na Costa do Marfim e mora no bairro pobre de Treichville mudou pra sempre minha relação com o cinema e, posso dizer, com a antropologia, em uma sessão do primeiro forumdoc (e desde então, me emocionar pelo esforço da partilha ou por achar beleza demais em um filme tem sido uma coisa só). Oumarou e seus amigos encenam suas vidas diante da câmera, Oumarou interpreta a si mesmo e também a Edward G. Robinson, um boxeador americano. Oumaroutoma para si o filme, comenta, inventa. De uma falta, Rouch faz, com seus amigos migrantes uma grande invenção: Moi, un Noir foi realizado sem som – o filme é de 1958 – e é na pós-sincronização que ainda mais compartilha o cinema, a invenção, o real e a invenção do real. Oumarou toma para si o papel que se atribui ao longo do filme. A fala de Oumarou Ganda descreve os lugares que se oferecem à imagem, uma descrição que não é uma interpretação nos termos de um observador, mas uma reivindicação pela apropriação de um sentido que não se submete a uma análise exterior e se afirma em sua autonomia. Enquanto encenam, os protagonistas inventam uma realidade, seu próprio mundo e o constituem. “O cinema verdade não é a verdade no filme. É a verdade do filme” (Vertov). Impossível buscar um ponto de vista único, impossível buscar uma evidência unívoca. Impossível buscar o documentário ou a ficção, o cinema ou a antropologia, Rouch ou Oumarou, o autor ou o personagem. E nunca se aprendeu tanto sobre Treichville. Em Moi, un Noir a existência é pouco a pouco percebida como uma escolha possível, uma construção autônoma e original, um campo de invenção, de criação e não uma simples etapa na ordem de um determinismo geral. Como disse Marc Piault, essa é uma das mais fortes propostas do filme: seus protagonistas não somente falam em seu próprio nome, mas olham do outro lado da tela em direção ao espectador que os espera em algum lugar. Precisamos repetir, tantas vezes, Moi, in Noir, Jean Rouch, Oumarou Ganda. [Junia Torres]

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> 1997. O forumdoc.bh estreia como 1º Festival do Filme Documentário e Etnográfico. Fórum de Cinema, Vídeo e Antropologia. A abertura, dia 24 de novembro de 1997, às 19h, no Cine Humberto Mauro (PA), com os filmes Segredos da Mata, de Dominique Gallois e Vincent Carelli [Vídeo nas Aldeias] e Zapatista Women (1995), de Guadalupe Miranda e Maria Inês Roqué [Mostra Internacional do Filme Etnográfico]. Mas foi a sessão, dentre outras tantas memoráveis dessa edição de abertura, da película Nordeste Cordel, Repente Canção (1975), de Tânia Quaresma, aquela que não me sai da memória. Como esquecer da música de abertura do filme,um desafio de viola entre Zé Ramalho e Geraldo Azevedo. De Vezúvio, um cachorro de quintal, insistindo em fazer parte da cena enquanto sua dona tece com ele um diálogo surreal, levando a sala de cinema abaixo. Agabito Francisco Correia, Cego Oliveira, Palito - o invisível, Pinto do Monteiro, Olho de Gato, Beija Flor e Oliveira, dentre tantos outros artistas nordestinos, como esquecer, Caju & Castanha ainda crianças, cantando e tocando cocos e emboladas. O filme focado na divulgação de folhetos de cordel na música de cantadores, nas festas e feiras populares nos encantou tanto com suas cores e sons que iria figurar em diversas outras edições do festival, a ponto da diretora certa vez nos ter indagado o porquê de tantas exibições! Saudades das projeções de Nordeste Cordel, Repente Canção (1975) e toda aquela empolgação! [Paulo Maia]

> Como éramos verdes quando começou esse devaneio, tudo se passava como se fôssemos íntimos dos cineastas mais incríveis. Ficamos tão amigos de Jean Rouch! Vimos tantos de seus filmes! As festas Segui, as baterias Dogon, Horendi, Yenendi ... seus ralenti: a dançarina flutuando... Uma nação inteira em festa, ornamentada em vermelho e amarelo! A voz off! As casas na terra e em tom de terra, os bosques baixos e as cavernas, longos caminhos! Caçada ao leão, aos hipopótamos, um filhote, brinquedo da meninada na beira do rio! O olhos dos Mestres Loucos! A camiseta branca do Negro, o Jaguar! Também nos tornamos familiares dos bosquímanos do Kalahari, caçadores de girafa! Que gaiata! Fugia depois de flechada, ia longe, andava em círculos, voltando de onde vinha. Aprendemos com de John Marshall as artimanhas vãs de um animal gigante para não se deixar capturar por humanos tão pequenos. Os bosquímanos estalam e assobiam para falar! Vimos a Amazônia, os últimos isolados, a década da destruição. Era a filmografia de Adrian Cowell denunciando o fim dos tempos, a colisão dos mundos! Mas antes, a beleza, a leveza elegante do caçador caiapó cercando a anta, correndo na 8

ponta dos pés, acuando o animal no campo aberto até conseguir desfechar

a borduna fatal! Desde o começo, houve Vídeo nas Aldeias! Como cada filme era um mundo! Era possível reconhecer a riqueza das diferenças indígenas, mas também nossa parte nos índios, como a parte deles em nós! Ficamos mais indígenas com o capitão Vincent, Divino... O Glauber estava na derradeira sessão de domingo! Era dele o dever de encerrar a maratona. Glauber prevenia o próximo ano! Antes, no catálogo, havia um texto do Gato! Ah! os catálogos! A vaca! A boneca parida de Terezinha Maxakali! Os mutantes do Pedro Moraleida! É verdade, faz tempo, eu vi! Vimos coisas… [Renata Otto]

> Conversas dentro de conversas. Assim me referi a Santo Forte, em um texto escrito por ocasião dos 10 anos do forumdoc. Folheando os catálogos à procura de um filme, reencontro inúmeras possibilidades... Tenho dificuldade de escolher, então deixo falar a velha obsessão, retornando a este filme tão importante. Para, quem sabe, reter um pouco da presença sempre lúcida de Coutinho entre nós. Em 1999, terceira edição, o festival abriu com Santo Forte. Era a primeira (e então única) cópia do filme. Coutinho estava aqui, fumando intensamente, com sua bolsa a tiracolo, esperando para entrar na Humberto Mauro no final da projeção. O impacto da sessão foi imenso, e a conversa se estendeu. Algo do que a gente pensava, nós do forumdoc, antes mesmo da visita de Comolli (em 2001), encontrava em Santo Forte uma expressão poderosa. Um documentário do encontro, sem roteiro prévio, aberto ao mundo, menos retórico e mais indagativo, econômico nos recursos narrativos, deixando exposta a relação básica, constitutiva de qualquer documentário: aquela entre quem filma e quem é filmado. Além do mais, capaz de criar a cena provisória na qual aquelas mulheres pobres de Vila Parque da Cidade, como Dona Thereza (grandiosa!), podiam se afirmar narradoras criativas e potentes, insubmetidas a preconceitos e estereótipos, livres das amarras e normatizações cotidianas, desamarradas dos clichês narrativos e de posições rígidas... Sujeitas, em suma, de suas experiências e histórias, contadas de um jeito belamente “conversante”. Pois suas narrativas apareciam dramatizadas na forma de diálogos - ao narrar, entrevistadas e entrevistados interpretam as várias personagens envolvidas na cena narrada, construindo suas histórias “em diálogo”: conversando com outros homens e mulheres e com os espíritos. O diálogo, principal forma de narrar, parecia então formalizar um modo de vida, um movimento de troca e interação constantes. O fato de Coutinho também adotar a conversa como abordagem duplicava o dialogismo já presente nas falas de todas as narradoras. Conversas abrigadas em conversas. Não me canso de admirar essa “forma”, e acho

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que persigo esse filme desde aquela noite. Cada entrevista em Santo Forte abre para uma cena teatral complexa. Se ele lapida algo do que Coutinho já vinha gestando (um modo de abordar e compor a experiência), Santo Forte também inaugura: nas cenas de André e Dona Thereza, encontro agora prefigurações de Jogo de Cena e de Moscou. Os filmes de Coutinho prosseguem com a gente. [Cláudia Mesquita]

> São muitos filmes marcantes em tantos forumdocs – plural complicado porque em latim seria foradocs, sendo que se quer o fora Temer, embora o que possa vir depois talvez seja péssimo também. Mas, virão outros fora, e voltando ao que interessa aqui e agora, há muitas imagens e sons, como socos, em minha cabeça, de um longo longa, meu segundo filme sobre esquimós, depois de Nanook, com a diferença de que Atanarjuat, o Veloz foi feito por esquimós. Até hoje a cabeça, atordoada, recorda. Há também Serras da desordem, outro longa longo em que outro indígena, também veloz, corre e se delonga pelas estradas e tarda em minha lembrança. Um dos fotógrafos desse filme fez, por sua vez, um curta que curto e curtimos, O Tigre e a Gazela, no qual o olhar que captura também é o da presa. Já No quarto da Vanda, o confinamento liberta, e a destruição abre espaço aos fantasmas da memória, via carta do Ventura, em Juventude em marcha. Enfim, rememoro a câmera ambulante das andanças e danças de Jonas Mekas, sua rememontagem poética de tantas história(s) do cinema vivido. Paro por aqui, pois acabou o parágrafo, mas a marcha continua, vinte anos depois. [Jair Tadeu da Fonseca]

> forumdoc.bh.2007: no quarto da Vanda, ela tosse. A cena é um claro -escuro em tons de verde, ela e sua irmã fumam heroína. Escavadeiras destroem o bairro de Fontainhas. Um homem nu se banha entre os escombros. O Russo acaricia um passarinho. O Pango ocupa o quarto daquela que matou o filho. Elas fumam, eles se aplicam, ela tosse. Sua mãe cheira rapé e assiste novelas brasileiras. Dona, quer alface ou couve? Vanda oferece aos que ainda vivem por ali. Vanda tosse e raspa os restos de heroína de uma lista telefônica. Lá fora há sempre o barulho da vizinhança sendo destruída. Morar em casas fantasmas que outras pessoas deixaram. Estive em casas que nem uma bruxa queria lá morar. Mas também estive em casas que valiam a pena. Foram casas que as pessoas abandonaram, mas, se estivesse lá uma pessoa de bem, eles até nem mandavam abaixo. Foi assim... casa atrás de casa, diz o Pango. Vanda tosse, tosse, e fuma heroína. Uma velha está sentada num quarto, e lá fora uma criança brinca com uma 10

bicicleta. É a vida que a gente quer, acha a Vanda. [Marilá Dardot]

> Em 2003, nos surpreendemos com A Kalahari Family. Não foi uma sessão, foi uma semana todas as manhãs no Auditório Sônia Viegas, pois o filme tem 5 episódios. Quando tinha 18 anos, John Marshall e sua família fizeram uma expedição pelo deserto da Namíbia, atraídos por conhecer os coletores/caçadores da área de Nyae Nyae. Encontraram os Ju/’hoansi, bosquímanos nômades, dando início a uma grande amizade. Movida pelo deslumbramento da viagem, a família Marshall não imaginou que os rastros de pneus da sua expedição levariam colonizadores ocidentais a encontrar estes mesmos povos, introduzindo nas suas terras a cultura de gado e outras práticas cuja consequência trágica foi a progressiva destruição das formas de vida dos Ju/’hoansi. Desde os anos 1950, Marshall voltou inúmeras vezes ao Nyae Nyae portando sempre uma câmera, e até o fim da sua vida filmou os Ju/’hoansi, porque cinema é amizade, como o forumdoc sempre me fez pensar. Marshall filmou intensa e extensivamente por 50 anos (filmou desde a caçada às girafas até as ameaças às formas de vida dos seus amigos), procurando fazer do cinema uma forma de luta em favor dos Ju/’hoansi. Por esse motivo, a cada passo refletia sobre que imagens estava criando, sobre como filmar, o que mostrar – trabalho que resultou em mais de 40 filmes. No fim de sua vida, Marshall reviu todo o material que tinha filmado e montou A Kalahari family, uma enorme reflexão sobre o encontro, o tempo, o cinema, a amizade e a resistência. [Daniel Ribeiro Duarte]

> Foi na anti-penúltima sessão do forumdoc.bh.2005, edição repleta de experiências novas, dentro e fora da sala de cinema, fosse ela a do Cine Humberto Mauro, a do Centro Cultural da UFMG, lendo as legendas para os jovens em formação como agentes Cultura Viva, ou as da Fafich, onde os filmes de John Marshall reverberavam ainda para mais além. Na noite anterior, havíamos degustado as delícias de mais uma inesquecível festa, o que tornava a insistência em estar na sala atenta às imagens projetadas, mais uma prova de resistência. O primeiro filme, estranhei. A língua francesa com as imagens capturadas num desentendimento entre ficção e realidade me tiraram do lugar. A ficção científica, quase premonitória – talvez sim – me assombrou. Estranhei mais uma vez aquele cineasta que durante toda a mostra de autor me colocava sempre em dúvida. Então, começa o segundo filme, aquele que ainda me faz tremer toda vez que encontro um gato grafitado com pinta de querer dizer mais do que apenas ronronar… O filme caminha pelos telhados de Paris, esbarrando em sorrisos amarelos felinos ou em manifestações contra uma virada política à direita, com as sobras das feiras semanais e entre os monumentos que

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guardam a história oficial... Monsieur Chat e Chris Marker me acompanham pelas salas de aula a que sou convidada a participar, pelas ruas de Paris e trilhos da Petite Ceinture – onde atuam ainda hoje – pela vontade de vestir as pinturas de luta e ir para a rua sussurrar pela micropolítica do anti-espetacular. Semana passada, em São Paulo, eis que me deparo com mais um jeito, desta vez em traço contínuo, de desenhar a cabeça de um gato, e o coração já disparou alegre em rememorar de novo Les chats perchés. [Milene Migliano]

> Pouco ou nada acontecia naquele filme – uma mulher cozinhava, lavava os pratos, tomava banho, recebia um cliente no quarto, servia o jantar para o único filho, lia a carta da irmã, preparava a cama para dormir, apagava cuidadosamente a luz de cada cômodo ao sair, circulava pela casa e pelas ruas de Bruxelas como um autômato, expressão impassível, gestos medidos, passos ritmados. Pouco ou nada acontecia e tudo se repetia – a cada vez, um pouco diferente – ao longo de pouco mais de três horas de sessão. Antes de ter início Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), Ivone Margulies, convidada para comentar a modesta porém significativa retrospectiva de Chantal Akerman que organizamos em 2006, pediu a todos os presentes: “fiquem até o fim”. Para surpresa da pesquisadora, habituada com a impaciência do público diante de um filme escasso em grandes acontecimentos e de tamanha duração, a expressiva maioria dos espectadores atendeu ao chamado. Ficaram, ficamos, silenciosamente irmanados, imóveis diante do que víamos, afetados pela luz que emanava da tela como que a marcar em definitivo nossas retinas. Saímos com a sensação de que havíamos partilhado naquela sala uma experiência rara de cinema. Eu dava início a uma pesquisa de mestrado sobre a diretora e aquele filme, aquela mostra, teve ressonâncias que nem agora, dez anos depois, consigo racionalizar ou sistematizar, como convém às grandes histórias de amor. Amor pela cineasta, amor pelo festival, amor pela equipe que viabilizara tudo aquilo, amor pela senhora que, ao fim do debate, se aproximou e nos agradeceu por ter visto o filme, “não serei mais a mesma”, ela disse comovida. Há filmes que provocam esse efeito em nós. Naquela noite, naquela sessão, foi tudo semente – e sou grata por até hoje colher, dela, os frutos. [Carla Maia]

> Ao assistir a Soleil Ô, de Med Hondo, fui arrebatada por um sentimento que tantas vezes experimentei no forumdoc, desde a primeiríssima edição: assombro. Como poderia esse filme existir? Como poderia até então 12

não ter tomado conhecimento dessa obra tão potente? Como é escrita e reescrita a história do cinema? Filme-manifesto, contra todas as formas de escravidão, filme-canto, como no que era entoado por escravos haitianos e dá nome à obra, filmegrito, de revolta, de uma irredutível não assimilação, filme de descolonização. Dolorosamente atual e decididamente moderno, Soleil Ô nos interpela, nos desconcerta, nos perturba, explode a forma filme com sua liberdade radical, inegociável. No catálogo de 2009, o texto que apresentava a mostra de cineastas africanos já nos alertava, abrindo com uma citação de Frantz Fanon: “A descolonização jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidadeem atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela roda-viva da história. Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é, na verdade, criação de homens novos”. [Ana Siqueira]

> Acompanhar os primeiros passos de um bebê, ou atentar para os sutis sinais que conduzem à primavera, pode parecer tarefa difícil em meio aos tantos fragmentos de som e imagem que costura Jonas Mekas. No forumdoc de 2013 ajudei a organizar sua retrospectiva, curadoria compartilhada entre as Carlas xarás. Na mostra, a sessão de Ao caminhar entrevi lampejos de beleza foi especial de um jeito raro. Quase 5 horas de projeção no Cine104, com seus puffs e ar intimista, lanches passados de mão em mão no escuro do cinema, garrafas de vinho bebidas do gargalo na troca das (várias) bobinas 16mm. Em meio a esse cinema mobilizado por afetos, vivenciamos momentos íntimos e também coletivos, em que partilhamos a experiência de estar junto com os ilustres desconhecidos vistos em tela, e com os amigos reunidos na sala de projeção, essa comunidade afetiva que toca o próprio festival. Ao final, a sensação que tenho é de ter encontrado muitos lampejos de felicidade e beleza nesses poucos (e intensos!) anos em que meu caminho felizmente cruzou com o do forumdoc. [Carla Italiano]

> Durante muito tempo, escrevi em guardanapos as impressões de cada encontro no café, jardins, corredores e dentro da sala escura. Eleger um filme é, portanto, fabular. Isso porque o forumdoc sempre renovou meu espírito – a alegria de partilhar sessões com esta comunidade de cinema que se reúne todo novembro. Ano 2004, não me recordo o dia, mas me 13

recordo do homem em pé – e de costas – contemplando o infinito, da criança a transbordar ternura – ambos nus – e de uma cabra morta nos seixos. Essa imagem circular, nunca me saiu da cabeça. Como quando Agnès Varda evocou Baudelaire em Les dites Cariatides. Mulheres-colunas que sustentam o mundo com um entablamento na cabeça. Assim, também Maria que sobe o morro e não se cansa, pela mão leva a criança, lata d’água ___________, como diz a música. Ulysse, um ensaio comovente sobre um menino – agora adulto – e uma mãe, Bienvenida, que se emociona ao lembrar que restava a esperança para a cura do filho, esperança depositada nos dias quentes do mediterrâneo. Ulysse sofria de uma doença nos ossos, se recorda da dor, mas não da fotografia. Varda insiste. E Ulysse a olha como quem olha o horizonte, perplexo pela imensidão, incerteza reservada à memória. Um filme que fala do amor pelas pessoas que estão à volta, do amor pela profissão como fotógrafa, entomologista do cotidiano, catadora de imagens. Do amor, do amor, do amor. Ulysse, de Varda, passou a acompanhar as aulas que ministrei e até hoje afaga meu imaginário quando já não tenho mais ideias ou desisto de escrever em guardanapos. O desafio de aceitar a aventura e partir, como se fossemos personagens da Odisseia. [Glaura Cardoso Vale]

> Entrei pra “turma forumdoquiana” e da Filmes de Quintal em 2007, mas o interessante foi descobrir anos depois, através da minha assinatura na ata de abertura, que eu estava na primeira edição, quando vim fazer vestibular em BH, uma alegria sem fim, estava escrito! Ao longo desse tempo, assisti inúmeros filmes que me emocionaram muito, esse festival é uma riqueza só! Pra mencionar algo que me marcou vos levo à Mostra Direto.doc da edição de 2010, pois – por ter um pezinho no bom e velho roquenrol – enlouqueci ao ver os filmes Gimme Shelter e Monterey Pop, já que representam muito do que eu gostaria de ter vivido e que, mesmo não o tendo, me influenciou bastante e faz parte da minha vida hoje. [Diana Gebrim Costa]

> Somente havia visto aquelas imagens como um videoclipe de uma canção muito conhecida. O cantor e sua fama de arredio conhecia muito bem. Mas os relatos quase sempre o desenhavam como alguém mal educado, como se a grosseria não tivesse razão de ser. Contudo, ao ver seu encontro com o jornalista mal informado da Time Magazine, com sua contraparte inocente inglesa, ou com o espectador que o chama de 14

Judas, tornou-se clara a justiça do notório mal temperamento de Dylan.

Esclarecia-se também a potência do gesto de entrar com uma banda elétrica para tocar em um festival de música folk. Definitivamente,ali aprendi o sentido de “Não olhar pra trás”. [Pedro Marra]

> Não me lembro do filme, mas, após o término de uma sessão, quando as luzes se acenderam, me surpreendi com você ao lado. O inesperado foi tanto que aquele filme, na minha memória, passou a se chamar Terra Treme, mas acho que era mesmo o Perdida do CAPC. [Frederico Sabino]

> Com licença poética dos ladrões de cinema, o filme quis dizer: onde jaz o teu sorriso? Moi? Une noir neguinha... Aqui? Favela, o rap representa. Nos olhos de mariquinha leio erosões e matéria de composição. Meu primeiro contato? Sim, o dia em que a lua menstruou, maxakaly or not, tupy! Saute ma ville nha cretcheu! (Exploda minha cidade minha querida!). Antes e agora: braços cruzados, máquinas paradas. Em história do brasil leio inventário da rapina. Là-bas além dos trilhos roda terra em transe, um cabaret mineiro. Serras da desordem, tempos de guerra e sans soleil, vejo grey gardens tout une nuit.  Margem terceira de duas aldeias e uma caminhada. Os mestres loucos, o guru e os guris , o santo forte, o cabra marcado, os catadores e eu. Das crianças ikpeng para o mundo, dos aprendizados, o maior: shuku shukuwe, afinal, a vida é para sempre! O cinema? Aussi, oxalá, amém! Um brinde forumdoc.bh.2016: stolat! [Raquel Junqueira]

> Era um sábado à noite. 23 de novembro de 2013. Na tela, Noites Paraguayas, o único longa-metragem dirigido por Aloysio Raulino, cineasta cuja obra autoral era objeto de uma retrospectiva naquele ano. A mostra deveria ser uma ocasião para celebrar uma vez mais a presença luminosa de Raul entre nós (ele, um habitué do forumdoc), mas fora abruptamente transformada em homenagem póstuma por um golpe brutal do acaso, e tudo isso enchia a sala de uma emoção rara. Foi então que a expectativa deu lugar à estreia triunfal da nova cópia do filme em 35mm, restaurada recentemente, tinindo. A cada novo enquadramento insubstituível, a cada golpe de montagem, a cada canção, a cada rosto inesquecível, o filme fulgurava, tilintava, e muito do que eu imaginava saber sobre as potências do cinema parecia ruir, ao passo que a intuição sobre uma espécie qualquer de virtude mágica dessa máquina tão humana ganhava uma evidência inconteste, ainda que misteriosa. Nas noites anteriores, havíamos visto seguidamente os inacreditáveis curtas dos anos 70 e 80. Para mim, que conhecia apenas três ou quatro, era todo um continente que se abria

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de uma vezada: nalgum momento entre a descoberta arrebatadora de Teremos Infância e a revisão poderosa de O Tigre e a Gazela, tive a certeza de que estava diante de um dos maiores homens a ter empunhado uma câmera sobre esta terra. O balé da câmera diante de um rosto era, a cada vez, um mergulho vertiginoso e incomparável na espessura do gesto de filmar alguém. Na saída da sessão do Noites, o que era encantamento virou obsessão. Eu falava pelos cotovelos sobre o filme nos corredores do Palácio, na subida da Bahia, no Maletta, e não me aguentando de ansiedade, resolvi ir embora. Insone, escrevi com esganação, mal dormi agitado e acordei um molambo qualquer. De manhã, revisitei as linhas e intuí que se aninhava ali um projeto de vida: daquela noite em diante, o cinema de Raulino passou a me acompanhar todos os dias e a me habitar para sempre. [Victor Guimarães]

> Em 2007 comemorávamos 10 anos de furumdoc, apelido carinhoso do festival! Naquele ano, como agora, preparávamos, entusiasmados, uma edição festiva. Não que todo ano não seja uma grande festa e também uma grande bronca, rs! Em meio a uma incrível programação e ao inesquecível baile da saudade da Flash Dance da rua Padre Pedro Pinto, abríamos os olhos e a alma para a filmografia de Pedro Costa, com uma retrospectiva até então inédita no país. Foi na noite de 25 de novembro, na última sessão do dia, comentada pelo querido Ribão, que fomos surpreendidos e inebriados pela projeção de Casa de Lava. Filme que se passa entre Cabo Verde e Lisboa, entre o português e o criolo, entre a opressão do Estado Novo português e a opressão da exploração do imigrante de agora. Um filme sobre um grupo de mulheres misteriosas, povoado e atravessado, como elas, pela magia que emana da existência caboverdiana. Casa de Lava é o vulcão em erupção, filme magma, filme enigma. [Rafa Barros]

> Mostra O Inimigo e câmera – forumdoc 2013. Estamos diante de Duch – o mestre das forças do inferno – secretário do partido que coordenou o sistema de torturas e execuções durante a ditadura no Camboja, na década de 70. Quase 2h de filme. Sofrimento puro... Eu não conseguia acreditar na frieza daquele homem... nos relatos... eu pensava: “meu Deus, não existe um pingo de sentimento de culpa ou sofrimento na cara desse senhor”.

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Duch é frio, com os pensamentos organizados, a fala pausada, não hesita e descreve detalhamento como coordenouo processo de tortura e morte de mais 12 mil pessoas. Lembro que ao final ele dizia que não sentia culpa, poisapenas seguia ordens. Foi profissional. Trabalhou como foi ensinado. “Era o contexto da época”. E lembrar que hoje vivendo tempos sombrios... Vendo a foto do Duch, na divulgação do filme, me lembrei de outros ditadores de então… Cruz credo. [Luana Gonçalves]

> Em 2009 havia uma disciplina de documentário na Fafich. Um amigo. Dois professores amigos. Uma turma da night, outra do cinema. Sempre tem. Um trabalho para escrever também. A primeira sessão do forumdoc. UFMG desse ano exibiriaA tribo que se esconde do homem. O filme e todos os presentes, incluindo o diretor Adrian Cowell, me mostraram pela primeira vez que a antropologia não era só dos antropólogos. Mas das pessoas, do cinema, dos indigenistas, da night e o que mais eu quisesse. [Pedro Leal]

> Dentre tantos mundos, devires outros e olhares, o forumdoc abriu para mim uma fresta muito luminosa, através da qual pude espiar um pouco os espelhos resplandecentes das florestas onde vivem os nossos ancestrais e seus espíritos. Foi na sessão de abertura de 2012, quando vi os Yanomami dançarem com seus xapiri na tela, que eu quis visitar, mesmo que ainda no pensamento, a origem invisível do mundo. A partir de então quis entender melhor os dizeres dos índios, que, sábios, lutam pela preservação de suas crenças e ritos – e para que o céu não desabe

sobre nós. Obrigada forumdoc, pelas experiências de luz e reflexão. [Ana C. Bahia]

> Um grande pajé quis ajudar aquele cariú, um inglês militar que acabara de chegar na Floresta com seu exército armado. Tornaram-se amigos, criaram afeição um pelo outro. O pajé virou seu guia. Um dia, em uma grande expedição, o chefe inglês foi subitamente atacado por uma onça, mas o grande pajé se adiantou e a flechou fatalmente. A morte dela lhe perturbou muito. O espírito da onça vinha constantemente em seus sonhos e seus sentidos começaram a bagunçar; ele não conseguiu retomar a harmonia da vida com os seres da Floresta. O amigo inglês, muito

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agradecido pelo feito, o convidou para conhecer sua casa na cidade. O pajé aceitou. Na casa do amigo ele não conseguia se levantar. Só ficava sentado, olhando pela janela as árvores e os pássaros lá da rua. Um dia ele saiu de casa e morreu lá fora, ao cruzar a linha de trem. Foi ter com a onça. Dersu Uzala, sessão de encerramento do forumdoc.bh.2011. [Carolina Canguçu]

> Na escuridão, guiada apenas pela luz de uma lanterna, a câmera se aproxima da bichinha. Uma mão avança sobre ela e a captura. Presa, as pernas compridas atadas por um fio de cipó, ela esperneia, grita. Através do seu corpo úmido, cintilante, dá pra ver o coraçãozinho escuro. Ela gosta da noite. Sobre um tronco seco, ensaia um salto impossível. Agarra-se novamente ao tronco, assustada. A sua barriguinha está inchada. Os olhos, arregalados. O queixo tremendo querendo cantar. Em algum lugar fora do campo, seus parentes se reúnem. Deve chover hoje. Por isso estão todos alegres, cantando. Nunca, na história do cinema, uma perereca foi filmada tão de perto.​(Sobre A Iniciação dos Filhos da Terra (2015), de Isael Maxakali.) [Roberto Romero]

> Aquilo não havia sido visto antes. Digo, nada parecido com aquilo. Os corpos saltavam de um extremo ao outro da tela girando no ar. Um zumbido contínuo, obsedante, instaurava uma atmosfera sonora compacta, quase claustrofóbica, e na qual possivelmente o ar começaria a rarefazer-se em breve. Os corpos, espíritos deste mundo –e de outros mundos –, coloridos precisa e apressadamente, envoltos em pedaços de trapo, marcados com canetas hidrocores fosforescentes, tufos de algodão, borrões feitos por corretores ortográficos, nos circundavam, a nós, na sala de projeção. As mulheres em tela viam aproximar-se de si corpos desfalecidos de crianças nos braços dos espíritos, e a um discreto toque nessas crianças, irrompiam em um choro compulsivo. Não sabíamos muito bem localizar o perigo em jogo, sairíamos dali a salvo? Avaliando o estado de nosso corpo na sala de exibição podíamos perceber um frio no estômago, daqueles que sentimos quando estamos apaixonados, ou quando experimentamos uma sensação de tristeza ou alegria muito grande para nosso corpo. Não seríamos mais os mesmos. Entre nós, brancos, a coisa mais próxima daquilo talvez houvesse sido vista em filmes de Glauber –e a surpresa ao constatar que efeitos expressivos semelhantes podiam talvez convergir em tela a partir de experiências de mundo tão distintas. Diante e ao redor de nós estava Tatakox – o primeiro de uma série de incríveis expe18

riências brindadas pelos indígenas Maxakali ao mundo, inclusive ao dos

brancos – ainda que estes, passados mais de dez anos daquela sessão, permaneçam quase totalmente surdos diante dos cantos e reivindicações daqueles povos. [Bruno Vasconcelos]

> O primeiro a deixar a cena é o Alemão. Sai de quadro esgotado, arrasado. Marcelo o segue e, então, Vincent, segurando a câmera. Estamos também nós arrasados, dilacerados frente à vulnerabilidade e resistência silenciosa do “Índio do buraco”, que se recusa obstinadamente ao cerco liderado pelo indigenista Marcelo Santos em busca da imagem que afinal prova a existência e garante proteção ao único sobrevivente de um grupo desconhecido, vítima de uma chacina que levou ao extermínio de seu povo e dizimou dois grupos isolados na gleba de Corumbiara, no sul de Rondônia. A imagem do contato nos coloca frente a dilemas éticos insolúveis, ao mesmo tempo em que dar a ver a luta pela sobrevivência levada ao limite, revelando nossa total incapacidade de conviver com os povos nativos no Brasil, o desrespeito aos seus direitos fundamentais e à vida. Corumbiara, de Vincent Carelli, provocou em mim um deslocamento fundamental. Experimentei, na primeira visionagem coletiva, ainda na sala de montagem, e na sessão de abertura do forumdoc.bh, em 2009, a mesma comoção e sensação de que o mundo afinal tinha chegado ao fim. De fato, o filme narra o fim do mundo (de muitos mundos), o contato com o desconhecido (também este uma espécie de fim de mundo que se abre para outro) e uma história sem fim de violência e extermínio. Quase dez anos depois, Corumbiara ainda ressoa em nossas memórias, e o nascimento de Martírio, filme mais recente de Vincent e que, não por acaso abre os vinte anos deste festival, nos coloca mais uma vez frente aos equívocos da nossa história, revelando as entranhas de um país arruinado pela exploração predatória da terra, pelo avanço do agronegócio e pelo genocídio em curso dos povos Guarani e Kaiowá. Numa construção arrebatadora, Martírio narra o movimento pacífico de retomada deste povo pela reconquista de seus territórios sagrados. No entanto, embora diante do mesmo estado de violência e extermínio de um povo, já presente em Corumbiara, Martírio nos chama para a luta e provoca em nós o desejo de insurgência. Que tenhamos aprendido, ao longo desses vinte anos, na resistência dos filmes que assistimos e que nos formaram, no contato com os povos indígenas e comunidades tradicionais com as quais trabalhamos nas construção de nossos próprios filmes, a mesma resistência (e alegria) desses grupos na luta pela sobrevivência e pela defesa de seus territórios. Ainda temos tempo. E não estamos sós. [Ana Carvalho] 19

>Hoje, passado pouco tempo do falecimento de nosso incansável Aloysio Raulino, ficam as imagens, os sons e a memória de sua presença forte na bela noite em que vimos O tigre e a gazela pela primeira vez e em sua companhia. Ressoou na sala a urgência das palavras de Fanon, ditas por ele: "Porque se dão conta de que estão na iminência de naufragar, de perder-se portanto para seu povo, esses homens obstinam-se com o coração cheio de fúria e o cérebro ardente, em retomar contato com a seiva mais antiga, mais précolonial de seu povo. (...) Ao colonialismo não basta encerrar o povo em suas malhas, escravizar o cérebro colonizado de toda forma e todo conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido, deforma-o, desfigura-o, aniquila-o. (...) Apesar de toda a sua técnica e de sua potência de fogo, o inimigo dá a impressão de chafurdar e desaparecer pouco a pouco na lama. Nós cantamos, cantamos. (...)" E a mulher negra entoa seu grito: "Todo negro pode ser doutor, deputado, senador, não há mais preconceito de cor." Uh Raul!!! O sonho continua! [Pedro Aspahan]

> Plantar uma semente de árvore ou uma muda de grama? Uma nasce e cresce para o alto, outra se alastra e espalha pelo chão. A árvore, quando cresce, abriga na sua sombra aqueles que chegam (as futuras gerações), pois é sempre possível voltar para a “raiz”. A grama se dispersa, o centro originário desaparece na confusão, nos obriga ir adiante, procurar outras fontes. O ideal seria ter ou saber de um lugar para onde voltar, mas é sempre bom poder se perder. O ideal é ter uma crença a qual se apegar, mas muito mais importante é não querer julgar a crença do outro. É sempre muito bom ter alguém para nos ensinar, só para não ter que segui-lo. Antes de tudo, no cinema documentário é necessário ouvir e dar a palavra. É preciso manter firme a fé na força do cinema documentário para transformar o mundo, mas, mais importante, é preciso saber contemplar a fé do outro ou saber que mesmo na tristeza ou na penúria material há uma alegria e uma dignidade a serem desveladas. Se dermos razão à ideia de Walter Benjamin de que “articular historicamente algo passado não significa reconhecê-lo como realmente foi”, então, podemos fazer da máquina cinematográfica um dispositivo para pensar, criar, imaginar, inventar. Formei algumas destas ideias a partir de 1999, quando vi Santo Forte de Eduardo Coutinho no forumdoc. Naquele ano, o catálogo no formato grande (e na fortuna crítica) sucedeu aos dois pequenos livretos que fundaram este lugar de encontro de afetos e ideias em torno de cinema e antropologia. A árvore cresceu e, ao mesmo tempo, se ramificou. 20 anos depois já não temos mais Coutinho e tantos outros que nós seguimos e que nos seguiram neste caminho. Certamente suas diferentes maneiras de 20

fazer cinema nos seguem e nos desapegam. [Ruben Caixeta]

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SESSÃO DE ABERTURA

Vincent Carelli

Todo dia, bate à porta das nossas consciências, através das redes sociais, a notícia de um assassinato brutal, de um violento despejo. Do outro lado, na grande imprensa, nas sentenças judiciais, nos discursos dos lobbistas do agronegócio, vemos a ignorância ou omissão total da história, a inversão cínica de papéis se apropriando da palavra “resistência”, frente ao suposto “terrorismo” dos índios. Fazer Martírio se tornou uma compulsão necessária para mim, que tenho a vida atada à deles; para Ernesto e Tita, que me acompanharam nessa jornada. Um compromisso moral, ético, político, e sobretudo afetivo, com os povos Guarani Kaiowá.

NOTA DO DIRETOR

cine humberto mauro, 17 nov, 19h > cine 104, 18 nov. 19h

> Sessão comentada pelo diretor Vincent Carelli com a presença de lideranças Guarani e Kaiowa: Valdomiro Flores, Daniel Lemes Vasques e Genito Gomes.

The return of the big march for the retaking of the holy territories Guarani Kaiowá through the filming of Vincent Carelli who registered the origin of the movement in the 1980s. Twenty years later, taken by the reports of successive massacres, Carelli looks for the origins of that genocide, a conflict of disproportional powers: a peaceful and persistent protest Guarani Kaiowá against the powerful apparatus of the agrobusiness.

O retorno ao princípio da grande marcha de retomada dos territórios sagrados Guarani Kaiowá através das filmagens de Vincent Carelli, que registrou o nascedouro do movimento na década de 1980. Vinte anos mais tarde, tomado pelos relatos de sucessivos massacres, Carelli busca as origens deste genocídio, um conflito de forças desproporcionais: a insurgência pacífica e obstinada dos despossuídos Guarani Kaiowá frente ao poderoso aparato do agronegócio.

Brasil, 2016, cor, 162’ diretor director Vincent Carelli | co-diretor co-diretor Ernesto de Carvalho, Tita roteiro screenplay Vincent Carelli, Tita fotografia cinematography Ernesto de Carvalho montagem editing Tita desenho de som sound design Gera Vieira, Nicolas Hallet, Tita mixagem de som mixing Gera Vieira, Nicolas Hallet música music Bro MCs produtora executiva executive producer Olívia Sabino empresas produtoras production companies Papo Amarelo, Vídeo nas Aldeias entrevistados interviwees Celso Aoki, Myriam Medina Aoki, Oriel Benites, Tonico Benites, comunidades Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul contato contact [email protected] www.videonasaldeias.org.br | https://www.facebook.com/martiriofilme/

Martírio

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mostra queer e a câmera

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Queer e a câmera

Paulo Maia Para a Jupira e o Rubinho, pelos 20 anos de forumdoc, e um beijo para as travestis.

Em 2011 o 15º forumdoc apresentou aquela que seria a primeira mostra/seminário de um ciclo que seguimos chamando de “cinemas e alteridades”. “O animal e a câmera”1 explorou diferentes discursos, mediados ou não pela câmera, os quais ora reafirmavam, ora questionavam o que Bruno Latour chamou de Constituição Moderna, uma separação radical do mundo natural e do mundo social caracterizada por um humanismo exacerbado. A proposta foi a de acalorar o debate transdisciplinar e transespecífico sobre o animal, bem como deslocar os enquadramentos antropológicos e cinematográficos convencionais acerca dessa relação. Já em 2012, a intenção foi a de discutir e apresentar uma filmografia de assinatura feminina. A mostra/seminário “A mulher e a câmera”,2 segundo Carla Maia e Cláudia Mesquita, focou na diferença como potência, seja para saudar a diversidade formal e temática dos filmes apresentados, seja para atualizar, “sempre com renovado interesse, [...] um mundo com alteridade: a mulher, o animal, vêm assim ocupar o lugar de um Outro que desestabiliza os padrões de um certo pensamento ocidental formulado e orientado por uma maioria de homens, adultos, brancos, cidadãos, como escrevem Deleuze e Guattari” (2012, p.41). Ao fim e ao cabo, assistimos a uma mostra/seminário extremamente politizada que revelou um desejo patente na filmografia apresentada de não 1 http://www.forumdoc.org.br/2011/?page_id=13 2 http://www.forumdoc.org.br/?reviews=catalogo-forumdoc-bh-2012

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ceder à imobilidade à qual os corpos femininos são relegados quando lhes são atribuídas forma e agência predeterminadas. No ano de 2013 fomos surpreendidos por uma multidão que tomou conta das ruas em diferentes partes do país, em torno das bandeiras mais diversas: a favor do transporte público, contra a corrupção, pela melhoria da educação pública... Não demorou para que essas manifestações fossem violentamente reprimidas pelo Estado, que, juntamente com a mídia convencional, trataram de construir uma imagem extremamente negativa desses protestos, focada na “demonização” dos manifestantes, chamados de “baderneiros”, “vândalos”, “blackblocks”. Em contrapartida, o movimento denominado de midialivrismo tomou a tarefa de desmontar e desmascarar as notícias veiculadas pela mídia tradicional. Tendo como pano de fundo as manifestações de junho de 2013, o 17o forumdoc.bh propôs a mostra/seminário “O inimigo e a câmera”. Nas palavras de Ruben Caixeta, “enfrentamos um tema ainda mais espinhoso: filmar o inimigo, ainda que para combatê-lo” (2013, p.79).3 Dando continuidade ao ciclo “Cinemas e alteridades” e ao deslocamento dos campos de enunciação e representação convencionais focados em corpos masculinos, brancos, heteronormativos e estatais – campos que, além de promoverem a naturalização de códigos sociais e sexuais, eclipsam e acabam por invisibilizar, quando não inviabilizar, tudo o que neles não se enquadra, toda diferença, toda diversidade –, é, portanto, com grande satisfação que, no ano em que comemoramos seus 20 anos de existência, o forumdoc.bh.2016 anuncia que “sai do armário” com a apresentação da mostra/seminário “Queer e a câmera”, que celebra a diversidade do cinema e da cultura queer. Queer é uma palavra que originalmente se apresenta ora como um adjetivo, ora como um substantivo. Segundo o Oxford Living Dictionaries (https://en.oxforddictionaries.com/definition/queer) a palavra quer, de origem alemã, data do início do século XVI, e seu significado seria correlato ao das palavras “oblíquo” e “perverso”; contudo, o próprio dicionário adverte que tal origem is doutful, incerta. Já no site da University of Pittsburg, na homepage Keywords Project (http://keywords.pitt.edu/ keywords_defined/queer.html), ao consultarmos a palavra-chave queer, somos informados de que o Oxford English Dictionary (OED) data de 1513 os primeiros registros da palavra, com o sentido de “estranho”, “esquisito”, “excêntrico”. Outro registro dessa mesma época refere-se a John Bale, que teria escrito crônicas em 1550 que “contayne more truthe than

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3 http://www.forumdoc.org.br/catalogo-forumdoc-bh-2013/

their quere legends” – sendo quere entendido como oposto da verdade. Outro significado teria sido agregado já em 1567, quando o adjetivo queer assume contornos pessoais e passa a caracterizar uma pessoa “má”, “desprezível”, “inútil”, “indigna de confiança”, “de má reputação”, sendo os alvos preferenciais, nesse primeiro momento, vagabundos e criminosos. “Strange queer” e “bad queer” parecem ter pontuado os primeiros usos documentados dessa palavra na língua inglesa. Teria sido somente no início do século XX que a palavra queer seria completamente capturada por uma amarra sexista, sendo diretamente relacionada à homossexualidade, às pessoas e comportamentos homossexuais, por oposição à heteronormatividade vigente. Ainda segundo o OED, uma das primeiras formulações sexistas do queer teria sido feita pelo The Los Angeles Times em 1914, quando um jornalista descreveu um clube ou bar gay como “composto por pessoas queer (queer people)”, um lugar onde “as queer se divertem”. Em 1915, o novelista e jornalista Enoch A. Bebbet faria a seguinte afirmação igualmente inaugural: “Uma imensa reunião de estudantes de arte, pintores e pessoas queer (queer people). Meninas em trajes masculinos, danças estranhas (queer dancing), etc...”. Oscilando entre o sexo e o temperamento, para aludirmos ao título de um dos livros de Margareth Mead (1935), tomamos alguns exemplos daquelas que parecem ter sido as primeiras formulações registradas da palavra queer (outras formulações inaugurais certamente existirão...), a fim de criar um contexto para a apresentação de nossa mostra/seminário. Segue-se daí a articulação sexista e preconceituosa que, num primeiro momento, parece ter sido associada a homens e comunidades gays para, em seguida, sobretudo nos anos 1960, ser generalizada, passando a se referir tanto a homens quanto a mulheres homossexuais, bem como drags queens, travestis, transexuais, entre outras identidades e práticas sexuais dissidentes. A associação queer = homossexual foi pejorativa e preconceituosa, valendo lembrar que, nos EUA dos anos 1960, “atos homossexuais” eram ilegais em quase todos os estados americanos. Pessoas negras e homossexuais eram frequentemente agredidas e tinham seus direitos desrespeitados, quando não eram sumariamente assassinadas. Condutas que não se adequavam aos códigos heteronormativos da sociedade branca norte-americana poderiam ser criminalizadas, e frequentemente o eram, sob a acusação de estarem supostamente violando os princípios morais. Por outro lado, do ponto de vista da ciência, a homossexualidade era entendida como uma doença mental, um comportamento antinatural, obsceno e imoral que deveria ser combatido à base de muita medicação

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e tortura física, por intermédio de terapias cujo objetivo era, de antemão, o de “convencer” o “doente” a se curar, i.e., a ser, novamente, heterossexual, ainda que recorrendo a procedimentos como internação forçada, medicalização excessiva e experimentações terapêuticas de todo tipo, como lobotomização, castração, choques elétricos, entre outros. Ilustrativa é uma fala do moralista de Estado John Sorenson, de Dade County (Flórida), que nos anos 1960 era membro da Divisão de Princípios Morais para Menores. Em imagens de arquivo de um documentário televisivo, John, em uma palestra para estudantes adolescentes em um auditório abarrotado (cena que lembra outra, do filme High School, de Fredrick Wiseman, 1969), afirma com o dedo riste e em tom ameaçador que “1/3 de vocês [adolescentes] irão se tornar queer [...] se pegarmos vocês com um homossexual, contaremos primeiro aos seus pais. E serão pegos. Não pensem que não. Não há como se safar disso. Se não forem pegos por nós serão pegos por vocês mesmos, e o resto da vida de vocês será um inferno”. Como denuncia o ativista John O’Brien, até a Revolta de Stonnewall, à qual voltaremos posteriormente neste texto, “éramos (os gays) caçados. Podiam facilmente brincar de nos caçar”.4 Esse breve histórico estadunidense do queer nos mostra que a palavra foi aos poucos sendo carregada por um sentido fortemente discriminatório; a diferença é vista como um elemento perturbador da ordem heteronormativa, justificando assim sua sujeição, seja através da criminalização do comportamento desviante, seja através de seu enquadramento patologizante. Se, por um lado, durante a primeira metade do século XX, o vocábulo queer esteve limitado a uma categoria discriminatória de cunho ofensivo, houve um momento, uma época, um contexto, no qual esse dispositivo de dominação heteronormativo foi contestado, enfrentado. O objetivo é então, parafraseando uma formulação de Viveiros de Castro a respeito do contexto ameríndio no Brasil (2008, p.140-141), o de converter, reverter ou perverter o dispositivo de sujeição armado pela sociedade heteronormativa de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação, deixar de sofrer a “queeridade/queerness” e passar a gozá-la. Arriscaria dizer que o acontecimento conhecido como “Revolta de Stonewall” foi um dos momentos paradigmáticos de ab-reação queer, um verdadeiro tour-deforce – “we are queer, we are here”.5 4 Note-se a estranha e perversa ressonância do dispositivo da caça, da armadilha e da perseguição. Cf. Paulo Maia (2011)

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5 Cf. ensaio de Jota Mombaça (2016), publicado na seção de ensaios do catálogo, para uma visão crítica e alternativa dessa genealogia queer/Stonewall.

Stonewall Inn era o nome de um dos diversos bares gays de Nova York nos anos 1960. Localizado na badalada zona de Greenwich Village, conhecida simplesmente como “the Village”, bairro lendário do baixo Manhattan, o Stonewall era, como a maioria dos bares gays e lésbicos da cidade, mantido pela máfia. O lucro exorbitante desses bares advinha do fato de não pagarem impostos, além de “batizarem” suas bebidas de diferentes maneiras... Como denunciou um grafite de rua da época: “Banir os gays corrompe a polícia e alimenta a máfia”. Em novembro de 1969 haveria novas eleições, e o prefeito de Nova York, em franca campanha, havia reforçado a repressão a localidades e bares gays. Nessa época cartazes foram publicizados com os dizeres: “Police open drive to clear ‘Village’ and Time Sq. Area”. Na noite do dia 27 de junho, o bar Stonewall foi invadido pela segunda vez na semana, com o objetivo de sempre: receber propina dos donos do bar e humilhar seus frequentadores, prendendo um ou outro, submetendo-os à humilhação pública e a processos criminais. Só que dessa vez foi diferente: diante da invasão, uma energia tomou conta dos presentes, que se rebelaram. Estavam de saco cheio de não serem respeitados nem mesmo nesses “antros” que lhes foram reservados. As drag queens presentes parecem ter tido um protagonismo importante no início dessa resistência, embora o mais notável tenha sido a junção/união de diferentes pessoas queer. Em pouco tempo, conta-se, uma multidão se concentrou do lado de fora do Stonewall, enquanto um grupo de policiais armados e nervosos impedia os presentes de saírem do recinto. Reforço policial foi chamado para o local, mas a multidão queer que se avolumou do lado de fora cercou os policiais que chegavam pela rua. Conta-se que os “revoltados” gritavam contra os policiais: “Pigs! Pigs! Pigs!” e lançavam moedas em sua direção, sugerindo que não valiam nada. Também ironizavam dizendo aos policiais que tinham traseiros gostosos. Pela primeira vez, conta John O’Brien, “a polícia se deparou com algo inédito, gays, que não deveriam ameaçar os policiais, que deveriam ser homens fracos, maricas incapazes de fazer qualquer coisa, estavam agora levantando objetos, enfrentando, atacando, batendo” (como brothers and sisters). Naquela noite o Stonewall foi completamente destruído, policiais e civis se feriram; foi a primeira vez que uma multidão de pessoas queer se uniu contra o Estado e, incitadas a lutar, iniciaram uma série de ações políticas que iriam mudar sobremaneira a história do movimento gay e lésbico, bem como o modo como a sociedade americana legisla sobre corpos não heteronormativos. 31

Em 28 de junho de 1970, cerca de um ano após a “Revolta de Stonewall”, uma série de “protest marchs” acontecem em diferentes partes dos Estados Unidos. A Gay Liberation Day March & Gay-In, posteriormente conhecida como Parada do Orgulho Gay (Gay Pride), reuniu em Nova York milhares de pessoas que, pela primeira vez, em multidão, marcharam unidas, muitas em lágrimas e com medo de serem expostas e perseguidas mais uma vez, reivindicando direitos legais específicos e celebrando o orgulho de serem o que são, gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros – os queer estavam ali expostos e visíveis no espaço público da cidade e dali não sairiam nunca mais. Esse é o pano de fundo, o contexto que nos dará uma pista e uma linha de fuga para o estabelecimento de conexões parciais entre queer e o cinema, seja a partir de “personagens/pessoas queer” que atuam para a câmera de diferentes cineastas, seja a partir de um cinema/filmografia do início dos anos 1990 que, apesar de diverso em diferentes aspectos, foi rotulado de New Cinema Queer em artigo seminal de mesmo nome de B. Ruby Rich publicado na revista britânica Sight & Sound (1992),6 tendo influenciado toda uma nova voga de críticos e realizadores de filmes em diferentes formatos que experimentam e inovam na linguagem cinematográfica/videográfica, a partir de ou em relação com várias/diferentes/ diversas perspectivas queer. “Queer e a câmera” apresenta uma seleção de 24 obras, oito longas e dezesseis curtas e médias metragens, nacionais e internacionais, produzidas entre os anos de 1967 e 2016. Lucas Bettim, de forma retrospectiva, propõe a alcunha de Old Queer Cinema, “cujo cânone abrigaria as obras anteriores que teriam sedimentado o terreno para aquele novo cinema [New Queer Cinema]”. Ainda segundo o autor, “é possível apontar, ao longo da história cinematográfica, representações de identidades sexuais estranhas ao padrão heterossexual. No cinema narrativo clássico de Hollywood, tais representações foram predominantemente forjadas a partir de um viés conservador heteronormativo, servindo como suporte a fim de reafirmar culturalmente a superioridade masculina e a rigidez das dicotomias homem/mulher – hétero/homo. [...] a imagem do homossexual calcada em estereótipos que transitavam entre o risível e o obscuro” (2015, p.108). Contudo, foi, ainda de acordo com Lucas Bettim, o cinema underground norte-americano a partir do final dos anos 1950, assinado por autores como Kenneth Anger, Jack Smith, Andy Wahrol e Paul Morrissey, o responsável por colocar o pé na porta do cinema convencional de “viés conservador

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6 Cf. o artigo seminal de Ruby Rich na seção de ensaios deste catálogo.

heteronormativo”, apresentando uma filmografia experimental “que explorava sem pudor o corpo masculino, personagens transgêneros, drogas e sexo” (2015, p.109). Como em todo trabalho curatorial de uma mostra cinematográfica, enfrentamos problemas para localizar obras raras, além de falta de recursos para o pagamento de direitos de exibição, entre outros custos de produção, sem falar no espaço limitado na grade de filmes... A impressão é a de que vários filmes ficaram de fora. Apesar disso, as obras selecionadas para compor a mostra/seminário “Queer e a câmera” esboçam um panorama instigante das relações entre o queer e o cinema. O filme que abre a mostra pode ser identificado como um exemplar do Old Queer Cinema, apesar de não constar entre os filmes listados por Lucas Bettim. Portrait of Jason (1968), da cineasta norte-americana Shirley Clarke – exibido pela segunda vez no forumdoc.bh7 –, é sem dúvida uma obra sensacional, a figurar no topo de uma filmografia sobre a (personagem) queer no cinema. Filmado durante uma noite e um dia de inverno de 1966 no apartamento do Chelsea Hotel onde Shirley Clarke morava, o documentário é atravessado e focado no corpo negro e homossexual do amigo Jason Holliday (a/k/a Aaron Payne), única pessoa em cena durante todo o filme. Precursor no estilo do cinema direto norte-americano, o filme é editado a partir de doze horas de material bruto da mise-en-scène alternante de Jason, que bebe, fuma, canta, cai, debocha, dá gargalhadas e por vezes se cala, fundindo elementos cômicos e trágicos, bem como confundindo, tornando indiscerníveis, o que é genuinamente documental e o que é performance – nas palavras oscilantes e melódicas de Jason, “is all performance, giiiiirrrls!”. Temas como racismo, homofobia, pobreza, trabalho, prostituição, submissão, performance, cinema, questões de gênero e sexualidade, bem como aspectos do que mais tarde será chamado de cultura queer, são narrados pela presença dramática e contumaz de um negro gay afro-americano diante da câmera de sua amiga, uma cineasta branca de origem judaico-polonesa (seus pais eram riquíssimos), em um momento, como já notado, em que leis antissodomia, anti-homossexuais e antiprostituição eram vigentes em grande parte dos Estados Unidos. Jason Holiday é um dos personagens icônicos do Old Queer Cinema, e seu lugar na história do cinema queer deve ser reservado. O segundo filme da mostra, além de ter sido realizado em vídeo digital, traz elementos importantes para algumas conexões parciais entre

7 Cf. o texto de apresentação da mostra direto.doc por Paulo Maia para forumdoc. bh.2010. http://www.forumdoc.org.br/2010/?page_id=731

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o feminismo e o cinema queer. She has a beard/ (1975), média-metragem dirigido por Rita Moreira e Norma Bahia Pontes, trata da “política das aparências” no contexto do Women’s Movement em Nova York. Apesar de realizado no formato vídeo, a linguagem do filme segue o estilo cinema verité de viés sociológico. No filme, Hope Forest desempenha o papel de uma entrevistadora que, exibindo um bigode natural em seu buço, nem um pouco convencional no papel de gênero reservado às norte-americanas, conversa com mulheres das mais diferentes idades sobre pelos faciais femininos, que, visíveis no rosto da entrevistadora, mobilizam uma série de impressões contraditórias nas entrevistadas sobre a regulação do corpo feminino. A partir do tema aparentemente banal e sem importância da visibilidade de pelos faciais femininos, o resultado dessa “proposição do bigode” é surpreendentemente queer. Em 1986, quando o vírus HIV (sigla em inglês do Vírus da Imunodeficiência Humana) foi oficialmente descoberto, a comunidade LGBT, mas não somente ela, já havia sentido intensamente o horror de milhares de mortes causadas pela AIDS (sigla em inglês da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). Os primeiros casos dessa nova doença, que atacava diretamente o sistema imunológico, ocorreram no final da década de 1970. Num primeiro momento, a maioria dos casos notificados ocorreram nos EUA. Para se ter uma ideia, em 1987 a WHO (World Health Organisation) estima que de 5 a 10 milhões de pessoas viviam com o vírus HIV no mundo, sendo que, em dezembro do mesmo ano, dos 71.751 casos notificados, 47.022 foram nos EUA. No Brasil, o primeiro caso aparece em 1980 com um homem em São Paulo; em 1983, é notificado o primeiro caso de uma mulher doente; em 1987, 2.775 casos já haviam sidos registrados em todo o país. Vale lembrar que somente em 1987 a FDA aprovaria o primeiro antirretroviral, conhecido como AZT, iniciando assim uma nova fase no tratamento da AIDS.8 DHPG Mon Amour (1984), do diretor Carl Michael George, curta filmado em super 8, é um retrato íntimo do casal soropositivo David Conover e Joe Wash e da lida com os primeiros tratamentos com a droga DHPG na luta contra a AIDS, antes mesmo de o vírus HIV ter sido indicado oficialmente como a causa da doença. Questões relacionadas à ciência, à política e à autodeterminação dos corpos infectados e doentes são tematizadas de forma contundente e inédita. DHPG Mon Amour é um dos curtas mais incômodos da mostra, sobre um período de intensas transformações no desenvolvimento de drogas e tratamentos, que, mais que nos informar,

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8 Para maiores informações sobre HIV-AIDS cf. http://www.aids.gov.br/aids

nos faz sentir e pensar sobre esse trágico período de descoberta de uma doença até então completamente desconhecida. A década de 1990 foi completamente impactada pela epidemia AIDS/ HIV, que se espalhou pelo mundo na década anterior. A imagem, bem como a existência, de homossexuais, transgêneros e pessoas queer (até essa época percebemos uma sinonímia entre queer, homossexuais e transgêneros em geral), fora posta em cheque e, como se sabe, uma grande onda de preconceito e discriminação contra pessoas que não eram heterossexuais se formou. Logo a comunidade LGBT foi taxada como o principal “grupo de risco”9 na contaminação e transmissão do HIV, como se a causa da doença e, consequentemente, a responsabilidade sobre ela fosse exclusivamente dos homossexuais. Roger Hallas afirma que “os corpos homossexuais foram expostos como uma ameaça traumatizante ao público em geral, enquanto vidas queer traumatizadas não eram levadas em conta” (apud Yann Beauvais, 2015, p. 68). Esse ataque frontal ao movimento e às pessoas queer/LGBT foi tão pesado que parte do movimento, com grande repercussão na cena cinematográfica da época, levou um tempo para se recompor e traçar estratégias de luta em favor de avanços nas pesquisas e nos tratamentos públicos para pessoas infectadas com HIV/AIDS, bem como cavar um modo de dar visibilidade, reivindicar direitos e combater o preconceito em relação às pessoas que vivem com HIV/AIDS. Segundo Yann Beauvais, nas décadas de 1980 e 1990 “na mídia a aids não era visível” (idem, p. 69). O campo das artes, do cinema, do vídeo e da música terá aí um papel fundamental, tendo a AIDS influenciado profundamente, como sugere a exposição Art Aids America do The Bronx Musem of Arts (2016), a arte e a cultura americanas. Imagino que essa é uma tese a ser avaliada em todo o mundo. No caso do cinema queer, especificamente, o impacto da AIDS foi dilacerante. Ruby Rich, uma crítica de cinema norte-americana, no ano de 1992, após realizar uma turnê no ano anterior em alguns dos principais festivais de cinema do mundo – Festival dos Festivais de Toronto (Canadá),10 Festival de Cinema Gay e Lésbico de Amsterdã (Holanda), Sundance em Park City, Utah (EUA), Festival de Cinema Gay e Lésbico de São Francisco (EUA), entre outros –, publica um ensaio, já citado anteriormente, que entrará para a história do cinema ao caracterizar um fenômeno nomeado

9 Somente mais tarde essa categoria discriminatória – “grupo de risco” – seria substituída por “comportamento de risco”. Mesmo assim o estigma permanece. 10 Hoje chamado Festival Internacional de Cinema de Toronto – TIFF.

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por ela de New Queer Cinema. Tal fenômeno teria se iniciado no outono de 1991 no Festival de Toronto, no Canadá. Segundo Rich, “naquela ocasião, repentinamente havia um conjunto de filmes fazendo algo novo, renegociando subjetividades, anexando gêneros inteiros, revisando histórias em suas imagens. Ao longo de todo inverno, da primavera e do verão, a mensagem foi alta e clara: queer é sexy”. (1992, p.18) No artigo New Queer Cinema, Rich apresenta uma bela síntese a respeito dessa nova voga do cinema e do vídeo que se condensa no início dos anos 1990. Segundo a autora, é claro que os novos filmes e vídeos queer não são todos um só e tampouco compartilham um único vocabulário estético, estratégia ou preocupação. Ainda assim, eles são unidos por um estilo comum: chamaremos de “HomoPomo”. Há traços em todos esses filmes de apropriação, pastiche e de ironia, assim como uma reelaboração da história que leva sempre em consideração um construtivismo social. Definitivamente rompendo com abordagens humanistas antigas e com filmes e fitas que acompanham políticas de identidade, essas obras são irreverentes, enérgicas, alternadamente minimalistas e excessivas. Acima de tudo, elas são cheias de prazer. Elas estão aqui, elas são queer, acostume seus quadris a elas. (1992, p.20) Dentre a dezenas diretores e diretoras abarcados por Rich sob a alcunha de New Queer Cinema, apresentaremos, na mostra/seminário “Queer e a câmera”, um conjunto de obras realizadas nesse período, um arco que vai de Sadie Benning a Dereck Jarman, passando por Bruce LaBruce, Marlon Riggs, Jennie Livingston e o pessoal do Queer Nation. Jollies (1990), de Sadie Benning, é o curta-metragem mais experimental dessa leva. Realizado com uma câmera Pixelvision da marca de brinquedos Fisher-Price e com um custo bem reduzido, Jollies é um dos diversos vídeos realizados por Benning aos dezoito anos de idade que tem como um dos traços a experimentação de sua sexualidade lésbica e da linguagem cinematográfica por intermédio de uma câmera de brinquedo. Nas palavras de Rich, “Benning fez um Retrato da Artista Jovem Sapatão como nunca antes havíamos visto”. (idem, p.28) Um dos aspectos latentes dessa filmografia queer da passagem dos anos 1980 para os 1990 diz respeito à questão racial, às especificidades e diferenças internas da queerness negra ou negritude queer. Louise Wallenberg sugere inclusive o nome de New Queer Cinema Negro para 36

experiências que realizadores gays negros vinham realizando nesse campo,

tendo como questão comum “como tornar visível a queerness masculina negra e sua pluralidade, a busca por pais fundadores e a expressão de uma voz própria” (Wallenberg, 2015, p.89). Tongues Untied (1989), do realizador negro Marlon Riggs, é um dos primeiros documentários a tratar de forma direta a diversidade das experiências queer entre negros norte-americanos, uma espécie de bricouleur da cultura americana do ponto de vista dos gays e lésbicas negros. Na mesma direção se apresenta Paris is burning (1991), de Jennie Livingston, que, apesar de não ser uma realizadora negra nem latina, soube captar como ninguém a cena dos Ballroom de Nova York no final dos anos 1980, performada por afro e latino-americanos. Para Judith Butler, Paris is Burning é um filme exemplar em diferentes aspectos, mas sobretudo por abrir uma distância “entre aquele apelo hegemônico pela normatização do gênero e suas apropriações críticas”. No verão de 1991, militantes gays ativistas da ACT UP, da sigla AIDS Coallition to Unleash Power (Coalizão da AIDS pelo Empoderamento), um coletivo internacional de ação direta em defesa das pessoas que vivem com HIV/AIDS, circularam durante a Parada Gay de Nova York o Manifesto QUEER NATION, um petardo direcionado às irmãs e irmãos queer, mas sobretudo ao seu pior inimigo, os heterossexuais. O estilo do manifesto é complexo e alterna diferentes vozes em sua enunciação, que não raras vezes se centra sobre o significado da assunção e visibilidade queer. Ser queer não é sobre um direito à privacidade; é sobre a liberdade de ser público, de simplesmente sermos quem somos. Significa enfrentar a opressão diariamente: homofobia, racismo, misoginia, a intolerância dos hipócritas religiosos e o nosso próprio desprezo. (Fomos cuidadosamente ensinadas a odiar a nós mesmas). E agora, é claro, significa combater um vírus também, e todos aqueles homofóbicos que estão usando a AIDS para nos varrer da face da terra. Ser queer significa levar um outro tipo de vida. Não é sobre o mainstream, margens de lucro, patriotismo, patriarcado ou sobre ser assimilado. Não é sobre diretores executivos, privilégio e elitismo. É sobre estar nas margens, definindo nós mesmas; é sobre desfazer gênero e segredos, sobre o que está abaixo do cinto e, profundo, dentro do coração. É sobre a noite. Ser queer é ser “local” porque sabemos que cada uma de nós, cada corpo, cada gozo, cada coração e cu e pau

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é um mundo de prazeres esperando para serem explorados. Cada uma de nós é um mundo de possibilidades infinitas.11 A organização QUEER NATION, cuja ação política, de curta duração, visava a eliminação da homofobia, entre outros temas de interesse de pessoas LGBT/Queer, privilegiou as artes e diferentes mídias (forte característica do ativismo queer desde então) como meio de criar visibilidade para as pessoas queer, bem como demarcar territórios e marcar presença nos espaços políticos e públicos. O curta-metragem Why we fight (1991), produzido por Gabriel Gomez e Elspeth Kydd, é um exemplo das ações do QUEER NATION, que também assina a obra. A sequência inicial é fenomenal, e o filme se desenrola em um clima de entrevista nem um pouco convencional, em torno de uma pergunta que é a toda hora repetida para todo tipo de queer presente numa festa beneficente para o QUEER NATION de Chicago. “O que é o amor?”, indaga a entrevistadora, no estilo direto, “direto da boate”, às suas entrevistadas, que respondem de diferentes maneiras e mise-en-scènes. Nem tanto o amor, mas algo mais queercore é que vai caracterizar o primeiro longa-metragem do polêmico cineasta canadense Bruce LaBruce. No skin of my ass (1991) foi realizado em super 8 e apresenta uma estética precária que condiz com sua ambience pós-punk. Para João Ferreira, o filme “é a materialização em tela do imaginário desenvolvido na Juvenile Deliquents [fanzine] e outras manifestações do Queercore. Numa estética rudimentar e em preto e branco, LaBruce explora e subverte um dos símbolos máximos da homofobia: o skinhead”. E João Ferreira conclui de forma mordaz: “Ao passo que o activismo LGBT procura nomear o seu inimigo, LaBruce mete-se literalmente na cama com ele”. (2014, p. 50) A tensão Queer/LGBT12 se faz evidente, e um dos aspectos centrais das pragmáticas queer pós-anos 1990 relaciona-se a uma crítica, por vezes debochada, das representações, teorias, associações e políticas identitárias de gêneros estanques construídos a partir e em referência ao

11 Cf. na seção de ensaios deste catálogo o Manifesto QUEER NATION em sua versão completa.

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12 Cf. o texto “Pontes e cercas entre Teoria Queer e movimento LGBT” de Anna Paula Vencato (2016) na seção de ensaios deste catálogo. Texto preparado para a mesaredonda “Teoria Queer Hoje!”, organizada pelo forumdoc.ufmg em maio de 2016 na Faculdade de Educação (UFMG). A mesa contou com a participação de Paulo Henrique Nogueira (FaE-UFMG) e a mediação de Paulo Maia (FaE-UFMG).

binarismo gay/hétero em favor de formas expressivas, não necessariamente identitárias, mas fluídas e contraditórias, não raro fora da norma. O inglês Derek Jarman talvez seja um dos nomes de maior destaque do cinema queer britânico e mundial. Tendo se aproximado das primeiras reuniões do Gay Liberation Front em 1971 em Londres, Derek teria se afastado definitivamente das associações políticas para assumir o vasto campo das artes como sua zona de expressão. No caso do cinema, experimentou diferentes suportes, primeiro em super 8 e depois em outros formatos, inclusive em 35 mm. Blue (1993) é seu último filme e para muitos o mais radical. Jarman, doente e já no estágio final da AIDS, com sérios problemas de perda de visão, escreve um dos textos mais belos, impactantes e eloquentes do gênero ensaístico do cinema sob e sobre o impacto da AIDS em sua vida e na de seus amigos, mortos em virtude de complicações decorrentes da AIDS. David, Howard, Graham, Terry, Paul, são repetidamente lembrados no texto, que avisa que o “amor é vida que dura eternamente. As memórias de meu coração voltam para vocês”. Outra característica radical do filme está em sua forma; o filme é apresentado em um único bloco de cor azul (em referência ao artista Yves Klein). Jarman lê o texto repleto de citações e intercalado com sons, barulhos, músicas, a voz de uma mulher que também recita um texto, todos de forma alternada, compondo a banda sonora. O resultado é arrebatador. “O azul protege o branco da inocência. O azul brilha atrás do preto. Blue é a escuridão que retorna visível”, lacra Jarman. Tendo apresentado parte da filmografia do chamado New Queer Cinema, podemos avançar no que poderíamos chamar de inflexões, desdobramentos e outras genealogias do queer para além da América do Norte e da Inglaterra. É hora de continuar nossa narrativa queer por meio de outros territórios e filmes realizados na América Latina. Logo que iniciamos nossa pesquisa curatorial para a mostra “Queer e a câmera”, nos perguntávamos se no Brasil e na América Latina havia ocorrido, nesse mesmo período do New Queer Cinema, desdobramentos que poderiam estar articulados, ainda que de forma independente, por questões correlatas àquelas delineadas pelo estilo ou estética “Homo Pomo”. Prelúdio de uma morte anunciada (1991), de Rafael França, foi a obra brasileira que de imediato nos conectou a essa filmografia em língua inglesa, antecipando fortemente alguns aspectos presentes na obra derradeira de Jarman. Trata-se de um filme também derradeiro na carreira de um realizador que está prestes a morrer, assim como muitos de seus amigos, em decorrência do HIV/AIDS. Com as cabeças cortadas e de mãos

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dadas, Rafael e seu namorado estão em cena, parados e em posição frontal. A música que ouvimos é La Traviatta, interpretada por Bidu Sayão. Aos poucos diversos nomes de pessoas vão surgindo: amigos de Rafael que morreram, como ele morrerá, em decorrência da AIDS. Por motivos ainda mal compreendidos, talvez pelo acaso, o desenho de nossa curadoria de filmes da mostra/seminário “Queer e a câmera” acabou constituindo dois grandes blocos. O primeiro se concentrou em obras realizadas em países de língua inglesa até 1994, em sua maioria, representantes do New Queer Cinema. Já o segundo, composto em sua maioria por filmes brasileiros, mas não exclusivamente, concentra-se em uma produção entre os anos de 2013 e 2016, na qual se destacam filmes com personagens identificadas como transexuais, transformistas, trans*, mulheres, bichas, travestis e drag queens – podemos arriscar chamá-lo, com aspas, de bloco “transgênero”. Naomi Campbel (2013), de Nicolás Videla e Camila José Donoso, Castanha (2014), de Davi Pretto, e Los Leones (2016), de André Lage, filmados no Chile, no Brasil e na Argentina, formam uma trilogia de longas centrados nos desejos, nas práticas cotidianas e no trabalho de Yermén, Castanha e Mariana, personagens principais de cada um desses filmes, que são identificadas, na tela e fora dela, como transexual, transformista e travesti. Em comum, os filmes tomam os terrenos e territórios onde esses personagens/atores habitam como o locus no qual a cena se constituiu – a inflexão local queer se mostra muito potente. Naomi se destaca por apresentar uma exploração tanto visual quanto biográfica e política centrada na mise-en-scène da atriz transexual Paula Yérmen Dinamarca, que no filme assume o papel de uma personagem transexual de mesmo nome que se mostra completamente decidida a passar por uma cirurgia de mudança de sexo. As ações se desenrolam em torno desse desejo, que a leva a fazer de tudo um pouco. Impressiona o fato de o filme ter sido um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) dos jovens diretores.13 Castanha, por seu turno, evoca a presença dramática de João, um ator de 52 anos que vive com sua mãe, Celina, e se alterna entre o trabalho de transformista em casas noturnas e atuações em filmes e peças de teatro em Porto Alegre. Tal como Jason, personagem principal do primeiro filme

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13 Cf. Na seção de Ensaios deste catálogo, Martins, Marcos. “Trânsitos, (des) aprendizados e cinema: uma conversa com Camila José Donoso, diretora de Naomi Campbel”. In: Catálogo forumdoc.bh.2016, Filmes de Quintal, Belo Horizonte, 2016.

que apresentamos nesta mostra, João é um desses caras que, diante das câmeras, torna indistinguível o que é genuíno e o que é pura performance. Los Leones, longa de estreia do mineiro André Lage, rodado em uma ilha argentina, desenvolve-se dentro e no entorno da casa de um casal, a travesti Mariana e seu companheiro Raúl Francisco, ambos soropositivos, assim como boa parte do círculo de amigos que frequenta a casa. Com enquadramentos rigorosos e um tempo (timing) que acompanha a cena de suas personagens, ao invés de impô-la, o filme impressiona pelo retrato apaixonante do modo como o casal leva a vida, a despeito de todas as dificuldades que Mariana encontra com os medicamentos retrovirais. Outro filme profundamente impactado pelo fato de suas personagens serem soropositivas. Trans*lucidx (2014), de Miro Spinelli, e Ingrid (2016), de Maick Hannder, apresentam-se como ensaios audiovisuais que têm o corpo como campo de batalha. O primeiro tensiona a linguagem por meio de imagens autodocumentais publicadas online por indivíduos trans*, e o segundo aproximase aos poucos e com cuidado do corpo tensionado de Ingrid, uma mulher nascida aos 23 anos de idade, após sua primeira cirurgia de prótese de silicone, e que, em suas palavras, “lutou contra a natureza”, contra o “próprio” corpo. Corpos que interessam (Bodies that matter). Virgindade (2015), de Chico Lacerda, é outro filme da mostra centrado na figura de um narrador, sobreposta a diferentes planos da cidade de Recife, tendo como pano de fundo as tramas subjetivas de uma pessoa que descobre ao mesmo tempo, e de forma entrelaçada, sua sexualidade e os espaços da cidade, uma espécie de cartografia iniciatória ou ritual de passagem. Como sintetiza Eduardo de Jesus em ensaio escrito especialmente para o forumdoc sobre o filme, “percebida agora não mais na força do espetáculo ou da midiatização, tampouco na forma absoluta de seu espaço construído, a cidade atravessa e é atravessada pelo desejo entre os corpos e os espaços, fazendo ecoar na imagem a intensidade da experiência”. O conjunto final de filmes que compõem a mostra/seminário “Queer e a câmera” costuma circular mais pelos circuitos das artes do que em festivais e salas de cinema – a conexão com o campo das artes é talvez a característica que os une. Sérgio e Simone (2014), de Virgínia de Medeiros, participou da 31ª Bienal de São Paulo em 2014 e foi apresentado na forma de tríptico. O filme narra em telas consecutivas o trânsito da travesti Simone, que no filme “bebe seus orixás” em uma fonte de água pública, para Sérgio, um pastor evangélico da periferia de Salvador, após uma experiência de

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quase-morte causada por uma overdose de crack, acontecimento que mudaria não apenas a vida de Simone, mas a corpulência do próprio trabalho de Virgínia de Medeiros, uma vez que tal acontecimento se deu um mês depois da primeira filmagem. Germano Dushá, em artigo intitulado “O que há de queer na incerteza?”, busca alinhavar um conjunto de artistas mobilizados pela equipe curatorial da 32a Bienal de São Paulo – Incerteza Viva (2016) –, “num momento político em que o País é assaltado pela franca escalada de forças conservadoras – cujos esforços voltam-se ao tolhimento da subjetividade em prol de normatizações [...]. Quando direitos e garantias individuais vão perdendo espaço para agendas retrógradas e opressoras, é urgente que se abra o campo para o incerto”. 14 É justamente na incerteza do nosso passado, bem como do nosso futuro, que a obra do colombiano Carlos Motta e a do brasileiro Luiz Roque transitam, ambos presentes na lista de artistas destacados por Dushá. Na mostra “Queer e a câmera”, compondo uma espécie de “pequena retrospectiva” dentro da programação, exibiremos quatro filmes de cada um desses expoentes. Em Ano Branco (2013), O Novo monumento (2013), Modern (2014) e HEAVEN (2016),15 Luiz Roque transita entre presente, passado e futuro, colocando em perspectiva, em sua experimentação cinematográfica, corpos que ora são contrastados ao modernismo e suas formas esculturais, ora são libertos de amarras e da política de controle, para um momento depois serem novamente condenados. Kiki Mazzuccheli, em belo ensaio16 sobre a obra de Luiz Roque, antecipa, de forma certeira, uma vez que a crítica quando escreveu estas linhas não havia ainda assistido o filme, a que veio HEAVEN: O trabalho, que dá sequência a Ano branco, é ambientado em um futuro distópico no qual um novo tipo de vírus transmitido oralmente começa a afetar as comunidades transgênero. Essa premissa desoladora representa um afastamento do tom idealista que caracteriza os primeiros trabalhos do artista, embora possa ser vista também como um reflexo dos tempos políticos sombrios no Brasil, onde

14 http://brasileiros.com.br/2016/10/o-que-ha-de-queer-na-incerteza/ (acessado em outubro de 2016) 15 Heaven faz parte da 32a Bienal de São Paulo – Incerteza Viva (2016).

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16 Originalmente publicado na ArtReview. A tradução para o português do ensaio é apresentada em primeira mão em nosso catálogo.

grupos LGBT são tomados como um dos principais alvos das forças conservadoras em ascensão (2016, p.3). A trilogia composta por Nefandus (2013), La visión de los vencidos (2013) e Naufragius (2013), e também Deseo (2015), de Carlos Motta, estabelecem uma relação de engajamento com histórias sobre a cultura e o ativismo queer. Os filmes de Motta são marcados pelo caráter ensaístico, com textos em sua maioria escritos e narrados pelo próprio artista. Motta foi o último nome que incorporamos a nossa curadoria. O impacto que sentimos ao assistirmos a seus filmes pela primeira vez foi de um frescor incomum, reflexo do modo ousado e inventivo de seu engajamento. Em Nefandus, por exemplo, a partir da desconstrução de categorias cristãs, como aquelas de pecados nefandos, pecados indizíveis, crime abomináveis, Motta levanta hipóteses sobre atos de sodomia que ocorriam nas Américas pré-conquista e o modo como foram desmoronadas pela chegada do homem branco. Já em Naufragius, Motta propõe uma adaptação ficcional de um artigo do antropólogo Luiz Mott cujo título já indica todo o rolê: “Desventuras de um degredado sodomita na Bahia seiscentista”,17 sobre a extradição de Luiz Delgado para Lisboa, por causa do crime e do pecado. Encerramos aqui esta narrativa queer a partir dos 24 filmes! que compõem a mostra “Queer e a câmera”. Para avançar em outros territórios que não conseguimos penetrar em nossa restrita curadoria de filmes, organizamos um seminário que privilegiará modos locais de práticas queer/kuir. Nosso desejo é experimentar com nossos convidadxs e espectadorxs o que Jota Mombaça, presente em nosso seminário, sugere como sendo uma forma de “desaprender o queer dos trópicos”, “desmontando a caravela queer”,18 trazendo para a programação de nosso seminário experiências queer que não se limitam à “elite teórica queer no Brasil”. Devemos igualmente ler, ouvir e refletir com atenção sobre a sugestão de Vitor Grunvald, também presente em nosso seminário, no ensaio “Cinema queer? Sugestões de-formativas”, que publicamos em primeira mão neste catálogo, ao concluir: “Cinema queer, portanto, como indicação de uma ética dissidente adiantada por meio de representações audiovisuais contra-pedagógicas, mais do que um rótulo ou classificação de um conjunto de realizações ou realizadorxs. Quanto infortúnio não seria se a própria noção de queer/cuir fosse utilizada para criar ordenações

17 http://books.scielo.org/id/yn/pdf/mott-9788523208905-08.pdf 18 Cf. ensaio de mesmo nome de Jota Mombaça neste catálogo.

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– nesse caso, no campo das produções cinematográficas – mais do que destruí-las ou deformá-las!”. Nosso seminário está estruturado em quatro encontros ou mesas-redondas, além de algumas sessões comentadas pelos diretores presentes.19 As sessões comentadas acontecerão no dia 21 de novembro no Cine Humberto Mauro. André Lage irá comentar a sessão de seu filme Los Leones às 19h, Maick Hander e Chico Lacerda estarão juntos na sessão de Ingrid e Virgindades, comentando seus próprios filmes, às 21h, e às 22h, é Luiz Roque quem apresenta e comenta a minirretrospectiva de seus filmes na mostra. O seminário será aberto no dia 21 de novembro, segunda-feira, às 14h, no Cine Humberto Mauro, e contará com a mesa-redonda Queering Beagá I, dedicada a diferentes propostas e pesquisas artísticas em Belo Horizonte. A mesa será mediada por Vinícius Abdala e composta por David Maurity, Idylla Silmarovi e Igor Leal. Na terça-feira, 22 de novembro, às 14h, a mesa Cinema e cultura queer, mediada por Eduardo de Jesus, será composta por Vitor Grunvald, Karla Bessa, Luiz Roque e Chico Lacerda. Às 21h, a mesa Práticas e ativismos queer, mediada por Paulo Maia, será focada na experiência pessoal e profissional de Jota Mombaça, Pri Bertucci e Ingrid Leão. Na quarta-feira, 23 de novembro, às 14h, encerraremos o seminário no Cine Humberto Mauro com a mesa Queering Beagá II, mediada por Ana Luiza Santos, com a participação de Sofi - Azi Deia, Danielle Pintoe Júlia Diniz e Carvalho. A mostra/seminário “Queer e a câmera” só foi possível graças ao empenho dos professores Cláudia Mesquita e Ruben Caixeta e dos bolsistas Marcos Martins, Cristiano Araújo, André Victor, Eduarda Bona e Júlia Imbroisi, que, além de comporem a equipe do Programa de Extensão forumdoc.ufmg, assinam, junto comigo, a curadoria coletiva “Queer e a câmera”. Agradecemos imensamente os apoios e patrocínios institucionais da FAPEMIG, Proex-UFMG, Proex-FaE, Faculdade de Educação, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Ciências Aplicadas à Educação (FaE), Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (FAFICH) e Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia (FAFICH). A equipe forumdoc.bh agradece ainda aos convidadxs e cineastas que possibilitaram a realização da mostra/seminário “Queer e a câmera”,

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19 Para maiores informações sobre a Mostra/Seminário “Queer e a câmera”, sobre os convidados e filmes, consulte a parte do catálogo dedicada às sinopses, à programação, ao mini cv dos convidadxs e os ensaios publicados.

por aceitarem nosso convite, por cederem seus filmes e por terem escrito ou liberado a publicação de ensaios especiais para esta edição de 20 anos. Agradeço a Ana Martins Marques pela revisão cuidadosa deste texto. Sem a equipe da Filmes de Quintal nada disso seria possível!

Referências Beauvais, Yann. O New Queer Cinema em relação ao cinema experimental e à videoarte no combate à AIDS. In: New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. Murari, Lucas; Nagime, Mateus (orgs.), 2015. Bettim, Lucas. Old Queer Cinema. In: New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. Murari, Lucas; Nagime, Mateus (orgs.), 2015. Caixeta, Ruben. O inimigo e a câmera. In: Catálogo forumdoc.bh.2013. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2013. Disponível em: . Acesso em: 29/10/2016 Ferreira, João. Bruce LaBruce e a intifada gay. In: Cinema e Cultura Queer – Queer Lisboa Festival Internacional de Cinema Queer, António Fernando Cascais e João Ferreira (orgs.), Lisboa, 2014. Grunvald, Vitor. Cinema queer? Sugestões de-formativas. In: Catálogo forumdoc.bh.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016. Jesus, Eduardo. cidade-sexo, mas não é sex in the city. In: Catálogo forumdoc. bh.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016. Maia, Carla e Mesquita, Cláudia. A mulher e a câmera. In: Catálogo forumdoc. bh.2012. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2012. Disponível em: . Acesso em: 29/10/2016. Maia, Paulo. O animal e a câmera. In: Catálogo forumdoc.bh.2011. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2011. Disponível em: . Acesso em: 29/10/2016. Martins, Marcos. Trânsitos, (des)aprendizados e cinema: uma conversa com Camila José Donoso, diretora de Naomi Campbel. In: Catálogo forumdoc.bh.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016.

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Mazzucchelli, Kiki. Horizontes reduzidos. In: Catálogo forumdoc.bh.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016. Mombaça, Jota. Desmontando a caravela queer. In: Catálogo forumdoc. bh.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016. Rich, B. Ruby. New Queer Cinema [1992]. In: New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. Murari, Lucas; Nagime, Mateus (orgs.), 2015. Vencato, Anna Paula. Pontes e cercas entre Teoria Queer e movimento LGBT. In: Catálogo forumdoc.bh.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016. Viveiros de Castro, Eduardo. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. In. Viveiros de Castro, Eduardo; Sztutman, Renato (org.). Rio de Janeiro: Azougue, 2008. (Col. Encontros) Wallenberg, Louise. O New Queer Cinema Negro [2004]. In: New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. Murari, Lucas; Nagime, Mateus (orgs.), 2015.

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She has a beard > Ela tem uma barba Brasil/EUA, 1975, p&b, 26’ direção director Rita Moreira, Norma Bahia Pontes contato contact [email protected]

No auge do movimento feminista em Nova York, duas diretoras brasileiras resolvem abordar uma importante questão daquele tempo, a “política das aparências”. Forest Hope, uma jovem que cultivou sua própria barbicha natural, sai nas ruas de Nova York para entrevistar mulheres de todas as idades sobre pêlos faciais. At the height of the Women’s Movement in New York two Brazilian female directors decide to address an important issue of that moment: the “politics of appearance”. A young woman who grew her own natural goatee, Forest Hope, walks the streets of New York interviewing women of all ages about facial hair.

cine humberto mauro, 20 nov, 21h

Portrait of Jason > Retrato de Jason

EUA, 1967, p&b, 105’ direção director Shirley Clarke fotografia cinematography Jeri Sopanen montagem editing Shirley Clarke som sound Francis Daniel produção production Shirley Clarke contato contact Milestone

O filme reúne os melhores momentos de uma longa entrevista com Aaron Payne, mais conhecido como Jason Holliday, figura singular que marcou os Estados Unidos na década de 60. Entre cigarros e bebidas, Holliday narra alguns fatos da sua vida e tece reflexões sobre o que significa ser gay e negro em seu país naquele momento.

The film brings together the best moments of a long interview with Aaron Payne, better known as Jason Holliday, a peculiar figure of the 60’s in the United States. Between cigarettes and drinks, Holliday tells some facts of his life and reflects on what it means to be a black and gay man in that country, at that time.

cine humberto mauro, 20 nov, 17h > cine 104, 24 nov. 20h40

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Sadie Benning apresenta uma cronologia de seus beijos e paixões, delineando o desenvolvimento de sua sexualidade nascente. Para tanto, ela se dirige à câmera com um ar de sedução e romance, e oferece ao espectador um sentimento de sua ansiedade e de seu prazer particular ao tomar consciência de sua identidade lésbica.

Um filme caseiro em Super-8 que explora os avanços radicais realizados pelo movimento PWA (Pessoas Com Aids) no desenvolvimento de uma assistência médica própria na década de 1980. Focado precisamente nas minúcias cotidianas de David Conover e Joe Walsh, DHPG Mon Amour mostra a luta pela autodeterminação e pelo controle sobre o próprio corpo, ressoando, ao mesmo tempo, em uma dimensão íntima e mais abertamente política.

cine humberto mauro, 22 nov, 17h

cine humberto mauro, 20 nov, 17h

Sadie Benning presents a chronology of her crushes and kisses, tracing the development of her nascent sexuality. She addresses the camera with an air of seduction and romance and gives the viewer a sense of her anxiety and special delight as she came to realize her lesbian identity.

EUA, 1990, p&b, 11’ direção director Sadie Benning fotografia cinematography Sadie Benning montagem editing Sadie Benning som sound Sadie Benning produção production Sadie Benning contato contact [email protected]

EUA, 1989, p&b, 12’ direção director Carl Michael George fotografia cinematography Carl Michael George montagem editing Carl Michael George som sound Carl Michael George produção production Carl Michael George contato contact [email protected]

This Super-8 home movie explores the radical advances made by PWA (People With AIDS) in the developing of their own healthcare. DHPG Mon Amour focuses precisely on the minutiae of David Conover and Joe Walsh’s daily life, showing the struggle for self-determination and control over one’s body and resonating on an intimate and more broadly political level.

Jollies

DHPG Mon Amour > DHPG Meu Amor

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Um cabeleireiro extravagante se apaixona por um skinhead jovem, bonito e aparentemente mudo. Bruce LaBruce compõe um olhar estilizado e sexualmente explícito sobre os jovens punks apaixonados.

Paris em chamas percorre a cena das Ballrooms novaiorquinas na década de 1980, criadas pelas populações LGBT afro-latinas. Ao explorar os aspectos e as reflexões daquele contexto, o filme se concentra em alguns personagens marcantes desse acontecimento que continua vivo. Um verdadeiro marco na visibilidade das populações LGBT estadunidenses.

cine humberto mauro, 18 nov, 21h > cine 104, 24 nov. 20h40

Paris is Burning presents the scene of 1980’s New York Ballrooms created by African-Latin LGBT populations. The film focuses on some remarkable characters of a still alive scene by exploring aspects and reflections of the context. It’s considered a milestone in the visibility of US LGBT populations.

Canadá, 1991, p&b, 73’ direção director Bruce La Bruce fotografia cinematography G.B. Jones, Bruce La Bruce montagem editing Bruce La Bruce som sound Bruce LaBruce, Su Rynard produção production Jürgen Brüning contato contact [email protected]

EUA, 1991, cor, 71’ direção director Jennie Livingston fotografia cinematography Paul Gibson montagem editing Jonathan Oppenheim som sound Paul Gibson produção production Jennie Livingston contato contact [email protected]

cine humberto mauro, 20 nov, 21h

A flamboyant hairdresser falls in love with a handsome, seemingly mute young skinhead in Bruce LaBruce’s stylized, sexually explicit look at young punks in love.

No Skin Off My Ass

Paris is burning > Paris em chamas

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O último trabalho de Rafael França, concluído pouco antes da morte do artista, é um dos raros momentos em que sua produção de vídeo se aproxima do registro documental. Ao som de “La Traviata”, na dramática interpretação da cantora brasileira Bidu Sayão, o corpo do artista toca o do namorado, Geraldo Rivello. Por cima deles, na tela, aparecem nomes de amigos mortos pela Aids.

Documentário abertamente pessoal e controverso sobre a experiência gay e negra nos Estados Unidos. Composto por trechos de notícias, histórias narradas para a câmera, saraus, performances de dança vogue, vozes e rap, o filme analisa, com feroz sinceridade, questões ligadas à identidade, à cultura, à história e à auto-expressão dos gays, dos negros e das lésbicas.

cine humberto mauro, 27 nov, 15h

cine humberto mauro, 22 nov, 17h

Completed just before his death, Rafael França’s last work is one of the rare moments when his video production converges with documentary. As “La Traviata” plays in a dramatic interpretation by Brazilian singer Bidu Sayao, the artist’s body touches his boyfriend’s, Geraldo Rivello. Meanwhile, the names of friends who died of AIDS appear on the screen.

Brasil, 1991, cor, 5’ direção director Rafael França contato contact: [email protected]

EUA, 1991, cor, 55’ direção director Marlon Riggs fotografia cinematography Vivian Kleiman, Marlon Riggs montagem editing Marlon Riggs som sound Marlon Riggs produção production Brian Freeman contato contact [email protected]

An avowedly personal and controversial documentary on the American gay and black experience. Composed by images of news, stories narrated to the camera, poetry readings, vogue dance performances, voices and rap, the film analyzes with savage sincerity issues of identity, culture, history and self-expression for gays, blacks and lesbians.

Prelúdio de Uma Morte Anunciada > Prelude to a Death Foretold

Tongues Untied > Línguas Desatadas

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Com um olhar aguçado para o contexto urbano das cidades brasileiras, o filme contrapõe duas identidades da mesma pessoa: Simone, a travesti que cultua os orixás em uma fonte pública de Salvador, e Sergio, o pregador evangélico em quem Simone se transforma após uma experiência de quase morte.

Em sua última e mais ousada declaração cinematográfica, Jarman coloca em conjunção seus lados romântico e iconoclasta em uma paisagem sonora exuberante, que pulsa contra uma tela puramente azul. Desnudando seu estado físico e espiritual, em uma narração sobre sua vida, sua luta contra a Aids e a cegueira que o invade, Blue constitui, alternadamente, uma obra pungente, divertida, poética e filosófica.

cine humberto mauro, 22 nov, 17h

cine humberto mauro, 27 nov, 15h

With a sharp eye to the urban context of Brazilian cities the film contrasts two identities of the same person: Simone, the travesti who worships orixás in a public fountain of Salvador and Sergio, the evangelical preacher whom Simone turns herself into, after a near death experience.

Brasil, 2010, cor, 10’ direção director Virginia de Medeiros contato contact [email protected]

UK/Japão, 1993, cor, 76’ direção director Derek Jarman montagem editing Simon Fisher Turner som sound Simon Fisher-Turner produção production Takashi Asai, James Mackay contato contact [email protected]

In his final — and most daring — cinematic statement, Jarman the romantic meets Jarman the iconoclast in a lush soundscape pulsing against a purely blue screen. Laying bare his physical and spiritual state in a narration about his life, his struggle with AIDS, and his encroaching blindness, Blue is by turns poignant, amusing, poetic and philosophical.

Sergio e Simone

Blue > Azul

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Yermén é uma transsexual de 30 e poucos anos que trabalha como taróloga e vive na emblemática população de La Victoria, em Santiago. Na luta para financiar sua operação de mudança de sexo, ela decide tentar a sorte em um programa de TV sobre cirurgias plásticas, onde conhece uma imigrante enigmática que deseja fazer uma cirurgia para ficar igual a Naomi Campbell.

A partir de 1º de janeiro de 2031, a Organização Mundial de Saúde vai remover o transsexualismo – CID 10 F 64 – da sua lista de doenças.

cine humberto mauro, 21 nov, 21h

cine humberto mauro, 19 nov, 15h

Yermén is a transsexual in her mid-thirties that works as a tarot reader, and lives in the emblematic low-income neighborhood of La Victoria. Looking for a sex reassignment, she decides to try for a plastic surgery TV show, where she will meet an enigmatic immigrant who wants to get an operation to look like Naomi Campbell.

Chile, 2013, digital, cor, 81’ direção director Nicolás Videla, Camila José Donoso fotografia cinematography Matías Illanes montagem editing Nicolás Videla, Daniela Camino som sound Carlos Collío produção production Rocío Romero, Catalina Donoso contato contact [email protected]

Brasil, 2013, cor, 7’ direção director Luiz Roque fotografia cinematography Joana Luz montagem editing Manga Campion som sound Gabriela Bervian produção production Glauco Urbim contato contact [email protected]

After January 1, 2031 the World Health Organization will remove transsexualism – ICD 10 F 64 – from its list of diseases.

Naomi Campbel

Ano Branco > White Year

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O projeto investiga a imposição de categorias epistemológicas europeias sobre as culturas indígenas durante e após a conquista das Américas, com ênfase na construção da “sexualidade” e do “gênero” enquanto categorias identitárias baseadas em preceitos judaico-cristãos. A obra faz parte da Trilogia Nefandus, ao lado de Nefandus e Naufrágios.

Uma dinastia recém inaugurada decide prestar homenagem a uma escultura esquecida há dois séculos atrás.

cine humberto mauro, 21 nov, 21h

cine humberto mauro, 27 nov, 21h

The project investigates the imposition of European epistemological categories upon indigenous cultures during and after the Conquest of the Americas, with emphasis on the construction of “sexuality” and “gender” as identity categories based on Judeo-Christian precepts. The film is part of Nefandus Trilogy with Nefandus and Naufragios.

Bolívia, 2013, cor, 7’ direção director Carlos Motta fotografia cinematography Carlos Motta montagem editing Carlos Motta som sound Carlos Motta produção production Carlos Motta contato contact [email protected]

Brasil, 2013, cor, 5’ direção director Luiz Roque fotografia cinematography Joana Luz montagem editing Rafael Ferretti produção production Gigi Mangeon co-produção co-production Instituto Itaú Cultural, JA.CA contato contact [email protected]

A newly inaugurated dynasty decides to pay tribute to a sculpture forgotten two centuries ago.

La visión de los vencidos > The defeated > A visão dos derrotados

O Novo Monumento > The new monument

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cine humberto mauro, 27 nov, 21h

Two men, an indigenous and a spanish-speaking, tell stories about acts of sodomy that took place in the Americas during the conquest. The film looks for clues of stories that have been largely ignored in historical accounts.

cine humberto mauro, 27 nov, 21h

Shipwrecks (2013) tells the story of Luiz Delgado, an unfortunate portuguese sodomite from the 17th century whose life was marked by several convictions in Portugal, Brazil and Angola. The film highlights the Inquisition and the way homoeroticism defied the order and values of colonial societies.

Naufragios conta a história de Luiz Delgado, um desafortunado sodomita português do século XVII cuja vida foi marcada por inúmeras condenações, em Portugal, Brasil e Angola. O filme evidencia a Inquisição e o modo como o homoerotismo desafiou a ordem e os valores das sociedades coloniais.

Bolívia, 2013, cor, 13’ direção director Carlos Motta fotografia cinematography Carlos Motta montagem editing Carlos Motta produção production Carlos Motta contato contact [email protected]

Bolívia, 2013,cor, 13’ direção director Carlos Motta fotografia cinematography Carlos Motta montagem editing Carlos Motta produção production Carlos Motta contato contact [email protected]

Dois homens, um indígena e um hispanófono, descem de canoa o rio Don Diego, no meio do Caribe colombiano. Eles contam histórias sobre pecados nefandos, atos de sodomia que ocorreram nas Américas durante a conquista. O filme busca os vestígios de narrativas que foram amplamente ignoradas pelos relatos históricos.

Naufragios

Nefandus

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Modern > Moderno Londres, 2014, cor, 4’ direção director Luiz Roque figurino costume Design Alex Cassimiro fotografia cinematography Joana Luz montagem editing Rafael Ferretti produção production Gigi Mangeon co-produção co-production Delfina Foundation, no.w.here (Inglaterra) contato contact [email protected]

Londres, ano desconhecido, a soturna atmosfera da cidade só faz reforçar a aura alienígena emanada pelas esculturas de Henry Moore. Mas qual seria essa forma inaugurada pelo modernismo, disforme, voluptuosa, intrigante? London, unknown year, the gloomy atmosphere of the city only reinforces the alien aura emanating from the sculptures of Henry Moore. Inaugurated by modernism, what misshapen, voluptuous, intriguing form would that be?

cine humberto mauro, 21 nov, 21h

Castanha

Brasil, 2014, cor, 85’ direção director Davi Pretto fotografia cinematography Glauco Firpo montagem editing Bruno Carboni som sound Tiago Bello produção production Paola Wink contato contact [email protected]

João é um ator de 52 anos que vive com sua mãe Celina. Ele se divide entre o trabalho noturno como transformista em bares gays e a atuação em peças de teatro ou filmes. Dia a dia, João confunde de maneira crescente a realidade em que vive com a ficção que interpreta.

John is a 52-year-old actor who lives with his mother Celina. He spends his time between working at night as a drag performer in gay bars and acting in plays or films. Day by day, John increasingly confuses reality with the fiction that he plays.

cine humberto mauro, 27 nov, 21h

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O filme Desejo expõe as maneiras pelas quais a medicina, o direito, a religião e a tradição cultural moldaram os discursos dominantes sobre corpo, gênero e sexualidade. Duas histórias paralelas são mostradas, a de Martina, que viveu na Colômbia durante o fim do período colonial, no início do século XIX, e a vida ficcionalizada de Nour, que residiu em Beirute no período final do Império Otomano.

A partir de imagens autodocumentais publicadas na Internet por pessoas trans*, este ensaio cinematográfico busca expandir o olhar sobre seus corpos ao se aprofundar nas subjetividades que transformam a matéria-corpo.

cine humberto mauro, 27 nov, 15h

cine humberto mauro, 19 nov, 15h

The film Deseos exposes the ways in which medicine, law, religion, and cultural tradition shaped dominant discourses on gendered and sexual body. There are two parallel stories, that of Martina, who lived in Colombia during the late colonial period and the fictionalized life of Nour, who lived in Beirut during the late Ottoman Empire.

Colômbia, 2015, cor, 32’ direção director Carlos Motta fotografia cinematography Mateo Guzmán, Mark Khalife montagem editing Carlos Motta som sound Zachary Dunham, Geoffrey Wilson produção production Council contato contact [email protected]

Brasil, 2014, digital, cor, 10’ direção director Miro Spinelli fotografia cinematography Gustavo Pinheiro, Mariama Lopes Modelos montagem editing Miro Spinelli som sound Luciano Faccini produção production Luciano Faccini, Mariama Lopes contato contact [email protected]

From online self-documentary images of trans* people, this cinematic essay seeks to expand the gaze on the bodies by deepening in the subjectivities that transform the body-matter.

Deseos > Desejo

Trans*lucidx

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Uma mulher e seu corpo.

Se pudesse, eu voltaria a ser uma criança só pra poder fazer mais do que eu já fiz quando era pequena!

cine humberto mauro, 21 nov, 21h

cine humberto mauro, 21 nov, 21h

A woman and her body.

Brasil, 2016, p&b, 6’ direção director Maick Hannder fotografia cinematography Maick Hannder montagem editing Maick Hannder som sound Cliver Honorato produção production Jacson Dias contato contact [email protected]

Brasil, 2015, cor, 16’ direção director Chico Lacerda fotografia cinematography Chico Lacerda montagem editing Chico Lacerda som sound Chico Lacerda produção production Surto & Deslumbramento contato contact [email protected]

If I could I’d become a child once again so I could do more than I did when I was a little girl!

Ingrid

Virgindade > Virginity

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cine humberto mauro, 21 nov, 19h

Los leones traces the intimate portrait of a marginal Argentine couple, the transvestite Mariana Koballa and her companion Raul Francisco. With realistic and poetic form the documentary follows the couple’s daily life for a year and reveals their mood before dramatic situations, living with the symptoms of Mariana’s disease and the uniqueness of this loving relationship.

cine humberto mauro, 21 nov, 21h

In 2050, the health agencies discover a new virus transmissible through human saliva which directly affects the transgender population. For the first patient and for all those considered as “community at risk” in that imaginary future, life goes on in a São Paulo demarcated by quarantine zones, ethical discussions, speculation of the pharmaceutical industry and a negligent state.

Em 2050, os órgãos de saúde descobrem um novo vírus transmissível pela saliva humana e que afetaria diretamente a população transgênero. Para a paciente zero, bem como para todos aquelxs consideradxs nesse futuro como “comunidade de risco”, a vida continua em uma São Paulo demarcada por zonas de quarentena, discussões éticas, especulação da indústria farmacêutica e um estado negligente.

Brasil, 2016, cor, 10’ direção director Luiz Roque fotografia cinematography Joana Luz montagem editing Manga Campion som sound Marcio Biriato produção production Camila Groch contato contact [email protected]

Brasil/França, 2016, Cor, 79’ direção director André Lage fotografia cinematography André Lage montagem editing Lorena Moriconi, André Lage som sound O Grivo produção production André Lage, Anne Bouvier D’voire contato contact [email protected]

Os leões compõe o retrato íntimo de um casal argentino marginal, a travesti Mariana Koballa e seu companheiro Raúl Francisco. De uma forma realista e poética, o documentário acompanha o cotidiano do casal durante um ano e revela seu humor frente a situações dramáticas, convivendo com os sintomas da doença de Mariana e a singularidade dessa relação amorosa.

HEAVEN

Los Leones > Os Leões

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mostra contemporÂnea BRASILEIRA

Mostra Contemporânea Brasileira

Carla Italiano Julia Fagioli Roberto Cotta

Os filmes que compõem a Mostra Contemporânea Brasileira deste ano refletem frentes distintas de investigação que, no entanto, não perdem de vista o referente do documentário. Se nas últimas edições a mostra vinha se pautando por obras que flertavam com o universo da ficção, rompendo inventivamente com as (antes) rígidas fronteiras que separavam tais regimes, este ano a tônica foi a de novamente privilegiar um olhar etnográfico na relação entre mundo e cinema. Como não poderia deixar de ser, esta mostra, composta por 21 filmes de durações variáveis, apresenta recorrências temáticas e estéticas que surgiram do total de 300 inscritos. Em meio à árdua tarefa de seleção, talvez o primeiro desejo a pontuar nossas escolhas foi o de responder à urgência das obras que abordam lutas e vivências indígenas, algumas assinadas por cineastas vindos das aldeias. É o caso de Taego Ãwa, realizado junto aos Ãwa (também conhecidos como Avá-canoeiro), o média-metragem Grin, que toca no invisibilizado tema do genocídio indígena durante a ditadura militar, e os curtas Para onde foram as andorinhas?, Avá Marangatu, Dilúvio Maxakali e Abigail, que abordaremos mais adiante. Cada obra aqui selecionada permite vislumbrar engajamentos distintos no e com o cinema, apontando para caminhos diversos: enquanto Cinema Novo convoca procedimentos ensaísticos de montagem para se aproximar do movimento cinematográfico homônimo, Filme de aborto lança mão de processos de fabulação que discutem a opressão sofrida pela mulher e a exploração do proletariado em ambientes periféricos. Câmara

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de espelhos estrutura-se em torno de um dispositivo meticuloso a fim de expor com precisão a base machista de nossa sociedade. Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos contempla um olhar sobre Arcoverde-PE, cidade sertaneja transformada por grandes obras, bem como desvenda as tradições de uma orquestra de baile que anima as festas locais. Já Na missão, com Kadu é conduzido por seu personagem central através da luta diária da Ocupação Urbana Vitória, no entorno de Belo Horizonte, nos fazendo ir ao encontro de imagens desconcertantes, insurgentes, resistentes. Também com temática militante, Vozerio tem como foco central as intervenções urbanas de artistas e ativistas, particularmente no contexto das manifestações de junho de 2013 e de 2014, por ocasião da Copa das Confederações e da Copa do Mundo. Deixa na régua nos permite uma incursão sobre as relações cotidianas existentes em três salões de beleza masculinos na zona norte do Rio de Janeiro, revelando diversas formas de sociabilidade. Por fim, A cidade onde envelheço reflete a frente da mostra enraizada no universo ficcional, tecendo uma reflexão sensível acerca dos corpos femininos e da experiência de ser estrangeira em qualquer lugar. Abaixo seguem alguns breves comentários a respeito da seleção de curtas-metragens que integram a mostra deste ano. Os longas e médiasmetragens possuem textos críticos na sessão ensaios deste catálogo. Onde quer que seja, ainda é notório o descompasso de relevâncias atribuídas aos filmes de longa, média e curta duração. Desde as primeiras décadas do século XX, a estruturação de um pensamento comercial concedeu aos longas-metragens um espaço de representatividade privilegiado, relegando às obras de menor duração um patamar de distribuição mantido à míngua. O circuito dos festivais parece ter se consolidado como um contraponto e um refúgio propício para a exibição dos mais diversos formatos. Entretanto, as tentativas de compensação logo se frustram, na medida em que as maiores atenções quase sempre se lançam em direção aos longas, que recebem parte considerável das honrarias e das avaliações críticas mais cuidadosas. O forumdoc.bh mantém uma tradição de abrigar obras de várias durações reunidas numa só mostra. O princípio do gesto é tentar criar fatores de equidade entre os filmes selecionados, respeitando suas particularidades e potencialidades. O movimento favorece a intensificação do confronto e do debate em torno dessas obras. Em contrapartida, os curtas em nada devem aos demais escolhidos. Muitos deles, ao contrário, possuem uma maturidade evidente, dialogando com as mais variadas 62

tradições do documentário e do filme etnográfico, enquanto outros

constroem sustentáculos de força capazes de descortinar caminhos próprios, às vezes inauditos. Os curtas-metragens exibidos na mostra deste ano poderiam, de certa forma, ser divididos em três eixos principais. O primeiro deles é composto por obras com temáticas ligadas ao universo de representação indígena, como Avá Marangatu, Konãgxeka: O Dilúvio Maxakali, Para Onde Foram as Andorinhas? e Abigail. Já a segunda frente contempla filmes embebidos por um caráter mais assumidamente experimental, tais como Sem Título #3 - E para que Poetas em Tempo de Pobreza?, Ruína e KBELA. O terceiro e último bloco, por sua vez, pode não apresentar uma evidência de aspectos que possibilite uma aproximação óbvia entre os filmes. Porém, eles trazem consigo uma gestualidade inclinada a desvendar modos distintos de engajamento sociopolítico, postura que aparecerá em gradações distintas em Eu volto ao lado deles, As Mina na Batalha, Obra Autorizada e Nunca é noite no mapa. É possível traçar outras formas de atravessamento entre todas essas obras, no entanto, mais do que tudo, é preciso preservar suas singularidades e tentar lidar diretamente com elas. As fronteiras do Parque Indígena do Xingu estão cercadas pelo desmatamento. É com esse atestado de grande urgência que tem início Para onde foram as andorinhas?, dirigido por Mari Corrêa, fruto de uma parceria entre Instituto Catitu e Instituto Socioambiental com participação indígena no registro dos materiais. O curta atenta para os sinais dessa devastação ambiental sentidos no cotidiano dos milhares de indígenas que vivem no parque, de modo semelhante ao que acontece nas demais reservas em território brasileiro. A frequência dos incêndios incontroláveis aumenta com o calor; percevejos vindos não se sabe de onde arrasam a copa das árvores frutíferas, que não estão nada bem; o vento carrega o cheiro de veneno. A intenção informativa do filme convoca diversos dados e estatísticas como argumento, aliados a registros panorâmicos de aldeias xinguanas e breves relatos de lideranças indígenas. As cartelas sublinham o grau alarmante da situação: nos últimos 30 anos, 42% das terras no entorno do Parque foram desmatadas pelo agronegócio, em especial pela monocultura de soja e milho. Como enunciam os mais velhos no filme, os sinais que marcam o tempo já se perderam. Além da invasão constante das terras indígenas, e do desmatamento contínuo a afetar diretamente o clima da região, o que parece estar em jogo aqui é a ameaça de apagamento que acompanha tais mudanças. Os pés de pequi não mais florescem, as cigarras deixaram de cantar em anúncio à chuva, que as andorinhas pararam de trazer. “Está mudando o tempo de nossa história”, ouvimos em certo momento, e a preocupação que se

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deseja coletiva é projetada em direção ao futuro, sublinhando o perigo desse legado nefasto para as próximas gerações. Compondo um duo com o curta de Mari Corrêa está Avá Marangatu, que, por sua vez, opta pelo caminho da encenação. Acompanhamos as aventuras de dois jovens Kaiowá em sua busca por uma caça bem-sucedida, integrantes da aldeia Guaiviry no Mato Grosso do Sul. A fim de se deslocar até a mata mais propícia à caça eles precisam atravessar um deserto verde de plantações de soja, o que fazem com leveza e bom humor, com ecos da determinação necessária à luta cotidiana dos Kaiowá. Resultado de oficina de audiovisual, sua direção é coletiva: Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites. O filme se resolve com poucas variações de procedimento, com uma atenção voltada mais para a concretização do roteiro no momento da filmagem do que propriamente para a edição. Aos moldes de No caminho com Mário, curta de 2015 do Coletivo Mbya Guarani de Cinema, nosso olhar é compartilhado com o dos garotos em suas andanças. A “virada” narrativa acontece quando um dos mais velhos ensina aos meninos o canto que deve ser entoado para finalmente se capturar algo nas arapucas espalhadas pela floresta. A cena é registrada de modo sensível, respeitando as pausas e as reiterações de fala, o que nos revela a simplicidade que sustenta esta proposta de sutil beleza. Embarcando no inusitado universo da animação indígena, Konãgxeka: Dilúvio Maxakali narra o mito Maxakali da “grande água”. As imagens que dão corpo à história são ilustrações feitas pelos integrantes da Aldeia Verde, próxima ao município de Ladainha-MG, também como resultado de oficina. A técnica da animação opera por recortar e animar os desenhos ou fragmentos deles, relacionando-os através de recursos simples de sobreposição, em uma narrativa que segue à risca a teleologia do mito. A história possui um fundo moral, como uma lição para os mais novos, o que casa com a escolha de trabalhar unicamente com os desenhos na banda imagética, evidenciando seus traços. Assinado por Charles Bicalho e Isael Maxakali (que é personagem e co-diretor de outro filme a integrar a mostra, GRIN), Dilúvio Maxakali reverbera para além do que comumente se encontra nos curtas de animação. E talvez o procedimento que mais o fortaleça, ampliando a relação do espectador com o filme e de certo modo convocando uma dimensão documental, é a costura dos potentes cantos Maxakali na trilha sonora. Dentre os curtas que se aproximam de temática indígena na mostra, 64

Abigail, de Isabel Penoni e Valentina Homem, é o único que estabelece

relação com o modo ensaístico de escrita. Começamos com um longuíssimo plano sequência por entre os cômodos de uma casa: câmera na mão (feminina), cada passo dado é sentido nas bordas do quadro, toda sorte de objeto é encontrado nesse caminhar. Se à primeira vista a casa parece despovoada, trata-se do exato oposto; carrega consigo pessoas e tempos passados, fiapos de rememoração, entidades. Vemos um diploma de cultos afro-brasileiros, um cocar, uma figura enigmática a cruzar a sala, enquanto fragmentos de som são dispostos em camada na banda sonora. O sincretismo dessas referências pode gerar certa desconfiança; afinal, que vida teria lugar para tantos, e tão diversos, caminhos? Eis que somos apresentados a Abigal Lopes, vista primeiro no material de arquivo das expedições de primeiro contato com os Xavante da Serra do Roncador (GO). Era conhecida como dona das panelas pelos Xavante, além de ser filha de Obaluaê no Candomblé, dentre os muitos detalhes que nos informa a voz over de uma das realizadoras na narração, ao mesmo tempo sóbria e afetiva. O curta mobiliza com destreza seus materiais, reservando para o final as imagens atuais de Abigail. Com isso, ele cria para si um ritmo próprio, suave e insistente como o passar dos anos, no retrato de uma personagem tão fascinante e rara quanto as histórias que a acompanham. Os sonhos se dilaceram nos versos de Cantares, canção que mistura anarquicamente trechos da obra poética de Antonio Machado com estrofes compostas pelo músico espanhol Joan Manuel Serrat em sua homenagem. A música atravessa feito vendaval as imagens de arquivo lapidadas por Carlos Adriano em Sem Título #3: E Para que Poetas em Tempo de Pobreza? Golpe a golpe, verso a verso, é somente através de sua própria expressão que o artista reagirá às intempéries de um mundo corroído pelas mais variadas formas de dominação. E o artista se desdobra em muitos: Mallarmé, Pasolini, Huillet, Straub, Pound, Cocteau, Santos Dumont, Bernardo Vorobow. Desbravando caminhos espessos, a ideia de permanência daquilo que se ama permeia o fractal de registros esquadrinhados pelo filme. A tessitura de sons e imagens que peregrinam camadas impulsiona um gesto que confronta a passagem do tempo e a deterioração do processo de criação. Aqui jaz uma iminente vontade de lidar com um mundo no qual a poesia se entranha em cada experiência de vida. Qualquer cerceamento desse gesto criativo, contudo, se perderá no mar de sonhos que a imaginação pode proporcionar. Em Ruína, de Gabraz Sanna, a criação é bloqueada pelos imprevistos do espaço. Maria Bethânia tenta declamar um poema de Manoel de Barros, mas os ruídos implodem a paisagem sonora prevista, cortando o fluxo de encenação e a nitidez da captura de sua voz. No entanto, um novo

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movimento expressivo brota em meio ao caos. Enquanto o diretor reforça que pequenos fragmentos futuramente formarão pontos de vista múltiplos sobre a declamação, o que vemos é um longo plano sequência se dilatar e reenquadrar a relação da cantora com o universo de sons e expressões inesperados que a rodeiam. O intervalo entre uma tentativa e outra, a preparação, as incertezas, as conversas com a equipe e a partilha que emerge desse processo de espera revelam uma artista desnuda. Logo depois, uma nova sonoridade eclode sobre as imagens sub-expostas de uma mulher nadando livremente sobre águas. As formas se diluem, e o filme mais uma vez dissolve as fronteiras entre a representação e o furor indomável do mundo. Já em KBELA, de Yasmin Thayná, a fabulação da opressão evidencia as tensões entre as imposições sociais e as possibilidades de resistência de mulheres negras ao esmagamento de suas individualidades. Em um determinado momento, uma delas passa de modo severo todo tipo de produto químico que seja capaz de alisar seu cabelo. A impressão é de que sua cabeça está fora do corpo e, assim, sem escolhas, a ação é repetida de forma automática, acentuando a barbaridade do gesto. Em outro, um grupo de quatro mulheres passa um pó branco sobre seus corpos nus, umas nas outras, lançando mão de uma centelha de sororidade à revelia da autodestruição imposta. A todo instante, o filme buscar lidar com os traumas de uma história cíclica, que até hoje engole qualquer tentativa frontal de enfrentamento de suas tradições. Entretanto, é através de uma materialidade ancestral que essas mulheres conseguirão o suporte essencial para confrontar a angústia legada às suas vivências. O terceiro grupo possui algo que perpassa os quatro filmes que diz respeito a uma certa invisibilidade. Em Eu volto ao lado deles, dirigido por Leandro Cordeiro, conhecemos a família de Almirenio, que se mudou da Bahia para São Paulo, nos anos 1990, para trabalhar na indústria metalúrgica. O filme tem essa informação como ponto de partida e o que vemos a seguir são cenas do cotidiano de Almirenio, seu trabalho, um curso que frequenta a noite, e alguns momentos de família com Márcia, sua esposa, e com sua filha. Os depoimentos são espaçados e não contam em detalhes a trajetória da família, eles surgem em voz over enquanto vemos essas imagens. Desse modo, somos convidados a entrar naquela rotina, mas é só aos poucos que vamos os conhecendo um pouco melhor. Chama atenção a delicadeza das cenas entre pai e filha intercaladas com imagens do trabalho e de um cotidiano mais árduo. Enquanto nas imagens familiares há uma aproximação maior da câmera, as cenas de trabalho 66

são sempre acompanhadas a uma certa distância.

Em As mina na batalha, da diretora Grazie Pacheco, vemos uma batalha de MCs em São Bernardo do Campo, um ambiente predominantemente masculino, em uma noite em que apenas as meninas participam do jogo em comemoração ao dia internacional da mulher. Após alguns breves depoimentos iniciais, presenciamos uma batalha entre duas garotas a partir de um ponto de vista distanciado, contemplativo. Apesar da importância de se dar destaque à participação das mulheres nesse – e em outros – ambientes em que os homens predominam, o conteúdo dos insultos característicos às batalhas se refere à aparência da outra competidora. No entanto, ao final, após anunciada a vitoriosa, há um clima de celebração e de entendimento que aquela situação é, na verdade, uma possibilidade de empoderamento feminino. Nunca é noite no mapa surge como uma estratégia ao mesmo tempo crítica e bem humorada do realizador Ernesto de Carvalho, que filma o carro do google street view na rua de sua casa, devolvendo o olhar àquele que o vigia. Em seguida, o gesto do filme, em seus breves seis minutos, é de dar a ver situações expostas pelo mecanismo, que revelam violência policial e até a imagem de um corpo. O que percebemos a partir daí é que, além de não haver preocupação em relação à privacidade daqueles que estão ali no momento de captura das imagens, gera-se um diagnóstico dos lugares em que há um certo tipo de violência contra a população. O breve ensaio discorre sobre como mecanismos de controle e vigilância não tem como o objetivo a proteção, mas, de certa forma, a opressão. Por último, Obra autorizada, de Iago Cordeiro Ribeiro, um filme que não trata de nenhum grupo oprimido ou invisibilizado, mas do desaparecimento. O curta gira em torno de uma edificação patrimonial da cidade de Cachoeira, na Bahia, que está caindo. A prefeitura isola a área e inicia um processo de recolhimento dos entulhos e dos objetos que estavam dentro da casa. São fragmentos de memória, que aos poucos são levados e, dificilmente, serão reconstituídos. A câmera é predominantemente estática e, assim, podemos ver as reações das pessoas que passam e percebem a casa em ruínas. O que chama a atenção é o fato de que muitas dessas pessoas apenas notam a presença da casa, que representa parte da história da cidade, quando constatam que ela está desabando.

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Francisca, uma jovem emigrante portuguesa morando no Brasil, recebe em sua casa Teresa, uma antiga conhecida com quem havia perdido contato. O filme acompanha as aventuras de cada uma pela cidade e a ligação que nasce entre elas, obrigando-as a lidar com desejos simultâneos e opostos: a vontade de partir para um país desconhecido e a saudade irremediável de casa.

Abigail une os pontos de um mapa humano que conecta indigenismo e candomblé. O avesso do inverso, uma casa aberta de memórias quase extintas.

cine humberto mauro, 19 nov, 19h

cine humberto mauro, 19 nov, 21h

Francisca, a young Portuguese emigrant living in Brazil, welcomes at his home Teresa, one old acquaintance of hers with whom she’s had lost contact. The film follows the adventures of each one through the city and the bond that is born between the two, forcing them to deal with desires that are simultaneous and opposite: the desire to go to an unknown country and the irremediable homesickness.

Brasil, 2016, cor, 99’ direção director Marília Rocha fotografia cinematography Ivo Lopes Araújo montagem editing Francisco Moreira som sound Felippe Gustavo Fioravante produção production Luana Melgaço, João Matos, Anavilhana e Terratreme contato contact [email protected]

Brasil, 2016, cor/p&b, 17’ direção director Isabel Penoni e Valentina Homem fotografia cinematography Pedro Urano, David Pacheco montagem editing Jordana Berg som sound Felippe Schultz Mussel produção production Tarcila Jacob, Eduardo Homem, Sempre Viva Produções contato contact [email protected]

Abigail joins the points of a human map that connects indigenism and candomblé. The reverse’s inside out, an open house of memories barely extinct.

A Cidade Onde Envelheço > Where I grow old

Abigail

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cine humberto mauro, 24 nov, 15h

Since 2013, Battle of Matrix takes place at the main church square of São Bernardo do Campo, São Paulo State. Every Tuesday MC’s battle and one of them emerges as the winner of the night. On March the 15th 2016, microphones were opened only for girls, celebrating the Women’s Month.

cine humberto mauro, 25 nov, 19h30

At Guaiviry, a Guarani Kaiowá tradicional land, two young Kaiowá go out to hunt in the part of the woods that still remains.

No Guaiviry, terra tradicional Guarani e Kaiowá, dois jovens saem para caçar no resto de mata que ainda permanece.

Brasil, 2016, cor, 14’ direção director Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites fotografia cinematography Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites, Fabio Menezes, Guilherme Cury montagem editing Genito Gomes, Jhonatan Gomes, Jhonn Nara Gomes, Rosecleia, Luisa Lanna, Alessandra Giovanna som sound Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites, Fabio Menezes, Guilherme Cury produção production Programa Imagem Canto Palavra nos Territórios Guarani e Kaiowá contato contact [email protected]

Brasil, 2016, cor, 22’ direção director Grazie Pacheco fotografia cinematography Frederico Moreira montagem editing Grazie Pacheco, Frederico Moreira som sound Renan Vasconcelos produção production Frederico Moreira, Doc Vozes contato contact [email protected]

Desde 2013 acontece a Batalha da Matrix na praça da Igreja Matriz em São Bernardo do Campo, SP. Toda terça-feira MC’s se enfrentam e um sai vitorioso da noite. No dia 15 de março de 2016 os microfones foram abertos apenas para as minas, em comemoração ao mês da mulher.

Avá Marangatu

As Mina na Batalha > Girls in Battle

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Cinema Novo é um ensaio poético que investiga um dos principais movimentos cinematográficos latino-americanos, através do pensamento e fragmentos de filmes dos seus principais autores. O filme mergulha na aventura da criação de uma geração de cineastas que inventou uma nova forma de fazer cinema no Brasil que tinha como desejo um cinema que tomasse as ruas e fosse ao encontro do povo brasileiro.

Construída dentro de uma caixa preta, uma sala de estar recebe homens variados e coloca-os diante do espelho social. O que nos dizem da imagem feminina que se apresenta? E nós? Onde estamos? Dentro, fora ou no limite da caixa?

cine humberto mauro, 24 nov, 15h

cine humberto mauro, 23 nov, 17h

Cinema Novo is a poetic essay that investigates one of the major Latin American film movements through its main authors and film fragments. The documentary delves into the creation of a filmmakers’ generation who invented a new way of making films in Brazil that came from the desire to have a cinema that would take the streets and meet Brazilian people.

Brasil, 2016, cor/ p&b, 90’ direção director Eryk Rocha montagem editing Renato Vallone produção production Diogo Dahl, Coqueirão Pictures, Aruac Filmes contato contact [email protected]

Brasil, 2016, cor, 76’ direção director Dea Ferraz fotografia cinematography Roberto Luri montagem editing Joana Collier som sound Rafa Travassos produção production Luciana Teixeira, Lara Mafra, Alumia Produção e Conteúdo contato contact [email protected]

Built inside a black box, a living room welcomes various men and places them before a social mirror. What would they say about the female images that appear? What about us? Where are we? Inside, outside, or at the boundaries of the box?

Cinema Novo

Câmara de Espelhos > Chamber of mirrors

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Um retrato do cotidiano de uma família migrante. Almirenio sonha em levar sua esposa e filhos para conhecer sua terra natal, Bahia, e reencontrar sua tia.

Os salões de barbeiro das favelas e dos subúrbios são os lugares onde a nova estética da periferia nasce e se expande. Ponto de encontro dos jovens, os “barbeiros” se tornaram espaços de troca dessa juventude. “Deixa na Régua” entra nesse universo e, entre cortes, giletes e tesouradas, mostra o que se passa na cabeça dos barbeiros e de seus clientes.

cine humberto mauro, 26 nov, 19h

The barber shops of slums and suburbs are the places where the new aesthetics of the outskirts rises and expands. Meeting point for young people, barber shops have become spaces of exchange within youth. “Fix up, look sharp” enters this universe and, among cuts, razor blades and snips, shows what’s in a barbers’ minds as well as in their clients.

Brasil, 2015, cor, 23’ direção director Leandro Cordeiro fotografia cinematography Arthur Abreu montagem editing Filipe Donatti som sound Filipe Donatti produção production Leandro Cordeiro, Café Preto Filmes contato contact [email protected]

Brasil, 2016, cor, 72’ direção director Emílio Domingos fotografia cinematography Léo Bittencourt montagem editing Jordana Berg som sound Julio Lobato produção production Emílio Domingos e Julia Mariano, Osmose Filmes contato contact [email protected]

cine humberto mauro, 25 nov, 19h30

The film pictures the daily life of a migrant family. Almirenio dreams on taking his wife and children to their homeland, Bahia, to once again meet his aunt.

Eu volto ao lado deles > I return beside them

Deixa na Régua > Fix up, look sharp

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Um cineasta maxakali resgata memórias sobre a formação da Guarda Rural Indígena (Grin) durante a ditadura militar, com relatos das violências sofridas pelos seus parentes.

Proletária e proletário refletem sobre seus trabalhos e lidam com uma impossível gravidez.

cine humberto mauro, 22 nov, 19h

cine humberto mauro, 20 nov, 19h

A Maxakali filmmaker brings out memories about the formation of the Indigenous Rural Guard (Grin) during the military dictatorship in Brazil, with reports of violence suffered by their relatives.

Brasil, 2016, cor, 41’ direção director Roney Freitas | co-direção co-director Isael Maxakali fotografia cinematography André Luiz de Luiz montagem editing Alexandre Taira som sound Cecília Engels produção production Luara Oliveira, Lusco Fusco Filmes contato contact [email protected]

Brasil, 2016, cor/p&b, 60’ direção director Lincoln Péricles fotografia cinematography Lincoln Péricles montagem editing Lincoln Péricles som sound Lincoln Péricles produção production Lincoln Péricles, Talita Araujo contato contact [email protected]

A couple of proletarians reflect on their work and deal with an impossible pregnancy.

Grin > GRIN - Rural Indigenous Guard

Filme de Aborto > Abortion’s Film

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Konãgxeka na língua indígena maxakali quer dizer “água grande”. Trata-se da versão maxakali da história do dilúvio. Como um castigo, por causa do egoísmo e da ganância dos homens, os espíritos yãmîy enviam a “grande água”. As ilustrações para o filme foram feitas por indígenas Maxakali durante oficina realizada na Aldeia Verde Maxakali, no município de Ladainha, Minas Gerais.

Um olhar sensível sobre a experiência do racismo vivido cotidianamente por mulheres negras. A descoberta de uma força ancestral que emerge de seus cabelos crespos transcendendo o embranquecimento. Um exercício subjetivo de autorepresentação e empoderamento.

cine humberto mauro, 26 nov, 19h

cine humberto mauro, 20 nov, 19h

Konãgxeka means “big water” in Maxakali indigenous language. This is the Maxakalí version for the story of the flood. As a punishment for men’s selfishness and greed, the yãmîy spirits send the “big water”. The illustrations were made by Maxakali people during a workshop held at Aldeia Verde village, in the municipality of Ladainha, Minas Gerais State.

Brasil, 2016, cor, 13’ direção director Isael Maxakali, Charles Bicalho fotografia cinematography Jackson Abacatu montagem editing Charles Bicalho, Isael Maxakali, Jackson Abacatu, Marcos Henrique Coelho som sound Charles Bicalho e Marcos Henrique Coelho produção production Charles Bicalho, Pajé Filmes contato contact [email protected]

Brasil, 2015, cor, 23’ direção director Yasmin Thayná fotografia cinematography Felipe Drehmer montagem editing Rafael Antônio Todeschini som sound Tiago Emmanuel produção production Erika Candido, Monique Rocco contato contact [email protected]

A sensitive look at the racism experienced daily by black women. The discovery of an ancient force that emerges from their curly hair transcending whitening. A subjective exercise of self-representation and empowerment.

Konãgxeka: O Dilúvio Maxakali > Konãgxeka: the Maxakali flood

KBELA

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Na Missão, com Kadu > On the Mission, with Kadu Brasil, 2016, cor, 28’ direção director Aiano Bemfica, Kadu Freitas, Pedro Maia de Brito fotografia cinematography Kadu Freitas, Pedro Maia de Brito montagem editing Gabriel Martins som sound Luisa Lanna produção production Aiano Bemfica, Luisa Lanna, Pedro Maia de Brito contato contact [email protected]

O encontro, a conversa, a lembrança, a tragédia. The meeting, the talk, the remembrance, the tragedy.

cine humberto mauro, 22 nov, 19h

Obra Autorizada > Approved for Reconstruction

Brasil, 2016, cor, 16’ direção director Iago Cordeiro Ribeiro fotografia cinematography Iago Cordeiro Ribeiro montagem editing Iago Cordeiro Ribeiro som sound Iago Cordeiro Ribeiro produção production Iago Cordeiro Ribeiro contato contact [email protected]

Cachoeira, Cidade Monumento Nacional. Uma casa, um beco, as pessoas.

Cachoeira, a city that is a National Monument. A house, an alley, the people.

cine humberto mauro, 27 nov, 17h

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O clima está mudando, o calor aumentando. Os índios do Xingu observam os sinais que estão por toda parte. Árvores não florescem mais, o fogo se alastra queimando a floresta, cigarras não cantam mais anunciando a chuva. Os frutos da roça estão se estragando antes de crescer. Ao olhar os efeitos devastadores dessas mudanças, eles se perguntam como será o futuro de seus netos.

O mapa não anda, nem voa, nem corre, não sente desconforto, não tem opinião... Pro mapa não há governo, não há golpe de estado, não há revolução. Nunca é noite no mapa.

cine humberto mauro, 27 nov, 17h

cine humberto mauro, 25 nov, 19h30

Climate is changing, the heat’s rising. Xingu’s indigenous people observe the signs, which are everywhere. Trees don’t blossom, fire spreads burning the forest, cicadas no longer sing announcing the rain. The fruits of the crop are ruined even before growing. When looking at the devastating effects of these changes, they wonder about their grandchildren’s future.

Brasil, 2015, cor, 22’ direção director Mari Corrêa fotografia cinematography Frederico Lobo, Mari Corrêa, Kamatxi Ikpeng, Kamikia Kisêdjê montagem editing Mari Corrêa som sound Fernanda Sindlinger, Katia Yukari Ono, Hélio Rimaud produção production Fernanda Sindlinger, Kuaywu Kayabi, Ayakanukala Waura, Katia Yukari Ono, Instituto Catitu e ISA - Instituto Socioambiental contato contact [email protected]

Brasil, 2016, cor, 7’ direção director Ernesto de Carvalho montagem editing Ernesto de Carvalho produção production Zumbayllu mesmo assim a gente faz contato contact [email protected]

The map doesn’t walk, it doesn’t fly, or run. It doesn’t feel discomfort, or has an opinion. For the map there is no government, there is nocoup d’état, there is no revolution. It’s never nighttime in the map.

Para Onde Foram as Andorinhas? > Where did the swallows go?

Nunca é noite no mapa > It’s never nighttime in the map

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Algumas considerações (im)prováveis e (im)ponderáveis sobre a (im)pertinência e o (não)lugar da poesia em nossos tempos. Um ensaio poético? Um manifesto poético? Uma (in)apropriação poética? Da série “Apontamentos para uma AutoCineBiografia (em Regresso)”.

Uma mulher lê um poema, mas o mundo não parece se importar.

cine humberto mauro, 27 nov, 19h

cine humberto mauro, 27 nov, 17h

Some (im)probable and (im)ponderable considerations on poetry’s (im)pertinence and its (non)place in our time. A poetic essay? A poetic manifesto? A poetic (in)appropriation? From the series “Notes for an CineAutoBiography (in Regression)”.

Brasil, 2016, cor, 14’ direção director Carlos Adriano fotografia cinematography Carlos Adriano montagem editing Carlos Adriano produção production Carlos Adriano, Babushka contato contact [email protected]

Brasil, 2016, p&b, 14’ direção director Gabraz fotografia cinematography Gabraz montagem editing Gabraz som sound Raquel Junqueira produção production Gabraz contato contact [email protected]

A woman reads a poem but the world doesn’t seem to care.

Sem Título # 3: E para que Poetas em Tempo de Pobreza? > Untitled # 3: And what are Poets for in a Time of Poverty?

ruína > Ruin

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5 fitas VHS encontradas na antiga Faculdade de Comunicação da UFG disparam o desejo desse filme. Anos depois, munidos de mais imagens fotográficas e audiovisuais vamos ao encontro dos Ãwa, levar essas imagens para serem vistas, e discutir a possibilidade de um filme ser feito. Mais imagens surgem desse encontro.

No deserto brasileiro, o Sertão nordestino, uma banda de baile anima festas de debutantes. Enquanto isso, a região é transformada por máquinas que mudam sua paisagem árida e animais cantam e dançam ao som de standarts americanos... Start spreading the news...

cine humberto mauro, 27 nov, 19h

cine humberto mauro, 19 nov, 19h

5 VHS tapes found at the UFG’s (State University of Goiás) old School of Communication trigger the desire for this film. Years later, loaded with more photographic and audiovisual images, we went to an Ãwa’s people meeting in order to take these images to be seen, and discuss the possibility of a film being made. More images emerge from this meeting.

Brasil, 2016, cor, 75’ direção director Marcela Borela, Henrique Borela fotografia cinematography Vinícius Berger montagem editing Guille Martins som sound Belém de Oliveira produção production Belém de Oliveira, F64 Filmes e Barroca contato contact [email protected]

Brasil, 2016, cor, 77’ direção director Sergio Oliveira fotografia cinematography Fernando Lockett montagem editing Eva Randolph, Renata Pinheiro som sound Manuel de Andrés produção production Sergio Oliveira, Aroma Filmes contato contact [email protected]

In the Brazilian desert, northeast backlands, a big band cheer up debutante parties. Meanwhile, the region is transformed by machines that change their arid landscape while animals sing and dance to the sound of American standards... Start spreading the news...

Taego Ãwa

Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos > The Desert of Super Oara

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cine humberto mauro, 26 nov, 15h

New forms of insurgency and unrest within fragments of the actions of some artists and activists. The recording of confrontation find in performance its strongest expression. We see clashes echoing in a number of images creations. The cry starts before the last one ends.

Novas formas de insurgências e agitações nos fragmentos das ações de alguns artistas e ativistas. O registro de confronto encontra a performance como sua expressão mais forte. Vemos embates ecoando em uma série de criação de imagens. O grito começa antes do outro terminar.

Brasil, 2015, cor, 98’ direção director Vladimir Seixas fotografia cinematography Coletiva montagem editing Vladimir Seixas som sound Coletivo produção production Vladimir Seixas, Couro de Rato contato contact [email protected]

Vozerio > Uproar

mostra contemporÂnea internacional

(A)mostra internacional

Carolina Canguçu Pedro Veras Renata Otto Frederico Sabino

Quando proclamam, ao contrário, que “o inferno somos nós mesmos”, os povos selvagens dão uma lição de modéstia que gostaríamos de nos crer ainda capazes de escutar. Neste século em que o homem teima em destruir inumeráveis formas de vida, depois de tantas sociedades cuja riqueza e diversidade constituíam desde tempos imemoriais seu maior patrimônio, nunca, com certeza, nunca foi mais necessário dizer, como o fazem os mitos, que um humanismo bem ordenado não começa por si mesmo. Coloca o mundo antes da vida, a vida antes do homem, o respeito pelos outros seres antes do amor próprio. E que mesmo uma estadia de um ou dois milhões de anos nesta terra – já que de todo modo há um dia de acabar – não pode servir de desculpa para uma espécie qualquer, nem a nossa, dela se apropriar como coisa e se comportar sem pudor nem moderação. (Origem dos Modos à Mesa, Claude Lévi-Strauss) A Mostra Internacional do forumdoc.bh.2016 ocupa 10 sessões e exibe 14 filmes. Ela foi composta a partir de um grande número de inscritos, que somaram 187. Além deles – como desde a edição passada, o forumdoc abandonou o caráter competitivo e se desobrigou de selecionar os filmes apenas entre inscritos –, 12 filmes foram convidados a participarem da seleção. O montante de 199 filmes, entre inscritos e convidados, proveio de toda parte do mundo. 120 filmes da Europa, 54 das Américas, 16 da Ásia, 8 da África e 1 da Oceania. A maioria dos selecionados foram filmes inscritos espontaneamente, 10 entre os 187, e 2 filmes foram selecionados entre os 12 convidados. Os não selecionados nem sempre foram filmes insuficientes ou inadequados, apenas

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tiveram de ser preteridos para dar vazão às diversidades. Pois a seleção compôs-se seguindo uma orientação simples: perseguimos o mais perfeito em seu caso. Importou um estilo, que o filme representa, e a maestria na sua realização. Foi por meio de tal filtro que a mostra tornou-se uma “amostra”. O caráter internamente heterogêneo do grupo dá espaço ao cinema na sua potência contra-espetáculo. Mesmo que (ou exatamente porque) as condições de produção variem tremendamente, os filmes selecionados têm em comum o fato de funcionarem como anti-propaganda, isto é, não empenharem-se em demonstrar uma verdade e vendê-la como produto. Fomos confrontados por obras muito diversas, que ora nos demandaram o engajamento nas lutas, ora nas divagações abstratas que levavam para a mais bruta ou sublime contemplação. Tais discursos nos inquietaram, nos deslocaram, nos atordoaram e, por vezes, nos causaram profunda rejeição. Apesar de diversos, a maioria dos filmes inscritos era composta por longas-metragens, o que também é reflexo das inventivas tentativas de cada um em estabelecer relações densas com aqueles filmados. Para se construir certa proximidade com quem se filma, para saber de fato quais são as razões que movem aquele “Outro”, no cinema documentário, o tempo se mostrou fundamental - seja o tempo como a extensão cronológica das relações, seja a necessidade de duração da própria imagem. Mas há exceções, há filmes curtos que cumprem fazer o que se dedicam. Na condição de “amostra”, os filmes (os visionados e os escolhidos) apontaram uma frequência: a guerra surgiu como tema predominante. No forumdoc.bh.2009, quando o cineasta e indigenista Vincent Carelli, nos brindou com a exibição de Corumbiara,1 foi exibida também uma mostra com a filmografia amazônica do cineasta inglês Adrian Cowell. Não teria sido certamente coincidência. Era a potência dos fatos no seu calor que havia feito colidir Corumbiara e os Últimos Isolados naquele forumdoc. Em 2015, Carelli mostrou um primeiro corte de Martírio, outro filme sobre a guerra contra os ameríndios no Brasil, só que, desta vez na forma de uma perseguição planificada contra uma sociedade indígena particular, os Guarani Kaiowá. Em 2016, Martírio, já finalizado, abre o forumdoc 20 anos. Os “isolados” não cessam de ser perseguidos, mas o caso dos Guarani Kaiowá parece condensar todos os caminhos da guerra

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1 Filme sobre uma guerra invisível, que se atualizava na fuga e na resistência de últimos representantes de sociedades ameríndias, então localizadas no território de Rondônia, perante a invasão dos representantes da sociedade nacional, e cujo processo de monitoramento ele acompanhou por décadas.

nacional contra os nativos da terra. A violência das sociedades-do-Estado contra as sociedades-contra-o-Estado é explícita, ainda mais indecorosa. Perante o caso paradigmático Guarani Kaiowá, não nos é mais possível ignorar ou subestimar a dizimação de diversos modos de vida por um único modo de vida. Com este salto do caso “isolado” ao “paradigmático”, entendemos melhor o caráter da “guerra” trazida na (a)mostra internacional do forumdoc.bh.2016: é uma guerra de modos, uma colisão entre mundos, ou o mundo em modo de guerra! Esta guerra quente, esta guerra-colisão distingue/opõe, de um lado, modos-mundos da simetria entre os seres habitantes da terra (incluindo os habitantes do céu e do subterrâneo), que vivem e atuam igualmente como sujeitos (povos originários, animais, vegetais, minerais, espíritos diversos que podem ser chamados de povo de gaia, terranos2). De outro, o modo-estado-mercado-nação, erigido sobre a assimetria inquestionável entre os humanos e o restante dos seres da terra. Por isso, esta guerra quente consiste na expansão violenta do modo de vida baseado na exploração dos recursos (aquilo a que os modernos chamam natureza) e inevitavelmente na extinção dos modos de vida outros, que não concebem a “natureza” (inclusive as pessoas) como fonte de recursos. Esta colisão não se resume à oposição entre regimes políticos de sociedades igualmente modernas (a guerra fria). O capitalismo, sempre empregando as forças policiais contra os terranos, vicejou, sem distinção nos diferentes regimes políticos modernos. E se, antes, a terra era grande, havia quintais! Além da África, as Américas! Hoje, a terra é pequena! Os humanos (modernos) extinguem os não-humanos e a terra com as alterações climáticas, degelo, aquecimento, secura, falta d’água... A cada vantagem tomada por um estado-nação, qualquer que seja sua orientação política, mais se torna impossível a vida para todos os outros na terra. É sob o signo dessa “colisão” de modos que a presente (a)mostra gira. O filme emblema da (a)mostra é Quando dois mundos colidem. Em Quando dois mundos colidem, a visão da catástrofe adquire proporções planetárias, metonimicamente, representada pelo conflito entre o projeto desenvolvimentista do governo peruano e a luta pela conservação da terra sagrada liderada por Pizango. Mais do que uma simples denúncia contra esse outro crime da Humanidade, a luta de Pizango anuncia a colisão entre dois mundos: aquele habitado por seres ligados

2 Usamos o termo terrano como o utiliza Isabelle Stengers, ou Viveiros de Castro e Débora Danowski, a partir de Bruno Latour em seu War of the worlds: what about peace?

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à Terra ou, simplesmente, “terranos” (povos originários, animais, vegetais, minerais, espíritos diversos) e aquele do estado-mercado-nação erigido a partir da assimetria entre humanos e não-humanos. Essa colisão tem provocado a inevitável extinção da diversidade étnico-biológica em prol de uma realidade antropocênica profundamente alterada pela interferência humana. A maior parte dos filmes que nos chegaram denunciam, de uma forma ou de outra, essa decadência ambiental, social, corporal e espiritual na qual parece se afundar, vertiginosamente, nossa vaidosa era da supremacia técnico-científica. Como falar em progresso diante das milhares de crianças abortadas, nascidas prematuramente, deformadas, alérgicas, com problemas cardíacos ou respiratórios, paralisia cerebral, leucemia, câncer, entre muitos outros males causados pela ingestão das águas e o consumo dos peixes contaminados pelos produtos tóxicos que, durante quase um século, navios norte-americanos despejaram, sem nenhum escrúpulo, nos rios e mares próximos a suas antigas bases militares situadas em portos da Filipinas? O que dizer, ainda, da devastação socioambiental haitiana provocada, não pelos terremotos e furacões, mas pela política protecionista norte-americana, cuja concorrência agrícola desleal levou aquele que foi o país mais rico da América Latina até o século XIX à completa bancarrota, situação tornada calamitosa após o surto de cólera transmitido pelos soldados nepaleses da ONU, ali levados para uma suposta ajuda humanitária? Esse cenário catastrófico documentado, respectivamente, pelo seminal Wake (Subic) de John Gianvito, e pelo sóbrio mas certeiro Kombit de Aníbal Garisto, chega às vias de fato com a guerra síria retratada de modo assombrosamente intimista em The Cow Farm, de Ali Sheikh Khudr. Nesse filme, realizado em forma de diário familiar, vemos a história de Hasan, um jovem campesino que queria apenas cuidar das suas vacas, mas que, por pressão social, se alinhou às forças rebeldes sírias, sucumbindo no campo de batalha, destino semelhante a toda uma geração forçada a escolher entre o exílio e a morte. Esses filmes mostram, portanto, guerras atuais transcorridas em diferentes partes do globo no exato instante em que projetamos suas imagens. Eles nos fazem ver uma colisão entre mundos provocada pelo embate terranos versus estado-mercado-nação ou, simplesmente, o mundo em modo de guerra constante. Essa mesma guerra agride, ainda, famílias de origem étnica Tatar, que foram forçadas a deixar suas terras seculares na Crimeia, Ucrânia, como nos revela When Will This Wind Stop, de 86

Aniela Astrid Gabryel. De fato, nesse média-metragem, aprendemos como

o “povo da nação” (russos) expulsa o “povo da terra” (Tatar), ocultando seu próprio pertencimento étnico para melhor depreciar a etnia dos outros. Mas esse mundo em ruínas tem seus resistentes. Eles nos invocam para o retorno ao primitivo – aqui entendido como uma referência aos primeiros tempos, quando a terra, não sendo ainda uma propriedade de poucos, era para todos. No média-metragem Then then then de Daniel Schioler, a resistência vem das imagens de arquivo que nos fazem rever rostos e vozes de ativistas famosos, como o frankfurtiano Herbet Marcuse, o pantera negra Stokely Carmichael, o poeta e profeta Allen Ginsberg, o ator Dick Gregory, o escritor e músico indígena John Trudell. Todos denunciam – cada um com seu sotaque – o que resume um ativista anônimo berrando em plenos pulmões: This society is sick!. A chamada para o primitivo também ecoa em Ama San, filmado no Japão pela luso-suíça Claudia Varejão. Nele, mergulhamos em águas profundas com nadadoras japonesas que coletam o haliote (um fruto do mar) nos corais do Oceano Pacífico. Vale aqui citar um trecho da sinopse desse filme de beleza incomum: Sem o auxílio de botija de ar ou outra ferramenta que potencie a capacidade de permanecer debaixo de água, todo o corpo é convocado a atingir o seu limite. Estes mergulhos são dados no Japão há mais de 2000 anos pelas Ama-San, literalmente, mulheres do mar que na cultura japonesa ocupam um lugar especial, sendo reverenciadas e, ao mesmo tempo, incompreendidas. Incompreendidas, ressaltemos, por conservarem uma ordem milenar que, há muito, perdemos de vista. Ordem subaquática, feminina, de mulheres coletoras, cuja prática ritualística delicadíssima e perigosa, cercada de restrições e receitas, deve ser realizada de modo estrito para que o mundo siga funcionado ou que se adie um pouco seu fim. Exótica, Erótica, Etc de Evangelia Kranioti sugere essa mesma continuidade entre o mar e o amor, entre a delicadeza e a poesia das mulheres que amam o mar e seus marinheiros. Começa com um longo suspiro, que retorna periodicamente como a onda do mar. Suspiro de quem recorda outros tempos em que comia-se, bebia-se, cantava-se, amava-se e, novamente, partia-se com a embarcação para nunca mais voltar. Em Brothers of the night, de Patric Chiha, redescobrimos o primitivo por meio de jovens michês búlgaros, que vivem ilegais em Viena e que dançam até altas horas em uma boate de luzes neon rosa-choque. São caras perdidos na noite, cumprindo o papel que lhes reservou a sociedade

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moderna. Vendem seus corpos para outros homens (quase todos velhos), bebem suas cervejas, consomem suas drogas, fazem planos de viajar pela Bulgária, mas sempre voltam a dançar até altas horas em uma boate com espelhos em todas as paredes. Nesse longa-metragem, situado no limite entre a ficção e o documentário, os personagens provocam um curtocircuito nas fronteiras de gênero, assim como nas fronteiras nacionais. Em uma Viena xenófoba e vigilante, restaram-lhes apenas seus próprios corpos másculos, mestiços, rijos, desejáveis e disponíveis ao preço de trinta ou quarenta euros a hora. Eles sabem satisfazer seus clientes. São bons profissionais. Por vezes, recebem mais de mil euros. Não é sempre, mas quando acontece, durante toda a noite, dançam loucamente em meio ao neon rosa-choque de um “inferninho” vienense frequentado apenas por jovens imigrantes búlgaros ilegais que, não se sabe até quando, resistem à falência do mundo. Outro filme que nos convida a dançar como forma de resistência é o iraniano I Dance with God, de Hooshang Mirzaee. Ao longo de 39 minutos, um casal dança, não com Deus, como sugere o título, mas com fantasmas de um tempo que não volta nunca mais, embora continue a assombrar dia após dia. Eles dançam para espantar o luto causado pela morte do filho e para adiar o desfecho das suas próprias vidas. La balada del Oppenheimer Park, de Juan Manuel Sepúlveda, também coloca a dança no centro da resistência contra esses tempos catastróficos. Seus “dançarinos” embriagados são indígenas de diferentes etnias que vivem confinados num parque de Vancouver. Ali, sob canteiros floridos, oculta-se um cemitério onde jazem os restos fúnebres dos seus ancestrais. A memória da opressão e do massacre ainda povoa (passaram-se anos desde o extermínio) os discursos (dos sobreviventes). Descobrimos como esses últimos remanescentes de uma população autóctone numerosa jamais abandonaram o espírito guerreiro expresso no modo como exaltam suas raízes étnicas, como reconhecem-se índios. Assim, mais do que registrar a catástrofe, La balada del Oppenheimer Park se afirma como uma ode à resistência. De fato, constantemente vencidos, os indígenas jamais foram vencidos! Apesar de amargarem uma vida de penúria, permanecem irreverentes. De forma incansável, reivindicam seus lugares de origem, embora estes tenham se tornado territórios fantasmas que existem apenas na memória de índios quase sempre bêbados. Mesmo porque esses resistentes sabem que a terra sempre foi a morada de fantasmas antiquíssimos, como nos revela o curta-metragem Curupira, de Pedro F. Neto. Durante um passeio noturno realizado sobre uma canoa 88

em algum rio amazônico que atravessa a fronteira entre o Peru e o Brasil,

um caboclo anônimo relata, em um idioma particular meio português, meio castelhano, meio indígena, seu encontro com o extraordinário: este é Curupira ou, em castelhano, Yaxingu, o Tio, um ser da floresta, duende da montanha, baixinho como menino, braços grossos, pés virados para trás, que veste roupa amarela riscada de preto. O caboclo conhece a força de Curupira, guardião das matas. Assim, quando come fruta, corta lenha ou caminha pelas matas, o caboclo pede licença por não querer virar encantando. Esse mundo mágico – que resiste e persiste nos bolsões perdidos de raras terras ainda pouco alteradas pelo trator civilizatório – está também presente em Tukuyninchiq Tutanchiq, média-metragem realizado por indígenas quéchua junto ao Centro de Formação de Realizadores Indígenas da Bolívia. Ainda hoje, a Nação Kallawaya de Amarete, uma pequena cidade nas montanhas do norte boliviano, segue a ordem de visões ancestrais evocadas pelo ritual de agradecimento a Pachamama e ao Pai Cosmos. Com efeito, a antropologia catastrofista – e, agora, em grande medida, a própria comunidade de geocientistas (vide o voto favorável da Comissão Internacional de Estratigrafia para o reconhecimento oficial de que entramos na era do Antropoceno, apresentado no 35° Congresso Internacional de Geologia em agosto de 2016) – tem razão quando sugere não haver grandes esperanças em relação ao futuro caso o capitalismo triunfe sobre os terranos. Esses filmes de resistência parecem nos dizer que, diante do já anunciado fim de mundo, resta-nos apenas a penosa tarefa de reconstruir a ordem perdida de um passado não tão distante, cujos traços arqueológicos permanecem na forma de visões cinéticas ou fantasmáticas. Nesse sentido, Another Year, de Shengze Zhu, nos fornece um primeiro enquadramento desse olhar ordenado, que resiste ao caos instalado pela Modernidade. Com 13 planos estáticos longuíssimos, Another Year registra, ao longo de 14 meses, 13 jantares de uma família chinesa que vive em um cubículo. Constitui seu foco a lenta transformação ao longo do tempo dessa família dividida em três gerações. Assim, quase nada se passa, a não ser o tempo. Como se a câmera subitamente revelasse o mistério e a beleza do próprio tempo, cuja ordem sazonal essa família de migrantes rurais parece ter perdido de vista após abandonar suas terras de origem, em busca de uma vida melhor na cidade. Entre a visão do que sempre existiu e a cegueira do que ainda não chegou a existir, cuja oposição está na raiz do embate terranos versus estado-mercado-nação, acreditamos que o cinema documentário deve escolher seu lado. Para a Mostra Internacional forumdoc.bh.2016, optamos por selecionar aqueles filmes que melhor nos fizeram ver a resistência dos sonhos contra a era das catástrofes.

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Tendo como pano de fundo o Danúbio, desajustados vivem no submundo de uma "sociedade respeitável". Armados com suas jaquetas de couro, estes búlgaros mudaram-se para Viena em busca de aventura, liberdade e dinheiro fácil, mas a pobreza os levou a venderem seus corpos. No entanto, podemos vislumbrar um aconchego em seu senso de coletividade, quando eles podem ser jovens e irresponsáveis pela primeira vez.

Em Wagu, uma vila de pescadores na Península Ise, Matsumi, Mayumi e Masumi mergulham todos os dias sem saber o que irão encontrar. Debaixo da água, seus delicados corpos se tornam corpos de caçadoras do mar. Há mais de 2000 anos, as Ama-San mergulham dessa forma.

cine humberto mauro, 26 nov, 21h

cine humberto mauro, 25 nov, 15h

IAgainst the backdrop of the Danube, live the underdogs of respectable society. Sporting their leather jackets, these Bulgarian moved to Vienna in search of an adventure, freedom and a quick buck, but poverty has drawn them to sell their bodies instead. However, there is a ray of comfort in their feeling of togetherness, where they can be young for the very first time.

Austria, 2016, cor, 88’ direção director Patric Chiha fotografia cinematography Klemens Hufnagl montagem editing Patric Chiha som sound Atanas Tcholakov produção production Ebba Sinzinger e Vincent Lucassen, Wildart contato contact [email protected]

Portugal, Suiça, 2016, cor, 133’ direção director Cláudia Varejão fotografia cinematography Cláudia Varejão montagem editing João Brás som sound Takashi sugimoto produção production João Matos, Vadim Jendreyko, Terratreme, Mira Films contato contact [email protected]

In Wagu, a fishing village in the Ise Peninsula, Matsumi, Mayumi and Masumi dive everyday not knowing what they’ll find. Underwater, their delicate bodies turn into those of sea hunters. The Ama-San have been diving like this in Japan for over 2000 years.

Brothers of the Night > Irmãos da noite

Ama-San

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Os marinheiros são como terroristas, eles chegam aos portos e arremessam uma bomba chamada amor. E sabe o que acontece? Quando vão embora, a bomba explode e eles nunca mais retornam, destruindo os corações daquelas mulheres. Quão estranho é amar alguém que nos paga...

O Curupira é um personagem folclórico que vive nas florestas do Brasil e, normalmente, é considerado como uma figura demoníaca. Este curto documentário foi filmado no Vale do Javari, na Amazônia e apresenta uma das várias versões da lenda do Curupira.

cine humberto mauro, 24 nov, 21h30

cine humberto mauro, 18 nov, 15h

Sailors are like terrorists. They arrive in ports with a bomb called love and throw it. And do you know what happens? The bomb explodes when they go away and they never come back, destroying the hearts of all the girls in the neighborhood. How strange... To love somebody who pays you...

França, 2015, cor, 63’ direção director Evangelia Kranioti fotografia cinematography Evangelia Kranioti montagem editing Yorgos Lamprinos som sound Jérôme Gonthier produção production Charlotte Vincent, Aurora Films contato contact [email protected]

Brasil, Portugal, Peru, 2016, p&b, 12’ direção director Pedro F. Neto fotografia cinematography Pedro F. Neto montagem editing Pedro F. Neto som sound Pedro F. Neto produção production Pedro F. Neto, Mogadiscio Filmes contato contact [email protected]

The Curupira is a mythological creature, usually regarded as a demonic figure, who lives in the forests of Brazil. Filmed in the Javari Valley, Amazon, this short documentary presents one of the many versions of the Curupira legend.

Exótica, Erótica, etc

Curupira

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Kombit Argentina, 2015, cor, 63’ direção director Anibal Garisto fotografia cinematography Federico Luaces montagem editing Anibal Garisto, Carlos Galán som sound Carlos Galán produção production Anibal Garisto, Carlos Galán, Carolina Fernandez, Jorge Colás, Ruka Cine, Salamanca Cine contato contact [email protected]

No Haiti, coletores de arroz trabalham a terra de forma tradicional e lutam contra a importação de arroz dos EUA. Por ser mais barato, o arroz americano está destruindo a economia haitiana. Numa tentativa de voltar a serem auto-sustentáveis, Cebè propõe um sistema de trabalho solidário ancestral, o “kombit”. Kombit shows the life of rice peasants in Haiti, who work the land in a traditional way, and their stands against the rice imported from the USA, making them leave their land and look for a job in the city. Cebè tries to organize his community to get back their food sovereignty and as an alternative, He proposes the “Kombit”, a system of solidary work, just like their African ancestor used to do. cine humberto mauro, 24 nov, 21h30

I Dance with God > dançando com deus

Iran, 2015, cor, 39’ direção director Hooshang Mirzaee fotografia cinematography Majid Ghorbanifar montagem editing Hooshang Mirzaee som sound Jafar Khoshkho produção production Hooshang Mirzaee, Dafilm contato contact [email protected]

O curdo Ali Badri, noivo há apenas três meses, ficou cego em meio a uma caçada de bodes. Apesar de estar sem seus olhos, o seu desejo por independência o fez aprender a costurar. Somente após prática constante deste ofício, Ali se tornou alfaiate. “I dance with god” é um exemplo potente da batalha pela sobrevivência e da determinação do espírito humano.

Ali Badri ,old Kurdish man ,had been blind during hunting . When he was three month groom, he lost his eyes in the middle of hunting goats . For being independent , he learned sewing by more and more practice . How would you work as tailor if you are completely blind? I Dance with God is a powerful example of the struggle to survive and determination of the human spirit despite the difficulties they have.

cine humberto mauro, 18 nov, 15h

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cine humberto mauro, 26 nov, 17h

The Ballad of Oppenheimer Park is a film that celebrates the every day life of a group of First Nations, exiles from the Canadian reserves, who, over a fleeting summer, occupy a municipal park in Vancouver. Through direct participation in the filmmaking process, the day to day becomes a ritualistic space in the struggle to overcome historical and ongoing hardships.

“La Balada del Oppenheimer Park” celebra o cotidiano de um grupo de nativos canadenses que foram exilados de suas terras. Num escaldante verão, eles ocupam um parque municipal em Vancouver. O cotidiano se torna um espaço ritualístico na batalha para a superação de sua história de opressão.

México, 2016, cor, 70’ direção director Juan Manuel Sepúlveda fotografia cinematography Juan Manuel Sepúlveda montagem editing Isidore Bethel, León Felipe González, Juan Manuel Sepúlveda som sound Pablo Fernández, José Miguel Henriquez produção production Juan Manuel Sepúlveda, Elsa Reyes, Isidore Bethel, Fragua Cinematografía, FOPROCINE, Zensky Cine contato contact [email protected]

La Balada del Oppenheimer Park

cine humberto mauro, 21 nov, 17h

In 2010, this film started out as an ordinary documentary about the maker’s family and the city of Salamya where they live. However, it immediately fixates on its first subject: Hassan, the maker’s farmer cousin with a shed full of cows he is very fond of. When Ali Sheikh Khudr returned two years later, the war proved to have inflicted deep wounds.

Esse filme se inicia em 2010 como um documentário sobre a família do realizador Ali Sheikh Khudr na cidade de Salamya. No entanto, ele se fixa no primo Hassan e em seu amado estábulo repleto de vacas. Após dois anos, Ali Sheikh Khudr retorna a Salamya e é visível a forma como a guerra fez profundas feridas.

Síria, 2016, cor, 60’ direção director Ali Sheikh Khudr fotografia cinematography Ali Sheikh Khudr montagem editing Ali Sheikh Khudr som sound Simone Abou Assali produção production Ali Sheikh Khudr contato contact [email protected]

Mazraet Al Abkaar | The cow farm > A fazenda de vacas

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Na comunidade Kallaway de Amarete (Provincia Bautista Saavedra de La Paz), ainda permanecem as relações tradicionais homem-mulher no mundo sagrado. A colheita, a produção, a família, a organização, a comunidade são elementos centrais da vida, nada é individual, tudo é compartilhado, complementar e recíproco.

Quando um protesto fracassa, o que resta? Imagens de arquivo e música se mesclam numa mistura hipnótica e inquietante em “Then, then, then”, filme que nos oferece um lampejo gritante dos conflitos morais de uma geração se acomodando na sua incapacidade de provocar uma mudança social. Essa exploração sobre a desobediência civil é um lembrete oportuno do caminho que alguns percorreram para terem suas vozes ouvidas.

cine humberto mauro, 25 nov, 15h

cine humberto mauro, 26 nov, 17h

En la Comunidad Kallawaya de Amarete (Provincia Bautista Saavedra del Departamento de La Paz), aún permanecen las relaciones ancestrales hombre – mujer en el mundo sagrado, la cosecha, la producción, la familia, la organización, la comunidad, son los elementos centrales de la vida, nada es individual, todo es par, es complementario y reciproco.

Bolívia, 2015, cor, 33’ direção director Alipio Cuila, Deysi Teresa Llusco, Efigenia Encinas, Eusebio Caba, Desiderio Ochoa produção production CEFREC - CAIB contato contact [email protected]

Canadá, 2015, cor, p&b, 29’ direção director Daniel Schioler fotografia cinematography Patrick McGrath montagem editing Daniel Schioler produção production Daniel Schioler contato contact [email protected]

When protest fails, what’s left? A hypnotic and unsettling blend of archival footage and music, Then Then Then offers a stark glimpse into the moral struggles of a generation coming to terms with its own inability to affect social change. This meditation on civil disobedience is a timely reminder of the lengths some have gone to in order to have their voices heard.

Tukuyninchiq Tutanchiq > Todos nos encontraremos

Then, then, then > Naquela época

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When Two Worlds Collide > Quando dois mundos colidem Peru, EUA, Reino Unido, 2016, cor, 103’ direção director Heidi Brandenburg Sierralta e Mathew Orzel fotografia cinematography Heidi Brandenburg Sierralta e Mathew Orzel montagem editing Carla Guitierrez som sound Taira Akbar, Heidi Brandenburg Sierralta, Mathew Orzel, Jack Weisman produção production Taira Akbar contato contact [email protected]

Forçado ao exílio e condenado a 20 anos na prisão, um líder indígena enfrenta grandes empresas que estão arruinando a Amazônia. Recusando-se a se render, ele continua sua luta, lançando luz sobre as conflitantes visões que moldam o destino da Amazônia e o futuro do clima do mundo. An indigenous leader forced into exile and facing 20 years in prison for resisting the environmental ruin of Amazonian lands by big business. Refusing to surrender he continues his quest, shedding light on conflicting visions shaping the fate of the Amazon and the climate future of our world.

cine humberto mauro, 19 nov, 17h

Wake (Subic) > no rastro da embarcação (baía de Subic, Filipinas)

EUA, Filipinas, 2015, cor, 277’ direção director John Gianvito fotografia cinematography John Gianvito montagem editing John Gianvito, Eric P. Gulliver som sound John Gianvito produção production Jhon Gianvito, Traveling Light Productions contato contact [email protected]

Wake (Subic) finaliza o díptico “For Example, The Philippines”, que se iniciou com o longa “Vapor Trail (Clark)” de 2010. Coletivamente, o ensaio de nove horas explora as circunstâncias da contaminação tóxica ao redor da antiga base militar americana nas Filipinas. O documentário explora a amnésia histórica, o privilégio colonial e as consequências do militarismo.

First begun in 2006, Wake (Subic) completes the documentary diptych, For Example, The Philippines, the first part of which, Vapor Trail (Clark) was released in 2010. Collectively this nine-hour essay explores circumstances of toxic contamination around the former US military bases in the Philippines as the locus for a meditation on historical amnesia, colonial privilege, and the consequences of unchecked militarism.

cine humberto mauro, 23 nov, 18h30

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You yi nian | Another Year > Um outro ano China, 2016, cor, 181’ direção director Shengze Zhu fotografia cinematography Zhengfan Yang montagem editing Shengze Zhu som sound Dejian Ou produção production Zhengfan Yang, Burn The Film Production House contato contact [email protected]

Em 13 longas e estáticas tomadas, 13 jantares da família de um trabalhador migrante são capturados em tempo real. Capturadas em 14 meses, essas refeições destacam a possibilidade de algo ordinário poder se apresentar como belo e misterioso. Uma série de acontecimentos aleatórios, alguns dramáticos e outros triviais, criam sentido pela proximidade entre eles. The film captures 13 dinners of a migrant worker’s family over the course of 14 months. The meals unfold in real-time through 13 static, long takes, highlighting how the mundane could appear mysterious and beautiful with the passage of time. A series of random occurrences, some dramatic and some trivial, are all given meaning by their proximity to each other. cine humberto mauro, 25 nov, 21h

Kiedy ten wiatr ustanie | When Will this Wind Stop > Quando Esse Vento Vai Parar

Polônia, 2016, cor, 66’ direção director Aniela Astrid Gabryel fotografia cinematography Oleksandr Pozdnyakov montagem editing Katarzyna Boniecka som sound Iwona Kawiorska produção production Miroslaw Dembinski, Film Studio Everest contato contact [email protected]

O filme conta quatro histórias de uma família de tártaros da Crimeia que vive em uma ocupação. Suas histórias dizem de uma experiência de dificuldade comum a todos que ali vivem. O mote do filme não é a ocupação em si, mas suas consequências: de que maneira ela afeta a vida das pessoas que só querem viver, amar e cuidar de suas famílias.

The film tells four stories of one Crimean Tatar family. Their story concentrates the experience of a larger community living under occupation. The main motive of the film is not the occupation itself, but its consequences, how it affects the lives of those who want to live, to love and to have a family.

cine humberto mauro, 21 nov, 17h

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sessões especiais

Uî Kãnã Pataxí > Na Minha Aldeia Brasil, 2016, cor, 68’ direção director Edgar Correa Kanaykõ, Guilherme Cury fotografia cinematography Edgar Correa Kanaykõ, Guilherme Cury, Ronaldo Alves Pataxó, Kelly Pinheiro, Cibele Fernandes Neres, Itohã Alves Ferreira, Waranã Alves Pinheiro montagem editing Edgar Correa Kanaykõ, Guilherme Cury som sound Edgar Correa Kanaykõ, Guilherme Cury, Reginaldo Alves da Conceição trilha sonora sountrack Pataxó Imbiruçu produção production Jenipapo Audiovisual, Guilherme Cury contato contact [email protected]

O filme “Uî Kãnã Pataxí - Na minha aldeia” nos dá a possibilidade de conhecer um pouco da vida e cultura do povo Pataxó da aldeia Imbiruçu, município de Carmésia (MG). Quem conduz o filme para as histórias do passado é o Cacique Romildo da Conceição e sua mãe, a matriarca e sábia, Dona Rosa; elxs contam sobre o início da aldeia Imbiruçu e sobre o criador do povo Pataxó, Txopai.

cine humberto mauro, 20 nov, 14h

A Destruição de Bernardet > The destruction of Bernardet

Brasil, 2016, cor, 72’ direção director Claudia Priscilla, Pedro Marques fotografia cinema​tography Pedro Marques montagem editing Pedro Marques, Guile Martins som sound Ricardo Zolnner Jr, Daniel Melito, Lia Pereira Camargo produção production PaleoTV, Valvula Produções, Kiko Goifman, Jurandir Muller contato contact [email protected]

Jean-Claude Bernardet está velho e doente. O maior crítico de cinema vivo do Brasil se reinventa através da sua própria destruição. O filme, que transita entre a ficção e o documentário, utiliza dispositivos inusitados para narrar a trajetória de um intelectual que se transforma em ator aos 70 anos. Não se trata de uma biografia convencional e sim de um projeto construído com o próprio personagem. Um ensaio sobre a apropriação do corpo na velhice.

cine humberto mauro, 18 nov, 19h

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Cantos em um encontro de pajés Tikmũ’ũn-Maxakali Brasil, 2016, cor, 34’ realização Josemar Maxakali, Marilton Maxakali, Bruno Vasconcelos seleção de cantos Toninho Maxakali, Josemar Maxakali, Marilton Maxakali, Zé Antoninho Maxakali, Bruno Vasconcelos seleção de imagens Josemar Maxakali, Marilton Maxakali, Bruno Vasconcelos tradução Josemar Maxakali, Marilton Maxakali som direto dos cantos e depoimentos dos pajés sound Leonardo Pires Rosse fotografia cinematography Josemar Maxakali, Marilton Maxakali, Bruno Vasconcelos montagem e finalização editing Bruno Vasconcelos pesquisa e produção research and production Ricardo Jamal coordenação coordination Rosângela de Tugny ProdocSon - programa de documentação de sonoridades indígenas - Museu do Índio

Os Tikmũ’ũn-Maxakali, povos indígenas habitantes do nordeste de Minas Gerais, promovem um aguardado encontro de pajés, com a presença de sábios e especialistas de suas terras. Junto a seus Yãmĩyxop, eles rememoram um extenso repertório de cantos e preparam alimentos tradicionais para todos - humanos e espíritos.

cine humberto mauro, 20 nov, 19h

Ava Yvy Vera > A Terra do Povo do Raio

Brasil, 2016, cor, 51’ direção director Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites fotografia e som cinematography and sound Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites, Fabio Menezes, Guilherme Cury montagem editing Genito Gomes, Jhonatan Gomes, Jhonn Nara Gomes, Rosecleia Almeida, Luisa Lanna, Alessandra Giovanna produção production Programa Imagem Canto Palavra nos territórios Guarani e Kaiowá (coordenação: Luciana de Oliveira) contato contact [email protected]

"Aqui é o coração da terra. Estamos lutando pelo coração da terra, este território. Não lutamos só por esse pedaço, mas por todos os territórios do coração da terra. Esse é o nosso lugar. Nós Avá somos descendentes do coração da terra." (Valdomiro Flores, Tekoha Guaiviry, 2014)

cine humberto mauro, 20 nov, 15h30

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Ujirei > Re-ramagem Paraguay, 2016, cor, 55' direção director Mateo Sobode Chiqueno fotografia e som-direto cinematography and sound Mateo Sobode Chiqueno coordenação de edição editing coordinator Bernard Belisário produção production Ayoreo Video Project (em colaboração com Vídeo nas Aldeias) coordenação coordinator Lucas Bessire contato contact [email protected]

Para os povos Ayoreo do Gran Chaco no norte do Paraguai, as condições de sobrevivência são uma questão incerta. Nesse filme experimental sem precedentes, Mateo Sobode, um senhor Ayoreo, explora visualmente a vida cotidiana e as relações com os cojñone (os brancos) dentro e fora da missão evangélica onde vive. Ao fazê-lo, o cineasta cria uma reflexão cinematográfica visionária, afirmando a força de vida que insiste e resiste à expropriação e à instabilidade social. Esse filme é uma das quatro partes que compõem a série Yocoredie: The Ayoreo Video Project.

cine humberto mauro, 25 nov, 17h

Imagens do Estado Novo 1937 – 45 > Images of Brazil’s Estado Novo 1937 - 45

Brasil, 2016, p&b, 227’ direção director Eduardo Escorel montagem editing Pedro Bronz, Eduardo Escorel trilha sonora sountrack Hermelino Neder, Newton Carneiro produção production Brasil 1500, Cláudio Kahns contato contact [email protected]

Cine-jornais, fotografias, cartas, trechos de diário, filmes de ficção e de família, canções populares etc. – através desses registros heterogêneos, o filme oferece uma visão da ditadura de Getúlio Vargas. Comentando esses documentos, produzidos com finalidades diversas – propaganda política, informação jornalística, anotação pessoal, celebração familiar etc. –, o documentário procura desvendar a trama política do regime do Estado Novo.

cine humberto mauro, 24 nov, 17h

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Imagem e hospitalidade: em torno de L’ordre (1973), de Jean Daniel Pollet, com Marie-José Mondzain

Marie-José Mondzain é filósofa francesa nascida na Argélia. Especialista em estudos sobre a iconoclastia, escreveu, dentre outros, Homo spectator, que discute a construção histórica da figura do espectador, publicado recentemente pela Orfeu Negro, em Lisboa/Portugal. Professora da École des Hautes Études em Ciências Sociais (EHESC) e diretora de pesquisa do CNRS, prefigura entre os grandes nomes dos estudos contemporâneos sobre o estatuto da imagem. Em 2009, participou do forumdoc.ufmg, com o seminário “A perseguição no cinema”, e retorna ao forumdoc.bh com a conferência “Imagem e hospitalidade: em torno de L’ordre (1973), de Jean Daniel Pollet”

cine humberto mauro, 18 nov, 17h

Em 2014, mestres quilombolas e indígenas estiveram na UFMG para compartilhar seus conhecimentos, inaugurando, em parceria com o INCTI/UnB, o Encontro de Saberes na universidade. O filme recupera os registros do curso ministrado pelos mestres ao longo de um semestre, para mostrar como a presença de outros corpos, línguas e cosmologias é capaz de alterar a cena sensível da sala de aula, na vizinhança com a natureza e os espíritos.

cine 104, 25 nov. 19h

CONFERÊNCIA | SESSÃO COMENTADA

Brasil, 2016, HD, cor, 60' fotografia e som cinematography and sound Ana Carvalho, Fernando Ancil montagem editing Bernard Belisário, Bruno Vasconcelos produção production Fernanda de Oliveira contato contact [email protected], [email protected]

"Eu vim de muito longe"

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lançamentoS

cine humberto mauro, 25 nov, 18h30

Free distribution to the spectators

Movie session with Jardim Nova Bahia (1971) and Tarumã (1975) with the presence of Gustavo Raulino.

Execution: CTAV – Brazilian Cinematheque

Distribuição gratuita para os espectadores presentes.

Sessão dos filmes Jardim Nova Bahia (1971) e Tarumã (1975), com a presença de Gustavo Raulino.

Realização: CTAV - Cinemateca Brasileira

Lançamento Coleção Aloysio Raulino - Caixa com 4 DVDs > Release of Aloysio Raulino Collection – box with four DVDs

[Aloysio Raulino]

O cinema se oculta e se expande no coração da desordem. The cinema hides and expands itself in the heart of the disorder.

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cine humberto mauro, 18 nov, 17h

The magazine Devires – Cinema e Humanidades releases, in the 20th edition of forumdoc.bh, the dossier O documentário e as imagens de arquivo. It is a two edition dossier in wich we seek to understand the use of archival images in documentaries. The papers discuss the more traditional directors of this sort of cinema, such as Chris Marker and Harun Farocki, but also, the reapropriations in brazilian cinema, such as those from the years of dictatorship and indigenous films.

A revista Devires – Cinema e Humanidades, lança, na 20a edição do forumdoc. bh, o dossiê O documentário e as imagens de arquivo. Trata-se de um dossiê duplo que tem como preocupação a compreensão do uso das imagens de arquivo no cinema documentário. Os artigos abordam os nomes mais tradicionais desse cinema, como Chris Marker e Harun Farocki, mas também, as reapropriações no cinema brasileiro, como aquelas referentes à ditadura e ao cinema indígena.

Revista Devires – Cinema e Humanidades v. 12 n.1 e n.2, 2015

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cine humberto mauro, 27 nov, 17h

A mise-en-film da fotografia no documentário brasileiro, published by Filmes de Quintal and co-published by Relicário Edições, gathers two essays which discuss the photography requested as memory dispositif along two themes: “Family albums” and “Portraits of pain”. Inside this edition there’s also an independent essay on the writing and reading of movement. The book comes as a result of Glaura Cardoso Vale’s postdoctoral research, developed in PPGCOM-UFMG program with a scholarship funded by PNPD/CAPES (2013-2016).

A mise-en-film da fotografia no documentário brasileiro, publicado pela Filmes de Quintal Editora e co- editado pela Relicário Edições, reúne dois ensaios que buscam discutir a solicitação da fotografia como dispositivo de rememoração a partir de dois temas: “Álbuns de família” e “Retratos da dor”. Acompanha esta publicação, um ensaio avulso que trabalha a escrita e a leitura do movimento. O livro é resultado da pesquisa de pósdoutoramento de Glaura Cardoso Vale junto ao PPGCOM-UFMG, com bolsa PNPD/CAPES (2013-2016).

A mise-en-film da fotografia no documentário brasileiro Glaura Cardoso Vale | Filmes de Quintal Editora | Belo Horizonte, 2016

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Seminário Queer e a câmera

Mostra/Seminário Queer e a câmera forumdoc.bh.20anos | 17 a 27 de novembro de 2016 Cine Humberto Mauro – Palácio das Artes

> Segunda-feira, 21/11 > 14h Cine Humberto Mauro Queering Beagá I Mediação: Vinícius Abdala David Maurity Idylla Silmarovi Igor Leal

> Terça-feira, 22/11 > 14h Cine Humberto Mauro Cinema e cultura queer Mediação: Eduardo Jesus Vitor Grunvald Karla Bessa Luiz Roque Chico Lacerda

> 21h Cine Humberto Mauro Práticas e ativismos queer Mediação: Paulo Maia Jota Mombaça Pri Bertucci Ingrid Leão

> Quarta-feira, 23/11 > 14h Cine Humberto Mauro Queering Beagá II Mediação: Ana Luiza Santos Sofi - Azi Deia Danielle Pinto Júlia Diniz e Carvalho

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Sessões Comentadas Queer e a câmera > Segunda-feira, 21/11 > 19h Los Leones, André Lage, Brasil-Argentina, 2016, 79 min. Sessão comentada pelo diretor.

> Segunda-feira, 21/11 > 21h Ingrid, Maick Hannder, Brasil, 2016, 6 min. Virgindade, Chico Lacerda, Brasil, 2015, 16 min. Sessão comentada pelos diretores e mediada por Tatiana Carvalho Costa.

> Segunda-feira, 21/11 > 22h Modern, Luiz Roque, Brasil, 2014, 4 min. O Novo Monumento, Luiz Roque, Brasil, 2013, 5 min. Ano Branco, Luiz Roque, Brasil, 2013, 7 min. Heaven, Luiz Roque, Brasil 2016, 10 min. Sessão comentada pelo diretor.

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Minicurrículos Ana Luiza Santos > Bacharel em Comunicação Socia (UFMG, 2000), Mestrado Comunicação Social – Sociabilidade Contemporânea (UFMG, 2003), Pós-Graduação em Performance (Fac Angel Vianna RJ/Casa Paola Rettore BH, 2013), atua como artista visual e curadora, com destaque para a linguagem da performance. Trabalha como professora, pesquisadora e consultora em cursos e projetos artísticos nas áreas de figurino, audiovisual, design de moda e patrimônio.

André Lage > Possui Pós-doutorado em Artes Cênicas pela USP, pósdoutorado em Literatura Comparada pela UFMG e Doutorado em Literatura Francesa pela Université Paris VIII (Antonin Artaud: Refléxions à propos du théâtre, 1998), Graduação em Letras pela UFMG. Desenvolve pesquisas sobre as Poéticas de Antonin Artaud, tem experiência em Teorias e Práticas contemporâneas do teatro e da performance, nos processos criativos híbridos e na relação entre a literatura e as outras artes. Los Leones (2016) é seu longa de estréia.

Chico Lacerda > Possui graduação em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco (2003), mestrado em Ciências da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco (2007) e doutorado em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (2015). Faz parte do coletivo Surto & Deslumbramento onde, junto a seus outros parceiros, realizou curtas como “Virgindade” e “Como era Gostoso Meu Cafuçu”. Suas experiências enveredam pelos caminhos da fotografia e cinema, atuando principalmente nos seguintes temas: camp, cinema, cinema queer, homossexualidade e cultura homossexual.

Danielle Pinto > Jornalista e produtora cultural formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. É uma das criadoras do BH is Voguing, portal que se dedica à cobertura da cena voguing local e internacional, com conteúdo próprio em três idiomas. Integra a House of Afrodite, coletivo de artistas e produtores que assina a produção do BH Vogue Fever, primeiro evento internacional de Vogue realizado no Brasil.

Davidson Maurity > Mestrando do Programa de Estudos Literários Poslit, da Faculdade de Letras da UFMG. Formou-se bacharel em Estudos Literários também pela FALE. É ator e um dos fundadores do coletivo TODA DESEO, de Belo Horizonte.

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TODA DESEO > É um coletivo de artistas mineiros, envolvidos com questões relacionadas às pessoas Trans. Transgressoras e encorajadoras, as ações desse coletivo visam garantir a liberdade de expressão e da participação dos sujeitos “trans” na vida social e cultural da cidade de Belo Horizonte (MG). São atos de resistência, inclusão e de luta contra o preconceito. São 3 anos de existência do coletivo e 5 trabalhos no repertório: No soy un Maricón: o Espetáculo-Festa, Campeonato Interdrag de Gaymada, Performance: Corpos que não importam, Nossa Senhora [do Horto] e Ser: Experimento para tempos sombrios.

Eduardo Jesus > Mestre em Comunicação pela UFMG (2001) e Doutor em Artes pela ECA/USP (2008). É professor do Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas com pesquisas na área de audiovisual, arte contemporânea e tecnologia. Desenvolve curadorias, entre as quais destaca-se: “esses espaços” (Belo Horizonte, 2010), Densidade Local, curadoria desenvolvida com Gunalan Nadarajan para o Festival Transitio-mx (Cidade do México, 2008), Mostra Fiat Brasil (2006). Integra a diretoria da Associação Cultural Videobrasil.

Idylla Silmarovi > Atriz e agitadora cultural. Pesquisa as interseções entre a arte e o ativismo dentro das artes cênicas, principalmente no que tange os debates de gêneros, sexualidades e estudos culturais latino-americanos. Faz parte do coletivo Bacurinhas e Cia dos Aflitos. É atriz dos espetáculos: “GUERRILHA – experimento para tempos sombrios”, “Calor na Bacurinha”, “Bacubanda”, “Oié!”, “Essa Peça não tem preço”, “Estrela ou Escombros da Babilônia”. É uma Bacurinha aflita que acredita na união latino-americana e não aceita golpes. É a favor de guerrilhas.

Bacurinhas >Coletivo feminista de mulherxs atrizes e performers que reside e reexiste na cidade de Belo Horizonte (MG). Estreou em 2014 no Festival Cena-espetáculo a cena “Calor na Bacurinha” dirigido por Guilherme Morais e posteriormente o espetáculo “Calor na Bacurinha” dirigido por Marina Viana. Realizaram o encontro “Bacurinhas em Debate” que durante três dias reuniu artistxs, pesquisadorxs e ativistxs para debater pautas caras axs feminismxs. Estreou na virada cultural no SESCPalladium o show “Bacubanda” dirigido por Marcelo Veronez.

Igor Leal > Ator, performer e pesquisador. Mestre em Artes Cênicas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG (2014) Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de 116

Minas Gerais (2011). É ator formado pelo Centro de Formação Artística Cefar, Palácio das Artes. Artista/coordenador do Coletivo de intervenção urbana “Paisagens Poéticas” Co-realizador da Transresidência experimento queer, parceria com Guilherme Morais - This is Not , Ana Luisa Santos e Fernanda Branco Polse. Atualmente realiza o trabalho “Não conte comigo para proliferar mentiras” com a direção do artista Alexandre de Sena. É idealizador do “Beijo no seu preconceito” e da ocupação Afazeres Queer – 2015.

Beijo no seu preconceito > Tem como objetivo promover trabalhos artísticos que friccionam as dimensões estéticas, éticas e políticas em sua linguagem. Em 2014, o “Beijo” realizou a cena curta “Não conte comigo para proliferar mentiras”, cena escolhida para compor a temporada das mais votadas do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto. O “Beijo no seu preconceito” realizou em Março de 2015 no teatro Espanca! a primeira edição do “Afazeres Queers: Arte viada no centro”. Evento que concilia pesquisadorxs, ativistas e acadêmicxs no campo das artes, para debruçar acerca das estratégias queers e suas possíveis contribuições às artes. Em sua primeira edição, o “Afazeres Queers” promoveu um grupo de estudos de performatividade Drag e Fechação, que finalizou com um pequeno desfile “babado” na rua Aarão Reis.

Ingrid Leão > Atriz. Performer queer. Militante LGBT. Graduanda em química.

Jacson Dias >

Graduando em Cinema e Audiovisual pelo Centro

Universitário UNA. Conselheiro LGBT pela sociedade civil de Contagem e coordenador executivo do projeto de extensão Una-se Contra LGBTfobia. Fez a direção de produção do documentário Som da Cidade (2016). Para Aylan (2016) é seu primeiro curta metragem dirigido em conjunto com Maick Hannder. É produtor executivo do curta Ingrid (2016). Mora em belo Horizonte, Minas Gerais.

Jota Mombaça > Não tinha onde fazer arte. Não tinha formação. Não tinha formatura. Fazer passar intensidades de artista por um [espaço vazio] se transformou em seu ofício. Faço isso desde que entende – incertx, variegadx, cambiante. O que tem para chamar de obra são resíduos dessas passagens intensivas que conduzem a territórios variados: políticas da cidade, políticas da subjetividade, da sexualidade, políticas poéticas, e algo sobre viver a vida como uma forma inacabada de arte. 117

Júlia Diniz e Carvalho > Licenciada em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG, 2014) e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, 2015). Atualmente é mestranda em Filosofia Contemporânea pela UFMG e em sua pesquisa, se dedica ao tema do corpo em duas correntes do pensamento contemporâneo: fenomenologia e desconstrução.

Karla Bessa > Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Dentre suas atividades de pesquisa vinculadas ao Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, dedica-se ao estudo da cultura visual cinematográfica contemporânea e suas interconexões com os modos de produção de diferenças (gênero, raça, sexualidade, classe, escolaridade, geopolítica, etc). Coordena o Projeto CinePagu, que consiste na projeção de filmes, debates e seminários relacionados aos estudos de gênero e sexualidade.

Luiz Roque > Bacharel em artes visuais pela UFRGS. Talent Campus Buenos Aires, 2005, e Talent Campus Berlim, 2007, sua obra tem sido exibida em mostras e exposições como Constructions Views, New Museum, Nova York (2010); Da próxima vez eu fazia tudo diferente, Pivô (Copan), São Paulo (2012); e Video Links Brazil, Tate Modern, Londres (2007). A apropriação estética da ficção científica, a índole da paisagem e a temporalidade da imagem estão entre os temas que mobilizam o artista. Trabalha com filme, vídeo e fotografia.

Maick Hannder > Graduando em Cinema e Audiovisual pelo Centro Universitário UNA. Editor de audiovisual do projeto de extensão Una-se Contra LGBTfobia. Cineasta em formação, seu curta acadêmico A Menina e o Vento (2015) e Para Aylan (2016) foram selecionados para vários festivais como 15ª Mostra de Cinema Livre, Cinema Esquema Novo (Porto Alegre/ RS) e Festival Toró (Belém/PA). Ingrid (2016), curta que integra a mostra/ seminário “Queer e a Câmera” já participou de mais de 20 festivais no Brasil e no mundo.

Paulo Maia > Antropólogo e um dos idealizadores e curadores do forumdoc. bh. Pelo forumdoc foi curador, dentre outras, da Mostra Melanésia (2008), Direto.doc (2010) O Animal e a Câmera (2011), O Inimigo e a Câmera (2012), A Escola e a Câmera (2014) e Queer e a câmera (2016). É professor adjunto da Faculdade de Educação, da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do programa de extensão forumdoc.ufmg. Tem experiência na 118

área de Antropologia, com ênfase em Etnologia Sul Americana e Educação Indígena, Antropologia e Artes Audiovisuais.

Pri Bertucci > Artista social, identifica-se como gênero queer, dirige documentários, é fotógrafo, diretor de arte e é fundadorx do [SSEX BBOX], projeto de justiça social que propõe a inclusão racial da população LGBTQIA, com sede em São Francisco. É responsável pela idealização, curadoria e produção da 2ª Conferência Internacional [SSEX BBOX] & MIX BRASIL. Priscilla trabalhou no cinema em filmes nacionais e internacionais, e é fundador da Kumba Films que atualmente está produzindo documentários ao redor do mundo.

Ssex Bbox - Sexualidade Fora da Caixa > Projeto de justiça social que busca oferecer perspectivas plurais sobre sexualidade e gênero a partir do relato das experiências de pensadorxs, educadorxs, ativistas, artistas e outras pessoas que vivem, aprendem e amam ‘fora da caix(inh)a’. http://www.ssexbbox.com/

Tatiana Carvalho Costa > Mestre em Comunicação Social pela UFMG (2005). Atualmente, integra o corpo docente do Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário Una, nos cursos de Cinema e Audiovisual e de Jornalismo Multimídia, e é documentarista e colaboradora do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais - NUH/UFMG.

Sofi - Azi Deia > Sapatrans, bruxe, feminista y autonomista. Vive em Belo Horizonte, onde atualmente desenvolve estudos sobre transmasculinidades em sua pesquisa de mestrado junto ao Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG. Se interessa por desenvolver pesquisas, prosas e práticas/ações de hackerismo e sabotagem das normatividades de gênero e sexualidade. E também em realizar conexões, trocas e fortalecimento de redes coletivas como estratégias de resistência e empoderamento de sujeitxs-corpxs subalternizados pelo CIStema hetero-capitalista-racista-patriarcal-capacitista-gordofóbico-especista.

Vinícius Abdala > Psicólogo em formação pela Universidade FUMEC, com extensão em estudos sobre Gênero e Sexualidade pela UFMG. Ex-Pesquisador Jr pelo Instituto Pauline Reichstul em Direitos Humanos. Colaborador em pesquisas sobre DST/AIDS pela Fiocruz. Delegado Municipal e Estadual nas Conferências de Direitos Humanos/LGBT. 119

Psicólogo Social na Prefeitura de Belo Horizonte. Articulador Social na APROSMIG - Associação de Prostitutas de Minas Gerais.

Vitor Grunvald > Graduado em Ciências Sociais pela PUC-RJ (2005), com período de intercâmbio em Antropologia na Universidad Autonoma de Madrid (2003). É mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ (2009) e doutor em Antropologia Social pela USP (2015) com período de pesquisa no Departamento de História de Arte e Estudos da Comunicação na McGill University, Canadá. Cineasta e videoartista, tem experiência e interesse nos campos da Antropologia Visual, Antropologia da Performance, da Arte, do Corpo, do Gênero e da Sexualidade.

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ensaios

Martírio:

o genocídio lento e angustiante de um povo indígena nas lentes de Vincent Carelli

Ruben Caixeta de Queiroz

1. Martírio é um título de filme que, já de entrada, adverte o espectador para o desconforto: do começo ao fim. Não dá pra se alegrar, apenas se indignar. Não dá para não ter lado, ou fingir que “apesar de tudo” somos todos humanos e iguais, nós, os brancos e eles, os índios. Não, os índios, situados no país chamado Brasil, mais particularmente no Mato Grosso do Sul, sofrem todo tipo de preconceito, violência física e perseguição implacável pelos donos do poder e da terra. Não, os índios não estão situados num tempo passado e num espaço longínquo, por exemplo, naquele da chegada dos europeus no continente americano ou da Palestina, eles resistem e lutam para sobreviver hoje e na nossa “faixa de Gaza”. O povo Guarani Kaiowá é a prova de que o Brasil não é um país pacífico e que não respeita as diferenças e os direitos dos índios a ocuparem sua terra, para sobreviver física e culturalmente, como, aliás, diz a própria Lei maior do país. Ao contrário, sempre houve uma estratégia deliberada pelo Estado, desde o tempo do império, passando pela nova república e pela ditadura militar pós-64, até os governos mais recentes, para “civilizar” o índio e transformá-lo num cidadão brasileiro pobre, trabalhador nas fazendas ou no meio urbano, sem terra, ou, no melhor dos mundos, portador de uma carteira de identidade, de um título de eleitor, de um subemprego ou, quiçá, de uma bolsa família e de uma cesta básica.1 Ver Martírio, para mim, confirma que é impossível 1 Como disse Viveiros de Castro, em sua aula pública durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, Rio de Janeiro 20/04/2016: “Forçados a se descobrirem ‘índios’, os índios brasileiros descobriram que haviam sido unificados na generalidade por um poder transcendente, unificados para melhor serem des-multiplicados, homogeneizados,

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manter-se ambíguo em relação à luta dos índios: o Estado é contra e inimigo desta sociedade contra o Estado; o Estado foi apropriado por todos os governos (colonialistas, ditatoriais ou democráticos) e seus representantes poderosos (em geral, ruralistas e latifundiários) contra os índios. Mesmo assim, não é suficiente ouvir/ver apenas as palavras dos índios ou a luta desproporcional entre eles e os donos do Estado. É preciso ouvir e dar voz aos representantes deste Estado para ver o quanto seus corpos e palavras são cheios de ódio e dispostos a defender aquilo que acham estar acima da própria vida, isto é, a propriedade, que, na verdade, foi na maior parte das vezes “adquirida” por meio da força e da violência e/ ou por meio do esbulho patrocinado pelo Estado e ratificado pela Justiça.

2. Não dá pra não ter lado. Ainda assim, Martírio não é um filme panfletário ou só militante. É um filme de investigação, que procura se indagar sobre as origens da violência contra os Guarani Kaiowá – e sua resistência pacífica por saberem que ocupam o lado frágil e minoritário no embate contra um sistema dominado pelas forças militares, pela mídia hegemônica, pelos juízes, pelos políticos locais e nacionais, pelos latifundiários e ruralistas. Martírio dá tempo ao espectador de criar uma consciência crítica, se posicionar sem aderir incondicionalmente. Pode ser que ele pense que o passado tenha sido pior para os índios do que o presente, ou o contrário! Pode ser que ele tente achar um governo local ou nacional “menos pior” para os índios. Que Rondon, fundador do Serviço de Proteção aos Índios, em 1910, como positivista, tenha tentado retirar das missões religiosas a missão de catequizar e “civilizar” os índios, transferindo-a para as mãos do Estado. Que hoje há uma educação “diferenciada” para os índios garantida pela Constituição de 1988. Que, exatamente, depois de 1988, o Estado estaria obrigado a respeitar e proteger as terras e as culturas indígenas. Que, no governo anterior, tentou-se “evitar o conflito” dos índios contra os fazendeiros e, por isso, teria sido suspensa a demarcação das terras indígenas, em favor da concertação e de um diálogo entre as partes, ou, ainda, que o governo estaria sendo “realista” ao retomar o projeto militar de construção da hidrelétrica de Belo Monte, já que o país não podia prescindir do “desenvolvimento” em favor de alguns grupos minoritários. Ou seja, Martírio não quer ser um filme sem partido, mas sabe que a realidade é muito mais confusa do que se possa imaginar. Que

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abrasileirados. O pobre é antes de mais nada alguém de quem se tirou alguma coisa. Para transformar o índio em pobre, o primeiro passo é transformar o Munduruku em índio, depois em índio administrado, depois em índio assistido, depois em índio sem terra”.

é preciso agir logo, filmar antes que a bala seja disparada na cabeça de uma liderança indígena e que o corpo dela desapareça! Ainda assim, é apenas um filme! Urgente, imprescindível, mas um filme! Enquanto ele estava sendo filmado e montado (anos a fio), agora visto, a realidade dos Guarani Kaiowá não mudou muito – ainda que possamos nos indignar e apupar a dama da motoserra (Kátia Abreu) na sala de exibição. Precisamos fazer mais, mas Martírio é apenas um filme (um grande filme)!

3. Como disse o crítico Jean-Louis Comolli (2012), no livro Corps et cadre, “feita ou ainda a fazer, nenhuma história do cinema poderia conseguir separar a parte ficcional da parte documentária.” Por isso mesmo, Vincent Carelli (que assina a direção de Martírio junto a Ernesto de Carvalho e Tita, parceiros no Vídeo nas Aldeias) conta uma história no filme em primeira pessoa, subjetiva, narrada numa voz em off que acompanha a análise das imagens (fotografias, quadros de pintura, filmes de arquivo, filmes de ficção, reportagens televisivas, imagens feitas pelo próprio Vincent ou pela sua equipe ou pelos próprios índios em pequenas câmeras de vídeo) acerca das origens e do genocídio em curso contra os Guarani Kaiowá. E esse mesmo expediente já tinha sido utilizado em um outro filme muito semelhante na estrutura narrativa, dirigido por Vincent Carelli, Corumbiara (2009), no qual o indigenista Marcelo Santos denuncia o massacre dos índios (Akunsu, Canoê e um último sobrevivente de um povo desconhecido) perto da gleba Corumbiara, no Estado de Rondônia, um crime bárbaro fadado ao esquecimento ou tido por fantasia dos indigenistas e antropólogos envolvidos com a causa. Nessa saga, antes de tudo, é preciso encontrar os sobreviventes através de uma “busca filmada”, revelar a versão dos próprios índios, depois reconstituir as causas e os responsáveis pelo massacre, e, por fim, já que as imagens não podem ser usadas naquela situação como prova material para indiciar e condenar ou autores do genocídio, fazer um filme documentário, deixar uma versão da história. É pouco, muito pouco, num horizonte de reparação onde nós (oriundos do velho mundo) deveríamos devolver a terra invadida (não só uma imagem) ou, pelo menos, depositar fé num outro mundo (outra ontologia) tanto possível quanto de fato existiu e resiste – onde a propriedade particular não está acima da vida, onde toda diferença é bem vinda, onde, ao mesmo tempo, como disse Pierre Clastres, “toda sociedade primitiva admite a penúria para todos, mas não a acumulação para uns poucos.” Nesta trilha, acabo de descobrir, está em curso uma trilogia documentária por Vincent Carelli sobre o tempo da “conquista” e da invasão ocidental, da colisão entre dois mundo, dos massacres e genocídios aqui relatados nos

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filmes Corumbiara e Martírio, bem como aqueles previstos para o terceiro episódio: “Adeus, Capitão”, uma história sobre o povo Gavião Parkatejê e seu líder (Kokrenun, que acaba de falecer), que foram quase extintos depois dos grandes projetos na Amazônia – hidrelétrica de Tucuruí e complexo de minério de Carajás – e, enfim, logrou recuperar a autonomia política sobre seus territórios.

4. Todas essas histórias começam mais ou menos em 1986-1988, quando o indigenista Vincent Carelli começa a fotografar e a filmar a serviço da causa política e do projeto cultural dos índios, isto é, a produzir imagens com eles e acerca deles, sobretudo, em situações de “retomadas” culturais por meio de rituais, mas também da invasão de suas terras e do movimento de “retomada” dos seus territórios tradicionais. Já no final da década de noventa, Carelli se engajou nas oficinas de formação de cineastas indígenas, isto é, no projeto de transformar seus próprios representantes em sujeitos do olhar mediado pela câmera. Boa parte deste material permaneceu (e permanece) sem ser editado e, foi a partir daí, que Carelli começou a revisitar o passado não muito distante (meados da década de oitenta), do qual fez parte ativamente enquanto indigenista, além de cineasta-fotógrafo voltando a filmar novamente nos mesmos locais e, por muitas vezes, as mesmas pessoas, por vezes sem saber, como é o caso da líder guarani kaiowá Emília Romero, no episódio Martírio, quando ela é mostrada em imagem de 1988 e de vinte cinco anos depois. Carelli, assim, tece e reconstitui os fios da história dos índios e da sua própria relação com eles. A voz em off, já mencionada, em primeira pessoa, posiciona e reposiciona o seu olhar, mediado pela sua câmera, pela câmera dos próprios índios e de seus parceiros do Vídeo nas aldeias. Além disso, se vale de imagens de arquivo como forma de estabelecer um contraponto à sua própria narrativa ou de resgatar uma memória. A partir de um texto, muito provavelmente pensado e escrito antes da locução para o filme, a linha do tempo tanto em Corumbiara (2009) quanto em Martírio (2016) segue um zigue-zague, sem que haja uma evolução linear, ou que tudo seja explicado de imediato. O cineasta costura os fios da narrativa, mas exige do espectador um esforço analítico e uma reinvenção da história (no cinema, a reinvenção pelo espectador é condição para que qualquer história lhe faça sentido). Portanto, Corumbiara e Martírio fazem parte daquelas histórias de vida e de cinema entrelaçadas ao longo de uma época (décadas a fio) que fazem exatamente da maturação na longa duração a 126

condição para se constituir. Nada é de graça! A troca e a cumplicidade

entre quem filma e quem é filmado, quem narra e é narrado, isso é a própria trama do filme, tais como são as séries de filmes realizados por John Marshall sobre o povo Ju/’Hoansi (também chamado de !Kung) do deserto de Kalahari.2

5. Ainda que tome partido, Martírio não é um filme que narra apenas a perspectiva do cineasta, do seu lugar e da sua visão na história. Não é, ainda, apenas a história de um personagem, ou de um povo. Por contornos e procedimentos muito diferentes, Corumbiara e Martírio contam a mesma história de massacres dos índios no Brasil tal como se passam num outro filme extraordinário, imprescindível para qualquer um que deseja entender o país e sua bruta realidade: Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci. Neste filme de ficção (mas baseado em uma história real), o personagem Carapiru, índio Awa-Guajá do Maranhão, escapa de um massacre contra o seu povo cometido por fazendeiros e, durante dez anos, anda sozinho por mais de dois mil quilômetros, até ser capturado em novembro de 1988. Iniciado no mesmo ano de 1988, Martírio conecta os massacres dos índios Guarani-Kaiowá daquele ano e de hoje com os acontecimentos do século XVIII, quando do confronto traumático com jesuítas e bandeirantes, da perseguição sofrida por eles na guerra do Paraguai no século XIX, pela expropriação de suas terras e da sua força de trabalho a partir do final do século XIX pela Companhia Matte Larangeira, pela continuação do esbulho de suas terras pelo governo de Getúlio Vargas, pelo projeto de “emancipação” dos índios pela ditadura de 1964... até chegar e voltar aos dias de hoje. Neste sentido, Martírio parece ser um filme totalizante, isto é, que não quer deixar “nada de fora” e situar os acontecimentos atuais nesta longa história de violência e resistência.

6. Porém, essa longa história foi certamente torcida, encolhida ou cortada. Haveria outro jeito de falar ou proceder? Não. Torcida e re-enquadrada pelas lentes de Carelli, pela sua voz pausada, e, mais ainda, interrompida por muitas e potentes vozes indígenas, os planos se constituem como espaços de resistência: “podem nos matar e nos enterrar todos aqui na nossa terra, não vamos abandoná-la”; “nós pertencemos a essa terra, choramos e rezamos por ela”; “aqui estão enterrados nossos antepassados,

2 Lembremos também de outros documentários de longa duração realizados para a televisão, por exemplo, aquele, narrado em primeira pessoa, sobre a ameaça à sobrevivência física dos povos indígenas na Amazônia, Amazon Journal (1996) de Geoffrey O’Connor; e a série de reportagens para a televisão sobre a década da destruição da Amazônia dirigida por Adrian Cowell (1934-2011).

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muitos deles mortos pelas balas do branco-invasor”. Da mesma forma que o cineasta principal do filme (lembremos que há uma co-autoria de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tita) dá lugar e voz aos índios no momento da filmagem e da montagem, ele constrói seu olhar cinematográfico de forma amparada, carregada e mediada pelos companheiros de luta e resistência indigenista. Se em Corumbiara Marcelo Santos cumpriu esse papel, aqui em Martírio ele é desempenhado por Myriam Medina, Celso Aoki e Tonico Benites. São eles que primeiramente se aproximam dos Tekoha (aldeia ou terra guarani, ou “o lugar onde somos o que somos”) e das casas dos índios, falam com eles, perguntam, traduzem. Em Martírio, durante o dia e a noite, sempre ladeado de um dos seus mediadores, Carelli, filmando ou filmado, desloca-se entre um e outro acampamento dos indígenas, quase sempre acuados e confinados pelas rodovias e pelas cercas dos pastos de gado ou das fazendas de soja e cana de açúcar, quando não cercados ou emboscados pelos jagunços de fazendeiros. Outras vezes, o próprio cineasta dirige seu carro nas rodovias que cortam as lavouras e os monumentais silos de armazenamento do agronegócio.

7. Como já foi dito, não aparecem em Martírio apenas as vozes das vítimas deste terror (que produz assassinatos, suicídios e permanente pavor, não só invasão de territórios), mas também aquelas de seus algozes: deputados, políticos, policiais, servidores do sistema judiciário, jornalistas e até jagunços. Essa é a lógica e a guerrilha do filme: confrontar e revelar os dois lados e mundos em disputa (um fraco e em geral pacífico; outro poderoso e fortemente armado). Claro, mesmo quando armados de quase que simbólicos arcos e flechas, quando não de maracás, aparentemente sem qualquer eficácia para machucar ou matar pessoas, os índios são retratados - pelo lado de quem de fato detém a força e o poder - como agentes perigosos e influentes ou influenciados por mentes diabólicas ou alteradas pelo consumo de bebidas do tipo santo-daime, como funcionários da Funai e antropólogos. É verdade que a reza é uma grande força do povo guarani, capaz, sim, de uma potência nunca imaginada pela medicina de ruralistas como Ronaldo Caiado. Mas ela é pacífica, não é violenta e letal como a bala da milícia armada pelo agronegócio ou de suas vozes no Congresso Nacional. Por exemplo, desta forma cantam e rezam os Guarani Kaiowá numa das cenas do filme: Que o poder invisível enfraqueça o corpo do inimigo, impedindo o seu espírito de agir contra mim. Vou esfriar o seu coração em chamas, 128

apaziguar sua raiva com o poder do meu espírito, com a força da

minha alma, com a energia dos espíritos da vida. Vou amolecer o seu coração e o seu corpo. Minha reza vai espantar o mal que está lhe dominando.

8. A sabedoria dos Guarani Kaiowá acerca do enfrentamento de já vários séculos contra os colonizadores, encontra ressonância no seu próprio modo de pessoas pacifistas, quase budistas, na luta para ocupar e manter ocupados os Tekohá. Numa entrevista,3 Vincent Carelli narra um evento no qual os índios decidiram fazer prisioneiro um funcionário de uma usina, não antes sem considerar: “Não vamos matar ele. Primeiro, vamos deixar ele passar fome, pra ele saber como é que a gente passa fome e segundo vamos dar o cauim [a bebida sagrada dos tupi, desde os tupinambás, comenta Carelli], e esse cauim de milho vai transformar o corpo dele”. Como conclui o cineasta, amolecer o coração do inimigo, parece ser a estratégia possível. Tal estratégia talvez tenha confundido o colonizador de meados do século XIX, quando, depois de invadir suas terras, caracterizou o jeito de ser dos índios: “índole benigna e costumes pacíficos e tendências bem pronunciadas para a civilização.” Alguns séculos após a colonização, talvez os Guarani Kaiowá tivessem compreendido por antecipação uma das teses sobre o conceito de história de Walter Benjamim, no início de 1940, quando ele diz que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade.” Martírio, sem dúvida, nos demonstra que os Guarani Kaiowá viveram e vivem em estado de exceção ao longo e ao largo da história da colonização europeia de seu território. Porém, se seu território foi ocupado, não o foram sua mente e seu pensamento. Eles resistem a todo tipo de dominação, na resistência revelam sua força e sua disposição em manter controle sobre seus mundos e, inclusive, contra o Estado. Há uma cena em Martírio na qual se revela cabalmente a disputa ontológica entre dois mundos: um funcionário da justiça ou da polícia federal tenta intimar os índios de uma ocupação para aplicar uma ordem de despejo e responsabilidade, ao que se segue um diálogo entre ele, os homens e as mulheres indígenas: O representante do Estado: - A ordem tem que ser cumprida, se vocês disserem que não, tranquilo. Mas o Oficial de Justiça vai dizer: “Olha senhor Juiz - em outras palavras, mas ele vai dizer – olha Senhor Juiz, a

3 http://www.revistacardamomo.com/vincent-carelli-o-publico-revela-a-dimensaodo-que-voce-fez/ (acessado em 29 de outubro de 2016)

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comunidade disse que não ia se retirar, representada pelo líder tal, tal, tal”. Esse líder responde criminalmente. Por que? Porque ele disse “eu não vou cumprir uma ordem judicial”. E eu cumpro, a senhora cumpre, qualquer um aqui é obrigado a cumprir uma ordem judicial. – A mulher indígena: - É, mas aqui ninguém é líder. Aqui não existe líder. Aqui todo mundo é líder, as crianças... até o cachorrinho é líder. Não tem líder aqui. E se caso venha a assumir a ordem da justiça, tem que ser todo mundo, não é um só. – Na visão da senhora, a senhora não tem a visão de que isso aqui é tudo... – É tudo líder... – Não é! Tem que unificar tudo? – Claro que sim. – Mas na visão do branco aqui tem divisões. Eu digo para a senhora, dentro da Lei, existem responsabilidades. O que eu vou dizer: “Olha seu Juiz, eu preciso de tantos policiais etc., etc., etc. para ser cumprida a ordem”. E eu pergunto: ela vai ser cumprida? A senhora me entende? Ela vai ser cumprida. A senhora não vai morrer, ninguém vai morrer porque a senhora é uma pessoa que é sábia. A senhor lidera outras pessoas, e a senhora é sábia e vai dizer: “olha, pessoal, sejamos sábios, em sairmos e utilizarmos outras ferramentas, outras estratégias. Por que temos de morrer? Não gosto de falar desta palavra, sou sincero, não gosto mesmo, mas por que que a gente tem num embate, porque uma coisa é certa, por mais que a senhora diga que não, há a ordem judicial, a não ser que ela seja suspensa por outro escalão superior, em obediência ao nosso regime democrático, os senhores terão que sair. O senhor me entende? Quantos são necessários? Eu não sei. São cinco mil? Eu não sei, eu vou dizer: “olha, eu preciso de 10 mil. O Estado democrático de direito, o governo brasileiro é que vai arranjar esses 10 mil. Como é região de fronteira, há necessidade das forças armadas? Não sei. Eu vou levar essa cogitação ao meu superior. Por que a ordem vai ser cumprida. É isso que eu queria que vocês colocassem, que os senhores colocassem na cabeça. Ela vai ser cumprida. – [Um homem kaiowá fala na língua, traduzida no filme]: Ele tá colocando pressão na gente. – [Outro homem kaiowá diz]: Enquanto a gente luta pela terra, eles lutam para nos matar. Perguntam pelo líder, e é esse líder que eles matam. Pra eles não custa nada vir até aqui, atirar na cabeça dos nossos

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parentes com calibre 12, e jogar na beira da estrada. E depois, nós ainda saímos como os violentos.4

9. Como contar essa história da resistência sem ser panfletário? Martírio toma partido do começo ao fim, para concluir com uma citação de um cineasta que investigou e filmou o conhecido sistema de violência e tortura em Camboja, Rithy Panh: “Mais que criar, filmar é ‘estar com’, de corpo e alma... Tomar deliberadamente partido por acreditar que nada é imutável”. Martírio é um filme sem concessão aos que perseguiram e ainda perseguem os índios com a desculpa de civilizá-los para domar e tomar seus corpos e territórios. Por isso mesmo, creio, a estratégia de Vincent Carelli envolve uma visita e revisita aos acampamentos dos Guarani Kaiowá, num tipo de deslocamento, investigação e olhar que nos lembra aquele que guiou o trabalho de Claude Lanzmann na sua visita aos locais dos campos de concentração de judeus na segunda guerra mundial. Na verdade, os procedimentos de Carelli para acessar a memória dos sujeitos abordados diferem muito daqueles empregados no cinema de Lanzmann, já que, ao contrário do último, ele usa de forma recorrente arquivos de imagens, num mergulho no passado para desvelar as origens e a resiliência da violência contra o povo indígena, ao mesmo tempo, para desnudar a sua invisibilidade perante a sociedade nacional. Já que o espectador muito provavelmente não conhece ou sabe, é preciso recorrer ao comentário para apontar qual acontecimento (sempre ocultado na história oficial) de fato está sendo indiciado na imagem. Por exemplo, durante a apresentação de cenas cinematográficas feitas pela equipe da Comissão Rondon, Vincent Carelli faz um longo comentário: A figura do índio só vem a aparecer com a criação do SPI, o Serviço de Proteção aos Índios, em 1910. Militar positivista, Rondon, o moderno desbravador de sertões, é o seu mentor e primeiro diretor. Com o prestígio de quem liderava projetos estratégicos do país, como a Comissão de Limites e a construção da Linha Telegráfica, ele vem

4 Mais uma vez, a aula de Viveiros de Castro, aqui já citada, esclarece o ponto: “Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um povo. Ser cidadão, ao contrário, é ser parte de uma população controlada (ao mesmo tempo “defendida” e atacada) por um Estado. O indígena olha para baixo, para a Terra a que é imanente; ele tira sua força do chão. O cidadão olha para cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado transcendente; ele recebe seus direitos do alto”.

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pacificar as relações com as populações indígenas para permitir a colonização da fronteira oeste do país. Rondon admirava o trabalho civilizatório realizado pelas missões salesianas no Rio Negro, mas como positivista, ele considerava que esta tarefa cabia ao Estado. O ordenamento militar dos postos indígenas visava afastar progressivamente os índios de seus costumes. Desprestigiando os líderes tradicionais, o SPI nomeava capitães afinados com o seu projeto de assimilação cultural, que organizava suas milícias para impor a nova ordem. A escola do Posto [Indígena], assim como nas missões, teria o papel de apagar as línguas nativas e ensinar os índios a trabalhar. O SPI se torna o agenciador da mão de obra indígena, o pai-patrão dos índios. Embora de caráter humanitário, esse projeto ainda traz consigo a soberba de uma cultura etnocêntrica: nós, os civilizados, e eles, os primitivos. Segue a apresentação de um jornal cinematográfico produzido na época: “O SPI sob o pálio do pavilhão nacional, espera cumprir o seu sagrado dever de proteger e civilizar os índios brasileiros [...]”. E volta ao comentário de Carelli sobre outras cenas de arquivo: Numa classificação que ia dos índios selvagens aos que viviam em pacífica promiscuidade com os civilizados, os Guarani Kaiowá foram enquadrados nesta última. Com o intuito de inseri-los na incontornável marcha da humanidade para o progresso, a missão do SPI era libertá-los do domínio dos ervateiros, fazendo cessar o regime de escravidão em que viviam. 75% da mão de obra nos ervais era indígena na região do rio Iguatemi. O Império e a República até o momento haviam ignorado a questão territorial guarani kaiowá. O SPI delimita para eles, até 1928, oito pequenas reservas de 3.600 hectares. Naquela época, cada cidadão brasileiro podia requerer a titulação de dois lotes [de 3.660 hectares cada], mas para os 40 mil índios da região foram reservados apenas oito lotes. Dos três milhões e meio de hectares que os Guarani ocupavam, o Estado só lhes concedia meio por cento, oficializando, assim, a expropriação da quase totalidade de seu território, concentrando os índios em pequenas espaços para que fossem assimilados como trabalhadores rurais e disponibilizando suas terras para a colonização. A demarcação do SPI deu como fato que as únicas terras indígenas 132

eram aquelas para onde os milhares de índios deveriam se dirigir

ou serem levados compulsoriamente. E assim, as reservas do SPI vão se tornando áreas de exílio e confinamento para milhares de Guarani Kaiowá.

10. Martírio ergue-se a partir da necessidade de produzir uma outra versão da história, montá-la a partir do que sobrou dos arquivos feitos com a própria câmera do cineasta e daqueles que estavam escondidos nos Museus (pedaços significativos da história dos índios do Brasil - não só dos Guarani Kaiowá - na sua relação com o Estado são mostrados em Martírio), pois, como sugere Bruce Albert no seu livro em co-autoria com David Kopenawa (2015: 29), toda obra (inclusive a cinematográfica), “toda escritura etnográfica, biográfica, ficcional ou qualquer outra” é resultado de um cuidadoso trabalho de composição. David Kopenawa, aliás, nos dirige assim suas palavras na Queda do Céu (2015: 65): Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é morta e que ela foi posta lá à toa. Quero fazê-los escutar a voz dos xapiri [espíritos], que ali brincam sem parar, dançando sobre seus espelhos resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram defendê-la conosco? Quero também que os filhos e filhas deles entendam nossas palavras e fiquem amigos dos nossos, para que não cresçam na ignorância. Porque se a floresta for completamente devastada, nunca mais vai nascer outra. Todos nós, juntos de Kopenawa, esperamos também que as imagens e as palavras de Martírio sobre o sofrimento e a resistência do povo guarani kaiowá possam se espalhar, serem vistas e ouvidas bem longe - desvelando seu silêncio e invisibilidade.

11. Não dá para não tomar partido nesta guerra totalmente desigual. O quadro não pode vacilar. Não há campo e contra-campo nesta composição. Ou melhor, ao longo da história, os índios sempre ficaram invisíveis e fora de campo. Cabe agora inverter esta lógica cinematograficamente, reposicionar o olhar para trazê-los de volta para o campo, ou seja, fazer do cinema uma arma para lhes devolver a terra e quiçá a vida. Reposicionar o microfone da câmera para ouvir uma voz (uma língua, o guarani) nunca ouvida na sociedade nacional - ao contrário, sempre abafada e calada. Passar literalmente a câmera (ainda que pequena e pouco potente) para as mãos dos índios, para que ela possa estar ligada, no lugar e na hora certa do ataque do inimigo e, quem sabe, assim, evitar mais um massacre. Luta

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desigual. Não há como escolher o menos pior. Todos os que estão no jogo do Estado são contra a lógica da sociedade contra o Estado dos Guarani Kaiowá. Os últimos querem se reconectar à terra à qual pertencem. Os inimigos querem lhes tomar a terra (pela força ou pelo “papel” expedido por alguma jurisdição do governo, tanto faz). Trata-se de recusar a voz daqueles (inúmeros governantes e ruralistas) que insistem em pronunciar as palavras “progresso”, “civilização”, “desenvolvimento”, “crescimento” e, por fim, não menos importante, “propriedade”. Martírio é um objetor de “progresso” e “crescimento”5 por achar que é preciso ficar do lado do povo de Gaia e dos terranos (dos Guarani Kaiowá) na luta contra o povo mercadoria (comedores de gente, floresta, água, espíritos). Martírio é uma potente “caixa de ressonância” contra o genocídio em curso contra os Guarani, ou uma máquina (cinematográfica) que faz com que a experiência do cineasta no mundo indígena nos leve a pensar, sentir, imaginar, agir para que um “outro mundo seja possível”. Ou melhor, que outro mundo possível (aquele dos Guarani Kaiowá) possa ser deixado a existir e perdurar. Ainda nas palavras de Viveiros de Castro, em sua aula já citada: Os índios são os primeiros indígenas do Brasil. As terras que ocupam não são sua propriedade - não só porque os territórios indígenas são “terras da União”, mas porque são eles que pertencem à terra e não o contrário. Pertencer à terra, em lugar de ser proprietário dela, é o que define o indígena. E nesse sentido, muitos povos e comunidades no Brasil, além dos índios, podem se dizer, porque se sentem, indígenas muito mais que cidadãos. Não se reconhecem no Estado, não se sentem representados por um Estado dominado por uma casta de poderosos e de seus mamulengos e jagunços aboletados no Congresso Nacional e demais instâncias dos Três Poderes. Os índios são os primeiros indígenas a não se reconhecerem no Estado brasileiro, por quem foram perseguidos durante cinco séculos: seja diretamente, pelas “guerras justas” do tempo da colônia, pelas leis do Império, pelas administrações indigenistas republicanas que os exploraram, maltrataram, e, muito timidamente, às vezes os defenderam (quando iam longe demais, o Estado lhes cortava as asinhas); seja indiretamente, pelo apoio solícito que o Estado sempre

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5 Estou aqui me referindo à analogia que Isabelle Stengers (2015: 15) faz entre as expressões “objetores de crescimento” e “objetores de consciência”, esta última designando “aqueles que se recusam a agir ou a participar de atos que considerem ferir suas convicções religiosas, políticas ou éticas, correndo o risco de desobedecer a lei.” [Nota do editor do livro de Stengers].

deu a todas as tentativas de desindianizar o Brasil, varrer a terra de seus ocupantes originários para implantar um modelo de civilização que nunca serviu a ninguém senão aos poderosos. Um modelo que continua essencialmente o mesmo há quinhentos anos.

12. E, no entanto, Martírio, ao tomar o inevitável partido do lado dos índios, não é um convite à adesão simplista. Como disse Isabelle Stengers (2015: 101), numa caixa de ressonância, “trata-se de suscitar algo bem diferente de adesão - é preciso, antes, que haja ruído, resistência, protesto”. Seria simplista dizer que todo não-índio ou que todo representante do Estado é insensível à causa indígena (a causa está cada vez mais perdida, é verdade, mas há ainda quem se indigna com a situação dada). Neste sentido, Martírio não se absteve de acompanhar e mostrar o relato emocionado do Procurador Geral da República, Aristides Junqueira, a partir da visita que fez às áreas retomadas pelos Guarani Kaiowá em 1994: Eu vi aqui pessoas velhas e crianças, essas pessoas nasceram em algum lugar do território nacional. Só que no Brasil não se sabe onde colocá-los, porque deles se tomaram tudo, tudo, tudo... Em algum lugar eles nasceram, alguma terra eles tinham, mas não é em lugar nenhum. [Digo isso] porque com quem a gente conversa, se diz que nunca houve índio por aqui. Parece até que esse pasto pro nelore, pro gado nelore, já está aqui desde o princípio do século.

13. Isso não é tudo, foi preciso abrir espaço no filme para que o próprio corpo do inimigo pudesse esgoelar (e revelar) a “consciência” fascista a propósito da suposta manipulação de outras mentes! Diz a Senadora Kátia Abreu (quando ainda era do PSD, antes de ser Ministra), primeiramente no Congresso Nacional, depois num leilão para arrecadar fundos para a organização da luta dos fazendeiros contra os índios: Amigos, nós levamos 10 anos para vencer o MST, nós levamos 15 anos para vencer o Código Florestal. E agora é a questão indígena. Os nossos adversários, muitos deles ocultos, não se cansam de armar e inflar armadilhas contra o setor agropecuário, que mais ajuda a economia nacional. A única palavra que eu tenho a dar para vocês, é que hoje na CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), na Frente Parlamentar da Agricultura, entre tantas ocupações que nós temos de problemas no Brasil inteiro, mas pra nós, hoje, não tem nada mais importante de solucionar que a questão indígena. Nós vamos instalar a

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PEC 215, antes do final deste ano, já temos a promessa da instalação da Comissão da PEC 215, porque nós queremos puxar para o Congresso Nacional a definição das terras indígenas no país. Terra demarcada não pode ser ampliada, quem disse foram os ministros do Supremo Tribunal Federal. Esse é um movimento manipulado, organizado contra a produção brasileira. Nós já tivemos um dia o MST. Depois nós tivemos o Código Florestal. E agora a questão indígena. Nós só queremos perguntar aos brasileiros, nossos amigos brasileiros, irmãos: quando os homens e as mulheres do campo terão paz para trabalhar? É a única coisa que nós queremos, nada em troca. Não queremos medalhas pelo PIB, não queremos subir no pódio pelo PIB, nós só queremos paz.6 14. Diante da voz do inimigo, grossa e poderosa (estridente nas caixas de som do parlamento em Brasília ou em algum sindicato da classe ruralista), exige-se um corte para um plano negro ou um contraponto da resistência indígena. Desta forma, discursa um líder dos Guarani Kaiowá durante a ameaça de despejo de um Tekoha: Não temos dinheiro. Não temos nada para oferecer ao fazendeiro. Mas temos coragem suficiente para derramar o sangue que corre em nossas veias por essas terras. Até que essa terra seja nossa. Nós estamos em pé, mas cheirando vela ao nosso redor. Qualquer momento nós podemos perder a nossa vida. E aí o fazendeiro tem dinheiro, tem recurso para ir lá falar: “o índio morreu à toa, o índio é vagabundo.” Puxa o livro, se nós índios dependíamos dos bancos, dependíamos do governo para sobrevier quando era tudo mato? Nós não dependíamos de ninguém para sobreviver. Nós não precisávamos pedir terra, nós não precisávamos pedir cesta básica, nós não precisávamos pedir proteção porque nós tínhamos tudo dentro da natureza. E o não-índio veio, tirou tudo da gente, e agora somos nós que somos vagabundos? Somos nós os invasores? Nós não somos invasores! Nós queremos o que é nosso! Quanta gente morreu?

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6 Não precisa, Martírio não interfere na fala da Senadora Kátia Abreu. Mas aqui cabe falar: o trabalhador do campo (muitos deles em situação análoga à da escravidão) é quem trabalha, o proprietário da terra (a classe representada pela Senadora, presidente da CNA), agricultor ou produtor rural (eufemismos para latifundiário ou oligarquia rural), na verdade, explora a força de trabalho e os recursos naturais, além de obter subsídios do Estado, para obter lucro – só isso!

Quanta gente derramou sangue? Quanta gente se esparramou por causa da violência contra os povos indígenas, e recuaram para uma área pequena? Porto Lindo, hoje, cinco mil índios ali dentro, têm 1.800 alunos estudando. Nascem 280 crianças por ano. Mil e seiscentos hectares de terra para cinco mil índios! Isso é muita terra? A própria necessidade obrigada a gente ocupar essa terra. Se for o meu destino, se o meu destino Deus escolheu para mim morrer na mão de pistoleiro, à bala, eu vou morrer à bala lutando pela terra.

15. Corte para cena no Congresso Nacional, na reunião da Comissão da Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara. Discursa o Deputado Luiz Carlos Heinze (PP-RS): Senhora Ministra [Gleisi Hoffmann, presente na reunião], se nós desta Casa e o Executivo não tomarmos uma providência, estão aqui criando nações yanomamis, nação guarani e tudo quanto é nação. Aqui chega nessa terra, o rei da Noruega, que financia ongs, que financia o próprio Cimi, o Cimi mancomunado com a Funai e mancomunado com ongs antropológicas e ongs internacionais, estão avançando encima do Brasil. Os Estados Unidos da América do Norte, a poucos meses atrás, mataram Saddan Hussein, o interesse era petróleo. Quem dirá que amanhã, estas ongs, este rei da Noruega e outros tantos mais, possam vir fazer a mesma coisa aqui no Brasil? E quem vai impedir? Quem vai impedir que se faça isso? Senhora Ministra, o poder executivo não pode se dobrar à pressão de índios que ameaçaram se suicidar...

16. Vários políticos e grandes donos de latifúndios (os tais produtores rurais) discursam durante um evento que acontece numa cidade do Mato Grosso do Sul, intitulado eufemisticamente de Leilão da Resistência7: É o nosso patrimônio, é a nossa poupança, com isso eu quero dizer a vocês, vocês conseguiram hoje algo inédito no país. Quando se faz uma reação, uma mobilização, é uma fase, é um mote, e vocês construíram aqui no Mato Grosso do Sul, a palavra que encaixa corretamente, a resistência, a resistência significa o momento em que você é atingido, 7 Este evento tinha originalmente por objetivo arrecadar dinheiro para contratar mais jagunços para os fazendeiros enfrentarem os índios, mas, depois de embargado pela Justiça por caracterizar formação de milícia, sua pretensa finalidade passou a ser arrecadar fundos para financiar ações judiciais.

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você está reagindo a uma agressão. Quem vai poder dizer ao cidadão que quer continuar a sua atividade aqui, trazer os seus filhos, que nós [não] sabemos até quando chegará mais um novo antropólogo na sua propriedade rural, para dizer que ali, tomando santo daime, teve um sonho também que tinha índios naquela região. [Senador Ronaldo Caiado, DEM-GO] Se locupletar, roubar, profanaram nossas instituições, desmoralizaram tudo aquilo que nós acreditamos. A propriedade é a coisa mais sagrada que o ser humano tem. A propriedade é aquilo que motiva o cidadão para viver. E nós temos uma missão: zelar para a nossa propriedade, porque quem não cuida do que é seu não merece tê-lo. [Proprietário-Político não identificado] Vocês estão organizando este movimento para defender as propriedades, os oitenta processos que vocês têm aqui no Mato Grosso do Sul, os trinta processos que eu tenho no Rio Grande do Sul, no Paraná, em Santa Catarina, em Roraima, em qualquer Estado, vão ser mantidos, e vocês vão ter que aguentar índios invadindo, e a Polícia Federal e a Força Nacional, não lhes dando proteção. E essa questão é ideológica, quando no governo da Presidente Dilma tem alguém que diz que é desenvolvimentista, leva o Brasil pra frente, leva a produção, tem no Palácio do Planalto um ministro da Presidente Dilma, chamado Gilberto Carvalho, que aninha no seu Gabinete índios, negros, semterra, gays, lésbicas [tudo que não presta]. A família não existe no Gabinete deste senhor. [Deputado Luiz Carlos Heinze, PP-RS]

17. Na cena anterior, depois do discurso do deputado, o público do leilão aplaude de pé. Segue-se um corte para o pátio de uma aldeia do povo Guarani Kaiowá: som de canto de galo, luz fraca da lua pouco ilumina a cena. Na madrugada e no amanhecer, um velho carrega uma porta de bambu. Em seguida, faz uma pequena reza ou benzimento. Uma menina varre o pátio da aldeia. O comentário de despedida do cineasta segue essas imagens e as de um ritual: Em quarenta anos de indigenismo, convivi pouco com os Guarani Kaiowá, mas eles me marcaram profundamente por sua coragem e espiritualidade. Numa das últimas filmagens na década de 1990, registrei um batizado de crianças, o curumim-pepî. Antes da partida, 138

um grupo sai da casa de reza, entoando um canto dos céus para

abençoar a nossa viagem, tive que conter a emoção para firmar a câmera. Mas com um quilômetro de estrada, não aguentei, parei o carro, desci, e chorei convulsivamente. Chorei de emoção diante da beleza de seus mantras, do carinho com que tratam os seus aliados, da sua alegria de viver para além da penúria material em que vivem, do desprezo e do ódio que os cercam, da violência que sofrem. Deste dia em diante, toda vez que deixo uma aldeia, e não foram poucas, sou tomado pela mesma comoção.

18. Corte para a encenação da propaganda de uma empresa de segurança (na verdade, uma milícia armada) da qual os fazendeiros da região contratam serviços para proteger suas propriedades: depois de mostrar em primeiro plano um brasão (uma caveira sobreposta a duas armas), um atirador é revelado em ação disparando dois ou três tiros. Corte para a vida real e além da propaganda: os próprios índios filmam um ataque de pistoleiros e jagunços (os mesmos da empresa de segurança?) a um acampamento indígena. Fim do filme. Pausa nesse martírio.

Referências Albert, Bruce & Kopenawa, Davi. 2015. A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Cia das Letras. Comolli, Jean-Louis. 2012. Corps et cadre: cinéma, éthique, politique. Paris: Verdier, 2012. Stengers, Isabelle. 2015. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2015. Viveiros de Castro, Eduardo. 2016. Os involuntários da pátria. Aula pública durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, Rio de Janeiro 20/04/2016.

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Maracâmera – o tekoha contra o capital

Leandro Saraiva

Se Jean Rouch inventou o cine-transe, fazendo de sua câmera na mão um personagem ritualizado, como se vê em sua dançafilmagem, sem cortes, em Les tambours d´avant, Vincent Carelli, em Martírio, faz de seu cinema – câmera e montagem – um instrumento parceiro do maracá dos pajés. Vincent busca, pelo corpo e fala dos vivos, os espíritos dos mortos, para revelar, sob a terra árida dos desertos de soja do Mato Grosso do Sul, a presença do tekoha – o território de vida Guarani-Kaiowá. Sua visão convoca e entretece, em torno da teia mortal, sólida e pesada, de imagens do capital – caminhonetes, rodeios, colheitadeiras, monoculturas, bancada ruralista, pistoleiros – a teia diáfana e profética da vida tradicional dos donos (no sentido indígena de mestre e cuidador) da terra, feita de corpos e espíritos. O filme começa com imagens feitas por Vincent em 1988, de um Jerokyguasu, as assembléias político-espirituais que deram origem ao atual movimento indígena, e avança daí para o presente, buscando – de um modo que lembra Cabra Marcado para Morrer – seus antigos conhecidos, os reencontrando envelhecidos, ainda mais sofridos, mas ainda, e sempre, de pé. E a partir destes encontros, que narram a resistência épica do povo indígena do Mato Grosso do Sul, em sua marcha de quase trinta anos, o pajé Vincent chama espíritos mais antigos, mergulhando nos primórdios daquela fronteira brutal. Fronteiras costumam fornecer um ponto de vista privilegiado para entender processos históricos, e Martírio consegue dar forma

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cinematográfica ao processo de formação nacional, que se confunde com o massacre indígena. O passado emerge na narrativa, pontuando e pondo em perspectiva o presente trágico, no qual 12 mil Guarani-Kaiowá, de um total de mais de 50 mil, vivem em situações de franca violência, em acampamentos de retomada, resposta desesperada ao conluio entre o poder público e o agronegócio, enquanto outros 40 mil ou estão nas superpopulosas reservas-gueto, ou, ainda, vagam pela região, desgarrados, sem teto ou direitos. O cinema de Vincent, ao longo das décadas de trabalho do Vídeo nas Aldeias, costuma se fazer pela presença (“nas” aldeias), num corpo a corpo, junto aos indígenas, e volta e meia, cara a cara com seus inimigos. Este cinema de vivência e urgência, em Martírio, alcança uma dimensão a mais, de memória reflexiva, na qual se amalgamam a memória viva, dos velhos, e a história oficial do Mato Grosso do Sul, garimpada em arquivos públicos de imagens. A dança de Martírio se faz na dialética entre os testemunhos da luta do presente e dos últimos 25 anos, e imagens da Guerra do Paraguai, da concessão imperial das terras da região à Companhia Matte Laranjeira (o primeiro “agronegócio”), da “integração” (ou apagamento indígena) promovida pelo SPI, da modernização da colonização e das usurpações, com a Marcha para o Oeste de Vargas, e da gerência militarizada e ditatorial da “questão indígena”, com a FUNAI, até chegar à onda do atual agronegócio latifundiário e exportador, a partir das migrações dos fazendeiros sulistas. Jornada ao coração das trevas da história, que evidencia como, a cada etapa de expansão do capitalismo brasileiro, os Guarani-Kaiowá foram submetidos a metamorfoses – soldados, trabalhadores rurais tutelados em processo de integração, até à atual negação da própria existência –, e a cada passo resistiram. Um lance magistral de montagem mostra bem o princípio de composição de Martírio: das imagens do campos abertos pelos próprios índios, com o fim do arrendamento das terras para a Matte Laranjeira, salta-se para o atual mar de soja, no meio do qual surge uma pequena ilha, com um acampamento de retomada: é a imagem da terra feita capital, em tudo oposto ao tekoha. A história oficial dos arquivos, remontada em relação com as imagens dos sucessivos encontros de Vincent com os Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul, produz uma história a contrapelo. O resultado é um acontecimento cultural e político, que extrapola o terreno puramente cinematográfico. Entre a profecia do tekoha e o processo do capital, a dialética 142

de Martírio compõe uma arqueologia cinematográfica. Algo semelhante,

talvez, ao que Benjamin vislumbrou com sua ideia de imagens dialéticas, capazes de romper a teleologia do progresso da civilização burguesa, revelando a barbárie e ruína a ela subjacente. Ou, como disse Heiner Muller, outro pajé dialético, “é preciso aceitar a presença dos mortos como parceiros de diálogo ou como destruidores - somente o diálogo com os mortos engendra o futuro”. O choque provocado – que nos faz imaginar o impacto de Noite e Neblina, para os europeus do pós-guerra – nos joga na cara a história de sangue sobre a qual nosso país está construído, desde “sempre”. O nosso sempre, de senhores brancos do mundo e da história. Não há fuga possível: se alguém não quiser suportar o peso desta história, que não assista a Martírio. Quem assistir terá que conviver com o terror que nos fez e faz, com o abismo que nos separa de qualquer decência social mínima.

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Retomada: teses sobre o conceito de história

André Brasil

1. Mbaraka Sob a imagem ainda abstrata, ouvimos o canto, seu desenho circular, ritmado pelo bater dos pés: as vozes das mulheres cuidam para guardar uma leve defasagem em relação ao coro dos homens. A abertura do enquadramento permite então perceber o Mbaraka, que se agita em primeiro plano, diante do fundo noturno. Agora, são vários os chocalhos, empunhados pelos rezadores que cantam em uma linha transversal ao quadro. A manhã dá seus primeiros sinais, nos sugerindo que o grupo atravessou a noite em vigília. O close no rosto de um rezador leva a intuir um parlamento que liga visível e invisível. Martírio (2016), de Vincent Carelli, inicia-se pelas imagens feitas pelo diretor, ainda em 1988, quando esteve no Mato Grosso do Sul para acompanhar o Jerokyguasu, a grande reza guarani -kaiowá: como nos diz a narração, a consulta aos espíritos durante a noite indicava o rumo das discussões políticas do dia seguinte. Ao nos mostrar o encontro entre lideranças, o filme não desfaz nossa ignorância sobre o debate em curso: compartilhamos com Carelli, que filmou a conversa “às surdas”, o desconhecimento da língua ali falada, identificando uma ou outra palavra em português, entre elas esta: “capitalismo”. Figura-se assim o sentido de um movimento “invisível para o país”, que o diretor acompanhou por cerca de 10 anos: a retomada das terras pelos Guarani-Kaiowá, que vinculava, de modo indissociável, a luta política ao trabalho espiritual, em uma experiência que hoje chamaríamos de cosmopolítica. Em um mesmo

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gesto, os chocalhos dos rezadores movem o cosmos e a história, fazem atravessar a política pelos sonhos, ligam a vida dos homens àquela dos espíritos, uma a vibrar na outra.

2. Deserto Destas cenas iniciais, que nos convidam a acompanhar a mínima variação dos rostos, dos gestos e dos cantos, a cuidadosa enunciação das palavras, passamos ao trânsito ininterrupto dos caminhões e ao travelling pelo interminável deserto de soja. Recorrente em Martírio, esse travelling confere materialidade e, ao mesmo tempo, cifra conceitualmente, o modo como o imaginário expansionista do agronegócio confina e cerceia a vida dos índios, empurrando-os para as margens estreitas das rodovias, que eles atravessam com dificuldade, levando suas crianças pelas mãos.

3. Pedagogia do corte Não sem espanto, vemos então o discurso da senadora Kátia Abreu, bandeira do Brasil ao fundo, a nos indagar quando terão paz os fazendeiros. À cínica retórica ruralista, Martírio responde com um corte, digamos,

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godardiano: sem mais, a cartela com o título do filme vem interromper o discurso, como a interpelá-lo. A elipse que o corte abriga dá o tom da pedagogia do filme: quando o direito à propriedade se impõe ao direito à vida, a paz de uns estará inelutavelmente ligada ao martírio de outros. Ou, na conhecida fórmula benjaminiana, não há imagem do progresso que não seja, ao mesmo tempo, imagem da barbárie.

4. Reencontros Como nos mostra Clarisse Alvarenga (2016), Corumbiara (2009), filme anterior de Carelli, se move pela cena equívoca do “contato”, cena que não cessa de se atualizar e de espalhar vestígios dos desastres que produz. Lá, o cineasta hesita em filmar, se arrisca, recua (lembremos da sequência do “índio do buraco”, escondido na cabana de palha, lança aguda, a recusar o contato com os brancos, entre eles, aquele que empunha a câmera). São os próprios termos da relação que estão em jogo, em uma aliança ainda por se construir ou por se recusar. Agora não há hesitação: trata-se, afinal, de rever companheiros de luta, buscar velhos aliados, reencontrar inesperadamente aqueles com quem se conversou há pouco, ou há muitos anos. A história que Martírio nos conta é feita de desterros, de reencontros e de retomadas. É assim desde o começo do filme, quando Carelli reencontra os companheiros Celso e Myriam, que o ajudarão nas conversas com os Guarani-Kaiowá. O casal, por sua vez, se alegra ao rever seus amigos José Benites e Emília Romero, sobreviventes das primeiras invasões dos fazendeiros na região do Jaguapiré. E ainda, mais adiante, somos tocados pelo reencontro de Carelli com Velho Ambrósio em Pyelito Kue, local de onde foi expulso em 1950 e para onde manifestava o desejo de regressar quando exilado na reserva de Sassoró. 147

Reencontrar pessoas e imagens, reencontrar pessoas nas imagens, fazer as pessoas reencontrarem imagens da própria história: esse parece ser o procedimento do filme, sua tessitura mesma. Vem daí, quem sabe, a força afetiva e política deste corte seco, que aproxima a imagem de Emília Romero, já velhinha, quase cega, e seu rosto mais jovem, redescoberto por Vincent Carelli em meio a um registro que fez em 1994. Entre uma e outra imagem, um longo arco temporal; a terra, na qual está enterrado o avô; a história de despejos e de retomadas; a expressão, ao mesmo tempo firme e afetuosa.

5. “Estar com” Essa história feita de retornos e reencontros, que dispersa seus traços pelos arquivos de imagens, é a história de um povo cuja errância não contradiz a estreita ligação com a terra, com a qual mantém relação espiritual, ética e estética. Afinal, para os Guarani, a terra é um corpo que respira; que fala, sussurra, que vê e se adorna. Corpo com o qual mantêm relação de reciprocidade (diz um ancião que a árvore que dá bons frutos deve ser plantada por outros, que a deixam para aqueles que estão por vir).1 Se o discurso dos ruralistas distorce deliberadamente a fórmula do nomadismo para usá-la contra os índios (ao dizer que eles não se fixam à terra e, portanto, não podem ser donos dela), o filme faz o trabalho inverso: retorna aos locais, refaz os percursos, recolhe os testemunhos e reencontra os traços que religam os sujeitos à terra, em um vínculo que não se define pela propriedade. Não se trata da circunscrição de um domínio – o próprio –, mas de estabelecer trocas e traçar relações com o entorno. Se as linhas da propriedade são limites, aqui os vínculos com

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1 Devo essa sugestão a Josely Vianna Baptista. Em busca do tempo dos longos sóis eternos. In: Roça Barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

a terra se dão por linhas de errância e de avizinhamento, cujos traçados não se abstraem da experiência vivida e cuja circunscrição é centrífuga, excêntrica, atraída pelas relações com o fora. Não à toa, acompanhando a luta dos Guarani-Kaiowá pela demarcação de suas terras, a câmera de Carelli e de Ernesto de Carvalho (que divide com Tita a co-autoria do filme) precisa desrespeitar os limites da propriedade, atravessando com eles cercas, fronteiras e espaços institucionais. Ganha todo sentido aqui a citação de Rithy Panh que encerra Martírio – “filmar é ‘estar com’, de corpo e alma”: adentrar a terra retomada; esperar o barqueiro sob a chuva fina, atravessar o rio; percorrer a plantação de soja para descobrir ali a roça rara de Bonifácio.

6. Cenário da resistência A roça, nos diz a narração, é um verdadeiro “cenário da resistência” Guarani-Kaiowá. A mandioca e as bananeiras de Bonifácio persistem, brotando resilientes do solo coberto pela soja. Essa persistência demonstra como, ao contrário da perspectiva cristã que projeta o paraíso além desta vida, yvy marã’ey, a terra sem males que move os Guarani em suas buscas, deve nascer de um trabalho terreno: em meio ao deserto de soja, cultivar a roça é como cuidar de um corpo que adoece, curando-o para o bem viver (ñande reko).

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7. Narrar, participar São vários os caminhos que ligariam Martírio à herança de Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Como lembra Victor Guimarães em seu belo texto sobre o filme, ambos, Cabra e Martírio (assim como Serras da Desordem, de Andrea Tonacci) assumem a responsabilidade de edificar uma contra-narrativa de ampla envergadura histórica.2 Não teríamos aqui como tirar consequências dessa comparação, mas um ponto mereceria atenção: ambos os filmes se apresentam, cada qual a seu modo, como uma resposta cinematográfica ao impasse que a história nos impõe, impasse que nos levaria a opor, como inconciliáveis, os gestos de narrar e participar (para narrar devo me distanciar e “perspectivar” o acontecimento; para participar devo me lançar ao interior do acontecimento, adiando, portanto, a tarefa de narrá-lo). Aqui também Vincent Carelli alia-se aos Guarani-Kaiowá para recusar essa fronteira, demonstrando como narrar pode ser um gesto de engajamento e como se pode passar de um a outro, da narração à intervenção e desta de volta à narração, tornando indissociáveis esses gestos, sem os quais a experiência histórica não se constitui enquanto tal. Ao trabalho de pesquisa nos arquivos da história; ao trabalho de observação e escuta do testemunho dos Guarani-Kaiowá, e ao trabalho de narração e comentário às imagens, o diretor acrescenta a tarefa de engajar-se, implicar-se e intervir no curso dos acontecimentos, recusando-se a respeitar os limites da cena, para adentrá-la e se posicionar em seu interior. Na visita às comunidades de M’barakai e de Pyelito Kue, depois de uma fala desesperançada de Celso, Carelli pede a palavra: “como Celso tá falando, nós não somos autoridade. Mas, se depender das autoridades, vocês têm que tomar a frente. E é importante que as imagens, a fala de vocês cheguem nas cidades”. Ao não se conter e lançar-se em cena, ele acusa a percepção de que narrar a história é intervir em seu curso e de que a intervenção no presente faz parte da narração que dele se produzirá. Ao final do filme, o gesto máximo dessa postura: depois de voltar a Pyelito Kue, onde o grupo havia ocupado a sede da fazenda, e de testemunhar as marcas de bala, resultado dos ataques dos pistoleiros, Carelli e seus aliados retornam uma vez mais, agora trazendo uma câmera, que será deixada para a comunidade. Como se ao cinema se exigisse tarefa mais urgente.

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2 GUIMARÃES, Victor. Que fazer? In: Revista Cinética, 28 set. 2016. Disponível em http://revistacinetica.com.br/nova/que-fazer.

8. Encontrar a palavra3 O filme reafirma uma crença na palavra, em sua possibilidade. No momento em que o martírio do povo Guarani e Kaiowá, parece não encontrar mais palavras para designá-lo – dada a situação de etnocídio a que estão submetidos os índios – o movimento de Martírio é oposto: acreditar na palavra, reencontrá-la ali, nos locais em que ela se mistura à luta; tomá-la como testemunho e como intervenção no presente. Abrindo-se ao testemunho de uma luta em curso, o filme novamente aproxima, torna intercambiáveis narrar e intervir. Por isso mesmo, os testemunhos são sempre situados: ao mesmo tempo em que observa e escuta com atenção, a câmera está disponível a percorrer o território com os sujeitos para com eles buscar os vestígios dos massacres, reencontrar os cemitérios onde enterraram seus ancestrais, acompanhar os cantos que, novamente, religam testemunho histórico e palavra mítico-poética. Se as palavras não devem ser dissociadas dos espaços de onde nascem é por conta de uma mútua implicação: de um lado, situada e incorporada, a palavra ganha a força da experiência que tem na terra seu lastro e seu sentido. De outro lado, as falas são capazes de transfigurar o espaço visível, fenomênico, do filme, fazendo-o atravessar por imagens que o testemunho ou o canto evocam. Dessa mútua transfiguração – da palavra pelo espaço e do espaço pela palavra – parece vir a força do testemunho de Damiana, cacique de Apyka’i que, há 12 anos, acampa à beira da estrada, enfrentando uma luta desigual para retornar ao seu tekoha. Ela nos conta sobre a história do lugar, lembra o despejo que a comunidade sofreu pela usina São

3 Empresto essa ideia ao curso que vem sendo ministrado na UFMG, no âmbito do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, denominado Ojuhu Ñe’e/Mbopaje Ñe’e – Encontrar a Palavra/Encantar a palavra. Em parceria com a professora Luciana de Oliveira, o curso vem sendo ministrado pelos Guarani-Kaiowá Daniel Vasquez, Genito Gomes e Valdomiro Flores.

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Fernando, que destruiu a trator a roça de milho, feijão, arroz e mandioca; narra o assassinato de sete parentes, entre eles dois filhos. Então, toma seu mbaraka e canta para o dono da vida, para o dono do céu, o dono da terra e da água. “O brilho do sol e nossas rezas os brancos nunca poderão impedir.” O gesto de Damiana prolonga-se em vários outros, tantos deles por mulheres que dividem a luta com os companheiros, lideranças assassinadas pelos pistoleiros. Gesto assertivo, de afirmação e de interpelação, ele também parece ligar o plano histórico ao mítico, como a convocar para a luta terrena a companhia dos deuses.

9. Medida do insustentável A testemunha, nos diz Jeanne Marie Gagnebin, não é somente quem viu com os próprios olhos, mas também “aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro”.4 A equipe de Martírio assume a tarefa da testemunha. Aquele que porta a

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4 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história, testemunho. In: Gagnebin. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 57.

câmera observa, escuta, se avizinha, é aliado, sem deixar de reconhecer-se estrangeiro ao mundo que filma. A câmera é ao mesmo tempo dispositivo de escuta e de enquadramento; de aproximação e de distanciamento; de afinidade e de diferenciação. Assim, a força dos testemunhos encontra no enquadramento, não apenas abrigo, mas transformação fílmica: não se trata, portanto, de uma fala auto-evidente. É preciso que a palavra se ligue ao espaço, aos percursos pelo espaço, que suas modulações encontrem na câmera ao mesmo tempo acolhimento e elaboração: acolher o testemunho é encontrar a medida do enquadramento, a distância a se tomar, o ritmo do movimento da câmera ditado pelos corpos, pelas caminhadas, pelos cantos e pelas danças. Se a gravidade de cada testemunho, de cada morte, de cada lamento e de cada reivindicação é motivo de atenção, sua elaboração dramática – a ênfase que a modula – nunca demasiada. O modo de filmar, seja por Vincent, seja por Ernesto, ao mesmo tempo em que transforma a experiência em filme, retira da própria experiência a medida sensível dessa transformação. Se, a começar pela narração em voz over, tudo no filme parece se esforçar por encontrar essa medida, ela não está dada a priori: ainda que os enquadramentos sejam sóbrios e ainda que a voz seja clara e determinada, variam os tons e os efeitos que produzem. Do tom pedagógico, que retoma os arquivos da história do país para reposicioná-los, ao comentário militante, que analisa com parcialidade a situação política, passando pelo confessional que, novamente sem arroubos, expressa quase em segredo para a câmera o insustentável da situação.

10. O rosto e o coletivo São poucos os planos-detalhe em Martírio. Passa-se dos coletivos aos corpos e destes aos rostos. Uma breve galeria deles e, novamente, a medida é a da experiência da qual são provisoriamente recortados: um ritual, um testemunho, um lamento, um enfrentamento. O close, contudo, nunca será recurso dramático, não se enfatiza o rosto para reiterar seu sofrimento. Muitas vezes, os rostos estão pensativos, a participar de uma reunião em que são diretamente implicados. Ali vemos rostos que talvez não nos vejam, compenetrados em definir os rumos da própria luta. Vez ou outra, um ou outro nos interpela; cada qual a seu modo, consciente ou inconscientemente, endereçam um olhar ao futuro da imagem. Diante destes olhares serenos, pensativos, consternados, esquivos, altivos, vulneráveis, nos perguntamos de onde retiram sua força. 153

Se por um momento, estes rostos nos olham, ainda sem nome, inscrevendo no filme sua inapreensível singularidade, não demora e eles serão devolvidos a um conjunto de outros rostos, a uma assembleia, a uma dança, a uma manifestação, a um ritual de guerra.

11. Tradução A clareza de propósitos que caracteriza o projeto do filme não desfaz totalmente o desconhecimento que permanece em relação à experiência política e cultural ali implicada. A despeito da lúcida generosidade e, para alguns, do didatismo que marcam Martírio, preservar essa opacidade e esse não-saber será, no filme, um modo de reafirmar a autonomia e a autoafirmação dos Guarani-Kaiowá. O fato é que a profunda elaboração histórica a que o filme se dedica, valendo-se para isso da retomada dos arquivos, acaba por coincidir com o diagnóstico feito pelas lideranças, ainda em 1988. É o que percebe Carelli ao traduzir, muitos anos depois, os registros da reunião que filmara “às surdas”, apresentada sem tradução no início do filme. Ali, constatamos a acuidade da análise histórica feita pelas lideranças: na conversa, percebese a consciência que guardam em relação ao Estado, desde quando o 154

Serviço de Proteção aos Índios (SPI) leva adiante o projeto de progressiva

“desindianização” e integração dos índios ao sistema de trabalho. “Nós, índios, estamos envolvidos no capitalismo”, nos diz uma das lideranças, e continua: “É por isso que eles nos acusam de ser aculturados”. Ao que o companheiro responde: “eles vão entender que não somos aculturados. Nem brancos, nem brasileiros. Resistiremos se estivermos na nossa terra retomada”. Estamos em um momento posterior ao Projeto de Emancipação formulado pelo ministro do governo Geisel, Rangel Reis (que visava com a tal “emancipação” a extinção da condição de indígena e a liberação das terras ocupadas pelos índios para o mercado), e próximos ao fortalecimento da luta indígena com emergência de importantes lideranças, entre elas, o Kaiowá Marçal de Souza, brutalmente assassinado. Ao retomar o registro da conversa das lideranças, agora traduzida, Martírio produz um inventivo gesto reflexivo. Reitera a busca do filme, justificando-a: encontrar a palavra dos Kaiowá, reconhecer o que ela porta de lucidez e o que produz também, em nós, de opacidade.

12. Mise-en-scène do poder Martírio nos coloca diante de uma mise-en-scène implacável que se desenvolve no interior do Congresso Nacional, esse espaço em tudo distante daqueles que o filme visita: ali dentro, o governador do Mato Grosso do Sul exibe aos parlamentares o vídeo intitulado “Índios assassinos”, que circulou na internet, com a imagem de um homem ensanguentado dominado pelos índios. O vídeo é tomado como peça retórica pelo governador que conclui: “se vocês não ficaram chocados, eu fiquei”. Em sua narração, Carelli responde ter se sentido, ele também, chocado diante dos milhares de compartilhamentos do vídeo e, ainda mais, com seu título: afinal, nos diz, cinquenta lideranças indígenas foram assassinadas nos últimos trinta anos, enquanto três policiais foram mortos no mesmo período. Enquanto o diretor narra, retorna o travelling que nos mostra, pela janela do carro, as infindáveis plantações de soja que circundam e cerceiam as retomadas guarani-kaiowá. A equipe do filme viaja a Itay, acampamento na região de Douradina, para reconstituir, com os índios, os momentos anteriores ao registro do vídeo. Novamente, Martírio trabalha para retomar o acontecimento histórico por meio dos testemunhos, religando-o a uma rede de outros acontecimentos que adensam seu sentido. Em outra sequência, acompanhamos os discursos inflamados da bancada ruralista em uma discussão em torno da PEC 215 na Comissão de Agricultura. O trabalho de montagem se faz notar, situando a sequência entre dois conflitos vividos pelos Guarani-Kaiowá: antes, o despejo em Ivy Katu, que termina com a fala contundente de uma liderança na Aty

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Guasu (assembleia político-espiritual dos Garani-Kaiowá). Um corte seco nos leva à imagem do Congresso Nacional, no interior do qual transcorre a discussão, em si mesma didática: aos discursos dos ruralistas, nesse espaço sem qualquer porosidade com o entorno, não pode haver resposta, já que os índios que assistem na plateia são retirados da sala. Restará apenas a voz solitariamente lúcida do deputado Ivan Valente que apresenta uma constatação desconcertante em sua obviedade: “nós devíamos ter colocado na mesa um cacique indígena”. Senão, inúmeros. Reencontramos então um gesto recorrente, também definidor do filme: quando a história parece por demais massacrante, quando o poder se mostra insuportavelmente cínico, Vincent Carelli desvia o carro da rodovia para tomar uma estrada de terra, uma via menor: ele vai então se encontrar com outra comunidade, em outra retomada, agora em Pyelito Kue. Esse é o procedimento a que recorre para lidar com as imagens da mídia e com as mises-en-scène do poder institucional, quando elas se mostram por demais insuportáveis, quando o poder se mostra inviável, inviolável. Trata-se então de voltar às terras guarani-kaiowá em busca de outra política.

13. Filmar o inimigo Em Martírio, os inimigos não aparecem apenas nas imagens que vêm da TV. Eles podem permanecer no fora de campo – como usina, que expulsou Damiana de Apyka’i ou o Estado, que despejou Emília Romero lançando um trator sobre sua casa. Mas, assim como acontece em Corumbiara, a equipe se esforça – e se arrisca – para filmar o inimigo, para trazê-lo ao interior da cena. Entra-se na fazenda recém-desapropriada para ouvir o discurso do advogado e do fazendeiro, a defenderem a tese de que não existem índios na região; filma-se em frente à empresa de segurança privada, para se descobrir que, obrigada pela justiça a encerrar suas atividades, ela seria reaberta com outro nome. Acompanha-se ainda a ação do delegado da Polícia Federal, que, sem constrangimento, ameaça de morte os homens e mulheres da comunidade de Ivy Katu. Mais uma vez, a cena é pedagógica e a lição política vem dos índios: enquanto o delegado procura lideranças a serem responsabilizadas, o coletivo se define sem líderes, estabelecendo na conversa uma espécie de enunciação coletiva. Modo de enunciação política que está na base da

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Aty Guasu, assembleia guarani-kaiowá em que a palavra é franca e na qual homens e mulheres, guerreiros, dividem o parlamento com os rezadores.

14. Cena do desentendimento A ocupação da Câmara por indígenas de 73 etnias em luta contra a PEC 215 é uma situação reveladora, verdadeira cena do desentendimento,5 que expõe como litígio não apenas uma pauta, mas a própria cena em que ela se debate; a própria ideia, portanto, de política. Diante da entrada repentina dos indígenas – tornando presentes aqueles a quem as decisões da Câmara costumam atingir a uma distância segura – os deputados correm em alvoroço. O tumulto no plenário, com a gradativa multiplicidade de corpos, cores e vozes a abrir caminho no espaço monocromático, expõe a coabitação de duas cenas: na primeira, se decidem sobre temáticas de cuja discussão não participam os principais implicados; na segunda, eles surgem inesperadamente como sujeitos, exigindo a alteração – formal, sensível e argumentativa – da política. Uma cena de força pedagógica semelhante já havia aparecido em Martírio, encampada ali, não por uma multidão, mas por único índio: em sua histórica performance, tão bela quanto contundente, Ailton Krenak pinta o rosto, enquanto discursa contra o artigo que excluiria, dos direitos da Constituição de 1988, os índios tidos como aculturados. “O povo indígena”, ele conclui com o rosto coberto pela tinta preta, “tem regado com sangue, cada hectare dos 8 milhões de quilômetros quadrados do Brasil”.

15. Filmar a morte Regressando ao Mato Grosso do Sul para realizar novas imagens, Vincent Carelli dirige o carro, pela noite densa da região de Amambai. No rádio, 5 RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento – política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.

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o noticiário local informa sobre a prisão de uma ex-miss da região por transporte de armas e munição de grosso calibre. Além de uma pistola, ela carregava cerca de 5 mil munições e um fuzil. Sobre a imagem escura, que pouco nos dá a ver, o diálogo entrecortado nos aproxima de uma morte terrível, um atropelamento em Apyka’i, no acampamento de Damiana. É o segundo atropelamento em um mês em Apyka’i. No Mato Grosso do Sul, a frase de Ailton Krenak parece ecoar em cada retomada. As festas e rodeios, com suas coreografias aeróbicas e a macabra celebração das Hilux; os leilões dos ruralistas para arrecadar fundos para as milícias armadas, estes são rituais de morte, iluminados pela luz do espetáculo. Como filmar a morte? Antes de tudo e novamente, “filmar com”, colocar-se ao lado daqueles que sofrem, aprendendo com eles como retirar do sofrimento a força para permanecer na terra e lutar por ela. Silenciosa e discretamente, a equipe entra no acampamento para acompanhar o ritual de luto. Diante do barraco do tio, o grupo canta enquanto agita os chocalhos: “Ele se foi cantando e rezando pelo horizonte iluminado e pelas estradas encantadas”. A sobrinha chora a morte do tio, para então prometer que serão um dia felizes na terra em que ele caiu. Um longo e belo plano-sequência acompanha o grupo a percorrer uma pequena trilha, Damiana à frente, dançando, a aparência de uma nhandesy, a agitar seu mbaraka. Depois de desviar sua rota por uma estreita estrada de terra para compartilhar o luto com seus aliados, o filme recobra, em novos moldes, a investigação histórica de larga amplitude, com a histórica manifestação indígena em Brasília.

16. Povos Seja porque subexpostos pela invisibilidade a que são submetidos, seja porque sobreexpostos pela luz do espetáculo, os povos, nos diz DidiHuberman, estão expostos a desaparecer. Como então fazer para que “se exponham a si mesmos e não ao seu desaparecimento?”6 Ao entrelaçar a história de um povo àquela de uma nação, evitando a todo custo que uma se sobreponha à outra, Martírio nos questiona, então, sobre o que seria afinal um povo. O filme parece explicitar aquela fratura que, para Giorgio Agamben, divide a ideia em duas metades dialéticas:

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6 DIDI-HUBERMAN, George. Coisa pública, Coisa dos povos, Coisa plural. In: A república por vir: Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Gulbenkian, 2011, p. 41.

de um lado, o povo como corpo político integral, unitário; de outro, “o subconjunto povo como multiplicidade fragmentária de corpos necessitados e excluídos”.7 Nossa época não seria senão a tentativa implacável de eliminar o povo dos excluídos, de modo a produzir um corpo uno, indivisível. O que se deveria então reivindicar ao aparecer político dos povos? A resposta não deve vir na forma de uma prescrição, ela não está garantida a priori. Em Martírio, digamos que ela poderia se encontrar nesses inúmeros planos-sequência, dispersos pelo filme, em que a câmera acompanha o percurso de um pequeno coletivo em um pedaço de terra: são rostos que guardam nomes e trajetórias singulares; quando se reúnem, produzem uma fala coletiva, em que se fala pela boca uns dos outros. Ao filmá-los, a câmera acompanha um evento que é, a um só tempo, ritual e manifestação política. Ela filma uma aliança e também uma distância intransponível. Ao montar as imagens, procura-se encontrar para elas um sentido histórico, mas se preserva o modo opaco, disperso, precário de seu aparecer.

7 AGAMBEN, Giorgio. O que é um povo: análise de uma fratura biopolítica. In: Folha de São Paulo, 16 nov. 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ ilustrissima/2014/11/1547789-o-que-e-um-povo-analise-de-uma-fratura-biopolitica. shtml.

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17. Cinema I Calculadamente e em cada um de seus passos, Martírio se nega a colocar o cinema adiante da causa que ele decidiu encampar; talvez Vincent Carelli preferisse recusar o “cinema” a ter que deixar de “filmar com”, lado a lado e aprendendo com aqueles que filma, engajado em suas lutas. Ao engajar-se tão clara e firmemente na luta dos Guarani-Kaiowá, Martírio parece mesmo endereçar ao cinema novas exigências, que teriam como medida sua capacidade de intervir e contribuir efetivamente para a causa a que se dedica. Essas exigências levariam o cinema sair de si mesmo, a lançar-se, digamos, em uma tarefa não cinematográfica, ou, ao menos, não primeiramente cinematográfica. Mas, o produtivo paradoxo aqui não é o de que essa tarefa – a de lançar-se para fora do cinema – se faça, justamente, por meio do cinema? As linhas de ação que o filme carrega – seu “fazer com” os Kaiowá – não é isso o que força sua forma para constituí-la e alterá-la? Atravessar e alterar o cinema por uma experiência que o ultrapassa, não é esse o trabalho de invenção que se pede a um filme?

18. Cinema II Vincent Carelli deixa na retomada de Pyelito Kue a pequena câmera que produz as imagens que encerram o filme. Nelas, vemos a ação dos pistoleiros que atiram impunemente contra homens, mulheres e crianças, crivando de balas as paredes dos barracos. Não teria muito a acrescentar à análise precisa que Amaranta César fez destas imagens urgentes, que ganham força política ao ter reativado seu poder de evidência. “A fragilidade do corpo que segura a câmera e a usa como um escudo precário imprime-se na tensão que faz tremer as bordas do quadro e na profundidade de campo através da qual se negocia a distancia segura para o olhar”. Em risco, na busca estreita pela justa distância, o cinema se faz, resume a autora, como “questão material de justiça”.8 Antes de Martírio ser finalizado, as imagens circularam pela internet, valendo inclusive como evidência para ações na justiça. Situadas pela montagem ao final do filme, elas talvez prosseguem o trabalho de Martírio, que, de modo aberto e inacabado, entrelaça o cinema à ação; a tomada

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8 CÉSAR, Amaranta. Palestra na sessão “A cidade e seus dissensos”, parte da programação do IV Colóquio Internacional Cinema, Estética e Política, realizado pelo Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência, na UFMG, entre 24 e 26 de junho de 2015.

de posição de uma câmera diante do acontecimento e a intervenção em sua emergência e em seu curso.

19. Materialismo histórico De um modo que não poderíamos ainda explicar, as primeiras imagens de Martírio parecem ecoar as teses de Walter Benjamin Sobre o conceito de história.9 Esse texto-manifesto inicia-se pela célebre alegoria do autômato, um boneco de trajes turcos, exímio jogador de xadrez. Por um sistema de fios, um anão corcunda conduzia, sem ser visto, as mãos do boneco. Este boneco, nos diz Benjamin, é o materialismo histórico e o anão que ele toma a seu serviço é a pequena e feia teologia, que permanece atuando ao fundo da história. Como vimos, na grande assembleia, os rezadores cantam, dançam e agitam seus chocalhos; consultam os espíritos para dar o rumo das discussões políticas do dia seguinte. Ali, a espiritualidade não é velada, dividindo a cena política por meio dos cantos e dos chocalhos dos rezadores; os deuses não se querem unos, nem únicos. A terra não é propriedade, mas tekoha (lugar de reciprocidade e autonomia) e o povo são povos, dentre outros. Reconhecer esse outro modo de atravessamento da política pela espiritualidade – não seria uma forma de abrigar a abertura e a heterogeneidade da história tão caras a Benjamin? De que materialismo histórico nos fala Martírio, em seu aprendizado com os Guarani-Kaiowá?

9 LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

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MANIFESTO QUEER NATION

Texto do manifesto que originalmente circulou entre as pessoas que protestavam numa ação da ACT UP,1 durante a Parada Gay de Nova York de 1990

Como posso lhe dizer? Como posso convencê-la, irmão, irmã, de que a sua vida está em perigo. Que todo dia que você acorda, viva, relativamente feliz e saudável, você está praticando um ato de rebelião. Você, uma queer viva e em bom estado de saúde, é uma revolucionária. Não há nada neste planeta que valide, proteja ou encoraje a sua existência. É um milagre que você esteja aqui lendo estas palavras! Você deveria, para todos os efeitos, já estar morta. Não se engane, os heterossexuais dominam o mundo e a única razão pela qual você foi poupada é que você é esperta, sortuda ou uma lutadora. As pessoas hétero possuem um privilégio que permitem a elas fazerem o que bem quiserem e foder sem temer. Mas elas não somente vivem uma vida livre do medo, como também fazem questão de esfregá-la na minha cara. Suas imagens estão na minha TV, na revista que comprei, no restaurante onde quero comer e na rua onde eu moro. Eu quero que se decrete uma moratória ao casamento hétero, aos bebês, às demonstrações públicas de afeto entre pessoas do sexo oposto, às imagens de sexo e mídias que promovem a heterossexualidade. Até que eu possa usufruir da mesma liberdade de movimento e sexualidade que os heterossexuais, o privilégio deles deve ser cassado e transmitido a mim e às minhas irmãs e irmãos queer.

1 Sigla da AIDS Coallition to Unleash Power (Coalizão da AIDS pelo empoderamento), um coletivo internacional de ação direta em defesa das pessoas que vivem com HIV/AIDS.

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Os héteros não farão isso voluntariamente e, portanto, devem ser forçados a fazê-lo. Devem ser amedrontados a fazê-lo. Aterrorizados a fazê-lo. O medo é o mais poderoso motivador. Ninguém nos dará o que merecemos. Direitos não são dados, são tomados – pela força, se necessário. É mais fácil lutar quando você reconhece quem é o inimigo. Os heterossexuais são o inimigo. São o inimigo quando não reconhecem a sua invisibilidade e continuam a viver e a contribuir para uma cultura que te mata. Todo dia uma de nós é levada pelo inimigo. Seja numa morte por AIDS devido à omissão de um governo homofóbico ou num ataque a lésbicas em algum bar noturno (em uma vizinhança supostamente lésbica), estamos sendo sistematicamente linchadas e continuaremos sendo descartadas a menos que entendamos que se levarem uma de nós terão de levar todas nós.

Um exército de amantes não pode perder Ser queer não é sobre um direito à privacidade; é sobre a liberdade de ser público, de simplesmente sermos quem somos. Significa enfrentar a opressão diariamente: homofobia, racismo, misoginia, a intolerância dos hipócritas religiosos e o nosso próprio desprezo. (Fomos cuidadosamente ensinadas a odiar a nós mesmas). E agora, é claro, significa combater um vírus também, e todos aqueles homofóbicos que estão usando a AIDS para nos varrer da face da terra. Ser queer significa levar um outro tipo de vida. Não é sobre o mainstream, margens de lucro, patriotismo, patriarcado ou sobre ser assimilado. Não é sobre diretores executivos, privilégio e elitismo. É sobre estar nas margens, definindo nós mesmas; é sobre desfazer gênero e segredos, sobre o que está abaixo do cinto e, profundo, dentro do coração. É sobre a noite. Ser queer é ser “local” porque sabemos que cada uma de nós, cada corpo, cada gozo, cada coração e cú e pau é um mundo de prazeres esperando para serem explorados. Cada uma de nós é um mundo de possibilidades infinitas. Somos um exército porque precisamos ser. Somos um exército porque somos tão poderosas! (Temos tanto pelo que lutar; somos a mais preciosa das espécies ameaçadas de extinção). E somos um exército de amantes porque somos nós quem sabemos o que amar quer dizer. Desejo e luxúria também. Nós os inventamos. Nós saímos do armário, encaramos a rejeição da sociedade, enfrentamos pelotões de fuzilamento, apenas para amarmos uns aos outros! Cada vez que nós fodemos, nós vencemos. Devemos lutar por nós mesmas (ninguém mais irá fazê-lo) e se 164

neste processo trouxermos maior liberdade para o mundo, que ótimo!

(Já demos tanto a este mundo: a democracia, as artes, os conceitos de amor, a filosofia e a alma, para nomear apenas algumas das dádivas das nossas antigas sapas e bichas gregas). Vamos fazer de cada espaço um espaço gay e lésbico. De cada rua uma parte da nossa cartografia sexual. Uma cidade de desejos e então de total satisfação. Uma cidade e um país onde estejamos seguras, livres e mais! Devemos olhar para nossas vidas e enxergar o que nelas há de melhor, o que há de torto (queer) e o que há de norma (straight) e mandar a norma à merda! Lembrem-se que temos pouco, tão pouco tempo. E eu quero ser um amante para cada um de vocês. No ano que vem, vamos pra rua nus!

Tenho raiva Nossas irmãs mais fortes disseram aos nossos irmãos que havia duas coisas importantes para se lembrar sobre as revoluções que vêm. A primeira é que vamos apanhar. A segunda é que vamos vencer. Tenho raiva. Tenho raiva por ser condenado à morte por estranhos dizendo “você merece morrer” ou “a AIDS é a cura”. A raiva explode quando uma mulher Republicana vestindo milhares de dólares em roupas e joias desfila através dos cordões policiais sacudindo a cabeça, agitando e apontando o dedo para nós como se fossemos crianças mimadas exigindo demandas absurdas e fazendo pirraça quando não são atendidas. Tenho raiva enquanto José agoniza desembolsando 8 mil dólares por ano para pagar AZT’s que devem mantê-lo vivo por um pouco mais de tempo e que ainda o tornam mais doente do que a doença com que foi diagnosticado. Tenho raiva quando ouço um homem me dizer que depois de mudar o seu testamento cinco vezes, já não tem mais para quem deixar os seus bens. Todos os seus melhores amigos estão mortos. Tenho raiva quando me vejo num mar de colchas de quilt,2 quando vou em uma marcha à luz de velas ou em mais um funeral. Não irei marchar em silêncio com uma merda de uma vela e quero pegar aquelas malditas colchas e me embrulhar nelas, rasgá-las e arrancar os meus cabelos amaldiçoando toda religião já criada em nome de Deus. Recuso-me a aceitar uma criação que elimina pessoas em sua terceira década de vida. É cruel, vil e sem sentido e tudo o que eu tenho em mim vai contra este absurdo. Inclino o meu rosto para as nuvens e uma gargalhada furiosa, mais demoníaca que alegre, irrompe da minha garganta, enquanto

2 Colchas tecidas com retalhos em homenagem às pessoas mortas em decorrência da AIDS.

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lágrimas escorrem no meu rosto e, se esta doença não me matar, devo acabar morrendo de desgosto. Meus pés caminham nas ruas enquanto as mãos do Pedro estão atadas ao balcão da recepção de uma companhia farmacêutica, onde o recepcionista o encara com horror, e enquanto o corpo de Eric apodrece num cemitério no Brooklyn, sem que eu jamais possa voltar a ouvir o som da sua flauta atravessando as paredes da casa de encontros. E eu vejo os velhos em Tompkins Square Park amontoados em seus longos casacos de lã, em Junho, para afastar o frio que ainda sentem e agarrandose para viverem o pouco que a vida resta a oferecê-los e penso: “Ah! Eles entendem!” E me lembro das pessoas que se despem diante de um espelho todas as noites antes de dormir à procura de alguma marca nos seus corpos que ainda ontem não estava lá. A marca de que esta peste as visitou. E tenho raiva quando os jornais nos chamam de “vítimas” e alardeiam que “isso” deve logo se espalhar para a “população em geral”. E quero gritar “Que diabos sou eu?” E quero gritar no Hospital de Nova York, com suas bolsas de plástico amarelas onde lê-se “linha de isolamento”, ropa infecciosa e seus plantonistas em luvas de látex e máscaras cirúrgicas isolando uma cama como se o seu ocupante fosse subitamente saltar e regá-los com sangue e sêmen transmitindo a peste também pra eles. E tenho raiva dos heterossexuais que se sentem presunçosamente protegidos em suas capas de monogamia e heteronormatividade, confiantes de que a doença não tem nada a ver com eles porque só acontece com “eles”. E dos rapazes que, ao verem o meu bótom “Silêncio = Morte” saem cantando “bichas vão morrer”. Me pergunto: quem ensinou isso a eles? Coberto de fúria e medo, continuo em silêncio enquanto meu bótom é motivo de piada a cada passo do caminho. E a raiva que eu sinto quando um programa de televisão sobre quilts lê os perfis dos mortos e a lista começa por um bebê, uma jovem que passou por uma transfusão de sangue, um velho pastor batista e sua esposa e, quando finalmente mostram um homem gay, ele é descrito como alguém que infectou propositalmente garotos de programa com o vírus. O que mais se esperaria de um viado? Tenho raiva.

[Sem-título] Desde o princípio dos tempos, o mundo foi inspirado pelo trabalho de artistas queer. Em troca, houve sofrimento, dor e violência. Ao longo da história, a sociedade travou uma batalha contra os seus cidadãos e cidadãs 166

queer: elas devem seguir carreiras criativas, contanto que discretamente.

Através das artes, as queer são produtivas, lucrativas, entretém e até são capazes de inspirar. Estes são os mais claros e úteis subprodutos daquilo que, do contrário, é considerado um comportamento antissocial. Nos círculos culturais, as queers podem coexistir tranquilamente com uma elite que, de outro modo, as abomina. Na linha de frente da mais recente campanha para esmagar artistas queer está Jesse Helms, árbitro de tudo o que é mais decente, moral, cristão e amerikano. Para Helms, a arte queer é simplesmente uma ameaça para o mundo. Na sua imaginação, a cultura heterossexual é frágil demais para admitir a diversidade humana ou sexual. A estrutura de poder no mundo judaico-cristão fez da procriação sua pedra angular. Famílias gerando filhos asseguram consumidores para os produtos da nação e uma mão-de-obra para produzi-los, além de um sistema familiar bem constituído para cuidar dos seus doentes, reduzindo o custo dos sistemas públicos de saúde. Todo comportamento não procriativo é considerado uma ameaça, da homossexualidade ao controle reprodutivo, ao aborto como uma opção. Mas não é suficiente, de acordo com o direito religioso, propagandear maciçamente a procriação e a heterossexualidade... é preciso também destruir qualquer alternativa a elas. Não é a arte que Helms persegue... São as nossas vidas! A arte é o último reduto seguro para lésbicas e gays prosperarem. Helms sabe disso e desenvolveu um programa para expurgar as queers da única arena em que elas foram permitidas contribuir para a nossa cultura compartilhada. Helms defende um mundo livre da diversidade ou do dissenso. É fácil imaginar porque isso deve parecer mais confortável para aqueles que comandam um tal mundo. É igualmente fácil vislumbrar uma paisagem amerikana achatada por um tal poder. Helms deveria apenas se perguntar pelo quê, afinal, está lutando: Arte financiada pelo Estado? Arte totalitária? Arte apenas segundo os padrões cristãos? Arte que cumpre as metas daqueles no poder? Arte que combine com os sofás da Casa Branca? Pergunte-se o que você quer, Jesse, para que homens e mulheres conscientes possam se mobilizar contrariamente, como fazemos contra as violações de direitos humanos em outros países e como lutamos para libertar os dissidentes dentro do nosso próprio país. Se você é queer, grite! As queers estão sob cerco. Estão sendo atacadas em todas as frentes e meu temor é que tudo pareça “ok” para nós. Em 1969, as queers foram atacadas. E não foi “ok”. As queers reagiram, tomaram as ruas.

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Gritaram. Em 1990, 50 ataques homofóbicos foram registrados apenas no mês de Maio. Ataques violentos. 3.720 homens, mulheres e crianças morreram de AIDS no mesmo mês, provocados por um ataque ainda mais violento – a omissão do Estado, enraizada na homofobia crescente na nossa sociedade. Esta é uma forma de homofobia institucionalizada, talvez ainda mais perigosa para a existência queer porque os agressores não têm rosto. Consentimos estes ataques através da nossa própria paralisia diante deles. A AIDS atingiu o mundo hétero e agora eles nos culpam por ela e se utilizam dela para justificarem sua violência contra nós. Eles não nos querem mais. Eles irão nos bater, nos estuprar e nos matar, antes que tenham que continuar a conviver conosco. O que deverá levar até que tudo isto não seja “ok”? Demonstre alguma raiva! Se a raiva não empoderá-la, tente o medo. Se não funcionar, tente o pânico. Grite! Tenha orgulho! Faça o que for preciso para sair do estado habitual de aceitação. Seja livre! Grite! Em 1969, as queers reagiram. Em 1990, dizem “ok”. No ano que vem, estaremos aqui?

[Sem-título] Eu odeio Jesse Helms. Eu odeio tanto Jesse Helms que ficaria feliz se ele caísse morto de repente. Se alguém o matasse, eu diria que a culpa foi dele. Eu odeio Ronald Reagan também, porque ele assassinou em massa o meu povo por oito anos seguidos. Mas, para ser sincera, eu o odeio ainda mais por elogiar Ryan White sem antes admitir a sua própria culpa, sem antes implorar o perdão pela morte de Ryan e pela morte de dezenas de milhares de outras pessoas com AIDS - quase todas queer. Eu o odeio por zombar do nosso luto. Eu odeio a porra do Papa, a porra do cardeal John O’Connor e odeio toda a porra da Igreja Católica também! O mesmo vale para as Forças Armadas, e especialmente os “oficiais da lei” amerikanos – os policiais – sadistas sancionados pelo Estado que brutalizam travestis, prostitutas e prisioneiros queer. Também odeio os sistemas médico e psiquiátrico, em especial aquele psiquiatra que me convenceu a não fazer sexo com outros homens durante três anos até que eu (isto é, ele) pudesse me fazer bissexual antes que “anormal” (queer). Também odeio o sistema educacional pela sua cota no número de jovens queer que foram levados ao suicídio nos últimos anos. Odeio o “respeitável” mundo da arte; e a 168

indústria do entretenimento, e os veículos de comunicação em massa, em

especial o The New York Times. De fato, odeio cada setor do establishment heterossexual deste país – dentre os quais os piores querem nos ver mortas e os melhores nunca dão as caras para tentar nos manter vivas. Odeio heterossexuais que pensam terem algo inteligente a dizer sobre “sair do armário”. Odeio heterossexuais que pensam que suas histórias são “universais” e que as nossas dizem respeito apenas à homossexualidade. Odeio músicos heterossexuais que fazem suas carreiras decolarem às custas do povo queer e depois nos atacam, se sentindo feridos quando demonstramos raiva e negando terem nos traído ao invés de se desculparem. Odeio heterossexuais que dizem: “Não entendo porque você sente a necessidade de usar esses bótons e camisas. Eu não saio por aí dizendo pro mundo que sou hétero.” Eu odeio o fato de que em vinte anos de educação pública jamais fui ensinada sobre o povo queer. Odeio o fato de ter crescido pensando que eu era a única “estranha” neste mundo, e odeio ainda mais o fato de que muitas das crianças queer ainda crescem do mesmo modo. Odeio ter sido atormentada pelas outras crianças por ser uma bicha e ainda mais por ter sido ensinada a sentir vergonha de ser o objeto da crueldade delas, como se a culpa fosse minha. Odeio o fato da Suprema Corte deste país afirmar que é “ok” criminalizar alguém como eu pela maneira como faço amor. Odeio o fato de tantos heterossexuais demonstrarem-se preocupados com a porra da minha vida sexual. Odeio o fato de tantos heterossexuais desequilibrados se tornarem pais enquanto eu tenho que lutar feito o diabo para obter permissão para ser pai. Odeio héteros.

Onde estão vocês, irmãs? Invisibilidade é nossa responsabilidade Eu carrego meu triângulo rosa-choque por todo lado. Não abaixo minha voz em público quando falo sobre o amor ou sexo lésbicos. Sempre digo para as pessoas “sou lésbica”. Não espero me perguntarem sobre “o meu namorado”. Não digo que “não é da conta de ninguém”. Não faço isso pelas pessoas hétero. Muitos deles sequer sabem o que o triângulo rosa significa. Muitos deles sequer se importam se eu e minha namorada estamos perdidamente apaixonadas ou brigando na rua. Muitos deles não percebem que existimos, não importa o que fazemos. Faço o que faço para atingir outras lésbicas. Faço o que faço porque não quero que outras lésbicas pensem que eu sou uma mulher hétero. Estou fora do armário o tempo todo, em qualquer lugar, porque eu quero atingir você. Talvez você irá me notar, talvez começaremos uma conversa, talvez nos tornemos amigas. Talvez não diremos palavra, mas nossos olhos irão

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se encontrar e eu irei imaginar você nua, suando, de boca aberta e costas arqueadas enquanto eu como você. E ficaremos felizes em saber que não estamos sozinhas no mundo. Ficaremos felizes porque encontramos uma à outra, sem dizer sequer uma palavra, talvez somente por um instante. Mas não. Você não usa o triângulo rosa-choque nesta sua lapela de linho. Você não encontrará os meus olhos se eu flertar com você na rua. Você me evita no trabalho porque eu “dou muita pinta”. Você me reprime nos bares porque eu sou “muito política”. Você me ignora em público porque eu chamo “muita atenção” para a “minha” lesbianidade. Mas então você me quer como sua amante, você me quer como sua amiga, você quer que eu te ame, apoie você e lute pelo “nosso” direito de existir. Onde estará você? Vocês falam, falam, falam em invisibilidade e então se recolhem em suas casas para deitarem-se ao lado das suas amantes ou saem pra balada com as amigas e voltam tropeçando pra casa num táxi ou ainda assentam-se silenciosa e comportadamente enquanto a sua família, seu chefe, seus vizinhos ou nossos funcionários públicos nos distorcem e nos desfiguram, nos denigrem e nos punem. E então, de volta à sua casa, você tem vontade de gritar. E por isso você dissipa a sua raiva num relacionamento, numa carreira, numa festa com outras sapas como você e ainda tenta imaginar porquê não nos encontramos, porquê você se sente só, com raiva, alienada. Levantem-se, acordem, irmãs! A sua vida está nas suas mãos. Quando eu arrisco tudo me assumindo, eu arrisco por nós duas. Quando eu arrisco tudo e funciona (e às vezes funciona, experimente tentar), eu me beneficio e você também. Quando não funciona, eu sofro e você não. Mas mulher! Você não pode esperar outras sapas fazerem deste um mundo mais seguro pra você. Pare de esperar por um futuro mais lésbico e melhor! A revolução poderia ser agora, se nós a começássemos. Onde estão as suas irmãs? Tento te encontrar, tento te encontrar... Como é possível que eu só te veja na Parada Gay? Nós estamos fora do armário. Onde estará você?

[Sem-título] Quando alguém te agride por ser queer, é um ataque anti-queer. Certo? Um grupo de 50 pessoas deixa um bar gay, ao fechar. Na rua, alguns 170

jovens hétero estão gritando “bichas” e lançando garrafas de cerveja

nelas, que os superam em número de 10 para 1. Três bichas reagem, sem nenhum apoio do grupo. Por quê um grupo deste tamanho se permite assistir a tudo imóvel como estátuas? Tompkins Square Park, Dia do Trabalhador. Durante um show anual de drags ao ar livre, um grupo de homens gay foi atacado por jovens armados com porretes. No meio de milhares de homens gays e lésbicas, estes homens hétero espancam dois homens até eles caírem, desfalecidos, e então postam-se ao seu redor, rindo-se, triunfantes. Do palco, o apresentador, alertado sobre a situação, anuncia para a multidão: “tomem cuidado, garotas! quando vocês se montam os bofes ficam loucos!” como se se tratasse apenas de uma piada motivada pelo modo como as vítimas se vestiam e não de um ataque contra um e cada um daqueles que participavam do evento. O que terá faltado para que aquela multidão pudesse se insurgir contra os agressores? Depois que James Zappalorti, um homem abertamente gay, foi assassinado a sangue frio em Staten Island este inverno, uma única demonstração foi convocada em protesto. Apenas uma centena de pessoas compareceu. Quando Yusef Hawkins, um jovem negro, foi alvejado até a morte por estar em “território branco” em Bensonhurst, os afro-americanos, em muito maior número, marcharam dias a fio ao redor daquela vizinhança. Um jovem negro foi morto porque era negro e pessoas pretas ao redor daquela cidade perceberam isso e reagiram a isso. A bala que atingiu Hawkins foi disparada contra uma pessoa negra, qualquer pessoa negra. Será que a maioria dos gays e lésbicas realmente pensa que a faca que perfurou o coração de Zappalorti foi um golpe apenas contra ele? O mundo hétero nos têm tão convencidas de que somos vítimas indefesas e merecedoras da violência que nos atinge, que as queers ficam imobilizadas quando encaram uma ameaça. Revolte-se! Estes ataques não devem ser tolerados. Façam alguma coisa! Assumam que qualquer ato de agressão contra qualquer membro da nossa comunidade é um ataque a cada membro da comunidade. Quanto mais consentimos que homofóbicos inflijam violência, terror e medo nas nossas vidas, mais frequente e obssessivamente seremos o objeto do seu ódio. O seu corpo não pode ser um alvo aberto para a violência. Vale a pena protegê-lo. Você tem o direito de defendê-lo. Não importa o que eles digam, a sua diferença deve ser defendida e respeitada. É melhor você entender que a sua vida tem um valor inestimável, porque se você não começar a acreditar nisso, então ela poderá ser facilmente tomada de você. Se você sabe como, gentil e eficazmente imobilizar o seu agressor, então, seja qual for o meio, faça-o! Se você não tem essa habilidade, então considere arrancar-lhe

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a porra dos olhos, enfiar o nariz dele no próprio cérebro, rasgar-lhe a garganta com um caco de vidro – faça o que puder fazer, o que tiver que fazer, para salvar a sua vida!

Por quê Queer? Queer! Ah, temos mesmo que usar essa palavra? É furada! Cada pessoa gay tem a sua opinião sobre ela. Para algumas, significa estranha, excêntrica e algo misteriosa. Tudo bem, gostamos disso. Mas algumas garotas e garotos gay não. Elas pensam que são mais normais do que estranhas. E para algumas, “queer” evoca aquelas terríveis memórias do sofrimento vivido na adolescência. Queer. Na melhor das hipóteses, a palavra é agridoce e extravagante, na pior, frustrante e dolorosa. Não poderíamos simplesmente dizer “gay”? A palavra é muito mais radiante. E não é sinônimo de “alegre”? Quando vocês militantes vão crescer e superar a mania de serem diferentonas? Bem, sim, “gay” é lindo. Tem seu lugar. Mas quando muitos homens e mulheres gays acordam, pela manhã, sentimos raiva e desgosto, não alegria. Por isso escolhemos nos chamarmos “queer”. Usar “queer” é uma maneira de lembrarmos como somos percebidas pelo resto do mundo. É uma maneira de dizermos que não precisamos ser pessoas empolgadas e charmosas, que levam suas vidas discretamente e à margem do mundo hétero. Usamos queer como homens gays que amam lésbicas e lésbicas que amam ser queer. Queer, ao contrário de gay, não significa macho. E, quando falada para outros gays e lésbicas, é um modo de sugerir que cerremos fileira e esqueçamos (temporariamente) nossas diferenças individuais, uma vez que enfrentamos um inimigo comum e mais perigoso. Sim, queer pode ser uma palavra dura, mas é também uma arma sagaz e irônica que podemos roubar das mãos dos homofóbicos e usá-la contra eles.

Nenhuma polícia sexual Qualquer um que diga que “sair do armário” não faz parte da revolução está enganado. Imagens sexuais positivas e aquilo o que elas manifestam salvam vidas porque elas afirmam estas vidas e tornam possível que as pessoas vivam com amor próprio ao invés de viverem com o próprio desprezo. Como o famoso Black is beautiful (Preto é lindo) mudou muitas vidas, assim também Read my lips (Leia os meus lábios) afirma a nossa diferença face ao ódio e a invisibilidade. Como demonstra 172

uma recente pesquisa governamental, pelo menos 1/3 dos adolescentes

que cometem suicídio são jovens queer. O que também é exemplificado pelo crescimento da transmissão do HIV entre jovens abaixo dos 21 anos. O que odeiam em nós, enquanto queers, é a nossa sexualidade, isto é, nosso contato físico com o mesmo sexo. É a nossa sexualidade e expressão sexual o que nos torna mais suscetíveis à violência física. Nossa diferença, nossa alteridade, nossa singularidade pode tanto nos paralisar quanto nos politizar. Com esperança, a maioria de nós não permitirá que ela nos aniquile.

[Sem-título] Porque diabos permitimos héteros nas boates queer? Quem se importa se eles gostam de nós porque “realmente sabemos dar uma festa”? Nós temos que fazer isso para ajudar a levantar a estima que eles nos negam o tempo todo! Eles saem por onde querem, e roubam muito espaço na pista ostentando seus passinhos a dois. Eles vestem sua heterossexualidade como um sinal de “afaste-se” ou um manto sagrado. Porque diabos toleramos eles quando invadem nosso espaço como se fosse um direito seus? Porque permitimos que eles esbanjem heterossexualidade – uma arma que o mundo deles ergue contra nós – bem debaixo dos nossos narizes, nos poucos espaços públicos onde nós podemos nos expressar libidinosamente sem temer um ataque? É hora de parar com isso de deixar que as pessoas hétero deem todas as regras. Comecemos pregando este recado na porta de cada bar ou boate gay: Regras de conduta para héteros 1.

Exibam suas manifestações de afeto (beijos, mãos dadas, abraços) o mínimo possível. A sexualidade de vocês é indesejada e ofensiva para muitas aqui.

2.

Se vocês quiserem dançar juntinhos e devagarzinho, chamem a menor atenção possível.

3.

Não admirem ou encarem lésbicas ou homens gays, especialmente caminhoneiras e drag queens. Não somos a sua diversão.

4.

Se você não pode lidar tranquilamente com alguém do mesmo sexo dando em cima de você, caia fora!

5.

Não exiba sua heterossexualidade. Sejam discretos. Arrisquem ser confundidos com uma lésbica ou um gay.

6.

Se você acha estas regras injustas, vá combater a homofobia em boates hétero ou...

7.

Foda-se você!

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Odeio Héteros Eu tenho amigos. Alguns deles são héteros. Todos os anos, encontro meus amigos héteros. Quero encontrá-los, saber como vão as coisas, acrescentar alguma novidade às nossas longas e complicadas histórias, experimentar alguma continuidade. A cada ano, eu continuo achando que os fatos da minha vida são irrelevantes para eles e que eu sou apenas parcialmente ouvida, que sou apenas o apêndice para as tarefas de um mundo maior, um mundo de poder e privilégios, mundo das “leis de instalação”, mundo de exclusão. “Isso não é verdade”, argumentam meus amigos héteros. Há apenas uma certeza na política do poder: aqueles que estão de fora imploram inclusão, enquanto os que estão dentro afirmam que eles já foram incluídos. Homens fazem isso com mulheres, brancos fazem isso com negros e todo mundo faz isso com as queer. A principal linha divisória, tanto consciente quanto inconsciente, é a procriação... além daquele mundo mágico - a Família. Com frequência, aqueles dentre os quais nascemos nos renegam quando descobrem quem realmente somos. Somos punidas, insultadas, afastadas e tratadas como sediciosos da criação infantil – condenados tanto se quisermos tentar quanto se quisermos nos abster. É como se a propagação da espécie fosse uma diretiva tão frágil que sem forçar as pessoas a tal, como uma verdadeira agenda, a humanidade fosse novamente se dissolver no caos primitivo. Detesto ter que convencer as pessoas hétero que os gays e lésbicas vivem numa zona de guerra, que estamos rodeadas pelos sons das bombas que só nós parecemos ouvir, que nossos corpos e almas são empilhados aos montes, mortos de medo, esmagados, estuprados, mortos por desgosto ou doença, despidos de sua personalidade. Eu odeio os heterossexuais que são incapazes de ouvir a nossa raiva queer sem dizer “Ei! nem todos os heterossexuais são assim. Também sou hétero, você sabe”, como se os seus próprios egos já não estivessem suficientemente protegidos neste mundo arrogante e heterosexista. Porque deveríamos cuidar deles, em meio à toda raiva infligida a nós por sua sociedade de merda?! Porque acrescentarmos “claro, não quis dizer você, você não age assim”. Deixe que descubram por si mesmos se merecem ou não serem incluídos entre os alvos da nossa fúria. Mas, é claro, isso exigiria ouvir o som da nossa fúria, o que eles quase nunca fazem. Eles se esquivam, dizendo “Eu não sou assim” ou “Agora veja quem está generalizando” ou “Você atrairia mais apoiadores se fosse gentil...” ou “Se você focar somente no pior só atrairá mais coisas ruins...” 174

ou “Você não é o único no mundo que está sofrendo.” Eles dizem “Não

grite comigo, estou do seu lado” ou “ Eu acho que você está se excedendo” ou “Cara, você é tão amargo!”.

Permita-se sentir raiva Eles nos ensinaram que queer bem comportada não sente raiva. Nos ensinaram tão bem, que não apenas escondemos a nossa raiva deles, como também de nós mesmas. Escondemos até de nós mesmas. Escondemos com abuso de drogas, suicídio ou na busca exagerada por nos superarmos na esperança de que possamos provar pra eles que valemos alguma coisa. Eles nos atacam, nos esfaqueiam, nos alvejam, nos bombardeiam em números cada vez mais altos e ainda nos preocupamos quando um punhado de queers, com raiva, empunham cartazes ou sinais dizendo “caiam fora!”. Na última década, eles nos deixaram morrer aos milhares e ainda agradecemos o Presidente Bush por plantar uma arvorezinha, o aplaudimos por comparar pessoas com AIDS a vítimas de acidentes de carro que se recusaram a usar o cinto de segurança. Permita-se sentir raiva. Permita-se sentir raiva pois o preço da visibilidade é a constante ameaça de violência, violência homofóbica com a qual praticamente cada setor dessa sociedade contribui. Permita-se sentir raiva do fato de que não há lugar neste país onde estejamos seguras, nenhum lugar onde não somos alvo do ódio e do ataque, do nosso próprio desprezo, do suicídio – do armário. Da próxima vez que algum hétero vir pra cima de você porque você demonstrou a sua raiva, diga a eles que, até as coisas mudarem, você não precisa de mais nenhuma prova de que o mundo gira às tuas custas. Que você não precisa assistir apenas casais hétero fazendo compras na sua TV... Que você não que ver nem mais uma foto de bebê, antes que você possa ter ou manter o seu. Por favor, nem mais um casamento, chá de fraldas, aniversário, até que sejam os nossos próprios irmãos e irmãs a celebrarem. E diga a eles que não te rebaixem dizendo “Você tem direitos”, “Você tem privilégios”, “Você está se exaltando” ou “Você está sendo vitimista”. Diga a eles “Saia da minha frente, até você mudar”. Vai lá e tenta viver num mundo sem os fortes e bravos queers que são os seus esteios, os seus instintos, cérebros e almas. Diga a eles que saiam da sua frente e não apareçam até terem experimentado passar um mês andando de mãos dadas, em público, com alguém do mesmo sexo. Depois, se eles sobreviverem, então você ouvirá o que eles têm a dizer sobre a nossa raiva. Do contrário, diga eles que calem a boca e apenas escutem. tradução:

Roberto Romero

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VERSÃO DA DIRETORA1

NEW QUEER CINEMA

B. Ruby Rich

Qualquer pessoa que tenha acompanhado as notícias dos festivais de cinema nos últimos meses sabe que o ano de 1992 se tornou um divisor de águas para o cinema e o vídeo gay e lésbico independentes. No começo da última primavera, Instinto Selvagem (Basic Instinct, 1992), de Paul Verhoeven, e Eduardo II (Edward II, 1991), de Derek Jarman, estrearam no mesmo dia em Nova York. Dias depois, o prestigiado festival New Directors/New Films, também em Nova York, exibiria quatro filmes “queer” inéditos: The Hours and Times (1991), de Christopher Münch; Swoon – Colapso 1 Este artigo foi publicado pela primeira vez no Village Voice de 24 de março de 1992, sob o título Uma sensação queer. Ele foi, então, reimpresso como o artigo principal de uma seção especial da Sight and Sound 2.5 (1992), 30-34, com o título O New Queer Cinema. A expressão surgiu em uma conversa com Philip Dodd, então editor da publicação, sobre como eu havia percebido os acontecimentos desde que o artigo fora publicado no Voice. É graças àquela conversa que eu devo o acaso e a felicidade da imortalização da expressão como título do artigo e, posteriormente, como movimento. Na seção especial da publicação, Dodd e a coeditora Pamela Cook reuniram respostas a meu “manifesto” de Derek Jarman, Isaac Julien, Pratibha Parmar e Constantine Giannaris, além de artigos adicionais por Amy Taubin e Andy Medhurst. Ver as seguintes antologias, que incluem o artigo original de 1992 e expandem-se para significativamente além dele: AARON, Michele. The New Queer Cinema: A Critical Reader; BENSHOFF e GRIFFIN, Queer Cinema: The Film Reader. Mais recentemente, o artigo foi reimpresso no contexto do campo de estudos da teoria crítica em geral: CORRIGAN, WHITE e MAZAJ, Critical Visions in Film Theory. Quando esse artigo foi publicado em 1992, ele foi editado pelo Village Voice por considerações de espaço. A versão intergral foi publicada pela primeira vez em RICH, B. Ruby. The New Queer Cinema: Director’s Cut. Durhmamand London: Duke University Press, 2013, p. 16-32. Copyright, 2013, Duke University Press. Todos os direitos reservados. Republicado com permissão dos detentores dos direitos autorais. www.dukeupress.edu. Tradução: André Duchiade. Versão em português autorizada e originalmente publicada em MURARI, Lucas e NAGIME, Mateus (org.) New Queer Cinema: Cinema, sexualidade e política. Juiz de Fora, Rio de Janeiro: LDC / Caixa Cultural, 2015. Agradecemos B. Ruby Rich e Rob Winter por permitirem a publicação deste artigo neste catálogo.

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do Desejo (Swoon – 1992), de Tom Kalin; The Living End (1992), de Gregg Araki; e R.S.V.P. (1991), de Laurie Lynd. Tanta tinta já havia sido gasta na grande imprensa por tal causa? A ala da comunidade queer que se acha dona da verdade organizou piquetes contra Instinto Selvagem (até que sapatões começassem a descobrir como o filme era divertido), enquanto críticos renomados impressionavam-se avidamente pela queer new wave e empenhavam-se em fazer, dos novos garotos no pedaço, estrelas. Não é que o momento esteja livre de contradições: o Festival de Cinema Gay e Lésbico de San Francisco deste verão teve sua edição mais bem-sucedida em seus 16 anos de história, dobrando seu público em com-paração a 1991, mas o Fundo Nacional para as Artes (NEA – National Endowment for the Arts) retirou seu financiamento – uma cortesia da ala direitista ressurgente do Partido Republicano, que vê votos onde quer que haja “valores familiares” a serem defendidos. O fenômeno do cinema queer foi apresentado no outono de 1991 no Festival dos Festivais de Toronto, o melhor lugar na América do Norte, para rastrear novas tendências cinematográficas2. Naquela ocasião, repentinamente havia um conjunto de filmes fazendo algo novo, renegociando subjetivida-des, anexando gêneros inteiros, revisando histórias em suas imagens. Ao longo de todo o inverno, da primavera e do verão, a mensagem foi alta e clara: queer é sexy. Meu itinerário acelerou meu ritmo de descobertas, conforme fui de festival a festival, tirando um tempo para ir à Quinta Conferência Anual de Estudos Lésbicos e Gays na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey. Conferi o circuito internacional de Park City a Londres, passando por Berlim. Prêmios foram entregues, festas aconteceram. Em Sundance, no coração do país mórmon, houve até mesmo um painel dedicado a discutir o tema queer, organizado por esta que vos escreve. O painel dos Beijos de Arame Farpado colocou oito debatedores no palco, com tantos cineastas queer assistindo que uma lista de presença teve que ser lida. Cineastas se levantaram, um a um, para serem aplaudidos pela plateia vespertina. “Sundance é onde você pode ver o que a indústria consegue tolerar”, disse o debatedor Todd Haynes, que estava lá para falar sobre o ano em que Veneno (Poison, 1991) passou na linha de fogo. Ele ainda permaneceu para ser impressionado pela criança-prodígio Sadie

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2 O Festival de Toronto (hoje chamado de Festival Internacional de Cinema de Toronto – TIFF) sempre foi um evento aberto a obras queer, o que quer que isso signifique hoje, graças a sua antiga diretora, Helga Stephenson, à cobertura na imprensa de Jay Scott e aos programadores, Kay Armatage, Noah Cowan e David Overby.

Benning, de 18 anos, cujos vídeos rústicos, filmados com uma câmera Pixelvision da companhia de brinquedos Fisher-Price e produzidos por menos de 20 dólares cada, já haviam recebido uma retrospectiva no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York. Isaac Julien foi subitamente escalado no papel de geração mais antiga. Resumindo os dilemas de anunciar produtos queer para o público em geral, ele descreveu uma campanha publicitária da Mira-max Prestige para o seu filme Young Soul Rebels (1991). A campanha usava uma imagem terna de rapazes e moças dando uma volta, como se fosse um anúncio de cigarros misturado a uma propaganda da Benetton.3 O filme não estava fazendo sucesso até que Julien conseguiu que mudassem a campanha para uma imagem em preto e branco do casal interracial de namorados, Caz e Billibud, se beijando na cama. As bilheterias imediatamente aumentaram. Tom Kalin se esforçou para reconciliar seu apoio às interrupções das filmagens de Instinto Selvagem, na última primavera, com a escolha de seu filme Swoon pelo tema de assassinos queer, e também para explicar como sua paixão por transgressões queer relaciona-se à sua participação anterior no coletivo Gran Fury, a ala artística do ACT UP (Coalizão da Aids para Desencadear a Força), responsável por muitas das imagens mais memoráveis daquela era em Nova York. Os cineastas australianos Stephen Cummins e Simon Hunt, que estavam lá com seu curta de dança Resonance (1992), regalaram o público com uma história de censura à australiana, envolvendo um episódio de Os Simpsons no qual uma cena em que Homer beija um colega afeminado na usina nuclear acabou na sala de edição (do censor).4 Na hora de abrir a sessão para questões da plateia, o painel se tornou surpreendentemente participativo. Um executivo da Disney se identificou como gay e, então, criticou severamente a homofobia da indústria. Um cineasta conclamou por uma campanha exigindo que Oliver Stone não dirigisse a anunciada biografia de Harvey Milk (que depois, em 1992, supostamente teria a direção passada a Gus Van Sant, com Stone na função de coprodutor).5 Enquanto isso, Derek Jarman, o grande e velho homem em sua quarta década de atividade queer, resplandecia. Ele anunciou

3 A Miramax era uma companhia ainda em seus primórdios em 1992, sendo o Prestige seu setor (de vida breve) de filmes de arte. 4 Sthephen Cummins morreu dois anos mais tarde, em 1994, de causas relacionadas à aids. Simon Hunt tem uma longa carreira, ainda em atividade, como escritor, satirista e até aspirante a político, sob o nome artístico Pauline Pantsdown. Ele me entrevistou em Sidney, em 1999 5 Apenas 14 anos depois, o filme finalmente foi realizado – com Van Sant, sem Stone.

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que nunca havia estado em um painel de queers em um dos principais festivais de cinema. Tentem imaginar a cena em Park City: Robert Redford concede uma entrevista coletiva e é indagado, diante das câmeras, por que há todos estes filmes gays em seu festival. Redford dissimula: é tudo parte do espectro de filmes independentes que Sundance propõe-se a servir. Ele até aceita que os prêmios conferidos no ano anterior a Veneno e a Paris is Burning (1990), de Jennie Livingston, possam ter contribuído para que o festival parecesse mais receptivo a gays e lésbicas. Ele poderia simplesmente ter dito: estes são simplesmente os melhores filmes sendo feitos. É claro que os novos filmes e vídeos queer não são todos um só e tampouco compartilham um único vocabulário estético, estratégia ou preocupação. Ainda assim, eles são unidos por um estilo comum: chamemos esse estilo de “Homo Pomo”. Há traços em todos esses filmes de apropriação, pastiche e de ironia, assim como uma reelaboração da história que leva sempre em consideração um construtivismo social. Definitivamente rompendo com abordagens humanistas antigas e com os filmes e fitas que acompanhavam políticas da identidade, essas obras são irreverentes, enérgicas, alternadamente minimalistas e excessivas. Acima de tudo, elas são cheias de prazer. Elas estão aqui, elas são queer, acostume seus quadris a elas. Ao mesmo tempo, o sucesso alimenta o descontentamento, e 1992 não é diferente de nenhum outro ano. Quando o gueto se torna mainstream, o mal-estar e a paranoia se instauram. Podem ser ideológicos, ou relativos a gerações, ou então a gêneros.6 Considerem as questões que podem perturbar a paz. O que vai acontecer com os cineastas gays e lésbicos que já estão fazendo filmes independentes, frequentemente em tradições de vanguarda, há décadas? Surpresa, todos os filmes sendo escolhidos por distribuidoras, exibidos em grandes festivais, passando em cinemas, foram feitos por meninos. Surpresa, os incríveis novos vídeos

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6 Esta não era uma consideração teórica. Eu já havia sido atacada por cineastas que se sentiram deixados de fora da discussão. Em Sundance, como sempre, foram escolhidos, para os painéis, cineastas cujas obras estavam sendo exibidas no festival (além de Todd Haynes, vencedor do ano anterior). Após me recusar a moderar um painel completamente masculino, consegui acrescentar a artista em vídeo Sadie Benning e minha editora do Village Voice, Lisa Kennedy, mas nenhuma cineasta. Su Friedrich me enviou uma diatribe me acusando de traição e infidelidade. Fui atacada na coluna de cartas do Village Voice por Jennie Livingston por não incluí-la no artigo, embora ela não tivesse tido participação nos eventos que descrevi. Mesmo a admirada Teresa de Lauretis me enviou uma carta de reclamação, embora mais solidária que as outras, expressando mais decepção que raiva: por que eu tinha que descrever um desequilíbrio de gênero tão desolador?

lésbicos que estão redefinindo toda a relação sapatão com a cultura popular permanecem de difícil acesso e marginalizados. O Festival de Cinema Gay e Lésbico de Amsterdã tornou essas discrepâncias claras como o dia. O festival aconteceu em novembro do ano passado, espremido entre Toronto e Sundance. Deveria ter sido o lugar mais excitante para se estar, mas não foi, de jeito algum. E, ainda assim, foi lá onde estiveram as garotas. Onde estiveram os vídeos. Onde estiveram os filmes feitos por negros e por cidadãos dos antigos países da Cortina de Ferro. Só as eminências pardas faltaram. Christine Vachon, coprodutora de Swoon e de Veneno, está certa de que o burburinho deste ano foi gerado por dinheiro: “Subitamente há um holofote dizendo que estes filmes podem ser comercialmente viáveis”. Ainda assim, todos tentam adivinhar quanto tempo esse momento de fascinação vai durar. Afinal de contas, nada disso está acontecendo em um vácuo: o que é celebrado nos festivais é desprezado nas ruas. Analisem as estatísticas de ataques homofóbicos. Espiem o aspirante a candidato presidencial, Pat Buchanan, demonizando Línguas Desatadas (Tongues Untied, 1989), de Marlon Riggs, que foi atacado tanto diretamente quanto serviu de desculpa para que fossem retirados recursos do Fundo Nacional para as Artes. Confiram as políticas de imigração americanas. Acrescentem a cota habitual de batalhas fratricidas: meninas contra meninos, obras narrativas contra experimentais, meninos brancos contra todo o resto, elitismo contra populismo, expansão de visões contra patrulhamento de fronteiras. Há razões de sobra para haver problemas no paraíso, mesmo quando a festa está só começando.

Toronto, 1991 A música estava no ar em Toronto em setembro de 1991, onde a reputação do cinema e do vídeo queer começou a se construir. Ou talvez eu apenas tenha amado R.S.V.P., de Laurie Lynd, porque ele tornou possível meu passeio de elevador com Jessye Norman. O filme de Lynd usa a ária de Norman de Les Nuits d’été, de Berlioz, como sua Madeleine – supostamente Lynd enviou o filme pronto para Norman como uma forma de pedir autorização para o uso da música, e ela gostou tanto que se ofereceu para comparecer à estreia mundial em Toronto. Com o tapete vermelho arrumado e uma casa cheia indo à loucura, ela sentou-se durante a projeção segurando a mão de Lynd. R.S.V.P. sugere que a tragédia e o trauma da aids levaram a um novo tipo de prática de filme e de vídeo, uma que assume as estratégias estéticas que os diretores já aprenderam e as aplica para uma necessidade maior do que a arte por ela mesma. Dessa

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vez, é a arte por nós, e ela é poderosa: ninguém pode permanecer com os olhos secos ao longo dessa elegia espirituosa. Lynd estava lá também como produtora, tendo trabalhado em The Making of “Monsters” (1991), do também canadense John Greyson. Na imaginação maravilhosamente fervorosa de Greyson, George Lukács larga a aposentadoria para produzir um filme para a televisão e contrata Bertolt Brecht para dirigi-lo. Ao lado da comédia característica de Greyson e dos rapazes de cuecas, há uma reencenação do argumento estético central da Escola de Frankfurt naquilo onde pode ser aplicado às crises de representação engendradas pela reação e pela violência antigay e pelos tratamentos na televisão da era da aids. Tanto filmes com orçamentos elevados quanto com orçamentos parcos foram exibidos em Toronto. De modo nada surpreendente, os filmes dirigidos por homens eram os de orçamento elevado, e os dirigidos por mulheres, de recursos parcos. Não é que eu fosse negar um centavo a Gus Van Sant ou retirar um único fotograma de Garotos de Programa (My Own Private Idaho, 1991), um filme que seguramente o coloca como o herdeiro aparente de Fassbinder. E daí se ele não conseguiu uma única indicação ao Oscar? Na outra ponta do espectro estava a vanguardista veterana Su Friedrich, cujo último filme, First Comes Love (1991), provocou silvos de desaprovação de sua plateia majoritariamente queer. Isso aconteceu porque o tema do filme é o casamento, um assunto sobre o qual o filme é saudavelmente ambivalente, misturando o ressentimento com a inveja, a raiva com a ânsia? Ou foi uma reação estética, uma vez que Friedrich retorna a um modo quase estruturalista para sua acusação da heterossexualidade institucionalizada, e, portanto, possivelmente aliena audiências acostumadas a soluções queer mais fáceis? Foi porque a diretora era uma mulher, e a única outra lésbica à disposição era Monika Treut, que, a essa altura, provavelmente deveria ser classificada como pós-queer, dada a expansão de personagens e interesses de seus filmes? Seja como for, a reação ao elegante curta de Friedrich distinguiu-se do resto, um barômetro anunciando tempestades adiante num conjunto de agradadores do público. O momento epífano, se houve um, foi a exibição de Eduardo II, de Jarman, que reinscreveu a homossexualidade tão integral à sua fonte do século XVI. O estilo de vida de Christopher Marlowe efetivamente impediu que seu corpo fosse sepultado no santificado Canto dos Poetas, na Abadia de Westminster, três séculos após sua morte em uma luta de taverna, segundo Jarman. Não é de se espantar que este tenha se 182

atraído pela maior criação do poeta. Para honrá-la, Jarman aplica um

estilo sincrético que mistura passado e presente de modo tão pleno, que o filme facilmente se adéqua a seu acrônimo – “QE2”, Queer Edward 2.7 Pense em pastiche anacrônico, conforme manifestantes da Out Rage e meninos gays fazendo ginástica se misturam com dramas minimalistas de época. A homofobia é posta a nu como uma ocupação atemporal, detectável ao longo de séculos, mas nunca carecendo de especificidade histórica. O amor obsessivo, enquanto isso, é expandido para incluir o desejo queer como uma fonte legítima de tragédia, capaz de ocupar o palco principal. Para mulheres, Eduardo II é um pouco complicado. Como os heróis são homens e o principal vilão é uma mulher, alguns críticos erroneamente condenaram a obra como misógina. Na realidade, o brilho de Tilda Swinton como atriz – e cocriadora plena de seu papel – investe em sua personagem mais peso, e, portanto, mais maldade, do que qualquer outra pessoa na tela. Além disso, o filme é também uma crítica ao mesmo tempo da heterossexualidade e de governos conservadores: em um mundo comandado por realezas e por membros do partido conservador britânico, Isabella parece mais inspirada por um ódio a Margaret Thatcher do que por qualquer misoginia generalizada. Annie Lenox está lá com a clara intenção de estar ao lado das garotas, e dos anjos. Seu solo “Every Time We Say Goodbye” acompanha a última dança de Edward e Galveston, trazendo grandeza, modernidade e até pós-modernidade à tragédia do casal. A música foi primeiro gravada no marco Red Hot and Blue, primeiro álbum beneficente voltado para a causa da aids, e também foi lançada em videoclipe, que esperava-se que fosse ser dirigido por Jarman. Entretanto, com o diretor quase cego em decorrência da aids, aparentemente próximo à morte, isso não pôde acontecer. Lennox gravou o clipe mesmo assim, inserindo imagens da infância de Jarman, com seus filmes caseiros literalmente projetados no rosto dela, em um tributo à vida, ao ativismo e ao status de HIV positivo do diretor. Ao incluir Lennox e essa música no castelo de pedras de Edward II, Jarman não importou apenas a cantora, mas também sua própria história pessoal. Por tais recursos, a viagem no tempo de Jarman insiste em transportar o juízo da realeza de outrora para o mundo queer atual e vice-versa.

7 Nota dos editores: O termo também faz referência à sigla pela qual a Rainha (Queen) Elizabeth II é conhecida: QE2.

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Amsterdã, 1991 O carro oficial apareceu no aeroporto todo coberto por cartazes do festival exibindo garotas e garotos luxuriosos. Amsterdã, cidade das luzes para viados e sapatões, oferecia a promessa de um evento totalmente próprio à cidade celebrada por sua queerness. A cidade com as melhores leis. O lugar onde a “liberação gay” havia sido mais institucionalizada. A casa de Cinemien, a distribuidora mais antiga de filmes de mulheres no mundo. A noite de abertura tinha assentos reservados para dignitários heterossexuais e discursos realizados por políticos locais ansiosos para reivindicar um eleitorado queer: os discursos realizados pelos vice-prefeitos e por ministros da cultura pareciam durar para sempre. Mas poucas concessões foram feitas à presença deles: um trailer em 35mm foi projetado, repleto de casais nus de queers de ambos os gêneros mandando ver na tela, esquentando as camas e, então, subitamente se entregando aos prazeres da carne para rolar no chão, observados por uma freira na tela de uma televisão, provavelmente uma referência ao tema favorito da coorganizadora do festival, Annette Forster (freiras lésbicas). Os discursos oficial e subcultural da noite de abertura se fundiram nos prêmios conferidos ao conjunto das obras dos diretores Ulrike Ottinger e Derek Jarman. Embora o prêmio entregue fossem placas convencionais, aquele que dá nome à premiação é uma figura menos convencional: Bob Angelo. Nomeados em homenagem a um famoso antifascista e membro da resistência holandesa cujo nome de guerra era Angelo, os prêmios lembram de sua identidade proeminente de queer. Ele fundou a primeira organização de “liberação homossexual” holandesa em 1945, imediatamente após a guerra, e, após isso, criou os precursores dos maiores grupos em defesa dos direitos gays da Holanda. Geralmente, eu acho cerimônias de entregas de prêmios bastante aborrecidas, mas havia algo honestamente comovente nesta. Quando Derek Jarman se aproveitou da oportunidade para pedir a descriminalização de Oscar Wilde, em um perdão oficial a tempo do centenário de sua condenação em 1995, prometendo também lançar uma comissão para que fosse posta uma estátua de Wilde nas ruas de Londres, o passado e o presente queer pareceram estar em um firme diálogo um com outro. O festival teve dois diretores, uma mulher e um homem, e dois tipos de camisetas, uma com rapazes, outra com garotas. Meu amigo britânico Mark Nash provocou confusão pedindo uma com mulheres para ele próprio. Havia dois cinemas também, e o festival geralmente passava os filmes realizados por homens na sala que era maior. Um visitante 184

internacional aventou a hipótese de as mulheres terem ficado com a sala

menor porque só na bombonière desta havia chocolate quente, claramente uma necessidade lésbica. As expectativas eram altas, mas, na verdade, o festival mostrou todas as preciosas vantagens e problemas irritantes que a vida no gueto comporta. Amsterdã era um teste de fogo para obras queer, é verdade: alguns foram celebrados, outros queimados, e há os que poderiam ter sido completamente ignorados. Como esse evento se encaixa no grande quadro estabelecido pelos “grandes festivais”? Bem, ele não se encaixa. A identidade que, em outros lugares, se tornou uma medalha de honra, aqui virou uma camisa-de-força. Mas existiriam “outros lugares” sem o “aqui”? Amsterdã foi um exercício em dialética em ação, com prazeres e perigos. Para dialética do turismo, a realizadora de vídeos Cecilia Dougherty e a distribuidora de vídeos Kate Horsfield me levaram para um passeio ao monumento gay da cidade, uma estrutura tripartite de triângulos feita de pedra para lembrar o genocídio de homossexuais durante a ocupação nazista. Eu achei o monumento cafona; Cecilia achou sutil; Kate disse que bastava que aquilo estivesse ali. Ela filmou a escultura com sua onipresente câmera Video-8, tecnologia de ponta. Sadie Benning também estava lá, em Amsterdã, não nesse passeio; era a primeira vez dela fora dos Estados Unidos. Ela vivia outras aventuras. Um dia ela comprou uma bicicleta roubada no mercado de pulgas; algumas noites depois ela se surpreendeu ao sair do festival e encontrar sua bicicleta do lado de fora, só a tranca tendo sido levada. Destemida, ela saiu à procura de garotas maneiras de 14 anos (e, claro, as encontrou). O cineasta Nick Deocampo, das Filipinas, planejava o primeiro festival gay de seu país e esperava que a Guerra das Viúvas não fosse impedi-lo.8 Alguns eventos sugeriam que ele poderia ter problemas. Por exemplo, a esperada exibição, em Amsterdã, de Manila by Night (City After Dark, 1980), de Ishmael Bernal, nunca aconteceu: a cópia do filme, banido durante o regime de Marcos, ironicamente não recebeu autorização para deixar as Filipinas de Aquino. Uma homenagem ao cinema queer tailandês também não aconteceu: a trilogia de filmes tailandeses não chegou, detida em um aeroporto em Bangcoc e proibida de deixar o país. Raça, status, romance, gênero, até mesmo a necessidade do festival tornaram-se objetos de ataque e de negociação, numa daquelas raras

8 Essa era a expressão para os eventos envolvendo o retorno de Imelda Marcos a Manila em desafio ao governo de Corazón Aquino, uma reversão do período em que o marido martirizado de Aquino tentou retornar sob a ditadura do marido de Imelda e foi assassinado. Para mais detalhes, ver BURTON, Sandra; SINDAVEN, Nelly. The Philippines: The War of the Widows. Time, 18 de novembro, 1991.

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ocasiões em que o público teve a chance de responder. Pratibha Parmar afirmou a importância de um circuito queer – “minha tábua de salvação” –, certa de que é crucial para o trabalho que ela apresentou, produzido principalmente para o Channel Four (que recebe boa parte do crédito para a revitalização queer no Reino Unido). O compatriota britânico Jarman discordou: “Talvez este tempo tenha passado”. Talvez a vida no gueto agora ofereça retornos reduzidos. Jarman expressou a esperança de que os dias de festivais de “gueto” tivessem acabado. Não é que não houvesse bons filmes em Amsterdã. Mas as melhores obras pareciam vir de muito tempo atrás ou de um lugar muito distante, como os grandes shows de filmes alemães de crossdressing, que incluíam Asta Nielsen em Zapata’s Band (1914), de Urban Gad, um dos primeiros filmes de Ernst Lubitsch (Eu não quero ser um homem, Ich möchte kein Mann sein, 1918) e até mesmo Viktor und Viktoria (1933), de Reinhold Schünzel, sem nenhuma Julie Andrews à vista. A escritora de romances de detetive Mary Wings realizou um tributo ao “passado lésbico de Greta Garbo”. Para mim, todavia, o tributo mais extraordinário foi um mais recente, mas não por isso menos visto: O Funeral das Rosas (Bara no sôretsu, 1969), de Toshio Matsumoto, filme de fantasia japonês dos anos 1960. Uma loucura underground que se aproxima a uma mistura entre Jean-Luc Godard e o grande e recém-falecido [1991] Lino Brocka, o filme incluía uma narrativa edipiana virada de cabeça para baixo, intriga, liberação sexual, drogas, cross-dressing, protestos políticos, cores abundantes descontroladas e um manifesto político citando Jonas Mekas. O filme deixou o público gritando de prazer e descrença. Havia também dois incríveis novos filmes lésbicos, ambos merecedores de status cult instantâneo. Direto de Frankfurt, a antiga diretora do Festival de Oberhausen desencavou um filme suíço, parte do programa “Êxtase Cerebral” que foi imediatamente cativante. Mano Destra (1986), de Cleo Uebelmann, trouxe bondage e dominação diretamente ao espectador, oferecendo fetichismo em nós e os arrepios da antecipação especular misturados a uma compreensão inexplicável dos próprios poderes do cinema. A obra amarrou o espectador diretamente em uma experiência visceral de bondage e dominação. De um trio de cineastas vienenses – Angela Hans Scheirl, Dietmar Schipek, Ursula Puerrer – veio Flaming Ears (1991), uma fábula surreal que se baseia em histórias em quadrinhos e tradições da ficção científica para uma história de amor pós-humana visualizada em uma atmosfera

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de cabaré, destroços e vingança.9 Seu novo estilo “cyber-sapatão” reflete fontes austríacas tão diversas como Valie Export e Otto Muehle, mas filmados valendo-se da crueza visual do Super-8 e com um roteiro que poderia ter sido escrito pelo próprio J. G. Ballard. Descartando a narrativa, o filme adota um surrealismo de ferro velho como substituto plausível e se tornou o sucesso lésbico do festival. De modo bastante estranho, Amsterdã sofreu de uma curiosa falta de esfera pública: foi um evento local tornado global, um festival de identidade mas sem identidade. A imprensa holandesa, que eu esperava que fosse se envolver e colocar o festival em evidência, não se interessou. Foi uma vergonha que ela tenha marginalizado o festival, porque o tipo de furo que o New York Times e a Newsweek iriam encontrar mais tarde em Utah, saudando como uma descoberta, poderia ter pertencido aos holandeses em sua casa. Em uma dessas raras ocasiões em que um diálogo público aconteceu, os níveis de contestação e divergência de pautas se tornaram dolorosamente aparentes. A teórica do cinema Teresa de Lauretis, que estava numa residência na Universidade de Utrecht naquele outono, organizou um painel chamado “Cinema Lésbico: Depois da História de Amor”. Foi uma ideia ótima, uma tentativa de levar o pensamento além da primeira fase, marcada por obras do tipo “garota-conhece-garota”. Foi uma ótima ideia, ou não. As mulheres holandesas não quiseram ir além das histórias de amor; indignadas, elas resistiram ao que, confusamente, entenderam como uma trama acadêmica para acabar com o seu prazer. No painel sobre raça, enquanto isso, o conflito que teve lugar foi entre o sucesso da conferência para encontrar um elevado número de obras realizadas por lésbicas e gays negros para exibir, e estrangeiros para convidar, mas ao mesmo tempo falhando completamente para incluir realizadores que não fossem brancos da própria Amsterdã. Pratibha Parmar, Marlon Riggs e Felix de Rooy (o realizador, de Curaçao, que fez Ava and Gabriel, de 1990) abordaram a questão, só desqualificada pelo codiretor do festival, Paul Verstraeten, que contra-atacou com gosto, dirigindo-se a todo o auditório em alguns momentos; pode-se imaginar as consequências. Só a sensatez de uma debatedora, uma ativista lésbica holando-guianesa, procurou acalmar a situação. De resto, os holandeses acusaram os não holandeses de ignorância e de explorar uma situação

9 Seu título provisório no festival era Red Ears Hunt through Ash.

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mal entendida, enquanto os delegados norte-americanos e europeus foram embora com uma visão revisada da “tolerância” dos Países Baixos. O tom do festival foi o de um mundo alimentando-se de si próprio, com a raça sendo apenas a manifestação mais previsível das tensões. Outra foi a revolta por parte de algumas diretoras e realizadoras de vídeos lésbicas, que se sentiram menosprezadas em comparação aos diretores de longas metragens homens. Outra tensão também foi a frequência de salas com lotação pela metade devido à falta de cobertura da imprensa local. Não obstante, um novo tipo de vídeo lésbico apareceu ali, e com ele emergiu também uma sensibilidade lésbica contemporânea. Assim como os filmes gays masculinos agora sob os holofotes, este vídeo tem tudo a ver com uma nova historiografia. Mas onde os rapazes são arqueólogos, as meninas precisam ser alquimistas. O estilo delas é diferente de tudo que já veio antes. Eu chamaria esse estilo de camp lésbico, mas a espécie é, afinal de contas, mais conhecida pelo tipo de camping que envolve barraca. E “revisionismo histórico” não é um termo com apelo. Então, simplesmente vamos tomar de empréstimo uma expressão de Hollywood e chamá-lo de Grande Re-escrita Sapatão (Great Dyke Rewrite). Aqui há uma amostra do novo gênero. Em Grapefruit, de Cecilia Dougherty, adaptação livre do livro de Yoko Ono, sapatões brancas de San Francisco (incluindo uma das primeiras encarnações de Susie Bright) se passam, sem pedir licença a ninguém, por John, Yoko e pelos Beatles, provando que a apropriação e a subversão dos papéis de gênero formam uma grande combinação. Eu disse “se passam”? Elas são os Beatles pelo breve período deste vídeo, finalmente recompensando todas as sapatões que quiseram ser algo além de uma fã na cena de rock do começo da década de 1960. Às vezes, as fãs sapatões querem seus ídolos do jeito que eles apareceram na tela pela primeira vez – só que, bem, de modo diferente. Cecilia Barriga claramente também se sentiu dessa maneira e fez algo a respeito. Encuentro entre dos Reinas (1991), reedita filmes de Dietrich e de Garbo para construir uma narrativa dos sonhos: junte as garotas, ajude-as a se conhecer, faça as coisas rolarem. É uma forma de idolatria que pega a prática de crítica literária feminista de “leitura a contrapelo” em um novo território de imagens, lançando os resultados na tela (ou no monitor, para ser mais exato). Em um episódio de Dry Kisses Only (1990), de Kaucylia Brooke e Jane Cottis, o encontro nos bastidores entre Anne Baxter e Bette Davis em A malvada (All About Eve, 1950), de Joseph L. Mankiewicz, é alterado, colo188

cando no lugar de Baxter uma sapatão que, dirigindo-se diretamente à

câmera, fala sobre sua vida trágica, crescendo em uma fazenda, mudandose para San Francisco para trabalhar em um bar lésbico e conhecer as mulheres no exército, seu amor verdadeiro perdido em uma batalha da Segunda Guerra Mundial. Ela é entrecortada pelos contracampos originais de Davis reagindo, culminando com esta lhe dando os braços (e a levando para casa). A montagem une tristeza heterossexual e admiração pela coragem e tristeza lésbicas. Brooke e Cottis não apenas oferecem um final feliz para espectadoras lésbicas, mas, na verdade, também uma explicação lógica para a narrativa original do filme. Para além dos vídeos, as lésbicas do festival depositaram todas as suas esperanças voyeurísticas na Festa “Molhada”, onde elas, por fim, chegariam aos finalmentes. Bem, ou quase isso. Todas certamente tentaram. Os trajes variavam da infância-na-praia processada por engenhosidade camp à seriedade e ostentação do couro. Mulheres balançavam na piscina, brincando com colchões flutuantes e bonecas infláveis negras e brancas (Parmar observaria depois que havia mais bonecas infláveis negras do que mulheres negras). As sex stars de San Francisco, Shelly Mars e Susie Bright, fizeram apresentações, embora o grande momento no qual Bright parecia nos estar ensinando acerca da “roupa íntima edipiana” tenha se revelado um trocadilho cruel: ela estava, na verdade, se referindo a roupas íntimas comestíveis.10 Mas os quartos dos fundos foram usados para conversas íntimas, não para a ação. Capturadas entre os estados de roupas elaboradas e do despimento, todas esperaram para que outra pessoa fizesse algo. Outras festas ofereceram outros prazeres. Em uma delas, Jimmy Somerville, de surpresa, fez uma homenagem a Sylvester, a saudosa diva disco de San Francisco. Em outra, Marilyn Monroe apareceu, desenhada em um bolo gigante, agarrando a saia, só para ser retalhada por um bando de chefs homens. No final, de algum modo, Amsterdã foi o festival que você amou odiar, o lugar onde todos queriam o mundo e não sossegariam por nada menos, onde a roupa suja pôde ser lavada em público e qualquer autoridade desafiada, onde as audiências foram resistentes a obras experimentais e não narrativas, e onde críticas foram concedidas mais generosamente do que elogios. E ainda assim... enquanto o mercado pode ser sedutor, ele não é democrático. Amsterdã foi o lugar onde uma Festa Molhada pôde ao menos acontecer, onde novas obras realizadas por mulheres e por pessoas negras receberam tratamento de honra, onde o vídeo foi totalmente integrado à programação. Amsterdã foi um encontro 10 Nota do tradutor: Trocadilho entre oedipal (edipiano) e edible (comestível).

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ritual da tribo e, como uma reunião de classe, carregado de panelinhas, tensões e ambivalências ao lado da celebração.

Park City, Utah, 1992 Tudo se juntou no Festival de Sundance em Park City, Utah. Tudo. O entusiasmo que começou a ser construído em Toronto ganhou velocidade. A percepção de um momento histórico, não obstante quão contestado, que começou em Amsterdã estourou a olhos vistos. Algo estava acontecendo, e, desta vez, todos perceberam. The Hours and Times, de Christopher Münch, é um bom exemplo. Plateias se apaixonaram por essa crônica imaginária do último tango de Brian Epstein e John Lennon em Barcelona. O estilo da câmera e o roteiro de Münch são uma reprise do cinéma vérité, como se alguns rolos empoeirados tivessem sido descobertos em um armário em Liverpool e habilmente montados, como se Richard Leacock ou D. A. Pennebaker tivessem se tornado pró-gays retroativamente. Epstein tenta levar Lennon para a cama, valendo-se de angústia do velho mundo, alienação homo, charme judeu. Lennon tenta resolver a vida, equilibrando a esposa Cynthia com groupies com Epstein, tentando ter tudo e descobrir o que vem a seguir. Apenas uma simples visão da história com o véu da homofobia removido. Há rumores de que o júri de ficção de Sundance gostou tanto do filme que quis dar o Grande Prêmio para ele – mas, como não era um longa-metragem, contentaram-se com um prêmio especial do júri. “Coloca o Homo novamente em Homicídio”, anuncia o teaser de Swoon – Colapso do Desejo, primeiro longa de Tom Kalin, mas a frase facilmente poderia também se aplicar a The Living End, filme mais recente de Gregg Araki. Onde o filme de Kalin é uma interrogação do passado, o filme de Araki acontece resolutamente no presente. Será que é mesmo? Cinematograficamente, ele reencena o celuloide das décadas de 1960 e 1970: a primeira fase de Godard, Bonnie e Clyde (1967, Arthur Penn) ou Terra de Ninguém (Badlands, 1973, Terrence Mallick), todo filme de uma dupla fugindo que já penetrou na consciência de Araki. Aqui, no entanto, os rapazes são HIV positivo, um entediado e o outro cheio de ira, os dois sem ter nada a perder. Eles poderiam ser personagens de um filme pornô, o garanhão e o cliente, em um terreno renegociado. Os primeiros filmes de Araki com frequência são muito banda-de-garagem, muito púberes, muito ligados em ruído visual para o meu gosto, mas este é diferente. O estilo da câmera e a palheta de cores atualizaram a New Wave. As corridas estilísticas de Araki valeram a pena, e desta vez ele tem um retrato de 190

queers em fuga que merece um lugar na história do cinema: um filme

existencial para uma era pós-pornô, um filme que coloca queers no mapa como um tema e um gênero legítimos. É, quintessencialmente, um filme de seu tempo. Swoon também o era, embora possa parecer diferente, com seus irônicos cenários de época, com seus registros roubados dos anos 1920 e com o roteiro fiel ao que aconteceu no tribunal, baseado no julgamento realizado em Chicago, em 1924, de Leopold e Loeb, o par de garotos judeus ricos que se uniram, fizeram planos e finalmente mataram um menino. No rastro do caso Dahmer, seria fácil pensar neste como um filme sobre atos horríveis.11 Swoon, no entanto, lida com parâmetros diferentes: é a história dos discursos que está sob o microscópio de Kalin, como ele demonstra quão facilmente os setores dominantes da sociedade da década de 1920 podiam unir comunidades discretas de outsiders (judeus, queers, negros, assassinos) em uma comunalidade da perversão. Todo o olhar do filme – a diretora de fotografia Ellen Kuras ganhou um prêmio em sua categoria em Sundance – enfatiza esta visão com a qualidade gráfica de seu antirrealismo, mostrando o quanto Kalin, Kuras e a coprodutora, Vachon, costuraram o seu visual de acordo com seus argumentos implícitos.12 Como parte de uma nova geração de diretores, Kalin não está satisfeito em viver no passado, mesmo que num passado pós-moderno. Não, Swoon, assume toda a empreitada das “imagens positivas” para queer, mas somente para definitivamente rejeitar qualquer projeto nesse sentido e virando a coisa toda de cabeça para baixo.13 Eu duvido que qualquer um que tenha condenado O silêncio dos inocentes (The Silence of the Lambs, 1991, Jonathan Demme) por homofobia tóxica vá engolir Swoon facilmente, 11 Jeffrey Dahmer era o notório serial killer e canibal que matou 17 homens e meninos em Milwaukee. Ele foi capturado no verão de 1991 quando aquela que seria sua décima oitava vítima conseguiu escapar mesmo algemada, em seguida levando a polícia até o apartamento. Dahmer foi a julgamento em 1992, condenado e, então, assassinado por outro presidiário dois anos mais tarde. Seus crimes recebiam grande destaque na imprensa na época de estreia de Swoon em Sundance. 12 Este efeito é ainda mais pronunciado na versão em DVD de Swoon da Strand, uma vez que a diretora de fotografia Ellen Kuras cuidou da masterização digital do filme de modo a criar uma clareza impossível de se ver na cópia original em 16mm. A dedicação da Strand em trazer de volta muitos filmes do começo da década de 1990 em DVDs de alta qualidade é fundamental para preservar a história do New Queer Cinema, assim como a fundação da companhia foi fundamental para o florescimento inicial do NQC. 13 Ninguém pronunciou o nome de Vito Russo, mas ele pode estar se contorcendo em seu túmulo se Celluloid Closet (o livro) for um guia confiável para seu mapa de imagens positivas e negativas; The Celluloid Closet, de Rob Epstein e Jeffrey Freedman, e o novo documentário Vito, de Jeffrey Schwartz, são fontes excelentes para as visões ativistas de Russo.

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mas, esperançosamente, o filme forçará que se repensem essas posições. Reivindiquem os heróis, reivindiquem os vilões, e não confundam qualquer um deles pela realidade. Ao longo de Sundance, um comentário que Richard Dyer fez em Amsterdã ecoou na minha memória. Há duas maneiras de desqualificar filmes gays, ele disse: uma é dizer “oh, é apenas um filme gay”, enquanto a outra é proclamar “oh, é um ótimo filme, não é importante que ele seja gay”. Ele estava se referindo aos filmes de Jarman e de Ottinger, defendendo que eles eram ótimos precisamente devido aos modos como eram gays. Mas esse critério também se aplicou aos filmes em Sundance, como, filme queer atrás de filme queer, as obras apresentadas capturaram minha imaginação, os aplausos da plateia e a atenção da imprensa. Não, sua queerness não era mais arbitrária do que sua estética, nem mais do que suas preocupações individuais em interrogar a história. Em celuloide e fitas magnéticas, assim como na vida e na cultura fora das telas, o presente queer negocia com o passado, sabendo perfeitamente bem que o futuro queer está em jogo. Vídeos são presságios ainda maiores desse futuro, mas, ainda assim, Sundance, como a maioria dos festivais, não exibiu nenhum. Para levantar a questão da carência de longas-metragens lésbicos e para confrontar a indústria com suas próprias exclusões, nosso painel dos Beijos de Arame Farpado teve início com uma exibição de Jollies, de Sadie Benning, um vídeo que levou a plateia à loucura. Com uma economia de meios absoluta, Benning fez um Retrato da Artista Quando Jovem Sapatão como nunca antes havíamos visto. “Eu tive uma paixão. Foi em 1978, e eu estava no jardim de infância”. As falas são ditas encarando a câmera, com imagens em preto e branco flutuando no quadro ao lado das palavras usadas para enunciar suas emoções, com cortes associativos colocando assunções estabelecidas em questão. Sim, um gênero nasceu. O festival acabou, é claro. Isaac Julien voltou para Londres para finalizar Black and White in Colour (1992), seu documentário sobre a história dos negros na televisão britânica. Sadie Benning, que abandonou a escola, foi embora para exibir seus filmes em Princeton e para fazer outro, It Wasn’t Love, que prova que seu talento não é fruto do acaso. Derek Jarman e Jimmy Somerville foram presos em Londres por protestar fora do Parlamento.14 Cristopher Münch e Tom Kalin receberam prêmios em Berlim. Gregg Araki encontrou um distribuidor. Novas obras continuaram sendo produzidas: o festival gay e lésbico Frameline, de San Francisco,

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14 Jarman morreria de complicação relacionadas à aids no dia 19 de feve-reiro de 1994.

teve um aumento de 50% em suas inscrições em junho. A Queer New Wave completou sua volta: os rapazes e seus filmes chegaram. Mas as lésbicas receberão um dia a mesma atenção para seus trabalhos que os homens recebem para os deles? Queers negros um dia terão o mesmo tempo dedicado? Ou o vídeo alcançará o status reservado para o cinema? Peguem, por exemplo, o caso de Cheryl Dunye, uma jovem realizadora de vídeos cujas obras She Don’t Fade e Vanilla Sex colocam uma virada aguçada e satírica nos romances negros e em ilusões interraciais.15 Ou mantenham o olho aberto para L is For the Way You Look, de Jean Carlomusto, para o episódio em que amigas em uma performance em Reno percebem Fran Lebowitz na plateia e, então, gradualmente se dão conta de que a pessoa acompanhando Fran é ninguém menos do que Dolly Parton. É um retrato definitivo da idolatria sapatão, da importância da posição do indivíduo e da fragilidade da amizade quando a fama está em questão. Pode ser que ainda tenham permanecido, que sonhos tenham sido reforçados e que decepções aguardem adiante. Que se saiba, todavia, que, por uma tarde mágica de sábado em Park City, houve um painel que traçou uma história: Derek Jarman em uma ponta, às vésperas de seu quinquagésimo aniversário, e, na outra, Sadie Benning, acabando de alcançar a idade de consentimento. O mundo havia mudado o bastante para que ambos pudessem estar ali, com um grupo de companheiros entre eles. Todos engajados nos começos de uma nova historiografia queer, capaz de transformar esta década, bastando para isso que a porta fique aberta tempo o bastante. Para ele, para ela, para todos nós.

15 Dunye realizaria The Watermelon Woman (1996) e outros filmes. Em Chicago, um casal de jovens lésbicas chamadas Rose Troche e Guinevere Turner leria este mesmo artigo na Sight and Sound no outono de 1992 e decidiria contatar Christine Vachon a respeito de um pequeno filme no qual tinham começado a trabalhar juntas: O par perfeito (Go Fish, 1994).

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Desmontando a Caravela Queer1

Jota Mombaça2

Há uma narrativa corrente acerca de como queer emergiu no campo das micropolíticas contemporâneas, a partir da revolta de Stonewall Inn nos Estados Unidos, no fim dos anos 60 - começo dos 70. Por essa perspectiva, antes de tornar-se um discurso teórico com respaldo acadêmico em escala global, queer marca uma posição política radical, que problematiza as normatividades sexual e de gênero no contexto das lutas por liberação que tiveram lugar nos Estados Unidos – e em outras partes do mundo – nesse mesmo período. A estratégia queer por excelência é a da reapropriação da injúria e a consequente afirmação da diferença marginalizada como ponto de vista privilegiado para uma crítica antinormativa da normatividade. A partir de um giro radical, é a criatura queer – desobediente de gênero e dissidente sexual – que se posiciona no centro da corpo-política contemporânea, reivindicando um corpo, uma voz e uma ética inteiramente diversas com respeito àquela imposta pelo domínio da heteronormalidade. 1 Originalmente, este texto foi dividido em duas partes e publicado no site http://www.ssexbbox.com, sendo a primeira parte postada em 23 de junho e a segunda em 28 e agosto , ambas no ano de 2016. Nesta publicação, as partes foram unidas e o texto não sofreu nenhum tipo de alteração. 2 Artista, vinculadx ao programa de pós-graduação da UFRN, performer e pesquisadorx del kuir em contextos sudakas, terceiro-mundistas, transfron-teiriços e de mestiçagem estética, ética, visual, linguística, política, étnica, sexual e epistêmica.

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Afirmar essa narrativa, que tributa ao ativismo queer estadunidense o marco genealógico de toda prática teórica que hoje inunda os arquivos acadêmicos do mundo, tem o efeito de descentrar o eixo lógico da produção de conhecimento. Afinal, se queer é antes uma chave de ação política e um princípio agregador de experiências, corpos e vidas postas à margem do sistema heterocapitalista, qualquer saber que queira daí desdobrarse deve assumir para si uma politização incontornável, que não apenas balance os domínios epistemológicos consagrados pelas tradições teóricas do pensamento hétero, mas que também desafie gramáticas, ginásticas, posições e práticas de vida projetadas como norma pela heterossexualização da vida. Ocorre que, por efeito de sua própria internacionalização enquanto conceito-chave e enquanto programa para práticas e discursos desobedientes quanto às normatividades de gênero e sexualidade, queer participa não de um, mas de diversos cenários de emergência distintos. Embora haja uma história oficial do queer vinculada compulsoriamente ao eixo da genealogia estadunidense, os modos como essa palavra-chave penetrou os múltiplos vocabulários locais fez proliferar outras narrativas. Em resumo: o queer de Pindorama, do sul quente dos trópicos, não emerge a partir dos mesmos processos que o queer de cima. Aqui, por exemplo, antes de informar diretamente os ativismos cotidianos de pessoas translésbixas, queer aparece como evento acadêmico. Isso não implica necessariamente uma despolitização total, nem define de partida o todo das possibilidades de apropriação do queer nos trópicos, mas certamente envolve numa representação da academia e das instituições como campos de batalha o eixo central de luta e politização queer no Brasil. Se houve aqui um ativismo queer inaugural, este foi experimentado majoritariamente no âmbito da institucionalidade acadêmica. O queer de Pindorama emerge, assim, de um movimento inverso ao da história oficial do queer estadunidense: vai da teorização à ética; é antes uma abordagem do que um modo de vida e sua geografia afetiva é menos a da boite, da noite, das tretas de rua, dos inferninhos e cantos escuros, do conflito com a polícia, e mais as das salas de aula e corredores departamentais das instituições de produção de conhecimento formal. Esse queer forjado por meio de artigos científicos e teses de doutoramento, ainda que se rebele parcialmente contra os enquadramentos teóricos hegemônicos, não consegue escapar completamente das modulações do campo que o envolve: como evento acadêmico, queer articula sua rede de sujeitos objetificados, projeta seu arcabouço de ficções teóricas e formula suas 196

próprias analíticas socioantropológicas, históricas e estéticas, projetando

sobre o aqui-agora das relações de gênero e sexualidade um vocabulário novo, repleto de taxonomias autoproclamadas as mais corretas para lidar com os fenômenos da dissidência corpo-política nos trópicos. Hija de Perra, em seu ensaio “Interpretações imundas de como a teoria queer coloniza nosso contexto sudaca, terceiro-mundista e pobre de aspirações, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados pela heteronorma”, ao refletir sobre as insuspeitas continuidades entre queer e colonialidade no contexto sul-americano (especialmente o chileno), apresenta – tendo como ponto de partida a própria experiência – uma crítica ao caráter de interpelação que o queer adquire quando aqui chega. Ao falar de si como “uma nova mestiça latina do Cone Sul que nunca pretendeu ser identificada taxonomicamente como queer”, Perra atribui aos teóricos de gênero a responsabilidade pelo seu encaixe nesse eixo classificatório, revelando assim o quanto a proliferação do referencial queer no nosso contexto historicamente marcado por efeitos de colonialidade e subalternidade dependeu, ao menos inicialmente, desse ato de dar nome levado a cabo por meio de iniciativas teóricas relativamente separadas dos movimentos de vida que tem caracterizado as existências dissidentes sexuais e desobedientes de gênero no mundo sudaca. Assim, embora teoricamente as abordagens queer confrontem a noção de identidade como fixa, e se pautem tanto numa desnaturalização radical das posições de sujeito quanto numa relação de resistência perante as imposições e assujeitamentos corpo-políticos, elas não deixam de produzir como efeito, a partir de sua emergência nos trópicos, isso que Hija de Perra põe em evidência: um gesto simultaneamente colonial e perturbador, que precipita a própria captura antes mesmo de chacoalhar de fato a ordem contra a qual promete insurgir-se. Não se pode dizer que o problema da colonialidade tenha passado desapercebido no marco dos estudos queer acadêmicos do Brasil. No mesmo ano (2012) que Hija de Perra publicou o ensaio citado no primeiro texto desta série, um interessante movimento de critica descolonial ganhou força na produção queer brasileira oficial. Destaco aqui dois textos dessa leva que se tornaram bastante populares entre pessoas estudiosas do assunto. “Queer nos Trópicos”, de Pedro Paulo Gomes Pereira, e “Subalterno quem, cara pálida? Apontamentos às margens sobre póscolonialismos, feminismos e estudos queer”, de Larissa Pelúcio, ambos publicados no mesmo Dossiê Saberes Subalternos da Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCAR (2012). Esses dois textos compartem uma perspectiva bastante crítica quanto ao modo como, no que diz respeito à geopolítica do conhecimento afinada

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em escala global, a produção teórica queer brasileira deve desafiar, desde as margens, os postulados projetados como verdade pela colonialidade do saber, regime que visa definir – segundo uma hierarquia na qual os saberes do “Sul Global” são necessariamente inscritos por efeitos de subalternidade, ao passo que as produções euroestadunidenses são hiperestimuladas e sobrevalorizadas – o que conta ou não como “teoria de ponta”. Tais reflexões têm a importância de situar os termos definidos pelo cânone queer global, questionando sua universalidade ao mesmo tempo em que afirmam, desde o contexto igualmente situado da produção teórica queer brasileira, uma singularidade perante as generalizações feitas por autores euroestadunidenses. Nesse sentido é que as proposições de Paul B. Preciado, especialmente as contidas em Testo Yonqui, são criticamente avaliadas e confrontadas em ambos os textos. Não se trata, contudo, de uma tentativa de invalidação das contribuições do autor, mas de uma problematização contundente quanto ao caráter universal dessas proposições com vistas à insuficiência de seus modelos para uma análise da realidade brasileira concreta. Dos dois textos mencionados, é o “Queer nos Trópicos” que vai mais fundo nessa problematização da obra de Preciado. Para uma revisão crítica do conceito de “farmacopornopoder” – que, grosso modo, postula a preponderância dos dispositivos fármaco (biotecnológico) e pornô (semiótico-técnico) nos processos de subjetivação e de produção de gêneros na contemporaneidade –, Pedro Paulo Gomes Pereira evoca a experiência de Cida, travesti com quem conviveu durante uma etnografia realizada em 2004 num abrigo para pessoas portadoras de aids nas proximidades de Brasília. Depois de apresentar brevemente a história de vida de Cida e traçar um paralelo com a de Preciado, o autor concede especial atenção à relação “de sua fonte” com a umbanda, enfatizando o modo como esse conhecimento mítico-religioso e as ritualizações que ele implica interatuam junto a uma série de outros elementos – técnicos, discursivos, performativos – na produção de seu corpo. No texto, a relação entre religiosidades afrobrasileiras e processos de subjetivação e corporificação de mulheres trans e travestis é abordado a partir de uma série de referências a outras pesquisas acadêmicas sobre o tema. Levando em conta essas narrativas sobre travestis adeptas de umbanda, candomblé ou quimbanda, Pedro Paulo busca problematizar a centralidade dada por Preciado (e por outros autores europeus importantes para o desen198

volvimento dos estudos queer, como Michel Foucault) aos elementos de

matriz biotecnológica na produção dos corpos, afirmando a insuficiência de modelos universais a partir de um quadro complexificado pela interação de elementos míticos e rituais com fluxos de imagem, silicone, hormônios etc., no corpo de travestis afro-religiosas do Brasil. Dessa maneira, “Queer nos Trópicos” pretende excitar uma reconfiguração possível do arcabouço teórico queer consolidado nos estudos sobre vivências trans e reivindica, para isso, uma analítica queer sensível ao modo como diferentes contextos acionam diferentes mediadores para a produção dos gêneros e sexualidades. Com esse movimento, o autor consegue desbancar a relação de poder geopolítico que garante aos saberes projetados desde os centros globais de produção de conhecimento a possibilidade de definir os modelos analíticos que serão aplicados nas margens. No entanto, para dar cabo disso, depende de reconstruir com sua própria voz a experiência de Cida e de outras travestis. Ao comparar a história de Cida com a de Preciado, por exemplo, o autor em nenhum momento alude à própria história, ou assume a implicação que o próprio corpo tem no tipo de produção conceitual que ele leva adiante em seu texto. O que Pedro Paulo oferece como contraponto à experiência de Preciado narrada em primeira pessoa é a experiência de Cida narrada em terceira pessoa. Dessa maneira, não obstante desbanque a tradição universalizante das produções de conhecimento eurocêntricas a partir de um enfoque singularizado pela densidade do contexto brasileiro, o seu texto se sustenta por sobre um apagamento sistemático das próprias marcas corpo-políticas de quem escreve – o que desdobra uma continuidade insuspeita entre o que autor faz e o que ele critica. Se ao criticar a dimensão colonial do queer no mundo sudaca Hija de Perra evoca sua experiência para interrogar, desde a própria dissidência sexual e de gênero, a matriz queer de conhecimento, oferecendo dessa forma uma resistência efetiva à interpelação queer como efeito de poder acadêmico; o giro decolonial das pessoas teóricas de gênero do Brasil segue limitado a assinalar escalas hierárquicas entre contextos acadêmicos distintos (os do Norte e do Sul globais), sem com isso, em momento algum, questionar a própria academia – com sua linguagem teórica normalizada, sua tematização das vidas de pessoas reais e suas hierarquias consolidadas por sistemas rígidos de avaliação institucional – como território-chave para a atualização do queer como referencial indissociável da colonialidade do saber no contexto brasileiro (sudaca e terceiro-mundista).

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Assim, falta à elite teórica do queer nos trópicos reconhecer de que modos a colonialidade do queer não se dá somente de fora para dentro – isto é, do mundo euroestadunidense para os contextos periféricos –, mas também de dentro para dentro, por efeito de um “colonialismo interno” levado a cabo pelos mesmos teóricos de gênero que ora questionam a supremacia do queer do Norte sobre os queer do Sul. Nesse sentido, a oposição macro-estrutural Norte e Sul produz contraditoriamente um apagamento das tensões Sul-Sul e contribui para a perpetuação de modos de dominação epistemológica, ética e política não previstos por autores como Pedro Paulo Gomes Pereira. Desaprender o queer dos trópicos tem assim o sentido de uma desnaturalização radical dos procedimentos acadêmicos, incluindo uma problematização das relações sujeito-objeto que ajudaram a consolidar a elite teórica queer do Brasil, assim como uma revisão critica dos efeitos de interpelação que a apropriação do queer desdobrou em territórios como o nosso. Em tempo: não posso deixar de registrar que esse texto não necessariamente escapa àquilo que critica, pois que consiste em mais um exercício teórico sobre o queer, produzido desde a posição de bicha gorda não binária e acadêmica, e não num programa de ação para as pessoas dissidentes sexuais e de gênero. A diferença deste texto é que, se ele interpela algo, é a própria elite queer e seus procedimentos críticos, fazendo de objeto aqueles que, até agora, não participaram do debate senão como sujeitos: as pessoas pesquisadoras. p.s.: quando falo em “elite teórica queer do Brasil”, refiro-me à rede de teóricos de gênero e sexualidade consolidados, bem posicionados nos rankings formais de produção de conhecimento, empregados por universidades de renome, majoritariamente brancos e cisgêneros. Falo de gente como Richard Miskolci, que durante o I Seminário Queer do SESC (que não por acaso ficou conhecido como Cisminário) chegou a afirmar que a ausência de pessoas trans*, racializadas e dissidentes sexuais na programação do referido evento se devia a uma “falta de vocabulário” que ele, e a equipe por ele formada, estava tentando suprir com suas pesquisas, falas e publicações.

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Referências HIJA DE PERRA. Interpretações imundas de como a teoria queer coloniza nosso contexto sudaca, terceiro-mundista e pobre de aspirações, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados pela heteronorma. In: Periódicus, Bahia, v.1, n.2, nov.2014/abr.2015 Disponível: PELÚCIO, Larissa. Subalterno quem, cara pálida? Apontamentos à margem sobre pós-colonialismos, feminismos e estudos queer. In: Contemporânea, São Carlos, v.2, n.2, jul./dez. 2012, p. 395-418. Disponível em: Acesso em 18/08/2016. PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer nos trópicos. In: Contemporânea, São Carlos, v.2, n.2, p. 371-394, jul./dez. 2012. Disponível em: Acesso em 18/08/2016.

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Cinema queer? Sugestões de-formativas

Vitor Grunvald

Pero lo que libera también es susceptible de volver a encadenar Paco Vidarte

Alguns meses antes do forumdoc.bh, fui convidado por dois amigos para oferecer um curso que eles chamaram “Guerrilha Queer” na escola de cinema que haviam criado há cerca de um ano. “Guerrilha” é o nome que dão a cursos de curta duração e, após conversarmos, decidimos que, pelo menos nesse caso, seria tanto teórico quanto prático. O convite, a conversa e, de repente, tinha em mãos a batata quente de imaginar o que poderia ser esse curso sobre “cinema queer”, como era usualmente referido em nossas confabulações. A incumbência não era das mais simples, já que não existe um cânone que nos informa o que seria “cinema queer” e quais seriam suas principais características enquanto gênero (tal qual pensamos em comédia, ação, suspense, etc) ou enquanto movimento cinematográfico (tal qual neorrealismo italiano, nouvelle vague, cinema novo, cinema marginal, free cinema, etc). Via de regra, o que existe são dúvidas e um pequeno punhado de pitacos, como os que escrevo neste texto. Digo logo de antemão, para que não haja dúvidas, que não vou tratar de buscar uma definição para o “cinema queer”. O que não me impede de pensar um cinema queer/cuir, aquele que eu busquei construir enquanto tal para o curso a partir das idiossincrasias próprias de meu universo de referências. Cinema que não se diz de um tema, ainda que nódulos narrativos sejam de importância central para ele. Cinema que complica sua própria

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definição e se diz de uma ética. Associação potencialmente monstruosa, contra-pedagogia. Em 1992, B. Ruby Rich cunhou o termo New Queer Cinema para se referir a um conjunto de filmes que tratava de explorar tanto práticas e identidades sexuais e de gênero dissidentes quanto a maneira como seus corpos e discursos eram apresentados ao olhar do público. Ao tentar uma “genealogia impossível” desse New Queer Cinema, Eduardo Nabale escreve: [N]o creo que exista propiamente un ‘cine queer’ como movimiento cinematográfico […], sino una serie de películas, festivales, críticos y espectadores que, en un determinado momento, han confluido en un modo similar de redefinir el cine gay y lésbico, y no sólo éste, como fenómeno social y como hecho cinematográfico. (2005, p. 229) Como “redefinição do cinema gay e lésbico”, o “cinema queer” apontaria pelo menos para dois horizontes. Um horizonte temático, uma espécie de centro de gravidade que faria com que personagens, narrativas, abordagens e mesmo realizadorxs, críticxs e espectadorxs tornassem determinadas identidades, práticas e desejos tradicionalmente excluídos da representação cinematográfica pertinentes de serem colocados e investigados por meio do cinema. E um outro horizonte que insistiria na consideração de corpos e subjetividades que a própria normatividade do cinema gay e lésbico havia deixado de lado nesse seu ímpeto inicial.1 Não é à toa que a noção de representação aparece tantas vezes quando tentamos falar sobre esse cenário de preocupações e inclinações. Se, como sugere Laura Mulvey em seu Prazer visual e cinema narrativo, representações cinematográficas, a questão (da posicionalidade) do olhar e a construção de normatividades sexo-políticas são inextricáveis, então, a inclusão de afetos e relações não pautadas na cisheteronormatividade tão onipresente nos discursos televisivos, da mídia e do cinema em geral é um ato político fundamental que não deveria escapar a esse novo grupo de realizadorxs. De fato, é forte a sugestão de que devemos pensar como, independente das orientações de realizadorxs que podem ser explicitamente

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1 Ao discutir questões colocadas por Fernando Cascais e Annamarie Jagose, Karla Bessa lembra que “o termo queer não é um modismo, nem tampouco uma distinção entre estilos velhos e novos, no entanto, pode perfeitamente ser (coloquialmente) utilizado como descrição de uma população cujo posicionamento diante da sexualidade seja antinormativo e, diferentemente do ideal gay do momento ‘gay proud’, visa antes criar, inventar práticas eróticas e modos de relacionamento do que revelar uma sexualidade pensada como pura, livre e natural”. (2012, pp.109-10)

engajadas ou não, toda representação (cinematográfica) é iminentemente política. E mais: não é só política no sentido de representar o mundo e as relações que o constituem como estando informadas por determinados valores patriarcais e sexo-excludentes. Mas também no sentido de ser um aparato de representação que, tomado em seu caráter performativo, é também produtor das diferenças que insinua apenas espelhar, como sugere, por exemplo, Teresa de Lauretis (1987) a partir do conceito de tecnologias de gênero. A construção dessa “diferença semiótica corporificada”2 é, portanto, indispensável para um cinema que toma as disputas pela representação como fundante de suas preocupações ético-estéticas. Mas, desse ponto de vista, seria suficiente construir representações de gays, lésbicas e bichas, sapatões, travestis, pessoas trans, não-binárias, com deficiência, etc? Ter uma dessas pessoas (ou várias delas) na narrativa fílmica, é suficiente, então, para que essa cólera a que chamamos cisheteronormatividade seja expurgada por uma mágica lança queer? Acredito que não. E para construir minha argumentação remeto à análise que Jordy Jones (2006), acadêmico e artista trans, elaborou sobre o filme Hedwig and the angry inch (2001) 3 de John Cameron Mitchell. Esse filme se tornou um clássico cult nos circuitos de cinema e, ao tratar de temas relacionados a sexualidades e gênero dissidentes, parece estar em perfeita consonância com o que estava sendo chamado de “(novo) cinema queer” nesse momento. Além disso, sua produção adotou uma estética camp4 também associada a esse universo, tornando ainda mais factível sua incorporação ao rótulo queer. Na cuidadosa análise de Jones (2006), contudo, são muitas as divergências entre esse filme e uma série de questões ético-teóricas que, já no início dos anos 1990, estavam sendo colocadas por um conjunto de obras e reflexões que se convencionou chamar de Teoria Queer (assim com letra maiúscula). A questão da transexualidade/transgeneridade é colocada pelo filme de forma absolutamente disfuncional e nem mesmo aparece como um desejo próprio, na medida em que Hansel só se transforma em Hedwig a partir de uma malsucedida cirurgia de transgenitalização que foi imposta por sua autoritária mãe em conluio com Luther Robinson, um militar

2 A expressão é de Donna Haraway (2004[1991], p.233). Para discussões sobre corpo/ sentidos e cinema, cf. Marks (2000) e MacDougall (2006). 3 Em português, Hedwig: Rock, Amor e Traição. 4 Para uma discussão clássica sobre a sensibilidade camp, cf. Sontag (1991[1964]).

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negro americano que conhecera quando era ainda um garoto afeminado em Berlin Oriental. Outro ponto que merece destaque, nesse sentido, é a confusão produzida entre identidade de gênero e orientação sexual, pois, como argumenta Jones (2006), Hansel aparece mais como um garoto homossexual que como uma mulher transexual. O roteiro do filme segue a tradicional jornada do herói tão ensinada a estudantes de cinema. Uma jornada que envolve transformações de gênero, que passa da identidade homossexual masculina de Hansel para a identidade feminina de Hedwig e, no fim do filme, para a identidade unificada na negação do gênero feminino. Envolve também uma outra jornada que mantem relações intrínsecas com essa transformacionalidade de gênero e que está associada à busca de uma unidade original perdida na “origem do amor” que é projetada em Tommy Gnosis – o jovem rock star com quem Hedwig teve uma conturbada relação amorosa, que a traiu e roubou suas músicas – e, ulteriormente, autoprojetada em si própria/o. O filme, sugere Jones (2006), tem uma narrativa linear, mas cíclica, pois uma unidade original explicitamente expressa e perdida retorna para unificar novamente o corpo da personagem. Filme-viagem, filmedestino, pois a resolução final do conflito (existencial, de gênero, sexual) está marcada miticamente no porvir necessário da narrativa. O tipo de viagem construída por Hedwig difere, qualitativamente, do conceito de viagem sugerido por Guacira Lopes Louro (2015) no início do seu livro Um corpo estranho e que a autora observa em filmes como Deus é brasileiro de Cacá Diegues. Taoca, um malandro “gente boa” que ajuda Deus na sua procura por um substituto no sertão brasileiro, em determinado momento da trama, teoriza: “A vida é um porto onde a gente acaba de chegar é nunca”. A jornada-viagem as vezes é exterior, como no filme de Diegues. Mas pode ser também unicamente interior. E, nesse caso, o destino é o resultado final de uma elaboração subjetiva por que passou a personagem ao longo do caminho, aqui entendido como espécie de aperfeiçoamento ou evolução da pessoa que se é. Esse tornar-se-aquilo-que-se-deveria-ser para o qual conduz o roteiro unifica o sujeito de forma linear e progressiva, como, segundo Jones (2006), vemos em Hedwig. Mas e quando a jornada-viagem não aponta para um destino, mas se apresenta como caminho errante de deslocamentos subjetivos? O que acontece quando “a gente acaba de chegar é nunca” e quando, ao invés de um fazer-se pessoa, a pessoa se desfaz? “É possível pensar que esse sujeito também se lança numa viagem, ao longo de sua vida, na qual o 206

que importa é o andar e não o chegar” e na qual “os sujeitos podem até

voltar ao ponto de partida, mas são, em alguma medida ‘outros’ sujeitos, tocados que foram pela viagem” (Louro, 2015[2004], p.13). Se considerarmos os filmes em sua performatividade, a criação de mundos ou territórios existenciais não deve ser pensada apenas como a construção de personagens na diegese, isto é, na realidade intrafílmica. Comédias românticas que tratam a mulher como sujeito objetificado e suscetível ao olhar masculino, por exemplo, não constroem também esse olhar e a normalização dessa relação patriarcal de submissão para além dos momentos nos quais estarmos imersos nessas narrativas? Essas normatizações são também discutidas por Ella Shohat e Robert Stam no livro Crítica da imagem eurocêntrica, onde refletem sobre um repertório de práticas visuais, de imagens e retóricas que constroem a objetividade de questões cujo sentido é “reduzir a diversidade cultural a apenas uma perspectiva paradigmática que vê a Europa como origem única dos significados, como o centro de gravidade do mundo, como ‘realidade’ ontológica em comparação com a sombra do resto do planeta” (2006[1994], p.21). É claro que não se trata de uma lógica perfeitamente totalitária, pois o mundo, como dizem Deleuze e Guattari, foge por todos os lados. No entanto, dizer que esses discursos não são determinantes e inescapáveis não significa dizer que não são importantes ou mesmo hegemônicos. Não se trata nunca de uma construção qualquer da realidade, mas da construção de uma realidade específica cujas normas sociais costuram apenas uma gama limitada de papéis de gênero, de comportamentos de classe, de sentimentos de pertencimento, de vivências sexuais, de percepções raciais, de superioridades nacionais e regionais e da própria de humanidade, quando o sentimento de inadequação ou ininteligibilidade nos tira (d)o humano sem assim o desejarmos. Em certo sentido, tanto o conceito de colonialidade quanto o de cisheteronormatividade buscam dar conta desse processo que é tanto mais verdadeiro quanto imperceptível, isto é, intuitivo. Se entendermos a ideia de enquadramento como molduras que nos fazem apreender tanto quanto não apreender determinadas realidades, me parece claro que está colocada a questão de mundos possíveis. De alguma forma, trata-se de pensar também essas representações como práticas pedagógicas que nos ensinam a pensar, mas também a olhar, interagir, comer, andar, aparecer, se colocar, trepar, cagar, desejar, gozar. Nas diversas representações (áudio)visuais, nós aprendemos como usar as mãos para comer, mas não o cu para cagar. O nosso próprio corpo é colonizado a partir da imposição de uma organização dos órgãos,

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alguns dos quais marcados menos pela vontade que pela necessidade. Daí porque o braço que penetra como um dildo e o cu que é penetrado são potencialmente subversivos. Desestabilizam não o corpo, mas o organismo, esse conjunto de relações necessárias que Artaud sugere suprimir dos órgãos. A contrassexualidade proposta por Paul B. Preciado (2014[2002]) é, nesse sentido, uma contra-pedagogia, no exato mesmo sentido que a pós-pornografia o é. Uma tecnologia de esquecimento mais do que aprendizado. Como desaprender o mundo e suas normas, legadas a nós por um aparato de enunciados discursivos e não-discursivos altamente discriminatórios e hierarquizantes tanto de raça, origem e nacionalidade, quanto de classe, gênero, sexualidade, funcionalidade corporal, etc? Como desaprender o corpo e suas práticas, fazendo-o ficar à deriva entre outras (quantas? Infinitas!) possibilidades de vida?5 Se essa contra-pedagogia que resiste e deforma a prévia normalização dos discursos hegemônicos e da organização dos corpos pode ser entendida como pedra de toque de uma ética queer/cuir possível, então, um “cinema queer” não deveria ser aquele que faz jus a essas modulações contra-naturais e contra-sociais? E, mais importante que isso, que fabula (e, ao fabular, produz) possibilidades de alianças dissidentes? Na mesma coletânea onde aparece o artigo de Jordy Jones, Jack Halberstam (2006[1991]) republica um texto no qual analisa o filme O silêncio dos inocentes de Jonathan Demme, utilizando a ideia de monstro para articular a maneira como o filme subverte concepções normativas de gênero em direção a um gênero pós-humano. Buffalo Bill, o serial killer perseguido pela detetive Clarice Starling, aparece, na análise de Halberstam, como personagem que “desafia construções heterosexistas e misóginas de humanidade, naturalidade e interioridade de gênero”, sendo o gênero, então, concebido “não como significante transcendente de humanidade”, mas como “sua tecnologia mais eficiente” (2006[1991], p. 582). Fer Nogueira e Pêdra Costa (2014), ao analisar filmes da pornochanchada, defendem que essas produções “vem oferecer uma paródia daquele comportamento conservador com relação às sexualidades e aos gêneros esperados pelo regime militar no auge da ditadura” e se configuram como representações “onde se dissemina a filosofia da desconstrução tupiniquim. A ‘desconstrução derradeira’ que passa pelo riso, pela distância e estranhamento que ele provoca entre o sujeito que atua e a

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5 Para um texto introdutório (com mais referências) que escrevi sobre pós-pornô para o site do projeto Flesh Mag, cf. Grunvald, 2016.

ação, desestabilizando os comportamentos naturalizados e minando os valores familiares”. Se chamo esses exemplos e análises ao texto é para colocar que, talvez, possamos pensar um “cinema queer” para além da definição temática que normalmente é usada para pensá-lo e que o coloca como uma espécie de desenvolvimento ou evolução de um cinema gay e lésbico. Se “cinema queer” for aquilo que opera uma ética queer de contranormalização, a própria classificação e possibilidade de um movimento cinematográfico fica dificultada, pois aí caberiam filmes tão diversos quanto os discutidos por Jack Halberstam, Fer Nogueira e Pêdra Costa. Caberia também, quem sabe, produções como Pixote – a lei do mais fraco (1980) de Hector Babenco, com suas alianças dissidentes entre populações marcadas pela precarização da vida, com a exposição das tensões que caracterizam sua resistência à incorporação de clivagens de gênero, sexualidade e classe, para ficar nas questões mais óbvias. “Cinema queer”, portanto, como indicação de uma ética dissidente adiantada por meio de representações audiovisuais contra-pedagógicas, mais do que um rótulo ou classificação de um conjunto de realizações ou realizadorxs. Quanto infortúnio não seria se a própria noção de queer/ cuir fosse utilizada para criar ordenações – nesse caso, no campo das produções cinematográficas – mais do que destruí-las ou deformá-las!

Referências BESSA, Karla. 2012. Estranhezas que roubam a cena: entre celuloides, tapetes e closes. In: MISKOLCI, Richard e PELÚCIO, Larissa (orgs.). Discursos fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos. São Paulo: Annablume. DE LAURETIS, Teresa. 1987. Technologies of Gender. Essays on Theory, Film, and Fiction. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press. GRUNVALD, Vitor. 2016. Teoria, carne e marcos iniciais da pós-pornografia. In: site Flesh Mag. Disponível em: http://flesh-mag.com/teoria-carne-e -marcos-iniciais-da-pos-pornografia/ (acessado em: 15/out/16). HALBERSTAM, Judith. 2006. Skinflick: posthuman gender in Jonathan Demme’s The Silence of the Lambs. In: STRYKER e WHITTLE (orgs.). New York; London: Routledge.

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HARAWAY, Donna. 2004[1991]. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu, vol.22, p. 201-246. JONES, Jordy. 2006. Gender without genitals: Hedwig’s six inches. In: STRYKER e WHITTLE (orgs.). New York; London: Routledge. LOURO, Guacira Lopes. 2015[2004]. Viajantes pós-modernos. In: Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo: Autêntica. MACDOUGALL, David. 2006. The Corporeal Image: Film, Ethnography, and the Senses. Princeton: Princeton University Press. MARKS, Laura. 2000. The Skin of the Film. Intercultural Cinema, Embodiment, and the Senses. Durham; London: Duke University Press. MULVEY, Laura. 1989. Visual and other pleasures. New York: Palgrave Macmillan. NABALE, Eduardo. 2005. “El banquete uniqueersitario: disquisiciones sobre el s(ab)er queer. In: CÓRDOBA, SÁEZ e VIDARTE (orgs.). Teoría Queer. Políticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Madri: Egales. NOGUEIRA, Fernanda e COSTA, Pedro. 2014. Da pornochanchada ao Pós-Porno-Terrorismo no Brasil: d’As Cangaceiras Eróticas ao Coletivo Coiote. In: Revista Rosa. Disponível em: https://medium.com/revista -rosa-5/da-pornochanchada-ao-pos-porno-terrorismo-no-brasil-dascangaceiras-eroticas-ao-coletivo-coiote-f0f4ab92836#.wzvelqz33 (acessado em: 15/08/2015) PRECIADO, Beatriz. 2014[2002]. Manifesto contrassexual. Práticas subversivas da identidade sexual. São Paulo: n-1 edições. RICH, B. Ruby. 1992. New Queer Cinema. Sight & Sound, vol.2, issue 5. SHOHAT, Ella e STAM, Robert. 2006[1994]. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify. SONTAG, Susan. (1991[1964]). Notes on “camp”. In: EVERETT, Sally. Art theory and criticism: an anthology of formalist, avant-garde, contextualist and post-modernist thought. Jefferson; London: McFarland & Company.

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Horizontes reduzidos1

Kiki Mazzucchelli

Os curtas-metragens de Luiz Roque falam sobre gênero, cânones artísticos e história do Brasil de maneiras que conjuram tanto o passado quanto uma visão datada do futuro ao margear o presente. A virada mais sombria do seu último trabalho seria o sinal de um “agora” intrusivo e distópico? *** O filme Ano branco (2013), de Luiz Roque, começa no ano de 2005. O cenário é um salão de conferências em uma cidade europeia não-identificada. “O que me interessa na testosterona é utilizá-la como uma droga política”, diz a atriz de bigode que interpreta o acadêmico queer Paul B. Preciado, enquanto aplica uma dose de Testogel no braço e descreve os efeitos químicos da substância no seu corpo. Preciado, que se encontra em transição desde 2014, publicou extensivamente sobre o controle político dos corpos pelas indústrias farmacêutica e pornográfica por meio da comoditização do desejo, tendo cunhado o termo “capitalismo farmacopornográfico”. A primeira parte do filme é inteiramente dedicada à palestra fictícia proferida pela personagem – cujas falas foram tiradas do ensaio “Gender and Sex Copyleft” (2006), de Preciado – que é concluída com a declaração de que “a revolução

1 Publicado originalmente na Revista ArtReview, v. 68, nº. 6, Setembro de 2016, pp. 84-87. Agradecemos aos editores e à autora do artigo por autorizarem sua tradução e publicação neste catálogo.

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vai começar pela apropriação dos nossos corpos como lugares essenciais do desejo, livres das restrições e do copyright”. Um corte para 25 anos depois e um voiceover computadorizado nos informa que a Organização Mundial de Saúde não considera mais o transexualismo como uma desordem psicológica. Nesse conto de ficção-científica utópico realizado por Roque, uma bela mulher transgênero é a última pessoa a ser analisada pelas autoridades sanitárias antes do fechamento definitivo de todos os centros de tratamento de desordens ligadas à mudança de sexo. Nós a vemos deitada, nua, em um leito hospitalar, enquanto uma engenhoca robótica de baixa tecnologia – uma cabeça de manequim montada sobre um braço mecânico – escaneia cada centímetro do seu corpo modificado. A cena final é um plano frontal do torso nu e da cabeça da mulher sobrepostos por círculos cintilantes de luz verde, como uma deusa a sinalizar que a revolução de gênero finalmente chegou. Ano branco foi comissionado pela Bienal do Mercosul, sediada na cidade brasileira de Porto Alegre. Com 7 minutos de duração, é o trabalho mais longo de Roque até então – a maioria dos seus filmes não alcançam a marca dos 5 minutos. Além disso, vale notar que possui uma narrativa bem mais discernível e linear do que outros de seus trabalhos, nos quais os sentidos são produzidos exclusivamente pela potência expressiva das imagens. Com a utilização frequente de tecnologias analógicas de filmagem (Super 8 ou 16mm), o artista cria composições cinematográficas com belas texturas que sugerem um deslocamento temporal para outros tempos históricos, seja o passado, seja o futuro imaginado no passado. Desse modo ele tece narrativas abertas que tocam, livremente, em ideias relativas às modernidades imaginadas ou ao corpo pós-gênero. As experimentações de Roque com a plasticidade imagética e a composição fílmica aparecem mais claramente em obras como O novo monumento (2012), filmado em preto-e-branco e 16mm. O filme começa com uma citação do ensaio “Nove pontos sobre a monumentalidade” (1943) – escrito colaborativamente pelo historiador da arquitetura Sigfried Giedion, pelo artista Fernand Léger e pelo arquiteto Josep Lluís Sert – na qual eles afirmam que os monumentos só podem existir em períodos marcados por uma consciência e uma cultura unificadora. Vemos, então, dois jovens de pé em um terreno baldio vestidos com trajes que lembram uma espécie de Mad Max tropical, enfeitados com espelhos, ossos e correntes. Eles começam a realizar movimentos sincronizados no estilo vogue, ao som de uma melodia tribal. A câmera de Roque captura os detalhes da paisagem rural ao redor e passa brevemente pela superfície 212

ondulada de uma lagoa, pelo velho pavilhão da fazenda e por uma coruja

solitária, empoleirada no alto de um ramo que sai de um campo com grama alta, até parar na frente de um galpão. O portão desliza e se abre, revelando uma forma quadrada dividida por um corte curvo vertical: na verdade, uma réplica em menor escala de um monumento sem título do artista neoconcreto brasileiro Amílcar de Castro (1920-2002) localizado na movimentada Praça da Sé, no centro de São Paulo; e possivelmente uma de suas obras mais conhecidas. Agora, a escultura está na caçamba de um velho caminhão que segue ao longo de uma estrada de terra cercada por arbustos, acompanhado pela escolta improvável de três motoqueiros com equipamento completo de motocross, até desaparecer no horizonte. Na sequência seguinte, a escultura se materializou, misteriosamente, no meio de um campo remoto, algo como o monólito negro de 2001: Uma odisseia no espaço (2001: A Space Odissey, 1968). O filme termina com cenas de uma celebração nas ruas de Belo Horizonte, cidade na qual Castro viveu e trabalhou durante a maior parte de sua vida. Os dois artistas fantasiados do início do filme reaparecem dançando em meio ao público. Em O novo monumento, Roque vislumbra um mito de origem fictício para a sociedade brasileira, baseado no trabalho de um artista tardo-modernista que, a despeito de sua fama local, permanece virtualmente desconhecido fora de seu país natal. Ao escolher Amílcar de Castro, em vez de seus contemporâneos mais renomados internacionalmente – como Lygia Clark ou Hélio Oiticica – o artista mostra um desejo de expandir o escopo das narrativas hegemônicas da história da arte, ao mesmo tempo em que sobrepõe significados ligados ao neoconcretismo às conotações gays futurístico-primitivas do ritual realizado pelos dançarinos de vogue. Em última instância, o novo monumento do filme é produto de uma “consciência unificadora” fundada não no sucesso militar ou nas crenças religiosas, mas sim nas ideias abarcadas por um movimento artístico cujo experimentalismo heterodoxo ajudou a redefinir os limites da arte. Enquanto Ano branco imagina um futuro no qual os corpos estão livres das estruturas de poder gênero-normativas e O novo monumento vislumbra uma sociedade unificada pelos princípios do movimento artístico que floresceu no Brasil em meados do século XX, período de grande otimismo e inventividade cultural (interrompido abruptamente pelo golpe militar de 1964), o trabalho MODERN (2014) reúne ideias ligadas à arte moderna e ao corpo pós-gênero. Também filmado em preto-e-branco e 16mm, e produzido durante uma residência na Fundação Delfina em Londres, esse curta-metragem toma como ponto de partida a obra Recumbent Figure (1938), de Henry Moore, escultura icônica que mostra um corpo feminino

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reclinado, talhado em pedra marrom clara. MODERN gira em torno do encontro entre uma réplica negra dessa escultura e um personagem baseado em Leigh Bowery, lendário performer e host de clubes londrinos que usou o próprio corpo como superfície para criar silhuetas exageradas. Inteiramente coberto por um catsuit de vinil, com quadris desproporcionalmente largos, seios pontudos e um monstruoso pé elefantino, o artista faz um jogo de sedução com seu “duplo”, enquanto se move ao som de uma música eletrônica suave. Ao alternar, com cuidado, planos elaborados que exploram os detalhes e as texturas dos corpos filmados, Roque parece interessado em realçar as correspondências visuais entre as figuras orgânicas abstratas de Moore e as formas distorcidas ou silhuetas exageradas criadas por Bowery, e no modo como ambas podem ser percebidas como transgênero. Mais ainda, a aproximação não-hierárquica entre um artista consagrado pela tradição e um performer underground que morreu prematuramente em decorrência da AIDS promove um choque subversivo entre os valores culturais discrepantes associados a Moore e Bowery. Com essa espécie de espelhamento entre o mestre moderno e o ícone gay contemporâneo, Roque aborda a relativa ausência de artistas que não sejam brancos, heterossexuais e homens na história da arte hegemônica, apontando para uma das muitas histórias da arte silenciadas, que aguardam para serem escritas. Seguindo suas investigações sobre gênero, Roque trabalha em HEAVEN2, um novo filme comissionado para a edição de 2016 da Bienal de São Paulo, batizada de Incerteza viva. O trabalho, que dá sequência a Ano branco, é ambientado em um futuro distópico no qual um novo tipo de vírus transmitido oralmente começa a afetar as comunidades transgênero. Essa premissa desoladora representa um afastamento do tom idealista que caracteriza os primeiros trabalhos do artista, embora possa ser vista também como um reflexo dos tempos políticos sombrios do Brasil atual, onde grupos LGBT são tomados como um dos principais alvos das forças conservadoras em ascensão. tradução:

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Luís Felipe Flores

2 HEAVEN está em exibição na 32ª Bienal de São Paulo: Incerteza viva, de 10 de setembro a 11 de dezembro. Um projeto solo do artista ficou exposto no Centro Cultural de São Paulo até 30 de outubro.

cidade-sexo, mas não é sex in the city

Eduardo de Jesus

0,5. explicando tudo Esse pequeno ensaio toma o curta Virgindade (Ceará, 2014), de Chico Lacerda, como um ponto de partida e de chegada. A memória, a cidade e a sexualidade são temas que vão ser desenvolvidos mais adiante, mas que antes iluminam uma série de breves comentários, fora de ordem, sobre cidade e cinema. A ideia é que o filme de Lacerda, ao mostrar a cidade nas tramas subjetivas da sexualidade e do desejo, acaba por gerar uma potente visão do urbano.

0,7. Curitibas Conheço esta cidade como a palma da minha pica. Sei onde o palácio sei onde a fonte fica, Só não sei da saudade a fina flor que fabrica. Ser, eu sei. Quem sabe, esta cidade me significa. (Paulo Leminsky em La vie em close)

1. cinema e cidade Cidade e cinema estão na mesma trama, como parte de uma mesma raiz da modernidade ligada ao urbano. Os museus de cera, os panoramas e as exibições de cadáveres em Paris no século

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XIX ativavam a cidade e pareciam preparar os sentidos para a chegada do cinema. Paris, no último terço do século XIX, se transformou no centro europeu da jovem indústria do entretenimento. Ao se instalar na cidade, o cinema reconfigurou espaços de lazer, modos de encontro e formas de entretenimento criando novas dinâmicas que, de algum modo, davam prosseguimento a esses primeiros espetáculos. Cidade-cinema-espetáculo. Essa é uma parte da estreita relação entre cinema e cidade. Outra parte possível, é a cidade filmada. Ao longo da história do cinema a cidade tem sido protagonista. Múltipla, fragmentada e em tensa relação direta com os poderes constituídos, a cidade contemporânea tornou-se o palco de um amplo sistema de visibilidade do capital, dos modos de vida globais homogêneos (mas não universais) que se espraiam pelo mundo. E sua imagem?

0,9. informações úteis a. O Burj Khalifa em Dubai nos Emirados Árabes, edifício mais alto do mundo, é uma intervenção urbana e arquitetônica que serve para demonstrar o poder econômico do capital no mundo árabe, constituindo assim uma imagem que pode ser facilmente colocada em circulação nas midiatizações do espaço urbano. Recebe cerca de 4,7 milhões de turistas por ano. b. “As cidades já não esperam mais pela chegada do turista – elas também estão começando a juntar-se à circulação global, a reproduzir-se em escala mundial e expandir-se em todas as direções” (GROYS, 2015, 134). c) O turismo é uma linha de força na constituição das experiências urbanas contemporâneas.

2. imagens da cidade O local passa a ser distribuído globalmente, como já havia afirmado anteriormente Guattari: “a cidade-mundo do capitalismo contemporâneo se desterritorializou, seus diversos constituintes se espargiram sobre toda a superfície de um rizoma multipolar urbano que envolve o planeta” (2000, p. 171). Distribuição como serviço e arquitetura, mas sobretudo como imagem. Nesse contexto emergem muitas visões da cidade no cinema. Uma que aqui nos interessa é aquela que faz da cidade do cinema um território de resistência, explicitando os poderes que, de um lado, transformaram a cidade em um campo de múltiplas especulações e, de outro, fazem da experiência urbana um estranho conforto instalado em um espaço-lixo (junkspace). 216

São muitos os filmes recentes que tratam da cidade e das questões espaciais, como Avenida Brasília Formosa (2010) e Um lugar ao sol (2009), de Gabriel Mascaro, Recife frio (2009), O som ao redor (2012) e Aquarius (2016), de Kleber Mendonça, O céu sobre os ombros (2011), de Sérgio Borges, A cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014), de Adirley Queirós, O porto (2013), de Clarissa Campolina, Julia de Simone, Luiz Pretti e Ricardo Pretti, entre outros. A questão é emergente e parece sinalizar um desejo de apropriar e dar sentido ao espaço urbano com outras experiências menos ligadas aos mercados e especulações. Assim como a Praia da Estação (Belo Horizonte) e Ocupe Estelita (Recife), o cinema também deseja outra cidade, como Robert Park nos ensinou.

1,15. sobre a cidade do cinema, em plano geral Ao colocar o espaço urbano em primeiro plano, alguns filmes fazem surgir nas imagens uma outra visão da cidade. Representações que acionam as diversas camadas de sentido em múltiplas acumulações no espaço urbano. História e memória coletiva são atravessados por visões subjetivas e experiências pessoais. O invisível e o fora de campo atravessam e ecoam na imagem, que ganha novos sentidos. Nas potentes experiências sensíveis entre nós e a cidade, ativamos processos de territorialização e desterritorialização para além dos espaços construídos mostrando como a cidade pode resistir aos controles e se oferecer em outras experiências. Algo sempre escapa entre nós, o outro e a cidade liberando os imaginários. Imagens da cidade que ampliam o sentido e a importância dos espaços construídos, para além do visível.

2,25. cidade, city, cité Sabendo de todas as forças imperiosas com as quais o capital maneja o espaço urbano, é importante vermos como o cinema, a produção audiovisual e as próprias dinâmicas da comunicação globalizada como um todo, reforçam e acabam por dar os contornos da imagem da cidade que se quer ativar. Longe de inventar outra cidade ou de apontar outras formas de experiência, muitas vezes, o cinema e a produção audiovisual celebram a produção do espaço ligada exclusivamente ao consumo e ao entretenimento. Formas muito controladas e planejadas de se engajar no devir da experiência estética que o urbano pode nos permitir. Nesse sentido, estratégias e formulações do marketing como local branding e nation branding resultam em cidades imaginadas na força do 217

planejamento estratégico para se orientarem a públicos bem configurados e a determinados tipos de experiência.

3,0. o retorno a cidade subjetiva O curta de Chico Lacerda na aparentemente simplicidade e leveza de seus longos planos fixos e abertos da cidade, embalados por uma narração de tom pessoal, aciona uma visão potente do espaço urbano. No filme, a cidade torna-se uma espécie de confluência de tempos e espaços atravessados pelo passado, trazidos pela memória, mas na visualidade do presente. É no atravessamento entre o que a cidade foi e o que ela é que descobrimos – acionando o fora de campo e as tensões da diferença entre o que vemos e o que é narrado – que pouco a pouco a cidade em sua dinâmica surge diante de nós. A descoberta da sexualidade é tramada em sintonia com as mudanças da cidade. Corpo, cidade e desejo em processos de descoberta. Uma cidade que ao contrário de monumentos ou atrativos turísticos revela-se no filme em imagens ordinárias de espaços comuns, que ganham um melancólico relevo pela experiência e pela memória. Territórios que passam a fazer sentido porque integram-se fortemente às narrativas da vida, por isso significam e nos convocam a fabular as mudanças da cidade. Os elementos invisíveis da cidade – memória, história, afeto, experiência – que parecem recobrir os espaços físicos, se mostram a nós pelo confronto entre a locução e o que vemos na imagem. As dinâmicas da cidade atravessam, junto com a memória pessoal, a narrativa do filme. Entre o que é narrado e o que vemos nas imagens emerge um potente fora de campo que nos fala da cidade e de suas dinâmicas. Onde era cinema, hoje supermercado ou loja de eletrodoméstico; a casa de Henrique, uma das paixões, que vivia perto da casa da avó, tornou-se um inóspito edifício. Assim em seu rigoroso conjunto de planos estáticos, sempre acompanhado da locução e de ruídos do ambiente, o filme passa a explorar paisagens urbanas absolutamente comuns, que se constroem em uma narrativa que une suas espacialidades relacionais cheias de formas subjetivas e sexuais. Em certo momento, esse rigor passa da cidade aos corpos. É nítida a marca dessa passagem pela entrada da trilha sonora, que revela um outro fora de campo, desta vez tendo os corpos como formas de paisagem. Embalados pela suave e romântica canção de Gorky´s Zygot Mynci surgem muitos homens nus em diversas poses e enquadramentos, espaços urbanos e paisagens naturais.

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(I need your sweet, sweet love I need it in my heart I know I’ve taken And to give to you I can find so hard) Detalhes de uma nuca, um peito cabeludo ou uma bunda formam a multiplicidade desses corpos, objetos de desejo que remetem ao tempo presente daquelas memórias ditas anteriormente. A sequência funciona como uma espécie de videoclipe que no meio do filme – entre as paixões adolescentes e as diversas formas de buscar imagens e textos que pudessem ativar fantasias sexuais e trazer muita excitação – faz o tempo presente do desejo emergir. Passado e presente se encontram no desejo e na cidade. Movimentos entre os tempos já que a cidade se mostra outra diante da memória que a locução aciona e o desejo ganha forma, sem maiores preocupações ou pudores. Relacionando o clipe no tempo presente com toda a força memorialista da locução e as imagens atuais da cidade, o filme parece enfatizar que a experiência, o desejo e a memória são vetores centrais para perceber as potências relacionais do espaço urbano. Todo esse trânsito tanto entre o tempo passado e o presente, quanto entre as formas da fabulação da memória (na locução) e a eminência do presente (nas imagens) fazem da cidade do filme uma reterritorialização da imagem da cidade. Percebida agora não mais na força do espetáculo ou da midiatização, tampouco na forma absoluta de seu espaço construído, a cidade atravessa e é atravessada pelo desejo entre os corpos e os espaços fazendo ecoar na imagem a intensidade da experiência.

Referências GUATTARI, Félix. Restauração da cidade subjetiva. In: Caosmose – um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992. GROYS, Boris. A cidade na era da reprodução turística. In: Arte poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015

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Trânsitos, (des)aprendizados e cinema:

uma conversa com Camila José Donoso, diretora de Naomi Campbel

Marcos Martins1

1*

Nota introdutória

Este breve comentário se constitui numa encruzilhada. Os caminhos que o atravessam seguem percursos fronteiriços. Seus trânsitos evidenciam a proliferação das fricções causadas pelos encontros entre saberes, lugares, vivências diversas. E nem de longe essas zonas de convergência são pacíficas e apaziguadas. Elas se conformam justamente a partir do conflito que a alteridade dá cabo, ou não. Dos imperativos coloniais que captura(ra)m e, como num procedimento de autópsia, disseca(ra)m carnes, afetividades, desejos, subjetividades, nossos modos de ser e, mais diretamente, de nos relacionar. Desde acá – como canta Mano Brown, no lado sul do mapa. Meu primeiro contato com o filme de Camila Donoso se deu a partir de um levantamento de festivais de cinema lgbt realizados em América Latina. Envolto a tantos filmes que fui encontrando, sua obra, Naomi Campbel, pareceu, pelo menos através de algumas leituras e entrevistas prévias sobre o filme, dialogar com a proposta que vinha se estruturando na organização desta mostra. Após assisti-lo tive certeza! No entanto, quando pensamos em práticas+experiências queer no cinema, do quê estamos tratando? De onde falam estes filmes, estes olhares, estas perspectivas queer? Reivindicam esta expressão pra si? Os primeiros passos na preparação da mostra/seminário “Queer e a câmera” deixaram evidentes o quão escorregadio é 1 Graduando do curso de Ciências Sociais pela UFMG.

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este terreno. Um filme é uma visão particular sobre o mundo e pressupõe aí as especificidades de sua feitura: quem o dirigiu, de que maneira o assunto em questão é explorado, como se constrói a(s) narrativa(s), quais olhares estão envolvidos nas tramas dessa película etc… A instabilidade deste debate talvez venha, acredito, num primeiro momento, da própria recusa das questões que compõem esta peleja queer por concepções encaixotadas, totalizantes, limítrofes. Mas quando me refiro às instabilidades destas contendas me remeto também às fronteiras às quais estes fluxos cruzam e as veredas pelas quais o queer viaja e chega até aqui, em nossos territórios brasileiros/latinoamericanos. Se pensarmos os lugares de enunciação os quais Naomi Campbel se situa, um filme latino (chileno), protagonizado por uma atriz transexual, dirigido por uma mulher cisgênera21 – vejo este exercício como fundamental para pensarmos as inflexões que o situar-se traz – encaro-o e convido-xs a encarar, como uma obra extremamente potente no que diz respeito às práticas e (re)produções de saberes desobedientes, descentralizados dos meios hegemônicos de formulação de conhecimentos “formais” – certamente não se restringe apenas à América Latina, mas ao mesmo tempo carrega um peso diferencial quando consideramos os processos coloniais ocorridos nas bandas de cá –, como também uma interpelação, que interroga as interdições, os meios pelos quais nossos corpos vão sendo arquitetados politicamente,32 orientando nossos prazeres pela via dos moldes heterossexuais normativos e nossas relações sociais/ corporais; bem como nas práticas cinematográficas, enquanto ferramenta para subverter, rearranjar, deslizar, desterritorializar, desinformar, desaprender as tecnologias sociais43 que engedram a construção da(s) realidade(s), de nossas compreensões sobre a representação de personagens LGBT nas telas, os papéis de gênero (“papéis de mulheres”, “papéis de homens”) que estruturam as narrativas do mundo do cinema, enfim, os próprios modos de se fazer um filme. O objetivo desta entrevista é “cobrir” um pouco a ausência da diretora que não poderia estar presente durante o festival. Ainda assim, qualquer palavra que tente descrevê-la seria insuficiente. Até porque o próprio 2 Diz respeito à pessoa que se identifica com o gênero o qual foi designado à ela no momento de seu nascimento. 3 PRECIADO, P. B. O que é a contrassexualidade? In: Manifesto Contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. 1 ed. São Paulo: n-1 edições, 2014. p. 21-33

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4 LAURETIS, Teresa De. A tecnologia do gênero. In: Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Heloisa Holanda (Org.). Trad. Suzana Funck. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242

exercício de tradução realizado aqui não se aloja somente no transcurso linguístico da permutação de significados de um idioma para outro,5 pois abarca também o sujeito envolvido nessa tradução. No caso, o tradutor sou eu: uma bixa, cis, branca, tutelada sob privilégios que garantem, em muitos sentidos, meu modo de existir num território que colonizou – e ainda o faz – povos indígenas e africanos, assim como tenta, por múltiplas formas de aniquilamento, apagar a existência das mulheres, de vidas dissidentes sempre em resistência. A princípio, o corpo de questões elaboradas havia me deixado satisfeito. Porém, ao receber as repostas de Camila me apercebi o quão insuficientes, tangenciais e por vezes estéreis minhas perguntas poderiam ser, ou são, de fato. O bom é que as repostas dela são muito melhores do que as minhas perguntas. MM: Inicialmente, gostaria que você se apresentasse e comentasse sobre seus primeiros contatos com o cinema, suas experiências com os ativismos feministas e como você articula estas duas áreas na sua vida e trabalho. CJ: Após estudar num colégio de garotas e lá encontrar amigas com as quais, desde muito novas, já comecei a fazer coisas; aos quinze já pensávamos em feminismo, inclusive já tínhamos uma oficina de cinema – entre a oficina de circo e de fotografia. Uma rebeldia cresceu em nós, educadas a partir dos preceitos do catolicismo. Quis estudar cinema sem ter nenhum familiar artista, mas sim, uma família com grande imaginação e uma grande capacidade de narrativas orais que mesclam o cotidiano com o mágico (fantástico). Aos dezesseis, eu e minhas amigas, fomos pela primeira vez num encontro feminista, e desde então estes espaços feministas e pós-feministas e dissidentes e de amizade têm se transformado em meu refúgio-exílio político neste mundo, este mundo capitalista e racista em que vivemos. Minhas/meus amigxs e os vínculos que se formaram por meio do ativismo, são os mesmos que têm me levado a fazer filmes desde essa união, desde esses laços e desde essa afetividade. MM: Agora sobre seu filme, Naomi Campbel, você poderia falar acerca do processo de criação, pessoas envolvidas, como se deu sua aproximação com a atriz Paula Yérmen Dinamarca e como foi seu diálogo com ela (e seu

5 COSTA, Claudia de Lima. Feminismo e tradução cultural: sobre a colonialidade do gênero e a descolonização do saber. In: Mulher e literatura - 25 anos: Raízes e rumos. Cristina Stevens. (Org.). 1ed. Florianópolis: Editora Mulheres, 2010, p. 237-256.

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envolvimento) na composição do filme? Enxergo, seu filme, também com uma proposta de discussão que diz repeito aos deslocamentos de convenções sociais das narrativas cinematográficas (ditas tradicionais)? Como vê esse debate? CJ: A participação de Paula e nossa amizade criativa permitiu que o filme se configurasse com o tempo – o filmamos durante um ano – em uma exploração tanto visual quanto biográfica e, claro, política, pensando em conjunto como queríamos representar nossa e o lugar que nossos personagens ocupam, nosso contexto. Durante todo esse processo de escrita do roteiro nos perguntávamos como poderíamos desarmar estas engrenagens tão apreendidas na universidade – este filme foi nosso trabalho de conclusão de curso, então falávamos coisas que não podiam ser ditas – e essas coisas aprendemos para desarmá-las e experimentar. Em relação ao tema das narrativas me parece mais uma característica de nosso colonialismo cultural, de como nos encucaram inclusive como narrar nossos tempos, nossas vidas. MM: Como uma diretora cujo trabalho pensa as tensões das linguagens normativas de gênero no campo do audiovisual, como você vê a formação dos grupos, coletivos que realizam produções que dialogam com esta temática e narrativa? CJ: Gosto muito da ideia de novos espaços de (não) aprendizagem e de espaços onde se pense de maneira coletiva. Na verdade, a produtora de Naomi Campbel, Rocío Romero, com quem trabalho também em nosso novo filme já há três anos, NONA, – protagonizado por minha avó – também atuou em Naomi como Lucha, a senhora, amiga de Yérmen; como também Paula atua em Nona, porque inevitavelmente nossas vidas se conectam. Com Rocio nós temos um projeto, o TRANSFRONTEIRA. Um centro de experimentação e encontro de (de)formação – junto com Ignacio Agüero e outrxs colegas latinxamericanxs –, onde pensamos como praticar o não-ensinamento, que aposte na descoberta de uma linguagem própria, ou seja, que os filmes e xs autorxs explorem o que desejarem, mais do que compreender a formação como uma espécie de fórmula que se aprende (como poderia ocorrer em qualquer manual), tratando a criação e o processo de fazer um filme como algo vital. E isso é pouco valorizado a partir dos conceitos da indústria.

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MM: As discussões que refletem sobre a temática queer se constituem e se difundem desde os contextos norte-americanos e europeus. Como você vê este debate e suas práticas político/culturais/cotidianas, da vida em nosso cenário latino? CJ: Tentei pensar desde meu território sudaca e, no meu caso, como chilena, periférica do mundo. Esta sensação de fim de mundo que tenho em minhas terras é algo que não se pode entender desde nenhum contexto europeu ou norte-americano. Também tratei de ler o feminismo com referências em minhas próprias mulheres – as mais próximas – minha avó, minha mãe, minhas tias. MM: Quais seriam, em nosso cenário sudaca, alguns dos desafios acerca das transformações da linguagem cinematográfica desde uma perspectiva queer? CJ: Para mim, o pior de ver um filme “queer” ou “lgbt” é cair nas mesmas convenções clássicas de fazer e filmar um filme. Pensar de uma maneira livre é também fazer filmes distintos, que retratem nosso tempo – em meu último trabalho filmado no México, CASA ROSHELL, quis experimentar algo diferente do que em NAOMI. Este filme não tem história, apesar de contar com mais de vinte personagens. Queria explorar outras filosofias trans, subjetivas e poéticas das bocas de suas próprias protagonistas, e atuadas por elas, em algo que temos chamado de Transficção. MM: Mais uma vez, muito obrigado pela receptividade em nossas conversas. Foi um prazer te conhecer e entrar em contato com seu trabalho. Um abraço. Marcos. CJ: Muito obrigada a vocês por me escreverem.

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Pontes e cercas entre Teoria Queer e movimento LGBT 1

Anna Paula Vencato2

Lewis Carroll (2010) em seu famoso texto Alice no País das Maravilhas, escreve um diálogo entre a menina Alice e o Gato que Ri (Cheshire Cat) quando esta chega a uma bifurcação na estrada. Ela pergunta a ele qual estrada deve tomar. Ele retruca perguntando qual caminho ela quer seguir. Ela responde que não sabe. Então, diz o gato, não importa. Se fosse possível contar a história do Movimento LGBT brasileiro em poucas linhas, seria improvável negar que o conflito – para dentro e para fora – lhe é constituinte. O movimento LGBT é conhecido e reconhecido como um movimento de afirmação das identidades de distintos grupos que estão “fora da norma” em termos do gênero ou das sexualidades e que compõem a sigla formando uma espécie de “força conjunta” contra o preconceito e a discriminação. Ao menos em tese. Em outras palavras, LGBT diz respeito a afirmação da identidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Evidentemente, este movimento não nasceu LGBT. Foi primeiramente, em meados dos anos 1970, “movimento homossexual”. Depois mulheres lésbicas

1 Texto preparado para a mesa-redonda “Teoria Queer Hoje!”, organizada pelo forumdoc.ufmg.2016. A mesa contou com a fala de Paulo Henrique Nogueira (FaE-UFMG) e a mediação de Paulo Maya (FaE-UFMG). 2 Doutora em Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/UFSC e licenciada em Pedagogia pela FAED/UDESC. Professora Adjunta da FaE - UFMG. Pesquisadora Associada do “Quereres Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Gênero e Sexualidade” da UFSCAR e do “Transgressões- Gênero, Sexualidades, Corpos e Mídias contemporâneas” da UNESP. Endereço para correspondência: [email protected].

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reclamaram para si seu espaço no movimento, assim como criticavam (e ainda criticam) o machismo e a misoginia dentro da militância.3 A própria passagem do L para a frente do G na sigla LGBT ilustra esta reivindicação. Foi só na “I Conferência Nacional GLBT”, realizada em 2008, que houve a troca de posição das letras, em resposta à reivindicação das mulheres lésbicas acerca de sua invisibilidade histórica não apenas na sociedade, mas também dentro do movimento LGBT. A segunda conferência, realizada em 2011, já foi chamada de “II Conferência Nacional LGBT” (DANILIAUSKAS, 2011). Com o passar do tempo, além das mulheres lésbicas, pessoas bissexuais, travestis e transexuais passaram a reivindicar seu lugar no movimento a partir da ideia de que o “movimento homossexual” contemplava somente aos homens homossexuais, tanto na política e representação “para dentro” quanto na política “para fora”. Pode-se dizer que há duas frentes de luta: a externa, que lhes une, a interna, que lhes divide. Pode-se inferir também, que mesmo aquelas pessoas que estão “a margem”, tem processos de hierarquização e exclusão internas. Evidentemente a história do movimento LGBT é muito mais extensa e complexa que isso. Mas o que queria destacar aqui é como a “sopa de letrinhas” (Facchini, 2005), sua ampliação, fala não apenas de reconhecimento dos sujeitos políticos que fazem parte do movimento ou da sociabilidade daquelas pessoas que não estão socialmente associadas às heterossexualidades. Fala também dos limites dessas categorias na vida. Se por um lado, o reconhecimento das identidades é importante para a luta política, por outro lado, também se conforma em amarras. A teoria queer se contrapõe, nesse contexto, a ideia de identidades cristalizadas. Mas não apenas a ela: questiona também a abordagem canônica das ciências ao tratar da diferença a partir da ideia de normalidade ou desvio. Ou seja, ela não se propõe a pensar criticamente apenas sobre a produção das identidades e seus limites na vida social. Propõe-se também a pensar criticamente as teorias que pensam sobre tais comportamentos ou certos indivíduos a partir da noção de marginalidade ou de um indivíduo à margem das normas sociais. A teoria queer, ao cabo, tensiona a ideia de identidades e tem como proposição que partamos da ideia de que precisamos olhar para as diferenças. Tanto como são engendradas no bojo da vida social como quanto engendram distinções,

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3 Acerca da história deste movimento no Brasil ver Green & Trindade (2005), Facchini (2005), Netto, França & Facchini (2006), Simões & Facchini (2009), e MacRae (1990).

diferenciações, desigualdades e privilégios no interior de diferentes contextos socioculturais. Até meados da década de 1970, muito da crítica social se pautava numa critica economicista. Assim, importava mais olhar para a luta de classes, a pobreza e a riqueza, as relações de trabalho e exploração do que para outros aspectos da realidade. Mesmo no campo científico este era o panorama geral dos debates. A ciência se pautava na ideia de que as diferenças podiam ser compreendidas a partir da noção de contraposição a norma. Assim, havia o normal e o desviante/patológico. E o desviante só poderia ser compreendido a partir da ideia de que havia uma norma, referente, que este quebrava ou questionava. De lá para cá, este debate, que primeiro se debruçou sobre a problemática das classes sociais, se ampliou, se modificou e se aprofundou. Questões como raça/etnia, gênero, sexualidade, geração vão entrando paulatinamente em cena e questionam tanto os ideais dos movimentos sociais quanto aos acadêmicos. Não se abandona aqui a pauta da classe social, mas se reconhece que ela, sozinha, não dá contam de compreender a desigualdade na vida social. Segundo Adriana Piscitelli (2008), trabalhar a noção de interseccionalidades e/ou categorias de articulação é oferecer um instrumental que ajude a pensar como múltiplas diferenças e desigualdades se articulam na vida social. Para a autora, “é importante destacar que já não se trata da diferença sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da diferença, em sentido amplo, para dar cabida às interações entre possíveis diferenças presentes em contextos específicos” (p. 266). Entender que a lógica da diferenças e da produção ou não da desigualdade é relacional e contextual é importante para pensarmos também porque a teoria queer pode ser “boa para pensar” nas relações hierárquicas entre gays, lésbicas, travestis, transexuais, bissexuais, bichas, sapatões, bofes, etc. A sexualidade em si não é revolucionária. Nem a identidade de gênero. Uma pessoa LGBT pode também oprimir outras pessoas dependendo de como se insere numa malha complexa de pertencimentos sociais. Para dar um exemplo de análise interseccional, Laura Moutinho (2006), ao pesquisar a relação entre raça/cor, homossexualidade e desigualdade em uma comunidade do Rio de Janeiro marcada pela violência e pelo tráfico de drogas, percebeu que os homens homossexuais “mais escuros" que moram nos subúrbios e nas favelas do Rio de Janeiro possuem um campo de manobra mais amplo do que aqueles nos quais se inserem rapazes e moças heterossexuais da região, e, mesmo, as lésbicas e travestis de diferentes cores que habitam essas áreas” (p. 103).

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Justamente em razão da homossexualidade, estão “fora” dos padrões de masculinidade locais requeridos para a atividade do tráfico, podendo, eles, circularem mais livremente dentro da própria comunidade, nas comunidades onde há traficantes rivais e também nos bairros turísticos de classe média cariocas, uma vez que a cor/raça, nesses contextos, atua como um fator que os torna “mais desejáveis” para homens homossexuais brancos e/ou estrangeiros do que os rapazes gays “mais brancos”. Por isso, para esses rapazes, a articulação entre os marcadores sexualidade e raça/cor não produz subordinações em todos os contextos pelos quais circulam. Isso implica em reconhecer que, para além das categorias que marcam as diferenças, é preciso fazer uma leitura do contexto em que as diferenças acontecem e qual seu impacto na produção ou não das desigualdades em dado espaço ou contexto. Evidentemente, para que este debate faça sentido, o ponto de partida da análise deve ser o respeito às diferenças e sua valorização. Penso que, nesse ponto, é importante falar sobre a construção social da identidade e da diferença. Quando falamos em identidade é fundamental que se fale sobre diferenças. Tomaz Tadeu da Silva (2007) nos alerta que é fácil reconhecer a identidade quando a pensamos como aquilo que se é ou, de forma auto referencial, como aquilo que somos. Nesta linha de raciocínio, questiona Silva, A identidade é simplesmente aquilo que se é [...] Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é autocontida e autossuficiente. Na mesma linha de raciocínio, também a diferença é concebida como uma entidade independente. Apenas, neste caso, em oposição à identidade, a diferença é aquilo que o outro é [...]. Da mesma forma que a identidade, a diferença é, nesta perspectiva, concebida como auto referenciada, como algo que remete a si própria. A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe. (2007, p.74) Contudo, a proposição da diferença não se esgota na categorização de si ou do outro. Quando dizemos que somos brasileiras, estamos dizendo que não somos de uma ampla lista de outros pertencimentos nacionais. Ou seja, ao afirmarmos o que somos, também renegamos a aquilo que não somos. O que é proposto pelo autor, então, é uma (re)significação do conceito de diferença, provocando a ruptura com a visão cristalizada da identidade como norma. Podemos afirmar, então, em consonância com a proposta que por ele apresentada, que 230

Assim como a definição da identidade depende da diferença, a definição do normal depende da definição do anormal. Aquilo que é deixado de fora é sempre parte da definição e da constituição do ‘dentro’. A definição daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural é inteiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto, rejeitável, antinatural. A identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu Outro, sem cuja existência ela não faria sentido. (2007, p.84) Para um debate sobre as diferenças é preciso que reconheçamos que tanto a identidade quanto a diferença são produzidas nas interações entre indivíduos, no interior da vida social. Nos identificamos e rejeitamos diversos modelos e práticas que existem, estão disponíveis, no mundo (ou na sociedade em que fomos socializados). Ambas se desvelam a partir do (re)conhecimento de si frente ao outro. As categorias de identificação, nesse sentido, não nos comunicam lugares na vida apriori das relações sociais. Em outras palavras, não somos quem somos ou estamos quem estamos porque temos uma diferença, uma marca no corpo, que nos individualiza. Essas marcas que nos produzem estabelecem sim distinções, mas é preciso entendê-las como produzidas no bojo das relações sociais. E elas são muito mais particulares e contextuais do que globais. Se nos despirmos de certos pertencimentos de raça/etnia, gênero ou sexualidade que não são socialmente hegemônicos seremos legitimados automaticamente? Ou a produção social das diferenças é algo bem mais complexo que isto? A identidade e a diferença são produzidas durante o processo de socialização, um processo permanente de aprendizado cultural, que se estende desde o nascimento até a morte de um indivíduo. Assim, é a partir do processo de socialização que aprendemos e assimilamos aos valores e experiências de uma cultura (no caso, a nossa). A medida em que nascemos, crescemos e desenvolvemo-nos, vamos incorporando as normas sociais e agimos cada vez mais de acordo com a forma com que fomos ensinados. Este processo não se dá de forma consciente e, em geral, essas regras nos são ensinadas a partir das experiências sociais ao longo de nossas vidas. Em resumo, a socialização consiste em um processo de aprendizado cultural que (in)forma os comportamentos de todos indivíduos e permite que pertençam a dada sociedade. Um desses aprendizados diz respeito ao gênero e às sexualidades. Nesse contexto, podemos afirmar que meninos e meninas, possuem comportamentos diferentes não em função de transmissão genética ou

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do ambiente que vivem, mas pela educação diferenciada que cada um recebeu desde o nascimento. Em geral, quando nos colocamos em comparação com o outro e o julgamos diferentes de nós, tendemos a tomar nossos próprios hábitos, costumes e modos de vida como verdadeiros e os demais como inadequados, falsos. Assim, categorizamos a humanidade a partir da nossa experiência e descartamos outras formas de ser e estar no mundo como menos humanas. É preciso que reconheçamos, contudo, que a diferença não é um atributo exclusivo do outro, que tendemos a perceber como atrasados, errados, estranhos, etc. um primeiro passo aqui é justamente reconhecer que, do ponto de vista dos outros, também somos diferentes. Assim, só é possível estabelecer diferença a partir do contato com o outro, diferente de nós. E, ao mesmo tempo, é só a partir desse contato que nos é possível perceber que nos identificamos ou não com ele. Em outras palavras, somos quem somos – e só é possível sermos quem somos – porque estamos em relação com outros, diferentes de nós. Muito embora a teoria queer tenha sido inicialmente menos difundida no Brasil que nos países anglofônicos, é difícil falar sobre gênero e sexualidade hoje sem fazer referência a ela.4 A teoria queer, semelhante ao que ocorre nos EUA, chega ao Brasil principalmente via discussões realizadas por autoras vinculadas aos Estudos Culturais, como Guacira Lopes Louro (2002) e Tania Navarro Swain (s/d), que se servem principalmente das teorias propostas por Judith Butler (1999, 2003). Apesar de uma referência importante, a obra Epistemologia do Armário, de Eve Sedwick (2007) passa a ser difundida no Brasil amplamente anos depois de Butler - inicialmente reconhecida a partir do livro “Problemas de gênero” e do artigo “Corpos que pesam”. Do mesmo modo, conforme Richard Miskolci (s/d), o queer surge nos EUA ...das bordas do movimento feminista branco e de classe média assim como das margens do movimento gay também predominantemente branco e classe-média. Assim, o movimento queer emerge como coalizão feminista-gay marginal com pessoas negras, chicanas, profissionais do sexo, portadores do hiv, esquerdistas, etc. O termo queer tem sido usado para englobar gays, lésbicas,bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros na literatura anglo-saxônica.

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4 Para compreender melhor esta trajetória da teoria queer no Brasil ver Miskolci, 2009, 2012.

O termo foi primeiramente usado pejorativamente para definir homossexuais e mais tarde englobado pelos movimentos ativistas, que tentavam ressignificá-la (esse movimento fala numa política e numa teoria queer). Queer pode significar, também, “estranho”. Em certo sentido, a teoria queer anda pelo mesmo caminho dos pós-estruturalistas, sendo que suas discussões remetem a questões de identidade. Para essa teoria, as identidades – apreendidas como norma ou antinorma – não são fixas e não determinam quem somos. Nesse ponto, podemos dizer, ao mesmo tempo em que aparece colada a ideia de LGBT, por exemplo, ela tece críticas a ela e busca compreender de que modo são produzidas e a partir de que relações ou normas. Essa teoria sugere que não há porque falar em “mulheres”, “homens”, ou qualquer outra categorização que pressuponha uma “essência”, pois as identidades são compostas de tantos e distintos elementos que a simples afirmação de que pessoas podem ser agrupadas por possuírem uma ou duas características comuns seria algo enganoso. As identidades seriam, em suma, plurais, em constante construção e este processo não teria margens nem limites. O termo queer expressa, assim, os diferentes aspectos de uma pessoa, entendendo-a como sujeito multifacetado e em constante mudança. Ou, para citar Tiago Duque (2014), reifica uma “... valorização da prática, da experiência, e não necessariamente o agenciamento via uma identidade” (2014, p.73): valoriza-se, em suma, mais aos desejos do que às classificações identitárias, tidas como limitadas, engessadas e com alto potencial normativo. A pauta do direito à diferença e do combate à desigualdade vem tensionando a cena pública. Os Direitos Humanos5 e o direito à diferença, ao contrário do que se poderia pressupor, causam polêmica e estranhamento sobretudo em contextos conservadores – lembrando que o conservadorismo informa amplamente a formação do Brasil enquanto nação e, isto explica, porque é tão difícil nos livrarmos dele. Esta tensão 5 A noção de Direitos Humanos, conforme explicitado pela da Organização das Nações Unidas (ONU) através da Declaração Universal dos Direitos Humanos, referese ao conjunto de leis que contemplam o direito à vida e à proteção a uma pessoa ou a um conjunto de pessoas em relação às diversas formas de abusos, tanto físicos quanto psicológicos. Para Norberto Bobbio direitos humanos “são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização, etc.” (1992, p. 17). Para Samuel A. M. de Oliveira, “devemos analisar que a dignidade do ser humano enquanto membro vivente de uma sociedade está situada num contexto político atualmente marcado por grandes injustiças sociais, profundas diferenças socioeconômicas e pelas não menos trágicas disparidades de distribuição de renda. Para que um ser humano tenha direitos e possa exercê-los, é indispensável que seja reconhecido e tratado como pessoa, o que vale para todos os seres humanos.” (2007, p. 363).

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aumenta significativamente se o direito humano em questão estiver relacionado à seara dos direitos sexuais e reprodutivos.6 Mesmo em âmbitos regulatórios internacionais que definem como os direitos humanos devem ser compreendidos na esfera global (CORREA, 2009), não é raro perceber que quando o direito das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos emergem no debate há setores conservadores que se contrapõem, mesmo, à inserção da pauta e do debate nesses organismos. Conforme Claudia Fonseca e Andrea Cardarello (1999) pode-se falar, nesse contexto, que mesmo no âmbito do que se convencionou chamar de direitos humanos hoje há categorias que são priorizadas em detrimento de outras, o que desvela lutas simbólicas e critérios particulares de legitimação de diferenças e indivíduos que, quando se reivindicam direitos, determinam quem é mais e quem é menos humano, e, nesse sentido, humanos com mais chance de estarem contemplados nas políticas públicas e de acessarem os bens de cidadania e terem sua humanidade reconhecida do que outros. Há uma tensão evidente entre o movimento LGBT e a teoria queer no Brasil. A teoria queer é acusada de negar as identidades o que faria dela, por este motivo, homofóbica. Questiona-se a instrumentalidade desta teoria para o movimento. Ao questionar a essencialização das identidades, e a veracidade de sua coerência interna, a teoria queer causa desconforto. Especialmente porque dialoga com uma estratégia política de parte do movimento LGBT se denominou de “essencialismo estratégico”. Causa desconforto também por informar que as identidades, ao serem tomadas como verdades, tornam-se também normativas. Sergio Carrara e Julio Simões (2007) acenam para a possibilidade de diálogo ao afirmarem que a tensão entre as aspirações inclusivas e pluralistas, de um lado, e a adesão compulsória à lista de identidades reconhecidas como alvo da ação do movimento, de outro, não tem levado somente a conflitos amargos e autodestrutivos, mas também a iniciativas bem-sucedidas como as ‘Paradas do Orgulho GLBT’, expressões de um espaço

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6 Podemos definir Direitos Sexuais como “direitos a uma vida sexual com prazer e livre de discriminação” e Direitos Reprodutivos como aqueles que dizem respeito ao “direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos/as e de ter a informação e os meios de assim o fazer, gozando do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva”. Fonte: Reprolatina. Para a definição ampliada dos conceitos, veja o site: . Acesso em: 18 maio 2014.

inclusivo de atuação política por meio de uma peculiar celebração das possibilidades de convivência com a diversidade sexual (p. 94). Seguindo a pista dos autores penso que – como pesquisadora que sou – as perguntas com muita frequência são mais importantes do que as respostas. Termino perguntando então se há, de fato, um diálogo improvável e impossível entre a militância LGBT e a teoria queer? Ainda, há como operar uma noção não identitária ao pleitear direitos e reconhecimento na arena pública? O Estado realmente só reconhece o direito a partir do estabelecimento de uma identidade ou estamos tão imbuídos da norma que não conseguimos pensar direitos sem recorrer a ela? Sem pretender responder a essas questões, diria que é possível usar as identidades estrategicamente sem lhes auferir o status de norma ou de torná-las parte do binarismo que (in)forma o mundo ocidental há séculos. Por outro lado, há de se questionar sempre as verdades que se tornam normas. Finalizo o texto – não a reflexão – pensando a partir da ameaça de direitos históricos das minorias que vem sendo postos em questão no atual momento político que vivemos – com uma proposta de coalizão. Não é incomum a percepção de que a afirmação da diferença é o equivalente à fragmentação política. Aproveito-me aqui da análise sobre o consumo de Douglas & Ihserwood de que “os bens são neutros, seus usos sociais, podem ser usados como cercas ou como pontes” (2006, p. 36) para refletir que os conflitos e dissensos, mesmo que não sejam neutros, também podem. Creio que é fundamental nesse momento pensarmos a partir de outro lugar. Pensando a luta política a partir de uma perspectiva essencialista ou de uma perspectiva queer – ou mesmo, de nenhuma delas - já entendemos que existem diferenças que nos separam. E que geram demandas específicas para distintos sujeitos. E esta assunção isso é importante. Por outro lado, penso, especialmente a partir do momento atual que vivemos o desafio que se coloca é: como sentarmos para dialogar e estabelecer estratégias conjuntas de luta, que contemplem nossas diferenças e, ao mesmo tempo, torne possível uma estratégia coletiva e potente de luta pelo direito de “viver uma vida que possa ser vivida”, nos termos de Butler (2014), a partir de nossos desejos.

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Quando os Tikmũ’ũn viraram soldados

sobre Grin, de Roney Freitas e Isael Maxakali

Roberto Romero

Recentemente, ainda que muito tardiamente, os crimes cometidos pelos governos militares contra os povos indígenas no Brasil entre 1964 e 1985 têm sido lenta e gradualmente retirados dos escombros da História. Se já é pouco o que sabemos do que aconteceu no período com aqueles que se envolveram na luta contra a ditadura e o destino que muitos tiveram nos porões das grandes cidades, do que aconteceu aos índios sabemos (ou talvez queiramos saber) menos ainda, quase nada. Se nos preocuparmos ainda em entender o que aconteceu aos índios, segundo os próprios índios, aí então o que sobra na nossa já tão vacilante “memória nacional” não é senão um profundo silêncio. Silêncio ademais condizente com o processo sistemático de varredura e apagamento da presença destes povos que marcou desde a sua origem a “História do Brasil” e que segue ainda hoje em pleno curso. Só por isso – mas não só por isso – a iniciativa deste Grin, documentário que recupera um fragmento da história da ditadura, em especial da Guarda Rural Indígena, a partir dos relatos de alguns homens e mulheres tikmũ’ũn, deve ser recebida com entusiasmo e, espera-se, replicada por aí entre os mais diversos povos que sofreram igualmente com os crimes perpetrados pelo Estado durante o período. Histórias não faltarão. A Guarda Rural Indígena (GRIN) foi criada no final da década de 1960 pelo Capitão Manoel dos Santos Pinheiro, então comandante da Ajudância Bahia-Minas (um braço administrativo da Fundação Nacional do Índio) em parceria com a Polícia Militar de Minas Gerais. Implantado inicialmente entre os Tikmũ’ũn (mais conhecidos como Maxakali), o modelo, que consistia essencialmente no treinamento de indígenas para atuar como policiais

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militares nas suas aldeias, foi em seguida exportado para os índios das etnias Krahô, Karajá, Gavião e Xerente. Os índios considerados “desajustados” ou “revoltosos” eram punidos na própria aldeia ou enviados para o Reformatório Indígena Krenak ou para a Fazenda Guarani, dois centros de detenção criados no estado no mesmo período. Com toda pompa e circunstância, os primeiros oitenta indígenas formados pela GRIN desfilaram nas ruas de Belo Horizonte na manhã do dia 05 de fevereiro de 1970, diante de autoridades civis e militares e de uma plateia animada. O evento, em particular, e a história da GRIN, em geral, passaram despercebidos ou completamente ignorados pelas denúncias que vieram à tona durante o processo de redemocratização. Foi nos arquivos do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, que o pesquisador e vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais/SP, Marcelo Zelic, encontrou as imagens da formatura, registradas pelo cinegrafista Jesco von Puttkamer e mantidas numa fita sob o inocente título “Arara”. Imaginando se tratar de um arquivo da etnia de mesmo nome, Zelic se surpreendeu ao constatar que a referência era, na verdade, às imagens dos índios carregando um homem em um “pau-de-arara” em pleno desfile. Publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, numa extensa reportagem da jornalista Laura Capriglione, o vídeo chamou a atenção novamente para este capítulo esquecido da história da ditadura. Foi neste momento, enquanto participava de uma oficina de cinema ministrada por Roney Freitas, em São Paulo, que a indígena Rosi Araujo propôs ao cineasta que fizessem um filme sobre o tema. Mas a História, do ponto de vista indígena, é outra história. Os Tikmũ’ũn costumam se referir ao “Tempo de Pinheiro” como “quando os tikmũ’ũn viraram soldados”, tikmũ’ũn te yãy hã xonat ĩhã. A expressão é uma constante ao longo dos depoimentos do filme e há nela mais do que talvez se possa imaginar à primeira vista. Em Maxakali, o verbo yãy hã diz respeito a transformações ou metamorfoses como aquelas dos personagens dos mitos que, antigamente, “viraram cobra”, “viraram capivara”, “viraram gavião”... Assim, quando os Tikmũ’ũn nos dizem que “viraram soldados” é preciso remeter tal afirmação não apenas à transformação histórica que atravessaram, como também ao seu histórico de transformações ou à sua história vivida enquanto transformações. Para entender o que estão nos dizendo quando dizem que “viraram soldados” é preciso, portanto, se aproximar do que “virar” quer dizer, entre eles. Neste sentido, as narrativas registradas no filme apontam pistas importantes. Note-se, para começar – e o filme acerta muito ao começar por aí – que o velho Totó descreve a transformação em soldado a partir, sobretudo, dos corpos 240

dos soldados – aqueles que “usavam roupa verde” – mas também, como

já tive a oportunidade de ouvir, botas pretas, quepes, fivelas, revólveres, cassetetes e celas de cavalo1... Nesta que já podemos considerar a definição mais precisa de uma corporação militar: “eles eram muitos, mas o som dos seus pés era um só.”2 Assim, os Tikmũ’ũn “viraram soldados” quando, debaixo dos pés de jaca em Água Boa, alguns deles se vestiram e passaram a se comportar como soldados. Estamos aqui, precisamente, no terreno daquilo que Eduardo Viveiros de Castro chamou de uma “doutrina das roupas animais”.3 característica dos multiversos perspectivistas ameríndios, segundo a qual a diferença entre os diversos pontos de vista que constituem o mundo se inscreve nos corpos, ou melhor, na diferença entre eles, e não na “alma”, na “mente” ou na “cultura”, como parecem supor certas cosmologias – a “nossa”, por exemplo. Assim, se a troca de perspectivas é possível, ela é menos um processo espiritual ou sociológico do que fisiológico: a metamorfose incide primeiro sobre os corpos. Donde a importância das “roupas”. Para uma variedade de povos indígenas, aquilo o que chamamos ou enxergamos como “roupas” não são senão tipos de “corpos”. Entre os Tikmũ’ũn a correspondência é mesmo linguística: a palavra genérica para “roupa”, xax, é um sinônimo de “pele”. “Trocar de roupa” seria, desse modo, algo como “trocar de pele”. Por isso mesmo, vestir, falar, comer, cantar, morar, caminhar ou casar-se com(o) outrem são todas maneiras de engajar-se num devir-outrem. Devir este cercado por perigos, em especial, aquele de ser capturado definitivamente pelo “outro lado”, o que não é senão um outro modo de dizer: “morrer”. Esta outra maneira de vivenciar a história me parece também intimamente associada a uma certa ambiguidade que transparece dos relatos do filme quanto à atuação dos soldados e, em especial, à figura do próprio 1 “Adornos” estes que os índios, não obstante, faziam questão de incrementar ou “indigeneizar”. Como registrava uma coluna do Jornal do Brasil, de 12 de Dezembro de 1969: “O presidente da Funai, Queirós Campos, dizia que a Guarda Indígena vai de vento em popa. Só há um problema, o uniforme. [...] O quepe já perdeu toda a tradicional seriedade porque logo é enfeitado com uma pena atravessada. Finalmente, a fivela e os botões não param no lugar certo, pois, como tudo o que brilha, são invariavelmente colocados na testa e nas orelhas.” (Folha de S. Paulo, 11/11/2012) 2 Extrair as consequências acústico-metafísicas desta definição exigiria um ensaio à parte, que espero ainda estar ao alcance de redigir. Por ora, basta evocar as palavras que o antropólogo Pierre Clastres, aquele “anarquista romântico”, ouviu de um velho xamã guarani, no fundo de uma floresta do Paraguai: “as coisas em sua totalidade são uma: para nós que não desejamos isso, elas são más” (2004: 188). Suspeito que as palavras do velho Totó, como comentava Clastres a partir das palavras do xamã guarani, também “fazem tremer até a vertigem a mais longínqua aurora do pensamento ocidental.” (A sociedade contra o Estado. São Paulo, Cosac Naify, 2004: 189). 3 A “doutrina” é largamente desenvolvida pelo autor no seu artigo “Perspectivismo e multinaturalismo na América Indígena” (São Paulo, Cosac&Naify, 2002).

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Capitão Pinheiro. “Eu sei que uma parte é ruim e uma parte é boa também”, afirma Noêmia Maxakali em seu depoimento. Tal ambivalência pode estar, em parte, associada ao fato de que os entrevistados foram todos “os mais velhos”, testemunhas oculares ou corporais da transformação em soldados, mas também aqueles que contam ou “sabem contar” as histórias dos antigos. É importante, por isso, observar que muito do que se entende sobre o período tem passado atualmente por consideráveis revisões, conduzidas especialmente por jovens lideranças e pesquisadores indígenas como os próprios co-diretores do filme, Isael e Sueli Maxakali. Note-se a esse respeito o evidente constrangimento de Isael diante da fala do velho Rondon, numa das cenas mais incômodas e arriscadas de Grin. A ambiguidade, entretanto, tem de fato algo de recorrente nos relatos tikmũ’ũn e é preciso procurar entender suas motivações. Creio que ela está igualmente associada a um longo “histórico de contatos” travados por eles com uma diversidade de “outros”, dentre eles, aqueles que costumamos chamar seus “espíritos”, os yãmĩyxop. Há, dentre os yãmĩyxop, alguns reputados especialmente ferozes e indomáveis, como os espíritos da fibra da mandioca, os kotkuphi. Guerreiros e canibais, os kotkuphi foram “amansados” com tempo e muito custo, através de periódicas ofertas de comida pelas mãos das mulheres menstruadas.4 Quando vêm passar temporadas nas aldeias tikmũ’ũn, os kotkuphi erguem uma verdadeira trincheira ao redor do kuxex (casa dos cantos), de onde nunca saem para dançar ou cantar. Me disse um amigo que ela é como uma placa de “proibido atravessar”. Quando os seus gritos anunciam de longe o retorno de uma expedição de caça, as mulheres e crianças apressam-se a entrar dentro de suas casas, de onde só saem depois que os yãmĩy adentram o kuxex. Por que teriam os antigos Tikmũ’ũn insistido num contato com povos tão ferozes quanto estes espíritos da mandioca? Ora, porque eles também traziam consigo bens valiosos como cantos, flechas e muita caça, além de defendê-los sempre que eram atacados pelos seus inimigos botocudo. Os soldados da GRIN (ou o “povo do pinheiro”,5 como também são chamados) não 4 Como observa Rosângela de Tugny: “Os kotkuphi já mataram sumariamente vários ancestrais tikmũ’ũn que não respeitaram as regras que impõem aos homens e mulheres quanto ao que pode ou não ser visto. Já me relatou uma mulher tikmũ’ũn que esse yãmĩy foi amansado pelas mulheres, que durante muito tempo lhes alimentaram com comidas feitas enquanto estavam menstruadas.” (Escuta e poder na estética tikmũ’ũn Maxacali, Rio de Janeiro, Museu do índio, 2009: 428).

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5 “Piyẽt xop”, em Maxakali. Chamo a atenção para o uso deste coletivizador “xop”, que os Tikmũ’ũn empregam também para se referirem aos “povos espíritos”: mõgmõka xop (povo gavião-espírito), putuxop (povo papagaio-espírito), ãmãxux xop (povo anta-espírito), pop xop (povo macaco-espírito), etc.

trouxeram, até onde eu sei, algum repertório de cantos, mas trouxeram comida e mercadoria em abundância. “Eu gostava de ser policial, pois recebia roupas e todos os materiais”, afirmou Totó para uma reportagem da Agência Pública.6 Tal aproximação entre os “espíritos” e os “soldados” é, ademais, explicitamente elaborada por eles quando nos explicam (isto é, traduzem) que os kotkuphi, por exemplo, são como a nossa Polícia Federal: “muito, mas muito fortes e bravos mesmo”. É possível, portanto, que naquele momento inicial, os índios tenham recebido os soldados com o misto de medo e curiosidade que costuma ser a tônica dos seus modos de relação com os estrangeiros. Com o tempo, e como os depoimentos do filme deixam claro, o medo e a reprovação coletivas superaram a curiosidade e o desejo de “virar soldado”. Na belíssima descrição de Marinho Maxakali: “Todos estavam chateados com ele [o Capitão Pinheiro]. Aqueles que estavam dentro da barriga também não queriam. Eles batiam dentro da barriga das mulheres dug dug dug dug. Todos batiam para dizer que não. Até as folhas não aceitavam mais, o capim e toda a mata não aceitavam mais.” Apartados do convívio familiar e muitas vezes estrategicamente distanciados dos seus, os soldados indígenas da GRIN iam aos poucos demonstrando-se incapazes de reconhecer os próprios parentes e de tratá-los como tal, um dos principais sinais de uma “metamorfose descontrolada”.7 Os soldados prendiam e maltratavam os tios, os pais, as mulheres e até a si mesmos! E isso não é bom. Essa incapacidade de reconhecer os parentes aponta, a meu ver, para uma verdadeira filosofia política indígena. Afinal, agir desse modo é precisamente a característica da emanação, por assim dizer, de um poder autoritário, coercitivo, descolado dos cuidadosos feixes de relações que tecem as suas formas de socialidade. Em outras palavras, o que os índios percebiam é que onde tem soldado, tem Estado, como nós sabemos bem. Mas é preciso ainda insistir num outro aspecto fundamental. Durante as gravações de Grin, Daldina Maxakali (filha da irmã da mãe de Isael) morreu atropelada por uma moto, enquanto voltava a pé para a aldeia carregando um saco de batatas. “Acidentes” como esses não são nada

6“Treinados pela PM, índios-soldados reprimiam seus pares”, por Andre Campos, 25 de junho de 2013. 7 Exemplo destas “metamorfoses descontroladas” é a perigosa transformação em ĩnmõxa, uma espécie de monstro canibal, meio-zumbi, extremamente temida pelos Tikmũ’ũn. Alguém que não cumpre o resguardo pós-parto, em especial a interdição ao consumo de carne, “enlouquece”, “vira bicho”. Dentre os principais sintomas desta transformação indesejada está o apetite por carne crua, além desta estranha atitude de não reconhecer os próprios parentes, agredindo-os violentamente e podendo, às vezes, matá-los.

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incomuns em toda a região e menos ainda os seus desdobramentos policiais e jurídicos. Mesmo tendo acontecido na porta de um estabelecimento comercial, em plena luz do dia, nenhum dos presentes viu ou soube apontar qualquer indício do assassino ou do seu veículo. Por falta de evidências, o crime foi arquivado. Este é justamente o evento que conferiu à montagem do filme o seu fio condutor. No esforço de embaralhar o passado e o presente de violências, o documentário intercala as entrevistas com as imagens do ritual de cura da sobrinha que sonhou com a tia falecida, da visita de Isael e Sueli Maxakali ao túmulo de Osmino Maxakali (esposo de Daldina, assassinado por um fazendeiro e abandonado na estrada de Água Boa, em 1984), além da manifestação que os Tikmũ’ũn realizaram no local do atropelamento da própria, onde, dias depois da sua morte, alguns ouviram-na cantar. Numa tarde de junho de 2016, durante uma reunião em que algumas autoridades alertavam os Tikmũ’ũn para as consequências nefastas do golpe que então se tramava em Brasília, Sueli Maxakali tomou o microfone e afirmou: “Para nós, a ditadura ainda não acabou!”. Eu arriscaria acrescentar: não acabou porque também não começou com “a ditadura”. O que costumamos identificar como um período especialmente violento da nossa história foi, para os Tikmũ’ũn, mais um período numa história de violências que se arrasta durante “séculos de chumbo”. Violências que ainda enfrentam, diariamente, cada vez que se atrevem a deixar as diminutas terras onde foram confinados e que nenhum governo “democrático” se esforçou até hoje para ampliar; quando algum fazendeiro dispara seu revólver contra crianças que saíram em busca de algum passarinho nas “suas” terras; quando algum índio é morto num “acidente” qualquer que, como outro qualquer, não será investigado ou punido; quando padecem nas enfermarias da região sofrendo com as doenças que seus pajés não podem curar; quando choram os filhos que perderam, vítimas de gripe ou desnutrição; quando são extorquidos e perpetuamente endividados pelos comerciantes locais; quando têm de se virar para comer e beber o que têm, quando têm; e quando, apesar de tudo isso, ainda precisam ouvir da boca de algum regional que todos eles não passam de “cachaceiros preguiçosos sustentados pelo governo”. E não é que, ao contrário das nossas expectativas (e talvez justamente para contrariá-las), os Tikmũ’ũn não passam os seus dias se lembrando de tudo que sofreram e ainda sofrem diariamente?! Isto não quer dizer que não se lembrem, é claro. Lembram-se muito bem de tudo o que aconteceu e, especialmente, onde aconteceu – mais até do 244

que quando... Somos nós, afinal, o “povo do esquecimento”. Quando digo,

portanto, que não ficam se lembrando é porque evitam se lembrar. Nem tanto por alguma razão de fundo sócio-psicanalítico, como poderíamos ser tentados a procurar, mas porque, entre eles, é a lembrança e não o esquecimento dos mortos que periga ameaçar a existência pessoal ou coletiva. Cultivar essas lembranças é perigoso... Na sessão de pré-estreia de Grin em Aldeia Verde, as imagens do protesto pela morte de Daldina e, sobretudo, os seus cantos, despertaram na plateia o mesmo choro agudo com que os Tikmũ’ũn velam os seus mortos. A exibição prevista para o dia seguinte foi possível sob a condição de que a sequência final não fosse repetida. Não há aí, entretanto, uma rejeição “ao filme” propriamente ou à opção de mostrar aquelas imagens. Isael e Sueli entendem e defendem a sua exibição “para os brancos”. O perigo em assisti-las, ali na aldeia, estava justamente em relembrar a parente morta, sentir saudades dela, entristecer, sonhar, adoecer... Entre os Tikmũ’ũn, as imagens, com efeito, podem matar.8 Mas, por fim, e antes que me critiquem o comentário excessivamente “antropológico”, algumas considerações “formais”. Os espectadores habituados à vibrante produção cinematográfica tikmũ’ũn certamente notarão algumas ausências ou diferenças importantes neste filme. Os longos planos-sequência, a câmera próxima dos corpos filmados e inseparável dos corpos que filmam, além de um interesse todo especial pelas imagens da “ação ritual” deram lugar, aqui, a planos mais curtos, filmados à relativa distância e geralmente apoiados sobre o tripé, além de entrevistas costuradas por uma narração em off. O resultado é que, aos olhos de um espectador mais exigente, o filme pode parecer formalmente pouco ousado e esteticamente familiar. Para tecer tais críticas, entretanto, é preciso antes desconsiderar a ousadia que significa, por si só, propor e realizar um projeto – com todas as limitações usuais – em terreno tão peculiar quanto o das memórias e vidas indígenas. Aprofundar e arriscar experimentações é algo que caberá aos realizadores, em projetos futuros, desenvolver. Por ora, importa que estas imagens, como flechas que são,9 atinjam o seu verdadeiro alvo: nós, os brancos.

8 Faço aqui alusão ao texto “A imagem pode matar?”, de José Marie Mondzain (Lisboa, Passagens, 2009) 9 Numa fala recente, durante o evento Mekukradjá: círculo de saberes indígenas, organizado pelo Itaú Cultural, em São Paulo, Sueli Maxakali disse que “as imagens são como flechas que entram no nosso corpo e capturam a nossa alma”.

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Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos

sobre filme de Sérgio Oliveira

Jair Fonseca

Automove lá nem se sabe se é home ou se é muié. Quem é rico anda em burrico, quem é pobre anda a pé. Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira

Os versos da canção “Estrada de Canindé” não correspondem mais, exatamente, ao que se encontra no interior do Nordeste brasileiro. Mesmo os pobres, que ainda mantêm (ou mantinham) os burricos, começam a abandoná-los pelas motos e por outros veículos de transporte de pessoas e cargas. Tem aumentado muito o número de jumentos abandonados, a perambular pelas estradas e mesmo pelas ruas das cidades nordestinas, terminando atropelados ou sacrificados por terem perdido a serventia. Alguns poucos jegues sobrevivem por passarem esportivamente à equitação, em pobres espetáculos para os pobres e as crianças, como se vê numa sequência inicial do filme, ou são levados à morte, como se sugere perto de seu final. Também num plano de seu início, um burrico cruza uma rua, como que deslocado, e uma moto cruza por ele, que zurra, como num protesto inútil. Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos lida com esse assunto, entre outros, de modo original, oblíquo, indireto, estranho, de maneira interessada e interessantemente musical, fotográfica e performática. Não há narração oral, nem entrevistas ou depoimentos no filme dirigido por Sérgio Oliveira, apenas alguns poucos retalhos de conversas, propositalmente desimportantes e pouco audíveis. Aliás, as personagens de animais não humanos parecem tão numerosas e importantes quanto as personagens humanas: além de muares e cavalos, há muitas moscas, cabeças e pés de porcos, ossos de bois, cachorros de

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rua, bem como bichinhos de brinquedo das crianças e o bumba-meu-boi pop-moderno que aparece perto do fim do filme. Mas nada e ninguém é tão presente nele quanto o jumento, que, conforme apontei antes, aparece e parece sempre deslocado, tanto porque se move ou se coloca por diversos lugares do campo ou da cidade quanto porque não tem mais lugar. Nas últimas sequências noturnas do filme, esse caráter deslocado do animal se evidencia junto ao seu tradicional gênio de empacado e, como se diz, injustamente, de emburrado. É significativo que tenhamos aí uma festa de motoqueiros, à maneira de hells angels sertanejos, os quais não consideramos deslocados, bem como não estranhamos tanto o bumba-hip-hop-boi das ruas de Arcoverde, pois acompanhamos em todo o filme os “ritmos americanos” da Orquestra Arcoverdense, inclusive em festas da alta classe média do sertão, nas quais jovens fazem saudações com espadas e ouve-se uma senhora cantar Edith Piaf. Apesar de o ótimo cinema do Nordeste, principalmente o do Pernambuco, lidar de um tempo para cá com a dimensão pop do sertão, esta já vem de antes, como se constata pelo repertório da OARA, sendo New York, New York a sua primeira música apresentada no filme. Nesse quadro, realmente, deslocados são os burrinhos e a “Oração a São José”, entoada por velhinhas noutra sequência, acompanhadas por sanfona e viola. A “modernização” também se evidencia pelas obras urbanas ou fora da cidade, sendo que as crianças colocam seus bonecos de bichinhos para “beberem” água em canais de brinquedo, e são apresentados aspectos atuais de Arcoverde, como a “Brega Night” e a “Branquinha”, enquanto a orquestra toca num cinema de rua que ainda resiste. Ainda resistem também algumas carroças, que até têm pista exclusiva no trânsito intenso da cidade. Em seus momentos de lazer, os sofridos animais de carga “dançam” e “cantam” ao som da OARA. Mas a mais tocante sequência do filme é a do elíptico sacrifício dos bichos, sem apelar para o sentimentalismo barato, que faz lembrar dois clássicos do cinema moderno, sem necessariamente apresentar a dimensão religiosa deles: Au hasard Balthazar, pela epifania cristã do burrinho de Robert Bresson, e Il Vangelo secondo Matteo, de Pasolini, pelo recurso ao belo canto negro spiritual, aqui na voz de Paul Robeson, Sometimes I feel like a motherless child.

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Cabelo Mágico

inspirado em Deixa na Régua, um filme de Emílio Domingos (e seus amigos dos morros cariocas)

Júnia Torres

O cabelo é o assento da alma1

A mais importante qualidade da linguagem não é que ela seja uma forma de fala ou comunicação, mas um instrumento que não simplesmente diz algo sobre o estado de coisas, mas altera o estado de coisas. Espécies particulares de linguagens comuns partilhadas agem e fazem com que algo tenha lugar, como escreveu o velho antropólogo E. Leach de quem emprestamos o título deste comentário e alguns exemplos. Penteados, cortes, cabelos são fontes de significações cruciais e os rituais de cabelo têm associações simbólicas potentes para inúmeros coletivos em diferentes tempos e lugares. Podemos apreciar de forma fascinante o “cuidado com o cabelo” ou o corte ritual entre os Dobu, Yako, trobiandeses, Yorubas, Ndembo, budistas monásticos chineses e tantos mais de quem a etnografia nos aproxima e que nos faz admirar. O corte de cabelo e um intenso investimento estético nos corpos é também mote central de Deixa na Régua, novo longa de Emílio Domingos realizado com seus amigos dos morros cariocas, filme que percorre os mesmos espaços geográficos e sociais que já se revelam familiares ao cinema de Domingos em L. A. P. A. (2008) e A Batalha do Passinho (2012). Porém, se os filmes anteriores acompanham performances públicas de expressões de rua nos morros e periferia (também corporais, em grande medida) tais como o rap e a dança, neste novo trabalho o autor nos localiza nos espaços internos, íntimos e “privados”, fechados e por vezes exíguos e apertados dos pequenos salões 1 HUTTON. In: PARRY, 1932, apud LEACH, E. Zahar ed. 1983.

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de beleza majoritariamente masculinos, espaços de intensa proximidade entre quem filma e é filmado e entre nós que assistimos ao filme. O que nos coloca de forma contundente dentro do universo filmado e do filme nos aprece ser a proximidade detalhista da câmera que etnografa os rostos, os cabelos, os desenhos e os penteados, proximidade que é também conformada pela espacialidade, pela impossibilidade de recuo, onde o espaço reduzido – aliás característica da espacialidade própria dessas comunidades – tem o efeito de gerar forma fílmica, intimidade e cumplicidade. Deixa na Régua nos transporta para ambientes especiais, podendo ser ele mesmo, uma espécie de ritual de cabelo, que nos torna participantes de um universo próprio de cabelos especialmente esculpidos, desenhados, moldados. A vida lá fora em Deixa na Régua (e há muita vida lá fora) é acessada e nos é tornada acessível tão somente a partir de espaços encerrados e dos assuntos que lá se travam – temas da vida privada, como a alegria pelo primeiro filho, os amores que deram certo e que não deram, as conquistas sexuais, a tristeza da perda da irmã para o tráfico, a conversa sobre preços e modelos das armas, objetos incluídos no cotidiano desta comunidade, fazem parte da vida. Incertezas e existências particulares se revelam entre o amor e o conflito aqui, como em todo lugar. Aspectos da vida são contados, narrados, zoados, sem quaisquer interferências em off ou dialógicas do diretor a transparecerem nos planos montados (evidentemente deve haver diálogo e até mesmo particular direção entre o realizador e as pessoas em cena, mas não é esta a matéria constitutiva do filme que nos é oferecido). O que importa trazer é essa vida comentada entre iguais circunstanciais, frequentadores daqueles espaços dos salões semanalmente e donos daqueles cabelos (!), comunidade nem tão circunstancial. A exposição das obras cabelos é amplificada pelas imediatas e urgentes fotografias ou selfies para postagem. Adquirem sentido quando compartilhadas. São feitas para serem compartilhadas, pode-se dizer. Esse simbolismo público dos cabelos para quem quer “deixar na régua” diz algo sobre o estado das coisas, mas também faz coisas, muda coisas, conforma socialidades e subjetividades específicas, faz viver junto, embeleza o mundo, faz fazer um filme que muda a forma pela qual nos relacionamos com tais universos e personagens e seus valores estéticos diversos, nos faz admirá-los, e por vezes, magicamente, nos faz querer imitar seus cortes, ou suas imensas tranças coloridas a causar beleza e assombro nos espaços públicos da cidade. Potência estética e, portanto, 250

política. Cabelos mágicos.

Desses espaços pequenos e compartilhados – coletiva e animadamente – emergem fatos da vida dos meninos e homens do morro, um mundo masculino que emerge inusitadamente reconfigurado por cuidados e vaidade, nos revela um filme cuja forma é aparentemente simples, como a vida pode ser aparentemente simples, dentro de um salão de beleza. Tal simplicidade aparente não o diminui, pelo contrário, ao que nos parece. Forma do filme, correlata ao universo que partilha. Queremos apostar que a magia, que está nos cabelos, na dança, no corpo, está também, nesse caso (e em tantos outros), no documentário. Nos parece que um dos empreendimentos mágicos do filme é nos fazer pensar nos filmes do cinema direto, como os de Wiseman, onde a câmera parece milagrosamente não estar lá, tal é a naturalidade com que os atores continuam envolvidos em suas ações e conversas cotidianas, algo dificílimo frente à proximidade radical, já mencionada acima, conferida pela própria espacialidade onde se desenrolam as cenas em Deixa na Régua. E, então, conhecendo os filmes e um pouco da trajetória do autor, nos parece que, contrariamente ao direto, tal “naturalidade” e o transbordamento da vida para o filme, do morro para a cidade, emerge da intensa relação anteriormente estabelecida por Domingos e sua equipe com seus amigos dos morros onde filmou e com o universo ou multiverso das comunidades de periferia do Rio de Janeiro. Etnografia, trabalho de câmera e encenação aqui se combinando de forma singular. Por fim, o cinema de Domingos – que acreditamos, pode ir ainda mais longe – é marcado por uma coerência notável e rara. E não propriamente temática, mas espaço-social. Uma filmografia que compõe uma obra relacional também internamente, entre seus filmes, ancorada, pode-se dizer, em estabelecer diálogo e cumplicidade com seus personagens e, de quebra, destes com seus espectadores, cinema de aliado. Assim, invertendo radicalmente a perspectiva estigmatizante – tragicamente concretizada a cada tiro que mata ou encarcera violentamente milhares de jovens negros no país, esse cinema contribui para alterar o olhar (eternizado e cristalizado por essa TV canhestra que nos assombra cotidianamente) – sobre os moradores e as comunidades pobres do Rio e de todo o país, invertendo o polo da falta, da escassez, da incapacidade, da violência, do estigma. Deixa na Régua nos leva à eficiência dos movimentos estéticos inventados e compartilhados intensamente das periferias, dos movimentos do cabelo, do estilo, de uma vida intensamente elaborada do ponto de vista dos corpos simbolicamente investidos, de sua performance e do estar junto. E, com a obra de Emílio, junto também do cinema. 251

Cinema Novo: do didatismo ao absoluto

sobre filme de Eryk Rocha

Leonardo Amaral

No mais famoso movimento de travelling do cinema brasileiro, os personagens Manoel e Rosa correm uma grande extensão de terra em Deus e o Diabo na Terra do Sol. “O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”, antevê o mítico Antônio Conselheiro, notável líder da Revolta de Canudos. Manoel e Rosa correm porque fogem do sertão, da seca, da fome. Correm na tentativa de resistir, de existir, de subsistir. Assim também correm o menino da favela em Rio 40 Graus ou o pequeno ladrão de gatos em Couro de Gato. Os marcos do Cinema Novo parecem retratar uma eterna fuga, uma necessidade de se inquietar diante das mazelas sociais (“Estética da Fome”, diria Glauber Rocha) de um país que se encontra às vésperas de um Golpe de Estado que marcaria para sempre uma nação. As primeiras imagens de Cinema Novo são essas diversas fugas, corridas por sertões, avenidas das grandes cidades, vielas das favelas, becos ou asfalto. É preciso correr, antes que seja tarde. Eryk Rocha, filho de Glauber, em Cinema Novo, faz um filme de arquivos – seja dos filmes que compõem a constelação de obras

desse majestoso cinema nacional, seja de relatos e convivências dos cineastas da época. A montagem procura concatenar esses dois registros de modo a alcançar uma totalidade da história. Cinema Novo é didático porque é preciso ser. Haveria outra forma para lidar com o que provavelmente foi o momento mais importante e conhecido do cinema brasileiro? Nesse sentido, o documentário procura (e quer ser) absoluto. Quer trazer e resgatar a constituição do movimento. Não à toa, nos créditos finais, não

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se furta em colocar os artífices desse momento em suas respectivas funções nos filmes que marcaram o Cinema Novo. Em “O processo do Cinema Novo”, organizado por Alex Viany, há um dos maiores documentos históricos e estéticos a respeito da fundação do movimento mais marcante da história do cinema brasileiro. Reunidos em diversos encontros que tiveram seus áudios gravados e posteriormente transcritos, os principais intelectuais e produtores do Cinema Novo discutem os conceitos estéticos e as implicações políticas de suas ações e filmes. De um certo modo, Cinema Novo se aproxima desse livro seminal, na medida em que procura retomar muitos dos pensamentos que marcaram a época da produção e filmagem das obras que mais tarde se tornariam fundamentais. É possível acompanhar uma consonância de pensamento entre as discussões presentes no livro e aquelas encontradas nos materiais de arquivo do filme. Muito do que falam Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Paulo Cézar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Gustavo Dahl, Luiz Carlos Barreto são consonantes discussões que ressoavam na época e que aparecem com bastante frescor no filme. Cinema Novo ainda faz coro com o argumento de Glauber em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”. O livro, que é um compêndio de escritos e ensaios do cineasta baiano a respeito do passado e destinos do cinema no Brasil, elege as filiações e influências do Cinema Novo: Humberto Mauro e Alberto Cavalcanti. Os dois aparecem em imagens e fragmentos no filme de Eryk Rocha, que os insere como base fundamental para o movimento. Cenas feitas pelos dois se misturam às imagens e discussões dos cinemanovistas. Mas, eis que surge a cisão, a pedra no meio do caminho que impede que a caminhada siga em conjunto. O golpe militar de 1964 opera diretamente no seio da produção do Cinema Novo. No ano em que Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol participaram da Competitiva do Festival de Cannes, Ganga Zumba fez parte da seleção da Semana dos Realizadores de Cannes e outros tantos filmes cinemanovistas participaram e foram premiados em notórios festivais internacionais, o país é tomado por um forte golpe antidemocrático. O golpe militar foi, segundo Glauber em entrevista presente no filme, um divisor no Cinema Novo. Se outrora os filmes eram feitos em conjunto, se instaurou, desde então, um certo individualismo das produções. “Fazíamos os filmes juntos porque gostávamos dos filmes um dos outros”, afirma Carlos Diegues em uma entrevista. O golpe, de alguma maneira, não esgota a admiração mútua, mas torna todo o processo mais distante. 254

Nesse instante, o filme rompe um pouco com o didatismo histórico para dar lugar a um certo tipo de experimentalismo de montagem. Os filmes se misturam e se fundem. Fragmentos se articulam e tornam-se um único filme. No instante final, os corpos voltam a correr e a última imagem é novamente da corrida de Manoel e Rosa. No entanto, a montagem agora impede a queda de Rosa como acontece em Deus e o Diabo. Ela permanece a correr, e a tela preta ocupa todo o espaço do écran. Cinema Novo continua em fuga, a correr. Ainda está bastante vivo e pulsante.

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Olha a nossa situação aqui!: nós, espectadores, na missão com Kadu

sobre filme de Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito

Paula Kimo

É dia na Ocupação Vitória. A equipe de filmagem se cumprimenta, ao mesmo tempo em que Kadu, Pedro e Luísa nos são apresentados. O jovem que os acompanha anuncia o título do filme: Na missão, com Kadu. Assim eles se relacionam e nos colocam em relação. Pela imagem entramos na casa de Aninha – mãe emprestada de Kadu – e presenciamos uma conversa. Não uma conversa cotidiana, mas uma conversa comprometida e provocada por uma missão: contar o que aconteceu com os moradores das Ocupações de Izidora no dia 19 de junho, tecer relações com as imagens gravadas por Kadu durante os momentos de repressão policial ao ato dos moradores rumo à sede administrativa do Estado. Apesar da missão, a conversa é atravessada pelos comentários do jovem Mascote e pela doçura de Aninha. Sobre o dia 19, Aninha diz que foi “o dia da luta”, ela sorri ao contar a reação das crianças diante da brutalidade do aparato militar. Ao mesmo tempo em que ela nos parece constrangida com a presença da câmera, seu sorriso diz que não existe outra forma de relacionar. Aninha se distrai com o cachorro e Kadu, sério, determinado, insiste em falar da manifestação, da violência policial, ele quer nos contar porque o povo estava nas ruas, afinal, ele tem uma missão: fazer um filme. Mas a missão de Kadu diante da câmera vai além. No duplo papel de diretor e personagem, documentarista e documentado, realizador do filme e morador de Izidora, Kadu busca, essencialmente, sensibilizar o público espectador para

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a tomada de posição em defesa das Ocupações de Izidora. Consciente de seu devir-imagem, Kadu nos envolve. Agora é noite na Ocupação e escutamos os sons dos bichos que habitam aquele lugar, as cigarras, os cães, o som das estrelas. Ali é possível imaginar uma outra comunidade em meio à cidade encurralada pelo concreto. A Ocupação Vitória, na Região de Izidora, também conhecida como Granja Werneck, está localizada na divisa de Belo Horizonte com Santa Luzia. Alvo de especulação imobiliária, o terreno oferece possibilidades de crescimento e lucro do ponto de vista das empreiteiras e dos governantes. Mas ali, desde meados de 2013, toda uma cidade já cresce e luta. Naquela noite, o filme, em sua dimensão processual que produz gestos, práticas e ações, como nos escreve Nicole Brenez em Political Cinema Today, seguiria em mais uma missão: exibir o material bruto das manifestações para os moradores. Sob pneus improvisados – vestígios das barricadas construídas na época da resistência à reintegração de posse – moradores da comunidade se acomodam para ver as imagens. Muitos ficam de pé. Escutamos a voz de Kadu vinda de um outro lugar, do vídeo projetado sob a parede de alvenaria. É dessa forma que somos jogados para um outro tempo, bem distante do tempo onde as cigarras podem cantar. Na montagem, a projeção é um recurso que introduz o material gravado no dia 19 de junho e, naquele momento, somos comunidade de partilha. Ali é possível assistir junto, ver com Izidora. Vemos a Rodovia MG10, via de acesso à Cidade Administrativa, sede do Governo do Estado de Minas Gerais. Kadu filma a manifestação. Pela voz que narra aquilo que vê e filma podemos reconhecê-lo. É pela palavra que ele dá a ver a luta: “é por moradia que o povo tá na rua”. As imagens são trêmulas e frágeis, bem diferente do povo que vemos em cena forte e determinado, que avança em direção à barreira da Tropa de Choque. Ouvimos a respiração ofegante de Kadu que filma na luta, filma a sua própria luta. Filma e se revolta com a ação da polícia. Ou seria o contrário: se revolta com a ação da polícia e filma? O antecampo exposto em campo pela voz que atravessa o material fílmico reivindica o direito de manifestação da comunidade, ao passo que garante o direito de nós, espectadores, assistirmos às imagens daquelas famílias violentadas pelo Estado. Ao tornar visível a luta por moradia, Kadu nos concede o direito à indignação. Em meio ao ataque policial um dos manifestantes tomba na rua. “Filma!”, grita outro: “Vamos lá Kadu, o Bahia derramou sangue por nós, agora vamos lá também”. Assim como Kadu, aquele que convoca a câmera 258

tem consciência em relação ao devir-imagem daquela comunidade em

luta. Diante da urgência por visibilidade, o quando e o porquê fazer uma imagem – questões lançadas por Nicole Brenez para afirmar o cinema de intervenção – são saberes que movem não apenas aqueles que filmam, mas também aqueles que são filmados. Nos minutos finais, Kadu filma a violência policial ao mesmo tempo em que carrega uma criança, ao mesmo tempo em que corre da zona de efeito do gás lacrimogênio, ao mesmo tempo em que exige uma resposta do governo, ao mesmo tempo em que nos chama para a luta. Para fugir do gás ele atravessa uma passarela sob a Rodovia MG10 e alcança um terreno descampado. Tanto Kadu quanto a criança sofrem no corpo os efeitos do gás, a menina pergunta ao “tio” se ela vai morrer, se a polícia teria coragem de matá-la, já que ela é uma criança. Chamando os policiais de covardes, Kadu vira a câmera para si: “Olha isso aqui, olha contra quem que a polícia está jogando bomba. Até quando o governo vai ser assim. Olha lá, está em clima de guerra lá atrás. Cadê você, Pimentel? Imbecil. Olha essas crianças, olha o que vocês estão fazendo”. Kadu reivindica o nosso olhar, exige o olhar do Estado, clama pelo olhar de um terceiro na relação e o faz de forma violenta, tal qual a violência que seu povo sofre. “Vocês querem que a gente viva num sistema maldoso, a gente não vai aceitar isso não. Nós estamos gravando e vamos pôr mundial. Tem que rodar é mundial. Porque isso aqui não existe”. Mais uma vez Kadu atesta a consciência de seu devir-imagem. Gritando contra o Estado, esbravejando num ato de desespero, Kadu violenta a própria imagem, avança em direção ao campo visível como se fosse engolir o quadro. E assim o faz. A imagem se apaga na tensão de Kadu diante da própria câmera. Ao chamar explicitamente o olhar espectador, ao expor a situação da criança, ao incitar uma certa visibilidade mundial para a brutalidade do Estado, Kadu convoca o futuro da imagem na sua própria gênese. O ato de virar a câmera para si e convocar o espectador parte de uma consciência compositora na tomada da imagem. Em cena, Kadu monta seu próprio filme. Em cena, Kadu indica para onde e como devemos olhar. Ao corte final estaria reservada a missão que preserva a potência daquelas imagens ao mostrar primeiro o material filmado com Kadu (quando se tenta explicar o acontecimento), depois o material filmado por Kadu em meio ao acontecimento. Na missão, com Kadu convoca três distintas temporalidades que tornam visíveis a luta das Ocupações de Izidora e a missão que o filme mesmo tenta cumprir. Primeiro, o tempo da comunidade, da hospitalidade de Aninha, do cachorro, dos fogos de artifício que convocam as assembleias, o tempo dos sons das cigarras. O tempo do sonho, não daquele narrado

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por Kadu, mas do sonho de uma comunidade por vir, uma comunidade que se constrói tijolo por tijolo. Depois, o tempo do conflito, da disputa, não apenas o conflito entre civis e militares que vemos em cena – do Estado contra o povo pobre e humilde, nas palavras de Kadu – mas também da disputa por visibilidade, da disputa pelo olhar do espectador por vir, aquele que teceria um fio de esperança ante a solidão da luta cotidiana dos sem-casa. Por fim, o tempo mesmo do fim, o tempo da morte onde as imagens não são visíveis, tampouco a esperança. Nesse tempo não mais escutamos Kadu, apenas sentimos o impacto de seu assassinato anunciado por uma cartela preta, apenas sabemos que ele era devoto de São Jorge e São Miguel e trabalhava numa kombi de nome Jandira. Na cartela final, o filme apresenta mais uma missão ao se dedicar à memória de Kadu. A partir de então, Kadu nunca mais abandonaria nossa memória. Para o filme, uma inesperada e desoladora missão: o luto da luta. Para nós, o entendimento de que essas imagens surgem no mundo para intervir no presente e cumprir uma urgente e inadiável missão. Companheiro Kadu, presente!

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Junho no plural

sobre Vozerio, de Vladimir Seixas

Vinícius de Andrade

Um dos poucos entendimentos comuns em torno das Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, ao menos até antes do golpe de 2016, é o de que constituem um acontecimento ainda em disputa. Elaborar uma narrativa das manifestações de rua daquele ano trata-se, de saída, de um enorme desafio e uma característica fundamental de Vozerio pode ser descrita como um olhar destituído de pressa em determinar os sentidos ou encerrar a leitura dos fatos. Tal postura, nada irrelevante se olhamos para a irregular produção documental sobre Junho/2013, é notável em procedimentos fílmicos que operam o que nos parece ser uma série de intuitivas recusas. A primeira importante recusa é abdicar do tom didático – seja na forma de narração explicativa, letreiros informativos ou no uso excessivo da entrevista. Isso permite ao filme trabalhar no entrecruzamento dos problemas do Rio de Janeiro, premissa explicitada na abertura: durante imagens turvas de barricadas em chamas, vamos dos gritos em defesa da Aldeia Maracanã e de cobrança em relação ao caso Amarildo até aqueles contra a violência policial e o aumento da tarifa do transporte público. Esta primeira recusa se conecta a de estabelecer uma cronologia rígida dos acontecimentos, fazendo o filme avançar por circularidade: retornam temas, personagens e imagens, como as cenas das disputas em torno da Aldeia Maracanã, tornada símbolo que aproxima as lutas pela terra e associa o direito à cidade às cosmologias indígenas.

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Nota-se também a recusa em lançar um olhar “de cima” das mobilizações ou circunscrevê-las em demasiado, bem como a de abordá-las como se tivessem iniciado como um “trovão em céu aparentemente sereno”,1 A recusa que nos parece mais singular, no entanto, está ligada ao uso do som direto. Podemos escutar ao longo do filme as vozes, gritos e palavras advindos das ruas, tal como foram captadas em meio aos embates, o que constitui uma diferença marcante em relação à maioria dos longas-metragens sobre as manifestações. Os acontecimentos de rua não são aqui apresentados sob a forma de videoclips – trilha rock’roll, teor de energia exacerbado, montagem acelerada –, tratamento que retira a possibilidade de pensamento sobre os conflitos a partir de sua própria observação e faz das ruas um lugar alijado de razão. Trata-se, em Vozerio, de uma narrativa organizada por uma montagem hábil o suficiente para manter-se aberta à complexidade dos acontecimentos e vibrando, em alguma medida, com a pluralidade das vozes. Essa organização pode ser percebida em pelo menos três gestos, sendo o primeiro deles (ligado à própria trajetória do documentarista Vladimir Seixas) o de acercar os problemas do Rio de Janeiro pelas “margens”: as manifestações de Junho e as pautas que nela surgiram não são mostradas sem que antes passemos pelas injustiças vividas por indígenas e moradores de periferia e a violência policial nas manifestações é assim vista à luz do estado de exceção permanente a que essas populações são submetidas. É também destacado um segundo gesto, o de elaboração de cenas em que outras produções são filmadas em seu processo de realização. Diante do já mencionado desafio de filmar as revoltas de Junho, Vozerio dá ênfase à ideia de mediação e assume o imperativo de visar o modo como esses acontecimentos vem sendo visados – o que ficará evidente, afinal, na quantidade de entrevistas feitas com fotógrafos, cinegrafistas e montadores. Embora padecendo, por vezes, da busca por abarcar uma ampla variedade de questões, a exemplo da inclusão dos registros das entrevistas feitas pelos cineastas Carlos Pronzato e Sílvio Tendler para seus respectivos documentários. Essa operação se relaciona – terceiro procedimento importante – com a efetiva incorporação de imagens produzidas por outros fotógrafos, cinegrafistas e cineastas. Consciente da impossibilidade de realizar, nos tempos atuais, um filme engajado sem a utilização de imagens produzidas por outrem, o filme adota a fotografia coletiva e imagens de diferentes

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1 Expressão usada no editorial do semanário francês Le point e mais de uma vez lembrada por Raquel Rolnik.

naturezas e suportes (celulares, internet, desenhos). Aproxima-se do questionamento à autoria, reivindicado por Nicole Brenez como exigência para o cinema engajado feito hoje (2011), bem como da retomada de diferentes materiais realizada por filmes como Ressurgentes, de Dácia Ibiapina – documentário que, no cotejo com Vozerio, ofereceria uma rica reflexão. O filme de Vladimir Seixas caminha, afinal, no terreno de uma tensão, isto é, entre a tentativa de dar conta da multiplicidade expressiva de fatores que precipitam e atravessam Junho e uma disposição para fazer do filme não necessariamente uma fonte de saber, mas uma instância de sondagem sobre o que se revela ainda hoje como um complexo período de intensas mobilizações no Rio de Janeiro, no Brasil e mundo. Instância que absorve o que é possível desse momento histórico e revela-se disposta a recolocar, em alguma medida, os termos dos problemas vindos à tona com essas mobilizações.

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A cidade onde envelheço

sobre filme de Marília Rocha

Carla Maia

Um ato de hospitalidade só pode ser poético. Jacques Derrida

Conhecida por seus documentários, Marília Rocha é uma cineasta viajante: com Aboio (2005), ela vai até o sertão brasileiro, entre Minas Gerais e Bahia, onde acompanha a toada dos vaqueiros que mantêm viva a tradição do aboio, canto para tanger o gado; com Acácio (2008), ela percorre às avessas o percurso migratório da personagem-título, um português que passou a vida entre Portugal, Angola e Brasil; com A falta que me faz (2009), ela viaja até Curralinho, na região da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, onde filma seu encontro com um grupo de jovens mulheres na passagem para a vida adulta. A cidade onde envelheço (2016), primeiro longa-metragem de ficção da diretora, tem início numa estrada, como que retomando, ou renovando, a cena final de A falta que me faz. Estamos diante de mais uma de suas obras em que a travessia e o deslocamento oferecem mote e norte narrativo. Dessa vez, contudo, Marília filma na cidade onde vive e trabalha. Já não é uma viajante, mas confere o traço às protagonistas que cria, as portuguesas Francisca e Teresa, que migram de Lisboa para Belo Horizonte. Uma migrou há um ano, a outra está para chegar. Francisca prepara a casa para a chegada da amiga: quando a vemos pela primeira vez, ela leva um colchão pelas ruas do centro da cidade até seu apartamento, reorganiza os cômodos, desfazendo-se do escritório para abrir espaço à hóspede por vir. Foram amigas quando mais jovens e não se encontram há um bom tempo, é o

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que descobrimos de saída. O reencontro é contido, um abraço breve à porta da casa. Francisca não omite o desconforto diante da perspectiva de, pela primeira vez, ter que dividir a casa em que já se habituara a viver sozinha. Desprovida de drama ou ênfase, a narrativa é composta por uma sucessão de eventos mínimos, corriqueiros, apanhados pela câmera de Ivo Lopes Araújo com bastante sensibilidade, em planos que primam pela proximidade na maior parte das vezes. Francisca passa seu tempo entre o trabalho na Tasca e encontros com amigos. Com um deles, interpretado por Paulo Nazareth, vive uma relação amorosa, embora hesite em chamá-lo de “namorado”. Teresa, de sua parte, vaga pelas ruas do centro como quem procura entender onde está, quem lhe sorri, que espaços há por descobrir. A primeira parece ser mais discreta e criteriosa, a segunda, mais extrovertida e despreocupada. Contudo, pouco de fato sabemos de cada uma, a não ser que vieram de Lisboa, a não ser que acham complicado falar de amor, a não ser que fumam bastante e gostam de dançar. De Francisca, sabemos ainda que gosta de afagar um cão e sente saudades do mar, de sentir o sal na pele. De Teresa, que cultiva o hábito da corrida, conversa com estranhos sem timidez e tem inclinação a performances, como soltar bolhas de sabão durante um jogo de sinuca ou batucar pelas paredes ao receber uma notícia perturbadora. Pouco a pouco, passamos a reconhecer movimentos próprios a cada uma – a maneira de mexer nos cabelos, o jeito de andar ou tragar o cigarro – e isso pode causar impressão de intimidade. Apenas impressão. Ambas permanecem opacas, insondáveis, o coração refugiado “entre possibilidades e apreensões”, como escreve Paulo Mendes Campos a Otto Lara de Resende, na carta cujos trechos são lidos por Teresa em off, sobre imagens dos casais deitados na relva do Parque Municipal. As palavras de “Carta a Otto ou Um coração em agosto” são chaves de leitura: “como se torna difícil explicar as coisas quando a liberdade instala em nós seu reino de incertezas”. Além de sublinhar o tom poético já adivinhado em cenas anteriores – Francisca equilibrista no alto da cidade, Teresa em transe no show de rock – a carta ajuda a ressignificar o laconismo do filme, reconhecível em outros trabalhos de Marília. Se, à primeira vista, o filme pode sugerir certo esvaziamento ou mesmo não-enfrentamento de questões complexas, sobretudo pela maneira como olha para a cidade e a recria como espaço harmônico, sem turbulências ou conflitos; é preciso olhar novamente, com mais atenção, e compreender que repousa sob a postura lacônica um exercício de liberdade, em que as coisas tornam-se mais incertas 266

embora não menos pungentes.

Tamanha liberdade dificulta o trabalho analítico, e não por acaso este se torna descritivo, como que apegado à superfície das imagens. A aposta na descrição em detrimento da interpretação das situações e personagens parece ser uma escolha consciente de mise-en-scéne, favorecida pela excelente interpretação de Francisca Manuel e Elizabete Francisca, ambas em seu primeiro trabalho como atrizes. Assim, cada detalhe sonoro ou visual – um gesto, um olhar, uma canção – é sublinhado de modo a tornar-se mais significante. Demorar o olhar sobre a obra é preciso, pois, se o que se quer é descobrir sua força apenas aparentemente contida. Esta é uma história de encontro e amizade entre mulheres, feita de hospitalidade e acolhimento, e isto não é pouco, em tempos de hostilidade, desamor e intolerância. Francisca hospeda a amiga, a cidade acolhe as estrangeiras, amigos partilham refeições no quintal e as pessoas parecem confiar umas nas outras, mesmo em estranhos (ao ir ao banheiro no bar do centro, Teresa deixa sem receio sua bolsa e sacolas com as pessoas que bebem no balcão). Não há nisso nenhuma ingenuidade, mas uma defesa poética e política da amabilidade, da possibilidade de criarmos mundos em que afeto, alegria e cuidado medram das experiências. Isto não é inédito no trabalho de Marília, que tantas vezes foi acolhida por seus personagens – os vaqueiros, o casal de Portugal, o grupo de jovens do interior de Minas Gerais – e em retribuição os acolheu em seus documentários, oferecendo suas imagens e sons qual proteção e abrigo. De fato, não parece coincidência que a cineasta viajante, ao tomar as vias da ficção, tenha se decidido justamente por um conto de hospitalidade. Tampouco parece gratuita a primeira pessoa no título. Quem envelhece nesta cidade? Não as personagens, é certo, embalsamadas pelas imagens no esplendor de sua beleza e juventude. Nesta cidade, envelhece a diretora, envelheço eu, envelhecemos, uma “vida inútil”, diria a personagem Teresa, mas uma vida concreta. Dar concretude e materialidade aos afetos, se deixar atrair pela disponibilidade das criaturas mundanas não é tarefa tão simples quanto possa parecer, e esse é o mérito da obra: em meio a ônibus que chegam e aviões que partem, ela torna sensível aquilo que Paulo Mendes Campos chama, enfim, de “amor impensado pelas coisas do mundo”.

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E nada do que foi ouvido pode ser repetido com as mesmas palavras

Sobre Taego Ãwa, de Marcela Borela e Henrique Borela

Ewerton Belico

Nós queríamos falar, finalmente ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparência física era suficientemente eloqüente por ela mesma. Mas nós justamente voltávamos, trazíamos conosco nossa memória, nossa experiência totalmente viva e sentíamos um desejo frenético de a contar tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossível preencher a distância que descobrimos entre a linguagem de que dispúnhamos e essa experiência que, em sua maior parte, nos ocupávamos ainda em perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a não tentar explicar como havíamos chegado lá? Nós ainda estávamos lá. E, no entanto, era impossível. Mal começávamos a contar e sufocávamos. A nós mesmos, aquilo que tínhamos a dizer começava então a parecer inimaginável. Essa desproporção entre a experiência que havíamos vivido e a narração que era possível fazer dela não fez mais que se confirmar em seguida. Nós nos defrontávamos, portanto, com uma dessas realidades que nos levam a dizer que elas ultrapassam a imaginação. Ficou claro então que seria apenas por meio da escolha, ou seja, ainda pela imaginação, que poderíamos tentar dizer algo delas

Robert Antelme, L’Espèce Humaine

1.“Recordo-o”: Taego Ãwa se inicia pela evocação da memória e seus usos – Henrique e Marcela Borela levam aos Ãwa as imagens de seu passado doravante redescobertas. Mas o que vemos e ouvimos, de imediato, é o presente dos corpos e vozes, que indicam a necessidade da rememoração não da opressão ainda vigente, mas das marcas de uma experiência coletiva inscrita no espaço. Vozes e imagens, arquivo e testemunho convergem em um fim político e comunitário, a esperança de recuperação da terra perdida. O arquivo é então o vetor de um conjunto de relações: do processo do filme que se mostra diante do espectador, dos Ãwa entre si e diante de nós ao perscrutar a memória de um genocídio, daquilo que o arquivo desvela ao expor suas lacunas: o aparato ideológico de sua própria produção. Tratar-se-á de uma singular política da memória, no qual o documento está

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menos a serviço de caução da experiência vivida e testemunhada pelos sobreviventes (no caso, O sobrevivente, Tutawa Ãwa) do que exposição do lugar de fala do opressor.

2. Memória de lacunas, rastros, resíduos: Taego Ãwa tem como inscrição fundamental um paradoxo a partir do qual se desdobra, a insuficiência estruturante dos arquivos que o percorrem e atam seus liames. Se as imagens tendem a uma profusão dispersiva, é a voz de Tutawa Ãwa que aponta o furo do que não pode ser mostrado. E é essa insuficiência que se constitui no dispositivo mesmo do filme, que se lança à rememoração ao constituir uma arena onde o encontro com o passado se torna possível. O vínculo relacional com os documentos somente se constitui mediante uma cena de origem, na qual se instaura a narrativa de uma queda, a ruptura que dá origem à perseguição e ao genocídio. E, para além do narrado, os fragmentos de um arquivo possível persistem ainda quando o filme se encerra, como a apontar para uma multiplicação sem fim de traços do passado.

3. “Ainda guardávamos as lembranças de nossa vida anterior, mas veladas e longínquas e, portanto, profundamente suaves e tristes, como são para todos as lembranças de infância e de tudo que já acabou”:1 como em uma topografia das perdas, passado e presente se confundem tanto na destituição das formas tradicionais de vida comunitária quanto em sua reencenação, que Taego Ãwa torna possível, tal como a pintura com jenipapo. Há como que uma lógica de sobreposições, que organiza o contraponto entre as paisagens devastadas do passado e a documentação paciente dos espaços da aldeia e de seu derredor no presente. Tais passagens traduzem duas espécies de políticas da imagem que estão aí implicadas: o registro que, para além de expressão bruta do aparato ideológico de um massacre, é ele próprio um dos mecanismos de sujeição dos Ãwa, que tem sua imagem apropriada juntamente com suas terras, seus corpos, suas vidas – registros esses pacientemente coletados e apresentados no filme – e uma espécie de conjunto de forças de restituição, do qual Taego Ãwa participa, como vetor da esperança da reconquista da terra e como força imaginativa que permite a reconstrução de práticas coletivas.

4. “(...) nenhuma narrativa coercitiva, nenhum intérprete – narram-se lutas, revoltas, fracassos, derrotas, atrasos ou antecipações, estatísticas,

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1 LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 104.

mostra-se história, topografia, geografia, geologia, luz, luzes, ventos e nuvens, terra (transformada e cultivada pelos homens) traços, – apagados ou ainda visíveis – e céu (muito céu)”:2 a fatura de Taego Ãwa parece indicar um peculiar forma de filme político – nem registro urgente, pois é sobretudo da “perlaboração” da perda que se trata; e nem registro histórico omni-abrangente, pois as fraturas de uma narrativa histórica possível são sua própria matéria. O filme de Henrique e Marcela parece dar voz, lugar e abrigo a uma geografia das experiências, escapando à tentação de devolvermos o mesmo espetáculo ao tentar constituir narrativas contra-hegemônicas.

2 HUILLET, Danièlle. Como "corrigir" a nostalgia. In: STRAUB-HUILLET/GOUGAIN, Ernesto [et alii]. São Paulo: CCBB, 2012

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A impureza da forma

Sobre Filme de Aborto de Lincoln Péricles

Marcelo Miranda

Numa olhada superficial, Filme de Aborto pode se apresentar como um filme sobre tudo e sobre nada. Tudo: diversos temas constantemente debatidos no cenário sociocultural brasileiro estão lá (feminismo, exploração do trabalhador, vida na periferia, relacionamentos, gravidez na adolescência, aborto, insatisfação, suicídio). Quando se tenta falar de tudo, a consequência (muitas vezes) é falar sobre nada. Na linha tênue entre um extremo e outro, Filme de Aborto é habilidoso. Porque não se trata de um filme sobre alguma coisa. Seria tristemente simplificador dizer que Lincoln Péricles está meramente abordando temas polêmicos. De onde mais se extrai a força do filme é na imprevisibilidade de sua própria construção. Se fosse para taxá-lo de “sobre algo”, certamente ele poderia ser definido como um filme sobre fazer este filme em específico. Lincoln Péricles mistura registros e fontes, documentário e encenação, disjunção e dessincronia, de modo a sempre desconstruir o discurso em Filme de Aborto e fazer, ao seu modo, um filme sem discurso. Do título já irônico por princípio (tanto linguisticamente quanto na referência a toda uma história dos gêneros cinematográficos, com piscada de câmera ao Filme de Amor de Julio Bressane) às falas em off, que não se encaixam às imagens, chega-se à distopia de um mundo que, aparentemente idêntico ao nosso, tem a singela diferença de os homens também engravidarem (e, num espelhamento próximo do brilhante, o

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entendimento de que até nisso eles seriam favorecidos na hora de decidirem por abortar numa sociedade patriarcal e machista). O que se inicia numa intriga possível vai se desfazendo a cada imagem e a cada áudio desconectado. As disjunções não são apenas da ordem imagem-som, mas também som-som ou imagem-imagem. Uma música de Kurt Weill e Bertolt Brecht é cantada em alemão e legendada em português, mas a letra não é original da canção, e sim um hino ao proletariado. Uma cartela de filme mudo ocupa a tela com texto em inglês, mas a “tradução” é outra. Uma mulher volta para casa (num condomínio do Capão Redondo, distrito de São Paulo), abre a porta e o corte de montagem nos leva a uma cena de um curta-metragem de Charlie Chaplin (One A.M, 1916) em que Carlitos tenta entrar em casa bêbado. Quando ele finalmente consegue (depois das gags rotineiras), a montagem retorna à mulher que entra, agora sendo vista do lado de dentro, a fechar a porta da cozinha. O longuíssimo plano que se segue, tal como a Chantal Akerman de Jeanne Dielman, deixa que o corpo da atriz Talita Talissa circule pelo espaço e se relacione consigo mesmo e com os objetos. Um close repentino, depois de vários minutos de plano fixo, oblitera a ilusão de “documentário”. Há uma câmera ali, um olhar, e esse olhar tem propósitos para além de apenas mostrar o que se passa diante da lente. É um olhar de e para o fragmento. A voz de Talita é ouvida em off, num depoimento sobre a frustração com o serviço de atendente de telemarketing. A descrição de seu dia a dia e os constantes obstáculos enfrentados fazem a mente retomar às trapalhadas de Carlitos completamente inábil para conseguir entrar em casa. De uma imagem concreta vinda do imaginário cinematográfico e de viés cômico-satírico do homem dificultoso em ocupar o espaço que lhe pertence à não-imagem do discurso de Talissa como alguém cortando um dobrado para conseguir pagar o aluguel no fim do mês (enquanto, na imagem, vê-se a moça dentro da casa que ela tanto batalha para manter), tem-se a conexão imprevisível, que define o tipo de procedimento de Filme de Aborto no trato com o material que articula. “Por que você lembrou dessa história?”, ouve-se Lincoln, a interpelar Talissa sobre o relato de uma colega de trabalho que, grávida de sete meses, suicidara-se. Na imagem, a mãe lava os cabelos da filha debaixo do chuveiro. Ela responde: “Sei lá, você fica aí fazendo pergunta, eu fico achando que você quer ouvir alguma coisa de impacto”. A intervenção da entrevistada (real ou ficcional, não importa) diretamente na realização do filme não se difere das demais intervenções que Filme de Aborto possui em cada minuto de seus pouco mais de 60. O off de Talissa que se dirige 274

ao interlocutor está no mesmo grau do off que vem do “vídeo fascista do

YouTube” (como está registrado nos créditos finais) de um homem que, tão didática quanto cruelmente, condena o aborto. São ambos destituições do registro original que, rearranjados por Péricles, recebem sentidos maiores de apreensão e percepção, de desilusões e resignações. A essa altura, exigir do filme que ele tenha posições ou pontos de vista (como aconteceu no debate realizado com Lincoln Péricles durante a Mostra de Cinema de Tiradentes em janeiro de 2016) é entrar num buraco negro do qual é impossível sair. É pedir que se tenha outro filme, e não aquilo que efetivamente existe. Filme de Aborto é esse redemoinho de possibilidades, continuamente na potência da explosão, no limite da realização, um filme sempre a ser feito e a se definir, e por isso mesmo enérgico e político naquilo que propõe como exercício de realização. É melhor que seja assim: uma implosão sem definições. A arte que responde a uma “agenda” tende a ser uma arte limitada, porque a resposta absolutiza o saber.

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Câmara de espelhos

sobre filme de Dea Ferraz

Carla Italiano Julia Fagioli

Logo no início do filme de Dea Ferraz, antes mesmo de sabermos o tema que será abordado, somos informados do dispositivo utilizado pela diretora: um anúncio de jornal que convida homens de 18 a 80, moradores da Região Metropolitana de Recife, a participarem de um documentário. Em destaque, a seguinte frase: “Já imaginou suas opiniões e reflexões na tela do cinema?”. Em seguida, vemos parte do processo de construção do cenário do filme – uma câmara de espelhos. Com a tela preta, ouvimos a voz de Dea Ferraz explicando aos participantes (ou personagens) o que devem fazer: eles devem se olhar no espelho e dizer o que veem. Porém, nesse momento ainda não os vemos, os ouvimos apenas, enquanto vemos as imagens do cenário montado. Uma sala, cuidadosamente decorada, em formato próximo a um círculo, rodeado de espelhos nas paredes. Em seguida a diretora explica que, durante as conversas, como forma de guiá-las, aparecerão imagens na televisão que está localizada diante do sofá e os participantes deverão conversar sobre os temas sugeridos nas imagens. As imagens exibidas variam entre trechos de programas de televisão, extratos de filme etc., ora com teor conservador no que diz respeito ao lugar da mulher na sociedade, ora com teor feminista e afirmativo da igualdade entre os gêneros. Se no início há um certo desconforto entre eles, uma vez que algum dos homens se arrisca em uma opinião mais ousada, parece criar-se uma abertura para que os companheiros digam mais livremente o que lhes vem à mente. O resultado, nos dois grupos criados pela diretora, é a

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predominância de um pensamento extremamente conservador, machista e que acaba por se amplificar pela situação de confinamento – tanto dos participantes, quanto do espectador, na sala de cinema. Esse nos parece ser, justamente, o objetivo do filme, o de revelar de forma incômoda o fato de que o pensamento misógino ainda predomina. A força-motriz do filme vem do dispositivo que o organiza, de modo que ele se desdobra em algumas frentes: o confinamento em um espaço único, meticulosamente decorado com ilustrações que mostram mulheres; a escolha por homens de diferentes idades e trajetórias de vida, compondo uma espécie de panorama que ecoa uma intenção mais ampla de generalização; a seleção do material a ser projetado, retirado de fontes de fácil reconhecimento (novelas, postagens na internet etc.). As partes que compõem esta engrenagem nos são expostas de forma objetiva: desde a construção espacial da sala, parede a parede, até o fato de ouvirmos a voz que comanda qual vídeo será exibido em seguida. Ao mesmo tempo, uma parcela do mecanismo é deliberadamente oculta, como no fato dos vídeos não serem mostrados ao espectador. O argumento de Câmara de espelhos parece partir do pressuposto de que nossa sociedade é tão atravessada por ideais de machismo e de desigualdade de gênero que, mesmo em uma pequena amostra de pessoas, tais pensamentos aflorarão facilmente. E é exatamente isso que acontece, o que, de certo modo, esperamos desde os créditos iniciais. Mas o que complexifica a proposta, tornando-a surpreendente, é o testemunho de como isso acontece de modo profundo e absurdamente natural diante das câmeras, em uma cena obviamente organizada para ser tornada pública. Não existe, após um primeiro momento, pudor em explicitar tais posicionamentos; pelo contrário, eles são enaltecidos nos dois grupos que acompanhamos. Faz parte do pacto de espectatorialidade do filme acompanhar, ao longo de 76 minutos, todo tipo de comentário retrógrado a respeito de temas diversos: casamento, feminismo, estupro, aborto. Como num experimento de laboratório, a intenção parece residir menos em atestar que a atual sociedade brasileira é erguida sobre bases patriarcais e machistas, mas na necessidade de se vivenciar, no confinamento de uma sala escura de cinema, o desconforto dessa experiência. Desconforto que também se faz presente na vivência cotidiana da maioria das mulheres, sob diferentes prismas e formas de agressão. Há, porém, um dos participantes que tem opiniões diferentes dos outros. Apenas após a entrada do segundo grupo em cena descobrimos 278

que o participante destoante, que emite opiniões favoráveis à igualdade

de gênero, é um ator e recebe informações da diretora através de um ponto eletrônico. Nos encontros dos dois grupos ele se veste exatamente da mesma maneira e senta na mesma cadeira. Suas intervenções se dão nos momentos em que a diretora as solicita. O método utilizado no filme se assemelha àquele de pesquisas qualitativas baseadas em grupos focais, muito utilizado nas ciências humanas e, atualmente, em pesquisas de mercado. A presença de um ator, que se comporta como um dos participantes, remete à figura do moderador, mas, sem explicitar seu papel aos demais, acaba por colocar em questão os procedimentos éticos da cena. Entretanto, para os efeitos do filme, o personagem disfarçado toca em certos temas que não apareceriam se ele não estivesse ali e, ainda, gera um dissenso, de modo que é o único que não corrobora o conservadorismo dos companheiros. Assim, uma questão de ordem ética se coloca: até que ponto os participantes têm consciência dessa proposta ou do papel que nela desempenham? Por um lado, a reação deles parece sugerir que não lhes foi totalmente explicitada, ao menos em parte, a intenção de se expor um “sintoma” social através de seus comentários. Por outro, aqueles homens optaram por ver suas opiniões projetadas “na tela do cinema”, como bem dizia o chamamento publicado em jornal. A metáfora do espelho, convocada pelo título e utilizada na própria construção física do dispositivo, sublinha aquela experiência como um reflexo que se volta sobretudo para nós, espectadores. Ao final, Câmara de espelhos não proporciona uma experiência agradável, mas uma que é necessária, urgente.

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Quando dois mundos colidem

sobre When Two Worlds Collide, de Heidi Brandenburg, Mathew Orzel

Wellington Cançado

Praticamente tudo que as sociedades modernas, extensivamente urbanas, constroem, produzem e consomem vem do solo. Minerais, petróleo, madeira e água viabilizam a complexa tectônica do mundo ocidental – ferramentas, objetos, máquinas, veículos, edifícios e cidades são feitos de metais, plásticos, betume, compensados e outros sintéticos. Para que esta simples página exista muitas árvores foram necessárias e um volume brutal de solventes, resinas, óleos e pigmentos orgânicos e inorgânicos foram mobilizados para fixar as palavras no papel. Propulsionados por combustíveis fósseis e baterias alcalinas, com nossos corpos invadidos por titânio, silicone, microchips e nanorobôs, continuamos, à revelia dos delírios tecnocientíficos e aceleracionistas, dependentes de outros seres que nascem do chão, crescem nos campos, vivem nos rios e oceanos para sobreviver enquanto espécie. Se convencionamos em algum momento chamar tudo isso de Natureza, foi em grande medida para que pudéssemos manter a “distância crítica” necessária para subjugá-la aos desígnios humanos, e uma vez desanimado o mundo, redesenhá-lo como um grande repositório de recursos naturais e provedor inesgotável e benevolente de matérias-primas. A voracidade capital dessa economia extrativista que não cessa de comoditizar, foi capaz de fazer da urbanização – matriz espacial constitutiva da modernidade – um artefato planetário sem precedentes, um “bioma antropogênico”1 que reconfigura material e extensivamente ¾ 1 ELLIS, Erle C.; RAMANKUTTY, N. Putting people in the map: anthropogenic biomes of the World. Frontiers in ecology and the Environment. 2008. 6(8):439–447. Disponível em:

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da biosfera, com impactos profundos no regime climático e nos sistemas ecológicos. “Em breve, somente ilhas de produção agrícola e desertos de concreto vão restar na superfície da Terra” especulava Henri Lefebvre, em um texto de 1989 sobre a dissolução das cidades e a metamorfose planetária2. Talvez pelo seu interesse na modelagem industrial da vida cotidiana, o xamã do “direito à cidade” e da “revolução urbana”, não tenha sido capaz de enxergar a importância global e a persistência da extração, in natura, em pleno século XXI. E enquanto o cimento arde nas cidades e o veneno queima no campo, nas florestas (restritas a 20% da superfície terrestre livre de gelo), espaços paradoxalmente fora de uma condição sem exterior – o urbano – , é que estão sendo redefinidas as bases intestinas da urbanização planetária em termos cosmopolíticos. É lá onde os “direitos da natureza”3 emergem como pontes diplomáticas entre as visões aparentemente inconciliáveis dos inquilinos da floresta e os seus eternos incorporadores. Mas é lá também onde repousam as ameaças dos mercados futuros e das reservas inestimáveis de bens primários, prontas para serem esquadrinhadas, mineradas, refinadas, processadas, expropriadas. Para as poderosas alianças neoextrativistas entre os Estados e as corporações, a floresta sempre oscilou entre um imenso “vazio ocioso”, como certa vez disse o presidente peruano Alan García e um empecilho indesejado aos projetos de “desenvolvimento selvagem” denunciados pelo líder indígena Alberto Pizango, para quem estes colocam em risco a “nossa casa, território e embrião da nossa existência”. Contudo, a invisibilidade ociosa da natureza e de certos humanos não passa de uma das falácias do “euroexclusivismo” – termo preciso de José Jorge de Carvalho – atuante no cerne da modernidade etnocêntrica vigente. E hoje bem sabemos, a floresta é o resultado de milênios de intervenção humana e cooperação com não-humanos. Mas o embrião existencial dos shawi, a “grande terra-floresta” urihi yanomami e tantos outros ambientes viventes entretanto, diferem radicalmente da “produção do espaço” antropocêntrica como concebemos. Assim, como na “natureza doméstica” e na “selva culta” etnografadas por

2 LEFEBFRE, Henri. Dissolving City, Planetary Metamorphosis. In: BRENNER, Neil. Implosions/Explosions. Towards a Study of Planetary Urbanization. Berlin: Jovis, 2015, p.566

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3 TAVARES, Paulo. Nonhuman Rights. Los Angeles: Creative Ecologies, 2015, p.553 disponível em:

Philippe Descola na Amazônia equatoriana, nada pode ser mais alheio à maneira pela qual os povos da floresta concebem as relações com as entidades e seres que os cercam do que a ideia de “produção”, como se as atividades tivessem o objetivo de criar um produto consumível ontologicamente dissociado dos materiais que lhes deram origem. E é por isso que não somente a noção de recursos não faz sentido algum, como o que poderíamos entender como produção são, de fato, relações entre pessoas, sejam estas pessoas uma árvore, um peixe, o rio ou a montanha. “Em outros termos, são essas relações entre sujeitos (humanos e não-humanos) que condicionam a “produção” dos meios de existência e não a produção de coisas que condiciona as relações entre sujeitos (humanos)”.4 Se para os indígenas, os “outros-que-não-humanos” não deixam de ser seres com capacidade de agência e não deixam de ser gente, para a sanha dos brancos qualquer entidade não-humana, e mesmo humanos, podem ser recursos valiosos. Entre o multinaturalismo ameríndio e as formas essencialmente desanimadoras pelas quais os não-indígenas estabelecem as relações sociais e a interação com a natureza há, pois, um abismo ontológico colossal à espera de novas pontes interculturais, ou da colisão violenta, e cada vez mais inevitável, entre os seus mundos. When Two Worlds Collide é um filme sobre o choque desses mundos discrepantes, quando as forças coercitivas do Estado e a violência predatória das empresas extrativistas avançam sobre a floresta e seus habitantes e se deparam, em uma curva diabólica na Amazônia peruana, com a lendária insubordinação indígena de determinação guerreira. Um choque que da nossa perspectiva dualista e instrumental só poderia se dar pelo controle do território e suas riquezas. Mas que, do ponto de vista dos povos selváticos e no caso específico dos Awajúns e Wampis, se dá pela inevitabilidade da defesa de seu território comunal e de seus modos de existência, intimamente conectados com a vivência da floresta. Porém, When Two Worlds Collide é também um filme sobre os desafios da indigeneidade contemporânea, sobre as possibilidades prementes de invenção de outra “economia política da vida”5, sobre a viabilidade prática de transformação dos Estados-nação coloniais por uma (filosofia) política indígena, e principalmente sobre a história inaugural e incrivelmente inspiradora, mas não contada no documentário, do poder de

4 DESCOLA, Philippe. Más allá de naturaleza y cultura. Madrid: Amorrortu, 2012, p.466 5 SANTOS-GRANERO, Fernando. Vital Enemies: Slavery, Predation, and the Amerindian Political Economy of Life. Austin: University of Texas Press, 2009.

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insurgências pontuais (r)evoluirem para formas de vida autogovernadas em territórios autônomos. O projeto dos territórios e governos autônomos indígenas nos Andes vem de séculos de violência estatal e diversos pactos e acordos recentes não cumpridos pelos Estados na demarcação de territórios, mas também a indisposição crescente das comunidades com as concessões arbitrárias de estradas, minas e outras atividades extrativistas na floresta. E como contraofensiva, o ativismo conscientemente propositivo dos movimentos indígenas, vai se empenhar em inventar, especialmente no Equador e na Bolívia, uma outra forma estatal incorporando finalmente suas cosmologias e modos de vida. Esse processo que vai desencadear as constituições plurinacionais e interculturais aprovadas em 2008 e 2009 nos respectivos países, abre frestas importantes para o início do fim do Estado-nação moderno com toda sua intransigência singular. No caso peruano – um Estado colonial clássico, apesar do pluriverso de nações indígenas – os confrontos entre os Awajún e os Wampis com o governo do presidente Alan García, no mesmo período das constituintes vizinhas, vieram a desencadear um processo com implicações e desdobramentos distintos. Tanto a “insurgência amazônica” e, posteriormente, o episódio que ficaria conhecido como “o massacre de Bagua”, emergem como reações aos Decretos Legislativos propostos pelo governo para efetivação do Tratado de Livre Comércio (TLC) entre o Peru e os Estados Unidos, que criava condições para espoliação dos territórios indígenas e expropriação dos recursos naturais da selva por petroleiras e mineradoras. Mas o “Baguazo”, como os habitantes locais vieram a se referir ao massacre, foi um ponto de inflexão para os movimentos indígenas no Peru e demais povos andinos, pela constatação generalizada de que a aliança mortífera entre a violência estatal e o poder das corporações acabaria por exterminá-los muito brevemente. When Two Worlds Collide é um documento crucial desse momento singular de resistência e mobilização dos povos amazônicos. Mas os desdobramentos desse embate que produziu muitos traumas e engendrou outras possibilidades, a história que está ainda sendo escrita nas selvas ao norte, começa em 29 de novembro de 2015, quando 300 representantes de 85 comunidades Wampis reunidos em Soledad, decretam o autogoverno de seu território integral, Iña Wampisti Nunke, de 1,3 milhões de hectares de floresta e 10.613 indivíduos. Ideia rascunhada nos idos de 1995 na Comunidade Nativa de Bagazan del Morona, a declaração do governo autônomo, tem como o antecedente 284

mais imediato a Cúpula Wampis para o Território Integral e Governança

Autônoma, celebrada em meados do ano passado. Ocasião em que foi aprovado, por 120 representantes de comunidades Wampis, o Estatuto Autonômico do Governo Territorial da Nação Wampis, e que assim define o território autodeclarado: “integra diversos espaços onde todos os seres se relacionam entre si. Entsa, o espaço aquático, onde vivem os tsunki shuar. Nunka, o espaço da terra, onde estão os seres vivos com os quais nos relacionamos permanentemente, as pessoas humanas, os animais e seus donos, iwanch y tijae, as plantas da natureza e suas mães, especialmente Nunkui, que vive no interior da terra, os rios e as montanhas sagradas. Nayaim, o ar, o espaço do céu que não está separado da terra, onde vivem Etsa (sol), o guia, Yaa (estrelas) e Nantu (lua) assim como Ujumak e muitos outros seres e pelos quais chegam os mortos e ancestrais da nação. Todos estes espaços estão vivos e dependem uns dos outros.”6 A concretude prática do autogoverno Wampis que floresce exuberante dos estilhaços cosmológicos de junho de 2009, viabiliza uma espécie visionária de política perspectivista há muito gestada na floresta e faz as palavras inabaláveis de Alberto Pizango, ditas logo após o o choque fatídico na curva do Diabo, ecoarem com a força profética das imagens xamânicas: “a grande lição de Bagua para os indígenas foi a necessidade de passar do grande protesto para a grande proposta, e da grande proposta para a grande ação, que consiste no exercício pleno da livre determinação dos povos”.

6 WAMPIS. Estatuto del gobierno territorial autónomo de la nación Wampis. 2015 Disponível em:

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Ava Yvy Vera – A terra do povo do raio

sobre filme de Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites

Ana Carvalho

Venta. Em um campo devastado pela monocultura da soja uma única árvore resiste. Tajy. A câmera se move lentamente pelo descampado e uma voz em off descreve a paisagem ao mesmo tempo em que revela a memória de um tempo em que ali abundavam a guavira, o cupinzeiro, os remédios, e o vento forte não varria a mataria. À descrição do espaço se sobrepõe a narrativa da violência: o ataque de pistoleiros, a expropriação e a espoliação da terra, o exílio de um povo em seu próprio território. Estamos no Guaiviry, acampamento de retomada Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, onde os barões do agronegócio, apoiados pelo Estado brasileiro e a bancada ruralista, perpetuam um genocídio que remonta ao período colonial, numa guerra de forças desiguais que segue invisível para a grande maioria da população. A imagem do pé de Tajy em meio à soja torna-se, assim, a um só tempo, a imagem da resistência e do abandono dos indígenas que habitam a região. Em Ava Yvy Vera, a memória se faz presente na paisagem, nos corpos e na palavra. A dramaturgia de um movimento de retomada é a própria retomada, a narrativa de um assassinato (a morte do cacique Nísio Gomes, fuzilado a queima-roupa por capangas da fazenda Nova Aurora), a compreensão do que foi e a vida que segue. A encenação do kotyhu, a experiência mesma da dança e do canto coletivo, catalisados pela câmera. Uma dramaturgia contra o esquecimento e pela sobrevivência. Um cinema que dá a ver os corpos e o invisível, a resistência e a morte, uma paisagem devastada e a luta secular de um povo

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pelo direito de pertencer a um território e ocupá-lo segundo seu modo de vida e seus preceitos religiosos. A partir das vozes e imagens construídas pelos Kaiowá ao longo da oficina de vídeo que deu origem ao filme, dois mundos distintos aos poucos se revelam e se contrapõem. De um lado, a lei dos brancos, sua milícia armada, seu projeto desenvolvimentista, a exploração predatória da terra e o extermínio dos povos indígenas. De outro, a palavra Guarani, a fala dos trovões que é a fala dos deuses, um pertencimento que se funda na partilha do território onde se enterram seus mortos (por isso sagrado) e no cuidado com a terra, entendida como bem comum. O embate entre as noções de propriedade privada e de território, - o coração da terra, o tekoha Guarani. Entre todos os deslocamentos que propõe, o filme nos confronta com nossas próprias formas de pensar e viver o mundo, nossas frágeis certezas (tão ferozes quanto aniquiladoras) e nos convida, afinal, para um tempo de partilha, de um território comum, de retomada. Um convite à escuta das belas palavras dos velhos guaranis em noite de tempestade, à escuta dos trovões e de ñhanderú. A resistência que nasce ao redor da fogueira depois de um dia de brincadeira, onde a vida pode ser mais uma vez reinventada.

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PROGRAMAÇÃO

ENDEREÇOS CINE HUMBERTO MAURO | Avenida Afonso Pena | 1.537 | Centro Cine104 | Praça Ruy Barbosa | 104 | Centro

CINE HUMBERTO MAURO > 17 NOV | QUINTA-FEIRA

19h SESSÃO ABERTURA Martírio, direção: Vincent Carelli, co-direção: Ernesto de Carvalho e Tita, 162’ sessão comentada por Vincent Carelli com a presença de lideranças Guarani e Kaiowa

> 18 NOV | SEXTA-FEIRA

15h MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL I Dance with God (Eu Danço com Deus), Hooshang Mirzaee, Irã, 39’ Exótica, Erótica, etc., Evangelia Kranioti, França, 63’ 17h SESSÃO ESPECIAL Conferência/sessão comentada > Imagem e hospitalidade: em torno de L’ordre (1973), de Jean Daniel Pollet, com Marie-José Mondzain Lançamento publicação Devires – Cinema e Humanidades 19h SESSÃO ESPECIAL A Destruição de Bernardet, Claudia Priscilla e Pedro Marques, 72’ sessão comentada pelxs diretorxs e por Jean-Claude Bernardet 21h MOSTRA QUEER E A CÂMERA Paris is Burning (Paris em Chamas), Jennie Livingston, EUA, 71’

> 19 NOV | SÁBADO 15h MOSTRA QUEER E A CÂMERA Deseos, Carlos Motta, Bolívia, 33’ Naomi Campbel, Nicolás Videla e Camila José Donoso, Chile, 85’ 17h MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL When Two Worlds Collide (Quando dois mundos colidem), Heidi Brandenburg Sierralta e Mathew Orzel, Peru/EUA/Reino Unido, 103’ 19h MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Abigail, Isabel Penoni e Valentina Homem, 17’ > sessão comentada pelxs diretorxs Taego Ãwa, Marcela Borela e Henrique Borela, 75’ 21h MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA A Cidade Onde Envelheço, Marília Rocha, 99’ sessão comentada pela diretora

> 20 NOV | DOMINGO 14h SESSÃO ESPECIAL Uî Kãnã Pataxí - Na Minha Aldeia, Edgar Correa Kanaykõ e Guilherme Cury, 68’ 15h30 SESSÃO ESPECIAL Ava Yvy Vera - A Terra do Povo do Raio, direção coletiva Guarani Kaiowá, 54’ sessão comentada por Daniel Lemes Vasques, Luísa Lanna, Alessandra Giovanna 17h MOSTRA QUEER E A CÂMERA Jollies, Sadie Benning, EUA, 11’ Portrait of Jason, Shirley Clarke, EUA, 105’ 19h SESSÃO ESPECIAL Cantos em um encontro de pajés Tikmũ’ũn-Maxakali, Josemar Maxakali, Marilton Maxakali, Bruno Vasconcelos, 34’ MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Konãgxeka: O Dilúvio Maxakali, Isael Maxakali e Charles Bicalho, 13’ Grin, Roney Freitas, co-direção: Isael Maxakali, 41’ sessão comentada pelxs realizadorxs

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21h MOSTRA QUEER E A CÂMERA She has a beard, Norma Bahia e Rita Moreira, EUA, 26’ No Skin Off My Ass, Bruce La Bruce, Canadá, 73’

> 21 NOV | SEGUNDA-FEIRA 14h SEMINÁRIO QUEER E A CÂMERA Queering Beagá I com David Maurity, Idylla Silmarovi, Igor Leal, mediação: Vinícius Abdala 17h MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL The cow farm (A fazenda de vacas), Ali Sheikh Khudr, Síria, 60’ Kiedy ten wiatr ustanie (Quando esse Vento Vai Parar), Aniela Astrid Gabryel, Polônia, 66’ 19h15 MOSTRA QUEER E A CÂMERA Los Leones (Os Leões), André Lage, 79’ sessão comentada pelo diretor 21h MOSTRA QUEER E A CÂMERA Ingrid, Maick Hannder, 6’ Virgindade, Chico Lacerda, 16’ Modern, Luiz Roque, 4’ O Novo Monumento, Luiz Roque, 5’ Ano Branco, Luiz Roque, 7’ Heaven, Luiz Roque, 10’ sessão comentada pelxs diretorxs

> 22 NOV | TERÇA-FEIRA 14h SEMINÁRIO QUEER E A CÂMERA Cinema e cultura queer com Vitor Grunvald, Karla Bessa, Luiz Roque, Chico Lacerda, mediação: Eduardo Jesus 17h MOSTRA QUEER E A CÂMERA Prelúdio a uma morte anunciada, Rafael França, EUA/Brasil 5’ DHPG Mon Amour, Carl Michael George, EUA, 12’ Blue, Derek Jarman, Reino Unido, 80’ 19h MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Filme de aborto, Lincoln Péricles, 60’ Na missão, com Kadu, Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito, 28’ sessão comentada pelxs diretorxs 21h DEBATE QUEER E A CÂMERA Práticas e ativismos queer com Jota Mombaça, Pri Bertucci, Ingrid Leão, mediação: Paulo Maia

> 23 NOV | QUARTA-FEIRA 14h SEMINÁRIO QUEER E A CÂMERA Queering Beagá II com Sofi - Azi Deia, Danielle Pinto, Júlia Diniz e Carvalho, mediação: Ana Luiza Santos 17h MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Cinema Novo, Eryk Rocha, 90’ 18h30 MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL Wake - Subic, John Gianvito, EUA/Filipinas, 277’

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> 24 NOV | QUINTA-FEIRA 15h MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA As Mina na Batalha, Grazie Pacheco, 22’ Câmara de Espelhos, Dea Ferraz, 76’ (comentada pela diretora) 17h SESSÃO ESPECIAL Imagens do Estado Novo 1937 – 45, Eduardo Escorel, 227’ sessão comentada pelo diretor 21h30 MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL Curupira, Pedro F. Neto, Brasil/Portugal/Peru, 12’ Kombit, Anibal Garisto, Argentina, 63’

> 25 NOV | SEXTA-FEIRA 15h MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL Then, then, then (Naquela época), Daniel Schioler, Canadá, 29’ Brothers of the Night (Irmãos da noite), Patric Chiha, Áustria, 88’ 17h SESSÃO ESPECIAL Ujirei - Re-ramagem, Mateo Sobode Chiqueno, Ayoreo/Paraguai, 55’ sessão comentada pelo diretor 18h30 LANÇAMENTO Coleção Aloysio Raulino 19h30 MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Avá Marangatu, direção coletiva Guarani Kaiowá, 14’ Para Onde Foram as Andorinhas?, Mari Corrêa, 22’ Eu volto ao lado deles, Leandro Cordeiro, 23’ 21h MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL Another Year (Um outro ano), Shengze Zhu, China, 181’

> 26 NOV | SÁBADO 15h MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Vozerio, Vladimir Seixas, 98’ sessão comentada pelo diretor 17h MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL Tukuyninchiq Tutanchiq - Todos nos encontraremos, Cefrec, Bolívia, 33’ La Balada del Oppenheimer Park, Juan Manuel Sepúlveda, México, 70’ 19h MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA KBELA, Yasmin Thayná, 23’ Deixa na Régua, Emílio Domingos, 72’ sessão comentada pelxs diretorxs 21h MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL Ama-San, Cláudia Varejão, Portugal/Suíça, 133’ 23h Festa forumdoc.bh.2016

> 27 NOV | DOMINGO 15h MOSTRA QUEER E A CÂMERA Sérgio e Simone, Virgínia de Medeiros, 20’ Trans*lucidx, Miro Spinelli, 10’ Queer Nation, Gabriel Gomez e Elspeth Kydd, EUA, 22’ Tongues Untied (Línguas desatadas), Marlon Riggs, EUA, 55’

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17h LANÇAMENTO | MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Lançamento publicação A mise-en-film da fotografia no documentário brasileiro (Glaura Cardoso Vale) Nunca é noite no mapa, Ernesto de Carvalho, 6’ Obra Autorizada, Iago Cordeiro Ribeiro, 16’ Sem Título # 3: E para que Poetas em Tempo de Pobreza?, Carlos Adriano, 14’ 19h MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Ruína, Gabraz, 14’ Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos, Sergio Oliveira, 77’ sessão comentada pelo diretor 21h MOSTRA QUEER E A CÂMERA La visión de los vencidos, Carlos Motta, Bolívia, 7’ Nefandus, Carlos Motta, Bolívia, 13’ Naufragios, Carlos Motta, Bolívia, 13’ Castanha, Davi Preto, 95’

CINE 104 (CENTOEQUATRO) > 18 NOV | SEXTA-FEIRA 19h Martírio, direção: Vincent Carelli, co-direção: Ernesto de Carvalho e Tita, 162’ sessão comentada por Vincent Carelli

> 24 NOV | QUINTA-FEIRA 20h40 Ava Yvy Vera - A Terra do Povo do Raio, direção coletiva Guarani Kaiowá, 54’ sessão comentada

> 25 NOV | SEXTA-FEIRA 19h SESSÃO ESPECIAL "Eu vim de muito longe", Programa transversal em saberes tradicionais UFMG, 60’ sessão comentada 20h40 MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL Then, then, then (Naquela época), Daniel Schioler, Canadá, 29’ Brothers of the Night (Irmãos da noite), Patric Chiha, Áustria, 88’

> 26 NOV | SÁBADO 20h40 MOSTRA QUEER E CÂMERA Portrait of Jason, Shirley Clarke, EUA, 105’

> 27 NOV | DOMINGO 20h40 MOSTRA CONTEMPORÂNEA INTERNACIONAL I Dance with God (Eu Danço com Deus), Hooshang Mirzaee, Irã, 39’ Exótica, Erótica, etc, Evangelia Kranioti, França, 63’

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índice de filmes

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Abigail, 69 A Cidade Onde Envelheço, 69 A Destruição de Bernardet, 101 Ama-San, 91 Ano Branco, 52 As Mina na Batalha, 70 Avá Marangatu, 70 Avá Yvy Vera | A Terra do Povo do Raio, 102 Blue, 51 Brothers of the Night, 91 Câmara de Espelhos, 71 Cantos em um encontro de pajés Tikmũ’ũn-Maxakali, 102 Castanha, 55 Cinema Novo, 71 Curupira, 92 Deixa na Régua, 72 Deseos, 56 DHPG Mon Amour, 48 "Eu vim de muito longe", 104 Eu volto ao Lado deles, 72 Filme de Aborto, 73 Grin, 73 Heaven, 58 I Dance with God, 93 Imagens do Estado Novo 1937–45, 103 Ingrid, 57 Jardim Nova Bahia, 107 Jollies, 48 Kbela, 74 Kiedy ten wiatr ustanie | When Will this Wind Stop, 97 Kombit, 93 Konãgxeka: O Dilúvio Maxakali, 74 La Balada del Oppenheimer Park, 94 La Visión de los Vencidos, 53 Los Leones, 58 Martírio, 23 Mazraet Al Abkaar | The Cow Farm, 94 Modern, 55 Na Missão, com Kadu, 75 Naomi Campbel, 52 Naufragios, 54 Nefandus, 54 No Skin Off My Ass, 49 Nunca é Noite no Mapa, 76 Obra Autorizada, 75 O Novo Monumento, 53 Para Onde Foram as Andorinhas?, 76

Paris is Burning, 49 Portrait of Jason, 47 Prelúdio de Uma Morte Anunciada, 50 Ruína, 77 Sem Título # 3 : E para que Poetas em Tempo de Pobreza?, 77 Sérgio e Simone, 51 She has a Beard, 47 Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos, 78 Taego Ãwa, 78 Tarumã, 107 Then, then, then, 95 Tongues Untied, 50 Trans*lucidx, 56 Tukuyninchiq Tutanchiq, 95 Uî Kãnã Pataxí | Na Minha Aldeia, 101 Ujirei | Re-ramagem, 103 Virgindade, 57 Vozerio, 79 Wake (Subic), 96 When Two Worlds Collide, 96 You yi nian | Another Year, 97

índice de diretores Aiano Bemfica, 75 Alipio Cuila, 95 Aloysio Raulino, 107 André Lage, 58 Anibal Garisto, 93 Aniela Astrid Gabryel, 97 Ali Sheikh Khudr, 94 Bruce La Bruce, 49 Bruno Vasconcelos, 102 Camila José Donoso, 52 Carl Michael George, 48 Carlos Adriano, 77 Carlos Motta, 53, 54, 56 Charles Bicalho, 74 Chico Lacerda, 57 Claudia Priscilla, 101 Cláudia Varejão, 91 Daniel Schioler, 95 Davi Pretto, 55 Dea Ferraz, 71 Derek Jarman, 51 Desiderio Ochoa, 95 Deysi Teresa Llusco, 15 Dulcídio Gomes | Kaiowa, 70, 102 Edgar Correa Kanaykõ, 101 Edina Ximenez | Kaiowa, 70, 102 Eduardo Escorel, 103 Efigenia Encinas, 95 Eusebio Caba, 95 Emílio Domingos, 72 Eryk Rocha, 71 Ernesto de Carvalho, 23, 76 Gabraz, 77 Genito Gomes | Kaiowa, 70, 101 Guilherme Cury, 101 Grazie Pacheco, 70 Heidi Brandenburg Sierralta, 96 Henrique Borela, 78 Hooshang Mirzaee, 93 Iago Cordeiro Ribeiro, 75 Isael Maxakali, 73, 74 Isabel Penoni, 69 Jennie Livingston, 49 Jhonatan Gomes | Kaiowa, 70, 102 Jhonn Nara Gomes | Kaiowa, 70, 102 John Gianvito, 96 Joilson Brites | Kaiowa, 70, 102 Josemar Maxakali, 102 Juan Manuel Sepúlveda, 94

Kadu Freitas, 75 Leandro Cordeiro, 72 Lincoln Péricles, 73 Luiz Roque, 51, 53, 55, 58 Maick Hannder, 57 Marcela Borela, 78 Mari Corrêa, 76 Marlon Riggs, 50 Marília Rocha, 69 Marilton Maxakali, 102 Mateo Sobode Chiqueno, 103 Mathew Orzel, 96 Miro Spinelli, 56 Norma Bahia Pontes, 47 Nicolás Videla, 52 Patric Chiha, 91 Pedro F. Neto, 92 Pedro Maia de Brito, 75 Pedro Marques, 101 Rafael França, 50 Rita Moreira, 47 Sadie Benning, 48 Sarah Brites | Kaiowa, 70, 102 Sergio Oliveira, 78 Shengze Zhu, 97 Shirley Clarke, 47 Tita, 23 Valentina Homem, 69 Valmir Gonçalves Cabreira | Kaiowa, 70, 102 Vincent Carelli, 23 Virginia de Medeiros, 51 Vladimir Seixas, 79 Yasmin Thayná, 74

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catálogo (organização) Glaura Cardoso Vale Júnia Torres Carla Italiano

projeto gráfico | diagramação Ana C. Bahia

arte Paulo Maia Ana C. Bahia

organização | produção associação filmes de quintal Júnia Torres Carla Italiano Pedro Leal Layla Braz Luisa Lanna Ewerton Belico Frederico Sabino

Raíssa Leão

gestão e assessoria jurídica Diversidade Consultoria Piancó & Gebrim Assessoria Jurídica Diana Gebrim Costa

mostra contemporânea brasileira seleção

site

Carla Italiano Julia Fagioli Roberto Cotta

Gustavo Teodoro (webdesign e programação) Mariana Nunes

mostra contemporânea internacional seleção

Raquel Junqueira Naty Tremblay (colaboração)

Carolina Canguçu Pedro Veras Renata Otto Frederico Sabino

mostra/seminário queer e a câmera programa de extensão forumdoc.ufmg Paulo Maia (Coordenação) Cláudia Mesquita Ruben Caixeta

bolsistas André Victor Cristiano Araújo Eduarda Bona Júlia Imbroisi Marcos Martins

produção Pedro Leal

colaboração 298

corte e montagem das bandeirinhas/cartazes

Roberto Romero

vinheta

tradução Álvaro Andrade Ana Carolina Antunes Carolina Canguçu Daniel Ferreira Douglas Resende Fábio Menezes Flávia Camisasca Frederico Sabino Gabriela Figueiredo Guilherme Marinho Henrique Cosenza Laura Torres Laís Ferreira Luís Felipe Flores Luis Valente Luisa Lanna Roberto Romero Tanita Zeien

forumdoc.bh.2106

legendagem eletrônica

agradecimentos

Frames

Divisão de Audiovisual do Ministério de Relações Exteriores, Daniel Castanheira Pitta Costa, Daniela Maria Medioli, Marina Medioli, Claudiney Ferreira e Ana Paula Fiorotto, Ana Lúcia Mercês, Marcos Mardem Júnior (Fundep), Raíssa Leão, Giselle Ferreira, Milene MIgliano, Rafa Barros, Ana Carvalho, Daniel Ribão, Pedro Marra, Pedro Aspahan, Luís Felipe Flores, Tita, Aninha Mercês, Dennis Doros, Kitty Cleary, Emily Eddy, Alexis Whitham, Marcelo Hoehne, Jürgen Brüning, Bruce LaBruce, Oswaldo Teixeira, Julia Bernstein, Kiko Goifman, Paula Berbert, Luciana de Oliveira, Paulo Nazareth, Luana Gonçalves, Victor Guimarães, Daniel Queiroz, Adirley Queirós, Priscila Musa, Tande Campos, Fernanda Torres, Isabel Cassimiro, Guarda de Moçambique Treze de Maio, Emmerson de Oliveira, Alice Lamounier, Juliane Corrêa, João Valdir, Ilda de Oliveira, Anna Paula Vencatto, Érica Renata de Souza, Paulo Henrique, Ana Gomes, Pedro Rocha, Edgard Barbosa, Ruby Rich, Jota Mombaça, Vitor Grunvald, Kiki Mazzuccheli, Oliver Basciano (ArtReview), Eduardo Jesus, Camila José Donoso, Carlos Motta, Vinícius Abdala, David Maurity, Idylla Silmarovi, Igor Leal, Karla Bessa, Chico Lacerda, Pri Bertucci, SsexBbox, Ingrid Leão, Ana Luiza Santos, Sofi - Azi Deia, Danielle Pinto, Bh is voguing!, Júlia Diniz e Carvalho, Solange de Medeiros, Rita Moreira, Davi Preto, André Lage, Miro Spinelli, Ana Martins Marques, Tatiana Carvalho Costa, Olívia Sabino, César Guimarães, Vinicius Andrade, Carl Michael George, Renato Bissa,Queer Nation NY, Duncan Osborne, James Mckay, Sofia Mota, Leonor Araújo, Frederico Moreira, Carolina Vergolino, Analu Bambirra, a todxs que escreveram textos para o catálogo e xs realizadorxs que enviaram seus filmes para as Mostras Contemporâneas.

cabine de projeção Bernard Machado Julio Cruz

festa de encerramento Pedro Leal 101Ø

assessoria de imprensa sinal de fumaça

equipe cine 104 Daniel Queiroz - Programador do Cine 104 Gustavo Ruas - Produtor do Cine 104 Jaque Del Debbio - Coordenadora Técnica Leonardo Luchino Fortinho - projecionista Yuri Borges - projecionista

gerência de cinema cine humberto mauro gerente Philipe Ratton coordenador Bruno Hilário

produção Dayanne Naêssa Matheus Pereira Mariah Soares Vitor Miranda

estagiária Gabriela Barbosa

equipe técnica Mercídio Alvinho Scarpelli Milton Célio Rodrigues Rufino Gomes Araújo

suporte administrativo Roseli Pessoa Miranda

associação filmes de quintal

ISBN 978-85-63837-11-0

Avenida Brasil | 75/sala 06 | Santa Efigênia CEP 30140-000 | Belo Horizonte-MG | Brasil Telefone: +55 31 3889-1997 [email protected] www.forumdoc.org.br

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FMC 033 /2015

patrocínio

apoio cultural

apoio departamento de ciências aplicadas à educação fae/ufmg ppgcom ppggan

- programa de pós-graduação em comunicação social/ufmg - programa de pós-graduação em antropologia social e arqueologia/ufmg

sexua

ox t he b t of l i t y ou

apoio LOGÎstico

co-realização

realização

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