Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

September 17, 2017 | Author: Ana Domingues Branco | Category: N/A
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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

ARMINDO BIÃO

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

P&A Gráfica e Editora Salvador - Bahia 2009

Copyright 2009, Armindo Jorge de Carvalho Bião Projeto gráfico Editoração eletrônica Antonio Raimundo Martins Cardoso Capas e foto João Paulo Perez Cappello Revisão Heloisa Prata e Prazeres Normalização bibliográfica Flávia Catarino Conceição Ferreira

FICHA CATALOGRÁFICA

B473t

Bião, Armindo Jorge de Carvalho Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos / Armindo Jorge de Carvalho Bião, PrefácioMichel Maffesoli. – Salvador: P&A Gráfica e Editora, 2009. 389 p. ISBN: 978-85-86268-71-7 1. Teatro popular - Bahia. 2. Etnocenologia. I. Maffesoli, Michel. II. Título. CDD 792.0222

P & A Gráfica e Editora Endereço: Av. Iemanjá, 365 – Jardim Armação CEP 41710-755 – Salvador – Bahia Tel.: (71) 3371-1665 [email protected]

Para meus alunos, que colaboraram com a maior parte dos textos aqui reunidos, sempre me motivaram a escrever e, mais recentemente, me sugeriram publicá-los. Para meus professores, Maritinha, que me preparou e me fez entrar num bom ginásio aos 10 anos, Alvarez, que me ensinou geometria no espaço e xadrez, Orlando, que me fez optar pela manuscrita em letras de imprensa, Rui Simões (in memoriam), que praticamente salvou minha vida universitária, Carlos Costa e Francisco Pereira, que me deram gosto pela Sociologia do Conhecimento e pela Lógica, Jean Duvignaud (in memoriam), que me tem tanto inspirado, e Michel Maffesoli, que se transformou em amigo. E para meus amigos, Álvaro César Barbosa Guimarães, Alvinho (in memoriam), que me fez escrever de e sobre um tudo, Vivaldo da Costa Lima, que me tem ensinado tanta coisa e me levou até Michel Maffesoli, Jean-Marie Pradier, que me deu tantas oportunidades e Edivaldo Boaventura, por seu estímulo entusiasmado e cativante na ponta mais fina do cordel de minha vida.

Agradeço a minha mãe Dulce Aleluia de Carvalho Bião, pelo apoio incondicional, a João Paulo Perez Cappello, pelas capas, fotos e ajuda com os originais e a Marcos Lopes, pelo apoio.

SUMÁRIO

Nota do autor sobre a presente edição ........................................................ Prefácio: A Profundeza das Aparências ...................................................... Préface: La profondeur des apparences ....................................................... Da Etnocenologia Um léxico para a etnocenologia: proposta preliminar (2007) ........................ Um trajeto: muitos projetos (2007) .................................................................. Ah que culpa enorme, imensa, grande (2005) ................................................. As Fronteiras e os Territórios das Linguagens Artísticas (2004) ................... Aspectos epistemológicos e metodológicos da etnocenologia: por uma cenologia geral (2000) ........................................................................................... Etnocenologia: uma introdução (1998) ............................................................ Um mesmo estado de graça: o teatro e o Candomblé da Bahia (1998) ....... Questions posées à la théorie: une approche bahianaise de (1996) .............. Estética Performática e Cotidiano (1995) .......................................................... Etnocenologia e as artes contemporâneas do corpo (1995) .......................... Da teatralidade A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade (1991) ................................ Teatralidade e espetacularidade (1990) ............................................................... Le jouir du jouer (1990) ....................................................................................... L’interface théâtrale (1990) ................................................................................... Théâtralité et spectacularité: les pratiques homosexuelles masculines dans le Candomblé (1988) .................................................................................. Da cena baiana Uma Encruzilhada Chamada Bahia: o que está em jogo, qual é o problema e algumas práticas relativas ao patrimônio cultural imaterial na Bahia, Brasil (2004) .......................................................................................... Xisto Bahia (2003) ................................................................................................ O papel do teatro baiano contemporâneo no drama e na comédia da contínua reconstrução da baianidade (2001) .................................................... Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade (2000) .....................................

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O Teatro na Universidade (1999) ....................................................................... Uma vida sombria ao sol de Salvador (1998) .................................................. O obsceno em cena, ou o tchan na boquinha da garrafa (1998) ................... Teatro e negritude na Bahia (1995) .................................................................... Euforia e Ufanismo: Quantidade e Qualidade num mercado em crescimento (1993) ................................................................................................ Aspectos do comportamento corporal em performances de poesia oral (1989) ...................................................................................................................... Variantes do romanceiro tradicional na Bahia (1988) ...................................... Miscelânea do mesmo Homenagem a Jean Duvignaud (2008) ............................................................ Prefácio para livro sobre folias do divino (2008) ............................................. Apresentação de livro sobre a dança de Iemanjá (2008) ................................. Prefácio de livro sobre o carnaval de Natal, no Rio de Grande do Norte (2007) .......................................................................................................... Apresentação do Relatório da Fundação Cultural do Estado da Bahia 2003/ 2006 (2006) ................................................................................................ Teatro Castro Alves: história e memória (2005) .............................................. Prefácio de livro sobre o projeto Bahia Singular e Plural (2005) ...................... Pátria é nossa língua (2004) ................................................................................. Etnocenologia na serra (2003) ............................................................................ Conflito é exacerbação (2003) ............................................................................. O estético dá a ligação comunitária (2001) ........................................................ Homenagem ao talento (2002) .......................................................................... Multiculturalismo: multiculturalidade (2000) .................................................. Orelha de livro sobre a imprensa alternativa na Bahia nos anos 1970 (1996) ...................................................................................................................... Uma viagem pela teoria em Paris (1988) ...........................................................

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Armindo Bião

Nota do autor sobre a presente edição

A “presente edição” à qual se refere este título é a de dois livros, nos quais esta mesma “Nota” aparece: Etnocenologia e a cena baiana e Teatro de cordel e formação para a cena, ambos com a característica idêntica, de reunirem textos de um só autor, quase todos já publicados anteriormente em outros livros e periódicos. Em Etnocenologia e a cena baiana, estão reunidos 40 textos, já publicados entre 1988 e 2008 no Brasil e na França (dois dos quais ainda no prelo no momento da presente edição), nas linhas de pesquisa que passei a desenvolver em função de meu doutoramento. Além do campo de pesquisa privilegiado que tem sido a Bahia (inclusive seu teatro), foco de mais de um quarto dos ensaios, artigos e outros textos aí reunidos, esse livro traz um conjunto de abordagens de caráter epistemológico e metodológico, no horizonte teórico da sociologia relativista e compreensiva do atual e do cotidiano e da etnociência das artes do espetáculo, a etnocenologia. Em Teatro de cordel e formação para a cena, estão reunidos 52 textos, produzidos entre 1982 e 2008 nos Estados Unidos da América do Norte, no Brasil e na França (cinco dos quais ainda inéditos no momento da presente edição), relativos à interpretação teatral, a minha prática de ator, encenador e professor de artes do espetáculo e às pesquisas que venho desenvolvendo no âmbito da oralidade e da teatralidade da literatura de cordel. A palavra bião, que identifica minha família paterna e que aparece em textos do teatro de cordel lisboeta do século XVIII, é aí motivo de reflexão pessoal, profissional, antropológica e etnocenológica. Razões históricas da edição dos dois livros Ao longo de 30 anos de atuação como docente universitário, na área das artes do espetáculo, tenho me deparado com o grande problema do texto didático: sua escassez e dificuldade de acesso. Na Bahia, em 11

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particular, esse problema só me parece ser menor que o de nossas bibliotecas públicas, cuja grandeza só me foi revelada, em toda sua dramática extensão, quando estudei, no início dos anos 1980, nas Universidades de Pittsburgh e Minnesotta, nos Estados Unidos da América do Norte. De fato, ali, a abundância de textos disponíveis – e a eficiente existência de bibliotecas, de grande acervo com acesso fácil e ágil, abertas ao público de modo quase ininterrupto, com pessoal bem qualificado – surpreenderam-me. Talvez, e não por mera coincidência, fosse ali e quando eu começaria a estudar, de fato, metodologia da pesquisa, passaria a valorizar a produção de textos didáticos e a boa manutenção de bibliotecas públicas e, além disso, começaria, também, a produzir textos para uso em salas de aulas de cursos de teatro. Daí, resultaram meus artigos “O ator nu: notas sobre seu corpo e treinamento nos anos 80” e “Dramaturgia brasileira em aulas de interpretação”, publicados, respectivamente, em 1982 e 1984, na Revista Art, da então Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, nossa UFBA. A plena compreensão da pesquisa, em suas dimensões de pureza e aplicabilidade, só me seria revelada um pouco mais tarde, no final dos anos 1980, durante a realização de meu doutorado, nas velhas instalações da Sorbonne, que eu escolhera por conta de sua proximidade física (em Paris) de locais onde se praticavam técnicas teatrais de máscara, que eu conhecera nos EUA, durante o mestrado, junto à companhia teatral franconorteamericana Théâtre de la jeune lune. Pois foi ali, apesar de alguma dificuldade de acesso ao precioso acervo bibliográfico existente, que aprendi o real e elevado valor da reflexão filosófica, da crítica e do livre debate de ideias. Minha atração pelo teatro, bem arcaica, quase infantil – segundo amigos adeptos do espiritismo, de minha família, proveniente de outra reencarnação – como se observa no parágrafo anterior, parece ser o eixo norteador do acaso e da necessidade de minha vida acadêmica e de minha produção bibliográfica, como se poderá confirmar no próximo parágrafo. No entanto, a possibilidade de efetiva articulação de teoria e prática, teatro e filosofia, artes do espetáculo e ciências do homem, só se 12

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tornaria realidade para mim a partir de 1995, quando participei do evento no qual se propôs a etnocenologia, também em Paris. Aí e então, teve início um terceiro momento de minha produção textual, cujo formato mais realizado só começaria a aparecer bem recentemente, em artigos como “Um trajeto, muitos projetos” e “Um léxico para a etnocenologia”, ambos de 2008. Voltando ao momento chave de meu doutoramento, foi também na Sorbonne, no final dos anos 1980, que passei a produzir textos numa perspectiva mais teórica, como os ensaios “Le jouir du jouer” (1988) e “Teatralidade e espetacularidade” (1990), religando-me a minha iniciação universitária no campo da filosofia, curso, aliás, que eu escolhera, em 1967, mais uma vez, graças a minha atração primordial pelo teatro, menos pelo conteúdo programático do curso e mais pela existência de um atuante grupo de teatro na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, conforme relato no texto “O teatro mora na filosofia”, escrito para as celebrações dos 50 anos da mais antiga universidade baiana, em 1996. Na verdade, essa religação filosofia-teatro-pensamento francês estendese a minha participação adolescente em dois grupos: um de “teatro de orientação espírita” e outro de estudos sobre “a filosofia de bases científicas e consequencias religiosas”, que seria o espiritismo ortodoxo positivista francês, segundo a tradição oral e escrita local. Retornando, de modo mais pontual, à presente edição simultânea de dois livros, reunindo textos (quase todos já publicados), em minha avaliação, mesmo com o grande avanço tecnológico e telemático, dos últimos anos, que amplia as possibilidades de acesso a textos didáticos e a acervos bibliográficos, o que vivemos na área das artes do espetáculo, na Bahia sobretudo, em termos de bibliotecas públicas (universitárias ou não), é, ainda, uma situação dramática. Para mim é muito claro que, atuando, prioritariamente, numa metrópole regional brasileira de médio porte, como Salvador, de um lado, nossas dificuldades locais de publicação de livros e de periódicos são enormes. De outro lado, mesmo havendo, aqui, uma efetiva inserção no avanço tecnológico e telemático ao qual aludi no parágrafo anterior, graças à ampliação do acesso às telemáticas, na verdade, nosso acesso à 13

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informação, que é o centro de minha atenção na presente “Nota”, permanece problemático. Porque, além de nosso parco hábito de leitura e de escrita, do pequeno conhecimento das metodologias da pesquisa e das múltiplas formas escritas das línguas, em geral, talvez, até como fato correlato, nossa produção bibliográfica pertinente seja muito escassa e, o que é muito mais grave, continue a haver uma pequeníssima circulação dos raros textos didáticos e dos resultados de pesquisa efetivamente publicados, na área das artes do espetáculo. Mesmo tendo publicado textos de minha autoria fora e dentro do Brasil, inclusive fora da Bahia, o número pequeno de exemplares das edições dos periódicos de nossa área de artes e sua precária circulação internacional (e também até nacional) leva-me a um fato já muito conhecido também em outras áreas do conhecimento em nosso país. A questão é que, talvez, esse fato seja ainda mais grave em nossa área: dos fenômenos efêmeros do espetáculo. Trata-se do crescimento do uso de reproduções em fotocópias, nem sempre de boa qualidade e eventualmente com danosas distorções das referências dos originais copiados, de textos didáticos e de resultados de pesquisa. Aliás, o hábito de professores deixarem, no serviço de reprodução de textos de sua unidade acadêmica, cópias dos textos indicados para os alunos, para serem, por sua vez, também, fotocopiadas, tem se tornado prática cada vez mais frequente e, até, motivo de pesquisa acadêmica. Assim, selecionei quase uma centena de textos, publicados desde 1982, entre artigos, ensaios, palestras transcritas, entrevistas, editoriais, prefácios, apresentações de livros e similares, por considerá-los de alguma utilidade para as disciplinas que leciono e para as atividades de pesquisa e extensão que desenvolvo. Como o volume do material ficou muito grande para um só livro, fui levado a organizá-lo em dois livros, e não em dois volumes de um mesmo livro, porque, o esforço teórico, prático e pragmático, de seleção e preparação dos originais assim me sugeriu. É o resultado desse esforço, que só me enriqueceu, e que, graças ao CNPq, à ajuda profissional de, entre outros, Heloísa Prata e Prazeres, e ao apoio técnico de João Paulo Perez Cappello, agora vem a público. 14

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Razões imediatas da edição dos dois livros Esta edição teve origem aproximadamente em março de 2008, quando comecei a desenvolver o projeto de pesquisa Mulheres por um fio: inferno, purgatório e paraíso no Atlântico Negro, com o qual recebi nova bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, agora de Nível 1A, por três anos. Acompanhada de um grant mensal em recursos financeiros, que podem ser investidos em publicações, a concessão dessa bolsa me possibilitava reunir, com objetivo de promover sua edição, tudo (ou quase tudo) o que já havia publicado. O que me permitiria, além de promover doações a bibliotecas especializadas, vender o produto editado aos interessados praticamente pelo preço dos custos não cobertos pelo grant (serviços de pessoa física, de revisão, normalização e preparação dos originais), já que esse cobriria os custos de impressão. E, para mim, ficava cada vez mais clara a necessidade de um suporte desse tipo para minhas atividades acadêmicas, de pesquisa, ensino e extensão. De modo mais pragmático – confesso – eu também queria facilitar minha vida de professor e a de meus alunos, sobretudo a de meus orientandos, dando-lhes mais fácil acesso a parte da bibliografia que eu já lhes indicara e que poderia usar em futuros cursos. No processo de reunião e seleção dos textos que já publicara, reuni também poemas diversos (publicados e inéditos) de minha autoria, o que resultou num terceiro livro, Bloco mágico e lua e outros poemas, já lançado no final de 2008. Razões metodológicas Os textos foram organizados, de acordo com sua temática central, nos dois livros e, dentro de cada um deles, em blocos temáticos (para os artigos, ensaios e similares) e num bloco final, denominado “Miscelânea”, contendo as entrevistas, editoriais e afins. Com a implantação da nova ortografia da língua portuguesa a partir de 2009, fiz um grande esforço de adaptação dos textos originais, publicados exclusivamente ou também em português, às novas regras hoje em vigor, o que, sem dúvida, se altera 15

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o texto de referência já publicado, tirando-lhe algo do sabor de outra época, também lhe dá uma atualidade desejável. Do mesmo modo, os títulos foram revistos, para darem conta ao leitor, do modo mais preciso possível, de seu conteúdo e, eventualmente, de seu contexto, como nos casos de “Prefácio a...”, por exemplo. Quanto aos textos escritos e publicados em francês e em inglês, ainda sem tradução para o português, optei por republicá-los nas línguas em que estão disponíveis. Quanto aos raros textos escritos e publicados em francês e em inglês, ainda sem tradução para o português, optei por publicá-los nas línguas em que estão disponíveis. Já os prefácios, de Michel Maffesoli, para Etnocenologia e a cena baiana, e de Jean-Marie Pradier, para Teatro de Cordel e formação para a cena, aparecem em suas versões originais em francês e numa tradução para o português, por conta dos principais leitores alvo: sobretudo lusófonos, mas também francófonos. Com facilidade, o leitor poderá perceber que ideias recorrentes e, até, trechos inteiros, reproduzem-se de um texto para outro. O que me levou a optar por sua organização, dentro da cada bloco de textos, por ordem cronológica, na esperança de que se possa acompanhar o processo de transformação dessas ideias e formulações do discurso. Por isso a ordem de apresentação dos textos em cada um desses blocos é cronológica, do mais recente para o mais antigo, o que pode ser visualizado nos Sumários, onde após o título de cada um deles informa-se o ano de sua mais recente publicação, entre parênteses. O resultado dos dois livros, assim, acaba por remeter ao universo da arte e da cultura barrocas, que definiram a identidade de nosso país e, mais particularmente, de nossa Bahia, de nossa Salvador e minha própria. O fato de divulgar, para acesso e download gratuito, o conteúdo de ambos os livros, através de www.gipe-cit.blogspot.com e de www.teatro.ufba.br/gipe, pode comprovar minha intenção de superar as dificuldades de acesso a textos didáticos e de resultados de pesquisa, que classifiquei como dramáticas na área das artes do espetáculo e na Bahia, em particular. É claro que a edição de apenas quinhentos exemplares de cada um dos livros (para doação a bibliotecas e venda em raras livrarias, através de um esforço muito pessoal e artesanal ou por meio daqueles sítios virtuais acima indicados), por uma pequena editora local, 16

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soteropolitana, não contribuiria de modo decisivo para o enfrentamento daqueles problemas. Mas, também, fica claro que só a organização do material que eu quis publicar no formato de livro me permitiu chegar até sua divulgação pela rede mundial de computadores. Finalmente, faz-se necessária uma referência à utilização de palavras não dicionarizadas. A palavra “espetacularidade”, por exemplo, é definida em vários dos textos nos quais aparece, em particular em “Um léxico para a etnocenologia”, como a categoria dos fenômenos sociais extraordinários. Outras palavras, provindas do vocabulário proposto por Michel Maffesoli e de franca inspiração da filosofia alemã romântica, contudo, merecem aqui uma, ainda que também breve, definição. Assim, “sensorialidade” é a categoria da percepção sensorial que se distingue de “sensibilidade”, cuja conotação de qualidade, emoção, faculdade perceptiva e reativa e fragilidade é muito forte e distinta do que se pretende compreender com essa nova palavra. Sensorialidade é, mais especificamente, a condição humana de conhecer através dos sentidos. Do mesmo modo, “afetual” é a condição humana, distinta do sensorial, do racional e do emocional, que se refere ao conjunto de empatias, simpatias e antipatias que aproximam e distanciam as pessoas. E “reencantar” e “reencantamento” referem-se a uma nova forma de se ver o mundo na cultura ocidental, fortemente marcada pelo desencantamento da modernidade. Depois de um mundo desencantado, estaríamos vivendo um novo momento, o do “reencantamento”, da aceitação do mistério. Por fim, no âmbito da história do teatro, a palavra “revistógrafo”, que se refere ao especialista em teatro de revista, uma modalidade teatral hoje em desuso, que gerou a palavra dicionarizada “revisteiro”, para designar o autor de peças desse tipo, que aparece em alguns textos sobre esse tipo de comédia musical, muito popular do final do século XIX a meados do século XX, pode ser bem compreendida ao se conhecer o perfil de Xisto Bahia (1841-1894), ator, músico, autor, encenador, produtor. Xisto Bahia também pode ser considerado um revistógrafo, palavra cujo sufixo remete mais à teoria e à grafia. Ora, teoria (e escrita) e teatro (e vida breve, na prática) são faces da mesma moeda, até por sua origem etimológica. A presente edição é um tributo a Xisto Bahia, ao teatro e à teoria! 17

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Prefácio: A Profundeza das Aparências “Mas aquilo que na aparência é claramente compreensível é penetrado e regido pela obscuridade” (M.Heidegger. Moira)

Lendo e, em alguns casos, relendo as belíssimas páginas sobre as quais Armindo B. nos propõe meditar, tenho na memória nossos inúmeros e profícuos encontros, no Rio Vermelho, pela primeira vez, numa iniciativa do respeitado amigo Vivaldo da Costa Lima, e mais tarde, é claro, em Paris. Tudo isso tendo como desfecho sua tese de doutorado (em 1990, como o tempo passa, e nós também!), da qual me lembro bem das contundentes análises. O cerne dessas análises era a importância readquirida pelo corpo na socialidade. Eis, também, uma das minhas idéias obsessivas: a pósmodernidade será elaborada no “vazio das aparências”. E toda a obra de A.B. (teórica e prática) é uma ilustração do lúdico, do festivo e do emocional em jogo em todas as nossas sociedades. Mas, nesses assuntos, a Bahia não é vanguardista? Tudo isso é exteriorizado ainda que de maneira premonitória pelo que Nietzsche denominava de ”a inocência do devir”. Aceitação do amor fati. Dar consentimento a esta terra, a este mundo. Este, contrariamente à doutrina judaico-cristã, não encontra sua origem numa criação ex nihilo, mas está presente tal como um “dado” com o qual devemos, de qualquer modo, concordar. Somos cidadãos deste mundo! Que é nossa cidade. Certamente, tudo isso não está conscientizado, nem mesmo verbalizado como tal. Mas amplamente vivenciado no retorno às tradições, religiosas ou espirituais, no exercício das solidariedades quotidianas, na revivescência das forças primitivas. O que conduz à (re) valorização dos instintos, éticas, etnias. 19

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Esta nova sensibilidade, poderíamos dizer este novo paradigma, é induzida por um poderoso imanentismo. Isto pode tomar formas mais sofisticadas ou mais triviais. O hedonismo, os prazeres do corpo, o jogo das aparências, o presenteísmo surgem como pontuação do que não é um ativismo voluntarista, mas, sim, a expressão de uma verdadeira contemplação do mundo. Ou, dizendo-se em outras palavras, a aceitação de um mundo que não é céu sobre terra, que também não é inferno sobre terra, mas é terra sobre terra. Com tudo aquilo que contém de trágico (“amor fati”), mas também de prazeroso. Deixar fazer, deixar viver, deixar ser. Eis, portanto, o que poderiam ser as palavras-chaves dessas tribos inocentes, instintuais, um tanto animalescas e, certamente, muito vivas. A modernidade terminal, no seu sentido estrito, “desnervou” o corpo social. O higienismo, a segurança, a racionalização da existência, todos os tipos de interdição, tudo isso havia retirado do corpo individual ou do corpo coletivo a capacidade de emitir as reações necessárias à sua sobrevivência. Parece que assistimos, com a pós-modernidade, à revalorização da vida instintual. Instinto, primitivismo, é restituir o seu lugar ao sensível. É considerar que o apanágio da natureza humana não se resume ao cognitivo, ao racional, mas, sim, a um ”complexio oppositorum” que se poderia traduzir por um conjunto, uma urdidura de coisas opostas. É tudo isso que convém saber para ver a emergência de um novo elo social na efervescência contemporânea. Algumas de suas manifestações podem nos atormentar ou nos ofuscar. Mas nem por isso deixam de exteriorizar, às vezes de maneira desajeitada, a afirmação que na antípoda do pecado original, do lado oposto da corrupção estrutural, existe uma bondade intrínseca no ser humano. E que o escrínio no qual ele se situa, a terra, é também desejável. Porém, tal imanentismo culmina com uma relativização do político. Ou melhor, naquilo que este, estando de algum modo transfigurado, invertese em doméstico, torna-se ecologia. Domus, oikos, termos que designam a casa comum, que convém ser protegida das desordens às quais a modernidade nos havia habituado. As maquinações deste homem, “mestre e possuidor do universo” de acordo com a expressão de 20

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Descartes, deram origem à devastação tal como se conhece. As tribos, mais prudentes e também mais precavidas, dedicam-se menos a “maquinar” as outras e a natureza, e é isso o que faz a inegável especificidade delas. Realidades que nos forçam a constatar que a heterogeneidade está de volta. O que Max Weber denominava de politeísmo dos valores. Por conseguinte, a reafirmação da diferença, os localismos diversos, as especificidades linguísticas e culturais, as reivindicações étnicas, sexuais, religiosas, os múltiplos agrupamentos em torno de uma origem comum, real ou mitificada. Tudo é bom para celebrar esse estar junto, que se fundamenta menos na razão universal do que na emoção compartilhada, no sentimento de pertencimento. Esta é a nova forma do elo social e, talvez, não hesitemos ao dizer, da modalidade contemporânea da cidadania. Isto é o que Armindo Bião revela muito bem. Eis o que caracteriza aquilo que denominei de o “tempo das tribos”. Sejam estas sexuais, musicais, religiosas, esportivas, culturais, e mesmo políticas, elas ocupam o espaço público. Negar esta constatação é pueril e irresponsável. Não é saudável estigmatizá-las. Seríamos mais inspirados, fiéis a uma imemorial sabedoria popular, ao acompanhar tal mutação. E isso, para evitar que esta sabedoria popular se torne perversa e, em seguida, totalmente incontrolável. Afinal, por que não considerar que a res publica, a coisa pública se organiza a partir do ajuste, a posteriori, dessas tribos eletivas? Por que não admitir que o consenso social, semelhante à sua etimologia (cum sensualis) pode se apoiar no compartilhamento de sentimentos diversos? Posto que existem, por que não aceitar as diferenças comunitárias, contribuir para o seu ajuntamento e com elas aprender a compor? O jogo da diferença, em vez de empobrecer, enriquece. Afinal, tal composição pode participar de uma melodia social cujo ritmo talvez seja um pouco mais desencontrado, mas não menos dinâmico. O ajuste dos samples da música Techno traduz, também, uma forma de cultura. No rastro do romantismo, e depois do surrealismo, os situacionistas, nos anos sessenta do século passado, partiram em busca dessa mítica passagem do noroeste que se abre para horizontes infinitos. E para fazer isso, utilizaram uma psicogeografia, ou deriva, que lhes permitiu descobrir que, além da simples funcionalidade da cidade, há 21

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um labirinto do vivido muito mais profundo e que sustenta, invisivelmente, os fundamentos reais de toda existência. Pode-se extrapolar tal questionamento poético-existencial, e os arcanos da cidade podem ser úteis para compreender uma estrutura tácita que, em alguns momentos, assegura a perduração da vida em sociedade. Tácito: que não se exprime verbalmente, que são subentendidos. Implícito: que vai se aninhar nos recônditos do mistério e do inconsciente coletivo. Nosso saudoso amigo Jean Baudrillard, na sua época, ficou atento a esta “sombra das maiorias silenciosas”, a este “ponto vulnerável” do social. Quanto a mim, de várias maneiras, analisei a centralidade subterrânea, a socialidade alternativa e outras metáforas que assinalam a retirada do povo do seu Monte Aventino. Mas permaneçamos nesta ambivalência, nesta bipolaridade entre o que se retira e o que se mostra. Muito mais recuado do que em evidência. Lembremo-nos aqui do comentário feito por Lacan sobre o conto de Edgar Poe, “A Carta Roubada”. Justamente pelo fato de a carta estar ali, na cornija da lareira, o policial que a procura, não a vê. E como um eco, escutemos o conselho de Gaston Bachelard : “só há ciência do oculto”. Esclarecendo-se que esse oculto nos salta aos olhos. E por menos que se leve a sério a teatralidade dos fenômenos, este theatrum mundi de antiga memória, nele se saberá vislumbrar os novos modos de vida em gestação. Além de nossas certezas e convicções: políticas, filosóficas, religiosas, científicas, é conveniente concordar simplesmente, humanamente, com aquilo que se deixa ver. Buscar o essencial no inaparente das aparências. As da vida quotidiana. As dos pequenos prazeres e as de pouca importância, que constituem o terreno fértil no qual se desenvolve o ser-junto. Isso não é cultura ? “Os aspectos que nos são mais importantes estão ocultos por causa da sua banalidade e simplicidade” (Wittgenstein). O jogo das aparências, Armindo Bião o segue a risca. “Etnocenologia” o testemunha com força e vigor. Nesse sentido, trata-se de um livro que dá o que pensar. Talvez seja a partir de tal princípio de incerteza que seremos capazes de fazer um bom prognóstico. Isto é, ter a intuição dos fenômenos, esta visão do interior que faz tanta falta à paranoia tão frequente nas elites. Desde então, o olhar penetrante nos permitirá ver a semente fatídica das 22

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coisas. Outra maneira de dizer e de viver o ser-junto. Outra maneira de valorizar o que me une ao outro num lugar-comum: a cidade. Como um fio vermelho, a Bahia de Todos-os-Santos se reencontra ao longo destas páginas. E sentimos aquilo que A.Bião (Brasileiro de Salvador da Bahia) deve a este “dado”, a este território. Ele mostra muito bem como a empatia por um lugar e por um povo é única. Porque é verdade que o lugar faz o elo. Michel Maffesoli Professor da Sorbonne Membro do Instituto Universitário da França

Tradução de Marcia Bértolo Caffé

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Préface: La profondeur des apparences « Mais ce qui en apparence est pure clarté est pénétré et régi par l’obscurité » (M.Heidegger. Moira) En lisant, relisant pour certaines, les belles pages que propose Armindo B à notre méditation, j’ai à l’esprit nos différentes et fécondes rencontres, Rio Vermelho, la 1er fois, à l’initiative de l’ami respecté Vivaldo de Costa Lima, puis, bien sûr à Paris. Le tout aboutissant à sa thèse de doctorat (1990, comme le temps passe, et nous avec !), dont je me souviens bien les analyses aigues. Le cœur battant de ces analyses était l’importance que reprenait , dans la socialité, le corps. Voilà, aussi, une des mes idées obsédantes : la postmodernité s’élaborera dans le « creux des apparences ». Et toute l’œuvre d’A.B ( théorique et pratique) est une illustration du ludique, du festif et de l’émotionnel en jeu dans toutes nos sociétés. Mais est-ce que Bahia n’est pas , en ces domaines, en avance sur son temps ? Qu’exprime tout cela sinon ce que d’une manière prémonitoire, Nietzsche nommait « l’innocence du devenir ». Acceptation de l’amor fati. Consentement à cette terre, à ce monde-ci. Ce dernier, à l’encontre de la doctrine judéo-chrétienne, ne trouve pas son origine dans une création ex nihilo, mais il est là, tel un « donné » avec lequel il convient, tant bien que mal, de s’accorder. On est citoyen de ce monde-ci ! Celui-ci est notre cité. Certes, tout cela n’est pas conscientisé, ni même verbalisé en tant que tel. Mais largement vécu dans le retour aux traditions, religieuses ou spirituelles, dans l’exercice des solidarités au quotidien, dans la reviviscence des forces primitives. Ce qui conduit à la (re)valorisation des instincts, des éthiques, des ethnies. Ce qu’induit cette nouvelle sensibilité, on pourrait dire ce nouveau paradigme, c’est un puissant immanentisme. Cela peut prendre des formes 25

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plus sophistiquées ou plus triviales. L’hédonisme, les plaisirs du corps, le jeu des apparences, le présentéisme sont là comme autant de ponctuation de ce qui n’est pas un activisme volontariste, mais bien l’expression d’une réelle contemplation du monde. Ou, pour le dire en d’autres termes, l’acceptation d’un monde qui n’est pas le ciel sur la terre, qui n’est pas non plus l’enfer sur terre, mais bien la terre sur la terre. Avec tout ce que cela comporte de tragique (« amor fati ») mais de jubilation aussi. Laisser faire, laisser vivre, laisser être. Voilà bien ce qui pourrait être les maîtres mots de ces tribus « innocentes », instinctuelles, quelque peu animales et, pour sûr, bien vivantes. La modernité finissante a, en son sens strict, « dénervé » le corps social. L’hygiénisme, la sécurisation, la rationalisation de l’existence, les interdictions de tous ordres, tout cela avait enlevé au corps individuel ou au corps collectif la capacité d’émettre les réactions nécessaires à sa survie. Il semblerait que l’on assiste, avec la postmodernité, à une revalorisation de la vie instinctuelle. L’instinct, le primitivisme, c’est rendre leur place au sensible. C’est considérer que le propre de l’humaine nature ne se résume point au cognitif, au rationnel, mais bien une « complexio oppositorum » que l’on pourrait traduire par un assemblage, un tissage de choses opposées. C’est tout cela qu’il convient de savoir voir l’émergence d’un nouveau lien social dans l’effervescence contemporaine. Certaines de ses manifestations peuvent nous chagriner ou nous offusquer. Elles n’en expriment pas moins, parfois d’une manière maladroite, l’affirmation qu’à l’encontre du péché originel, qu’à l’opposé de la corruption structurelle, existe une bonté intrinsèque de l’être humain. Et que l’écrin dans lequel ce dernier se situe, la terre, est également désirable. Mais un tel immanentisme aboutit à une relativisation du politique. Ou plutôt, à ce que celui-ci, étant en quelque sorte transfiguré, s’inverse en domestique, devient écologie. Domus, oikos, termes désignant la maison commune qu’il convient de protéger des saccages auxquels la modernité nous avait habitués. Les machinations de cet homme, « maître et possesseur 26

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de l’univers » selon l’expression de Descartes, ont abouti à la dévastation que l’on sait. Les tribus, plus prudentes, plus précautionneuses aussi, s’emploient à moins « machiner » les autres et la nature, et c’est cela qui fait leur indéniable spécificité. Réalités qui nous forcent à constater que l’hétérogénéité est de retour. Ce que Max Weber nommait le polythéisme des valeurs. Ainsi la réaffirmation de la différence, les localismes divers, les spécificités langagières et culturelles, les revendications ethniques, sexuelles, religieuses, les multiples rassemblements autour d’une commune origine, réelle ou mythifiée. Tout est bon pour célébrer un être ensemble dont le fondement est moins la raison universelle que l’émotion partagée, le sentiment d’appartenance. Voilà qu’elle est la nouvelle forme du lien social et, peutêtre, n’hésitons pas à le dire, la modalité contemporaine de la citoyenneté. Voilà ce qu’indique bien Armindo Biao. Voilà ce qui caractérise ce que j’ai appelé le « temps des tribus ». Que celles-ci soient sexuelles, musicales, religieuses, sportives, culturelles, voire politiques, elles occupent l’espace public. C’est un constat qu’il est puéril et irresponsable de dénier. Il est malsain de les stigmatiser. L’on serait mieux inspiré, fidèle en cela à une immémoriale sagesse populaire, d’accompagner une telle mutation. Et ce, pour éviter qu’elle ne devienne perverse, puis totalement immaîtrisable. Après tout, pourquoi ne pas envisager que la res publica, la chose publique s’organise à partir de l’ajustement, a posteriori, de ces tribus électives ? Pourquoi ne pas admettre que le consensus social, au plus près de son étymologie (cum sensualis) puisse reposer sur le partage de sentiments divers ? Puisqu’elles sont là, pourquoi ne pas accepter les différences communautaires, aider à leur ajointement et apprendre à composer avec elles ? Le jeu de la différence, loin d’appauvrir, enrichit. Après tout une telle composition peut participer d’une mélodie sociale au rythme peut être un peu plus heurté, mais non moins dynamique. L’ajustement des samples de la musique techno traduit, aussi, une forme de culture. Dans la foulée du romantisme, puis du surréalisme, les situationnistes, dans les années soixante du siècle dernier sont partis à la 27

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recherche de ce mythique passage du nord-ouest ouvrant sur des horizons infinis. Et pour ce faire, ils mettent en œuvre une psycho-géographie, ou dérive, leur permettant de découvrir qu’au-delà de la simple fonctionnalité de la ville existe un labyrinthe du vécu, autrement plus profond et assurant, invisiblement, les fondements réels de toute existence sociale. On peut extrapoler un tel questionnement poético-existentiel et les arcanes de la ville peuvent être utiles pour comprendre une structure tacite qui, à certains moments, assure la perdurance de la vie en société. Tacite : qui ne s’exprime pas verbalement, qui est tout en sous-entendus. Implicite : qui va se nicher dans les plis du mystère et de l’inconscient collectif. Notre regretté ami, Jean Baudrillard, en son temps, avait rendu attentif à cette « ombre des majorités silencieuses », à ce « ventre mou » du social. Pour ma part, de diverses manières, j’ai analysé la centralité souterraine, la socialité au noir et autres métaphores pointant le retrait du peuple sur son Aventin. Mais restons sur cette ambivalence, cette bipolarité entre ce qui est en retrait et ce qui se montre. D’autant plus replié qu’il est en évidence. Souvenons-nous ici du commentaire que fit Lacan du conte d’Edgar Poe, « la lettre volée ». C’est parce qu’elle est là, sur le manteau de la cheminée que le commissaire qui est à sa recherche, ne la voit pas. Et comme en écho, écoutons le conseil de Gaston Bachelard : « il n’y a de science que du caché ». En précisant que ce caché nous crève les yeux. Et pour peu que l’on prenne au sérieux la théâtralité des phénomènes, ce theatrum mundi d’antique mémoire, l’on saura y voir les nouveaux modes de vie en gestation. Au-delà de nos certitudes et convictions : politiques, philosophiques, religieuses, scientifiques, il convient de s’accorder simplement, humainement, à ce qui se donne à voir. Chercher l’essentiel dans l’inapparent des apparences. Celles de la vie quotidienne. Celles de ces plaisirs menus et de peu d’importance constituant le terreau où croît l’être-ensemble. N’est-ce pas cela la culture ? « Les aspects les plus importants pour nous sont cachés à cause de leur banalité et de leur simplicité » (Wittgenstein). Le jeu des apparences, Armindo Biao le suit à 28

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la trace. « Ethoscénologie » en témoigne avec force et vigueur. C’est, en ce sens, un livre qui donne à penser. Peut-être est-ce à partir d’un tel principe d’incertitude que l’on sera capable de faire un bon pronostic. C’est-à-dire avoir l’intuition des phénomènes, cette vision de l’intérieur faisant tant défaut à la paranoïa si fréquente chez les élites. Dès lors le regard pénétrant nous permettra de voir le noyau fatidique des choses. Une autre manière de dire et de vivre l’être-ensemble. Autre manière de valoriser ce qui me lie à l’autre en un lieu commun : la cité. Tel un fil rouge, Bahia de Todos os Santos se retrouve tout au long de ces pages. Et l’on sent ce que A.Biao ( Brasileiro de Salvador de Bahia) doit à ce « donné », à ce territoire. Il montre bien ainsi que l’empathie à un lieu et un peuple est tout un . Car il est vrai que le lieu fait lien. Michel Maffesoli Professeur à la Sorbonne Membre de l’Institut Universitaire de France

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DA ETNOCENOLOGIA

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Um léxico para a etnocenologia: proposta preliminar*

Desde a proposição da etnocenologia, em 1995, os preconceitos linguísticos e a necessidade de um vocabulário epistemológico específico têm sido questões centrais na construção dessa nova disciplina (PRADIER, 1995) ou, talvez, melhor dizendo, dessa nova perspectiva transdisciplinar, conforme registra o documento final do V Colóquio Internacional de Etnocenologia, realizado em Salvador, Bahia, Brasil, de 25 a 29 de agosto de 2007. O esforço de conhecer-se o diferente e o diverso implica o desafio de compreender-se o discurso do entorno do novo objeto que se quer conhecer, bem como o conhecer de seu próprio interior, inclusive seu léxico e sua língua nativa. A nova forma de referir-se, por exemplo, ao que se chamava, há alguns anos, na Europa ocidental, de “ópera de Pequim”, agora denominada de “Jing-Ju”, revela essa busca e a complexidade do nosso desafio. Pois aqui se trata de uma transcrição fonética do chinês original para a língua francesa. Como se poderá transcrever Jing-Ju para o português, por exemplo, admitindo-se que todos, entre o Brasil e a França, compreendam o Jing-Ju como uma forma, uma arte espetacular autônoma e não uma ópera, um teatro, ou uma dança, da China? É fato que o que se chamava anteriormente de Pequim – em português – e Pékin – em francês – passou-se a chamar mais recentemente, no Ocidente, de Beijing. O peso crescente da China no panorama mundial sugere muito novas mudanças, como, por exemplo, a do antigo Cantão no contemporâneo Cuandong – em inglês, em português? – ou Guangdong ou ainda Kouang-Tong – em francês?!.

* Publicado em BIÃO, Armindo (Org.). CONGRESSO INTERNACIONAL DE ETNOCENOLOGIA, 5., 2007, Salvador. Anais... Salvador: Fast design, 2007. p. 4349. 33

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A complexidade desse desafio é tão maior quão se pode facilmente perceber tratar-se de uma busca sem fim e extremamente pretensiosa: esta, de tudo se conhecer como cada um que vive e faz cada coisa conhece. Talvez tão pretensiosa seja essa ideia quanto o próprio desejo humano de construir um edifício até o céu, o que, segundo a Bíblia, teria resultado na aparição de multiplicidade de línguas diferentes, no mito episódio da Torre de Babel, do Antigo Testamento de tradição judaica. E talvez menos pretensiosa ao pensar-se num só objeto. Mas, como comunicar o seu conhecimento ao mundo? Conhecer-se o que não se conhece é reconhecer-se no novo, que se busca conhecer, algo que já existe no velho e, paulatinamente, irá se transformando (o velho), ao mesmo tempo em que, inevitavelmente, também se transforma o que se passa a conhecer (o novo). É nascer-se de novo, a cada passo, junto com o próprio caminho que se percorre, transformando-o, continuamente. Na tentativa – vã? – de contribuir para a construção de um léxico para a etnocenologia, e a partir do meu próprio trajeto – e do de meus colegas e alunos mais próximos (BIÃO, 2007) – é que proponho o conjunto de 18 expressões da língua portuguesa, listadas abaixo, com uma descrição mínima, na esperança de que eventualmente possa vir a ser útil. No âmbito epistemológico Assim, inicialmente, no âmbito da epistemologia, consideremos as 12 palavras seguintes, sendo metade delas apresentada a propósito do sujeito da pesquisa e a outra metade, que comentarei em primeiro lugar, dedicada ao mundo dos objetos. Dos objetos Teatralidade – palavra dicionarizada em língua portuguesa (HOUAISS, 2001, p. 2682; AURÉLIO, 1986, p. 1655), originada do vocábulo grego que se constituiu para designar a ação e o espaço organizados para o 34

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olhar, que compreendo como uma categoria reconhecível em todas as interações humanas. De fato, toda interação humana ocorre porque seus participantes organizam suas ações e se situam no espaço em função do olhar do outro. Assim, penso em todas as interações, as mais banais e cotidianas, nas quais, podemos compreender, todas as pessoas envolvidas agem, simultaneamente, como atores e espectadores da interação (aqui utilizo esses vocábulos do mundo do teatro certamente – e apenas – como metáfora). A consciência reflexiva de que cada um aí presente age e reage em função do outro pode existir de modo claro ou difuso ou obscuro, mas nunca de modo explicitamente compactuado – ou convencionalmente explicitado o tempo todo. Tratase de um hábito cultural enraizado –uma espécie de segunda natureza, individual e coletiva – amplamente praticado pela maioria absoluta dos indivíduos de cada sociedade, de um modo inerente a cada cultura, que codifica suas interações ordinárias e transmite seus códigos para se manter viva e coesa. Espetacularidade – palavra ainda não incluída nos mais importantes dicionários da língua portuguesa, editados no Brasil, que registram “espetaculosidade”, como qualidade ou procedimento de espetáculo – derivada do vocábulo espetáculo, de origem latina, destinada a designar o que chama, atrai e prende o olhar (HOUAISS, 2001, p. 1229; AURÉLIO, 1986, p. 704), que compreendo como uma categoria também reconhecível em algumas das interações humanas. De fato, em algumas interações humanas – não em todas – percebe-se a organização de ações e do espaço em função de atrair-se e prender-se a atenção e o olhar de parte das pessoas envolvidas. Aí, e então, de modo – em geral – menos banal e cotidiano, que no caso da teatralidade, podemos perceber uma distinção entre (mais uma vez, de modo metafórico) atores e espectadores. Aqui e agora, a consciência reflexiva sobre essa distinção é maior e – geralmente – mais visível e clara. Trata-se de uma forma habitual, ou eventual, inerente a cada cultura, que a codifica e transmite, de manter uma espécie de respiração coletiva mais extraordinária, ainda que para parte das pessoas 35

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envolvidas possa se tratar de um hábito cotidiano. Assim como a teatralidade, a “espetacularidade” contribui para a coesão e a manutenção viva da cultura1. Estados de consciência – esta expressão é parte do jargão das ciências do homem interessadas nos rituais, que provocam a alteração do modo mais habitual de ter-se consciência do mundo e de si próprio. Daí falarse de estados modificados (LAPASSADE, 1987) ou alterados (BOURGUIGNON, 1973) de consciência, frequentemente associados, por exemplo, ao transe, ao êxtase e à possessão (BIÃO, 1990, p. 132142). As interfaces entre as artes do espetáculo, os rituais e os estados de consciência têm sido constantemente eleitos como objeto de pesquisa e constituem-se em um grupo importante de objetos transversais de estudos para a etnocenologia. O interesse pelos estados “alterados” de consciência nos rituais de possessão e cultos religiosos é uma constante, por exemplo, no âmbito da antropologia, que, eventualmente, alude ao teatro, como o faz, por exemplo, Michel de Leiris (1958). Mais contemporaneamente, a relação entre artes e formas de espetáculo e estados modificados de consciência tem sido ressaltada2, levando-nos a sugerir que o treinamento corporal e mental de dançarinos e atores, por exemplo, gera, não apenas estados modificados de corpo – relembrando as reflexões de Marcel Mauss (1985) sobre as técnicas de corpo – mas também gera estados modificados de consciência. Estados de corpo – expressão que utilizo em associação à anterior para referir-me por um lado à indissociabilidade, tão cara à etnocenologia, entre corpo e consciência e por outro para reportar-me às artes do 1

Propus essas categorias em minha tese de doutorado: BIÃO, Armindo. Théâtralité et spectacularité: une aventure tribale contemporaine à Bahia. 1990. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Université René Descartes. Paris: Paris 5, 1990. Orientador: Michel Maffesoli, das quais também já tratei em português (1991, p. 104-110; 2000, p. 364-367). 2 Ver, entre outras contribuições publicadas nessa obra, a de PIMPANEAU, Jacques. “Les liens entre les cultes médiumniques et le théâtre, entre les chamans et les acteurs”. In: _____ . Actes des Rencontres Internationales sur la fête et la communication. Serre: Nice-Animation, 1986. 36

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espetáculo que se sustentam em boa medida na prática e exercício de alteração dos estados de corpo habituais do dia a dia. Problemática essa que levaria, por exemplo, Eugenio Barba (1985), inspirado na noção de técnicas de corpo de Marcel Mauss, a falar de técnicas “extracotidianas” de corpo. É bem disso do que se trata. No entanto, do ponto de vista léxico, considero que a expressão, antropologia teatral, reforça o etnocentrismo europeu, que privilegia o teatro em detrimento de outras artes e formas espetaculares, também prefiro as expressões estados de corpo e estados de consciência para tratar dos objetos da etnocenologia. Decerto que esses estados, dinamicamente construídos e mantidos apenas temporariamente, quando nos referimos à vida da arte, são construídos com base em práticas, comportamentos e técnicas, mas nosso objetivo aqui e agora é propormos um léxico coerente e o mais simples possível para o fortalecimento do corpo epistemológico da etnocenologia. Transculturação – o conceito sugerido por Fernando Ortiz (1973) e comentado por Rafael Mandressi (1999) aproxima-se decerto de algumas possíveis leituras de outros conceitos correlatos mais antigos. Mas sua proposição, cunhando um novo termo, reafirma o fenômeno do contato cultural como gerador de novas formas de cultura, distintas das que lhes deram origem, o que remete ao desejo de identificação de suas matrizes culturais, fenômeno que só vale pesquisar, nunca é demais reafirmar, considerando-se certa reconstrução constante e dinâmica da tradição. Matrizes estéticas – Essa expressão é mais uma noção teórica “mole” que um conceito “rígido” (MAFFESOLI, 1985, p. 51, 52 et seq., 63), considerando-se que, no âmbito geral da cultura, assim como no campo mais específico da estética, pode-se sempre buscar compreender um fenômeno contemporâneo a partir do esforço de identificação de sua filiação histórica e de seu parentesco atual com outros fenômenos. A utilização dessa expressão – matrizes estéticas, sempre no plural, possui, do ponto de vista retórico, uma consciente proposição paradoxal, posto que a palavra matriz remete à ideia de mãe, que também remete à ideia de unicidade, quando pensada como uma e única pessoa, do gênero feminino, que alimenta em seu próprio corpo e assim é explicitamente geradora de outra, enquanto a palavra matrizes multiplica esse ente, ainda 37

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que se referindo a um mesmo fenômeno – seu descendente direto. O que se pretende, ao recorrer-se a essa figura paradoxal de linguagem, é chamar a atenção para o fato de que na cultura cada fenômeno possui simultaneamente múltiplas matrizes, fruto que é de diversos processos de transculturação. A isso, chamei de “família de formas culturais aparentadas [...], identificadas por suas características sensoriais e artísticas, portanto estéticas, tanto num sentido amplo, de sensibilidade, quanto num sentido estrito, de criação e compreensão do belo” (BIÃO, 2000, p. 15). Assim, podemos falar, por exemplo, de matrizes estéticas, a partir de referências linguísticas, religiosas, geográficas, históricas, geo-históricas, étnicas, técnicas, temáticas, teóricas, tecnológicas etc.. Dos sujeitos O conjunto das noções de alteridade, identidade, identificação (MAFFESOLI, 1988), diversidade, pluralidade e reflexividade (GARFINKEL, 1967; TURNER, 1979, p. 65; SCHÜTZ, p. 1987, p. 114 et seq.) remete à consciência das semelhanças e diferenças entre indivíduos, grupos sociais e sociedades, por um lado e, por outro, à capacidade humana de refletir a realidade e sobre ela, de modo consciente, experimentando e exprimindo sensibilidade, sensorialidade, opções de prazer, beleza, desejo e conforto. Nesse conjunto de noções, vale ressaltar a emergência da noção de “identificação”, como uma construção temporária, existencialista e dinâmica, contraposta à de “identidade”, como uma categoria definitiva, essencialista e estática, que se encontraria em crise na contemporaneidade. Alteridade – A categoria de reconhecimento pelo sujeito de um objeto humano (no caso da etnocenologia) distinto de si próprio. Identidade – A categoria de reconhecimento da especificidade do sujeito em relação à alteridade. Identificação – A categoria de momentâneo reconhecimento do sujeito, em parte ou no todo, na alteridade. 38

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Diversidade – A categoria que permite ao sujeito reconhecer a coexistência das diferenças humanas. Pluralidade – A categoria que, como à anterior, dá ao sujeito condições de reconhecer a coexistência das – reafirme-se – múltiplas e variadas diferenças humanas. Reflexividade – A categoria referente ao sujeito que dá conta de sua capacidade de pensamento e teorização (reflexão), espelhando as semelhanças e diferenças reconhecidas em sua relação com os objetos, suas identidades e identificações. No âmbito metodológico O horizonte teórico-metodológico que busca revelar a presente proposição preliminar de um léxico para a etnocenologia remete à necessária e imprescindível articulação entre o sujeito e o objeto, retomando, por minha própria conta, as ideias de “objetivação do subjetivo” de Erwin Panofsky (1975, p. 158-170), de “trajeto antropológico” de Gilbert Durand (1969, p. 38 e s.) e de “trajetividade” de Augustin Berque (1986, p. 147-153). Dos trajetos Objeto – O campo da pesquisa, o fenômeno espetacular de interesse. Trajeto – As técnicas e princípios que buscam permitir o conhecimento do objeto por parte do sujeito, bem como a história que reúne o sujeito e sua opção pelo objeto. Sujeito – O pesquisador. Projeto – A proposta construída pelo pesquisador, que explicita o objeto do estudo pretendido, o trajeto que levou o sujeito a se interessar por ele e sua perspectiva de aproximação e pesquisa. 39

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Dos projetos Apetência – A qualidade, simultaneamente essencial e existencial, que justifica o interesse do sujeito em seu objeto e trajeto de pesquisa, sem a qual não se pode construir competência. Competência – O conjunto de capacidades, experiências e práticas, que pode permitir ao sujeito a plena consecução de seu projeto. Conclusão A proposição desse léxico é apenas preliminar, mas fruto de reflexão de uma boa dúzia de anos de pesquisa. Aqui se considerou o poder abstrato e mágico da palavra, bem como suas possíveis implicações ideológicas, ainda que – admitamos – a partir de nossos próprios preconceitos. Este léxico não levou, por exemplo, em conta, a palavra performance, que muitos colegas na etnocenologia utilizam. De fato, considero que essa palavra só contribui para a confusão epistemológica e metodológica na etnocenologia3. Prefiro, também, para designar o artista do espetáculo, ou o participante ativo da forma – ou arte – espetacular, palavras como aquelas usadas pelos próprios praticantes dos objetos de nossos estudos, quando se autodenominam de ator, dançarino, músico, brincante, brincador, sambador e outros, por exemplo. Prefiro sinceramente isso a usar outras palavras, como as que já foram sugeridas por outros (performer, actante, ator-dançarino ou ator-bailarino-intérprete, por exemplo). E à palavra performance, tão polissêmica (COHEN, 2006, p. 240-243), prefiro, sempre, usar espetáculo, função, brincadeira, jogo ou festa, conforme quem vive e faz, denomina aquilo o que faz e vive. 3

Eu próprio, ainda em 1995/ 1996, usei e justifiquei essa palavra (1996, p. 12-20), que se encontra na denominação de uma outra perspectiva aparentada à etnocenologia, performance studies, (SCHECHNER, 2002), que com ela não se identifica plenamente, mas que com ela pode eventualmente se confundir (BIÃO, 2007, p. 24), o que temos a pretensão de vir a evitar com a proposição deste léxico.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

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Um trajeto: muitos projetos*

Em apenas doze anos, desde a proposição da etnocenologia 1 , multiplicam-se às dezenas as possibilidades de trajeto – e de projetos futuros – para esta jovem perspectiva transdisciplinar, considerandose, simplesmente, o variado percurso acadêmico de cada um dos pesquisadores presentes nos diversos colóquios internacionais, desde então realizados, tanto no de instalação quanto nos de Cuernavaca (Morelos, México), Salvador (Bahia, Brasil) e Paris (França). A ideia de trajeto remete à articulação de um sujeito com seus objetos de interesse e com outros sujeitos, cujos interesses, ainda que parcialmente comuns, encontram-se na encruzilhada das ciências e das artes, onde múltiplos grupos de pesquisa formam-se e transformam-se, ao longo do tempo. É sobre um desses trajetos, fruto, flor e raiz de minha implicação pessoal, e profissional, que trata este pequeno ensaio, organizado, substancialmente, em quatro partes. Na primeira, intitulada “Caracterização geral do objeto (no Brasil)”, situo a etnocenologia no contexto histórico-geográfico brasileiro. Na segunda, *

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Publicado In: BIÃO, Armindo (Org.). Artes do corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia. Salvador: P & A, 2007. p. 21-42. A Maison des Cultures du Monde e a Universidade de Paris 8 Saint-Denis realizaram, na UNESCO, em Paris, nos dias 3 e 4 de maio de 1995, o Colloque de Fondation du Centre International d’Ethnoscénologie In: INTERNATIONALE DE L’IMAGINAIRE - NOUVELLE SÉRIE, 5, MCM/ Babel, 1995). A esse respeito, ver, em português: BIÃO, A. “Estética Performática e Cotidiano”. In: ______ . Performance, Performáticos e Cotidiano. Brasília: UNB, 1996. p. 12-20 In: ENCONTRO NACIONAL DE PERFORMÁTICOS, PERFORMANCE E COTIDIANO. Anais... Grupo Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance – Transe, [Brasília, 1995], dos quais também constam excertos do Manifesto da Etnocenologia (em francês Inn: Théâtre Public, n. 123, p. 46-48, 1995.) e BIÃO, A. ; GREINER, C., (Orgs.). Etnocenologia: Textos Selecionados. São Paulo: Annablume, 1998.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

“Concretização específica de objetos (na Bahia)”, informo, brevemente, e de modo comparativo, como, nesses doze anos, pesquisamos etnocenologia, na Universidade Federal da Bahia, principal instituição anfitriã do trajeto aqui tratado. Na terceira parte, “O trajeto teórico (no mundo)”, busco descrever os conceitos e noções que têm sido operacionais para nossas pesquisas, concluídas e em andamento, e, finalmente, na última parte, “Um projeto metodológico (na vida)”, resumo e sugiro algumas pistas relativas a um possível método para futuras pesquisas. Caracterização geral do objeto (no Brasil) A proposição da etnocenologia aparece no horizonte teóricometodológico de nosso tempo, de transição do século XX para o século XXI. Este Zeitgeist, anunciado pelas convulsões juvenis, artísticas, políticas, étnicas e de costumes, dos anos 19602, e mesmo anteriormente esboçado pela nova configuração cultural que se definia internacionalmente, no pós-guerra das duas décadas imediatamente anteriores, caracteriza-se pela explosão, em múltiplos níveis, de todo tipo de fronteiras. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o advento, mais ou menos simultâneo – e mais ou menos violento, de múltiplas proposições interdisciplinares, multidisciplinares e transdisciplinares, fragmentando os limites entre as diversas áreas de conhecimento, como, por exemplo, entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, e mesmo entre as ciências e as artes e, inclusive, mais especificamente, no âmbito destas, entre as artes visuais e as artes do espetáculo. É neste mesmo Zeitgeist que se inserem outras perspectivas aparentadas. Assim, aí também se conformam o interesse pelo espetáculo 3 dos estudiosos do campo das ciências humanas – e pela teatralidade na vida 2

3

Ver, por exemplo: BANES, Sally. Greenwhich Village 1963: avant-garde, performance e o corpo efervescente. Tradução de M. Gama. São Paulo: Rocco, 1999. Ver, por exemplo, de DEBORD, Guy. La société du spectacle (Buchet-Castel, 1971) e Commentaires sur la société du spectacle (LEBOVICI, 1988).

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Armindo Bião

cotidiana 4 , as etnociências, a etnometodologia 5 , os estudos da performance6 e a antropologia teatral7. Nesse contexto, a etnocenologia tem contribuído para a ampliação dos horizontes teóricos da pesquisa científica e artística, de um modo geral, e, de um modo mais específico, para o trabalho dos pesquisadores dedicados às artes do espetáculo. Nessas artes, não estão considerados somente o teatro, a dança, o circo, a ópera, o happening e a performance8, mas, sim, também, outras práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados, dentre os quais alguns os rituais, os fenômenos sociais extraordinários e, até, as formas de vida cotidiana, quando pensadas enquanto fenômenos espetaculares. No entanto, assim como as demais proposições congêneres, já citadas, a etnocenologia também tem contribuído para a confusão conceitual que vem caracterizando o campo das ciências do homem e das artes contemporâneas, inclusive, de modo ainda mais contundente, as pesquisas relativas aos objetos logo acima mencionados, tanto em seus aspectos teóricos quanto práticos e pragmáticos. Essas ambíguas contribuições possuem, assim, aspectos contraditórios, tanto positivos (o crescimento das possibilidades e perspectivas para a pesquisa) quanto negativos (o mal-entendido generalizado), que valem sempre ser levados em conta. 4

5

6

7

8

Ver, por exemplo, de GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life (Doubleday Anchor Books, 1959), de MAFFESOLI, Michel. La conquête du present (PUF, 1979) e, de GEERTZ, Clifford. Negara: the Theater State in Ninteenthcentury Bali. [S.l]: Princeton Univ. Press, 1980). Ver, GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. [S.l] :Prentice-Hall, 1967). Ver, SCHECHNE, Richardr. Perfor mance Studies, an introduction. (ROUTLEDGE, 2002). Ver, BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. Anatomie de l’Acteur ( Un dictionnaire d’anthropologie théâtrale . Tradução de: E. Deschamps-Pria, (Bouffonneries-Contrastes, 1985). No sentido de prática artística situada na interface das artes cênicas e visuais, aparentada ao happening, e não no sentido mais amplo que lhe é atribuído pelos estudos da performance.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

Por isso, e particularmente para tentar reduzir os aspectos negativos desse emaranhado conceitual, acredito necessário e útil, ainda na primeira parte deste trabalho, dedicada à caracterização geral do objeto “etnocenologia”, tentar identificar em que se assemelham e em que se distanciam essas proposições, sugerindo a organização do quadro tabela abaixo: Quadro 1: Etnocenologia Campos de saber que se relacionam com a etnocenologia

O que os aproxima

O que os distancia

As ciências humanas interessadas na teatralidade cotidiana e na metáfora do espetáculo

O reconhecimento da teatrali-dade cotidiana e da existência de fenômenos espetaculares, não necessariamente artísticos

O caráter teórico das ciências do homem, que busca, sobretudo, explicar e compreender as estruturas e modos da vida social, distanciando-se do caráter teóricoprático da etnocenologia, que busca reconhecer e promover as diferentes formas de espetáculo

As etnociências

O caráter de pesquisa científica que reconhece e valoriza a diversidade cultural humana

Os campos de investigação, distintos em cada etnociência, mesmo na etnomusicologia e na etnolinguística, apesar de essas possuírem intersecções com a etnocenologia, ao tratarem do corpo humano e de sua apresentação e representação coletivas

A etnometodologia

O reconhecimento e a valorização da necessidade de inserção (imersão) do sujeito no objeto da pesquisa, o que possibilita uma melhor compreensão interna desse objeto, de como os sujeitos nele envolvidos o pensam e conformam

A proposição da etnometodologia, de caráter claramente metodológico para o exclusivo âmbito da sociologia, distante da perspectiva claramente estética – e teórico – metodológica – da etnoce-nologia, que se situa no campo das diversas artes e formas de espetáculo

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Armindo Bião

Campos de saber que se relacionam com a etnocenologia

O que os aproxima

O que os distancia

A antropologia teatral

O interesse pela diversidade de práticas espetaculares, a dedicação à prática artística e à articulação entre teoria e prática

A ênfase da antropologia teatral na busca de princípios espetaculares universais, simultaneamente reafirmando o étimo teatro como referência universal, distanciando-se da ênfase da etnocenologia nas semelhanças e distinções das diversas artes e formas de espetáculo, com uma amplitude de referência etimológica (cena, corpo, espetáculo) simultaneamente maior e crítica do “teatrocentrismo”

Os estudos da performance

A articulação entre antropologia, estudos teatrais, teoria e prática, o interesse pela diversidade cultural e, parcialmente, a aceitação de uma perspectiva epistemológica que permite a conformação do objeto a partir do olhar do sujeito

Os estudos da performance vão do âmbito estético ao fenomenológico e ao dos aspectos antropológicos, sociais e culturais, enquanto a etnocenologia situa-se claramente no campo estético, do sensorial e dos padrões compartilhados de beleza9

Fonte: Autor

A etnocenologia, assim, teria muitos pontos de contato com algumas proposições do campo das ciências do homem, como a etnometodologia e as etnociências, em geral, a etnomusicologia e a etnolinguística, em particular, além da sociologia e da antropologia, interessadas na teatralidade cotidiana e na metáfora do espetáculo. E, de um modo ainda mais claro (e, do ponto de vista teórico-prático, talvez também 9

Segundo Renato Cohen, “[...], o estudo da performance desloca-se do campo estético para o da fenomenologia e dos aspectos culturais, antropológicos e sociais[...]”, na rubrica “Performance”. In GUINSBURG, J. et al (Org.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. Perspectiva, 2006. p. 240-243: ver p. 242.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

mais confuso), a etnocenologia se aproximaria da antropologia teatral e dos estudos da performance. No entanto, a etnocenologia, de modo bem visível distanciada das ciências do homem, distingue-se também da antropologia teatral, por valorizar os princípios característicos de cada forma, prática e comportamento espetacular, sem visar à identificação de um conjunto de princípios universais, e por interessar-se – e abrigar – criação e crítica, de modo integrado, mas não concomitante. A etnocenologia, também, se distingue dos estudos da performance, por sua clara opção pelo campo estético, compreendido simultaneamente como o âmbito da experiência e da expressão sensoriais e dos ideais de beleza compartilhados, e, ainda, por sua bastante ampla perspectiva transdisciplinar, que vai, por exemplo, das ciências da educação e da vida, como a pedagogia e a biologia, até as chamadas ciências exatas, como a etnomatemática – enquanto os estudos da performance já se constituem num campo transdisciplinar – ainda que mais restrito às ciências sociais, e, menos, numa ampla perspectiva transdisciplinar, tendo como campo o estético, como a etnocenologia. Visando a maior clareza possível – neste esforço de esclarecimento epistemológico, vale reafirmar o desejado caráter provisório10 desta nova transdisciplina, desde seu nascimento, e tentar situar a etnocenologia em termos de grande área de conhecimento, no quadro institucional brasileiro contemporâneo. Aqui, em termos estratégicos, socioeconômicos, geopolíticos e, sobretudo, conceituais, a etnocenologia inscreve-se na área das “Artes”, e não, por exemplo, na área das “Ciências”. Assim, de acordo com o que hoje é a classificação de referência da agência brasileira de fomento à pesquisa, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq, do Ministério da Ciência e Tecnologia11, estamos

10

Ver, a esse propósito, o próprio manifesto (Nota 1) e, também, BIÃO, A. “Aspectos Epistemológicos e Metodológicos da Etnocenologia: por uma Cenologia Geral”. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 1., 1999. Anais... Salvador: ABRACE, 2000. p. 364-367. 11 Consultar, a esse respeito, para maiores detalhes, a Tabela de Área do Conhecimento do CNPq, em: .

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no âmbito da grande área denominada “Linguística, Letras e Artes”, que, obviamente, compreende a área propriamente dita de “Artes”. É certo que a etnocenologia poderia, também de acordo com essa mesma classificação, inscrever-se nas grandes áreas das “Ciências Humanas” e das “Ciências Sociais Aplicadas”, mas a primeira opção fortalece nossa área das Artes, e, nela, os cursos de graduação e de pós-graduação, os grupos de pesquisa e a produção artística, contribuindo para legitimarmos nossa área de conhecimento, merecedora de financiamento e de reconhecimento institucional, constituindo-se num campo epistemológicometodológico autônomo, embora, certamente, não independente e isolado, mas, sim, integrado e transdisciplinar. Concretização específica de objetos (na Bahia) Buscando enfrentar a problemática que é a definição dos objetos da etnocenologia, originalmente descritos como as “práticas e os comportamentos humanos espetaculares organizados” (PCHEO) 12, posteriormente, eu próprio sugeri organizá-los em três subgrupos: artes do espetáculo, ritos espetaculares e for mas cotidianas, espetacularizadas pelo olhar do pesquisador. Mais recentemente, eu viria a atribuir a esses três conjuntos, ou subgrupos, a condição de serem, respectivamente, objetos substantivos, adjetivos e adverbiais, usando aqui, por minha própria conta, três classes gramaticais: substantivo, adjetivo e advérbio. Assim, substantivamente, seriam objetos da etnocenologia, no âmbito do primeiro conjunto de objetos, o que se compreende, em língua portuguesa (também em outras línguas, mas provavelmente de modo mais explícito, sobretudo, naquelas linguisticamente aparentadas ao português), como as diversas “artes do espetáculo”. Como não poderia deixar de ser, em nosso quadro cultural – dito ocidental, de matriz greco-

12

No manifesto já multicitado.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

romana (num contexto tanto de caráter profissional quanto de caráter amador), essas artes do espetáculo compreendem o teatro, a dança, a ópera, o circo, a música cênica, o happening, a performance e o folguedo popular, este último correspondente ao que Mário de Andrade denominou, no Brasil, de danças dramáticas13. Seriam, esses objetos, aqueles criados, produzidos e pensados, pelas comunidades nas quais ocorrem, como atos explicitamente voltados para o gozo público e coletivo, enquanto atos concretos de realização – reconhecíveis por todos como “arte”, em seu sentido o mais gratuito e simplificado, tendo como função precípua o divertimento, o prazer e a fruição estética (na acepção sensorial e de padrão compartilhado de beleza) – e, em última instância, o conforto comunitário menos compromissado com outras esferas da vida social, ainda que podendo compreender práticas profissionais e amadoras de seus artistas14 , remuneradas. Também seriam objetos de interesse da etnocenologia, o que denominei de ritos espetaculares, ou, dito de outra forma, aqueles fenômenos apenas adjetivamente espetaculares. Esses fenômenos, sem possuírem, de modo

13

Concordando com as considerações críticas de Edison Carneiro, a propósito da opção de Mário de Andrade, prefiro a designação de folguedo à de danças dramáticas, esta sendo mais restrita que aquela. Ver, a esse respeito, de Edison Carneiro, sobretudo, Folguedos tradicionais, 2. ed. (FUNARTE/ INF, 1982), mas também Samba de umbigada (MEC, 1961). 14 Vale ressaltar que, em português, no âmbito das artes do espetáculo estritamente profissionais, no qual se encontram artistas que vivem de sua arte, ganhando a vida com suas atividades nesse mesmo âmbito, o léxico habitualmente utilizado remete a trabalho, enquanto, no campo das práticas amadorísticas, nas quais seus participantes (artistas) também podem ser remunerados, mas ganham a vida no exercício de outras profissões, fora do âmbito das artes do espetáculo, o léxico habitual inclui palavras como brincar, brincadeira, brinquedo, brincante e brincador. Esta é mais uma razão por preferirmos a designação de folguedo, para esse subconjunto de objetos substantivos da etnocenologia. Curiosamente, em outras línguas, o léxico relativo ao lúdico encontrase, mesmo no âmbito do exercício profissional, por exemplo, do teatro : em inglês to play, em francês jouer, em alemão spiellen.

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Armindo Bião

explícito e cabal, todas as mesmas características acima descritas, mormente no que tange à gratuidade, ainda assim, envolvem, em sua realização, também concreta e coletiva, formas sociais de representação, aparentadas às do teatro e às da ópera, por exemplo, formas de padrões corporais ritmados, como os compartilhados com a dança e a música cênica; formas de brincadeira comunitária; assim como certos folguedos, e formas de ações coletivas, envolvendo o prazer do testemunho do risco físico, como as artes circenses, por exemplo. É o campo dos rituais religiosos e políticos; dos festejos públicos; enfim dos ritos representativos ou comemorativos – na terminologia de Émile Dürkheim15. Nesse grupo de objetos, ser espetacular implicaria uma qualidade complementar, imprescindível, decerto, para sua conformação, mas não substantivamente essencial. É certo que distinguir, de modo perfeito, esses dois primeiros grupos, um de objetos substantivamente espetaculares e outro de objetos adjetivamente espetaculares, é um exercício teórico-conceitual complexo e delicado. No entanto, consideremos, como é hábito na construção epistemológica, e mesmo na comunicação humana mais comezinha, poder distinguir, desde um ponto de vista apenas teórico, esses dois grandes grupos e admitir a possibilidade de interfaces, de cruzamentos e de transgressões de fronteira, e, sempre que assim for o caso, nomear e descrever esse pertencimento, talvez duplo, ou não claramente uno, como se verá logo a seguir. Finalmente, seriam, adverbialmente, objetos espetaculares, aqueles que comporiam o terceiro grupo de objetos da etnocenologia, os fenômenos da rotina social que podem se constituir em eventos, consideráveis, a depender do ponto de vista de um espectador, como espetaculares, a partir de uma espécie de atitude de estranhamento, que os tornaria extraordinários, para um estudante, um estudioso, um curioso, um

15

Ver DÜRKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. [S.l]: Quadrige; PUF, 1985. p. 542-546.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

pesquisador, enfim, um grupo de interessados em pesquisá-los. Isto nos diferencia da perspectiva de Jean-Marie Pradier, exposta em nosso manifesto fundador, por exemplo, bem como da perspectiva de Chérif Khaznadar16, exposta em sua comunicação ao III Colóquio Internacional de Etnocenolgia, realizado, em Salvador, Bahia, Brasil, em 1997, que excluem esse terceiro grupo de objetos do campo da etnocenologia. A partir desta definição, esquemática e extremamente simplificada, de três conjuntos de objetos da etnocenologia, considerados substantivamente, adjetivamente e adverbialmente como espetaculares, busquei organizar, retrospectivamente, as pesquisas que, meus colegas, estudantes e eu desenvolvemos na Bahia, ao longo dos últimos anos, e que conformaram o trajeto da etnocenologia de que trata o presente trabalho. Na verdade, selecionei, de modo mais ou menos arbitrário, 22 trabalhos17, que me pareceram mais pertinentes para essa discussão epistemológica, quanto à constituição de objetos de estudo, segundo a sugestão de classificação inspirada na gramática, aqui apenas esboçada. Assim, sugiro a organização do quadro da tabela abaixo, em quatro colunas, dedicadas, respectivamente, aos objetos, trajetos, sujeitos e projetos de cada uma dessas pesquisas, eventualmente reunidas em uma só, em havendo continuidade e contiguidade, por exemplo, entre dois projetos de pós-graduação, um de mestrado e outro de doutorado.

16

Ver KHAZNADAR, Chérif. “Contribuição para uma definição do conceito de etnocenologia”. Tradução de: S. Guedes. In: BIÃO, A ; GREINER, C. (Orgs.). Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999. p. 55-59. 17 Além das pesquisas que coordenei pessoalmente, as demais, ainda que contando com minha orientação acadêmica, foram realizadas por Adailton Silva dos Santos, Alexandra Gouvêa Dumas, Antonio Jorge Vítor dos Santos, Eloísa Brantes Bacelar Mendes, Érico José Souza de Oliveira, Euvaldo Moreira Mattos, Giselle Guilhon Antunes Camargo, Isa Maria Faria Trigo, Jorge das Graças Veloso, Josias Pires Neto, Larissa Latif Plácido Saré, Lúcia Fernandes Lobato, Makários Maia Barbosa, Maria de Fátima Barretto Bastos, Mary Weinstein, Renata Pitombo Cidreira, Sonia Maria Costa Amorim e Washington Drummond.

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Armindo Bião

Quadro 2: Conjuntos de objetos da etnocenologia Objeto

Trajeto

Sujeito

Projeto

ADVERBIAL: as matrizes estéticas da teatralidade e da espetacularidade da Bahia contemporânea

Articulação ensino/ pesquisa/ extensão eintegração graduação/ pósgraduação, no campo das artes cênicas, com leituras dramatizadas, solos poéticos, encenaçõesE palestras com demonstrações

ator, encenador, professor e gestor

análise de excertos da literatura barroca baiana e de jornais locais, sobre imaginário, arte, sexualidade, costume, gênero e cor; e definição das matrizes da oralidade – e de outras correlatas – na formação da cultura baiana contemporânea

SUBSTANTIVO: o teatro de cordel na Bahia e em Lisboa, enquanto um teatro de profissionais

articulação ensino/ pesquisa/ extensão e experimentação na formação de atores com máscaras e dramatização de folhetos de cordel

ator, encenador, professor e gestor

encenação e registro de corpus de folhetos de cordel brasileiros e de lundus; estudo de espetáculos do teatro de cordel em Salvador, BA. e de folhetos e entremezes do teatro de cordel português

SUBSTANTIVO: oralidade, imprensa e cena lusófonas na Bahia e na Europa

construção de corpus documental de textos teatrais impressos, leituras dramatizadas e etnocenologia

ator, encenador, professor e gestor

análise e experimentação das relações entre oralidade, cena e impressos

SUBSTANTIVO: o reisado numa comunidade rural feminina negra da Bahia

inserção na comunidade e etnografia densa

atriz, encenadora e professora

descrição, análise, registro e produção audiovisual de ritual e folguedo

SUBSTANTIVO: ternos de reis da Lapinha em Salvador, BA.

inserção na comunidade, pesquisa-ação e criação artística

atriz, encenadora e professora

recriação de folguedo tradicional em novo contexto espaciotemporal

SUBSTANTIVO E ADJETIVO:a dança e o cortejo coreográfico do Male Debalê no carnaval da Bahia

integração da universidade com a comunidade, observação participante e história das mentalidades

dançarina, coreógrafa, professora e gestora

ressignificação da memória africana na Bahia, criação e produção audiovisual e de cortejo coreográfico carnavalesco

ADJETIVO:tribos de roqueiros tatuados na Bahia

inserção na comunidade, criação musical e jornalismo

músico e professor

descrições e análises de comportamentos locais e globais

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

Sujeito

Projeto

SUBSTANTIVO: a música afrocarnavalesca da Bahia

Objeto

inserção na comunidade, na comunicação e na criação artística

professor e diretor teatral

documentação, descrições e análises de uma nova reconfiguração da cultura baiana

ADVERBIAL: práticas corporais tribais contemporâneas relativas à moda

antropologia do imaginário e sociologia compreensiva do atual e do cotidiano

jornalista e professora

descrições, comparações e análises

SUBSTANTIVO: folguedos tradicionais da Bahia

reportagens audiovisuais, interesse pelos estudos teatrais e a etnocenologia

jornalista, videasta e professor

realização de 15 vídeodocumentários, reportagens sobre folguedos típicos da Bahia

ADVERBIAL: sotaques e gestualidade no telejornalismo da Bahia

reportagens escritas sobre patrimônio cultural e etnocenologia

dançarina e jornalista

descrições e análises de características identitárias de tele jornalistas

SUBSTANTIVO: máscaras carnavalescas do interior da Bahia profunda

psicologia da cultura e etnocenologia

psicóloga e professora

caracterização, descrição e análise da dinâmica contemporânea das máscaras do carnaval de Rio de Contas

SUBSTANTIVO: oralidade e gestualidade no Centro-Oeste brasileiro

inserção na comunidade, etnografia densa e criação dramatúrgica

ator, dramaturgo, encenador e professor

encenação de espetáculo teatral, produção áudiovisual de folguedo tradicional rural e análises

SUBSTANTIVO: treinamento de atores com máscaras expressivas na Bahia

integração com a comunidade artística, confecção e aplicação de técnicas de máscara neutra e expressiva, criação de tipos, improvisações

atriz, psicóloga e professora

encenação e produção audiovisual, descrição e análise do processo de criação

ADJETIVO: estados de corpo e de consciência dos promesseiros do Círio de Nazaré de Belém do Pará

observação participante, inserção no fenômeno e etnografia densa

atriz, documentação, produção bacharel em audiovisual e análise comunicação

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Trajeto

Armindo Bião

Objeto

Trajeto

Sujeito

Projeto

SUBSTANTIVO E ADJETIVO: conhecimento e profissionalismo na prática sufi dos dervixes giradores da Turquia

etnologia da dança, social e etnografia densa professora einserção na prática musical e coreográfica dançarina e

documentação, produção audiovisual e análise

SUBSTANTIVO: o espetáculo de um cavalo marinho da zona da mata pernambucana

etnografia densa e construção de cadernos de diretor

ator, encenador e professor

transcrição do texto oral, dos figurinos e marcações cênicas, produção audiovisual e análise

ADVERBIAL: signos femininos, masculinidade, teatralidade e erotomania do “baiano”

clínica, entrevistas e etnografia densa

psicanalista

composição de histórias de vida, descrição e análises

atriz e jornalista

documentação, descrições e análises

SUBSTANTIVO E estudos comparados e entrevistas ADJETIVO: técnicas teatrais no telejornalismo e técnicas da mídia na teledramaturgia brasileira SUBSTANTIVO: o teatro de cordel profissional em Salvador, Bahia

história documental e entrevistas

ator, encenador e professor

descrição e análise de corpus de espetáculos de cordel produzidos em Salvador

INFINITIVO18: a produção teórica em etnocenologia na França e no Brasil (Bahia)

identificação de teses e publicações produzidas e entrevistas

ator e professor

constituição docorpus de referência, identificação conceitual e análise epistemológicometodológica

SUBSTANTIVO: dois folguedos lusófonos inspiradas no ciclo carolíngio, na África e na América (Bahia)

observação participante, inserção na comunidade e entrevistas

atriz e professora

descrições, comparações, análises, documentação e produção audiovisual

Fonte: Autor 18

Trata-se de um projeto eminentemente de ordem histórico-epistemológica, cujo objeto é a própria etnocenologia.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

Certamente, o leitor e, sobretudo, os pesquisadores implicados com os projetos incluídos nessa tabela, perceberão que aqui se expõe um trajeto decerto coletivo, mas apresentado a partir de uma perspectiva estritamente individual, a minha, claramente sujeita a equívocos e a idiossincrasias. Nesse trajeto, dinâmico e ainda muito jovem, nada pode ser considerado como definitivo. Trata-se, sem dúvida, de uma primeira proposição de organização, que poderá ser revista a partir das críticas e aportes que porventura apareçam e serão bem-vindos. Contudo, já poderíamos arriscar algumas análises sobre esse esforço de síntese e de comparação. Por exemplo: predominam projetos que tratam de objetos “substantivos”, 12 em 22 ou 54,5%; há apenas quatro projetos, ou 18,2%, com objetos “adverbiais”; há, também, apenas três projetos, ou 13,6%, cujos objetos podem ser considerados simultaneamente substantivos e adjetivos, o que, conforme anunciado aqui anteriormente, é um indicador da complexidade de distinção entre essas duas categorias; e, finalmente, há somente dois projetos, ou 9,1%, cujos objetos são exclusivamente “adjetivos”, o que, graças à delicadeza da fronteira entre as categorias substantiva e adjetiva, se não minimiza ainda mais essa última categoria ao menos a sustenta como categoria, onde ser espetacular é uma qualidade simplesmente acessória, embora intrínseca. Nesse panorama, ainda contido num quadro de conteúdos e contornos temporários, o fato dos objetos substantivos destacarem-se (somandose os 12 exclusivamente dessa categoria com os três simultaneamente da categoria substantiva e adjetiva, seriam 15 ou mais de 68% do conjunto) é muito provavelmente correlato com o fato de serem (ou de terem sido), em sua grande maioria (mais de 77%), os sujeitos desses projetos, artistas eles mesmos do campo das artes do espetáculo, 14 originários do teatro e 3 da dança. Ainda que se considere que os 14 da área do teatro sejam, de fato, 11, posto um deles aparecer, nessa tabela com três projetos, e, mais um, em dois outros projetos, a relação seria de 11, 58

Armindo Bião

dessa área, mais três, da área de dança, ou 14, para o total de 19, ou 73,7%, o que continua a ser muitíssimo expressivo. Essa primeira análise revela também o forte predomínio de objetos de estudos correlatos com o próprio local de origem dessas pesquisas, a Bahia, 13 em 22, ou mais de 77,2%, ainda que cinco desses projetos inscrevam-se numa perspectiva de comparação com o estado de seus objetos na Bahia, em Portugal, na França e na África, que, não por acaso, são três referências fundamentais para a etnocenologia na Bahia. No entanto, a existência nesse corpus em análise de um projeto cujo campo de pesquisa se encontra na região Norte do país (Pará), de outro situado na região Centro-Oeste (Goiás), de mais um na região Nordeste (Pernambuco), de um outro em nível nacional, na grande mídia da televisão, e, ainda, de mais um, fora do Brasil, entre a Europa e a Ásia (Turquia), revela a vocação desse trajeto da etnocenologia encontrar-se fortemente ancorado na Bahia, mas também de navegar e expandir-se para outras regiões e continentes. O trajeto teórico (no mundo) Do ponto de vista epistemológico, além de um conjunto de noções de referência conceitual, que nomearemos a seguir, vale considerar quatro condições desejáveis para o bom, belo e útil desenvolvimento da pesquisa: a serenidade, a humildade, o humor e o amor. Vale, também, assumir a necessária implicação do sujeito, responsável pela generosa construção de um discurso sobre o trajeto que liga objetos a sujeitos, numa busca poética, comprometida e libertária. A experiência e a expressão dos artistas, provenientes das mais diversas formas de espetáculo, singulares e distintas nas culturas as mais variadas, somadas à experiência de sistematização de processos de trabalho, dos encenadores, atores, coreógrafos, dançarinos e outros artistas do espetáculo, que convivem, em seu cotidiano, com o ambiente acadêmico, 59

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

servem de suporte para a constituição do horizonte teórico da etnocenologia. Esse horizonte também pode, conforme já sugerimos, beneficiar-se das contribuições da antropologia teatral, dos estudos da performance e das ciências humanas e sociais aplicadas, particularmente em suas vertentes dedicadas à antropologia do imaginário19, à sociologia compreensiva do atual e do cotidiano20, à descrição etnográfica densa21, à história de vida22, à história oral e à história das mentalidades23 e, finalmente, aos estudos da literatura oral24. Vale nomear as noções epistemológicas de referência para a pesquisa em etnocenologia, dentro do trajeto aqui brevemente esboçado: • Alteridade, identidade, identificações, diversidade, pluralidade e reflexividade – conjunto de noções que remete à consciência das semelhanças e diferenças entre indivíduos, grupos sociais e sociedades, por um lado e, por outro, à capacidade humana de refletir a realidade e sobre ela, de modo consciente, experimentando e exprimindo sensibilidade, suscetibilidade, opções de prazer, beleza, desejo e conforto; nesse primeiro conjunto de noções, vale ressaltar a emergência da noção de “identificação”, como uma construção temporária, 19

Ver, DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de l’1imaginaire Introduction à l’archétypologie générale. 9. ed., Bordas, 1969. 20 Ver, MAFFESOLI, Michel. La connaissance ordinaire, Précis de sociologie compréhensive. Méridiens-Klincsieck, 1985. 21 Ver, GEERTZ, Clifford. “Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura” Tradução: F. Wrobel. In: _____. A interpretação das culturas, Zahar, 1978. 22 Ver, FERRAROTTI, Franco. Histoire et histoires de vie. Méridiens, 1983 e, de QUEIROZ, Maria Isaura P. et al. Experimentos com Histórias de Vida, Vértice, 1988. 23 Ver, JOUTARD, Philippe. “L’histoire orale”. In: BURGUIÈRE, A., dir., Dictionnaire des sciences historiques, PUF, 1986 e, de DUBY, Georges. “L’histoire des mentalités”, L’Histoire et ses méthodes, In: Encyclopédie de la Pléiade, Paris, 1961, p. 937-966. 24 Ver, ZUMTHOR, Paul. Introduction à la poésie orale, Seuil, 1983 e SANTOS, Idelette Muzart-Fonseca dos. Memória das vozes: cantoria, romanceiro e cordel. Tradução de: M. Pinheiro, SCT/ FUNCEB, 2006.

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existencialista e dinâmica, contraposta à de “identidade”, como uma categoria definitiva, essencialista e estática, que se encontraria em crise na contemporaneidade25; • Teatralidade e espetacularidade – o par de categorias ideal-típicas referente à convivência em sociedade; sendo a primeira aplicada às pequenas interações rotineiras, nas quais os indivíduos agem em função do interlocutor (para o olhar do outro, como no sentido etimológico do teatro), de modo mais ou menos consciente e confuso, sem distinção clara entre “atores e espectadores”, por desempenharem, aí, todos, simultaneamente os dois “papéis”; e a segunda aplicada às maiores interações extraordinárias, quando coletivamente a sociedade cria fenômenos organizados para o olhar de muitos outros, que dele têm consciência clara como “atores” ou “espectadores”26; • Estados de corpo e estados de consciência27 – o interesse pelos estados “alterados” de consciência nos rituais de possessão e cultos religiosos é uma constante no âmbito da antropologia, que, eventualmente, alude ao teatro, como o faz, por exemplo, Michel de Leiris 28 ; mais contemporaneamente, a relação entre artes e formas de espetáculo e estados modificados de consciência tem sido ressaltada29, levandonos a sugerir que o treinamento corporal e mental de dançarinos e atores, por exemplo, gera, não apenas estados modificados de corpo, relembrando as reflexões de Marcel Mauss30 sobre as técnicas de corpo, mas também gera estados modificados de consciência; • Transculturação e Matrizes Estéticas 31 – o conceito sugerido por Fernando Ortiz aproxima-se decerto de algumas possíveis leituras de outros conceitos correlatos mais antigos, como o de aculturação, por exemplo, mas sua proposição, cunhando um novo termo, reafirma o fenômeno do contato cultural como gerador de novas formas de cultura, distintas das que lhes deram origem, o que remete ao desejo de identificação de suas matrizes culturais, fenômeno que só vale pesquisar, nunca é demais reafirmar, considerando-se certa reconstrução constante e dinâmica da tradição. 61

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O horizonte teórico-metodológico aqui esboçado insere-se, como não poderia deixar de ser, no mesmo trajeto de que trata este ensaio, e que é apenas um, dentre muitos outros possíveis. E é exatamente assim, que aqui se compreende a noção de trajeto, retomada na última parte deste trabalho, como a necessária e imprescindível articulação entre o sujeito e o objeto, retomando, por minha própria conta, as ideias de “objetivação do subjetivo” de Erwin Panofsky, de “trajeto antropológico” de Gilbert Durand e de “trajetividade” de Augustin Berque32.

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Sobre identidade e identificação, ver, de MAFFESOLI, Michel. Le temps des tribusdéclin de l’individualisme dans les sociétés de masse, MéridiensLincksieck, 1988 e, sobre reflexividade, ver, de GARFINKEL, H., op. cit. (Nota 5), de Victor Turner, Process, performance and pilgrimage (A study on Comparative Symbology), Concept, 1979, p. 65 e, de SCHÜTZ, Alfred. Le chercheur et le quotidien. Tradução de: A. Noschis-Gilliéron Méridiens-Klincksieck, 1987. p. 114 e seguintes. 26 Propus essas categorias em minha tese de doutorado Théâtralité et spectacularité: une aventure tribale contemporaine à Bahia, orientada por Michel Maffesoli (Paris 5 Université René Descartes, Sorbonne, 1990); ver, também de minha autoria, “A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade”. In: Cadernos do CRH, n. 15, p. 104-110,1991. 27 Ver BOURGUIGON, Érika. (Ed.). Religion, Alterde States of Consciousness and Social Change, Ohio State Press, 1973 e, de LAPASSADE, Georges. Les états modifiés de conscience, PUF, 1987 e, na minha tese, citada na Nota anterior, “Un état de conscience”, p. 132-142. 28 Ver, LEIRIS, M. La possession et ses aspects théâtraux chez les éthiopiens de Gindar, Plon, 1958. 29 Ver, entre outras contribuições publicadas nessa obra, a de PIMPANEAU, Jacques. “Les liens entre lês cultes médiumniques et lê théâtre, entre les chamans et les acteurs”. In: Actes des Rencontres Internationales sur la fête et la communication, Serre/ Nice-Animation, 1986. 30 Ver, MAUSS, M. Sociologie et anthropologie, 9. ed., Quadrige-PUF, 1985. 31 Sobre transculturação ver, de ORTIZ, Fernando. “Contrapunteo cubano del tabaco y del azucar”, In: Taller de Letras, 2003 e, de MANDRESSI, Rafael. Transculturation et Spectacles Vivants en Uruguay 1870 - 1930 - Une Approche Ethnoscénologique, tese de doutorado aprovada em Paris 8, Saint Denis, 1999; sobre matrizes culturais, ver, de BIÃO, Armindo. “Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade”. In: PEREIRA, A . et al (Orgs.). Temas em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade. São Paulo: Annablume, 2000. p. 15-30. 32 Ver, PANOFSKY, E. La perspective comme forme symbolique, Minuit, 1975, p. 158-170; DURAND, G., op. cit., p. 38 et seq. e BERQUE, A., 1986. p. 147-153.

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Um projeto metodológico (na vida) Na perspectiva do trajeto aqui tratado, começou-se a esboçar uma estrutura para futuros projetos de pesquisa, com base, inicialmente, na escolha e descrição de um objeto de estudo, a partir de uma reflexão pessoal sobre as apetências e competências do sujeito, seguidas da definição e experimentação de um possível trajeto teórico-metodológico e da definição, desde esse ponto de vista, do sujeito da pesquisa, concluindo-se, por fim, pela elaboração do projeto. Nele, o pesquisador deverá indicar as técnicas que presume serão úteis para o pleno desenvolvimento do trabalho. E aí haveria dois conjuntos principais de técnicas a considerar. Há as técnicas, ou instrumentos, de pesquisa, que podem ser tomados de empréstimo às ciências do homem, aqui brevemente citadas. Aí se encontram as entrevistas (abertas, fechadas, com e sem roteiro estruturado etc), as observações participantes, as descrições etnográficas densas, os cadernos de pesquisa de campo, as histórias de vida, as coletas e transcrições de textos da literatura oral, os registros fonográficos e audiovisuais. Nesse âmbito, o pesquisador artista, proveniente do campo das artes do espetáculo, só muito dificil e excepcionalmente poderá se equiparar aos profissionais da antropologia, das perspectivas teóricas e teóricometodológicas de referência33, posto que esses as praticam por mais tempo – e também recebem maior preparação teórica, prática e pragmática específica – técnicas como as das descrições etnológicas densas, por exemplo. Já o pesquisador das artes cênicas, para quem essas técnicas são apenas complementares às específicas de sua própria área de conhecimento e de atuação, compensa o seu menor tempo de prática e de formação específicas, com sua “competência única” (voltando a usar um jargão da etnometodologia), identificada por diversos 33

Um caso exemplar é a obra MARTINS, Leda. Afrografias da Memória : o Reinado do Rosário no Jatobá (Perspectiva/ Mazza, 1997), que, sem se inserir no âmbito da etnocenologia (da qual não há menção na obra), pode inspirar muitas pesquisas nessa perspectiva.

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examinadores de suas teses e dissertações, de observar detalhes relativos à expressão corporal e vocal, movimentação e caracterização dos integrantes de seu objeto de estudo, invisíveis para pesquisadores com experiência restrita às ciências humanas. O outro conjunto de técnicas e instrumentos de pesquisa resulta da adaptação e da construção de novas técnicas, no âmbito mesmo das artes do espetáculo, informadas principalmente pela experiência dos artistas no registro de seus processos e projetos de criação, ou seja, na expressão sistemática de sua própria experiência. Nesse âmbito encontram-se os cadernos de direção, os diários de ator e as anotações para caracterização de personagens, para construção de cenários e para confecção de adereços, por exemplo. Além disso, pode-se pensar em buscar inspiração, para a constituição desse conjunto de técnicas e instrumentos de pesquisa para as artes do espetáculo, nos relatórios de pesquisa e em seus respectivos anexos, particularmente nas teses e dissertações de pós-graduação de etnocenologia, e nos próprios resultados de trabalhos publicados, que também se reclamem pertencer ao espectro de pesquisas em etnocenologia. Destaque-se, no âmbito desse segundo conjunto de técnicas e instrumentos de pesquisa, principalmente para futuros projetos que contenham criações artísticas em seu trajeto e/ ou que prevejam criações artísticas em seus resultados, a importância de trabalhos similares já realizados. Por exemplo, voltando a apreciar o conjunto de dados contidos na tabela comparativa de projetos aqui apresentada, percebe-se que oito dos 22 trabalhos listados, ou mais de um terço desse total, 36,4%, inscrevem-se mais claramente na vertente de pesquisas que aliam teoria científica e prática artística, reflexão crítica e criação (ainda que outros tenham usado a experiência de sistematização do trabalho artístico em seus projetos, cuja caracterização é exclusivamente teórico-crítica). São esses os trabalhos similares que valem ser conhecidos pelos pesquisadores interessados em aliar criação e crítica em seus futuros projetos. 64

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É fato que projetos de pesquisa envolvendo criação artística demandam um planejamento extremamente meticuloso, incluindo variantes de difícil controle, posto implicarem sempre maior volume de recursos humanos, financeiros e materiais do que os projetos de pesquisa, digamos, mais tradicionais, nos cursos de pós-graduação brasileiros, mesmo na área das artes do espetáculo, que se caracterizam, exclusivamente, por seu aspecto crítico-teórico. Essa outra vertente, crítico-criativa, ainda que já algo expressiva, do ponto de vista estatístico, ainda permanece menos representativa, do ponto de vista quantitativo, que a predominante, de projetos que não abrigam em seu trajeto, nem em seu conjunto de resultados, qualquer nova encenação ou outra forma de espetáculo. No entanto, essa menor representatividade numérica é relativamente compensada pelo também algo expressivo volume de produtos audiovisuais, das pesquisas produzidas no âmbito do trajeto descrito no presente trabalho, e que repetem os mesmos indicadores, ou seja, oito em 22 dos trabalhos listados, ou mais de um terço desse total, 36,4%. Assim, o caráter de fenômeno vivo, ou “ao vivo”, das artes do espetáculo afirma-se nesse trajeto por seus resultados de prática artística usufruída ao vivo – e devidamente registrada – e de prática artística registrada ao vivo e usufruída através de um produto audiovisual, de modo também devidamente captado. Antes de concluirmos, vale ainda uma reflexão, ainda que extremamente breve e arriscada, sobre a expressão francesa “spectacle vivant”34, que, em nossa opinião, traduz-se mal para “espetáculo vivo”. Na verdade, talvez fosse melhor como tradução a expressão “espetáculo ao vivo”, para designar aquele fenômeno que ocorre num mesmo tempo/ espaço compartilhado por artistas e público e que se constitui no cerne dos objetos de estudo da etnocenologia. O fato eventual dele também ser compartilhado por outros artistas ou espectadores, ao mesmo tempo, mas em espaços distintos, é efetivamente apenas acessório. No entanto, 34

Ver, a esse propósito, de PRADIER, Jean-Marie. “Os estudos teatrais ou o deserto científico”. Tradução de: A . Pereira. Repertório Teatro & Dança, [S.l.], n. 4, 2000, p. 38-55.

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aí se insere a problemática da relação das artes do “espetáculo ao vivo” com os meios audiovisuais, mais um campo arriscado, também merecedor de reflexões, repleto de mal-entendidos e de polêmicas. Em nossa perspectiva, esses meios interessam, sim, à etnocenologia, sempre que registrem “espetáculos ao vivo” ou sempre que com eles se articulem, de algum modo, conforme mais uma leitura da tabela de 22 trabalhos que aqui apresentamos pode revelar. Conclusão Este ensaio revela um momento de um trajeto, de apenas um dos inúmeros possíveis e reais trajetos da etnocenologia, que poderão contribuir para a construção de um paradigma científico compartilhado, internacionalmente, por um grupo de pesquisadores e artistas. Trata-se, sem dúvida, de uma, simultaneamente, humilde e pretensiosa contribuição. Mas, também, trata-se de uma proposição sincera e otimista quanto à possibilidade de convivência, nesse novo paradigma, de coincidências, diferenças, contradições e debates, condição indispensável para o exercício profícuo da criatividade científica e da criação artística.

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Ah que culpa enorme, imensa, grande*

Boa tarde a todas e a todos, agradeço o convite da colega rainha e amiga Leda Martins, aplaudindo em seu nome, nos meus modos, as instituições, que sem dar trégua, estão conosco nesses bons confins. Para tratar aqui deste objeto, por 10 minutos peço a atenção, começando a falar deste sujeito, para bem seguir neste trajeto, de pesquisa, arte e de gestão, lá na Bahia, de onde abro o peito.

Em primeiro lugar, reconheço que sou meu corpo e minha língua, esta, o português, última da família latina a formar-se, muito marcada pela oralidade celtibera e lusófona, que no Brasil bebeu jurema, garapa, jurubeba, mingau, sangue e muito igarapé tupi, além do dendê, que veio da África e da água-de-coco, que veio da Índia. Servindo para expressar, exprimir, saborear e saber, a língua, as línguas são cheias de ditos, nãoditos, subentendidos, mal-entendidos, malditos e benditos, fontes de conhecimento e de muita confusão. Daí a bela formula italiana traduttore, traditore. Em segundo lugar, identifico-me como um corpo de baiano de Salvador, de mãe de matriz cabocla com marcas africanas, do litoral, e de pai do agreste, do sertão, de matriz também cabocla com marcas luso-judeo-

*

Comunicação para a Mesa Redonda Artes e Mercados. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE PERFORMANCE, 5., 2005, Belo Horizonte. Anais... (13. mar. 2005, inédita).

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mouro-cristãs. Em minha primeira infância, vi meus pais converteremse ao espiritismo ortodoxo, positivista, francês, que se queria uma filosofia, de bases científicas e consequências religiosas. Aos 10 anos, mandaramme para um colégio militar. Aos 15, desconfortável pelo meu entorno, reuni os estímulos, até então recebidos no seio da família, dos dramas católicos e da literatura de cordel, bem como dos rituais e rotinas de matriz banto e sudanesa, que podia perceber em minha cidade e jogueime inteiro no teatro, na experiência e expressão vocal e corporal, que passaria a ser o meu conforto. Aos 20 anos, vivi o choque contracultural, após três interpelações da ditadura, de viajar de ônibus de Salvador para o Rio de Janeiro, de navio daí para Lisboa e de carona de Lisboa a Londres, onde dormi na rua, roubei comida, bati tapete e convivi com artistas baianos – entre outros – maravilhosos. Para mim, foi a volta ao mundo, em apenas 80 dias, e, de volta à Bahia, foi mais uma vez o teatro que me confortou, e a pesquisa e a escritura, que me deram sobrevivência. Aos 30 anos, com bolsa da Fundação Fulbright, fui estudar interpretação teatral em Minneapolis, onde morei – e namorei – na maior comunidade indígena urbana dos EUA. Foram quase três anos de contato com as identidades ojibuê, meskwaki, hopi e, também, afro-americana, esta representada por uma pequeníssima comunidade na Mini Apple. De volta a Salvador, sempre no teatro e em universidades, já com o diploma de Master of Fine Arts, preparei-me para o doutorado em antropologia do teatro e da teatralidade na Sorbonne, onde vivi quase cinco anos – e completei os meus 40 anos, vivendo bem identificado junto à comunidade de judeus pied noirs de Paris. Voilà. O terceiro momento deste trajeto metodológico é minha afirmação seguinte: talvez, eu, como muitos outros seres humanos, talvez como todos e todas, de acordo com os mais recentes estudos do genoma humano, talvez seja eu descendente de uma pequena família que se consolidou, há milhões de anos no centro-sul do continente africano e que teria gerado sucessivas proles, que, migrando e adaptando-se às 72

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diferentes regiões do globo terrestre, foram ficando negras, brancas, amarelas, vermelhas, multicores enfim, repito, eu, que me declaro BAIANO, não posso falar de identidade, nem mesmo de identidades, no plural, aliás, no plural, e nunca no singular, só posso falar de identificações, sucessivas, simultâneas, eventualmente contraditórias, mas todas sinceras, com fé vital e fé cênica, talvez por isso ser ator me conforte tanto. Aliás, identifico-me com Zelig, aquele personagem de Woody Allen, que se transformava em sósia de seus interlocutores. Em quarto lugar, chegando agora ao meu objeto, Artes e Mercados, lembro que o fenômeno da Commedia dell’Arte pode ser traduzido, sem muita traição, por teatro profissional. Refiro-me aos artistas, os primeiros, na Europa, a viverem do seu trabalho teatral, apresentando-se em feiras, espaços de mercados públicos e em ambientes privados, que viriam a gerar a moderna arquitetura teatral. Ora, sabe-se da longa história de estigma contra o trabalho no Brasil e contra o teatro, aqui e também na Europa. Talvez por isso os primeiros elencos profissionais brasileiros fossem compostos por negros e mulatos, nos séculos XVIII e XIX. Talvez por isso, também na Europa, os judeus, impedidos de possuir terras ou prestígio social, teriam se dedicado tanto ao mercado, ao comércio e ao teatro. Não é à toa que a presença dos judeus é tão expressiva no teatro profissional europeu e norte-americano e no cinema hollywoodiano, por exemplo, e que os afro-americanos, convertidos ao cristianismo na América do Norte, onde aliaram sua fortíssima musicalidade ao acesso aos instrumentos de metal e sopro e aos serviços musicais religiosos, gerando o jazz, o soul, o gospel, o blues etc. Para tratar do quinto tópico de meu trajeto, quero lembrar a contribuição da sociologia compreensiva de Max Weber. Como ele, a meu modo, não pretendo explicar o mundo, tirar o pli, as dobras, não quero achatar o mundo, quero compreendê-lo em sua complexidade; e, diferentemente dele, Weber, não quero falar de desencantamento do mundo, muito pelo contrário, quero falar de “reencantamento” do mundo, com base na possibilidade das múltiplas identificações corporais e linguísticas que se oferecem, cada vez mais, à humanidade. 73

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Então, ainda no que se refere a este quinto tópico metodológico, eu queria lembrar que a palavra trabalho – trabajo, travail – remete a castigo de escravo. Para Weber isso seria um indicador de que, para os latinos e católicos, o trabalho é punição, enquanto para os anglo-saxões e protestantes, trabalho – work, werk – seria ação e salvação, a própria ética do capitalismo e do mercado, sem culpa. É interessante que, em português, fala-se em trabalho de ator e não em jeu d’acteur, que aqui em nosso país não é player nem schauspieler. Brincante aqui é o artista da brincadeira, aquele que não vive de sua performance musical, coreográfica, dramática ou ritual, como os pescadores, comerciantes ou agricultores que fazem seus folguedos tradicionais. Para concluir, quero saudar, com muita alegria, os dançarinos e músicos que vimos ontem à noite, sem culpa, quero saudar sua vinculação yupki, dos confins do Alaska, afro-americana, polar, dinamarquesa, brasileira e baiana, esta com meu colega Jelon Vieira, da Capoeira Foundation, sediada em Nova York. De fato, nós, na Bahia onde a vocação para o turismo – baseada em sua natureza e cultura mestiça, marcantemente negra, e que se estabeleceu ao lado de forte imaginário musical, literário, cinematográfico etc. da Boa Terra mãe do Brasil e que, há algumas décadas, interpela o artista, o pesquisador e o gestor – questionamos: qual o impacto do turismo na natureza? E na cultura? Como engordar a galinha dos ovos de ouro, que gera renda, emprego e melhora de qualidade de vida, se não pudermos, sem preconceito estreito, arrogante e imperialista, de inconsciente e falsa boa-consciência, enfrentar, simultaneamente, as questões do turismo e da cultura, inclusive do turismo de eventos, como este V Encontro Internacional de Performance, por exemplo, ou mesmo do turismo de férias e de lazer, ou do turismo baseado na história, nas artes e em aspectos das culturas locais e regionais, de festas e rituais religiosos, por exemplo? Como pensar o impacto de todas essas formas de cultura nas gentes? Como lidar com essa importante – e cada vez mais – atividade socioeconômica, no que tange particularmente as suas consequencias socioculturais? Como pensar as questões também da natureza e da cultura, 74

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condições em que o homem é ao mesmo tempo, natureza e cultura, que dão vida, mas que também dão morte, posto que há vulcões e maremotos naturais e sociais, por exemplo? De fato, nós, na Bahia, para o bem e para o mal – talvez, associemos, sem culpa, artes e mercados, há muitos séculos, mas, como emblema, quero referir-me apenas a Carlinhos Brown, grande artista, grande mercador e grande animador de sua comunidade, no Candeal, em Salvador. Mas queria fazer um mea-culpa, também, com amor e com o humor, para os que já se foram, para vocês e para os que virão. Ah, que culpa imensa, ah, que culpa grande, ah, que culpa enorme! - a de meus tios tupinambás que chamavam pejorativamente seus primos de tapuias e os expulsaram do litoral de kiri-murê antes de kiri-murê ser chamada de Bahia de Todos-os-Santos, em 1501, por Américo Vespúcio; - a de meus tios tupis, os de lá da Bahia, que, para se identificarem perante sua família, precisavam fazer sempre guerra e matar um primo; - a de meus tios judeus, que comerciaram tanto, que chegaram até a comercializar gente, aliás como também meus tios mouros e africanos o fizeram; o homem inventou a escravidão há muitos séculos e ela ainda persiste, e escravizar não foi apanágio só dos brancos; - a de meus tios iorubá, que são poder econômico, político e cultural, hoje, por exemplo, na Nigéria, e que continuam a maltratar seus primos de outras etnias; aliás o etnocentrismo é muito mais amplamente difundido do que se pensa, ou parece, e a escravidão e a violência contra o outro marcaram inúmeras culturas, inclusive na África; - a de meus tios europeus, os que mais se beneficiaram com a colonização moderna e que, em atitude de mea-culpa, iniciariam as ciências do homem, a antropologia, por exemplo; ah, que culpa enorme, imensa, grande, todo mundo sabe disso; 75

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

- a de meus primos norte-americanos, os que melhor realizaram o melhor e o pior do sonho moderno europeu; - a dos governos, dos empresários e das ONGS, que controlam e instituem benefícios e criam artes e mercados, como, por exemplo, o da solidariedade, para o bem e para o mal; - a de nós artistas e intelectuais, quando queremos impor um padrão, uma ideia, uma regra, uma ideologia, omitindo verdades e inibindo a reflexão; - ah, que culpa enorme, imensa, grande! Pronto. Fiz meu mea-culpa, fiz a minha performance e estou aberto à conversação.

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As fronteiras e os territórios das linguagens artísticas* Sentidos e sensações: os poderes da pessoa em cena As artes – da maneira como as compreendo desde o meu horizonte teórico-metodológico, demarcado pela antropologia do imaginário, pela sociologia compreensiva do atual e do cotidiano e pela etnocenologia – não são linguagens. A meu ver, as artes são, sim, experiência, expressão e fruição, simultâneas e coletivas. As artes são do âmbito da estética, enquanto sensibilidade, suscetibilidade, sentido compartilhado: são representação, festa, ritual, brincadeira, espetáculo, jogo e cotidiano “estéticos”. A dinâmica histórica e interativa de definição de fronteiras entre as artes constrói-se, e tem-se construído, sobre as noções de espaço, poder, tolerância e domínio, ou predomínio – hierárquico? – de uma arte sobre outra. Na arte há sempre pessoa em cena – no espaço/ tempo de referência. Há aí, no mínimo, uma pessoa, ou, no ótimo econômico, duas pessoas. Os poderes estéticos – dos sentidos e sensações – diferem do primeiro para o segundo caso, dividindo as artes, ou formas de experiência e expressão artísticas ou estéticas, em, pelo menos, dois grandes campos ou territórios: o das artes visuais tradicionais, onde é possível existir em cena apenas um fruidor da obra de arte, solitário; e o das artes cênicas, teatrais, coreográficas e musicais, onde, habitualmente, o artista e o fruidor podem – e devem – estar no mesmo tempo e espaço, simultâneos, coetâneos e contíguos. Assim se poderia pensar em dois tipos de estética, diferentes, as visuais e as cênicas.

* Textos de referência para a participação em três mesas redondas, integradas e realizadas em sequência, nos dias 1, 2 e 3 de julho de 2004, no II Encontro Nacional de Pesquisa em Arte, promovido pela Fundação Municipal de Artes de Montenegro RS, publicados In: REVISTA DA FUNDARTE, ano 4, v. 4, n. 7, 2004. p.05-09.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

A pesquisa universitária em artes cênicas, no Brasil, só se institucionaliza com o primeiro mestrado na área, em 1972, e o consequente doutorado, em 1980, na USP. Este processo amplia-se com novos mestrados na UNICAMP (1989) e na UNIRIO (1991), o mestrado e doutorado da UFBA (1997), os doutorados da UNIRIO (2001) e da UNICAMP (2004), além do mestrado da UDESC (2003). O termo “artes cênicas” compreende usualmente, neste contexto, só o teatro, embora na UFBA as artes cênicas compreendam, além do teatro, também a dança. Acreditamos que dança e teatro possam realizar, como na UFBA, nos anos 90 do século XX – para a criação de um programa comum de pós-graduação – uma aliança estratégica, viabilizando o desenvolvimento conjunto – ou contíguo – da pesquisa, através da realização de projetos e relatórios; da criação e manutenção de grupos de pesquisa teóricoprática; da busca e captação de financiamentos; da institucionalização e do intercâmbio entre as áreas e as instituições a elas afins. A arte, como fenômeno revelador, constitutivo da vida, da vivência e da convivência humanas, configura um universo de realidade e de sentido cujas dimensões ultrapassam as de outros universos paralelos, a saber: • • • • • •

da precisão, clareza e univocidade da ciência; do caráter teleológico, didático e ético da educação; da prática e teoria da política; das certezas dogmáticas da religião e da ideologia; da intencionalidade e do acaso dinâmico da mídia; do inefável e do não-racional dos sonhos e delírios;

e o próprio universo da coerência meridiana do sensato, do razoável e do racional da vida cotidiana. A arte pode eventualmente submeter-se a um desses universos, que normalmente a constrangem a aí reduzir suas dimensões artísticas a outras 78

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dimensões do imaginário e do simbólico – mais específicas dos discursos e dos fenômenos da ciência, da educação, da política, da religião, da mídia, da loucura, dos sonhos e do dia a dia – sem, contudo, nessas outras dimensões diluir-se completamente. As universidades firmaram sua tradição utilizando-se do termo ARTE para designar a gramática, a retórica, as “belas” letras, o estilo e a lógica. Nesse sentido, o termo ARTE não cobriria o direito, a medicina, a teologia, nem mesmo compreenderia o que a tradição clássica greco-latina associou à constelação semântica matemáticageometria-astronomia-música. A música singularizou-se por sua familiaridade com a matemática, desenvolvendo uma tradição de “teoria musical” de vasta literatura de notações e partituras. Sua vocação para a pesquisa universitária, que gerou, entre outras disciplinas, a etnomusicologia, atinge os campos da educação, da informática, do canto, da prática de instrumentos, da composição e da regência, e da própria “teoria” específica, afir mando-se, simultaneamente, nos terrenos “científico” e “artístico”. O texto escrito (inicialmente manuscrito, depois impresso) sempre interessou à Academia. Secundariamente, esta se interessou pela performance, incluindo a dicção, a inflexão, o ritmo, a postura, o gestual e a aparência pessoal. Mas foi em função do texto escrito, a matéria por excelência das Faculdades de Artes, que se firmou o domínio universitário da ARTE. As “BELAS” LETRAS, mais que a MÚSICA, participaram da própria fundação de uma tradição universitária. Não é de surpreender que sua vocação para a pesquisa se firmasse de modo irresistível, desdobrandose em disciplinas específicas e sugerindo abordagens interdisciplinares, principalmente quando se constata que nessa área – das letras – declinouse, em grande parte, no ambiente universitário, da criação, para investirse na crítica e na reflexão. 79

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

As “BELAS” ARTES, designando especificamente as artes plásticas, só se instituíram como Academia no século XIX. Já as ARTES CÊNICAS, só no século XX, através das “belas letras”, mas também através da educação física e da pedagogia, penetraram os muros universitários (BAYEN, 1970 e CARVALHO, 1989). Talvez a tardia, e recente, incorporação acadêmica dessas artes da representação pictórica e dramática seja um indicador da especificidade de suas vocações para a pesquisa – in vivo e in vitro. A palavra pesquisa pode ser considerada apenas enquanto substantivo, seguido eventualmente dos adjetivos científica, artística, acadêmica etc. No caso das artes cênicas: a pesquisa desenvolve-se, sempre, a cavalo num barbante, sobre o fio da navalha, entre uma coisa e outra, entre a ciência e a arte, entre a teoria e a prática, entre o erudito e o popular, entre o tradicional e o contemporâneo, entre a realidade e o imaginário, entre o conflito dramático, as peripécias e o deus ex machina, ou, dito de outro modo, na “liminalidade”, na encruzilhada, no espaço e tempo de Exu, de Dionísio, de Hermes, de Mercúrio. Buscando-se no Dicionário do Teatro de Patrice Pavis, vai-se encontrar uma série de entradas associadas ao campo das artes cênicas, ao teatro e à dança, associados ou não à música e, também, às artes plásticas. O maior número de entradas – 35 – refere-se, como seria de se esperar num dicionário de teatro, ao próprio teatro, acompanhado de adjetivos ou de expressões explicativas. Assim se identificam nesse dicionário as seguintes entradas: Teatro: alternativo, ambiental, antropológico, autobiográfico, burguês, da crueldade, das mulheres, de agit-prop, de arena, de boulevard, de câmara, de diretor, de guerrilha, de imagens, de massa, de participação, de r ua, de tese, dentro do teatro, didático, documentário, equestre, espontâneo, experimental, gestual, invisível, laboratório, materialista, mecânico, mínimo, musical, pobre, popular, político, total. 80

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Relacionando o teatro à dança aparece nesse dicionário de teatro uma única entrada: Dança-Teatro. Já se referindo à música, e talvez implicitamente à dança, aparecem quatro entradas: Música: de cena, (e teatro), Interlúdio, Intermédio, Divertissement. No limite das artes cênicas e das artes visuais são apenas três as entradas: Performance, Happening e Instalação. Em todos esses casos, de artes nas fronteiras das artes, prevalece, no entanto, a especificidade das artes cênicas e não a das artes visuais, que subentende, de modo tradicional, a possibilidade da fruição solitária de um único espectador para a obra de arte, prevalecendo, na mais ampla maioria dos casos, o poder da pessoa em cena, onde artista(s) e público encontram-se no mesmo tempo e espaço, simultâneos, coetâneos e contíguos. Do gosto e do gozo da cena e da disciplina positivista ao relativismo compreensivo da prática acadêmica, do ensino, da extensão e da pesquisa artística e científica, teórica e prática De modo resumido, a trajetória de pesquisa do palestrante ancora-se em sua própria história de vida e autobiografia, uma trajetória que se inicia no Agreste (onde se situa seu berço paterno, na cidade de Alagoinhas) e no Recôncavo baianos (onde se situa seu berço materno, na cidade Maragogipe), e enraíza-se no catolicismo popular, no espiritismo kardecista ortodoxo e no positivismo militar brasileiro, de onde se desenvolve o seu interesse: 1. pela história de sua cidade natal, a cidade da Bahia, por suas relações intercontinentais, históricas, contemporâneas e futuras; 2. pelo cinema alemão, francês, italiano, norte-americano, japonês e brasileiro, ao qual teve acesso na juventude, sobretudo através do Cinema de Arte da Bahia, animado e orientado pelo crítico de cinema e pesquisador Walter da Silveira; 81

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

3. pelo teatro musical, pela dança moderna, pelo espetáculo de rua, que conheceu através do cinema comercial e de arte, das vivências adolescentes pelas ruas da cidade da Bahia, no Instituto Cultural BrasilAlemanha, na Universidade Federal da Bahia e pela televisão; 4. pela política estudantil, de 1966 a 1968, quando ingressa como aluno regular de graduação na UFBA, até 1969, quando abandona momentaneamente os estudos formais, pela sociedade alternativa, daí até 1976, passando por viagem de carona na Europa e breve exílio em Londres, em 1970; 5. pelo turismo e pela publicação de periódicos de artes e serviços, de 1972 a 1981; 6. por intensa prática de ator e iniciação à direção teatral e à dança, sobretudo de 1967 a 1997; 7. pela licenciatura em filosofia, pelo ensino de filosofia e de história da dança, de 1968 a 1981; 8. pelo estudo teórico e prático (iniciação à pesquisa e mestrado) na área da interpretação teatral em universidade norte-americana, de 1981 a 1983; 9. pelo ensino, extensão, pesquisa em oralidade e dramas, e pelo doutorado em antropologia na Sorbonne, de 1984 a 1990; 10. pela gestão pública, desde 1991, e pela criação da etnocenologia, desde 1995. O cordel da vida e o teatro O cordel é o fio, o cordão, o eco do coração. E o coração é o emblema mesmo da vida e pode sê-lo também da cordialidade. Pois é este cordel, numa perspectiva absolutamente pessoal, simultaneamente interativa e “trajetiva” (trajective), entre o sujeito e o objeto, que me serve de cavalo para chegar até as artes do espetáculo.

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Nasci em Salvador, de um homem do Agreste, do Pedrão de Irará, da Fazenda Desterro, e de uma mulher do Recôncavo, do Iguape do Paraguaçú, de Maragogipe, Bahia. Na infância vivi em Roma, um bairro então de imigração recente, na península de Itapagipe, e visitei, com frequência, minhas avós, ambas viúvas e vivendo no interior do Estado. A materna, Evangelina, em Maragogipe, no verão. A paterna, e madrinha, Jesuína, em Alagoinhas, no inverno, no entorno das festas de Santo Antonio. Pois foi na sala de convívio da casa de Vó Dindinha que conheci – deslumbrado – os almanaques e folhetos de feira. E foi no alpendre do seu sítio, ainda nos anos 50, que vi e ouvi um tio paterno folgar com seu trio nordestino. Estes objetos e sujeitos pareciam acenar-me com um mundo maravilhoso, do qual eu tinha certeza participaria um dia. Para o aluno, de uma escola particular católica – a Nossa Senhora da Guia, no bairro da Boa Viagem – e de acordeom, no bairro vizinho do Mont Serrat, mais afeto ao mundo feminino da casa, bem na tradição moçárabe, aquele mundo, contido no impresso, transformava-o em gente no mundo masculino da varanda e da rua e mostrava-se misterioso e estimulante. As lapinhas, fotos, quadros religiosos e folhetos, de Alagoinhas, transformavam-se então, com a música e a poesia, em cenas vivas, que só depois eu relacionaria com os presépios e quadros vivos dos dramas escolares católicos, da matriz maragogipana da família. As diferentes culturas, tradições esotéricas, conselhos úteis para a lavoura e a pesca, trechos de grandes autores e calendários, dos almanaques, articulavam-se com as histórias maravilhosas dos folhetos, na cena aberta de minha imaginação. Aí eu me via chefe de trem, navegador, militar, artista da cena, diplomata... Na cena mais fechada do drama da vida eu vivia o paradoxo de um núcleo familiar espírita ortodoxo positivista, inscrito num ambiente familiar mais largo e comunitário, barroco. O ingresso na adolescência, dos 10 aos 15 anos, corresponde ao contato cotidiano com o mundo masculino 83

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

do Colégio Militar de Salvador (primeiro em Pitangueiras, depois na Pituba), com o mundo da rua, do ônibus e do Elevador Lacerda, no qual eu reencontrei o mistério do espetáculo da poesia e da cena. Foi quando e onde presenciei, contar, cantar e vender folhetos, aquela pessoa de chapéu coco que se parecia com o Carlitos, que eu já conhecia de um cinema improvisado na casa de um tio materno no bairro de Roma. A pessoa era Ele, o Tal, Cuíca de Santo Amaro. O cinema, familiar e de vizinhança, era a escada e a área de circulação entre a fábrica de velas Nova Aurora, de meu tio, no andar térreo, e a residência de sua família, no andar superior. A alternativa até então fora o presépio vivo, o casamento na roça e o teatro espírita. Mas, a partir de 1965, com o conhecimento do Cinema de Arte da Bahia, do Instituto Cultural Brasil-Alemanha, do Instituto de Cultura Hispânica, da Aliança Francesa, do Teatro Vila Velha, dos espetáculos na Escola de Teatro e concertos na Reitoria da UFBA, as alternativas multiplicaram-se e o maravilhoso fez-se cena real e verdadeira. De fato, em 1966, já aluno do Colégio Estadual da Bahia – o renomado Central – e ator do Grupo Amador de Teatro Estudantil da Bahia, GATEB, testemunhei encantado o “Lançamento do Teatro de Cordel”, na expressão de João Augusto Azevedo, então diretor do Vila Velha e do Teatro dos Novos, com quem eu trabalharia entre 1967 e 1979 em pelo menos quatro espetáculos e em outros tantos eventos artístico-político-culturais. Entre 1978 e 1979, tive a enorme satisfação de fazer João Grilo na montagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, dirigida por Maurice Vaneau, então diretor do Teatro Castro Alves, e aceitei o desafio de ser diretor e protagonista de uma encenação do folheto As Proezas de João Grilo, de João Martins Athayde, apresentada em refeitórios de fábricas do Centro Industrial de Aratu, com patrocínio da Fundação Cultural do Estado, e, com produção independente, em escolas e praças públicas de Salvador e Recôncavo. As boas críticas ao espetáculo do TCA, e a receptividade a minha primeira experiência como diretor teatral asseguraram-me de que o bom caminho começara a ser trilhado, fortalecendo, assim, o cordel de minha vida. 84

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Desde os anos 90, passei a desenvolver pesquisas de caráter histórico e de encenação, com jovens estudantes de teatro, na Universidade Federal da Bahia, tratando com as possibilidades épicas (narrativas) e dramáticas (de ação) do cordel. Deste trabalho resultaram as encenações: Isto é bom!, em 2001 (no Teatro do SESI) e Isto é bom demais! em 2002, 2003 e 2004 (na Sala 5 da Escola de Teatro, no Teatro do SESI, no Cine-Teatro Boa Vista, na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, na Praça Pedro Arcanjo, no Pelourinho, na Bienal do Livro e em salas de espetáculos em Camaçari, Dias Dávila, Ilhéus, Itabuna, Vitória da Conquista, Jequié e Alagoinhas). É também resultado desta história a publicação de 33 folhetos e a gravação de um CD do cordelista santo-amarense Antônio Vieira. O que se passou com a ópera barroca e com a dança sob o nazismo, com as artes na Bahia nos anos 50, o que se passou em Nova York nos anos 60, do século XX, e na Bahia desde então No início da tradição ocidental na Grécia clássica, como em outros momentos fundadores da experiência e da expressão estética organizada, nas mais diversas culturas, as fronteiras entre as artes inexistiam. Para só posteriormente serem criadas e, ainda, mais posteriormente, rompidas, motivadas por uma espécie de nostalgia das origens fundadoras, como ocorreria de maneira espetacular no Ocidente. De fato, foi assim que, na Europa ocidental, a partir do Renascimento, buscou-se o teatro total, com nostalgia da Grécia antiga, da teoria e do teatro fundadores, filhos da supervalorização do sentido da visão, da ação e espaço organizados para o olhar e do olhar consciente e reflexivo para todas as coisas, do sujeito para o objeto. Daí viria a criação barroca da ópera, com sua repetida derrota das mulheres e ênfase em personagens liminares, parentes próximos dos – e das – personagens de encruzilhada, arquétipos dos exus da tradição iorubá e dos bobos das cortes, dos palhaços dos circos, dos xamãs dos rituais, dos travestis, dos judeus do humor “negro”, de Woody Allen, por exemplo, dos proibidos de representar – os judeus – que marcariam a codificação da dança (Thoinot Arbeau), a profissionalização do teatro na Broadway e o sucesso do cinema norte-americano, por exemplo. 85

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

Também daí viria da ópera – que rompeu as fronteiras da música, das artes cênicas e das artes plásticas – à arte como profissão para além das questões ideológicas e das futuras vanguardas intelectuais. Shakespeare foi bem-sucedido artista ou empresário? Chaplin quis ganhar a vida quando substituiu, ainda criança, sua mãe – judia – alcoolizada, que não conseguia, em determinada noite, fazer seu número de variedades no cabaré em que costumeiramente se apresentava e ganhava dinheiro para comer, ou quis ser o gênio do cinema? Que têm em comum o nazismo, o naturismo, o vegetarianismo, o antitabagismo, a busca coreográfica e filosófica do movimento espontâneo e orgânico, da dança coral, da tradição popular local e nacional, da arte de massa, do poder pedagógico, criativo e terapêutico da dança e do esporte com Rudolf Van Laban e Mary Wigman, a arte total e a arte totalitária, a construção e o rompimento de – novas – fronteiras, Monte Verita e a Suíça neutra, a Theatertanz ou “dança absoluta”, enquanto arte primeira e a Theatertanz – apenas uma entre muitas outras das artes cênicas? Que têm em comum a vanguarda nova-iorquina do início dos anos 60, com a busca do corpo efervescente, da renovação das artes e do rompimento das velhas e novas fronteiras – do oeste continental da América do Norte, das raças, das classes, das leis, que tem tudo isso a ver com os judeus e os negros, identificados através da Bíblia e da música religiosa, a Broadway e o off-Broadway, Holywood e o cinema alternativo? Talvez tudo isso tenha a ver com a falta de fronteiras das baías, acidentes geográficos femininos e sempre abertos, como a Baía e a Bahia de Todosos-Santos, abertas ao ecumenismo, à tolerância, ao humor judeu, ao inferno dos negros, ao purgatório dos brancos, ao paraíso – poético – dos mulatos, à migração de influências culturais, artísticas e tecnológicas variadas, que costumam atingir todas as cidades portuárias. Talvez tudo isso tenha a ver com os estereótipos do humor baiano, de sua musicalidade, negritude, mestiçagem e despotismo esclarecido, que 86

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gerariam as escolas de artes na Universidade da Bahia, nos anos 50, quando a “boa terra” da primeira capital do Brasil voltava a ver movimentado e animado o seu antes próspero, decadente e promissor mercado, que então iniciava o que passaria a ser apelidado de “Renascimento baiano”, abrigando novas – e velhas – tecnologias, velhas como as dos antigos – e paradoxais? – mestiços negreiros, ampliando importação e exportação, artesanato e indústria cultural, qualidade de vida, renda e emprego, na encruzilhada do turismo e da cultura. Encruzilhada é onde se rompem – ou encontram-se – as fronteiras? O certo é que as encruzilhadas são o lugar, por excelência, de Exu e de Dionísio. Referências BANES, Sally. Greenwich Village 1963: avant-garde, performance e o corpo efervescente. Tradução de: M. Gama. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 405 p. BIÃO, Armindo et al. (Orgs.). Temas em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade. São Paulo: Annablume, 2000. 364p. BIÃO, Armindo ; GREINER, Christine, (Orgs.). Etnocenologia: Textos Selecionados. São Paulo: Annablume, 1998, 194 p. BIÃO, Armindo. “A especificidade da pesquisa em artes cênicas no ambiente universitário brasileiro”. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 1., 1999. São Paulo. Anais... Salvador: ABRACE, 2000. p. 254-257. CLÉMENT, Catherine. L’opéra ou la défaite des femmes. Paris: Grasset & Fasquelle, 1979. 359 p. CORVIN, Michel. Dictionnaire encyclopédique du Théâtre. Paris: Larousse-Bordas, 1998. 1986 p. 87

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

FERRAROTTI, Franco. Histoire et Histoires de Vie. Paris: Librairie des Meridiens, 1983. 175 p. GUILBERT, Laure. Danser avec le III Reich: Les danseurs modernes sous le nazisme. Bruxelles: Éditions Complexe, 2000. 358 p. HAUSER, Arnoldo. Historia social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 1034 p. HELBO, Andre; JOHANSEN, J. Dines; PAVIS, Patrice; UBERSFELD, Anne. Thèâtre Modes d’approche. Bruxelles: Labor 1987. 270 p. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. 512 p. RISÉRIO, Antonio. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995. 261 p. SCHECHNER, Richard. Performance Studies an introduction. New York: Routledge, 2002. 288 p.

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Aspectos epistemológicos e metodológicos da etnocenologia: por uma cenologia geral*

A partir de uma visão histórica e panorâmica sobre os estudos relativos ao teatro e à dança, das proposições dos performance studies, da “antropologia teatral”, e da “etnocenologia”, pretende-se definir um conjunto de parâmetros epistemológicos e metodológicos que contribuam para a instituição de uma nova disciplina científica, que poderia ser denominada de cenologia. Os estudos da cena, aí inclusas as diversas formas espetaculares envolvendo o teatro, a dança e a música, serviriam para situar, de forma estrutural e coordenada, as características do treinamento dos executantes (artistas ou especialistas da cena), de seus modos específicos de apresentação pública e das variantes de fruição e recepção desses fenômenos. Por outro lado, a cenologia contribuiria para a discussão dos valores éticos, estéticos e políticos associados às múltiplas formas cênicas espetaculares, bem como para a afirmação do caráter de intencionalidade e de variação dos estados de consciência, tanto individuais quanto coletivos, necessários para a identificação dos fenômenos da cena. Esta proposição encontra-se registrada no manifesto lançado em 1995, quando da fundação de um Centro Internacional de Etnocenologia em Paris1. O histórico específico e panorâmico das relações entre o teatro, a pedagogia, a psicologia, a psicanálise, a antropologia, a filosofia e a sociologia pode ser percorrido através de obras pilares que contribuíram para a construção desses campos do conhecimento, particularmente através daquelas obras dedicadas aos jesuítas, aos jogos e experiências *

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Publicado In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 1., 1999, São Paulo. Anais... Salvador: Memória ABRACE, 2000. “ETHNOSCÉNOLOGIE, manifeste”. In: Théâtre Public 123, Paris, p. 46-48 maio/jun. 1995. Ver também trecho do manifesto publicado em português. In: PERFORMÁTICOS, Performance e Sociedade. Brasília: UNB, 1996.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

dramáticas de teatro-educação, ao psicodrama, ao sociodrama, às teorias freudianas, à antropologia da performance (aos performance studies e à antropologia teatral), ao interacionismo simbólico, à fenomenologia pragmática e à sociologia do cotidiano. É com base nessa história e nesse escopo de conhecimento que se pode pensar em conjunto de parâmetros que permita a busca e a plena realização dessa proposta de constituição de uma nova disciplina, que seria a cenologia. Em quatro anos de encontros, colóquios, experiências didáticas e de pesquisa, e publicações, notadamente em francês, português e espanhol, o que seria um Centro Internacional de Etnocenologia, com sede na Maison des Cultures du Monde, em Paris, tem-se revelado mais uma rede internacional de etnocenologia, sem um centro, mas com nós – de rede – identificáveis de forma clara, sobretudo na França e no Brasil. Dois desses nós de rede encontram-se em processo de formalização de seus vínculos institucionais, através da assinatura de um convênio: a Universidade de Paris 8 (em Saint Denis) – através de seu Departamento de Estudos Teatrais e Coreográficos, da Escola Doutoral de Artes do Espetáculo e do Laboratório Interdisciplinar sobre as Práticas e Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados – e a Universidade Federal da Bahia, através de sua Escola de Teatro, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade (GIPE-CIT). Essa rede internacional de etnocenologia é constituída de modo flexível e ágil, em torno de relações institucionais menos formalizadas que as estabelecidas entre Paris 8 e a UFBA, envolvendo núcleos de pesquisa e pesquisadores universitários, simultaneamente atuantes nos domínios científicos e artístico. É o que ocorre nas Universidades Federal da Santa Maria, na Universidade Estadual de Campinas, na Universidade de Brasília, na Universidade de Paris 7 (em Jussieu), na Universidade de Bordeaux, na International School of Theatre Anthropology, na Universidade da Califórnia (em Berkeley), na Universidade de North Carolina, na Universidade Autônoma do México, no Instituto Cultural de Modelos (em Cuernavaca) 90

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e na Universidade Católica do Uruguai. Uma parte dessa rede, relacionando artistas e pesquisadores da Maison des Cultures du Monde e de universidades do Marrocos, da Tunísia e do Líbano, passou a ter como referência, desde o colóquio realizado em 1997, a proposição de uma etnoteatrologia, próxima, porém distinta da etnocenologia, definida em ensaios e comunicações nos colóquios de Paris (1995), Cuernavaca (1996) e Salvador (1997). Este fato inviabilizou a realização de um quarto colóquio previsto em Asilah, no Marrocos, 1998. As perspectivas agora são da realização de um novo colóquio em Paris, no ano 2000, e do lançamento simultâneo do periódico Cahiers Internacionaux d’(Ethno) scénologie. Esse breve histórico da etnocenologia revela seu atual estado préparadgmático. Um momento recente definível por datas (1995-1999), de confusão conceitual, de conflitos intelectuais, de realização de eventos internacionais e publicações2, de busca da constituição de um paradigma3. A própria ideia de que o prefixo etno, para referir-se à cultura, grupo social, seria uma utilização estratégica da compreensão da multiculturalidade e da transculturação, como formas de combate ao etnocentrismo, atribuindo um caráter temporário à etnocenologia, que seria substituída pela cenologia, o que se revela no título do periódico acima anunciado, contribui para essa sensação de vertigem e incerteza, típica dos momentos da história das ciências definidos por Thomas Kuhn como préparadigmáticos4. Por outro lado, considerando-se a história das ciências no século XX estudada por Eric Hobsbawn, vale assinalar a coexistência simultânea de paradigmas contraditórios desde os anos 30, o que foi 2

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Ver: BIÃO, Armindo; GREINER, Christine (Orgs.). Etnocenologia, textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1998. PRADIER, Jean-Marie. La scène du et la fabrique du corps: Ethoscénologie du spetacle vivant en Occident ( Ve. Siècle av. J.-C. – XVIIIe. Siècle). Talence: Presses Universitaires de Bordeaux, 1997. DUVIGNAUD, Jean; KHAZNADAR, Chérif. (Org.). La scène et terre: questions d’ethnoscénologie. Paris: Maison des Cultures du Monde, 1996. Sobre esta questão ver SANTOS, Adailton. “O estado pré-paradigmático da etnocenologia”. In: Cadernos do GIPE-CIT 1. Salvador: UFBA; PPGAC; GIPECIT, 1998. KUHN, Thomas. The structure of scientific revolutions. Chicago: The University of Chicago Press, 1962.

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resumido por Niels Bohr (contraria sunt complementa) e utilizado como lema do Odin Teatret de Eugenio Barba5. O desenvolvimento de um Projeto Integrado de Pesquisa, no período de agosto de 1997 a julho de 1999, com apoio institucional do CNPq – e a concessão de cinco bolsas de pesquisa, duas de produtividade para professores, doutores, duas de aperfeiçoamento para recém-graduados e uma de iniciação científica – permitiu a organização e análise de dados relativos à produção de 12 grupos de artes cênicas, atuantes na cidade de Salvador, bem como a definição do seguinte conjunto de parâmetros epistemológicos e metodológicos. Exprimindo os conflitos de fronteiras epistemológicas entre natureza e cultura e entre as ciências contemporâneas entre si, a perspectiva transdisciplinar da etnocenologia reúne os domínios das ciências humanas clássicas, das ciências definidas, mais contemporaneamente, como ciências da vida e ciências cognitivas e, através dessas, das tradicionais ciências naturais. Como ciências pilares para o desenvolvimento de nossa proposição, reunimos dois conjuntos sob as denominações ciências do homem e ciências da vida. O primeiro congrega a antropologia, a sociologia, a psicologia, a história, a etnomusicologia, a etnolinguística e as interfaces científicas dedicadas ao estudo do folclore. O segundo reúne a ecologia, a anatomia, a biologia, a neurobiologia da aprendizagem, a bioquímica e a biofísica. O horizonte metodológico pode ser circunscrito pela fenomenologia pragmática, pela etnometodologia, pelo interacionismo simbólico, pela antropologia do imaginário, pela história das mentalidades, pela sociologia do cotidiano, pela proxêmica (proxemics), e pela pedagogia centrada na pessoa. Como conceitos básicos, aqui entendidos mais como “noções moles” que como “conceitos duros” 6 , identificamos cinco pilares 5

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HBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. Ver a esse propósito os títulos de suas obras aqui citadas.

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epistemológicos. O primeiro refere-se aos estados de consciência (alterados, modificados ou não) e aos estados de corpo (técnicas cotidianas e extracotidianas). O segundo remete às categorias da teatralidade (quando o sujeito age e se comporta para a alteridade, com uma consciência mais ou menos clara mais ou menos confusa de organizar-se para o olhar do outro) e da espetacularidade (quando o sujeito toma consciência clara, reflexiva, do olhar do outro e de seu próprio olhar alertar para apreciar a alteridade). O terceiro remete ao debate antropológico sobre os contatos culturais, sob a forma do conceito de transculturação7, como o que melhor exprime a criação de novos fenômenos culturais informados por tradições diferentes com as quais guardam formas de semelhanças. O quarto pilar corresponde à ideia de matrizes culturais, compreendida em termos linguísticos (matrizes da oralidade, da escrita fonética e de outras formas de escrita), religiosos (monoteísmo, politeísmo, cristianismo, judaísmo, islamismo, catolicismo, protestantismo, etc.), estéticos (formas de sensibilidade e de cultivo das artes), técnicos e temáticos. O último pilar epistemológico é a definição de “práticas e comportamento humanos espetaculares organizados – PCHEO”, o mais importante do ponto de vista ontológico e metodológico, e por isso o mais complexo. Antes de detalhá-lo, vale reafirmar que os pares de conceitos de alteridade/ identidade, de multiculturalismo/ dinâmica cultural, de tradição/ contemporaneidade e de performance/ fenômenos espetaculares compõem um campo epistemológico auxiliar de grande importância. Os PCHEO podem ser agrupados em três subconjuntos, que tentaremos aqui definir. O conjunto mais fácil de ser caracterizado seria o conjunto das artes do espetáculo, compreendendo o teatro, a dança, a

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MAFFESOLI, Michel. O Conhecimento Comum. Tradução: A. R. TRINTA. São Paulo: Brasiliense, 1988. ORTIZ, Fernando. El contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Barcelona: Ariel, 1973. Ver também: MANDRESSI, Rafael. Transculturation et spectacles vivants en Uruguay. 1870-1930. Tese (Doutorado) – Universidade de Paris 8, Paris 93

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

ópera, o circo e outras artes mistas e correlatas, no qual usualmente se distinguem artistas e espectadores. A prática espetacular aí é substantiva. Um segundo conjunto poderia ser definido pela expressão ritos espetaculares englobando: de um lado, rituais religiosos, festas, cerimônias periódicas, cíclicas e sazonais, nos quais os participantes tendem a se confundir entre si; e, de outro lado, eventos políticos e competições esportivas, nos quais a distinção entre participantes e espectadores parece mais evidente. Nessas últimas, os espectadores participam como torcedores, compondo ativamente e evidentemente o espetáculo, como ocorre também naturalmente em muitos eventos políticos, religiosos, cerimônias e festas. Mas há, nesse segundo subconjunto como um todo, sempre, uma caracterização além da simples caracterização de espectador para a pessoa que desempenha simultaneamente o papel de torcedor, eleitor, adepto, noivo, ou outro, que soma o caráter ritual, como substantivo, ao caráter espetacular, como adjetivo. O terceiro conjunto é o que apresenta maior grau de complexidade. Tentamos defini-lo como as formas cotidianas que são repetidas rotineiramente num mesmo espaço, com pessoas caracterizadas em papéis sociais (educador/ educando, vendedor/ cliente, médico/ paciente, sacerdote/ fiel, transportador/ transportado, esportista/ transeunte/ banhista, etc.), reconhecíveis socialmente por seus figurinos, adereços e posturas corporais, por suas formas de expressão vocal e gestual, reveladoras de estados de consciência e de corpo, simultaneamente de teatralidade e espetacularidade, conforme definido acima. O caráter espetacular deste subconjunto seria mais adverbial que substantivo, ou mesmo adjetivo. Assim, acreditamos contribuir para o debate teórico em torno da ideia de uma cenologia geral, sem necessitarmos recorrer ao conceito de espetáculos vivos, caros a alguns pesquisadores como Jean-Marie Pradier e Rafael Mandressi8. Este conceito, que remete ao domínio das ciências da vida, exclui as formas espetaculares veiculadas pelos mais variados meios de comunicação. E nós acreditamos que justamente aí reside um dos desafios à etnocenologia, ou à embrionária cenologia. 94

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Etnocenologia, uma introdução*

A proposição de uma nova disciplina científica revela a emergente consolidação de pesquisas desenvolvidas por um grupo de estudiosos mais ou menos articulado internacionalmente numa determinada área do conhecimento. Optando pelo termo etnocenologia, esta nova disciplina identifica-se com a contemporânea construção de um paradigma.1 Aproximada, e não apenas etimologicamente, da perspectiva clássica e matricial da reflexão sobre a variabilidade humana no espaço e no tempo, denominada de etnologia,2 em 1787, a etnocenologia inscreve-se na vertente das etnociências e tem como objeto os comportamentos humanos espetaculares organizados,3 o que compreende as artes do espetáculo, principalmente o teatro e a dança, além de outras práticas espetaculares não especificamente artísticas ou mesmo sequer “extracotidianas”. À guisa de introdução ao estudo desta nova disciplina, apresentamos a seguir algumas referências históricas, epistemológicas e bibliográficas. *

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Publicado In: GREINER, Christine; BIÃO, Armindo (Orgs.). Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999. p. 15-21. Sobre o conceito de paradigma como as descobertas universalmente reconhecidas que, por um tempo, fornecem a uma comunidade de pesquisadores problemas-tipo e soluções, ver: a fundamental obra de referência de KUHN, Thomas. The structure of scientific revolutions. Chicago: The University of Chicago Press, 1962, com uma segunda edição ampliada em 1970. Ver sobre a construção científica e universitária da etnologia, a obra introdutória a esta temática de POIRIER , Jean. Histoire de l’ethnologie. Paris: Coleção Que sais-je?, 1969 (terceira edição em 1984) sob o número 1338. De acordo com o manifesto divulgado durante o lançamento oficial desta proposição em 1995, no Colóquio de Fundação do Centro Internacional de Etnocenologia, em Paris, sob os auspícios da UNESCO, da Maison des Cultures du Monde e da Universidade de Paris 8, do qual participaram pesquisadores e praticantes de dezenas de países de todo o mundo.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

O paradigma da alteridade e da multiculturalidade É no ambiente intelectual romântico alemão, o mesmo que gerou a ciência do folclore, a valorização das tradições populares e das especificidades culturais que definiriam e identificariam cada nação, que se começa a estruturar o ideal científico das etnociências. A etnopsicologia é denominada por seus fundadores Lazarus e Steinthal Völkerpsychologie em 1850. 4 Sua história pode remontar ao grego da Antiguidade, Heródoto, passando pelo Renascentista italiano, Vico, pelos fi1ósofos franceses do Século das Luzes e pelo alemão inovador da filosofia e da história da cultura, Herder. A etnomusicologia foi estruturada como campo de conhecimento ao longo dos anos 1880, sob a expressão musicologia comparada. Mas, só nos anos 1950, apareceria o termo etnomusicologia, proposto pelo holandês, Kunst, e motivo, em 1956, da criação de uma sociedade científica específica.5 A etnolinguística desenvolveu-se dentro da mesma tradição, nos Estados Unidos da América do Norte, no período que antecede e naquele que sucede a segunda Grande Guerra. Do mesmo modo, a partir da Europa e da América do Norte, a recente proposição da etnobotânica, da etnohistória e da etnopsiquiatria, ou ainda da etnoculinária e da etnomatemática, revela a consolidação de um paradigma científico baseado no conceito de alteridade e na afirmação do multiculturalismo. Questionando os aspectos de hierarquização histórica e cultural das teorias de extração evolucionista clássica em relação aos diversos povos e raças, este paradigma pretende evacuar os preconceitos etnocêntricos e positivistas e discutir, quase sempre com medo e mesmo alguma paranoia (em nossa pessoal e humilde opinião) os velocíssimos avanços tecnológicos nos campos da comunicação. De acordo com sua própria história, as etnociências têm a identidade como conceito pilar articulado ao conceito de alteridade. 4 5

Ver POIRIER, op. Cit., p. 48. THE NEW Encyclopaedia Britannica. 15. ed. Chicago:Micropaedia, 1990. v. 4, p. 583.

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A questão epistemológica Também neste contexto teórico-histórico, vale considerar a contribuição de pesquisadores norte-americanos, como Garfinkel, que propõe já nos fins dos anos 1950 a etnometodologia como perspectiva metodo1ógica e não como uma disciplina.6 De fato, o que as etnociências podem ter como perspectiva comum é a busca da compreensão dos discursos dos diversos agrupamentos sociais sobre sua própria vida coletiva, inclusive e, talvez, principalmente, suas práticas corporais. Assumindo esta proposta, a psicologia, a musicologia, a linguística, a botânica, a história, além de outras disciplinas científicas, utilizando técnicas de pesquisa etnometodológicas, poderiam se beneficiar tanto do ponto de vista de sua consolidação específica quanto de sua articulação interdisciplinar. Na verdade, o acréscimo do prefixo etno a essas disciplinas serviu para explicitar uma perspectiva epistemológica e metodológica. No caso da etnocenologia, de modo singular, a disciplina já aparece acompanhada do prefixo etno. 7 Com apenas três anos de debate

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A esse propósito ver: GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology, Englewood Clifs. New Jersey: Prentice Hall, 1967. Este prefixo, originalmente designando raça, funciona conceitualmente, hoje, como referência à diversidade cultural da humanidade, à variedade de povos e línguas que caracteriza a raça humana. É bem verdade que teatrologia, num sentido estrito de estudos do teatro, não é um termo inédito, e que etnoteatrologia, num sentido próximo ao de etnocenologia, já aparece na obra do pesquisador baiano Nelson de Araújo (falecido recentemente, cuja obra é objeto parcial de estudos do mestrando em artes cênicas da Universidade Federal da Bahia, Adailton Santos) e na comunicação de Chérif Khaznadar, incluída neste livro. Mas a ideia de uma cenologia geral só aparece no manifesto de lançamento da etnocenologia. Vale lembrar a ocorrência do termo cenologia para designar cenografia, a criação e construção de cenários, a organização do espaço cênico para o espetáculo. Na verdade, a origem grega da palavra cena remete ao corpo do artista cênico e ao espaço no qual ele atua, mas a cenologia não pode ser reduzida à cenografia nem poderá excluir uma ou outra dessas duas vertentes semânticas (corpo e espaço cênicos) de seu corpus de pesquisa. Embora a ideia de corpo, desaparecida do sentido usual atribuído ao termo cena, seja o que prevalece hoje na proposição da etnocenologia.

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epistemológico, a partir da criação de um Centro Internacional de Etnocenologia em Paris, que tende a se afirmar mais como Rede Internacional do que como um Centro, a nova disciplina tem motivado complexos e sutis debates sobre a extensão de seu objeto (espetáculos, rituais, cerimônias e interações sociais em geral) e sobre a sua própria denominação. Indicador dessas questões é o processo, já em curso, de preparação de lançamento dos Cahiers lnternationaux d’ (Ethno) scénologie, com o prefixo etno assim mesmo entre parênteses. A ideia é afirmar o caráter temporário da denominação etnocenologia, válida, segundo nós, responsáveis por esse planejado periódico para lançamento em 1999, ao lado de Jean-Marie Pradier e de outros pesquisadores, enquanto perdurar a necessidade do combate ao etnocentrismo. A ciência contemporânea (diferentemente da ciência moderna), interessada em estudos sobre a humanidade, tem confundido as fronteiras entre natureza e cultura, ciências sociais e biológicas. Do mesmo modo, o conceito de identidade, que, segundo Maffesoli, é um instrumento eficaz para a ciência moderna deveria ser substituído pela noção de identificação, pela ciência contemporânea “pós-moderna”. 8 Acreditamos que sua sugestão possa ser útil à etnocenologia, porque os processos de conhecimento e a estética da recepção, pesquisados pelas ciências cognitivas e pelos humanistas contemporâneos, assim nos permitem pensar. Identificações sucessivas, e não- identidade única e eterna, seriam de maior utilidade heurística, atualmente. No entanto, a lógica da indistinção – que parece querer se impor à lógica moderna da distinção – deve ser tratada com humor e sem preconceitos. Acreditamos que a arte, a religião, a política e o cotidiano possuem aspectos

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8. Estas questões aparecem de modo recorrente em muitas das obras de Michel Maffesoli. Ver, sobretudo MAFFESOLI, Michel. La connaissance ordinaire: précis de sociologie compréhensive. Paris: Méridiens-Kliencksieck, 1985, publicado pela Brasiliense em 1988. Traduzido por: A. R. TRINTA, com o título O Conhecimento Comum.

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espetaculares (inserindo-se assim no campo de estudos da etnocenologia), mas não são áreas de conhecimento indistintas. O que as articula, em sua distinção conceitual e funcional, é justamente uma relativa indistinção corporal, comportamental, enquanto interação coletiva, necessariamente incorporada nas pessoas participantes, ou o que se poderia denominar de comportamentos espetaculares (mais ou menos) organizados e objeto desta almejada cenologia geral, hoje denominada temporariamente etnocenologia. Este novo paradigma epistemológico e metodológico, que a etnocenologia pretende expressar, tem como outros sinais reveladores de sua emergência no domínio dos estudos sobre o teatro, a teatralidade, o cotidiano e a “espetacularidade”, as também recentes proposições dos Performance Studies por Schechner e Turner, da Antropologia Teatral por Barba, da abordagem dramatúrgica da vida social por Goffman, da sociologia da teatralização do cotidiano por Maffesoli, dos estudos sobre as relações entre o teatro e o transe, fecundados por Leiris, da sociologia do teatro de Duvignaud, das experiências transculturais dos espetáculos e oficinas de Grotowski, Brook e Mnouchkine.9

Referencial bibliográfico Em três anos de produção bibliográfica, o referencial disponível é reduzido a menos de uma dúzia de títulos. Estes livros e artigos publicados na França e no Brasil são resultado do diálogo internacional estruturado em torno dos três encontros de pesquisadores já realizados, em 1995, na França, em 1996, no México e, em 1997, no Brasil. O presente livro 9

Ver SCHECHNER, Richard. Performance Theory. Ed. rev., ampl. Routledge, 1988, edição original de 1977 como Essays on Performance Theory, Drama Book Specialists. Ver também PRADIER, J.-M. “Ethnoscénologie, manifeste”. In: ThéâtrePublic 123, maio-junho 1995, p. 46-48 e BIÃO, A. Théâtralité et spectacularité: une aventure tribale contemporaine à Bahia. 1990. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Université René Descartes. Paris: Paris 5, 1990. Orientador: Michel Maffesoli.

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reúne, a seguir, a maioria das comunicações deste último Colóquio, acrescidas de algumas comunicações dos outros dois ainda não disponíveis em publicações em língua portuguesa. PRADIER, Jean-Marie. “Ethnoscénologie, manifeste”. Théâtre-Public 123, Paris, p. 46-8, maio/jun. 1995. (Manifesto lançado para o Colóquio de Fundação da Etnocenologia, publicado parcialmente em português em Performáticos, Performance e Sociedade, Brasília, publicado pelo grupo TRANSE - Núcleo de Estudos Transdiscipinares sobre a Performance da UNB, em 1996). DUVIGNAUD, Jean; KHAZNADAR, C., (Orgs). La scène et la terre: questions d’ ethnoscénologie. Paris: Maison des Cultures du Monde, 1996. (Número especial da série Internationale de l’Imaginaire, n.5, reunindo as comunicações apresentadas no Colloque de Fondation du Centre International d’Ethnoscénologie, realizado em Paris em 1995). PRADIER, Jean-Marie. La scène et la fabrique des corps: ethnoscénologie du spectacle vivant en Occident (Ve. Siècle av. J.–C. XVIIIe. Siècle). Talence: Presses Universitaires de Bordeaux, 1997. (Análise refinada das relações entre os espetáculos e as ciências na história ocidental). PRADIER, Jean-Marie. “Ethnoscénologie: la chair de l’esprit”. Théârtre 1, Paris, Universidade de Paris 8, p. 17-37, 1998. (Desenvolvimento das proposições anunciadas no manifesto, também disponível em português In: REPERTÓRIO TEATRO & DANÇA 1, Salvador, UFBA; PPGAC; GIPE-CIT, p. 9-22,1998.). BIÃO, Armindo. “Estética Performática e Cotidiano”. In: ______ . Performáticos, Performance e Sociedade. Brasília: UNB; TRANSE 1996. p. 12-20. (Transcrição de conferência de abertura de um evento de caráter nacional realizado na UNB em dezembro de 1995, promovido pela pelo Núcleo de Estudos Transdisciplinares sobre a Performance TRANSE, dedicado aos performance studies, no qual a etnocenologia 100

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foi apresentada pela primeira vez a expressivo grupo de pesquisadores e artistas cênicos brasileiros). BIÃO, Armindo. “Etnocenologia e as Artes Contemporâneas do Corpo na Bahia”. Revista de Antropologia 1, Recife, p. 31-81, 1997. (Transcrição de conferência realizada em Ciclo de Estudos do Imaginário, realizado na UFPE em maio de 1996, promovido pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Imaginário, dedicado à temática “localidade afetiva”, inspirada em Michel Maffesoli, na qual o pesquisador analisou o crescimento da indústria cultural na Bahia contemporânea, baseado na valorização da tradição e da condição portuária de Salvador, a partir de sua história de vida familiar). BIÃO, Armindo. “Un seul état de grace: le théâtre et le candomblé de Bahia”. Théârtre 1, Paris, p. 89-101. (Análise das interfaces entre a teatralidade, a “espetacularidade” e os estados modificados de consciência, a partir da releitura de autores de teatro e de estudos sociais que se referiram a essa temática, articulada em torno dos cultos afro-brasileiros). BIÃO, Ar mindo. COLLOQUE INTERNATIONAL D’ETHNOSCÉNOLOGIE, 3., 1998, Paris. Anais... Paris. In: NOUVELLES 64, Paris, UNESCO/ Institut International de Theatre, Jan.-abr. 1998. p.16. (Notícia sobre o evento realizado na Bahia, em setembro de 1997). BIÃO, Armindo. “O Obsceno em Cena, ou o Tchan na Boquinha da Garrafa”. Repertório 1, Salvador: UFBA/PPGAC/GIPE-CIT, p. 2361, 1998. (Versão em português de comunicação apresentada ao II Colóquio Internacional de Etnocenologia, realizado em Cuernavaca, Morelos, México, em 1996, que, ao lado do artigo de Pradier, citado acima, e de mais dois outros, um sobre a dança no candomblé da Bahia e outro sobre a teatralidade e “espetacularidade” de um culto de jurema em Pernambuco, compõem a temática central deste novo periódico acadêmico, vinculado ao GIPE-CIT e ao PPGAC/ UFBA, que abrigam projetos de pesquisa em etnocenologia). 101

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Contatos com grupos de pesquisa Para concluir esta introdução, relacionamos abaixo as coordenadas para contato de grupos de pesquisa atuantes no domínio da etnocenologia e campos afins: GIPE-CIT - Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade, Coordenador: Armindo Bião Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia Av. Araújo Pinho 292 40110-150 Salvador – BA, Brasil Faxe 00 5571 2450714 e-mail: [email protected] Homepage . Maison des Cultures du Monde, Coordenadores: Jean Duvignaud e Chérif Khaznadar 101, Boulevard Raspail, 75006, Paris, França. GRACE/ CEAQ, grupo de pesquisa sobre antropologia do corpo, Coordenador Olivier Sirost. e-mail: [email protected] Centro de estudos sobre o cotidiano (CEAQ - Paris 5), Coordenadores: Michel Maffessoli e Pierre le Queau e-mail: [email protected] CIPE/ Uruguai - Centro de Investigación en Prácticas Espetaculares, Coordenadores: Lucia Calamaro e Rafael Mandressi Horacio Quiroga 6188 11500 Montevideo, Uruguay Fax 00 598 2 958729 102

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Instituto de Cultura de Morelos, Coordenadora: Mercedes Iturbe Argüelles Jardín Borda Av. Morelos 103 - Centro C. P. 6200 Cuernavaca, Morelos, México Faxe 005273 186372 TRANSE/ UNB Núcleo de Estudos Transdiciplinares sobre a Performance, Coordenador: João Gabriel Teixeira. e.mail: [email protected] NIEI/ UFPE Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Imaginário, Coordenadora: Danielle Rocha Pitta. e-mail: [email protected]

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Um mesmo estado de graça o teatro e o candomblé da Bahia*

Os cultos afro-brasileiros, inclusive o Candomblé da Bahia, têm sido objeto de importantes pesquisas. Consultando essa bibliografia, e interessado na construção epistemológica de uma etnociência dos fenômenos espetaculares, decidi reunir algumas notas comparativas, concernentes ao teatro e aos rituais de possessão. Gostaria, assim, de contribuir para o projeto proposto por Jerry Grotowski, ao longo de suas aulas magistrais para o Collège de France, que criou especialmente para ele em 1997 a cadeira de Antropologia Teatral: o de investigar a experiência mística e a teatral em torno de suas performances públicas. Grotowski é um dos homens de teatro que mais tem atuado na construção dessa área interdisciplinar de conhecimento teórico e prático. Seu interesse pelos cultos afro-americanos tem se mantido e ampliado ao longo dos últimos oito anos. Jean Duvignaud (1973, p.13), fazendo referência aos “múltiplos aspectos da prática social do teatro”, que, segundo ele, permitem “estabelecer este laço tão procurado entre a estética e a vida social”, qualifica o Candomblé da Bahia como forma “de teatralização por assim dizer espontânea”. A propósito da festa, e igualmente do Candomblé da Bahia, ele afirma: “O transe de possessão é um espetáculo... aqui atuar e ser, na

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Texto escrito originalmente em francês para o periódico do Département Théâtre, da Université Paris 8 (Théartre, Paris, n. 1, p. 89-101, 1998), traduzido por Isa Trigo (Mestranda em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, UFBA) e Ana Luiza Friedmann (Bolsista de Aperfeiçoamento CNPq na Escola de Teatro da UFBA), com revisão final do autor, e publicado in: Urdimento: revista de estudos sobre teatro na América Latina, Florianópolis, n 2,: p. 3-12, 1998.

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festa desencadeada pelo transe, literalmente se confundem” (DUVIGNAUD, 1965, p.246).1 Michel Simon, em seus comentários sobre o teatro brasileiro, incluiu as cerimônias do Candomblé e outras dos cultos afro-brasileiros num tipo de “teatro popular do Brasil”.2 Roger Bastide, para quem “os cultos de possessão englobam uma enorme variedade de tipos”, fala de “transes espontâneos, criativos... de mitos, animadores de espetáculos reatados e renovados, como aqueles dos zâr, estudados por Leiris”. Segundo Bastide, um dos maiores especialistas em cultos afro-brasileiros, as funções manifestas dos cultos de possessão são: 1) “a necessidade de assegurar a harmonia do cosmos e da sociedade; 2) a profecia [...]; 3) a cura das doenças”

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Cf. DUVIGNAUD, Jean. Les ombres collectives: sociologie du théâtre. São Paulo: PUF, 1973. p. 13. (para a primeira citação), e DUVIGNAUD. Fêtes et civilisations. [S.l]: Scarabée, 1984. p. 195 (para a segunda referência); Também sobre o Candomblé da Bahia, cf. DUVIGNAUD. L’acteur: sociologie du comédien. [S.l]: Gallimard, 1965. p. 246. Permito-me aqui uma digressão a propósito dos rituais de de-possessão e o teatro: a propósito de práticas espetaculares de exorcismo (ou, dito de outro modo, de rituais de de-possessão), na Inglaterra, no tempo de William Shakespeare, Stephen Greenbalt analisa as acusações feitas aos católicos pelos protestantes. Estes denunciavam a fraude e a encenação praticadas, segundo eles, em particular pelos Jesuítas/ exorcistas, posto que a possessão, e por consequencia a de-possessão, seria “teatral”. Além disso, ele mostra como as referências ao exorcismo nas peças de Shakespeare (The Comedy of Errors, Twelft Night, All’s Well That Ends Well, A Mid Summer Night’s Dream, e sobretudo King Lear) servem de reforço à ideia do amálgama fraude/ teatro/ exorcismo, assim que à rejeição ao catolicismo. O autor mostra igualmente as influências mútuas (inclusive o empréstimo de frases inteiras) entre o teatro de Shakespeare e os textos publicados por autoridades protestantes sobre o tema à época. Mas ele conclui, utilizando o exemplo da cena da falsa possessão de Edgar em King Lear: “rituais evacuados de sua significação original são preferíveis à ausência total de rituais” (eu traduzo), In: GREENBALT, Stephen. Shakespearean Negotiations. [S.l]: University of California Press, 1988. p. 127 e passim. Cf. SIMON, Michel. “Théâtres Nationaux : le Brésil”. In: DUMUR, Guy (Dir.). Histoire des Spectacles. [S.l]: La Pléiade, [19-?]. p.1303-1304.

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(BASTIDE, 1972). 3Ao lado destas funções ‘manifestas’, ainda há outras, que ele denomina ‘latentes’, mas que não seriam “menos importantes” que as primeiras. Entre estas funções ‘latentes’, ele afirma que os cultos de possessão teriam função de catharsis, que as aproximaria “dos psicodramas (René Ribeiro), dos sociodramas (Roger Bastide), ou ... etnodramas (Lois Price-Mars)”.4 Além disso, no seu livro Le Candomblé de Bahia (Rite Nagô), Bastide fez inicialmente referência aos “aspectos espetaculares ou dramáticos” do culto: “A dança resulta em uma ‘ópera fabulosa’; a expressão célebre de Rimbaud aplicando-se exatamente ao fenômeno”.5 Da mesma maneira que Duvignaud ou Simon, Bastide (1958), no entanto, mais atento aos aspectos religiosos dos cultos, bem como às “sobrevivências” africanas no “novo mundo”, não deixou de assinalar os pontos comuns ao teatro e aos cultos de possessão. Umberto Eco (1985, p. 151), num contexto menos teórico que jornalístico, afirma, a propósito das injustiças sociais no Brasil, que os cultos afrobrasileiros “são perigosamente próximos dos ritos do carnaval e do futebol”, como maneiras diferentes de “conter as massas deserdadas nas suas reservas”.6 Não é demais pontuar que o autor de A guerra do falso (uma coletânea de artigos de jornal) aproxima os cultos de possessão afro-brasileiros daquilo que se pode chamar “práticas espetaculares” (o carnaval, as competições esportivas). Sobre suas intenções neste livro, ele afirma: “Se estes artigos tentam denunciar alguma coisa aos olhos do leitor, não se trata de descobrir as coisas sob os discursos, mas muito mais os discursos sob as coisas... É uma escolha política criticar os mass 3

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Cf. BASTIDE, Roger. “Prolégomènes à l’étude des cultes de possession” (communication au Colloque 1968 sur la possession). In: BASTIDE, R. Le rêve, la transe et la folie. Paris: Flammarion, 1972. p. 84-85. BASTIDE, op. cit. Cf. BASTIDE, R. Le candomblé de Bahia: rite nagô. Paris: Mouton, 1958. p. 174. (o autor insiste sobre os aspectos de violência e de “sexualidade” das danças rituais). Uma nova edição deste livro, que se tornou um clássico, está sendo organizada por Jean Duvignaud. ECO, Umberto. “Avec qui sont les Orixa?”. In: ______ . La guerre du faux. Paris : Grasset & Fasquelle, 1985. p.151.

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mídia através dos mass mídia. No universo da representação ‘massmidiática’, esta é talvez a única escolha de liberdade que nos resta” (ECO, 1985, p. 13).7 O espírito crítico demonstrado pelo grande mestre italiano, a respeito do assunto, certamente salutar, não obstante, inscreve-se na postura dos intelectuais a quem a história do Ocidente e da Modernidade ensinou a desconfiança em relação ao espetacular. Infelizmente, não se encontrou ainda o texto de Aristóteles sobre a comédia, que fazia um dos centros da intriga do Nome da Rosa. Se ele tivesse sido achado, talvez tudo fosse diferente. A Poética de Aristóteles que conhecemos é um dos documentos fundadores da cultura ocidental e da modernidade, assim como, pelo menos parcialmente, a origem desta desconfiança em relação ao caráter espetacular do teatro. Victor Turner tem uma abordagem dos cultos afro-brasileiros, bem como do futebol e do carnaval brasileiros, oposta à de Eco. De fato, Turner é um dos intelectuais contemporâneos que representam melhor o novo paradigma que parece querer se constituir, criticando o da modernidade. A partir da interface teatro/ antropologia, onde inscreve sua noção de ‘drama social’, ele se interessou, já nos últimos anos de sua vida, particularmente pelo Brasil e pelo Japão. O que se poderia chamar de “práticas espetaculares” corresponde, em grande parte, ao que ele chama de “gêneros de performance”.8 A respeito precisamente do Brasil, ele afirma que esses “gêneros de performance” (cultos, carnaval, futebol) gozam aí de grande popularidade, impressionando todos os que o visitam. “Importantes nações industrializadas como o Brasil e o Japão não desprezaram seus festivais públicos. Elas os elevaram à categoria de suas realizações seculares – tudo isso sem destruir o encantamento e a

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ECO, Umberto. “Préface à l’édition française”, op. cit., p.13. Cf. “Social dramas in Brazilian Umbanda: the dialetics of meaning”, “Carnaval in Rio”, “Dionysian drama in industrializing society” et “Rokujo’s Jealousy: liminality and the performative genres”. In: TURNER, Victor . Anthropology of Performance. New York: PAJ, 1986.

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teatralidade de suas raízes” (TURNER, 1926, p. 128)9. Depois de ter analisado em detalhe o sistema proposto por Roger Caillois para descrever o elemento lúdico, Turner (1986, p. 137) mostra que todas as categorias de lúdico sugeridas por Caillois encontram-se no carnaval do Rio. E conclui: “O Carnaval é feito para servir como uma sorte de paradigma, ou de modelo, para todo o mundo moderno e pós-moderno”.10 Julian Beck, na época diretor do Living Theater, e Georges Lapassade, pesquisador especialista em transe e outros estados modificados de consciência, visitaram juntos diferentes lugares de cultos de possessão no Brasil. O primeiro observou a falha essencial do ‘teatro religioso’, a saber, o de ser “a mais válida apatia, o ópio do povo”. Mas ele afirmou igualmente, a propósito mais particularmente dos rituais de quimbanda (uma variante dos cultos afro-brasileiros do Rio), num texto intitulado “Teatro Sexual”: “É o caminho do povo oprimido. É a sua revolução. É a expressão verdadeira de um sonho popular. É o teatro desesperado pleno de esperança” (BECK, 1978, p.152).11 As observações sobre o “teatro religioso” e sobre o “teatro sexual” são reveladoras de uma atitude que se desejava ao mesmo tempo “revolucionária” e “anarquista”. Esta atitude, da qual Beck é um dos representantes, caracterizou certas aventuras artísticas do começo dos anos 70. Se a elas me refiro, não é porque as sustente, mas simplesmente porque quero reunir o maior número possível de comentários de homens de teatro e de ciência, relativos à interface teatro/ rituais afro-brasileiros.12 Em minha opinião, Beck não fez senão caricaturar de maneira exacerbada as qualidades “conservadora” e “revolucionária” que podem eventualmente ser atribuídas às formas sociais designadas pela expressão “práticas espetaculares”. 9

TURNER, op. cit., p. 128. (Tradução do autor). TURNER, op. cit., p. 137. (Tradução do autor). 11 BECK, Julian. La vie au théâtre. Paris Gallimard, 1978. p.152 et Seq. 12 A propósito de temas parecidos, ver ROUGET, Gilbert. La musique et la transe. Paris: Gallimard, 1980 e PIMPANEAU, Jacques. “Les liens entre les cultes médiumniques et le théâtre, entre les chamans et les acteurs”. In: ______ . Actes des Rencontres internationales sur la fête et la communication: transe, chamanisme possession. [S.l] : Serre/ Nice-Animation, 1986. 10

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Lapassade (1990), que prosseguiu suas pesquisas sobre os “estados modificados da consciência”, escreveu para a coleção “Que sais-je?” um livro sobre o transe13, onde faz referência ao comentário de Beck – “a melhor comediante do Rio” – sobre uma adepta dos cultos. Nessas reflexões sobre “Possessão e Teatralidade”, reconhece a “dimensão de teatralidade nessas práticas, como sublinhou Michel Leiris” e conclui com uma citação de Jean Duvignaud:

A ambiguidade mesmo desses estados – sobre a qual Leiris é o único a insistir porque é artista tanto quanto etnógrafo – constitui a realidade do fenômeno. É porque a simulação não seria um estado marginal entre o teatro e o êxtase, a mentira e a verdade, mas um dos elementos componentes do estado de possessão. Esta abreviação feita a propósito da possessão ritual e de seu teatro poderia ser generalizada ao conjunto dos transes (DUVIGNAUD Apud LAPASSADE, 1990, p.98). 14 Não tenho a intenção de discutir o “conjunto de transes”, mas no que concerne à possessão ritual, penso já ter demonstrado que a questão da sinceridade aí não é pertinente (BIÃO, 1990, p.132)15. Não obstante, salvaguardo a “ideia de ambiguidade” de Duvignaud, que me parece aproximar-se da noção de “liminaridade” de Turner, isto é, da qualidade do que está ao nível do limiar, ou dito de outra forma, o que está entre duas manifestações. Ora, o teatro reunindo jogo e vida, e o transe, reunindo divindade e humanidade, são bem o domínio da ambiguidade e da “liminaridade”. Peter Brook (1985), outro homem de teatro sempre muito ativo, pronunciou-se também sobre os cultos afro-brasileiros. A propósito destes contatos com os adeptos do culto no Rio ele fez a seguinte reflexão: “ [...] a possessão entre eles parece repousar inteiramente sobre o fato de que a 13

LAPASSADE, Georges. La transe. “Que sais-je?” Paris: [s.n.], 1990. p. 2508. LAPASSADE, Georges, op.cit, p.98; cf. “EXISTENCE et possession”. In DUVIGNAUD, J. L’acteur: sociologie du comédien. [S.l]: Gallimard, 1965. p.244. 15 BIÃO, Armindo Jorge de Carvalho. Théâtralité” et “Spectacularité: une aventure tribale contemporaine à Bahia. Paris, 1990. Tese (Doutorado) – Programa de PósGraduação em Artes Cênicas, Université René Descartes Paris V Sorbonne, Paris, 1990. p. 132-142. (Sob a orientação de Michel Maffesoli). 14

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pessoa perde a consciência”16 (BROOK, 1985, p.201). Ora, como Ruth e Seth Leacock (1972) observaram, a propósito dos cultos afro-brasileiros da região do Pará, na Amazônia, a total perda de consciência não é verossímil posto que os adeptos em transe de possessão, apesar de se encontrarem numa aparente desordem, não se chocam17. De fato, o que me interessa aqui é colocar lado a lado duas opiniões contraditórias sobre uma questão, a propósito da qual já me exprimi18. O que é mais notável segundo Brook (1985), é a comparação que ele faz entre o rosto de uma pessoa em transe de possessão e uma máscara de teatro desde que esta comparação remete à convenção teatral de persona. É a posição de evidência ocupada por uma pessoa, temporariamente, com relação ao grupo. André Villiers (1961), em “O Claustro e a Cena – Ensaio sobre as conversões dos atores” considera o ator como natureza de “personagem sagrado”. A partir dos exemplos documentados de conversões de atores, ele traça um quadro de “disposições caracterológicas” e de “circunstâncias favoráveis”. E comenta o fato de que um número dessas conversões, cujo melhor exemplo é o de São Genésio, tornou-se tema de peças de teatro: “Lope de Vega, Rotrou, Francisco de Rojas, Henri Ghéon, levaram à cena exemplos edificantes de atores iluminados pela graça durante a representação” (VILLIERS, 1961, p. 9 e 161).19 É Villiers quem nos sugere uma feliz expressão, a saber, “estado de graça”. Talvez devêssemos utilizá-la em lugar de “estado de consciência”, a propósito do desempenho do ator de teatro e do transe do adepto do culto de possessão. Este estado é o exemplo paradigmático do que chamei “o gozar do jogar” (BIÃO, 1990, p.21-25).20 16

Cf. BROOK, Peter “Mensonge et adjectif superbe”. In: Le masque: du rite au théâtre.[S.l]: CNRS, 1985. p.201. (Entrevista). 17 LEACOCK, Ruth; LEACOCK, Seth. Spirits of the Deep. [S.l]: Doubleday, 1972. Ver: MOTTA, Roberto. O desenvolvimento da noção de “gradação de papéis, do jogo de papéis cotidianos ao jogo teatral, à hipnose, à histeria e ao êxtase”. [S.l: S.n., 199?]. p.214., que igualmente utilizou referências teatrais (“dramatis persona” e “original drama”) fala, também no contexto de cultos afro-brasileiros, de “excitação dionisíaca”, a partir de um ponto de vista próximo a Nietzsche. Cf. 18 BIÃO, A., op. cit, p. 127-132. 19 VILLIERS, André. Le Cloître et La Scène: essai sur les conversions d’acteurs, Nizet. Paris: Nizet, 1961. p. 9 e 181 et seq. Cf. GHEON, Henri. Le comédien et la grâce. Paris: Plon-Nourrit, 1925. (Peça de teatro sobre a conversa de São Genésio). 20 BIÃO, A. “Le jouir du jouer”. In : SOCIÉTÉS, Paris, n.17, p.21-25, 1990.

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Para encerrar essas reflexões comparativas teatro/ rito de possessão, retive três pontos essenciais da obra mais citada sobre o assunto, do livro de Leiris (1958) sobre os etíopes de Gondar: 1. A Commedia dell’Arte constitui para Leiris uma referência paradigmática para estudar o culto dos zâr. Uma referência que resta, contudo, marginal, no curso da história do teatro “erudito” na Europa, porque contém as fontes de uma forma de teatro muito “corporal” e muito popular. E isso ainda que seja retomada de tempos em tempos – como é o caso dos últimos trinta anos. Com efeito, a Commedia dell’Arte difundiu-se pela Itália, passando principalmente pela França, em direção ao resto da Europa e, em seguida, para o Novo Mundo, em particular aos países de colonização ibérica. Estes, em graus diversos, tinham sido já talvez fecundados pela Commedia diretamente pelo contato entre as companhias italianas com as da Espanha e Portugal. Um possível sinal deste fato é a presença do Arlequim em “danças dramáticas populares” do Nordeste brasileiro, como a do Bumbameu-Boi (DUCHARTRE, 1985) 21. A Commedia dell’Arte, tendo a mesma forma tradicional que deu origem tanto ao Punch inglês quanto ao trio Pierrot/ Arlequim/ Colombina, sempre presente no carnaval brasileiro. Diferentemente de outras formas sociais que sofreram do 21

Sobre as origens e expansão da Commedia Dell’Arte na Europe, ver DUCHARTRE, Pierre-Louis. La Commedia dell’arte. Paris: Librairie Théâtrale, 1985; e MAMCZARZ, Christian Bec et al .. Le théâtre italien en Europe: XVème – XVIIème siècles. São Paulo: PUF, 1983. A propósito de personagens ligados à tradição da Commedia Dell’Arte no carnaval brasileiro, pode-se pensar que eles aparecem a partir da metade do séc. XIX, com a moda do carnaval veneziano; Cf. QUEIROZ, Maria I. P. de. “Carnaval brasileiro: da origem europeia ao símbolo nacional”. Ciência e Cultura, [S.l], n.39, v.8, 1987; e DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandras e Heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. Ver também BROCKETT, Oscar. History of Theatre. Boston: Allyn and Bacon, 1982. Sobre a “dança dramatica” do Bumba meu Boi, de origem ibérica, onde existe um personagem chamado Arlequim, cf FOUGERAY, Sylvie. Le bouef le sang et le jeu, Paris, 1991. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Paris 7 Jussieu, 1991. (Sob a orientação de J. Duvignaud).

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mal de ficarem muito tempo fechadas no edifício teatral, cuja matriz foi a sala desenhada em função da perspectiva, a Commedia dell’Arte conheceu tanto os palcos ao ar livre quanto os salões burgueses e as cenas à italiana. Mais enraizada no “mundo da vida cotidiana”, ela procurou sempre se misturar ao público. Ora, Leiris considera “como da mesma ordem” os personagens das antigas Atellanas, os predecessores da Commedia dell’Arte e os “gênios possuidores da Etiópia” (LEIRIS, 1958, p.9).22 Pode-se pensar de maneira semelhante, no tocante à “mesma ordem”, em relação aos Orixás do Candomblé. 2. O segundo ponto que gostaria de reter da obra clássica de Leiris (1958) é a semelhança que ele nota entre os costumes e os acessórios utilizados no culto e aqueles “de carnaval ou de teatro”.23 Na Bahia, há vários pontos de comércio especializado que servem aos foliões de carnaval e aos atores de teatro e também aos adeptos do Candomblé. Além dessa observação, uma pequena anedota ilustra, em particular, no tocante ao teatro e ao carnaval, como as roupas e acessórios do primeiro podem servir ao segundo. Na Bahia, em 1878, o governo local decidiu proibir a forma pela qual se brincava o carnaval na época. Essa forma, chamada entrudo, consistia em jogar-se – uns nos outros – água, farinha, e outras coisas para sujar corpos e roupas. Ora, para promover o novo “carnaval”, “mais limpo e civilizado”, o governador autorizou o empréstimo à população da rica coleção do teatro oficial à guisa de fantasias (RUY, 1959, p.38).24 3. Minha última observação sobre esta obra pioneira é a seguinte: Leiris (1958) sugere que os “aspectos estéticos e teatrais do ritual”, assim como as exigências quase cênicas em matéria de iluminação, além de seu valor como “divertimento” e “espetáculo”, são sinais de um “desenvolvimento possível no sentido do teatro.”25 A sugestão de Leiris insere-se perfeitamente na linha sociológica, cujas balizas foram 22

Cf. LEIRIS, Michel. La possession et ses aspects théâtraux chez les éthiopiens de Gondar. Paris: Plon, 1958. p. 9. 23 LEIRIS, op.cit., p. 36. 24 Cf. RUY, Affonso. História do Teatro na Bahia. Salvador: UFBA, 1959.p. 38.

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colocadas pelo pai fundador da sociologia. Com efeito, a propósito dos “ritos representativos ou comemorativos”, Émile Dürkheim (1985) faz referências explícitas a um “ator que desempenha seu papel”, a uma representação figurada, assim como ao “elemento recreativo e estético”26. E conclui: O mundo das coisas religiosas é então, mas somente na sua forma exterior, um mundo particularmente imaginário e que, por esta razão, se presta mais dificilmente às livres criações do espírito. Aliás, porque as forças intelectuais, que se prestam a sua construção são intensas e tumultuosas, a única tarefa que consiste em exprimir o real com a ajuda de símbolos convenientes não é suficiente para os ocupar. Um excedente fica geralmente disponível que procura se empregar em obras suplementares, supérfluas e de luxo, isto é, em obras de arte. [...] Quando um rito só serve para distrair, ele não é mais um rito [...] (DURKEIM, 1985, p.545-546).27

Evidentemente, não se pode conhecer o que não se conhece a não ser a partir do que se conhece já. Mas daí a se poder concluir que as “coisas” sociais “evoluem” todas no mesmo sentido, há uma grande distância problemática. Por outro lado, a ideia de que as obras de arte são “obras suplementares, supérfluas e de luxo”, com relação ao “mundo das coisas religiosas”, tampouco se resolve sem colocar problemas da ordem da axiologia e da filosofia da história, que ultrapassam o objetivo do presente trabalho. Em minha opinião, o desejo de Leiris (1958) é o de testemunhar o nascimento de uma nova forma teatral, o que a leva a raciocinar desta maneira, a saber, imaginando um “desenvolvimento possível”, para não dizer “provável”, do culto dos zâr para o teatro. Eu me identifico 25

LEIRIS, op.cit., p. 98-99; também a propósito, ver BOURGAUX, Jean. Possessions et simulacres aux sources de la théâtralité. Paris: Epi, 1978. 26 Cf. DÜRKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: Quadrige; PUF, 1985. p. 542. 27 DÜRKHEIM, op.cit, p. 545-546.

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completamente com o seu encaminhamento neste caso particular, por que já tive certeza de que o Candomblé da Bahia poderia se desenvolver na mesma direção. No entanto, hoje, tenho mais dúvidas do que certezas a respeito. E no lugar de prever, contento-me em tentar ver. E, neste momento, o que vejo, é que o Candomblé, assim como outros cultos de possessão afro-baianos, ou algumas formas de teatro, e mesmo o carnaval, da maneira como se brinca na Bahia, oferecem aos seus adeptos/ atores/ foliões a possibilidade de se atingir o estado de graça. À guisa de conclusão, é importante que os leitores compreendam minha posição ao mesmo tempo prática e teórica, no que diz respeito a estas reflexões que acabo de apresentar. Baiano de nascimento e formação cultural, encenador, comediante, ator de teatro28, curioso do Candomblé e folião eventual, situo-me na linhagem de antropofagia cultural. A “antropofagia” é bem um traço forte da arte que se produz no Brasil, acompanhada de um discurso tipicamente brasileiro, que pode ser compreendido pelos estrangeiros, desde os anos 20 deste século. Sim, o paradigma moderno da distinção está em crise. Sim, a confusão conceitual se instala por todos os lugares. Sim, a Bahia é o produto da escravidão dos africanos, do genocídio mais ou menos intencional dos índios nativos e da aventura marítima dos portugueses. Sim, a indústria cultural e do turismo podem ajudar a Bahia a espantar a miséria, assim como a reduzir os extremos contrastes socioeconômicos. Sim, o cotidiano baiano mistura carnaval, religião e teatro. Mas há três coisas diferentes entre as quais se pode (e deve) fazer distinções: a religião, a arte teatral e a festa carnavalesca. É a partir destas distinções e de suas interfaces que poderemos contribuir para a construção da etnociência dos 28

Os jesuítas utilizaram o teatro entre os séculos XVI e XVII, no Brasil, para a catequese de nativos e a educação de colonos aventureiros, tornando-os atores, público e, até mesmo, personagens. Este teatro “educativo” misturava o português às diferentes línguas utilizadas pelos seus participantes para construir os espetáculos. A Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, que forma atores, diretores e professores de teatro, foi fundada em 1956. Hoje em dia, no Brasil, existe aproximadamente uma dezena de instituições parecidas. Historicamente, as primeiras escolas formais de teatro, ainda não universitárias (no Rio e São Paulo) datam da primeira metade do século XX.

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“comportamentos espetaculares organizados”, a etnocenologia (MARIEPRAIER; KHAZNADAR; DUVIGNAUD, 1995).29 Na Bahia fazemos teatro (aí compreendendo a variante profissional/ comercial que é reconhecida em todo o Brasil e mesmo na Broadway, onde um primeiro espetáculo baiano fez temporada em português em novembro de 1997). Utilizamos o teatro na educação (tanto regular quanto para pessoas com limitações sensoriais – cegos e surdos – mudos, por exemplo). Nós o utilizamos igualmente na afirmação étnica (dos negros baianos, por exemplo), para fins terapêuticos ou, ainda, para simples divertimento. Nós temos rituais religiosos espetaculares, importantes e formidáveis festas. Gostamos de espetáculos vivos onde as interações face a face (ou corpo a corpo, como prefiro designá-las) são dominantes. Mas gostamos também das novas tecnologias (aí compreendidas as telemáticas, das quais um polo começa a se consolidar na Bahia) e seu lado espetacular, acreditando que uns e outros podem se alimentar mutuamente. Por fim, assumo uma característica bem baiana, um tipo pretensioso de ambição cultural, visto que me faço porta-voz de uma cultura. Nós queremos não somente atingir o estado de graça, mas também estar em consonância conosco mesmos e com os outros, de maneira que possamos “comê-los” (como nossos ancestrais tinham por hábito). Nosso objetivo é trazer para nós o que possamos encontrar de belo, bom e útil em cada pessoa, seja ela próxima ou estrangeira. É por isso que estamos participando da construção da etnocenologia. 29

A este propósito ver os resultados do Colóquio de Fundação do Centro Internacional de Etnocenologia in: La Scéne et la terre: Questions d’Ethnoscénologie – Internationale de l’Imaginaire, 5., Maison de Cultures du Monde, 1996. Organizado por MARIE-PRADIER, Jean; KHAZNADAR, Chérif e DUVIGNAUD, Jean (Paris, maio de 1995), este centro tornou-se mais uma organização informal do tipo rede (bem de acordo com nossos tempos). Após ter participado do II Colóquio, no México em 1996, tive a honra de coordenar a organização do III Colóquio Internacional de Etnocenologia, com o apoio dos meus colegas da Escola de Teatro e das Universidades Federais da Bahia, Brasília e Pernambuco, e Paris 8 (Jean-Marie Pradier). Este Colóquio foi realizado em Salvador, Bahia, Brasil (de 24 a 28 de setembro de 1997), com o apoio institucional da UNESCO e o patrocínio do Governo do Estado da Bahia. Seus resultados devem aparecer publicados brevemente em português e, parcialmente, em francês.

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Questions posées à la théorie: une approche bahianaise de l’ethnoscénologie*

Le contexte Ce n’est pas un hasard si le terme « ethnoscénologie » puise ses racines dans la langue grecque. Celle-ci demeure toujours la référence des codes linguistiques dominant l’univers intellectuel dans le monde. D’une part, la critique de l’ethnocentrisme, qui s’est développée dans le milieu intellectuel européen ces derniers temps, les conflits interculturels, notamment avec les immigrants d’origine maghrébine en France, l’importance et la violence des mouvements d’affirmation ethnique et religieuse, d’autre part, la banalisation des nouvelles technologies de communication et l’expansion d’un marché de consommation mondial, forment le contexte qui a donné naissance à cette nouvelle discipline. De pair avec l’air du temps et sa mise en cause des paradigmes de la science moderne, l’ethnoscénologie se constitue sous le signe du paradoxe. Il s’agit bien d’une discipline mais que se veut interdisciplinaire. Questions Le terme ethnologie correspond en France à ce qu’on appelle habituellement aux États-Unis anthropologie culturelle et en Angleterre anthropologie sociale. Il s’agit de la discipline scientifique qui s’attache à étudier un groupe racial (une ethnie), un peuple, une nation. Sa méthode privilégiée est l’ethnographie, c’est-à-dire, la description des phénomènes sociaux de la population choisie comme objet de recherche.

* Publié à l’origine dans Internationale de l’imaginaire, Nouvelle série, n. 5 : La scène et la terre, questions d’ethnoscénologie, Paris: Babel; MCM, 1996. p. 145-152.

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Ethnobotanique, ethnolinguistique et ethnomusicologie sont des dérivés de cette discipline qui étudient des différents aspects (linguistiques ou musicaux, par exemple) du patrimoine réel et du patrimoine imaginaire d’une ethnie et par extension d’un groupe culturel donné s’exprimant par des habitudes, des usages relevant de la communication et des rituels. L’ethnoscénologie s’inscrit dans la même perspective et partage les mêmes problèmes épistémologiques. 1. Tout d’abord, ressort la difficulté de bien circonscrire l’objet de la recherche. Selon le manifeste du Centre international d’ethnoscénologie, la diversité culturelle comprend, du point de vue des pratiques spectaculaires organisées, des façons d’être, «de se comporter, de se mouvoir, d’agir dans l’espace, de s’émouvoir, de parler, de chanter et de s’orner qui tranchent sur les activités banales du quotidien ou les enrichit et fait sens». Dans quelle mesure, le théâtre, la danse, la musique, les rituels religieux, les compétitions sportives, les manifestations politiques, les défilés, ainsi que d’autres célébrations collectives, s’inscrivent dans cet ensemble? Est-ce que les habitudes partagées par les gens de Bahia (la ville de Salvador de Bahia, au Brésil) lorsqu’ils fréquentent la plage presque quotidiennement, par exemple, y trouvent leur place? 2. Se pose ensuite la question de l’ambiguïté de la méthodologie. En s’opposant au préjugé ethnocentriste afin d’essayer de résoudre un des plus importants problèmes de ses disciplines-sœurs, l’ethnoscénologie propose la réalisation «d’analyses intérieures» et «d’analyses extérieures» et d’abandonner les notions telles que «mentalité prélogique», «primitif» et «sociétés appelées à disparaître». Elle propose également la création d’un inventaire des pratiques spectaculaires organisées. Comment établir les conditions de la recherche, les relations entre le chercheur et l’objet de son étude, le trajet qui va du sujet à l’objet? 118

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Comment la sympathie et l’empathie1 y sont prises en compte? Quoi faire de la capacité de juger? Comment décrire les rites d’excision, par exemple? Quelles limites fixer entre l’éthique et l’esthétique? Maffesoli2 parle de l’éthique de l’ésthétique, du sentir ensemble qui fait lien. Lorsque le chercheur est (ou devient) partie prenante de son objet d’étude, comment juge-t-il le préjugé ethnoscentriste? Comment traduire (traduttore traditore) dans des langues et donc des façons de penser et d’être diverses, des phénomènes semblables mais différents? Pour tenter de répondre à ces questions, il faudra décider de l’ampleur et de la diversité de l’objet d’étude. Un critère peut être l’appétence du chercheur qui lui donnera cette «compétence unique» dont parlent les ethnométhodologistes nord-américains. Grâce au concours des chercheurs de différentes «ethnies» de la Planète, l’ethoscénologie pourrait construire son inventaire des pratiques spectaculaires. D’autre part, le chercheur devra assumer son implication dans l’objet de son étude, soit avec l’ethnie soit avec le groupe social qui l’intéresse. 3. La dernière question concerne l’affirmation du manifeste suivante: «le triomphalisme technologique conduit à la massification des formes culturelles. Les modéles dominants sont diffusés et donnés pour universels, tandis que l’extrême variété des pratiques ne trouve pas droit de cité.» Or, la caractéristique spectaculaire de l’exotique est de plus en plus explorée par les médias, l’industrie culturelle et l’industrie du tourisme. L’appel commercial de l’exotique devient, en quelque sorte, une tarte à la crème. 1 2

SCHELER, Max. Nature et formes de la sympathie. Paris : [S.n.], 1971. MAFFESOLI, Michel, Temps des tribus: le déclin de l’individualisme dans la société de masses. Le Livre de poche, Paris, 1986 (rééd. 1991). 288 pages.

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Les modèles culturels dominants, marqués principalement par la façon de vivre et de penser aux États-Unis et en Europe occidentale, sont des piliers du marché mondial et de l’expansion des nouvelles technologies. L’attraction et le rejet de l’étranger y trouvent simultanément droit de cité. Pourtant, nombre de chercheurs contemporains y voient une tendance différente de la « massification » exprimée par le manifeste. Maffesoli, par exemple, évoque la société de masses mais aussi l’affirmation croissante du local et du tribal. Le triomphalisme technologique peut-il être un allié de l’ethnoscénologie? Je crois que si l’on parvient à relativiser ce triomphe, on peut répondre affirmativement. Un état des lieux dans les études théâtrales a Bahia La « nation » bahianaise est unique du fait qu’elle résulte d’un mélange d’ethnies d’origines native, européenne et africaine. En cela, elle est comparable à certaines «nations» antillaises et nord-américaines. Par ailleurs, les traditions et les nouvelles technologies y semblent faire bom ménage. C’est ce que j’ai cherché à montrer dans mes recherches sur les transformations dans la vie quotidienne et le théâtre au cours des années 1968-1980 à Bahia.3 L’industrie du tourisme et l’industrie culturelle se fondent (comme ailleurs) sur la tradition. Ville portuaire, marché et forteresse, Salvador de Bahia a été capitale du Brésil et la plus importance ville de l’Hémisphère Sud pendant près de deux siècles. La vocation bahianaise à affirmer tout à la fois sa singularité, ses traditions et une sympathie envers les nouveautés s’exprime notamment dans l’invention du trio elétrico (depuis 1950): un gros camion qui circule lors du carnaval ou d’autres célébrations collectives, transportant des musiciens bien équipés qui jouent, pour la danse, une musique fortement influencée par les percussions africaines sur des paroles 3

BIÃO, Armindo. Théâtralité et spectacularité: une aventure tribale contemporaine à Bahia. Paris, 1990. Thèse (Doctorat) - Université René Descartes, Sorbonne, Paris, 1990.

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à dominante portugaise avec des instruments originaires des trois Continents. L’industrie phonographique connaît à Bahia un essor considérable depuis une dizaine d’années. Le show business en général et le théâtre en particulier en tirent profit. Les manifestations religieuses, les fêtes populaires et les habitudes quotidiennes, qui servent d’assise à ce bouillonnement, connaissent une croissance remarquable, contrairement aux intuitions de certains intellectuels, notamment Roger Bastide. On pensait en effet que le développement industriel de la région de Bahia depuis une vingtaine d’années ferait disparaître par exemple le candomblé, rite religieux fondé sur la transe et la possession. C’est une toute autre réalité qui se dessine aujourd’hui, si l’on en juge d’après les travaux des historiens, sociologues, anthropologues, ethnologues, folkloristes, et d’après les témoignages d’artistes et de curieux en général. Le théâtre professionnel, en tant qu’activité permanente et régulière apparaît comme un événement dans les années quatre vingt ; le théâtre universitaire, quant à lui, célébrera l’année prochaine son quarantième anniversaire. C’est au début du XIXe siècle que les élites bahianaises commencéèrent à fréquenter les salles de théâtre de la ville. Celles-ci étaient apparues au XVIIIe mais ne fonctionnaient alors que de manière épisodique. Entre le XVIe et le XVIIe siècle, afin d’éduquer les populations indigènes et les colons, les jésuites avaient utilisé les techniques théâtrales européennes dans les écoles et les places publiques en les associant aux mythes et aux matériaux locaux. Parallèlement, des Portugais: aventuriers, fonctionaires, exilés, parmi lesquels un bon nombre de juifs convertis, ainsi que des esclaves africains, avaient apporté des formes musicales et des rites collectifs qui se sont mélangés aux musiques et aux rituels indigènes. Cette capacité à échanger 121

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des codes avec ceux de la culture théâtrale catholique a permis l’elaboration d’un patrimoine qui permet aujourd’hui de considérer Bahia comme le cadre d’un ensemble de « danses dramatiques »4 et de formes de « théâtre populaire » original, bref comme un foyer de culture et partant, un terrain d’une grande fertilité pour l’ethnologie. Simultanément à l’émergence du théâtre bahianais professionnel, on peut assister à une utilisation croissante des signes de la culture traditionnelle et des thématiques locales, allant de pair avec l’usage des acquis technologiques les plus récents. Ceci se remarque également dans les médias. Toute cette problématique n’a pas encore été sérieusement explorée. Néanmoins, hormis des études récentes sur le candomblé5, nombre de recherches se sont développées ces dernières années à Bahia, que ce soit sur le théâtre, sur les relations entre tradition, imaginaire et télécommunication, sur l’industrie musicale, ou les groupes de carnaval à dominante afro-américaine. D’un point de vue ethnoscénologique, tous ces travaux mériteraient de faire l’objet d’une bibliographie commentée. Conclusion Les perspectives de travail proposées lors du colloque de fondation du Centre international d’ethnoscénologie sont très positives. Elles devraient permettre de développer une connaissance mutuelle des divers groupes culturels dans le monde et de constituer une mémoire de leurs pratiques spectaculaires organisées, en suggérant la mise en place de recherches communes selon une méthodologie relativiste et comparative.

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Selon l’expression de ANDRADE, Mário de. Dont une des cérémonies publiques a été décrite comme un spectacle par SIMON, Michel dans un article paru dans l’Histoire des spectacles, Encyclopédie de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1965.

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Estética performática e cotidiano*

Estética performática é a experiência sensorial da expressão da alteridade; ou, dito de outro modo gramatical e retoricamente reflexivo, trata-se da expressão da experiência sensorial da alteridade; ou, ainda, o conhecimento da forma pela qual essas duas ações interdependentes e caracterizadoras da vida humana revelam-se ao conhecimento. Cotidiano remete à vida do dia a dia. Sob esse título, proponho uma reflexão em torno das formas pelas quais sentimos, percebemos, experimentamos e exprimimos, todos os dias, nosso conhecimento dos outros e do mundo. Com uma argumentação em 15 tópicos, indicarei as três características gerais de todas as práticas espetaculares (até o 13º). Destacando, dentre elas, a performance e buscando apropriar-me de um possível paradigma da contemporaneidade, descrito em seis aspectos essenciais (14º), proporei a utilização das redes de pesquisa já existentes, em torno da etnocenologia (15º), novo campo científico, cujo manifesto foi lançado em Paris, em 1995. Concluindo, apresento três campos de investigação teórica a propósito desse singular tipo de disciplina acadêmica, que se pretende inter, múlti e trans disciplinar, como crítica ao Manifesto da Etnocenologia, mas, também, como sugestão para organizar nosso debate, visando à dinamização das redes. 1º O teatro, como arte dramática e não como espaço, tem como característica dominante na tradição ocidental, e recorrente em outras tradições do Oriente, a compreensão do drama como ação. Ação na * Conferência de Abertura do I Seminário Nacional sobre Performáticos, Performance e Sociedade, Brasília, UnB, 22.nov.1995. In: PERFORMÁTICOS, Performance e Cotidiano. Brasília: UNB, 1996. p.12–20. 123

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qual personagens são ora superiores ora inferiores, nunca iguais a espectadores. É a tradição aristotélica que assim diferencia a tragédia da comédia. Essa diferença qualitativa fundamental entre a ação teatral e a vida implica a “espetacularização” do que se vê em cena. Implica a definição de limites entre cotidiano e extracotidiano, ordinário e extraordinário, a teatralidade banal do dia-a-dia e a espetacularidade da cena. Essa tensão essencial, entre cenas rituais e rotina diária, é a condição “liminal” (Victor Turner) que caracteriza todas as práticas espetaculares, constituindo-se terreno propício para os conflitos que promovem e provocam a ação. 2º No teatro do absurdo, no qual ação se mascara em inação, os limites emba-ralham-se e revelam-se na 1ógica da repetição, na base estrutural da vida cotidiana e de seu absurdo. O teatro do absurdo revela essa estrutura do cotidiano. Repetir ações é ensaiá-las para a próxima e iminente performance do dia, até que um incidente inesperado provoque um conflito e, com isso, rompa-se o fluxo da ação cotidiana. 3º O cotidiano seria este conjunto de situações que se repetem, no qual as ações parecem estar em seus próprios limites, e os conflitos entre a pessoa e a alteridade experimentam-se, experienciam-se, exprimem-se e expressam-se em rotinas e ritos diários, repetitivos e repetidos, como num ensaio (em francês ensaiar é répeter, é repetir). 4º O conhecimento do limite acontece na convivência permanente da pessoa com a alteridade. A pessoa for ma-se simultaneamente com o conhecimento dos limites que aparecem no jogo diário da vida, na descoberta da dor e da violência. O indivíduo, ainda criança, com um 124

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conjunto de desejos, confronta-se muito cedo com a impossibilidade de tê-los todos atendidos e passa a desenvolver estratégias para satisfazêlos. Tendo fome e sem poder atendê-la, expressa isso chorando, gritando, com verdade e com sinceridade, mas, rapidamente, entende que o outro não está nela, que é preciso “espetacularizar” esse sentimento, exprimi-lo de uma maneira forte, comunicativa. O fundamento da teatralidade está nessa consciência mais ou menos difusa que a pessoa vai desenvolvendo ao passar dos anos, de que é preciso negociar com a alteridade para satisfazer os desejos. Não exatamente mentir, mas, talvez, exacerbar, exprimir de uma maneira eficaz o desejo ou o sentimento que se pretende que o outro compreenda. Então, à condição “liminal” que caracteriza as práticas espetaculares, acrescenta--se uma segunda condição, a dimensão 1údica (Johan Huizinga). O jogo, esta negociação que fundamenta a vida pessoal e social, é outra das características básicas das práticas espetaculares. 5º O conhecimento de si e do mundo é um fenômeno reflexivo e trajetivo (trajective). “Trajetivo” no sentido de revelar essa duplicidade e ambiguidade da relação entre o subjetivo e o objetivo. O conhecimento dá-se nesse trajeto (Gilbert Durand) permanente entre o si e a alteridade, entre o eu e o mundo. A melhor metáfora compreensiva é a experiênciaexpressão do espelho (Jacques Lacan), que multiplica ao infinito a reflexividade. A noção de pessoa em Marcel Mauss, no seu ensaio clássico sobre como o direito dos protagonistas de usarem máscaras para diferenciarem-se do grupo, no teatro grego, é codificada pelo direito romano como a possibilidade, para alguns indivíduos, de serem reconhecidos como diferentes e tendo direito à cidadania – o que não era, evidentemente, para todos, nem para os escravos nem, eventualmente, para estrangeiros e mulheres. A cidadania, em sua origem, tem uma ideia de exclusão. Quando se fala em cidadania, hoje, não se tem a dimensão histórica de que era a afirmação para alguns do direito a uma máscara, de serem reconhecidos como pessoas. Direitos humanos são os direitos de cidadão para todas as pessoas, “cidadãos” ou não. 125

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6º A produção de símbolos reúne algo que é de uma dimensão a uma outra dimensão do signo, ou, como diz Durand, “o símbolo é a epifania de um mistério”, é a aparição de algo que liga, que une uma coisa a outra (daí seu amplo uso religioso). A produção de símbolos é o fundamento metodológico dos meios de comunicação, é a dimensão do real que representa e transporta as experiências e as expressões estéticas com todos os riscos inerentes à tradução (traduttore/ traditore). O risco é também a garantia de sua eficácia: é o de remeter a outra realidade, ou a outra língua, sem, no entanto, naturalmente, substituí-la. Essa é a natureza do símbolo, a concretude em uma dimensão sensorial, dominantemente, mas não exclusivamente visual, de algo que está em outra dimensão. As experiências humanas só se realizam plenamente quando expressas, exprimidas, “espremidas” (Georg Simmel). Não há expressão sem experiência, nem há experiência sem expressão (Monclar Valverde). Se há experiência sem expressão, ela não me interessa, pois não tenho como alcançá-la. Só posso alcançá-la por meio da expressão daquela experiência. Assim, poder-se-ia entender, no máximo, uma expressão vazia de experiência, o que já em si seria um paradoxo, porque neste hipotético caso há, pelo menos, a própria experiência da expressão. É aí que reside o fundamento essencial e existencial da teatralidade. Teatralidade entendida como a condição organizadora do espaço, em função do olhar, que se constitui no sentido do reflexo. Teatro e espetáculo referem-se ao olhar, o sentido privilegiado na tradição ocidental desde a Grécia clássica, que cunhou essas duas palavras com a mesma origem etimológica: teatro, que é espaço organizado em função do olhar; e teoria, que é olhar sobre. Desde a Grécia clássica, passando pelo Renascimento e chegando ao Século das Luzes, o que se vê é a crescente afirmação do sentido da visão como o principal, em detrimento dos demais sentidos. Isso vai se consolidar com a criação da imprensa e da técnica da perspectiva, no Renascimento, ou, depois, no Século das 126

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Luzes, com sua metáfora evidentemente visual. A criação da fotografia e do cinema, no século XIX, e, mais recentemente e paradoxalmente, da televisão e das telemáticas, começa a reverter este quadro de privilégios da visão, estimulando todo tipo de reação multissensorial. 7º Os ritos e as rotinas do dia a dia desempenham-se em função de comportamentos esperados diante das mesmas circunstâncias ou de circunstâncias reconhecíveis pelo imaginário como algo já conhecido (Alfred Schütz). Esses comportamentos são algo sobre o que não se pensa no momento em que acontecem. Pensar sobre a necessidade de deslocar-se o peso do corpo para frente, para que o caminhar seja possível, é, se não paralisar, ao menos modificar substancialmente o caminhar. Analisar a ação é atribuir-lhe um caráter espetacular e afastar--se da espontaneidade teatral cotidiana. Esses ritos e rotinas do dia a dia, concre-tizados e vividos em formas que se repetem (como nos ensaios para o teatro), compõem a teatralidade cotidiana e tornam a vida possível. Mas há também momentos na vida durante os quais o conhecimento revela-se de modo espetacular. O conhecimento desse mecanismo dá-se no momento espetacular em que se assume uma postura que possibilita a reflexão sobre os pequenos ritos do dia a dia. Isso ocorre quando se quebra o fluxo desses ritos, quando algo extraordinário acontece. Esses momentos compõem uma espécie de espetacularidade, ou de teatralidade extracotidiana. Os ritos, rotinas (mas também as práticas espetaculares), que organizam a vida no tempo e no espaço, são imprescindíveis para que se possa viver, conviver e vivenciar, inclusive a dor e até a morte, todo dia, sempre igual (Chico Buarque de Holanda).Os ritos são a condição de coexistência da pessoa com a alteridade. O espetáculo continua, the show must go on. 127

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8º Os rituais e os espetáculos são formas extraordinárias de realização dessa competência humana reflexiva. São grandes ritos e rotinas sociais equivalentes aos pequenos ritos e rotinas pessoais de todo dia. 9º Ritos, rotinas, rituais e espetáculos são performances da vida individual e coletiva, são a forma sensorial e perceptível pela qual experiência e expressão reúnem-se, são jogos que se fazem com a alteridade, em todos os sentidos, com todos os sentidos, são comunicação. 10º As expressões práticas espetacu-lares e comportamentos humanos espetaculares organizados servem para dar conta desse conjunto de fenômenos sociais nos quais está o teatro, nos quais está a performance, mas nos quais também estão o ritual religioso, a procissão, as festas públicas, as competições esportivas ou as manifestações políticas. Esses grandes fenômenos sociais que reúnem coletividades e que interferem na vida cotidiana promovem uma espécie de respiração social. 11º A teatralidade (Evreinoff) e a espetacularidade são categorias “ideal-típicas”. Mas este par de aparente oposição teatralidade/ espetacularidade é invenção “ideal-típica” (Max Weber) para poder-se compreender a realidade e, depois, descartar-se dela. São noções moles contra os conceitos duros, são noções líquidas, como diz Jean Duvignaud, que permitiriam compreender-se, por exemplo, o Brasil, impermeável que seria aos conceitos duros da tradição sociológica. Para compreender o Brasil seriam úteis noções líquidas, liquefeitas, moles, como também diria Michel Maffesoli. 128

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Entre essas, encontram-se as categorias da teatralidade e da espetacularidade, que revelam a relação entre o sentido da visão, o teatro e o espetáculo, e compreendem a relação que se estabelece com a alteridade de modo mais ou menos consciente e reflexivo. Os demais sentidos, olfato, tato, paladar, audição e percepção extrassensorial, mais próximos dos ritos e rotinas cotidianos e dos rituais extracotidianos, são os vetores que, transversalmente, interferem na compreensão dos limites, transformando teatralidade em espetacularidade e permitindo a experiência e a expressão de variados estados de consciência, inclusive o transe e o êxtase. O conhecimento do conhecimento, a possibilidade do conhecimento, do nascer com a coisa que se conhece, fica associado necessariamente ao multissensorial, a esse campo largo da estética, da sensibilidade, do sentimento, e, naturalmente, a essa capacidade reflexiva do ser humano. 12º Sem alteridade não há estética, que é a capacidade humana que permite se conhecer o outro por meio de si próprio. Não se sente o que existe completamente fora de si. Sem forma não há relação, sem cotidiano não há extraordinário e sem coletivo não há pessoa. 13º Três Características Gerais de todas as Práticas Espetaculares As noções de “espetacularidade” e de teatralidade que proponho são descartáveis porque a contemporaneidade, com seus fenômenos de proliferação telemática e de globalização, “confundem” cotidiano e extracotidiano e recuperam as possibilidades sensoriais que a tradição greco-latina evacuou com a invenção do alfabeto e da imprensa. A invenção do alfabeto, no século V a.C., e a da imprensa, durante o Renascimento, banalizaram uma tecnologia de comunicação de signos simples, quase abstratos, representando todas as possibilidades fonéticas da língua, escrita da esquerda para a direita, organizada de uma forma linear, que permitiu o desenvolvimento racional na tradição do Ocidente e a valorização do sentido da visão. 129

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Há uma evacuação quase total do símbolo e do mistério nessa tradição do alfabeto e da imprensa. Ora, hoje, o que se vê é a utilização de ícones em abundância pelas redes telemáticas, reintroduzindo o caos rejeitado pela lógica racional linear do alfabeto. Os ícones, tão desprezados na tradição ocidental, que sempre desconfiou da imagem e do sonho, reaparecem vitoriosos. A tradição ocidental é iconoclasta, passando, inclusive, pela revolução cultural protestante. Freud, quando reabilita, no campo da discussão acadêmica, a ideia de sonho e de imagem, o faz como algo do terreno obscuro e não-iluminado do inconsciente. Sartre, quando retoma a questão da importância da imagem, depois da grande guerra, dedica-se ao imaginário, mas com certa desconfiança. A tradição ocidental é a tradição da desconfiança em relação à imagem. Hoje, com todas as novas tecnologias, a imagem, os ícones ganham o centro da cena social. Trata-se de uma revolução sensorial que tem como sintomas a explosão dos outros sentidos nas práticas corporais artísticas, religiosas e políticas, enfim, nas diversas experiências e expressões estéticas: a proliferação dos cultos evangélicos; afro-brasileiros; católicocarismáticos; a proliferação das terapias corporais, inclusive olfativas; das massagens; das técnicas corporais orientais – recuperadas no Ocidente – da necessidade de dançar, de estar-se junto e de perder-se a consciência do dia a dia, de entrar-se em transe ou êxtase. Ao “liminal” e ao lúdico, que estão na base das práticas espetaculares, acrescente-se a dimensão temporal da contemporaneidade. A condição espacial encontra-se aí embutida pelas telemáticas e pela realidade virtual. As características gerais de todas as práticas espetaculares são, então, o “liminal”, o lúdico e a contemporaneidade, compreendida como a possibilidade de compartilhar-se espaço e tempo reais e virtuais. 14º Seis Aspectos da Contemporaneidade Definir a contemporaneidade é tentar identificar os principais aspectos de um possível novo paradigma. Tentando não entrar na discussão modernidade/ pós-modernidade, podemos afirmar que o paradigma 130

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moderno (que privilegia a visão) foi dominante, como modo civilizatório (Norbert Elias), na Europa ocidental, na América do Norte, espalhandose pelo mundo, e é um processo cultural que vem desde o século XVIII, que tem no século XIX o seu grande apogeu e chega glorioso ao século XX. A própria arte moderna, no entanto, questionou os paradigmas do pensamento moderno, apelando para as perspectivas simultâneas, o acaso e o estranhamento. A contemporaneidade multissensorial, hoje, submergindo a visão iluminista no campo das sombras de todos os sentidos, é um dos aspectos que caracterizam o novo paradigma que está se formando e que se anunciou no laboratório que foi a cidade de Viena fim de século (Jacques LeRider) e na ação das vanguardas modernistas, que criaram a performance. Um segundo aspecto é o diálogo de amor e humor entre tradição e novas tecnologias. Amor e humor lembrando Oswald de Andrade e Caetano Veloso. Não é o momento da tradição selecionada, como a Grécia clássica como modelo para o Renascimento, mas a disponibilidade para toda tradição. Isso se verifica, inclusive, na performance. Um terceiro aspecto é a tendência à banalização da vivência e do convívio no mercado telemático. Vale ressaltar que há problemas em relação à performance e a sua inserção nesse mercado, onde funcionaria como uma espécie de tática de guerrilha, do tipo que já se utilizou para acessar os computadores do Pentágono norte-americano, ou para roubar dinheiro de bancos e de cartões de crédito. Um quarto aspecto é a interdisciplinaridade ou uma certa lógica da indistinção. Em todos os níveis, as fronteiras e os limites caem e fica difícil defini-los. As fronteiras intelectuais e sociais exacerbam-se, eventual e efemeramente, ao mesmo tempo em que as redes permitem a transversalidade entre elas. No campo intelectual a interdisciplinaridade é, sem dúvida, um aspecto provável deste novo paradigma que se forma. Quinto, o relativismo em oposição ao positivismo, e os métodos e as abordagens comparativas, em oposição às técnicas exaustivas, e concentradas em objetos bem recortados, e definidos. 131

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Finalmente, a noção de performance também seria uma das características deste novo paradigma. Umberto Eco, em seu belo livreto Apostila sobre o nome da rosa, conta como criou O nome da rosa e define a performance como um conceito, como uma ação artística interdisciplinar, que caracterizaria, eventualmente, a pós-modernidade. Sobre pósmodernidades e pós-modernismos, remeto a Mike Featherstone, que tem uma obra exemplar sobre a questão. Umberto Eco diz também não gostar das palavras pós-modernismo/ pós-modernidade, mas coloca a performance como sintoma da crise do paradigma moderno. A performance é o que quebra as fronteiras entre disciplinas e linguagens, o que associa tradição e contemporaneidade, o que provoca a ideia da citação, não mais uma rejeição à tradição, ao movimento artístico anterior, mas um olhar descomprometido em relação a todos os movimentos artísticos anteriores, utilizando-os, livremente, sem problemas. Os modernismos, o Dadaísmo em particular, o Teatro do Absurdo, nos anos 1950, e a expansão dos mídia a partir dos anos 1960, estão na base do aparecimento dessa ideia de evento artístico, de happening, em última instância, de performance. Grotowski, que agora faz algo que ninguém (nem ele) sabe exatamente o que seja, também valoriza a noção de performance. Vivendo em Pontedera, viaja muito, publica alguma coisa e leva, eventualmente, três a cinco pessoas para ficarem alguns dias assistindo às oficinas que faz, inclusive utilizando rituais afro-americanos. Grotowski tem firmado a performance e o performer como noções melhores e mais eficientes para dar conta do “teatro” contemporâneo, das práticas espetaculares contemporâneas. 15º A Etnocenologia A história do teatro, a antropologia social e comparada, a sociologia do atual e do cotidiano podem ser as bases da teoria da comunicação. Esse conjunto de disciplinas teóricas, em interface com as noções de teatralidade e “espetacularidade” e a definição do paradigma de performance permitem pensar a contemporaneidade. Esse paradigma de performance 132

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deve incluir, necessariamente, a conotação de eficácia. A destreza com as telemáticas e com o mercado competitivo, contemporâneo faz com que os mídia utilizem muito a noção de performance nesse outro campo semântico – performance como destreza e habilidade para lidar com as telemáticas e com o mercado, como algo desejado, como algo querido, como algo importante para o ser humano contemporâneo. O paradigma de performance, inclusive com essa conotação, associado a esse conjunto de disciplinas e de noções, permite pensar a contemporaneidade. Essa contemporaneidade, que se caracteriza por uma multiplicação cibernética de meios de experiências e de expressões estéticas, pode contribuir, como conceito, para a construção epistemológica de uma nova disciplina científica, de caráter transdisciplinar, relativista e comparativo. Trata-se da etnocenologia, cujo objeto poderia ser a diversidade cultural das performances coletivas inscritas na tradição e contemporâneas das dinâmicas transformações tecnológicas e antropológicas dos mídia. A palavra etnocenologia, segundo o Manifesto, retoma três referenciais da língua e da cultura gregas. Etno, significando o que é pertinente a um grupo social, um povo, uma nação; ceno, cobrindo um grande conjunto de significados, simultaneamente os sentidos de abrigo provisório, templo, cena teatral, local coberto onde os atores punham suas máscaras, banquete sob uma tenda, corpo humano, mímicos, malabaristas e acrobatas apresentando-se em barracas provisórias em momentos de festa – todos esses sentidos remetem à ideia de ceno na palavra etnocenologia; e logia, naturalmente, designa a proposição de estudos sistemáticos. Crítica ao Manifesto da Etnocenologia e Proposição de Campos de Debate para as Redes O objetivo das questões que a seguir busca-se formular é estabelecer um processo de crítica ao Manifesto da Etnocenologia, sugerindo campos teóricos para o debate e propondo o uso da rede, das redes de pesquisa potencialmente existentes, não como coisa inédita, mas no sentido de uma possibilidade de intercâmbio e de diálogo no momento em que há 133

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uma proliferação de noções e de formas de abordagem concernentes ao teatro, à perfor mance e às demais práticas espetaculares contemporâneas. Essas redes teriam, simultaneamente, um caráter telemático, multimídia, interinstitucional e interpessoal e seus possíveis recortes restam a definir. São três as questões fundamentais para o debate. A proposta da etnocenologia remete à etnologia, que é uma denominação muito frequente, na França, daquilo que, muito frequentemente, nos Estados Unidos chama-se de antropologia cultural, e, na Inglaterra, de antropologia social. Constitui a disciplina científica que se ocupa de estudar um grupo social, um povo, uma nação. Seu método privilegiado é a etnografia, a descrição dos fenômenos sociais da população tomada como objeto de pesquisa. Várias disciplinas surgiram daí: a etnobotânica, a etnolinguística e a etnomusicologia, por exemplo. A etnocenologia inscreve-se nessa tradição, com todos os problemas epistemológicos pertinentes. Campo nº1 O primeiro problema é: como circunscrever o objeto de pesquisa? A diversidade cultural, no que concerne às práticas espetaculares organizadas, compreende, segundo o Manifesto, “as maneiras de ser, de comportar-se, de mover-se, de agir no espaço, de emocionar-se, de falar, de cantar e de enfeitar-se, que se distinguem sobre as atividades banais do cotidiano, ou as enriquecem e dão sentido”. É muito difícil de circunscrever-se um objeto por aí. Em que medida o teatro, a dança, a música, os rituais religiosos, as competições esportivas, as manifestações políticas, os desfiles cívicos e militares, além de outras celebrações coletivas como: frequentar praias e shopping centers, por exemplo, inscrevem-se nesse conjunto? Como falar dos grupos e das pessoas que frequentam praias, onde há todo um display para o espetáculo? As escadarias, as calçadas, as balaustradas, as barracas, isso também se inscreveria no campo da etnocenologia? Esse é o primeiro problema: como definir seu campo de investigação? 134

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Campo nº2 O segundo problema refere-se à ambiguidade da metodologia. Contra o preconceito etnocentrista, numa tentativa para resolver um dos problemas importantes das disciplinas irmãs, a etnocenologia propõe a realização de análises interiores e de análises exteriores, além do abandono de noções tais como mentalidade pré--lógica, primitiva e sociedades fadadas a desaparecerem. Propõe, igualmente, a elaboração de um inventário das práticas espetaculares organizadas. Como estabelecer as condições da pesquisa, as relações entre o pesquisador e o objeto de estudo, o trajeto que vai do sujeito ao objeto? Como levar a simpatia e a antipatia em conta? O que fazer da capacidade de julgar? Aí reside um dos grandes problemas da etnologia clássica. Como descrever o rito da excisão em certas comunidades africanas, por exemplo, sem, eventualmente, indignarse? A questão ética está associada evidente-mente à ideia de estética. Maffesoli fala em ética da estética. Ética como aquilo que dá ligação, aquilo que cimenta a relação social. Apenas aquilo que se sente em conjunto e que se partilha é que tem a possibilidade de ligar e de dar o sentimento do coletivo. Como é que o pesquisador vai poder julgar seu próprio preconceito etnocentrista? Ele vai estudar algo que conhece, seja porque lhe pertence, seja porque dele se aproximou – aí remeto à etnometodologia dos norte-americanos Garfinkel e Cicourel, quando falam da competência única. A competência única sendo uma condição que o pesquisador tem de pertencer ao seu objeto de tal maneira que ele tenha a competência necessária, associada a sua apetência, para estudar aquilo. Como desvincular, como explicitar os preconceitos, ou as simpatias, ou as antipatias? Como traduzir nas línguas diferentes, diferentes maneiras de pensar e de ver fenômenos semelhantes, porém distintos? Sobre as Duas Primeiras Questões Para começar a responder a essas duas primeiras questões será necessário decidir a amplitude do inventário de objetos a serem estudados e explicitar 135

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o vínculo do pesquisador com seu objeto, que tipo de simpatia, que tipo de apetência o trouxe para estudar aquilo, para que fique claro o tipo de abordagem que fará. Há antropólogos que abandonaram suas culturas de origem e há quem os considere a todos (inclusive os que não as abandonaram) como pessoas com problemas de ajustamento social em suas próprias culturas, que, por isso, se dedicariam ao estudo de outras. Eles seriam responsáveis pelo conhecimento da diversidade humana, e, segundo alguns, mais críticos, também pela justificativa do colonialismo econômico, político e cultural da Europa ocidental e da América do Norte. Há os que, abandonando suas culturas, casaram-se com o líder ou alguém da estrutura de poder do grupo ao qual se uniu. A interferência que isso traz para a comunidade e o conhecimento que esse ato permite para o pesquisador são ambiguidades com as quais é preciso lidar. As relações entre o pesquisador e o seu estudo, o trajeto do sujeito ao objeto, deveria ser sempre a primeira problemática a ser abordada, ainda que brevemente, em qualquer pesquisa da etnocenologia. Campo nº 3 A ultima questão é uma discordância com a seguinte afirmação do Manifesto: “O triunfalismo tecnológico conduz à massificação das formas culturais; os modelos dominantes são difundidos e tidos como universais, enquanto que a extrema variedade de práticas não encontra direito de cidadania”. Artur Gianotti, recentemente, explicou como a explosão da globalização do mercado e das novas tecnologias reafirma o local e a diferença. Há quem fale em segmentação de mercados, em sistemas e subsistemas culturais e, até, em glocal, como a mistura de local com global. Como a tradição e as novas tecnologias podem conviver? Há quem date 1998 como o momento em que a indústria do turismo e a indústria cultural transformem-se nas forças econômicas geradoras de emprego e renda mais importantes do mundo. Sua matéria- prima é a tradição e o local. Alguns centros culturais de grande vocação turística (a 136

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Bahia, por exemplo) já vivenciam uma dinâmica que valoriza, simultaneamente, as numerosas e variadas práticas espetaculares da tradição e a experimentação de novas performances e tecnologias. Há o exemplo organizacional do Grupo Cultural Olodum (Marcelo Dantas), onde relações familiares tradicionais coexistem com relações amigáveis baseadas num imaginário libertário, igualitário e cidadão e com as relações de mercado e de globalização tecnológica, comunicadora e econômica. Embora perfeitamente justificável, o receio da corrida tecnológica e dos movimentos bruscos e cruéis da globalização econômica, talvez, também, se constitua mais como a perplexidade de poder-se perceber aí, em meio a esse caos assustador, a celebração da tradição por novos meios que permitam a melhoria da qualidade de vida de um maior número de pessoas. A tradição, frequentemente, implica privilégios e exclusões sociais. As tecnologias podem ratificá-los, suavizá-los, eliminá-los ou invertê-los, mas, de qualquer modo, parecem poder, sempre, contribuir para a valorização de suas práticas espetaculares e performances. Referências DANTAS, Marcelo. Olodum: de bloco afro a holding cultural. Salvador, Olodum; FCJA, 1994. DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de imaginaire. 9.ed. Paris: Bordas, 1969. DUVIGNAUD, Jean. L’acteur, sociologie du comédien. Paris: Gallimard, 1965. ______ . Les ombres collectives : Sociologie du theater. Paris: PUF, 1973. ______ . Fêtes et civilizations. 2.ed. Paris: Scarabee, 1984. ______ . Héresie et subversion: Essais sur l’anomie. Paris: La Découverte, 1986. 137

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

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A etnocenologia e as artes contemporâneas do corpo na Bahia*

É o exercício do que se chama localismo afetual, dizer o prazer que tenho em voltar ao Recife. Tive prazer de fazer uma palestra no mestrado em antropologia, há uns dois anos atrás. Recife, uma cidade foco de cultura, muito próxima daquilo que ocorre na cidade de Salvador. Enquanto focos de culturas, ambas são duas nações irmãs muito parecidas e também diferentes. Depois, terei oportunidade de tecer comentários comparativos em termos culturais em relação à etnocenologia em Pernambuco e na Bahia. Meu tema é a etnocenologia e as artes contemporâneas do corpo na Bahia, que é o tema da pesquisa. Vou começar a dar pequenos dados autobiográficos, como uma forma metodológica de abordagem do tema que eu quero tratar e justificarei essa abordagem metodológica no final da minha fala. Nasci em Salvador, na Bahia há 40 e poucos anos atrás, filho de uma mulher da Zona da Mata e de um homem do Agreste. Pessoas de formação católica tradicional do Recôncavo da Bahia, muito semelhante à Zona da Mata de Pernambuco. Fui exposto desde criança através da vizinhança e da convivência com pessoas de diversas classes sociais a manifestações da cultura chamada afro-baiana e minha família (muito cedo, eu nem tinha quatro anos) aderiu ao espiritismo kardecista ortodoxo, que é uma forma de conhecimento que pretende ser uma filosofia de base científica e consequências religiosas. É uma forma de conhecimento

* Publicado originalmente, na Revista de Antropologia, da série “imaginário”, vol. 1, nº1, dedicado á temática “Imaginário e Localismo Afetual”, do Programa de PósGraduação em Antropologia da UFPE, organizado por Danielle Perin Rocha Pitta e Maria de Fátima Lopes Nogueira (NIEI/ UFPE), Recife, 1995, p. 31-38.

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de origem francesa influenciada pelo positivismo. Todos esses detalhes, para situar um percurso que é pessoal, com o qual vou tentar fazer o paralelo com a cultura contemporânea na qual eu me inscrevo. Então, com uma formação desse tipo, que não admite o ritual de danças e canto, por exemplo, ou de imagens simbólicas, como a cruz cristã ou as insígnias dos orixás, (estou falando da forma ortodoxa do espiritismo, não das formas sincréticas atuais), fui sempre exposto a essa cultura baiana tão forte em termos de formas teatrais e espetaculares (tal como na Zona da Mata Pernambucana). Eu vou chamar de formas teatrais e espetaculares esse conjunto de folguedos, danças dramáticas e de outras formas artísticas aparentadas da tradição popular. Fiz teatro desde sempre, desde criança, dentro dos presépios vivos, dos casamentos na roça, dos desfiles cívicos... esses tipos de manifestações. De classe média, mestiço com predominância de branco, do Nordeste, tive oportunidade de frequentar algumas pouquíssimas casas de candomblé, muitos carurus de Cosme e Damião – festa do mês de setembro na Bahia. Imagino que alguma coisa semelhante tem em Pernambuco. Mas, quando fui estudar na universidade, não quis estudar teatro, porque pensava que o teatro que se fazia então na universidade não era um teatro suficientemente contemporâneo e bom, como o teatro que imaginava que já estivesse fazendo na escola secundária. Então, com a pretensão, que caracteriza inclusive a cultura baiana, fui estudar filosofia (licenciatura), depois tive a oportunidade de fazer o Mestrado em Interpretação Teatral nos Estados Unidos, na cidade de Minneapolis, com a maior população indígena urbana dos Estados Unidos ( morei no gueto dos índios Cherokee e Chipwa). Então me expus, mais uma vez, a um conjunto de práticas teatrais espetaculares, com as quais não tinha nenhum tipo de intimidade. Retornando à Bahia, continuei fazendo teatro, televisão... A partir dessas vivências, resolvi fazer um Doutorado em Antropologia, na França, para estudar como a cultura regional se relaciona com a cultura mundial, com a banalização das novas tecnologias e com a globalização do mercado. 142

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Por isso, tive a oportunidade de conhecer Michel Maffesoli e fiz-lhe uma proposta de estudo. Fiquei cinco anos na França, atuando em revistas, organizando congressos e encontrando pessoas, como Sylvie, com quem compartilhei a criação de um grupo de pesquisa na Sorbonne, Paris V, chamado GRACE (misericórdia seria uma tradução literal), quer dizer, um grupo de pesquisas sobre a antropologia do corpo e seus “enjeux” (contextos, âmbitos, apostas), o Groupe de Recherches sur l’Anthropologie du Corps et ses Enjeux. Acho que um estudante tem muito mais condições de produzir se estiver inserido num grupo de pessoas que estejam vivendo a mesma situação que ele e com as quais ele tem a oportunidade de compartilhar as mesmas dificuldades, as ideias, as referências bibliográficas... Esse grupo foi criado em 1987 e continua a existir, produzindo trabalhos interessantes e reunindo brasileiros e franceses, árabes, japoneses, pessoas de múltiplas nacionalidades, o que permite o intercâmbio cultural não somente em termos de formação teórica, mas de vivência pessoal. Este tempo na França permitiu-me entrar em contato com o grupo de Paris VIII, Universidade criada em 1968, marcada pelo anarquismo e o movimento de estudantes franceses naquele período. Uma universidade ousada tanto quanto marginalizada, na qual existe o laboratório interdisciplinar de estudos sobre as práticas espetaculares humanas e organizadas. Um nome muito grande e um grupo de estudos de comportamentos espetaculares, quer dizer, essas práticas que não são necessariamente artísticas, que não são, de modo evidente, identificáveis como lúdicas, mas que compreendem desde o teatro, aos rituais religiosos, às manifestações políticas, competições esportivas, etc. Enfim, toda “mise en scène” coletiva de um grupo social. Então, com esse grupo, o GRACE, o NEII (o Núcleo de Estudo Interdisciplinar sobre o Imaginário) e o TRANSE (grupo Transdisciplinar de Estudos sobre Performance) da UNB, estamos iniciando uma rede mais ou menos informal e afetiva de relações intelectuais (rede internet, correspondências, presença de um ou outro nos encontros...) 143

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Situando autobiograficamente, então, o sujeito que fala, vou me propor a falar de etnocenologia, que vou definir a partir de um roteiro de três palavras: estética, performance e cotidiano. Vou definir inicialmente a noção de drama, de origem etimológica grega, significando ação e entendida no teatro como a ação em situação limite. Aristóteles, quando define a tragédia ou a comédia, sempre se referiu ao conflito, à necessidade da situação limite, algo diferente do dia-a-dia, algo que é extraordinário: seja o filho que casa com a mãe, seja um homem que tem um fálus de um metro, enfim todos os personagens em situações que fogem ao cotidiano, tanto cômicas, quanto trágicas do teatro grego. São seres que vivem a ação numa situação limite. Tudo isso, para situar bem, para falar de um ou de outro tipo de teatro, do Teatro do Absurdo, a partir dos anos 50, após a guerra, com todos os horrores do nazismo, as ideologias do século XIX, todas as visões do mundo estruturadas em torno de uma forma organizada de pensar, de ver a sociedade, entram em colapso e o teatro é uma das primeiras manifestações artísticas que vai revelar o absurdo da situação do dia a dia. E é o Teatro do Absurdo que vai aparecer e revelar um cotidiano entendido como uma situação não-limite, onde o conflito não aparece de uma forma tão clara como no Teatro Clássico. São pessoas sentadas ao lado de uma lata de lixo, esperando Godot, que ninguém sabe quem seja, e onde não há um conflito claro. É um teatro da inação, de conflito intelectual, se assim se quiser, interpelado pelo nada de extraordinário que acontece, porque, quando acontece o que sai da rotina, um acidente, uma morte, uma dor, algo que lhe retire do cotidiano, onde você não pensa o que você faz, aí sim, você se dará conta de ser um “ser no mundo”. A criança quando nasce tem uma série de necessidades para satisfazer e começa logo a descobrir formas estratégicas de alcançar o que quer: chorando, rindo, gritando... tem desejos, necessidades, mas o mundo não pode atender a todas elas, e a criança é obrigada a jogar, a entrar numa relação lúdica com o outro, com o mundo, com a alteridade, com aquilo que está fora, com o objetivo de satisfazer seu desejo. É dessa “ludicidade” básica da vida humana que, a meu ver, surge tudo o que poderemos chamar de teatro. É dessa consciência, mais ou menos 144

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clara (mais ou menos obscura), que a criança tem, de que sorrindo, chorando, gritando, vai conseguir satisfazer os seus desejos, é daí que se estabelece o lúdico. O choro pode ser verdadeiro, mas, se for mais alto, pode ser mais funcional; o riso pode ser natural, mas, se for mais escancarado, pode ser estrategicamente mais funcional. É quando começa a se formar a consciência da teatralidade cotidiana: uma consciência reflexiva. A criança, o ser humano, desempenha vários papéis: filho, irmão, amigo, inimigo, colega, pai... Enfim, uma série de papéis sociais. Da administração dessas máscaras diferentes poderá vir a existir uma espécie de saúde humana (Monique Augras, então presente na sala, Piaget e Gilbert Durand trataram dessas questões). Esse conhecimento é reflexivo porque é no momento de dor, no momento extraordinário que você se dá conta de si próprio e de si como algo diferente do mundo... é daí que surge a possibilidade da produção de símbolos e de meios de expressão. Não existe expressão sem experiência como não existe experiência sem expressão. Não posso admitir que criança não tenha experiência, mas, no momento em que ela não a expresse, esta não existe para mim. Da mesma maneira, algo que esteja sendo comunicado com expressão pode ser oco, se não há experiência. Estou fazendo esta relação da experiência com a expressão porque nos permite pensar uma série de palavras como exprimir, espremer, comprimir, reprimir, oprimir... todas as palavras relativas a esta capacidade humana de estar no mundo e de expressar-se. A palavra teatro vem da origem grega, do termo theastai, significando ver, olhar; do theatrum, espaço organizado em função do olhar, do mesmo modo que theorein, teoria. Ambas essas palavras têm a mesma origem, associadas ao sentido de olhar, um sentido eminentemente da reflexão, reflexivo, que permite o conhecimento da própria imagem no mundo, como num espelho. Quando falo de teatralidade e cotidiano, estou querendo me referir a esse jogo lúdico do dia a dia, onde desempenhamos uma série de papéis de uma forma mais ou menos consciente; sempre de uma forma lúdica, no sentido de satisfazer nossa vontade, nossa necessidade. Todos vivemos 145

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em função do olhar do outro. Não estou dizendo que as pessoas não são sinceras, estou dizendo que há uma consciência mais ou menos difusa do poder que tem o riso, pela manhã, quando você diz “bom dia!”, que é o desejo de um bom dia para si próprio, é um comportamento estratégico nesse sentido. Cibernética, no sentido de tentativa de organizarse o caos. Na teatralidade cotidiana, estamos sempre atuando para o outro. O comportamento social é necessariamente baseado nisso, que chamo de teatralidade, que é a consciência mais ou menos difusa do olhar do outro, seja para agradar, seja para agredir. Sempre levamos em consideração o outro. No dia-a-dia precisa-se de certas rotinas, de certos hábitos para aliviar o medo do estranho, do extraordinário, em última instância, da morte. Todas as pessoas têm suas rotinas, ritos diários, na maneira de se acordar, de se levantar, de um lado ou de outro da cama, de escovar os dentes, antes ou depois do café. Há uma série de atos de rotina que se precisa criar para poder-se organizar a vida de todo dia. Quebra-se esse padrão, de vez em quando, em férias, em visitas, em viagens. Quando isso acontece, tudo o que vemos ganha uma conotação espetacular, de uma coisa extraordinária. Enquanto no ordinário da teatralidade quase nem se vê, não se percebe. Quando se anda, não se para a fim de pensar que para deslocar o corpo tem-se que transferir o peso da perna que está atrás para a perna que está à frente; se pensa-se nisto, bloqueia-se a ação. Passa-se a refletir e se terá dificuldade em agir. Introduzo a necessidade que a sociedade, os grupos sociais têm, eles próprios, de criar ritos, rotinas, rituais coletivos para que a vida de todo dia seja possível no grupo social. Quando acontece um acidente, no qual as pessoas têm que correr, como numa surpresa, ou quando acontece a passagem de um ídolo da televisão ou de um homem público e as pessoas correm, ou por conta do time que você prefere, ou uma procissão religiosa (somos afetos a isso no Nordeste), quando há um ritual grandioso, algo que sai da rotina, que sai do ordinário, aí se configura o extraordinário. 146

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Entro agora no terreno que eu chamaria de “espetacularidade”, remetendo, como quando falei de teatralidade, ao sentido da visão, spectare, ver, sobretudo como estou entendendo, diferente do que é quase invisível no dia-a-dia, que aí é quase inconsciente, porque é um comportamento que precisamos ter, de qualquer jeito, sem pensar muito, para levar a vida de todos os dias. Mas, eventualmente, percebemos, nos damos conta disso, da rotina, do ordinário e pensamos. Por exemplo, quando se deseja conquistar uma pessoa (refiro-me aqui a Erwing Goffman), ou quando se quer conseguir um emprego. Nessas circunstâncias, somos capazes de tomar consciência da necessidade de nos vestirmos e de falarmos de determinada maneira; somos capazes de tomar consciência desse caráter “teatral” da vida social, da necessidade de se organizar, até “ensaiando” (como atualmente um comercial mostra na televisão: alguém ensaiando na frente do espelho). Todo mundo passa por esse tipo de coisa. O que quero dizer é o seguinte: quando a pessoa toma consciência dessa teatralidade, ela vive um momento extraordinário, um momento espetacular. Os rituais e espetáculos são formas extraordinárias de realização dessa competência humana reflexiva. São grandes ritos de rotinas sociais, equivalentes dos pequenos ritos de rotinas pessoais de todo dia. Ritos, rotinas, rituais, espetáculos são performances das vidas individual e coletiva. São jogos que se fazem com a alteridade. Sem a compreensão desse outro não há estética. O que me permite compreender a existência de algo – que não sou eu – é o que sinto disso: calor, frio, alegria, amor, interesse, atração. A estética ou o sentir juntos, a estética entendida como sentir, só vai ser possível quando eu tomar consciência do outro, de mim em relação ao outro. A história do teatro, a antropologia social e a sociologia do atual e do cotidiano, hoje, podem estar na base do que se pode chamar de teoria da comunicação. Essas noções de espetacularidade e teatralidade que proponho, penso fazer delas uma interface com relação ao assunto de performance. O que é a performance? É a colocação em forma de alguma coisa. Temos dois sentidos para performance, um ligado aos happenings dos 147

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anos 60, um tipo de arte que não é bem teatro, nem artes plásticas, nem dança, nem cotidiano ou convenção artística no cotidiano. É um tipo de arte que ficou muito popular naquela época, e existe hoje todo um conjunto de instalações, de performances e formas artísticas que podem ser caracterizadas, conceitualmente, de modo preciso, como performance. Uma espécie de curto-circuito nas formas de arte clássicas. Uma outra maneira de entender a palavra é no sentido de eficácia, de desempenho de uma pessoa que é eficiente. O primeiro sentido da palavra é o do que quebra os limites entre as diversas disciplinas artísticas e o segundo é o da necessidade contemporânea de eficácia e eficiência. São as duas marcas do mundo contemporâneo, como o diria Victor Turner, que trata da experiência e do teatro, que a noção de performance é uma noção muito operativa, operacional para compreender-se o mundo contemporâneo. É neste contexto, que vejo o aparecimento da etnocenologia. O diretor de tese de Sylvie Fougeray, e presidente do meu júri de doutorado, o grande sociólogo francês Jean Duvignaud e colegas, do grupo de Paris VIII – personalizado em Jean-Marie Pradier – resolveram criar uma nova disciplina chamada etnocenologia. E com o patrocínio da Unesco realizaram um evento em maio desse ano em Paris (na UNESCO e na Maison des Cultures du Monde) onde lançaram o Manifesto da Etnocenologia. Este neologismo se inspira num uso grego que sugere a dimensão orgânica da atividade simbólica. Na origem, skené significava uma construção provisória, uma tenda, um pavilhão, uma choupana, uma barraca. Em seguida, a palavra ganhou, eventualmente, o sentido de templo e de cena teatral. A skené era o local coberto, invisível aos olhos do espectador, onde os atores vestiam suas máscaras. [...] A partir da ideia de espaço protegido, de abrigo temporário, skené significou as refeições comidas sob a tenda, um banquete. A metáfora gerada pelo substantivo deu a palavra masculina skenós: o corpo humano, enquanto abrigo para a alma que nele reside temporariamente; de alguma maneira, o “tabernáculo da 148

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alma”, o invólucro da psyché. [...] A raiz gerou igualmente a palavra skenoma, que significa também o corpo humano. Skenomata: mímicos, malabaristas e acrobatas, mulheres e homens, apresentando-se em barracas de feira no momento das festas [trata-se aqui de um extrato do manifesto de etnocenologia, que resumo e do qual critico, entre outras, a expressão “triunfalismo tecnológico que conduz à maximização das formas culturais”, que me parece revelar uma espécie de paranoia, à qual eu contraponho a noção de Michel Maffesoli de localismo afetual]. Eu poderia dizer, por exemplo, que o “triunfalismo tecnológico” e a “massificação da cultura” têm fortalecido uma cultura regional, a da Bahia, do carnaval e da organização Olodum (entre outras), que realizaram a união da tecnologia e do regionalismo, simultaneamente entrando numa rede de industrialização cultural. A globalização das leis do mercado e a banalização das novas tecnologias têm sim permitido o intercâmbio cultural e, inclusive, têm fortalecido uma cultura regional, reconhecida internacionalmente enquanto cultura regional, mas de consumo potencialmente mundial. A categoria de world music, que é uma invenção do mercado fonográfico norte-americano para classificar tudo o que não pode concorrer com tudo o que não é música popular norte-americana, digamos, é um artifício do mercado para dar conta de manifestações culturais que estão invadindo o mercado norte-americano [...]. O exemplo da Bahia: a presença africana na Bahia é muito grande (Gilberto Freyre discutiu como ela se diferencia da presença africana em Pernambuco). Essa cultura baiana tem uma presença musical, lúdica, na vida, muito grande, desde sempre. Mas os registros mais recentes são do século XIX, quando aparece no carnaval da Bahia uma coisa que se chama afoxé; esse afoxé sendo uma versão lúdico-profana do candomblé. Em 1974 aparecem os grupos Ile Ayê e Olodum. Há uma tese de mestrado em administração, em andamento, sobre a forma de gestão do Olodum, porque ela tem 149

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aspectos da forma de organização afetiva dos grupos vinculados à tradição afro-baiana e, ao mesmo tempo, das mais novas formas de organização empresarial, que lida com as novas tecnologias com uma graça maior do que muitos de nossos colegas da academia, usando fax, e-mail, com um escritório avançado, de rede, em Nova York... Uma estrutura de organização muito complexa com caráter empresarial e afetivo, político, de afirmação da cidadania da população negro-mestiça da Bahia, que mantém escola, grupo de teatro, butique e a grife Olodum, que não tem vergonha de mexer com esses aspectos da sociedade contemporânea em termos de mercado e tecnologia. Para concluir: a banalização das tecnologias e a globalização do mercado estão fazendo com que grupos sociais dominados, política, cultural e economicamente, transformem-se numa marca consumível pelo público local, pelo turista e pelo consumidor internacional, aliando à tradição as novas tecnologias. É por isso que é genial a invenção da etnocenologia, porque permite que pensemos nessas coisas, intercambiemos e discutamos.

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DA TEATRALIDADE

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A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade*1

Jogar com as relações teatro/ linguística é um projeto ambicioso. Em troca, pode-se jogar com a utilização de referências e noções teatrais pela sociologia e a antropologia. Trata-se ainda de um projeto bem ambicioso, do qual só se pode propor um esboço. Eis-nos aqui então com um ponto de partida; penso que se pode fazer distinções heurísticas entre teatro e espetáculo, teatral e espetacular, teatralidade e espetacularidade, tendo por fim uma contribuição epistemometodológica às ciências do homem. Antes de ir mais longe, é preciso ressaltar que a presente reflexão, apesar de suas referências teatrais, não pretende ser uma discussão em torno das técnicas teatrais ou ainda uma contribuição aos estudos teatrais e artísticos, nem mesmo uma reflexão sobre as experiências que tentaram romper as fronteiras entre a arte e a vida cotidiana (GALLAND, 1987; BOAL, 1978). Nosso domínio, aqui, é aquele da arte de viver em sociedade, quando não se tem a intenção de fazer arte. É o domínio da vida social, da antropologia e da sociologia. Teatro, antropologia e sociologia O fato de que essas palavras sejam formadas, na maior parte de raízes gregas, remete-nos primeiramente à matriz da história e do pensamento * Publicado (com tradução de Antonio Oliveira e revisão de Michel Agier, de texto publicado originalmente In: JOUBERT, Sylvie; MARCHANDET, Eric (Eds.). Le social dans tous ses états. Paris: L’Harmattan, 1990. p. 36-43. e CADERNOS DO CRH, Salvador, v.15, p.104 – 110, 1991. 1 Trata-se, originalmente, de uma comunicação ao Colóquio ÉTAPES (États Généraux pour la Jeune Sociologie) na Universidade Paris I Panthéon Sorbonne, em 1989, que contém, de forma embrionária, os aspectos epistemológicos desenvolvidos na tese de doutorado em Antropologia Social e Sociologia Comparada, da Universidade Paris V René Descartes Sorbonne, “Théâtralité et spectacularité: une aventure tribale contemporaine à Bahia”, aprovada em dezembro de 1990.

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ocidental: a cultura grega. E uma primeira referência se faz obrigatória: a Paideia, de Werner Jaeger. De seus comentários sobre a tragédia (literalmente o canto do bode), se poderá lembrar: tratava-se “da mais elevada manifestação de uma humanidade para quem a religião, a arte e a filosofia formavam uma unidade indivisível” (JAEGER, 1986, p.203). Pode-se, pois, pensar que o teatro, no mundo grego, desempenhava, de maneira importante, múltiplas funções, a saber: estética, antropológica, sociológica e política. A palavra teatro entrou na língua francesa por volta de 1200 e na inglesa no curso do século XIV, procedente do latim “theatrum”, do grego “theatron” (lugar arrumado em função do olhar), do grego “theastai” (olhar). Atualmente, seja em francês, inglês, ou ainda em português, sobrepõe dois conjuntos de significação: um espacial, arquitetural (um edifício, um lugar, uma sala); e um outro, que se organiza em torno da definição de uma atividade: “arte visando representar diante de um público, segundo as convenções que variaram com a época e as civilizações, sequência de acontecimentos... onde são engajados seres humanos agindo e falando” (PETIT ROBERT, 1996, p. 2244). A palavra antropologia já era utilizada pelos clássicos gregos. Em francês, só aparece em 1832. Façamos apelo a um clássico alemão do fim do século XVIII, exemplar do cuidado de distinções, classificações e precisões racionais do pensamento europeu das Luzes e que está na base da modernidade ocidental: Kant. Ele define a antropologia: uma “doutrina do conhecimento do homem, sistematicamente tratado”; e afirma: ela “pode sê-la do ponto de vista fisiológico ou do ponto de vista pragmático”. Interessando-se mais por este último, ele propõe: “Não há na verdade fontes para a antropologia, mas apenas meios de socorro: a história, as biografias, mesmo o teatro e os romances” (KANT, 1988, p. 11-12). Além da atualidade desta proposição no que concerne à importância metodológica das histórias de vida (FERRAROTI, 1983; CATANI; MAZE, 1982), a curiosidade é atraída em direção à ideia do teatro como 154

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“meio de socorro” para a antropologia. E aqui abro curtos parênteses para lembrar, de passagem, outro clássico alemão: Nietzsche, que faz uma crítica radical ao pensamento da modernidade europeia. O assunto com o qual ele estreia sua produção intelectual é verdadeiramente a tragédia grega. Quase um século após a proposição kantiana, não teria ele feito um ensaio de antropologia pragmática (NIETZCHE, 1949). A palavra sociologia (composta a partir de uma raiz latina e outra grega) foi proposta por Comte para definir um estudo científico novo, aquele “dos fatos sociais humanos”. Dois textos clássicos da sociologia francesa, um de Dürkheim sobre a vida religiosa (DÜRKHEIM, 1985); outro de Mauss sobre a noção de pessoa (MAUSS, 1985, p. 333-362) vão utilizar noções, referências etimológicas e históricas que remetem ao teatro. Dürkheim (1985) compara certos rituais às representações dramáticas, mostrando seus pontos comuns (atores que representam personagens; espaço arrumado para a representação; sequência de acontecimentos narrados, etc.). Os ritos representativos e as recriações coletivas são mesmo coisas tão vizinhas, que se passa de um gênero a outro, sem solução de continuidade” (DÜRKHEIM, 1985; p. 543).

E conclui. “Quando um rito não serve mais a não ser para distrair, não é mais um rito (DÜRKHEIM, 1985, p. 546). De outra parte, Mauss abriu importantes vias de pesquisa (MAYERSON; 1948; DUMONT; DAMATTA, 1983) com sua abordagem transcultural da noção de pessoa. Disto resulta a ideia das categorias do “eu” como produtos de uma inserção de indivíduos em sistemas interrelacionais, de uma tomada de consciência das variações dos papéis sociais e dos personagens na vida cotidiana. No que concerne à tradição greco-latina, a noção de pessoa é uma elaboração do direito romano baseada no casamento cultural grego e etrusco, a palavra “persona” remetendo à máscara, máscara ritual, máscara do antepassado, máscara teatral. 155

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

Com estas poucas referências pode-se afirmar o teatro como incontornável pela sociologia e antropologia. O que, aliás, Erwing Goffman (1973), o interacionismo simbólico e a sociologia do cotidiano já têm facilmente confirmado. Teatro(al), espetáculo(ar) Vimos, no início deste texto, que a palavra teatro abrange dois conjuntos de significações: um espacial, outro de referência à atividade artística. O sentido etimológico primeiro remetendo à ideia de espaço arrumado para que se possa olhar algo. Encontramos aí nossa primeira fonte de dificuldades para operar a distinção entre teatro e espetáculo, de origem latina, que remete também ao ato de olhar (“spectare”). Por outro lado, após uma primeira definição – “conjunto de coisas ou de fatos que se oferece ao olhar, capaz de provocar reações”, o Petit Robert (1996, p2132.) dá duas outras, que fazem referência ao teatro. Há a ideia daquilo que se apresenta em público, de uma representação teatral, cinematográfica, coreográfica; e de outra parte a ideia mesma de mise en scène. A atividade teatral ganha reconhecimento social, quando é realizada em espetáculo, mas não se reduz a este. Além disso, existem espetáculos que não se pode dizer teatrais. Por conseguinte, se poderá ressaltar, no que concerne a teatro, sobretudo a ideia de uma atividade artística, de uma realização grupal temporária, que chega normalmente a um período de apresentações públicas de um espetáculo, mas que não se reduz a isto: considerar, em segundo lugar, uma outra significação estrita relacionada ao espaço – ou seja, o teatro como lugar arrumado para o olhar. E ressaltar, o que concerne ao espetáculo teatral, mas também os espetáculos de dança, de música, de cinema, de circo, de esporte, de natureza e... de vida social. Considerando os adjetivos espetacular e teatral, vê-se que o primeiro significa o “que fala aos olhos, e se impõe à imaginação” (PETIT ROBERT, 1996, p .2133). Teatral (à parte os sentidos do que pertence ou é específico ao teatro) possui também um sentido figurativo e 156

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pejorativo. “Que tem o lado artificial, enfático, exagerado do teatro”. Por espetacular, o Petit Robert remete a chocante, espantoso, impressionante. Por teatral remete ao dramático, cênico, e... espetacular. Apesar desse círculo que parece se fechar, penso poder insistir em nossa distinção: recuperando do teatro sobretudo a referência à representação (pessoas que representam personagens), ao artifício, mas deixando de lado o sentido pejorativo, e remetendo o sentido figurativo ao espetacular, que fará sempre referência ao chocante, ao impressionante. Teatralidade e espetacularidade Há um século, a codificação da arte teatral conheceu duas grandes tendências. Uma tenta ir em direção ao despojamento dos “exageros teatrais” (em direção à “vida”), cuja grande referência é Stanislavski. A outra tenta ir em direção ao “teatral”, ao espetacular (diferente da vida) – a referência pode ser Meyerhold. A finalidade da primeira linhagem é fazer parecer o teatro com a vida do dia a dia, e as personagens apresentadas no espetáculo com os atores sociais reais. Neste sentido, se trataria de fazer com que os atores teatrais dominassem as técnicas cotidianas do corpo, a ponto de poder repeti-las perante o público sem perder a sensação de espontaneidade – isto simplificando muito para poder avançar. De outro lado, a linhagem do teatro “teatral” (ou espetacular) tem por finalidade fazer com que os atores teatrais dominem técnicas extracotidianas do corpo, no sentido utilizado pela “Antropologia teatral” de Eugenio Barba (BARBA; SAVARESE, 1986). De acordo com nossa hipótese, a primeira tendência buscaria mais a teatralidade, enquanto a segunda privilegiaria mais a espetacularidade. Buscando os princípios comuns às diversas tradições teatrais, Barba propôs uma noção de técnica extracotidiana do corpo para dar conta das alterações de andar e de equilíbrio corporal dos atores. Suas referências, entre outras, foram os atores e dançarinos Katakali e de Ballet. Para ele, estas técnicas seriam a própria base do teatral. De fato, elas seriam mais, a meu ver, uma das principais referências não somente do espetacular teatral ou coreográfico, mas também do espetacular mais geral – do 157

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espetacular esportivo ou de circo, por exemplo (LE BRETON, 1985, p. 82) – no qual estas técnicas extracotidianas são levadas ao paroxismo. Por outro lado, existe ainda o espetacular de certos rituais religiosos com transe, e onde os “atores” podem até andar sobre as brasas sem queimar os pés. E aqui se abre uma rica via especulativa sobre o que se pode chamar de “estados alterados de consciência” em relação ao teatral e ao espetacular, via esta a se enveredar numa outra ocasião. Há alguns anos, numerosos intelectuais insistem sobre o lado espetáculo da sociedade, do Estado, do corpo contemporâneo ou, ainda, sobre as tendências atuais à teatralização e “espetacularização” do mundo. É, a meu ver, bem aqui que se deve distinguir a teatralidade da espetacularidade, como duas categorias da sociedade contemporânea. Minha proposição é a seguinte: A teatralidade seria o jogo cotidiano de papéis sociais e pertenceria, sobretudo, ao domínio dos ritos de interação de ordem íntima e pessoal (HALL, 1971). É o reino da pessoa e da rotina, onde se formam e se enraízam as possibilidades da espetacularidade e da própria atividade teatral. Trata-se também do reino das formas de delicadeza e de cortesia (ou ainda, do que as contraria) numa cultura dada. A “espetacularidade” (spectacularité) seria a colocação em cena extracotidiana de relações sociais que têm lugar nos espaços sociais e públicos. É o reino da grandiosidade, do chocante, do impressionante. Claro que estas categorias não podem ser compreendidas como dois estados distintos e afastados um do outro. Na realidade, os fatos sociais possuem frequentemente as duas dimensões. Evito aqui discutir questões de ordem semiológica ou filosófica, colocando em relações estruturais o corpo, a teatralidade e a espetacularidade – as pesquisas sobre expressividade do corpo desenvolvidas por Michel Bernard, há alguns anos (BERNARD, 1976), podem ajudar no aprofundamento desta discussão. De outra parte, as experiências educacionais de jogo e de expressão dramática, assim como a educação artística na França, Brasil, 158

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Tunísia e Montreal, tendo como referência principal a pessoa e a comunidade, no mundo profissional e na vida social, poderão ser também úteis para o refinamento da distinção heurística que nos interessa. No momento, contento-me em lançar algumas pistas de uma pesquisa em curso. Referências BARBA, E.; SAVARESE, N. Anatomie de l’acteur: un dictionaire d’anthropologie théâtrale. Paris: Bouffonneries; Contraste, 1986. BERNARD, M. L’expressivité du corps: La recherche em danse. Paris: Chiron, 1976 BOAL, A. Jeux pour acteurs et non-acteurs. Paris: Maspéro, 1976. CANTINI, M.; MAZE, S. Tante Suzanne. Paris: Méridiens, 1982. DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. 4.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. DUMONT, L. Essais sur l’individualisme. Paris: Seuil, 1982. DÜRKHEIM, E. Les formes élémentaires de la vie religieuse. 7.ed. Paris: P.U.F, 1983. (Coleção Quadrige). FERRAROTI, F. Histoire et histoires de vie. Paris: Méridiens, 1983. GALLAND, B. Art sociologique: méthode pour une sociologie esthétique. Genève: Georg, 1983. GOFFMAN, E. La mise en scène de la vie quotidienne. Paris: Ed. De Minuit, 1973. HALL, E. T. La dimension cachée. Paris: Seuil, 1971. 159

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JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1983. KANT, E. Anthropologie du point de vue pragmatique. Paris: Librarie Philo J. Vrin, 1984. LE BRETTON, D. Cor ps et societés: essai de sociologie et d’anthropologie du corps. Paris: Méridiens, 1983. LE NOUVEAU Petit Robert. Paris: dictionnaires Le Robert, 1996. MAUSS, M. Sociologie et anthropologie. 9 ed. Paris: PUF, 1983. (Coleção Quadridge) t les oeuvres. Paris: Librairie Philo J. Vrin, 1948. NIETZSCHE, F. La naissance de la tragédie. Paris: Gallimard, 1949. POIRIER, J.; CLAPER-VALADON, S.; RAYBAUT, P. Les récits de vie. Paris: PUF, 1983.

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Teatralidade e espetacularidade

*

Este artigo contém os temas centrais de uma tese de doutoramento. O ponto de vista teórico é a interface teatro/antropologia. O campo de pesquisa principal é o percurso de uma “tribo” de jovens intelectuais baianos, entre 1968 e 1978, que fizeram teatro e jornalismo (Verbo Encantado e Viver Bahia), viveram em comunidade (“Begônias”) e (alguns) se exilaram mais ou menos voluntariamente na Europa em 1970. Caricatura é, ao mesmo tempo, simplificação e exagero. E, assim sendo, uma forma de comunicação muito eficaz. No discurso científico pode ser um recurso precioso. Se eu digo que nove entre dez astros da política, na Índia, são também estrelas do cinema indiano, vocês me entendem. Um ex-ator de Hollywood e presidente americano, duas vezes, fez de seu vice- sucessor. O papa também foi ator na juventude... As relações poder político/ mundo dos espetáculos são evidentes em todas as culturas. Georges Balandier (O poder em cena) demonstra-o. Quanto à sociedade contemporânea, essas relações são detalhadas por Guy Debord (Sociedade – e comentários – do espetáculo) e Roger-Gérad Schwartzenberg (O estado espetáculo). Por outro lado, o discurso científico do século XX está recheado de metáforas, noções e figuras técnicas teatrais, sem que o teatro seja o objeto eleito do discurso. Bem assim a concepção freudiana do complexo de Édipo, a noção de papel social de G. H. Mead, o psicodrama de Moreno, os estudos sobre comportamento animal (Lorenz p. ex.), as abordagens do elemento lúdico como base da vida social (O homo ludens de Huizinga), as leituras teatrais dos ritos cotidianos (TURNER, GOFFMAN, MOLER, MAFFESOLI) dos rituais políticos e religiosos (EVREINOV, LEIRIS, NAMER). *

Publicado In: A TARDE, Salvador, 13 jan., 1990. Caderno Cultural.

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O teatro, após Artaud e, sobretudo, depois das experiências polonesas de Grotowski, passou a incorporar noções e temas das ciências sociais. Os grandes centros atuais geradores de pesquisa nessa área são a ISTA – International School of Teatre Anthropology, dirigida por Eugenio Barba, em Holstebro, Dinamarca; o centro de Grotowski, em Pontedera, Itália; os teatros Bouffes du Nord, de Peter Brook, e do Soleil, de Arianne Mnouchkine, em Paris; e o trabalho do antropólogo e homem de teatro Richard Schechner, em Nova York. Essa interface teatro/ antropologia é reveladora do grande problema do discurso científico da modernidade: a definição dos termos. Depois que as diversas ciências (mesmo as ditas exatas), passaram a reformular e nuançar conceitos tidos como preciosos (como, por exemplo, os de tempo, espaço, energia, rede, vírus, microorganismo, alteridade), um novo tipo de discurso elabora-se, não mais baseado em conceitos “duros”, mas em noções “moles”. Em “formas”, como denomina Maffesoli. Essas são noções operacionais, descartáveis mesmo, que não possuem existência real, mas que ajudam a pensar a realidade (como os “idealtipos” da sociologia compreensiva de Max Weber). São alavancas metodológicas para o conhecimento (“conascimento”) do mundo contemporâneo, num contínuo vaivém – “formas” para pensar/ “formas” de viver, onde umas e outras se transformam. É nesse sentido que proponho definir as noções de “teatralidade”, “espetacularidade” e “pós-modernidade”. Teatralidade e Espetacularidade São conceitos que implicam o elemento lúdico que lubrifica as articulações do corpo social. São os jogos cotidianos e os rituais extraordinários que constituem essas articulações: teatralidade e espetacularidade. Para simplificar, exageremos: as características do teatral são o que se refere ao espaço ordenado em função do olhar (do grego theatron); espetacular é o que caracteriza o que é olhado (do latim espectare). Quando fazemos 162

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teoria (theorein = ver de longe) e “olhamos” o mundo, todo o seu espaço é espaço teatral, e tudo o que aí se vê pode ser espetacular. Os microeventos da vida cotidiana formam a teatralidade. Os macroeventos, que ultrapassam a rotina, são extracotidianos, e formam a espetacularidade. Teatralidade é o jogo cotidiano das interações face a face, onde somos simultaneamente atores e espectadores. Num mesmo dia, em diversas situações, a mesma pessoa é mãe, filha, mulher, amante, dominadora, dominada, estrangeira, compatriota, introspectiva, extrovertida, patroa e empregada: o que depende do “outro”. O grau de sinceridade e de simultaneidade, na interpretação dos papéis, pode variar. Até a hipocrisia pode entrar em jogo. Aliás, o termo hipócrita, em sua origem grega, designava o ator de teatro, o que finge. Depois passou a designar pejorativamente aquele que finge em sociedade. Hipocrisia, cortesia, polidez, respeito e rebeldia às convenções sociais são os jogos cotidianos de inte (g) ração social. Na teatralidade agimos raramente pensando em “como”. Se penso “como pôr o pé adiante do outro”, no ato de andar, é possível que perca o equilíbrio. O mesmo ocorre com o ator em cena: ele não age inconscientemente (como os radicais stanislavskianos podem até querer), nem completamente consciente (como os brechtianos extremados parecem sugerir). O ator de teatro, no palco, vive uma espécie de estado modificado de consciência, semelhante, mas diferente, do estado de uma pessoa na teatralidade cotidiana. Eventualmente, tenho consciência de que para conseguir um favor, ou para conquistar alguém devo agir, vestir-me e apresentar-me de tal e tal modo. Mas, durante a “performance” é preciso que eu me entregue ao jogo. São as vivências desse estado modificado de consciência da teatralidade que formam o “eu”, sucessão e convivência de máscaras (do greco-latino persona): a pessoa. Espetacularidade é a categoria dos jogos sociais onde o aspecto ritual ultrapassa o aspecto rotina: são os rituais religiosos, as competições 163

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esportivas, os desfiles e comícios, as grandes festas. O espaço “teatral” é aí mais definido que na teatralidade cotidiana (onde este compreende todo o espaço social). São os templos, estádios, salões, palanques, determinadas ruas e praças. O circo romano é exemplar: lá se passavam combates, acrobacias, ritos esportivos e religiosos, apresentações musicais e teatrais, danças, palhaçadas e massacres. Os romanos admiravam. A distinção entre atores e espectadores também é mais clara. Se as técnicas corporais (uma noção clássica de Marcel Mauss) são banais e cotidianas na teatralidade, na espetacularidade elas são extracotidianas e exigem um treinamento específico (o dos iniciados, esportistas, militares, modelos, líderes, etc). Uma vez essas técnicas banalizadas (o que ocorre muito com as novas modas de vestimentas, esportivas e de cuidados do corpo), penetram o mundo cotidiano e transformam-se em técnicas corporais da teatralidade. As formas sociais de espetacularidade são tentativas de manipulação da realidade, para “organizar” o caos cotidiano, e permitir a vivência do trágico da vida (a morte inevitável), de caráter extraordinário. São as formas definidoras dos grupos sociais e das relações poder/ contra poder. As formas sociais da teatralidade são minúsculas soluções, já incorporadas à tradição cultural, para os mesmos problemas. São as formas singularizadas das pessoas e das relações interpessoais. O teatro é o modelo apolíneo do curto-circuito teatralidade/ espetacularidade. O carnaval é a versão dionísica. Nessas formas lúdico-sociais, entre ter e não ter consciência, existe um amplo leque de estados modificados de consciência. Melhor que leque, a figura da esfera dá conta desses estados (entre os quais a hiperconsciência e a subconsciência), pois a gradação é sutil e infinitas são as possibilidades de combinação. O transe, o êxtase, a possessão, o estado de orgasmo, a brincadeira infantil do faz de conta, a interpretação teatral de personagens, o estado de graça, o hipnótico, o histérico, o esquizofrênico, e os diversos estados de espírito, além dos estados de consciências dos artistas em cena, interpenetram-se. 164

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Método A perspectiva é a da antropologia clássica, de estudo sistemático e multidisciplinar do homem. Não na forma positiva da “modernidade” colonial-racionalista do progresso. Mas numa forma relativista. A completa objetividade científica é falsa. A subjetividade também. Minha base metodológica é a “trajetividade” (noção de A. Berque): o curto-circuito subjetividade/ objetividade; pois estou implicado como sujeito no objeto de estudo (um grupo de jovens 1968/ 78). Estudo algo que vivi: o “outro” está em mim. Radicalizo o que os etnólogos exigem: que o pesquisador seja, o mais possível, um integrante do grupo social estudado. Assumo a ideia de “competência única” da etnometodologia, e a noção de “implexidade” (implicação + complexidade) de Le Grand. A teoria anarquista de Feyerbend, que postula as conquistas científicas como transgressões aos sistemas culturais dominantes, exige rigor teórico. A sociologia como arte, de Maffesoli, exige pesquisa poética e rigor acadêmico. Pretendo satisfazer essas exigências. As técnicas de pesquisa: 11 entrevistas, não-diretivas gravadas (25h.) e coleta de documentos (22 edições do Verbo Encantado e 22 de Viver Bahia; reportagens, poemas e artigos publicados em jornais e revistas locais e nacionais; fotos, gravações, programas e cartazes de espetáculos). Pós-modernidade A modernidade é o apogeu da cultura europeia. É a cristalização filosófica da antropofagia do velho continente no século XVIII. É o racionalismo, que privilegia o sentido da “visão” de mundo: o homem, confrontado ao destino, joga com sua própria vida e se individualiza. Com o Renascimento, a Europa exerce sua antropofagia com a herança grega, que lhe foi transmitida pelos árabes. A criação pictural da perspectiva (cujo modelo arquitetônico é o teatro) e o aproveitamento das técnicas orientais de impressão tipográfica reafirmam o primado da “visão” e, pela comparação com as culturas “exóticas”, da ideia de progresso. O 165

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mito do “bom selvagem”, que permeia a filosofia “das luzes”, é o produto antropofágico europeu de suas incursões no Brasil e nas Américas. Daí uma humanidade que se quer universal e que se exporta para o mundo. Sem escrita, a sociedade baseada na oralidade, privilegia o tato, a audição e o olfato. E é o passado, e não o futuro, que predomina no imaginário da temporalidade. Essas afirmações poderiam também ser testadas em estudos sobre as culturas de escrita pictográfica (de imagens de coisas, e não de signos abstratos). Mas são cada vez mais raras as sociedades isoladas de um tipo ou de outro. O processo cultural contemporâneo tem mesclado as diversas formas de comunicação escrita, oral e corporal, graças à proliferação e à mobilidade cada vez maior das imagens e das teleinformáticas. O tátil e o digital desenvolvem-se, sem por isso ofuscarem a visão. E abandonamos o futuro (da modernidade) e o passado (da não-modernidade?). A Europa, no dizer de Baudrillard, viu sua utopia de modernidade “realizada” na América do Norte, um século após o registro poético da modernité por Baudelaire (1850). Índios fora, a América é extensão da Europa. Mas o Japão incorpora a modernidade europeia, baseando-se solidamente em sua própria tradição (o que seria o inverso da modernidade). O que surpreende nesse processo antropofágico é a eficácia (pelos próprios padrões da modernidade) do “sincretismo” do espírito cartesiano com religiosidade e formas da espetacularidade tradicionais. A esse tipo de fenômeno há quem chame de “transmodernidade”. (BERQUE, 1982), ou “epimodernidade” (SCHERER; HOCQUENGHEM, 1986). Prefiro o termo “pós-modernidade”, não para definir um “após” histórico, mas um outro tempo lógico da velha modernidade europeia. E não também como conceito, mas como “forma”, noção temporária e descartável. E que hoje define um estilo arquitetônico datado, que prefere a forma à função, misturando elementos “arcaicos” e modernos. Umberto Eco designa pós-moderno o estágio de impasse e radicalização de todo movimento artístico, que o dilui enquanto surge um novo movimento. Embora eu não esteja aqui me 166

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referindo ao movimento modernista, nem à modernização como renovação, mas à “modernidade”. Bahia Os jesuítas, esses primeiros “modernos” (BAUDRILLARD, 1982), usaram um teatro polilíngue para a formação de pessoas cristãs. Na Bahia (e no Japão). Aqui o genocídio e a escravidão são elementos fundadores. Assim como a modernidade, que se cristaliza com a industrialização e a urbanização. Euclides da Cunha, com “Os Sertões”, e Nina Rodrigues, com “Os Terreiros”, são nossos clássicos da modernidade (racismos inclusos). Da estação da Calçada partem as tropas para Canudos. Entre a construção do porto, a partir de 1911, e a do aeroporto, durante a Segunda Guerra, os remanejamentos das ruas de cumeeira do centro urbano, são marcos da modernidade, que têm ainda impacto reduzido no conjunto da população. Depois vêm a Fonte Nova, o Fórum e a Av. Otávio Mangabeira. Nos anos 50, aparecem o petróleo e os supermercados. Nos anos 60, o Túnel Américo Simas, o CIA e as avenidas de vale. O crescimento urbano, e o do parque hoteleiro e de equipamentos turísticos, o Centro Administrativo e o Polo de Camaçari redefinem o novo espaço “teatral” da região Metropolitana. O incêndio do “moderno” Teatro Castro Alves é anterior à não-modernidade, que na verdade pegou fogo na feira livre e popular de Água de Meninos. Que o incêndio do Mercado Modelo seja símbolo (reunindo pesquisa teórica e pesquisa de campo): a aventura tribal pós-moderna em estudo passa por esse espetáculo, visto do Varanda, aquele bar mítico da Ladeira do Pau da Bandeira. A análise (ainda em curso) dos dados reunidos na pesquisa de campo revela a crescente importância, entre 68 e 78, das formas espetaculares de matriz cultural negro-africana. Elas ocupam o novo espaço urbano, que interliga vales e cumeeiras, centros e periferias, invasões e shopping centers, contraculturas e instituições. Graças a vivências limites (drogas, marginalidade, teatro, misticismo e sexualidade polimorfos), essa tribo 167

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de jovens de classe média, de brancos da Bahia, participa (a reboque ou na vanguarda) desse processo que defino como pós-modernidade antropofágica da cidade da Bahia. O que há de novo é a inte (g) ração modernidade tecnológica e intelectual/ não- modernidade mística e sensual. A palavra axé está no linguajar cotidiano e nos textos publicitários dos anos 80. Entre 68 e 78 era um termo de espetacularidade. Hoje resume, assim como a nova música baiana, a própria teatralidade da Bahia pósmoderna.

Referências BAUDRILLARD, Jean. Modernité. In La modernité ou l’esprit du temps. Catálogo da Bienal de Paris, secção “Arquitetura”. Paris: L’Equerre, 1982. p. 28-31. BERQUE, Augustin. Vivre l’espace au Japon. Paris: PUF, 1982. SCHERER, René; HOCQUENGHEM, Guy. L’âme atomique: pour une esthétique d’ère nucléaire. Paris: Albin Michel, 1986.

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Le jouir du jouer*

L’élément ludique baigne les articulations du corps social. Les jeux des rôles sociétaux au quotidien et les mises en scène extra-quotidiennes des rapports sociaux font l’articulation entre les corps humains individuels et le corps social. On joue et on utilise l’espace comme une scène pour être en société et pour vivre les socialités de tous les jours. Cette idée me semble se dégager de façon de plus en plus nette de la nébuleuse de l’imaginaire contemporain. En Occident, depuis une cinquantaine d’années, l’utilisation de la métaphore théâtrale par les sciences sociales est révélatrice d’une prise de conscience, dans le milieu intellectuel, de l’articulation corps propre/corps social en termes de jeu et de mise en scène (MEAD; HUIZINGA; GOFFMAN, 1963)1. C’est bien le comportement ludique qui permet l’être ensemble, la jouissance de la vie sociale et la vie tout court. Pour satisfaire les besoins vitaux, on se confronte à l’altérité. Un processus de négociation s’installe, dont sont exclus le conflit et la violence. La douleur et la mort sont toujours des possibilités concrètes. Dans la tentative de les dépasser, on se place dans la sphère du ludique. Toute activité inter-relationnelle dans laquelle un corps humain, au moins, s’engage concrètement, peut être comprise dans cette sphère. On peut toujours y discerner les paradoxes liberté-règle et plaisir-contrainte, qui caractérisent le jeu (HUIZINGA; CAILLOIS, 1951)2. La liberté et la recherche du * Publié à l’origine dans Sociétés : revue des sciences humaines et sociales, Paris, n. 27, p. 21-25, 1990 . 1 MEAD, George Herbert; KAELIN, E; THIBAULT, G. L’esprit, le soi et la societé. Trad. Jean Cazeneuve. Paris: PUF, 1963. 2 HUIZINGA, Johan. Homo ludens: essai sur la fonction sociale du jeu. Trad. Cécile Seresia. Paris: Gallimard, 1951.

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plaisir sont humaines. Les règles et les contraintes relèvent du domaine du personnel, du social ou de la nature elle-même. Il s’agit bien d’un besoin vital : pour jouir de la vie il faut jouer. Cette affirmation a une caractéristique utilitariste évidente. Mais je ne m’inscris pas dans la tradition moraliste, explicitée au XVIIe siècle par Shakespeare et Caldéron de la Barca (le monde est une scène où chacun joue un rôle), et qui se base sur une vision platonicienne et éthique du monde. J’opte pour ce que Michel Maffesoli (1979) 3 nomme « l’immoralisme éthique ». Il est bon et beau de jouer. Et pour essayer de mieux cerner ce jeu social beau et utile, je propose les notions de théâtralité et de spectacularité. Deux formes du jeu social Ces notions sont des forms idéal-typiques, des mini-concepts qui se chevauchent et n’existent pas indépendamment l’un de l’autre. Néanmoins, if faut bien les distinguer. Partons des notions de théâtre et de spectacle. Grosso modo, le mot théâtre, du grec théâtrum, renvoie à l’espace aménagé pour le regard et à l’art de la représentation théâtrale elle-même. Bien sûr, le spectacle en est l’aboutissement et la fin ultime. Mais il n’est qu’un moment d’un processus plus complexe : un processus qui se constitue principalement de répétitions, de jeux de rôles, de travail à partir de textes et d’improvisations autour de partitions connues. En transposant ce raisonnement à l’univers du jeu social, la théâtralité serait les rites d’interaction répétitifs de la vie de tous les jours, l’univers de la routine. Je rappelle la notion de personne dans le Droit romain (MAUSS, 1950)4 qui a élaboré la tradition théâtrale grecque du masque, lequel singularisait 3 4

MAFFESOLI, Michel. La conquête du présent. PUF: Paris, 1979. MAUSS, Marcel. Une catégorie de l’esprit humain: la notion de personne, celle de «moi». In: Sociologie et anthropologie. Paris: Quadrige; PUF, 1950. p 332-362.

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l’individu au sein du groupe. En effet, lorsque l’acteur s’est détaché du chœur est apparue l’idée de personne. La théâtralité serait, donc, le domaine de la formation de la personne, la conscience de soi et de son corps apparaissant dans les jeux de relations interpersonnelles de tous des jours (MEAD, 1963)5. J’établis le lien entre le développement du théâtre grec, la primauté sensorielle du regard, l’apparition d’une forme d’écriture horizontale à caractères graphiques représentant des sons et, enfin, la prépondérance dans l’imaginaire social de la modalité temporelle d’avenir, en un mot : du projet. Autant de symptômes qui sont à la base de la culture occidentale et qui déboucheraient longtemps après dans la modernité. Ce n’est qu’avec l’écriture abstraite que l’on peut vouloir changer le monde. Il s’agit d’une source de liberté, de joie, mais aussi d’angoisse et de peur de l’inconnu (DE KERCKOVE, 1983)6. Avec l’apparition récente des langages télématiques, l’imaginaire, dans le monde contemporain, privilégie le présent et, sur le plan sensoriel, même si le regard reste toujours très important, la tactilité tend à prendre la première place (MCLUHAN; DE KERCKHOVE; BAUDRILLARD; MAFFESOLI, 1967)7. Serait-ce là la post-modernité? Pour comprendre le monde comme un théâtre, non à partir d’une vision éthique et pré-moderne du monde (Platon), mais à partir d’une compréhension esthétique (NIETZCHE, 1949 )8 de l’univers, il faut déjà se placer dans un autre temps logique que celui de la modernité. Ma proposition des notions de théâtralité et de spectacularité s’inscrit dans ce 5

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MEAD, George Herbert. L’esprit, le soi et la societé. Trad. Jean Cazeneuve, E. Kaelin et G. Thibault. Paris: PUF, 1963. DE KERCKHOVE, Derrick. Synthèse sensorielle et tragédie: l’espace dans les Perses d’Eschyle. In : Tragique et tragédie dans la tradition occidentale. Montréal : Détermination inc., 1983. p.69-83. MCLUHAN, H. M. La galaxie Gutemberg. Paris: Mame, 1967. NIETZCHE, Friedrich. La naissance de la tragédie. Trad. Geneviève Bianquis. Paris: Gallimard, 1949.

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type de sensibilité, percevant le monde comme un théâtre tragique : du grand, du vrai, du beau théâtre. Mais revenons au monde classique : rien de plus post-moderne que d’y revenir. La notion de spectacle, du latin spectare (regarder) assume toute sa puissance dans la societé romaine, où des spectacles de tout ordre ont acquis une importance jusqu’alors inconnue (DUPONT, 1985)9. C’est la civilisation du panis et circenses. On voit que la notion de spectacle englobe ici celle de spectacle théâtral, mais qu’elle s’élargit pour incorporer d’autres formes spectaculaires, comme la danse, la musique, le cirque, les compétitions sportives, les fêtes de célébration et les commémorations religieuses, militaires et politiques. Par ailleurs, le spectaculaire renvoie à l’extraordinaire. La spectacularité serait donc ce qui dépasse dans la vie quotidienne ; l’ampleur du jeu social y est supérieur à celle de la théâtralité répétitive de tous les jours. Le théâtre lui-même est un des courts-circuits possibles entre la théâtralité et la spectacularité. Il s’enracine dans la théâtralité, dans la routine, et s’approche des rites spectaculaires, les trois mots (théâtre, théâtralité et spectacularité) renvoyant au sens du regard et à univers culturel de l’Occident, où la modernité est l’événement le plus important. On ne peut bien les comprendre que maintenant, une fois que l’actuel et le quotidien commencent à présenter des signes qui ne s’identifient plus avec l’ère du temps de la modernité (MAFFESOLI, 1988)10. Confusion et distinction La distinction entre les deux notions ici proposées est importante à de multiples égards. D’une part, la méfiance moraliste traditionnelle envers le théâtre tend à se poser actuellement vis-à-vis du spectacle (DEBORD; 9

DUPONT, Florence. L’acteur-roi ou le théâtre dans la Rome antique. Paris: Les Belles Letres, 1985. 10 MAFFESOLI, Michel. Le temps des tribus : le déclin de l’individualisme dans la société de masse. Paris : Méridiens Klincksieck, 1988.

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SCHWARTZENBERG, 1987)11. D’autre part, une approche cynique du monde contemporain, compris comme le monde du simulacre (BAUDRILLARD, 1982)12, renvoie souvent au scénique et au théâtral. Par ailleurs, une lecture emphatique de ce même monde (MAFFESOLI, 1985)13 valorise la notion d’apparence et de théâtralisation. Finalement, l’importance de la distinction théâtralité/spectacularité tient au fait que le théâtre lui-même, depuis Artaud, essayant de dépasser la tradition occidentale récente, cherche de plus en plus les bases de cet art dans les traditions les plus anciennes (GROTOWSKI, 1989)14 ; en faisant appel à l’anthropologie et à une compréhension transculturelle des techniques du corps (BARBA, 1989)15. Il s’agit d’une recherche de la théâtralité, où le théâtre prend ses racines. Mais il s’agit aussi d’une recherche des traditions spectaculaires du chant, du théâre, de la danse, et des rituels religieux où le chant et la danse sont fort présents. Cet ensemble d’approches différentes et d’idées paradoxales (ou confuses ?) sur le monde contemporain et sur le théâtre caractérisent peut-être la pensée et les performing arts post-modernes. La prolifération des métaphores et des notions théâtrales dans le discours des sciences sociales, et la vaste utilisation des termes anthropologiques dans le discours des hommes de théâtre n’étant que des symptômes parmi d’autres. Mon intention est de rajouter un « petit mot » à ce bouillon, un « mot » (le

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DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris : Gérard Lebovici, 1987 (la l re: Buchet-Castel, 1967). 12 BAUDRILLARD, Jean. Fin de la modernité ou l’ère de la simulation. In : La modernité ou l’esprit du temps, catalogue Biennale de Paris – section architecture. Paris : L’Équerre, 1982. p. 32-33. 13 MAFFESOLI, Michel. La connaissance ordinaire : précis de sociologie compréhensive. Paris: Méridiens Klincksieck, 1985. 14 GROTOWSKI, Jerzy. Tu es le fils de quelqu’un. Revue littéraire mensuelle, Paris, n. 726, p. 13-25, 1989. 15 BARBA, Eugenio. La troisième rive du fleuve. Le théâtre ailleurs autrement: Europe, revue littéraire mensuelle. Trad. Brigitte Kaquet. Paris, p. 26-35, n. 726, Europe/ Messidor, 1989.

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verbe) qui distingue une chose (la théâtralité) de l’autre (la spectacularité), qui ne les explique peut-être pas et ne fera que les confondre... Et pourtant, la distinction me semble très claire : la théâtralité est le résultat de la tradition vécue d’une communauté. Il s’agit des rites routiniers d’interaction qui incorporent tous les changements sociaux. On vit comme cela, on n’y pense plus. Nous jouons nos rôles et c’est tout. C’est le tragique, le destin et la fatalité. La spectacularité, par contre, représente toute tentative de manipuler la société, de l’organiser, de la comprendre, dont les résultats sont des formes spectaculaires d’interaction sociale. C’est la scène dramatique, l’univers de l’action humaine sur le monde. Et, enfin, le comique et la monnaie d’échange dont on dispose pour négocier avec les deux formes de jeu social. C’est ce qui épiphanise le substrat ludique de la vie sociale. Les formes sociales de spectacularité poursuivent un monde idéal, tandis que les formes sociales de la théâtralité sont les petits ajustements que l’on fait tous les jours pour vivre le monde réel : peu importe s’il est fait de simulacres. Les apparences, c’est-à-dire le monde, qui est apparence, forme la théâtralité quotidienne. Les moments spectaculaires, qui ne sont plus seulement des apparences banales, mais des apparences spectaculaires, sont aussi des projections d’essences qui n’existeront jamais.

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L’ Interface Théâtrale*1

Les influences mutuelles France-Brésil, relevant plus particulièrement du domaine du théâtre, sont d’une grande richesse qui n’est peut-être pas visible d’emblée. Elles recouvrent, en effet, presque la totalité des cinq siècles d’histoire du Brésil. Les grandes périodes de ces échanges sont néanmoins faciles à identifier. Pour les définir de la façon la plus simple, je propose la classification suivante : la première période, qui est aussi la plus longue, va jusqu’à la fin du XVIIIe siècle ; la seconde période est celle de l’influence prépondérante du théâtre français sur le théâtre brésilien, qui comprend le XIXe et la première moitié du XXe siècle ; enfin, la troisième période, la plus récente, est celle où des pieces et des compagnies brésiliennes commencent à apparaître sur la scène française. La première période Avant 1750, un seul fait significatif mérite d’être signalé à propos de l’interface «théâtre» France-Brésil. Un seul fait, dont l’importance n’est pourtant pas des moindres. Il s’agit de la participation d’Indiens brésiliens à des «spectacles» en France, dont le qualificatif «théâtral» reste cependant douteux. C’est le cas de la «fameuse Fête Brésilienne», réalisée à Rouen en 1550 et présidée par Catherine de Médicis. Dans ce spetacle monumental, que l’on pourrait qualifier d’ «entrée princière», une cinquantaine d’Indiens brésiliens et autant de marins français apparaissaient sur scène, les corps * Publié à l’origine dans Cahiers du Brésil contemporain, nº 12, Paris, MSH/ CRBC (EHESS) / IHEAL (Paris III), 1990, p. 113-125 et ensuite dans Estudos Lingüísticos e Literários, nº 16, Salvador, ML/ UFBA, 1994, p.19-25. 1 Pour une approche socio-anthropologique des données ici présentées, voir Armindo BIÃO, Jorge Armindo. « Théâtralité » et « spectacularité » : une aventure tribale contemporaine à Bahia, thèse de doctorat sous la direction de Michel Maffesoli, Université René Descartes, Paris V, Sorbonne, 1990, p.279-313.

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peints et ornés de parures à l’indienne. Pour le décor, on avait aussi amené à Rouen des animaux et des plantes du Brésil2. Par ailleurs, on trouve de nombreuses références aux cérémonies de baptême d’Indiens brésiliens en France. Le premier de ces baptêmes spectaculaires est sans doute celui de la «mère» des familles métisses de Bahia, l’Indienne Catherine du Brésil (Catarina Paraguaçu baptisée à l’occasion Catarina do Brasil). Mariée au Portugais Diogo Alvares Correia, plus connu sous son nom indien Caramuru (qui s’est installé au Brésil suite à un naufrage), elle a été baptisée à Saint-Malo, en 15283. Un autre exemple des cérémonies de baptême d’Indiens brésiliens en France est celui des Maragnons, «ramenés par les Capucins en leur couvent de Paris, [et] obtenant le succès public que l’on imagine»4. Cela s’est passé lors du rêve de la «France équinoxiale» entre 1612 et 1615. Ces pratiques spectaculaires ont certainement contribué à la construction et diffusion du mythe du «bon sauvage», même si le document fondamental à ce propos est, comme le suggère Mario Carelli, le récit de voyage «en la terre du Brésil» du Français Jean de Léry, un des participants à l’aventure de la «France antarctique» entre 1555 et 15575.

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La Fête Brésilienne a été notamment étudiée par Ferdinand Denis en 1850. Pour les « entrées princières » voir BALANDIER, Georges. Le pouvoir sur scène, Balland, 1980, p.15 : l’auteur cite le Ballet Comique de la Reine (1581), comme une rupture avec la pratique des « Entrées princières » ou des « Intermèdes » à l’italienne, qui allait aboutir à l’institution du théâtre français et à la classification de divers genres théâtraux. À ce propos, voir OBRY, Olga. La marraine bretonne de Catherine du Brésil, in La Bretagne – Le Portugal – Le Brésil – Échanges et rapports, tome I, s. éd., 1973, p. 98. Il est intéressant de remarquer qu’Olga Obry s’est aussi intéressé au théâtre brésilien. A ce propos, voir son article sur les influences de Louis Jouvet et de Jean Giraudoux dans le théâtre brésilien à partir des années quarante Le Brésil au Creuset. Le théâtre dans le monde, 3 (XI), 1962, p. 255-260. Cf. AUGRAS, Monique, Le roi Saint Louis danse au Maragnon. Cahiers du Brésil contemporain, 5, 1988, p. 79. Cf. CARELLI, Mário, Brésil, épopée métisse, Découvertes: Gallimard, 1987, p. 25 ; aussi à ce propos, voir Frank Lestringnant, Le huguenot et la sauvage: l’Amérique et la controverse coloniale, en France, au temps des Guerres de Religion (1555-1589), Aux Amateurs de Livres, 1989, notamment les chapitres II, Jean de Léry, historien du Brésil français, et VIII, La réformation dans les canons ou l’invention du Bon Sauvage.

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La deuxième période : le rastaquouère et la cocotte Les premières informations documentées sur la production de pièces françaises au Brésil datent de la seconde moitié du XVIIIe siècle. Il s’agit de textes de Molière et de Voltaire6. Cela marque les débuts de l’influence théâtrale française qui allait dépasser celles du Portugal, de l’Espagne et de l’Italie, jusqu’alors dominantes au Brésil. Les compagnies françaises commencent à parcourir le pays aux alentours de 1800. En moins d’un siècle, vers la fin du XIXe, la présence française dans le théâtre brésilien est absolument prépondérante. C’est l’époque non seulement des compagnies, mais aussi des pièces adaptées, des thématiques et des professeurs d’art dramatique français. C’est le moment aussi où il est de bon ton pour un comédien brésilien de prendre un nom d’artiste aux consonances françaises. Les théâtres de l’époque reprennent ce même usage. Ils s’appellent Cassino Franco-Brésilien, Vaudeville, Variétés, Alcazar Lyrique et Moulin Rouge, par exemple7. Pour illustrer cette prédominance de l’influence française dans le théâtre, ainsi que dans la culture brésilienne en général, il suffit de citer le nom d’Artur Azevedo. Malgré ses tentatives de faire un théâtre plus littéraire, il fut vivement critiqué pour le choix qu’il avait fait d’un théâtre léger, 6 7

Cf. J. SOUZA, Galante, O teatro no Brasil, Tecnoprint, 1968, p. 141. À ce propos, voir MAURO, Frédéric. La vie quotidienne au Brésil au temps de Pedro Segundo 1831-1889, Hachette, 1980, p. 59 et s. Pour des références précises concernant des compagnies françaises au Brésil, voir PAIXÃO, Múcio da. O teatro no Brasil. Brasília: Ed., 1936; RUY, Afonso, História do Teatro na Bahia. Universidade da Bahia, 1959; ARAÚJO, Nelson de. História do Teatro, FCEB, 1978; HESSEL, Lothar. RAEDERS, G. O teatro no Brasil sob D. Pedro II, Ed. da Universidade, 1986, p. 224 et seq.; CACCIAGLIA, Mario. Pequena História do Teatro no Brasil, EDUSP, 1986. À propos de l’influence française à Bahia, Thales de Azevedo donne une série d’exemples relatifs à la vie quotidienne, ainsi qu’aux visites de Sarah Bernhardt et des Coquelin (l’aîné et le cadet) ; il parle également des danses qui sont devenues populaires, une fois sorties des salons impériaux : les quadrilhas, dont l’origine française est attestée par Wanderley de Pinho : Cf. AZEVEDO, T. A francesia baiana de antanho, in Publicação do Centro de Estudos Baianos, 110, 1985, p. 61-83.

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«pastiche» du théâtre français grand public. Mais il reste le personnage le plus marquant du théâtre brésilien de son époque. Il connut un assez grand succès pour ses adaptations d’opérettes françaises, comme par exemple celle du Surcouf d’Henri Chivot et Alfred Duru, musique de Robert Planquelle. Jean-Yves Mérian, dans «Surcouf, corsaire d’opérette au Brésil»8, parle des triomphes d’Offenbach et des succès d’Artur Azevedo à peu près à la même époque. Curieusement, c’est dans la ville natale du corsaire Surcouf, Saint-Malo, que le premier sauvage brésilien (Catherine du Brésil) a été baptisé. L’importance de l’opérette, ce genre théâtral d’origine française prédominant sur les scènes brésiliennes vers la fin du XIXe siècle, a également marqué «la vie parisienne», surtout «durant les brillantes anées de l’Empire». Jean Duvignaud parle, à ce propos, des comédiennes qui sont devenues des modèles d’une certaine forme de joie de vivre et de jeu, [et qui], surtout à l’occasion de l’Exposition de 1867 fréquentée par toutes les têtes couronnées d’Europe, conduisent la mode alors naissante, imposent le goût, façonnent la manière d’être9. L’auteur de la Sociologie du comédien affirme que, pendant ces «années folles [...] la société devint un théâtre où tout le monde jouait La vie parisienne». C’est bien sur cette scène qu’apparaissent le rastaquouère et la cocotte comédienne. Lors des montages de La vie Parisienne, de Ludovic Halévy et Henri Meilhac, musique de Jacques Offenbach, une des chansons les plus applaudies est l’air du Brésilien «Je suis Brésilien, J’ai de l’or...». Le 10 novembre 1866, quelques jours après la première de La vie parisienne (le 31 octobre), Ludovic Halévy relata dans ses Carnets de notes l’accueil chaleureux du public à la nouvelle pièce. Il fait notamment référence au duo du Brésilien et de la gantière qu’il fallait bisser à chaque représentation 8

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MERIAN, Jean-Yves. Surcouf, corsaire d’opérette au Brésil, in La Bretagne: Le Portugal – Le Brésil - Échanges et rapports, s. éd., p. 421-429. DUVIGNAUD, Jean, L’acteur : sociologie du comédien, Gallimard, 1965, p.161.

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sur la scène du Théâtre du Palais Royal10. L’acteur Brasseur, qui a créé le rôle du Brésilien dans ce spectacle, l’avait déjà joué auparavant dans une autre «comédie en un acte mêlée de chant» des mêmes auteurs. En fait, le personnage joué par M. Brasseur dans Le Brésilien (première le 9 mai 1863 au Théâtre du Palais-Royal) était celui d’un comédien. Mais l’intrigue de la pièce voulait qu’il se déguise en «Brésilien». Pauline Carton, auteur de la préface et des notes de l’édition datée de 1955 de cinq pièces de Meilhac et Halévy, qui contient Le Brésilien, a écrit à propos de la pièce et du personnage : «... Le Brésilien, farce de haute fantaisie, où apparaît pour la première fois le type du rastaquouère à favoris couleur cirage, au teint ocré, avec baragouin de cacatoès et bagues à tous les doigts»11. On dispose d’une photo de l’époque du comédien Brasseur en Brésilien et de commentaires sur sa capacité d’imiter des accents étrangers. L’humour provoqué par le personnage de l’étranger qui a du mal à s’exprimer dans la langue du pays et qui confond dangereusement (s’agissant de convenance et de politesse) des mots aux signifiés différents mais aux sonorités proches n’était certainement pas une nouveauté en 1863. On trouve des exemples chez Shakespeare et Molière, et même Aristote y

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Je remercie M. Jean-Pierre Halévy, descendant d’un des auteurs de La vie parisienne et du Brésilien, qui a évoqué l’intérêt de sa famille pour le Brésil depuis le XIXe. Il m’a fait connaître l’édition Calmann-Lévy, de 1955, intitulée Théâtre, avec cinq pièces de Meilhac et Halévy, parmi lesquelles Le Brésilien. M. Halévy m’a aussi permis de photocopier la brochure Ronde du Brésilien, contenant les paroles et la partition de la seule chanson de la comédie Le Brésilien, et dont la couverture est une photo où apparaît le comédien Brasseur représentant ce personnage. La première édition du Brésilien date de 1861, chez Michel Lévy Frères. - Le terme « rastaquouère » n’apparaît pas dans cette pièce (de 1863), mais est utilisé dans la préface pour décrire le « Brésilien » (p. XIII). Le Petit Robert indique : (1880-1886 ; Esp. d’Amérique rastracuero, « traîne-cuir », désignant des parvenus). Fam. Étranger aux allures voyantes, affichant une richesse suspecte. Le terme apparaît, dans ce sens, dans Un fil à la patte de Feydeau, de 1894, pour définir le personnage du Général. Le dictionnaire brésilien Aurélio donne la même signification, indiquant l’origine « française » du mot. 11 Cf. CARTON, Pauline, « Préface », In: HALÉVY, L.; MEILHAC, H. Théâtre, Calmann-Lévy, 1955, p. 13.

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fait référence dans sa Poétique, lorsqu’il parle de l’utilisation de mots «barbares». Par ailleurs, on connaît le texte d’une pièce d’Henry Muger, jouée elle aussi au Théâtre du Palais-Royal, mais en 1860, Le serment d’Horace, où apparaît également un personnage de Brésilien. La pièce est présentée comme une «comédie en un acte en prose (vaudeville)». Et le personnage de Dubreuil apparaît comme un «ex-capitaine au long cours, mulâtre»12. Ayant fait fortune comme négrier, il réunit un nombre de caractéristiques qui le rapprochent à la fois des personnages du Nord-Américain et du rastaquouère hispanophone latino-américain, présents dans le théâtre français de la seconde moitié du XIXe siècle, quand Paris est devenue le symbole même de la ville cosmopolite et moderne. En effet, ce Brésilien-là apparaît comme riche (très épris et très jaloux d’une petite actrice), violent et brutal – il «casse le mobilier, des postiches et statuettes, quitte à les remplacer... jure comme un diable»-, «pétri de naïveté», enfin comme un «fantoche bruyant et bondissant».13 Son créateur, Henry Muger, fréquentait le salon de Mme. de Tourbet à Paris dans les années 1860, tout comme d’autres auteurs de théâtre et créateurs de personnages similaires comme Ludovic Halévy et Victorien Sardou14. Fruit de leur imagination (même si Muger avait été le premier), ces personnages correspondaient peut-être à des caricatures de personnages réels15. 12

Cf. MURGER, Henry, Le serment d’Horace, Michel Lévy Frères, 1861. A ce propos, voir JEUNE, Simon, De F. T. Graindorge à A. O. Barnabooth: les types des Américains dans le Roman et le Théâtre français (1861-1917), Didier, 1963, p. 162. 14 Cf. HALÉVY, Daniel «Introduction», in Ludovic Halévy, Carnets (1862-1869), Calmann Lévy, 1935, p. 9-10; ainsi que les notes de L. Halévy, in Carnets, passim. 15 Peau mate, gants « sang de bœuf», «cravates étoilées de diamants», parlant un Français très approximatif, le rastaquouère réapparaît encore en 1894 avec le même costume et les mêmes caractéristiques, mais alors identifié à une autre nationalité ibéro-américaine (certainement hispanophone, mais non définie d’ailleurs), dans Un fil à la patte, de Georges Feydeau. Il semblerait que le personnage soit toujours très populaire, étant donné la réception chaleureuse qu’il reçoit du public du Théâtre du Palais Royal, lors des présentations d’Un fil à la patte, depuis le début de la saison 1990, comme j’ai eu l’occasion de constater. 13

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Dans l’imaginaire français de l’époque, le Brésil devait être un empire tropical, exotique et riche, dont les élites (comme les élites de n’importe quel autre pays «occidental» à l’époque d’ailleurs) avaient choisi Paris comme principale destination de voyage à l’étranger. Si un métis, visiblement «pas très intelligent», pouvait s’enrichir comme le «Brésilien» de La vie parisienne, quel avenir attendrait un européen blanc et cultivé, disposé à s’installer sous les tropiques? Mais pour revenir à notre rastaquouère, il apparaît souvent dans les intrigues des pièces de vaudeville et d’opérette comme un admirateur amoureux d’une comédienne à qui il offre des riches cadeaux, sans nécessairement réaliser ce à quoi il aspire. Mais, comme l’a remarqué Duvignaud à propos de la société-théâtre du temps d’Offenbach, l’air du temps confondait le théâtre avec la vie sociale elle-même. En 1864, Joseph Arnaud, qui dirigeait depuis 1857 le Théâtre Alcazar Lyrique de Rio, amène de Paris un groupe de «belles comédiennes», qui allaient faire fureur à la cour impériale. Le nom le plus célèbre est certainement celui d’Aimée, pour qui des intellectuels réputés, comme Machado de Assis, ont écrit de belles pages. La légende veut qu’elle soit rentrée en France en 1868, enrichie par les précieux cadeaux qui lui ont été offerts par d’innombrables admirateurs, amoureux de ses performances sur scène. On raconte que lorsque son bateau quitta le port de Rio, quelques «honnêtes» familles auraient célébré l’événement avec des feux d’artifice, puisque le «petit démon blond» (comme l’avait appelé Machado), s’en était allé16 ! Le fait est que le personnage de la belle comédienne française est resté dans l’imaginaire brésilien, associé à la joie de vivre et à la «légèreté» des mœurs. Un portrait qui ne s’éloigne pas trop, d’ailleurs, de celui laissé par les opérettes françaises elles-mêmes.

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À propos de la comédienne Aimée, voir CACCIAGLIA, op. cit., p. 84 et HESSEL; RAEDERS, op. cit., p. 151 et s.

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Pour ce qui est encore de ce que j’ai défini comme la deuxième période de l’interface «théâtre» France-Brésil, celle de la primauté absolue de l’influence française sur le théâtre et la culture brésiliens, un exemple frappant de cette influence est celui du drame en cinq actes et en vers, écrit en Français en 1876-1877 par l’intellectuel brésilien Joaquim Nabuco, publié à Paris en 1910. L’action se passe à Paris, à Versailles et à Strasbourg, entre 1870 et 1872. Le drame est intitulé L’option, et son intrigue se développe autour des rapports familiaux et amoureux entre des personnages d’origine allemande et française et, ce qui justifie le titre, des personnages plus particulièrement d’origine alsacienne17. Outre la nationalité de l’auteur, il s’agit d’un ouvrage «typiquement» français autant par la forme que par la thématique et l’approche. Nabuco (un homme des élites du Pernambouc, ambassadeur et homme politique), comme d’autres intellectuels brésiliens depuis la Révolution Française, partageait aussi certaines valeurs philosophiques des Lumières. Bien que monarchiste et conservateur, il a été, par exemple, l’un des principaux leaders anti-esclavagistes du Brésil. La troisième période Les critiques considèrent que le théâtre brésilien a connu deux moments fondateurs. Le premier est représenté par Martins Pena et ses comédies de mœurs lors de la première vague nationaliste après l’Indépendance en 1822. Le second est représenté par le montage, en 1943, de la pièce Vestido de Noiva (Robe de Mariée) de Nelson Rodrigues, «l’auteur fondateur du théâtre brésilien moderne», d’après le critique brésilien Sábato Magaldi. Dans un texte introductif à la version française de L’Ange noir, autre pièce de Nelson Rodrigues, Magaldi rappelle l’«influence très bénéfique» 17 18

NABUCO, Joaquim. L’option, Hachette, 1910. MAGALDI, Sábato. La race sous une perspective mythique. Trad. M. Fiani, note introductive à Nelson Rodrigues, L’Ange noir. Trad. Jacques Thiériot, Ed. des quatre-vents, 1988, p. 5-9. Je remercie Jacques Thiériot pour les précisions qu’il m’a apportées concemant ses traductions de pièces brésiliennes.

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de Louis Jouvet sur le théâtre brésilien18. Jouvet avait, en fait, «choisi le Brésil comme siège de son aventure théâtrale, pendant deux anées de la Seconde Guerre mondiale». Et son séjour a précédé de peu la rénovation du répertoire, des techniques de mise en scène et du jeu d’acteur au Brésil19. Le traducteur de L’Ange noir, le français Jacques Thiériot (aussi traducteur de nombreux autres ouvrages brésiliens), vivant au Brésil entre 1968 à 1978, est également responsable de l’adaptation théâtrale de Macunaíma, de Mário de Andrade, utilisée pour le célèbre montage d’Antunes Filho. Ce montage a fait le tour du monde, passant naturellement par Paris, où la pièce a été jouée pour l’inauguration du théâtre de la Maison des Cultures du Monde. En 1987, suite au même succès de Macunaíma, une autre mise en scène d’Antunes Filho, A hora e a vez de Augusto Matraga (L’Heure de Augusto Matraga), de João Guimarães Rosa, a fait une tournée en France. Elle a été présentée en langue brésilienne au Théâtre des Amandiers-Nanterre aux mois de mars et avril. Pour continuer à évoquer la présence du théâtre brésilien en France il faut faire appel aux informations réunies par Osvaldo Obregon pour sa thèse La diffusion du théâtre latino-américain en France depuis 1958. En effet, la partie de son travail consacrée au Brésil n’est pas négligeable, même si, hormis les participations aux festivals du Théâtre des Nations et de Nancy, la présence théâtrale brésilienne en France reste très limitée. Il s’agit le plus souvent de quelques spectacles à succès, de quelques publications en version française de pièces brésiliennes, et de la diffusion, au Nouveau Répertoire Dramatique de la Radio France Culture, de pièces de Plínio Marcos, Carlos Queiroz Telles et Oduvaldo Vianna Filho, traduites également par Jacques Thiériot20. 19

Dans une biographie de Jouvet, celle de Jean-Marie Loubier, on peut lire une déclaration du maire de Rio invitant Jouvet à rester plus longtemps : «... vous servirez la France ici... plus utiliement qu’à Paris», in LOUBIER, J.-M. Louis Jouvet: biographie, Ramsay, 1986, p. 264. 20 OBREGON, Osvaldo. La diffusion du théâtre latino-américain en France depuis 1958, thèse d’État, Paris III, Sorbonne Nouvelle, 1987, voir surtout les pages 73, 75, 77, 90, 91, 94, 99, 177, 180, 184, 199, 200, 212, 263, 325, 329, 533, 587, 630, 631. Je remercie également Osvaldo Obregon pour ses suggestions de recherche.

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Parmi les pièces brésiliennes jouées en France, on peut citer : Le Jeu de la Miséricordieuse ou Le Testament du chien, d’Ariano Suassuna, adaptée par Michel Simon-Brésil, jouée en 1969, 1972, 1979 et 1982 ; Liberté, Liberté de Flavio Rangel et Millor Fernandes, adaptée par Guy Suares, jouée en 1968 ; le monologue interprété en France par Annie Girardot en 1975 Madame Marguerite, de Roberto Athayde, adaptée par Jean-Loup Dabadie, mise en scène de Jorge Lavelli ; ainsi qu’une autre adaptation de le même pièce, celle-ci de Jacques Thiériot, sous le titre Chère Maîtresse, pour la production de la Comédie de Lorraine, en 1981. Aux festivals de Nancy, une partie importante de la production de l’avantgarde brésilienne de l’époque a été montrée. Mais avant d’y arriver, il faut rappeler que Cacilda Becker a remporté un grand succès au Théâtre des Nations, en 1960, avec Poil de Carotte de Jules Renard ; et que Gimba, de Gianfrancesco Guarnieri, mise en scène de Flavio Rangel, a été considéré par André Camp, l’éditeur de la revue Avant Scène, comme «l’ópera de quat’sous brésilien»21. Mais c’est à Nancy que le meilleur du théâtre brésilien est présenté, pendant la dictature militaire. On pourrait citer, notamment, les spectacles de la troupe Oficina et Arena, les pièces de César Vieira, ainsi que celles de Queiroz Telles (dont Muro de arrimo, présentée en français sous le titre José), ou encore Tempo de Espera, mise en scène de Aldo Leite, d’une troupe du Maranhão et de São Paulo, ainsi que les expériences de João Augusto, développés à Bahia, à partir de la littérature de colportage (de cordel)22. L’événement brésilien le plus important reste, néanmoins, Morte e Vida Severina, texte du poète João Cabral de Melo Neto, musique de Chico Buarque de Holanda. Le montage du TUCA (Théâtre Universitaire de l’Université Catholique de São Paulo) fait un «tabac» à Nancy en 1966, tout comme Macunaíma, dans le même festival en 1979. Odette Aslan et Marylse Meyer ont consacré un numéro de la publication Les voies de la création contemporaine à Morte e Vida Severina. Il faut dire 21 22

Apud OBREGON, op.cit., p. 99. Cf. OBREGON, op.cit. p.75.

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que dans cette publication «ne figurent que les mises en scène qui ont réellement apporté quelque chose au théâtre contemporain dans les dernières décades en France»23. Et le Français Pierre Kemeneur n’a pas manqué de souligner à l’occasion, qu’il rendait hommage à «Léon Chancerel, fondateur de la Compagnie Théophiliens de la Sorbonne [...] parti en tournée au Brésil, où il [a] produit un impact inoubliable chez un des animateurs du TUCA, qui n’était alors qu’un enfant»24. Hormis les brèves références à Louis Jouvet, à Jacques Thiériot et à Léon Chancerel, je me suis limité aux échanges plutôt dans le sens BrésilFrance, en ce qui concerne la troisième période de notre interface «théâtre» France-Brésil. En sens inverse, on pourrait rappeler, à partir d’un texte de Fernando Peixoto, un des hommes du théâtre brésilien publié en France25, que la troupe Oficina, à ses débuts, avait fait du «théâtre à domicile» avec entre autres des textes de Jean Tardieu26. Ou encore que Jean Giraudoux a influencé le dramaturge brésilien Guilherme Figueiredo27. Néanmoins, je voudrais aborder un fait totalement nouveau dans ce processus d’échanges théâtraux France-Brésil. Il s’agit de la présence de l’homme de théâtre et théoricien brésilien Augusto Boal en France dans les années 1970. Obregon signale ainsi son importance : Le cas Boal présente un grand intérêt et cela pour plusieurs raisons. La plus importante est qu’il est l’auteur d’un des premiers apports latino-américains au niveau de la théorie théâtrale. Durant des siècles, l’Amérique Latine a consommé, sur le plan de l’art et de la littérature, des théories élaborées en Europe. Le «théâtre de l’opprimé» représente un cas rare 23

Cf. OBREGON, op.cit. p.184. Apud Obregon, op.cit., p. 180. 25 Cf. PEIXOTO, Fernando, Teatro Oficina de São Paulo (Brésil), in Théâtre & Université, 14, Numéro Spécial Programme VIe Festival Mondial de Nancy, 19-28.04.1968, p. 21-36 ; Des signes de vie au milieu des flammes s. nom trad., in Travail Théâtral, 12, 1973, p. 134-143 ; L’histoire au secours du théâtre brésilien, trad. Jacques Thiériot, in Travail Théâtral, 32/33, 1979, p. 48-57. 26 Cf. PEIXOTO, op.cit., 1968. 27 Cf. OBRY, op.cit., 1962. 24

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de corpus théorique qui traverse l’Atlantique dans le sens contraire28.

Boal a créé en 1978, à Paris, le CEDITADE, Centre d’Etudes et de Diffusion des Techniques Actives d’Expression. Ce centre a fait plusieurs tournées mondiales, y compris au Brésil, en 198029. Actuellement, plusieurs de ses membres fondateurs sont partis et mènent leurs propres expériences. Richard Monod, par exemple, a travaillé dans le domaine du théâtre et de l’éducation en Europe, en Afrique du Nord et au Canada, tout en gardant le contact avec des chercheurs brésiliens qui travaillaient sur des thèmes similaires. Bernard Grosjean et Laurette Cordrie organisent des stages en France et en Belgique pour la formation des gens de théâtre et des éducateurs. Si la plupart des exemples d’échanges théâtraux France-Brésil que je viens de donner, concernent le flux de ces échanges dans le sens Brésil-France, il ne faut pas oublier que le théâtre français continué à être diffusé au Brésil, comme l’attestent par exemple les tournées de la Comédie Française, comme celle du spectacle Elvire / Jouvet, avec en vedette l’actrice portugaise Maria de Medeiros. La revue Avant Scène a consacré un de ses numéros à la publication du texte Le pays des éléphants en Portugais (version de Ferreira Gullar) et en version française originale de Louis-Charles Sirjacq. Cette pièce, après avoir été produite à São Paulo en mai 1989, a été montée à Avignon pendant le festival de la même année. Elle raconte la tentative d’indépendance du Brésil, dont le leader était le héros Tiradentes. L’acteur Antonio Fagundes, vedette du spectacle et responsable côté brésilien de cette co-production franco-brésilienne30, a également monté au Brésil Les fragments d’un discours amoureux de Roland Barthes, avec grand succès. Le fameux titre de Barthes ne pourrait-il pas résumer l’interface théâtrale France-Brésil? 28

OBREGON, op.cit., p.329. Voir à ce propos OBREGON, op.cit., p. 325. 30 QUIROT, Odile, Des Brésiliens fous de théâtre, in Le Monde, 30.04. - 02.05.1989, p. 12 et Avant Scène, 852/853, juin/juillet 1989. 29

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Théâtralité et spectacularité: les pratiques homosexuelles masculines dans le Candomblé*

L’ existence courante de pratiques homosexuelles dans les cultes afrobrésiliens, en particulier ceux de Rio de Janeiro et du nord-est du pays, fait partie de l’imaginaire populaire au Brésil. Cet imaginaire associe, par ailleurs, ces cultes à l’image d’hommes efféminés et à un type de comportement social exagéré et théâtral. Je propose ici d’aborder les pratiques homosexuelles masculines dans le Candomblé, culte afrobrésilien de Salvador de Bahia. Quelques définitions préalables La spectacularisation en cours dans le monde contemporain est un phénomène évident1. La politique, en particulier2, s’approprie de plus en plus de techniques théâtrales. Aux États-Unis, le Président ajoute au maquillage et à d’autres recours de comédien, des thèmes et des propositions de discours cinématographiques. Le Pape, la plus connue des vedettes médiatiques internationales, orchestre savamment sa présence scénique et son expression vocale. Rappelons qu’il a joué dans une troupe de théâtre en Pologne pendant la dernière guerre. En Inde, bon nombre d’hommes politiques commencent leur carrière après être passés par le cinéma. En décembre 1987, la mort de l’un d’entre eux, particulièrement aimé du public, a provoqué des suicides parmi ses fans. En France, Coluche et Yves Montand ont été considérés comme d’éventuels candidats à la présidence de la République. * Publié à l’origine dans Sociétés, Paris, Masson, v.17, p.23 – 25, 1988. 1 Voir : MORIN, Edgar L’esprit du temps, Grasset Frasquelle. Paris. In : MAFFESOLI, Michel. La conquête du présent. Paris: PUF, 1979, p. 153-169; LE BRETON, David. Corps et sociétés. Méridiens, Paris : 1985, p. 143-144.. 2 BALANDIER, George. Les rapports entre pouvoir politique et théâtre ont bien été démontrés. In:. LE POUVOIR sur scènes, Balland, Paris, 1980.

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D’autre part, cette tendance comprend une prise de conscience croissante du double jeu, voire même du multiple jeu de la théâtralité quotidienne. Des expressions telles que – arrête ton cirque! –, – assez de cinéma! –, ou – il fait du théâtre tout le temps–, sont bien révélatrices à cet égard. En fait, ce phénomène n’est pas nouveau; l’évolution du mot – hypocrite – est significative. Néanmoins, on assiste actuellement à une prolifération de notions théâtrales dans des discours scientifiques3 et des conversations mondaines. Malgré les insuffisances évidentes de la métaphore théâtrale, déjà pointées par Erwing Goffman 4, cette approche est souvent utilisée par les sociologues du quotidien. En ce sens je propose les notions de théâtralité et spectacularité, en les définissant en tant que formes, selon la suggestion méthodologique de Michel Maffesoli5. La théâtralité correspondrait au moment des répétitions théâtrales, et la spectacularité au moment même du spectacle. Dans la première, les acteurs sociaux joueraient simultanément les rôles d’acteur et de spectateur. Dans la seconde, ils les joueraient exclusivement. Ces rôles, dans la théâtralité, seraient moins apparents que les personnages (parents, enfants, amis, amants, époux, collègues, partenaires, etc.); tandis que dans la spectacularité ils seraient plus apparents que les personnages. Dans le cas de la théâtralité, les personnages seraient davantage caractérisés en tant que personnes. Dans l’hypothèse de la spectacularité, ils seraient plutôt stylisés en tant que types. 3

4 5

Voir LE BRETON; GOFFMAN, Erwing. Les travaux de Balandier, Maffesoli; La mise en scène de la vie quotidienne ; DUVIGNAUD, Jean. La présentation de soi, Minuit, Paris, 1973 ; Spectacle et société, Denoël, Paris, 1973 ; SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. L’état spectacle, Flammarion, Paris, 1977; MOLES, Abraham. Labyrinthes du vécu, l’espace : matière d’actions, Méridiens, Paris, 1982; MATTA, Roberto da., Carnavals, bandits et héros, Seuil, Paris, 1983 ; HOCQUENGHEM, Guy ; SCHERER, René, L’âme atomique, Albin Michel, Paris, 1986 ; NAMER, Gérard. Mémoire et sociét., Méridiens Klincksieck, Paris, 1987. GOFFMAN, op. cit., p. 9. MAFFESOLI, Michel. La connaissance ordinaire.. Méridiens, Paris, 1985. p. 19-24.

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Dans la théâtralité, les techniques corporelles seraient plus quotidiennes, plus économiques, plus utilitaires et moins expressives 6. Dans la spectacularité, elles seraient plus extra-quotidiennes, moins économiques, moins utilitaires et plus expressives. L’apprentissage et l’entraînement corporels seraient pour la théâtralité plus informels, spontanés et moins choisis; tandis que ce serait plutôt l’inverse pour la spectacularité. La conscience du «jeu théâtral» serait aléatoire et moins apparente dans la première, et plus constante et apparente dans la seconde. Au niveau de la production et de la consommation quotidiennes, la théâtralité se distinguerait de la spectacularité, en ce que la production serait moins réduite, et la consommation de moindre importance. Finalement, la théâtralité aurait une ampleur mineure, puisqu’il s’agirait de phénomènes sociaux ordinaires, de tous les jours. Par contre, la spectacularité aurait une ampleur majeure puisqu’il s’agirait de phénomènes sociaux extra-ordinaires, ponctuels. Un cas d’application: le Candomblé L’on peut prendre le Candomblé comme exemple, cette religion populaire de Bahia et matrice des cultes afro-brésiliens. Ses fêtes publiques ont été déjà considérées comme des «formes de théâtralisation spontanée»7 et même du «théâtre populaire»8. Ces rituels relèvent plutôt du domaine de la spectacularité, en accord avec les arguments que je viens de présenter. D’autre part, dans la vie quotidienne des communautés de Candomblé, la théâtralité est toujours présente, soit par un double système de parenté (celui de la famille de sang et celui de la «famille-de-saint»9), soit par 6

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9

BARBA, d’Eugenio ; SARAVESE, Nicola. Les notions de techniques corporelles quotidiennes et extra-quotidiennes et la référence à l’expressivité sont empruntées à l’ouvrage, In : Anatomie de l’Acteur : un dictionnaire d’anthropologie théâtrale. Bouffonneries Contrastes : Cazilhac, 1985. DUVIGNAUD, Jean., Les ombres collectives : Sociologie du théâtre. Paris : PUF, 1973. p. 13. SIMON, Michel. Théâtres nationaux : Le Brésil in Histoire des spectacles, sous la direction de Guy Dumur. Paris : Pléiade, [19-?]. p. 1303-1304. Dans le Candomblé on peut avoir des relations « familiales » avec les divinités (les « orisha »), ou avec d’autres initiés du culte ; voir à cet égard : LIMA, Vivaldo da Costa. A Família-de-Santo nos Candomblés Jeje-Nagôs da Bahia: um estudo de relações intragrupais. Salvador, Bahia : UFBA, 1977.

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l’existence de rituels secrets, soit par l’appartenance des fidèles à diverses divinités10. Pour préciser, nous prendons un exemple, les pratiques homosexuelles masculines dans le Candomblé. Dans les années 50, un fait isolé, néanmoins important, a eu lieu: un très respecté père-de-saint (ministre du culte) d’un candomblé traditionnel de Bahia, devint une vedette nationale. La raison était qu’il défilait en travesti au carnaval de Rio de Janeiro. Il ajoutait à la spectacularité du Candomblé celle, paradigmatique, du Carnaval. Selon des scientifiques sociaux qui se veulent rigoureux, le rapport travesti/ pratiques homosexuelles n’est pas évident, surtout concernant le carnaval brésilien. Néanmoins, dans l’imaginaire populaire au Brésil, ce rapport est plus qu’évident, lorsque le travesti devient connu en tant que tel. Un autre phénomène médiatique plus récent concerne un personnage d’émissions humoristiques de la télévision brésilienne, qui connut un grand succès pendant des années: «Painho» (petit père), un père-de-saint bahianais qui déclarait ouvertement ses préférences sexuelles pour les beaux garçons. La presse a essayé d’identifier la source d’inspiration du comédien Chico Anísio, et elle en a trouvé plusieurs à Bahia, parmi les pères-de-saint réels. Painho correspond au stéréotype de l’homosexuel efféminé, affecté et exagéré, la typique – «bicha» brésilienne, qui pourrait être identifiée au stéréotype de la «folle» française. En mélant réalité et spectacle télévisuel, ces deux phénomènes nous ramènent à la théâtralité. En effet, le jeu de rôles si divers, comme celui de la «folle» méprisée, du père-de-saint respecté et de la vedette «médiatisée», par un même acteur, est un exemple paradigmatique de théâtralité. Des références à l’homosexualité masculine dans le Candomblé figurent dans de nombreux ouvrages de sciences sociales publiés depuis 1940. 10

Pour des descriptions du Candomblé, voir les travaux de BASTIDE, Roger ; VERGER, Pierre, en particulier le livre de Bastide, Le Candomblé de Bahia, rite nagô, Mouton et Cie La Haye ; et celui de Verger, Orisha : les dieux ioruba en Afrique et au Nouveau Monde. Métailié : Paris, 1982.

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Les premières sont celles de Ruth Landes, qui affirmait que la plupart des hommes liés au Candomblé étaient «des homosexuels passifs connus et des voyous» 11. En 1942, Artur Ramos l’a réfutée parce que ses informations ne concernaient «qu’une demi-douzaine de personnes, qu’elle affirmait être des homosexuels»12. Edson Carneiro, en 1954, écrivait que la majorité des hommes du Candomblé montraient «des tendances univoques d’efféminement»13. Roger Bastide indiquait en 1961 que les cas de «pédérastie passive» y étaient «très communs», mais «pathologiques»14.En se référant au Shango (variante afro-brésilienne de Recife), René Ribeiro affirmait en 1969 que «l’homosexualité masculine» n’y était pas rare15. En 1972, Seth et Ruth Leacock, en étudiant le Batuque (la variante de Belém), concluaient que selon une croyance répandue, reposant d’ailleurs sur des faits réels, les hommes du Batuque étaient «efféminés ou, dans la plupart des cas, des homosexuels actifs»16. L’étude la plus complète est présentée en 1974 par Peter Fry17. Il y affirme que certains hommes, parmi ceux qui aiment des pratiques homosexuelles, sont «attirés par ces cultes car ils sont populairement définis comme des niches d’homosexuallité». Il argumente que d’une part, l’homosexualité, ainsi que les cultes de possession, sont définis comme des comportements

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LANDES, Ruth, The city of Women. Macmillan : New York, 1947. L’édition brésilienne est de 1940 (p. 201/202, cité par FRY (17). 12 RAMOS, Artur, A aculturação Negra no Brasil. Biblioteca Pedagógica Brasileira : Rio de Janeiro, 1942. p.191. Voir Fry (17). 13 CARNEIRO, Edson, Candomblés da Bahia. 2. ed. rev. Rio de Janeiro : Andes, 1954. p. 154-155. Voir Fry (17). 14 BASTIDE, op. cit. L’édition brésilienne date de 1961 (p. 309, cité par FRY (17). 15 RIBEIRO, René, Personality ant the psychosexual adjustement of Afro-Brazilian cult members. Journal de la Société des Américanistes, Paris, p. 109-120, tome LVII, 1969.. Voir Fry (17). 16 SETH ; LEACOCK, Ruth, Spirits of the Deep : a Study of an Afro-Brazilian Cult. [S.l.] : Doubleday Natural History Press, 1972. p.104. Voyr Fry (17). 17 PRÉSENTÉE originellement en Anglais en 1974, cette étude paraît en Portugais In : FRY, Peter, (Para Inglês). Ver: Identidade e política na cultura brasileira. Petrópolis : Zahar, 1982. p.54-86. (Les références en Portugais des notes 11 à 16 sont des citations de ce travail).

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déviants par rapport aux valeurs brésiliennes dominantes; et que d’autre part, en accord avec Mary Douglas et Victor Turner, être considéré comme «sale et dangereux» ou «déviant», est souvent avantageux pour qui exerce une profession liée aux pouvoirs magiques. Dans un autre travail18, Fry discute les rapports entre pratiques homosexuelles, sensibilité artistique et Candomblé. En employant le mot théâtralité pour désigner surtout le goût du spectaculaire, il présente les commentaires d’un père-de-saint, qui affirme avoir besoin d’un goût théâtral pour bien jouer son rôle dans le Candomblé, c’est-à-dire: pour bien organiser les moments de spectacularité. A partir de l’enquête la plus exhaustive réalisée sur les candomblés de Bahia19, on calcule que 80% des pères-de-saint interviewés ont un comportement «ouvertement homosexuel». Le responsable de cette recherche, Vivaldo da Costa Lima, explique que «la tradition orale confirme cette prédominance d’homosexualité parmi les pères-de-saint. Même lorsque cette condition n’est pas clairement identifiable, puisque certains sont virils, modérés, énergiques et ont beaucoup d’enfants avec plusieurs femmes»20. En dépit de l’absence de définitions précises, ou d’un vocabulaire commun, les données de tous ces auteurs nous confirment l’intense théâtralité entourant les pratiques homosexuelles masculines dans le Candomblé. D’une part, le personnage de l’homme efféminé, associé à ces pratiques, est la présence la plus importante. D’autre part, le personnage du pèrede-saint «viril et père d’enfants», malgré sa présence moins importante, nous renvoie encore davantage à la théâtralité. La tradition orale affirme que ce personnage, sans avoir un comportement «ouvertement homosexuel», aime les pratiques homosexuelles, autant que le personnage de père-de-saint efféminé. Finalement, la sensibilité artistique et le goût du spectaculaire, associés dans l’imaginaire aux pratiques homosexuelles en général, nous renvoient autant à la théâtralité qu’à la spectacularité. 18

FRY, Peter ; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo : Brasiliense, 1983. (Coleção Primeiros Passos). 19 Enquête menée par LIMA, Costa (9). 20 LIMA, Costa, id., p. 171.

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La mise en scène du corps Le Candomblé est une riche source d’entraînement corporel. Les rituels d’initiation comprennent, par exemple, la cérémonie du «pana», où les nouveaux initiés réapprennent les techniques du corps (au sens de Marcel Mauss) de la vie quotidienne. En mimant les gestes pour faire sa toilette, s’habiller, bricoler, jardiner, faire l’amour, etc., la personne joue, comme dans un jeu d’enfants des actions nécessaires et habituelles. Cette cérémonie a lieu dans une ambiance familiale et enfantine. Après la sacralisation du corps, il est réinséré dans la vie mondaine en faisant appel à une technique théâtrale de faire semblant. D’autre part, la personne initiée reçoit un nouveau nom au moment d’une cérémonie publique, qui relève du domaine de la spectacularité, et où elle entre en transe21. Temporairement, l’initié devient le propre dieu. Ces divinités, appelés «orisha», ont des caractéristiques humaines. Et par ailleurs, certains sont des hommes, des femmes, ou encore, des «androgynes», alternativement homme et femme. Si dans le domaine divin, le jeu des rôles sexuels comprend cette hypothèse, dans le domaine humain, la théâtralité des rôles sexuels est également admise. En contrariant la prévision de Bastide, qui indiquait en 1961 que le Candomblé devrait bientôt subir une forte décadence, en raison du processus d’industrialisation qui débutait alors à Bahia, le nombre de ses lieux de culte est passé de 80 à plus de 1500 en 25 ans22. Roberto Mota, en se référant à une variante du Candomblé23, affirme que ces religions sont bonnes à manger, à organiser et à penser. En effet, le partage d’animaux sacrifiés, les forts liens communautaires établis autour de

21

Voir LEIRIS, Michel. La possession et ses aspects théâtraux chez les Éthiopiens de Gondar. Paris : [S.n], 1958. 22 SODRÉ, Muniz. Culture Noire et Socialité. Societés, n.2, v. 2, n. 7, p.5 , fév. 1986. 23 MOTA, Roberto. Comida, família, dança e transe (sugestões para o estudo do Xangô). Revista de Antropologia, Universidade de São Paulo, supplément au v. 25, 1982.

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l’autorité des pères et mères-de-saint (voire même de leur autoritarisme), et la vision écologique du monde de ces religions, le confirment. Par ailleurs, l’inexistence des notions de culpabilité permanente et de péché leur ouvrent des possibilités vers ce que l’on pourrait identifier comme permissivité. Finalement, et l’on peut y voir une raison plus générale de leur développement au Brésil, ces religions offrent une préparation et un entretien adéquats aux besoins de la population d’un pays qui est la huitième économie occidentale et le deuxième débiteur le plus important du monde (le premier étant les États-Unis). Les ORISHA, leurs cultes et leurs variantes, satisfont à la perfection les conditions requises par la théâtralité, la spectacularité et la post-modernité.

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DA CENA BAIANA

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Uma encruzilhada chamada Bahia: o que está em jogo, qual é o problema e algumas práticas relativas ao patrimônio cultural imaterial na Bahia, Brasil* Apresentando inicialmente uma abordagem compreensiva e relativista da temática do patrimônio cultural imaterial, esta comunicação comenta problemáticas associadas a esta proposição, para, em seguida, descrever e refletir sobre duas práticas contemporâneas, de caráter institucional, relativas ao trato de aspectos do patrimônio cultural imaterial, na Bahia, Brasil. Trata-se aqui de dois projetos desenvolvidos pelo governo do estado da Bahia, regularmente – um, há 11 anos, a Caminhada Axé, desfile anual de folguedos de variadas origens urbanas e rurais, em Salvador1, outro, há seis anos, Bahia Singular e Plural, uma série de vídeos, programas de televisão e de discos registrando e comentando folguedos tradicionais de todas as regiões do estado. Em ambos os casos, os folguedos aí referidos são formas de espetáculo tradicionais. Finalmente, também abordo o caso do zambiapunga, cuja revitalização ao longo dos últimos 20 anos foi registrada e divulgada pelos dois projetos em questão, e que será detalhado, à guisa de exemplo, para a conclusão da presente comunicação. O Jogo Esta é uma contribuição produzida no contexto de atuações simultâneas na gestão pública da cultura, na docência, na pesquisa, na criação artística * Comunicação para o Seminário le patrimoine culturel immatériel: les enjeux, les problématiques et les pratiques, Universidade de Verão Al Moutanid Ibn Abbad, XXV. Moussen Festival Cultural Inter nacional, Assilah, Marrocos, 7 a 9 de agosto de 2003, publicada em francês em Internationale de l’imaginaire, nouvelle série, n. 17, Paris, Babel/ MCM, 2004, p. 175-187 e em português em Revista da Bahia, n. 38, 2004, p. 16-23. 1 Salvador, com quase três milhões de habitantes em sua região metropolitana, é capital do estado da Bahia, uma das 23 regiões político-administrativas do Brasil, com população de quase dez milhões de pessoas.

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e na etnocenologia (BIÃO, 2000A; 2000B; 1998; 1996; 1990). Um contexto de encontro entre tantas vertentes de atuação que corresponde ao desafio de seguir-se um caminho, passando-se pela encruzilhada, sem ignorá-la e também sem ignorar as outras opções de caminhos, percorrendo-os todos, cada um em seu tempo, mas com tal intensidade, que chegam a parecer, eventualmente, simultâneos, ainda que de modo imaterial. Reflexão de gestor público, de pesquisador, professor e artista, este trabalho insere-se na produção cultural identificada com uma possível perspectiva para a etnocenologia, como encruzilhada de conhecimentos, e com a Bahia, e sobretudo Salvador, enquanto encruzilhada de culturas. No imaginário afro-baiano local, encruzilhada é local de Exu, o orixá mensageiro do panteon gêge-nagô a quem se deve pedir permissão antes de iniciar-se uma obrigação ritual, constantemente associada à festa, à comida, à música, à dança, à representação cênica do transcendental e à convivialidade. Como é este o caso, Salve Exu, Laroiê! A ideia de patrimônio é provavelmente mais antiga no mundo latino que a ideia de pátria. Na constituição das línguas neolatinas, durante a Idade Média, esta ideia expandiu-se em expressões como “patrimônio da Igreja”, “do povo”, “do santo”. Compreendido de modo mais amplo, transmitido por algum tipo de consórcio ou matrimônio, o patrimônio pode ser físico, biológico, genético, compreendido como material, ou tangível, e também pode ser simbólico, imaginário, imaterial, ou intangível, mas sempre remetendo aos sentidos de posse e herança, sendo ambos os sentidos de patrimônio intrinsecamente relacionados. A ideia de imaterial ou intangível, aplicada ao âmbito da cultura, é recente na história da humanidade, tem alcance quase universal e corresponde ao esforço conceitual desenvolvido pela modernidade para distinguir o patrimônio cultural arquitetônico, monumental, urbanístico, artístico, paisagístico, de outras formas de patrimônio cultural, que compreende as artes contemporâneas e tradicionais, os hábitos, as técnicas de corpo, os folguedos, embora possa haver discussão sobre os limites concretos entre os dois tipos de patrimônio, sobretudo no que concerne, por exemplo, às artes plásticas. 198

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A distinção entre material e imaterial é simultaneamente conceitual, conjuntural e, frequentemente, estrutural, em termos de gestão pública. Por exemplo, no sistema estadual de cultura, na estrutura administrativa pública da Bahia, um órgão cuida do patrimônio material, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural e, outro, do imaterial, a Fundação Cultural do Estado. O sistema se completa com mais dois outros órgãos, um dedicado aos arquivos e bibliotecas, outro ao sistema de rádio difusão. O que está em jogo no uso dessas palavras, conceitos e estruturas de gestão é, por um lado, a intervenção – ou participação organizada teoricamente sustentada, na dinâmica da cultura. Por outro lado, encontra-se também aí em jogo o exercício da reflexão e da produção de conhecimento novo. Nesse contexto, o discurso e a ação representam poder, seja ele autoritário ou libertário, conservador ou revolucionário, tolerante ou não, criando-se infinitas possibilidades de combinações de intenções e resultados. A Problemática Quando se trata da questão conceitual e pragmática do patrimônio cultural imaterial, participam também do jogo – enquanto possibilidades – múltiplas formas de coesão – e de desagregação – social. Em última instância, quando se aborda essa questão que aqui nos ocupa, trata-se mesmo é de qualidade de vida, de coexistência da diversidade, em termos materiais e imateriais. O que está em jogo pode ser o simbólico e o imaginário, mas pode ser também a possibilidade de melhoria das condições humanas de renda e emprego. É o que compreendemos como missão maior da etnocenologia: basear seus estudos e ações em objetivos humanistas amplos, que promovam a coesão social e a melhoria da vida humana, individual e em grupo, associando teoria e prática, ação e reação, pronunciamento verbal e escuta, num horizonte que compreenda as mais variadas formas de viver identidades, conviver e produzir sentidos. O problema maior será sempre o provavelmente universal preconceito etnocêntrico e seus correlatos de gênero, cor, classe, religião e opções de 199

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vida. Mas também será problema a relação para com o mais velho e para com o mais novo, na vivência cotidiana e espetacular da dinâmica da cultura, em termos de aceitação ou rejeição. Dada a complexidade da problemática, que não se poderia simplificar apressadamente, por falta momentânea de espaço e tempo, vale apenas lembrar que, na Europa ocidental, entre as duas grandes guerras, a multiplicação de discursos e ações relativas ao patrimônio cultural esteve associada, por um lado, a movimentos artísticos de vanguarda, por outro, a movimentos políticos autoritários e conservadores (GUILBERT, 2000). No Brasil também a legislação e as primeiras ações concretas de valorização, proteção e promoção do patrimônio cultural aproximaram, na prática, artistas de vanguarda, atuantes desde os anos 20, do autoritarismo político dos anos 30, numa complexa rede de interesses e motivações que gerou resultados, em todos os casos, inesperados. De modo positivo, assinale-se o aparato legal e institucional que, mesmo transformado, persiste e se aprimora até hoje (The intangible heritage..., 2002; Legislação..., 1997; Consolidação..., 1994) bem como as ideias de antropofagia – da arte moderna – e de mestiçagem – do movimento regionalista, que ainda definem a cultura brasileira2. Já a manipulação do patrimônio cultural para a política autoritária, por um lado, e, por outro, seu registro e estudo de caráter preservacionista, temerosos da desaparição anunciada – mas nunca verificada – do patrimônio, em particular o imaterial, asseveraram-se como incompetentes3.

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Antropofagia, ou canibalismo, no sentido de ingestão de outras culturas e metabolização de uma nova; e mestiçagem, como marca positiva do povo e da cultura brasileira, são grandes marcas da arte moderna, cujo representante pode ser Oswald de Andrade, e do movimento regionalista, que pode ser representado por Gilberto Freyre. O registro dos folguedos, danças dramáticas e outras expressões tradicionais, promovido nos anos 30 por inspiração do modernista Mário de Andrade, foi repetido recentemente, verificando-se a permanência de formas e estruturas consideradas como ameaçadas, 60 anos antes, conforme revelam pesquisas divulgadas recentemente (BORGES, 2002, BUYS; EVANGELISTA, 2002).

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Após o desenvolvimentismo americano – de norte a sul – dos anos 50, o vanguardismo artístico no Ocidente dos anos 60 e 70 ecoando no panorama das ditaduras e do crescimento latino-americano, os anos 80 e 90 conheceram a globalização da ideia de patrimônio oral e imaterial, da qual o surgimento da etnocenologia, em Paris, em 1995, é um sintoma. No Brasil, no ano 2000, criou-se o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, após 13 anos de iniciativas mais ou menos bem-sucedidas no âmbito da legislação e da atuação sistemática de agentes públicos e privados. É nesse contexto que se detalham a seguir duas práticas, dois projetos institucionais da gestão pública da cultura na Bahia, a Caminhada Axé e o Bahia Singular e Plural, e que se toma como forma de espetáculo exemplar para a reflexão sobre nossa temática e nossas problemáticas: o zambiapunga. As Práticas O projeto Caminhada Axé foi criado, originalmente, pela Escola de Dança da Diretoria de Música e Artes Cênicas da Fundação Cultural do Estado da Bahia - FUNCEB, em 1992, como evento de celebração da Semana do Folclore. Em 22 de agosto, num curto percurso de cerca de dois quilômetros, no centro urbano de Salvador, do Passeio Público ao Campo Grande, atravessando vias públicas, apresentaram-se grupos artísticos escolares, comunitários, profissionais e tradicionais, culminando com uma feira de artesanato e de culinária. A excelente repercussão jornalística do desfile festivo e espetacular, caracterizado eventualmente como folclórico, levou a principal emissora de televisão do estado a propor à FUNCEB a reedição do evento no mês de dezembro do mesmo ano de 1992. Assim, realizou-se de novo a Caminhada Axé, como Abertura do Verão baiano, em novo percurso, do bairro de Ondina – onde se concentram alguns dos principais hotéis da cidade, ao Farol da Barra, ícone da cidade construído dentro de uma fortaleza colonial, em trajeto de cerca de seis quilômetros, que caracterizaria o famosíssimo carnaval da cidade. 201

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Desde então, a FUNCEB realiza anualmente a Caminhada Axé, entre dezembro e fevereiro, durante o verão, tendo a emissora de televisão de maior audiência no estado como parceira e patrocinadora. A notoriedade nacional da Caminhada Axé rendeu-lhe premiações, reportagens e ensaios (GÓES, 2001). Suas características básicas mantêm-se (espetáculo em forma de cortejo, misturando grupos artísticos de múltiplos tipos – amadores, profissionais, tradicionais, estudantis etc), mas progressivamente a feira de artesanato e culinária desapareceu e institucionalizou-se um palco no final do cortejo, no qual os diversos folguedos se exibem por alguns minutos. O número de participantes e a presença cada vez mais significativa de folguedos e artistas tradicionais no cortejo, que virou sua marca registrada, cresceu significativamente, estabilizando-se o total de participantes em 2.500 e o de grupos em 50, aproximadamente, nos últimos cinco anos. A presença percentual dos grupos tradicionais, grosso modo, cresceu de menos de 10% para mais de 70% do total de grupos participantes. O público também tem crescido, assim a como a repercussão do projeto. As maiores questões que se fazem a partir da Caminhada Axé referemse à mudança de local e época de apresentação dos grupos tradicionais. Tratar-se-ia de uma descaracterização? De quais características? Estabelecidas como? Quando? Por quem? Conhecidas de que modo? A melhor argumentação de resposta baseia-se na forte matriz barroca dos cortejos como formas de espetáculo da Bahia, na implícita busca da alteridade para confirmação da presença festiva da maioria das artes tradicionais e folguedos baianos e na tendência fortemente antropofágica da cultura local. A visibilidade da Caminhada Axé agregou prestígio aos grupos tradicionais, divulgando-os e influenciando a retomada de folguedos quase desaparecidos, bem como o crescimento e o fortalecimento dos existentes. O projeto Bahia Singular e Plural foi criado pelo Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia, em 1997 e, até maio de 2003, produziu 17 vídeos de meia hora cada, além de seis CDs, com registros e 202

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comentários sobre folguedos tradicionais do estado da Bahia. Inspirado na obra do dramaturgo e pesquisador da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, Nelson de Araújo, criador da disciplina universitária Expressões Dramáticas no Folclore Brasileiro e proponente de uma etnoteatrologia (ARAÚJO, 1986; 1998; 1996), o projeto Bahia Singular e Plural, assim como o anterior, mereceu, em nível nacional, premiações, reportagens e ensaios (BIÃO, 1999)4. Este projeto tem levantado uma multiplicidade de questões. Estar-se-ia criando um conjunto referências para as artes tradicionais registradas. Mas isso representaria um perigo? Para que? Para quem? As eventuais mudanças de local e de ocasião de realização do evento, para efeitos de filmagem e registro fonográfico, estariam contribuindo para sua descaracterização? De que aspectos? E com quais consequências? Uma consequência deste projeto amplamente considerada positiva tem sido o aumento do prestígio dos folguedos divulgados pelo projeto, o que tem motivado muitos jovens a se interessarem em participar da manutenção dessas formas de espetáculo tradicionais. A Conclusão A palavra folclore, em língua portuguesa como em outras, possui a ambiguidade de referir-se ao conhecimento popular tradicional e a manifestações superficiais da cultura. Ambos os sentidos aqui nos interessam, embora o uso da palavra no contexto dos dois projetos aqui brevemente descritos seja meramente incidental. O que nos interessa aqui e agora é registrar a contribuição efetiva para a geração de riquezas no Brasil dos festivais folclóricos (DURÁN, 2002), dos carnavais, das micaretas, dos rodeios, dos espetáculos de artes cênicas e cinematográficas e dos folguedos tradicionais, cujo prestígio tem se renovado constantemente, ampliando quantitativa e qualitativamente a população participante e espectadora. 4

O projeto já registrou cerca de 300 manifestações culturais tradicionais em mais de 100 municípios da Bahia.

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Para focalizar uma possível conclusão para a presente – e breve – reflexão, tomemos o exemplo de uma forma tradicional de espetáculo, ou folguedo, o zambiapunga. Trata-se de um grupo de cerca de 30 homens, de 17 a 50 anos, majoritariamente da zona rural, mascarados e fantasiados, que percorre as ruas de uma pequena cidade na véspera do Dia de Finados (2 de novembro) e na festa do padroeiro (em janeiro), tocando tambores, cuícas e enxadas percutidas com vara de metal e soprando búzios. É um folguedo de provável origem africana banto, recorrente em várias localidades da região ao sul da Bahia de Todos-os-Santos. Com variantes de denominação como zabiapunga, zaniapombo e zamiapunga, o folguedo deixara de ocorrer na pequena cidade de Nilo Peçanha durante os anos 60 a 70, sendo reativado em 1982 por iniciativa de uma pessoa da própria região interessada em questões pedagógicas. Tendo participado da Caminha Axé em 1992 – e nos anos subsequentes – e do projeto Bahia Singular e Plural, posteriormente, o folguedo ganhou enorme notoriedade5. De 17 a 25 de maio último, o zambiapunga de Nilo Peçanha participou do II Festival Mawazine Ritmos do Mundo, em Rabat, no Marrocos6. A Caminha Axé e o Bahia Singular e Plural são sem dúvida encruzilhadas pelas quais o zambiapunga tem circulado, em espaços e tempos não tradicionais. É fácil constatar-se o crescimento da autoestima de seus participantes. E através de seu percurso pode se perceber algo da cultura baiana, no que se refere a uma forte vocação comercial, turística e aberta a

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Este grupo participou de eventos de grande prestígio na Bahia e em outros estados brasileiros, tendo influenciado espetáculos amadores e profissionais, particularmente na Bahia, possuindo já um sítio virtual: www.grupozambiapunga.hpg.com.br. Termo de origem banto, zambiapunga significa “deus supremo”. Chérif Khaznadar, da Maison des Cultures du Monde e da organização deste Festival, bem como do colóquio para o qual preparei a presente comunicação, informou-me que, atendendo a sua demanda, Dimitri Ganzelevitch, presidente da Associação Cultural Viva Salvador, sugeriu-lhe para o evento em pauta o Zambiapunga de Nilo Peçanha, enviando-lhe, como documento audiovisual para seu conhecimento, o vídeo Caretas e Zambiapunga, da série Bahia Singular & Plural. Esta informação contribui para confirmar nossa hipótese.

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novas tecnologias de transportes e comunicação. Salvador foi no século XVIII a maior cidade europeia fora da Europa e africana fora da África, encruzilhada entre Norte e Sul, Leste e Oeste do planeta, constituindo-se em entreposto portuário marítimo barroco da cultura mundial. Talvez aí resida a vocação baiana para a promiscuidade entre tradição e contemporaneidade. A melhoria da reflexão teórica e da ação pragmática, da ciência e da arte, da qualidade de vida, das condições de renda e emprego e a redução de terríveis desigualdades sociais podem depender de projetos como os aqui rapidamente comentados, na encruzilhada do mundo chamada Bahia7. Referências ARAÚJO, N. de. Pequenos Mundos : O Recôncavo. Salvador: EGBA, 1986. t.1. ARAÚJO, Nelson de. Pequenos Mundos: Litoral Norte/ Nordeste, O São Francisco, Chapada Diamantina e Serra Geral da Bahia. Salvador: EGBA, 1988. t.2. ARAÚJO, N. de. Pequenos Mundos, Tabuleiros de Valença, O Folclore da Região Cacaueira e do Extremo Sul, A Bahia Pastoril, Extremo Oeste. Salvador: EGBA, 1996. t.3. 7

Vale registrar um novo projeto do qual tenho a honra de participar como proponente, enquanto Diretor Geral da FUNCEB, juntamente com Heloísa Helena Fernandes Gonçalves Costa, Diretora geral do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia – IPAC, assim como a FUNCEB parte integrante da estrutura da Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia – SCT. Trata-se de um projeto de lei, em rápida via de tramitação pela Superintendência de Cultura da SCT, o Conselho Estadual de Cultura, a Governadoria e a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, no final de 2003, intitulado Mestres dos Saberes e Fazeres, que deverá registrar, em livro específico de tombo, diplomas concedidos a mestres de saberes e fazeres ameaçados de sobrevivência (saveiristas e luteristas, por exemplo, entre inúmeros outros), a quem deverá se assegurar um salário mensal – vitalício e intransmissível – para possibilitar o compartilhamento de seu conhecimento com outras pessoas, sendo, já em 2004, diplomados 15 mestres, ampliando-se posteriormente este número.

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BIÃO, A. “Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade”. In: BIÃO, A.; A. PEREIRA, L.; C. CAJAIBA; R. PITOMBO (Orgs.). Temas em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade. São Paulo: Annablume, 2000, p. 15-30. BIÃO, A. “Aspectos Epistemológicos e Metodológicos da Etnocenologia: Por Uma Cenologia Geral”. In: CONGRESSO DA ABRACE, 1., 2000. Anais... Salvador: ABRACE, 2000. p. 364-367. BIÃO, A. “Ouro em Pó na TV: Da Bahia Para o Mundo”. Revista da Bahia, [S.l.], n. 30, p. 100-107, 1999. BIÃO, A.; C. GREINER, (Orgs.). Etnocenologia, Textos Selecionados. São Paulo: Annablume, 1998. BIÃO, A. “Questions posées à la théorie : une approche bahianaise de l’ethnoscénologie”. “Questions d’ethnoscénologie” Internationale de l’imaginaire, Paris, n. 5., p. 145-152, 1996. BIÃO, A. Théâtralité et spectacularité : une aventure tribale contemporaine à Bahia. Thèse (doctorat), d’université. Paris: Sorbonne (Paris 5 René Descartes), 1990. BORGES, R. “Missão folclórica de Mário de Andrade é refeita 60 anos depois”. Jornal Valor Econômico, [S.l.], 04 de jul. 2002. p. 06. BUYS, B. D.; EVANGELISTA, R. “ Cultura popular X Globalização : festas folclóricas resistem à indústria cultural”. Revista Ciência Hoje, São Paulo, n. 189, 2002, p. 26-32. CONSOLIDAÇÃO da Legislação Cultural Brasileira. Brasília: MinC, 1994. DURÁN, C. R. “Dupla riqueza: entre mitos e cifras”.Jornal Valor Económico, São Paulo, 18 ago. 2002, p. 8-9. 206

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GÓES, F. “Bens imateriais em desfile: a Caminhada Axé”. Patrimônio Imaterial - Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 147, p. 63-68, 2001. GUILBERT, L. Danser avec le III Reich Les danseurs modernes sous le nazisme. Bruxelles: Editions Complexe, 2000. THE INTANGIBLE Heritage: the Registry of the Intangible Heritage: Final Dossier of the activities of the Committee and of the Working Group on Intangible Heritage. Brasília: MinC, 2002. LEGISLAÇÃO Cultural Brasileira. Brasília: Ministério da Cultura, 1997. SONS E AS IMAGENS CAMINHADA Axé. Salvador: FUNCEB; TV Bahia, 1999. 1 VHS (12 min.), son., color. FACES and Zambiapunga. Salvador: IRDEB; TVE, 2000. 1 VHS (30 min.), son. color.

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Xisto Bahia*

O ensaio de Affonso Ruy sobre Xisto Bahia, aqui publicado na Revista da Bahia dedicada ao teatro, em 2003, segundo os documentários de que dispomos, apareceu anteriormente em duas outras publicações, em versões muito semelhantes, não integralmente contendo, ambas, o mesmo texto, intertítulos e notas: a primeira, em 1954, por iniciativa da Academia de Letras da Bahia, com o título Boêmios e Seresteiros do passado, Coleção Ensaios – Série Miniaturas, Livraria Progresso Editora; a segunda, em 1968, com o título Xisto Bahia – símbolo do teatro baiano (Uma tentativa biográfica), sem indicação de editora. A versão aqui publicada reproduz o texto da edição de 1954 e reúne as notas desta e da outra edição. Publica-se igualmente aqui numa série de fontes bibliográficas e de sítios virtuais, que poderão ser úteis aos pesquisadores interessados no grande ator e compositor baiano do século XIX, além de uma seleção de títulos de suas modinhas e lundus, indicando-se seus parceiros eventuais, nomes de seus principais personagens, com as respectivas peças e autores, sua única peça publicada e espaços identificados por seu nome. O major Francisco de Paula, veterano das campanhas da Independência e da Cisplatina, desligado do Exército, em que, com denodo, defendeu a integridade da pátria, recebeu como prêmio ao seu destemor e ao seu patriotismo, a administração da fortaleza de S. Antônio de Além do Carmo. Ali se instalou com a família, dividindo o tempo com os serviços do seu cargo e a paz do lar, cuja pobreza era menos dolorosa na companhia de sua mulher, D. Teresa de Jesus Maria do Sacramento Bahia e dos quatro filhos do casal: Soter, Francisco Bento, Horácio e

* Publicado originalmente como BIÃO, Armindo et al, Xisto Bahia, em Revista Bahia, v. 32, n. 37, p. 4-14, 2003.

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Eulália. Soter, em breve desposava o ator Antônio da Silva Araújo e como para preencher o vácuo da filha que deixava o lar, nascia, a 5 de setembro de 1841, Xisto Bahia. Nos anais da vida boêmia da Bahia, tem destacado lugar a Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo. Vem de lá grande número dos nossos melhores cancioneiros, compositores e intérpretes do século passado. São de lá Chico Sepúlveda, Efren, Pe. Guilherme Sales, D. Augusto Baltazar da Silveira e uma corte imensa de grandes seresteiros que enchia de harmonia as noites de luar da cidade adormecida, despertando ou embalando em sonhos de amor, os corações juvenis de nossas avós ou trazendo pesadelos e vigílias a muitos Otelo provincianos. Xisto Bahia nasceu e cresceu em Santo Antônio. Ali se revelou artista teatral, como amador, no teatrinho da Rua de São José e exímio tocador de violão. Aos 17 anos cantava as suas primeiras modinhas – inspiração fluente improvisada uma sequência de harmonias, verdadeiras peças musicais. A Crisálida À falta de recursos, o casal teve que mandar o caçula à escola pública da freguesia de Santo Antônio, a fim de, com a pouca instrução adquirida, encontrar colocação no comércio, a que era destinado, como seus irmãos. O espírito folgazão e a inteligência viva de Xisto, sem procurar contrariar a resolução paterna quanto a seu futuro, ia enveredando inconscientemente por outro caminho, não só pela inspiração com que compunha modinhas, que ele próprio acompanhava, mas ainda pela fascinação pelo teatro, o que o levou a se inscrever como amador do Grupo Teatral Recreio Dramático, de que era presidente José Maria da Silva Paranhos, depois Visconde do Rio Branco, e que, como Nabuco de Araújo, em Olinda, fora amador teatral. Em breve, Xisto Bahia era figura de evidência no teatrinho da Rua de São José de Cima, para o qual escrevia e representava comédias, e quando, em 1858, o Major Francisco de Paula faleceu, o jovem, procurando uma situação estável que pudesse aliviar as privações do lar materno, tentou, debalde, um lugar no comércio. Restava-lhe como recurso à carreira teatral, que o empolgava e da qual seu cunhado, Antônio 210

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Araújo, era um Mestre. Assim, prevalecendo-se de sua voz de barítono, bem timbrada e clara, que muitas vezes a cidade ouvira em serenatas, ingressa como corista, em 1859, na Companhia Lírica Clemente Mugnai, de que eram figuras principais o tenor Giovani Bichi e a soprano Luigia Donatti, então trabalhando no Teatro São João, de onde se retira para a companhia dramática de seu cunhado. Com Araújo – que era pai dos professores Torquato e Antônio Bahia – visita as principais cidades da Província, reaparecendo, em 1861, integrando o elenco da companhia organizada pelo Comendador Constantino do Amaral Tavares, então diretor do Teatro São João1. O amador evoluíra consideravelmente; a plateia ria da jocosidade de suas criações e o aplaudia freneticamente nos entremezes quando cantava chulas e lundus, por si mesmo acompanhados ao violão. A Lição Cearense Em 1864, contratado pelo empresário Couto Rocha, de cujo corpo cênico fazia parte o grande ator português Furtado Coelho, Xisto Bahia deixa a terra natal, demanda do Norte, por onde excursiona durante dez anos. Talento brilhante, insinuante e prazenteiro, as rodas boêmias e a popularidade o absorvem, fazendo-o descuidar-se dos papéis que lhe são distribuídos. A crítica o ataca; a empresa assusta-se porque o jovem comediante entra em cena, muitas vezes, sem ter lido, sequer, o papel! No Ceará, em 1866, a estrela de Xisto empana e ele fracassa. O público esqueceu depressa o insucesso, mas a si próprio o artista não perdoa a vergonha, e, no Maranhão, sob os conselhos do grande crítico que foi Joaquim Serra e 1

A Companhia de Constantino do Amaral Tavares era composta de atores brasileiros e portugueses, dela fazendo parte além da atriz baiana Ana Costa, Maria Velluti (examante de Almeida Garret, de quem tinha um filho), Ludovina, Antônio da Silva e outros. Segundo Sílio Boccarena Júnior (O teatro na Bahia – pág. 174), o jornalzinho literário da época “O Recreio das Senhoras”, que especialmente se ocupava de Teatro e das Belas Artes, em sua edição de ____ [...] abril de 1861, registrou-se que, na representação do drama Probidade, pela primeira vez, viu-se no teatro da Bahia, uma atriz ao piano, acompanhando-se a si própria. Infelizmente não se mencionava o nome daquela atriz.

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direção de Joaquim Augusto, dedica-se ao trabalho, estuda, revelando-se ator consciencioso e brilhante. Sai do Maranhão triunfante; volta ao Ceará vitorioso, resgatando com uma apoteose os apupos passados. Quando, dez anos depois, revê a Bahia, em 1873, é artista de reputação firmada. Ingressa na Companhia de Mágicas de Lopes Cardoso, mais tarde fundador do Diário de Notícias, e de que faziam parte Gabriela e Eduardo De-Vecchi, pais do maestro Geraldo De-Vecchi.2 Com grande êxito, é montada a comédia de Xisto Bahia Duas páginas de um livro, já impressa, desde 1872, no Maranhão, peça de propaganda abolicionista e tendência francamente republicana. Na Corte Estava Xisto, após aquela peregrinação por todo o norte do Brasil, lutando e observando, apto para atuar num meio mais eficiente. Findara-se o noviciado na Bahia, e em 1875, estreia na Corte, no Teatro Ginásio, na Companhia de Vicente Pinto de Oliveira, de cujo elenco destaca-se Clélia de Araújo, baiana, e que exercera em Salvador o magistério público. Abrem-se-lhe os galarins da fama; as qualidades de Xisto Bahia davamlhe margem a não recusar jamais um papel, sempre desempenhando com inteligência e personalidade. Nunca, entretanto, foi excedido na comédia brasileira, fixando por muitos anos, pelo seu trabalho criador, o teatro nacional. Foi maior que Vasques, maior que Colás. O Compositor Ator consagrado, Xisto continuou a compor e interpretar modinhas e lundus, sempre se acompanhando ao violão. As modinhas tinham

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A Companhia Lopes Cardoso fez a sua temporada nos anos de 1873 e 1874, com extraordinário êxito. Montou no Teatro São João várias mágicas (espetáculos então em grande voga), sobressaindo o Mágico e o Milagre de N. Srª de Nazaré.

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excepcional destaque na vida social do segundo império. Não só a modinha. O lundu irreverente ou malicioso era exigido nos teatros; recatadamente apresentado nos salões. No mundo artístico e boêmio, tornaram-se notáveis nesse gênero, Xisto Bahia e Laurindo Rabelo, conhecido como “poeta lagartixa”. Laurindo, escrevendo versos para o compositor João Cunha, formara com este notável dupla, que encontrou como antagonista o ator baiano que se notabilizara como compositor das multidões, eletrizando as elites como o povo, com seus famosos cantares. Era fatal o entrechoque dos dois grandes talentos boêmios; criou-se o partido. O público sentenciava. E enquanto Laurindo escrevia versos maliciosos e satíricos, Xisto fazia-os jocosos e irônicos, ilustrados com vinhetas musicais que chegaram até nós. Foi vencido o poeta carioca, e desse embate surgiu, verdadeiramente corrosivo para o teatro, o uso e abuso dos gestos e frases dúbias de novos lundus e cançonetas que descambaram para a licenciosidade. Entretanto, o lundu teve patronos e criadores de alto coturno e valia. Para Xisto Bahia, escreveu o Visconde de Porto Alegre várias composições cantadas nos serões aristocráticos de Botafogo e, como ele, Melo Morais Filho, grande historiador pátrio, de quem até hoje se ouve com delícia esse A mulata, página que vingou como A cassa branca da serra, que em 1890, Guimarães Passos, compôs e cantou numa memorável noite de boemia. Comentando a obra musical de Xisto Bahia o maestro baiano Guilherme de Melo na sua A música no Brasil, assim se expressa: [...] O que se dava com relação a Laurindo, no Rio, reproduziase na Bahia com Xisto Bahia ator e aprimorado trovador, que arrebatava auditórios, cantando modinhas próprias ou alheias, interpretando e cantando, como artista, que era, engraçadíssimos “lundus”, aos repenicados do violão. 213

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Porém o que mais nos deve causar admiração em Xisto Bahia era a pujança do seu estro musical, sem conhecer uma só nota de música! Pela análise do “Quis debalde varrer-te da memória” 3 verdadeira epopeia de seu sentimento lírico, vê-se que com delicadeza ele percorria todas as gradações do sentimento melódico, ora majestoso nos graves, ora delicado nos agudos, ora encantador nas modulações, ora sublime nas falas, ora agitado num movimento patético, ora ainda extasiado numa firmata! É, também, de admirar a naturalidade com que ele encadeava as frases e desenvolvia um tema, como se fosse uma artista consumado, e sem conhecer uma só regra de composição! Não haverá, por certo, no mundo, artista nenhum que se desdenhe assinar o seu “Quis debalde”, uma vez que no gênero ele em nada é inferior aos seus similares. 3

A letra da modinha Quis debalde cuja música, escrita por Xisto Bahia, tornou-se popular, foi escrita pelo poeta Plínio de Lima, formado pela Academia de Recife e notável poeta lírico, é a seguinte: Quis debalde varrer-te da memória Quis debalde varrer-te da memória E o teu nome arrancar do coração: Amo-te sempre [...] Oh! Que martírio infindo! Tem a força da morte esta paixão [...] Eu sentia-me atado ao teu prestígio Por grilhões poderosos e fatais; Não me vias sequer, te amava ainda[...] {bis Motejavas de mim, te amava mais[...] Tu me vias sorrir, os prantos d’alma Só confia-se a Deus e à solidão[...] Tu me vias passar calmo e tranquilo, Tinha a morte a gelar-me o coração.

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Como o “Nel cor piú non me sento” de Paisiello, que Beethoven, o mais sublime dos mestres, não se desdenhou em fazer diversas variações; Quantas vezes lutei com o sentimento, Quantas vezes corei de minha dor! Quis até te odiar, te amava sempre, Sempre a esmagar-me o meu amor![...] {bis Sofri muito por ti. As minhas trevas Nem um raio de amor deste sequer, Tu sorrias feliz, quando eu chorava, E eu chorava só por te amar, mulher! Não consigo apagar-te da memória, Nem teu nome arrancar do coração! Amo-te sempre![...] Oh! Que martírio indefinido! Tem a força da morte esta paixão[...] {bis como o “Carnaval de Veneza”, que é o canto mais popular do mundo inteiro, e que tem servido de tema a centenas de variações de artistas distintos, como Listz, Paganini e outros; como “Ah! Che la morte ignora”, do Trovador de Verdi, que quanto mais cantado, mais lido se torna, assim o “Quis debalde” de Xisto Bahia, sendo uma composição essencialmente pura e bela como as supracitadas, há de atravessar o perpassar dos tempos, conservando sempre o mesmo encanto, e a mesma frescura como se fosse escrita na atualidade. Que se compare com o “Nel cor piú non me sento”, e veja quanta diferença. Enquanto ambos são traçados em dois períodos, um de oito e outro de doze compassos, divididos em frases de dois tesis, cada uma, o desenho deste é simples, ingênuo, como que pintando a singeleza de um primeiro amor; ao passo que o outro é complexo, elevado, lírico, como que delineando a fraqueza de um amante perante o ser que ele adora, e por quem é repudiado. 215

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Em Paisiello tudo é natural, até as incisas ou agrupamentos fônicos são feitos, quase que unicamente, de notas reais; em Xisto, ao contrário, tudo é extraordinário, superexcitado; a todo momento ouvem-se notas afetivas, ora de um “appogio”, logo uma dissonância de nona de dominante preparada, fazendo parte integrante do canto; ora uma “síncope”, logo uma alteração rítmica; ora umas passagens cromáticas, logo umas passagens de retorno; ora umas modulações cadentes; ora uns movimentos melódicos permitidos, logo um salto de sétima maior abordável e fácil, como se não fosse um movimento melódico, sem conhecer uma só regra de música! Quem é que fazendo uma análise psíquica desta modinha, não se sente, logo nas primeiras notas, possuído de uns tantos sentimentos de energia, ao cantar nos graves o “Quis debalde” e logo sentindo a fraqueza humana, perante a dureza do amor repudiado, não prossegue abatido, choroso e plangente o “varrerte da memória”, sentindo-se sem a coragem precisa para confessar a sua imensa paixão? Parece que a agonia produzida pela dor de “E teu nome arrancar do coração” é tão profunda e lancinante, que iniciada a frase nos agudos, como que partindo do cérebro, vem gradativamente descendo, até as notas mais graves do acorde, para se internar no interior do coração, e aí achar um abrigo ou lenitivo às suas mágoas. Um momento de pausa[...] Ei-lo de novo, como na primeira frase, enérgico, firme, no “Amo-te sempre”, e, em seguida, abatido, choroso e plangente no “que martírio infindo”. E como é bela ainda a frase: “Tem a força da morte esta paixão”! Parece que sob a ação de uma febre ardente, o trovador 216

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não poderá mais arrancar da sua lira notas que lhe exprimissem o sentimento de doçura e de afabilidade de quem se acha possuído de amor; mas, sim, notas em um tom alto, elevado, épico, de quem já não tem mais cérebro para refletir o que o coração sente. Sempre uniforme, inspirado em toda modinha, parece que o Dr. Plínio de Lima, autor da poesia, comunicara a Xisto as chamas dos seus afetos, razão pela qual ele fora tão bem interpretado. Sem isto, talvez que Xisto jamais tivesse logrado a sagração de cantor e compositor brasileiro, pois que ele não era, propriamente, um artista musical, e sim, um simples “trovador”. Parece que a arte, o estro, o sentimentalismo musical ingênuo do povo brasileiro, personificaram-se em Xisto, ao fazer a música do “Quis debalde”. Não foi somente no gênero lírico que o sentimento musical do povo brasileiro se encarnara em Xisto Bahia; o gênero chistoso, picante, do lundu, fora, também, uma das notas mais bem afinadas de sua lira. No “Lundu do Pescador”, poesia de Artur Azevedo, o nosso mavioso trovador deixa um atestado do seu gênero folgazão, e de suas aptidões trovadorescas. Em 1878, inaugura-se o Teatro da Paz, na cidade de Belém4 com um elenco de valor composto de João Colás, Joaquim Infante da Câmara, Joana Januária, Josefina Azevedo: toda a velha guarda. Como nas demais plateias, a peça Uma Noite de Reis na Bahia, de Artur Azevedo, com música de Libânio Colás fez grande sucesso, porquanto Xisto, no papel de Bermudes era inexcedível. Assistindo a essa sua peça, no Maranhão, confessa Artur Azevedo que não a reconhecera, chegando à conclusão 4

A peça levada na inauguração do Teatro da Paz foi As duas órfãs.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

de que dera a Xisto um esqueleto que o ator completou, reescrevendo tudo. Confessando-se simples colaborador de Bahia quis-lhe dar a coautoria da peça, não havendo força que fizesse o ator aceitar a honra da parceria. De volta, trabalha na Bahia, em 1879, com Pontes de Oliveira. Era a última vez que a Corte deixaria o grande ator trabalhar no Norte. Daí por diante, no Rio, integra o conjunto de Furtado Coelho, então na plenitude de sua carreira, ou encabeça o elenco do empresário Jacinto Heller, a quem tanto deve o teatro brasileiro. Para Xisto, os louvores são incentivos para o seu espírito. A corte não lhe regateia elogios. Até o Imperador Pedro II vai aplaudi-lo no espetáculo comemorativo da Batalha de Riachuelo, em 1880, e a respeito escreve à Condessa do Barral: “Gostei de um cômico chamado Xisto Bahia – creio que é baiano – numa espécie de imitação Les Jurons de Cadrac. Lembra-se do Coquelinet e da Favart? Intitula-se Os perigos do Coronel. Declamou com muito talento a “Descrição da Batalha de Riachuelo”5 5

O imperador equivocou-se quanto ao nome da peça, escrevendo Les jurons de Cadeset, em vez de Les jurons de Cadesset de Pierre Berton, onde a personagem principal, o Capitão Cadil utiliza-se das gírias dos marítimos franceses ao descrever a batalha de Navarrin, em que tomara parte. No espetáculo assistido por Pedro II, no teatro Lucinda, e adaptado pela Companhia Furtado Coelho, de que fazia parte Xisto Bahia, a peça principal A criada grave, de Paul Ferrier, era complementada pela comédia As pragas do Coronel, que mais não era que a peça de Pierre Berton, traduzida por um ator português, totalmente desfigurado pelo poeta Luiz Guimarães Jor, ao procurar adaptálo ao linguajar brasileiro – nessa comédia, Xisto Bahia substituiu a descrição da Batalha de Navarrin pela Batalha do Riachuelo, que tanto o agradara. Na descrição do trecho da carta do Imperador parece que tanto Alcindo Sodré (no livro Abrindo um cofre), como Raimundo Ma [...] Jr. (no livro Pedro II e a Condensa de Barral), que publicara a missa, assinalavam haver falta de sintaxe, na parte final do artigo comentado, quando se pode atribuir isso a uma leitura, malfeita, de péssima caligrafia do epistológrafo, engano que já haviam cometido, registrando a preferência do Monarca ao artista Coquelinet de Favart vez de Coqueline e Favart (Pierre Ignace de Favart), società de La Comédie Française onde, tudo indica, o Imperador e a Condessa tinham assistido à representação. A carta de Pedro II, datada de 10 de março de Petrópolis, começou no Rio de Janeiro no dia 12 e só é terminada no dia 15 do mesmo ano.

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Cansaço e Desilusão Não obstante a popularidade sempre crescente – que a plateia carioca lhe demonstra e os aplausos, de que não foram menos pródigas, a de São Paulo e a de Minas – Xisto Bahia sente-se cansado do teatro, desiludido mesmo, preocupado com o futuro, com a pobreza do seu lar: ele que tinha os ouropéis da fama. Em 1887, quando é o ídolo das plateias que o aplaudem com entusiasmo e a crítica é unânime em reconhecer seu valor, já o teatro perdera para ele todo o encantamento e entusiasmo. É um revoltado, preso ao teatro – de que não tem forças para deixar. Respondendo a uma carta que lhe escreveu Tomaz Antônio Espiúca, que deixou o teatro pelo curso doutoral, mas, que sentindo saudade do palco, consultava-o sobre as possibilidades do seu retorno, escreveu Xisto: Ao ler a tua carta fiquei absorto. Não pela surpresa da missiva, mas pelo fato da inesperada resolução. Realmente, tua consulta coloca-me num apertadíssimo embaraço. Há certas coisas que quando se indaga da opinião pró ou contra dos amigos, a resolução já está tomada de há muito e qualquer conselho é banal. Portanto, se eu tivesse de aconselhar um criançola fútil, sem outra noção de prática social além das leviandades tributárias aos dezoito anos, não hesitaria na resposta, incisiva e rude, até em mandá-lo bugiar... se viesse me perguntar se era bom entrar para o teatro. Mas a ti? Isso torna-se gravemente sério. Raciocinemos. Sabes o que é, ou por outra, o que está sendo atualmente o teatro nesse país, compreendido os quatro pontos cardeais? O teatro, isto é, a arte, é uma traficância, um negócio de balcão, 219

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uma feira de novidades, em que a imprensa faz de arlequim à porta da barraca, anunciando e porfiando as sumidades conforme as gorjetas dos contratadores. Essas novidades, ambicionadas a todo momento, são estrangeiras? Tu és estrangeiro? Não. O gosto pelo belo, quer deste ou daquele gênero teatral, lírico, dramático ou cômico, resume-se, pode-se dizer, numa depravação. O dramático é o avesso da verdade, é o afetado pulha de uma escola inventada em Lisboa, sério eu; o cômico esse... aí peco eu pelo desejo de satisfazer, como os mestres de cá, ao gosto do público e por isso chegamos a nos tornar canalhas. Quanto ao lírico... a música é como açúcar, não amarga. Este é o teatro, esta é a nossa vida. Tu me dirás: e tu homem, por que aí permaneces? Não argumentes comigo. Tu saíste quando se manifestavam os primeiros sintomas de decomposição geral que lavrava no teatro desse espantalho chamado Império do Brasil. Saíste, por consequência, na melhor das ocasiões. Eu, porém, fiquei e fui preso do contágio. Fiquei e hoje, para mim o hábito constitui-se lei, que jamais poderei derrogar, se não quiser arriscar-me a sucumbir na luta. Devia ficar, para poder comer, e dar de comer aos meus; agitarse nesta existência dolorosa, para não fenecer à míngua de trabalho. Foi-me então necessário agitar os guisos de palhaço, afivelar o cinto de lantejoulas e dar o grande salto mortal da opereta. E o quê é, afinal, a opereta? 220

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Um engodo, o mistifório ao sabor do público, que adora de preferência tudo quanto corrompe e decai. Um gênero de arte fácil e sem regras, onde a careta é uma criação e os esgares trejeitosos e descompassados uma especialidade de mérito que toca às raias do gênio!” “Tu nunca depravaste a arte, tu, nunca, deste cambalhotas, tu nunca concorreste para a desmoralização dos teus colegas; ao contrário, foste vítima, como eu, dos gaviões, das rapinas daqui. Queres voltar? Queres comer novo pão, ainda mais amargo e mais duro do que o que já comeste? Sentes-te com ânimo? Ah! Não venhas, eu t’o peço”. “Como o teu amigo velho e prático dessas coisas teatrais, faço a mais descarnada e franca oposição ao teu regresso. Se me veneres na luta ficarei satisfeito por teres acertado; se fores derrotado, lamentar-me-ei por não me teres ouvido”.6 Nesse mesmo ano a Empresa Dias Braga entrega-lhe a direção do Teatro Lucinda, onde monta cerca de cinco revistas e mágicas. Mas essas honrarias cada vez mais o desiludem. A ideia fixa é mudar de profissão. Afasta-se do palco em 1891, obtendo de Francisco Portela, então presidente do Estado do Rio, uma lugar de amanuense na penitenciária de Niterói, de que é demitido, com a deposição do presidente, em 1892. Volta à cena, reaparecendo com o mesmo sucesso do Teatro Apolo, na Companhia Garrido, ao lado de Vasquez e das atrizes baianas Isabel Porto e Clélia Araujo.

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ANUÁRIO da Casa dos Artistas, 1942, pág. 108.

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Em 1893, quando a efervescência das excursões de artistas estrangeiros estavam no auge, Artur Azevedo, paladino do teatro nacional, crítico de renome, autor em evidência, e que dirigia o Álbum, semanário dedicado às coisas do teatro, publicando grande retrato de Xisto Bahia, assim escrevia: Hoje, que os fluminenses só têm palmas, bravos e aclamações para a divina Sarah, para Tetrazzini, para Rosa Damasceno, para Amélia Vieira, para o Brasão e os irmãos Rosas; hoje que se acham nesta capital tantos artistas estrangeiros de primeira ordem, sente-se o Álbum feliz por ter ocasião de publicar o retrato do mais brasileiro de todos os atores. Estava ainda na lembrança dos cariocas o êxito retumbante do ator baiano num papel de São Bernardo, na mágica de Eduardo Garrido “O filho de Averno”. Foi seu último trabalho. Aquela homenagem consolava o artista; feita por Artur de Azevedo era uma consagração. Crepúsculo Souza Bastos, empresário português, então no Rio, contrata-o nesse ano, para continuar, no Teatro das Novidades, em Lisboa, a encarnar as personagens a que ele dera novo sentido e interpretação nas óperas cômicas de que fora criador no Brasil; frustrou essa excursão a revolução da armada, desencadeada em seis de setembro desse ano. Já então o organismo combalido de Xisto, ressentido de pertinaz moléstia, debilita-se; os teatros, com o movimento armado, fecham-se. A conselho médico, parte o enfermo para Caxambu. Já em fins de 1893 ali se encontra; seus males, entretanto agravam-se, a 30 de outubro, de 1894, apesar dos esforços e carinhosa assistência do Dr. Paulo Fonseca, clínico baiano, ali residente, vem a sucumbir. Descia para Xisto Bahia, o pano da vida, aos 53 anos de idade. Findarase o último ato da comédia que o destino escrevera; em vez daqueles aplausos ruidosos do público, choravam-lhe a perda irreparável a sua 222

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esposa, a atriz portuguesa Maria Vitorina de Lacerda Bahia – no teatro, Maria Bahia faleceu em 28 de março de 1941, aos 77 anos –7 e quatro filhos: Augusto, Maria, Teresa e Manuela.

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Por ocasião da morte de Xisto; Artur Azevedo, em carta publicada no O País, de 7 de novembro de 1964, apresenta o seu depoimento sobre a sua comédia Véspera de Reis, portanto, creio que para alguns dos meus leitores terá certo interesse a história dessa comédia. Em 1874 o artista veio pela primeira vez ao Rio de Janeiro, fazendo parte de uma das numerosas companhias dramáticas, dirigidas pelo ator cômico Vicente Pontes de Oliveira, e cuja principal figura era, incontestavelmente, a atriz Manoela Lucci, esposa do empresário. Manoela, Vicente e Bahia eram, naquele tempo, os artistas mais populares de todo o norte do Império. Dos três, só vive hoje a primeira, aliás, a mais velha. Eu, desde o Maranhão, entretinha relações de amizade com todo o pessoal da companhia, pois antes de vir para o Rio de Janeiro em 1873, já tinha fumaças de jornalistas e comediógrafo. Aos 16, era caixeiro, mas redigia um semanário O Domingo, e havia escrito a comédia Amor post hexins. Os artistas da companhia – tudo gente do norte – estimavamme deveras. Um deles, por nome Joaquim Infante da Câmara, uma noite, no teatro, antes de começar o espetáculo, me pediu que escrevesse uma comédia de costumes da Bahia, em que houvesse um papel de moleque, papel de que ele se encarregaria, fazendo representar a peça na noite de seu benefício, quando a companhia voltasse para o Norte. Na ocasião em que a Câmara me fez esse pedido, estavam presentes Xisto Bahia e Francisco Libânio Colás, o famoso compositor brasileiro, que o Vicente trouxera como regente de orquestra. O Bahia aprovou a ideia de Câmara e disse-me: - Escreve a comédia e arranja-me um papel de tabaréu. Tabaréu na Bahia é um sinônimo do nosso caipira. E Colás interveio: - Eu faço a música! - Pois há de ter música? Perguntei. - Um pouco de trá-lá-lá é indispensável para que uma comédia de costumes na Bahia possa agradar. E o maestro acrescentou: - Olha, menino, aqui tens uma ideia: a festa dos Reis na Lapinha, festa muito característica, em que o povo canta uma toada belíssima, que deve figurar na partitura. - Mas há uma dificuldade, objetei: não conheço absolutamente a Bahia nem os seus costumes; estive lá apenas por algumas horas, de passagem... - Não faz mal exclamou Xisto; dar-te-ei todas as indicações de que precisares. - Bem! Vou tentar fazer alguma coisa. 223

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Eu morava naquele sobrado grande da rua da Conceição, esquina da do Hospício, onde me davam – ditosos tempos! – cama e mesa por 50$00 mensais. Fui para o meu quarto – para o nosso quarto, porque éramos três a ocupá-lo, quando não iam lá dormir o Artur de Oliveira e o Mateus de Magalhães, dois boêmios de Henri Murger – fui para o nosso quarto, cortei dois cadernos de papel em tiras e deitei mãos à obra. Seriam oito horas, da noite; ao raiar do dia, estava pronta a comédia, e eu, morto de sono e de cansaço. Dormi até que horas, e à tarde fui ter com o Bahia no hotel onde ele morava, para mostrar-lhe meu trabalho. - Já?! Perguntou o artista muito admirado. E notei na sua fisionomia o receio que lhe inspirava a rapidez com que eu me desobrigara do compromisso. - Vamos lá! Lê isso!... Li o ato, e tive o prazer de notar que durante a leitura o Bahia dava mostras de satisfação, ao mesmo tempo em que ia substituindo certos termos e suprimindo, com as indicações prometidas, os claros que eu por esse fim deixara: nomes de ruas, etc. Terminada a leitura, ele abraçou-me, dizendo: - O teu trabalho está bom. Admiro a tua intuição, dir-se-ia que conheces a minha terra tão bem como a tua! O seu papel, o papel de Bermudes, o tabaréu, agradou-lhe imediato. - A linguagem do personagem não está viciada, observei, acabando a leitura, mas desse trabalho se encarregará você quando estudar o papel. - Não te dê esse cuidado. À noite a peça foi lida ao Câmara e ao Colás, e no dia seguinte entreguei-a ao Câmara, cuidadosamente copiada por minha mão. Poucos dias depois a companhia de Vicente Pontes de Oliveira partia para a capital da Bahia, e a bordo, durante a viagem, Colás escreveu uma linda partitura que toda a gente conhece. Em 15 de julho de 1875 a Véspera de Reis foi representada pela primeira vez naquela capital, em benefício do Câmara, no Teatro São João, depois de receber o visto do Dr. Ruy Barbosa, então presidente do Conservatório Dramático Baiano, hoje extinto. O sucesso alcançado pelo Bahia foi estrondoso; mas todos os outros intérpretes tiveram o seu quinhão no triunfo. Dos artistas que tomaram parte na representação restam apenas João Colás, filho do autor da música, também falecido. Coubera-lhe o papel de Alberto, o estudante que tinha No bolso pouco dinheiro, Muito amor no coração. Colás, que é hoje um dos nossos atores mais estimados, era naquele tempo tão bisonho, que eu, destinando-lhe esse papel, propositadamente conservei o personagem durante muitas cenas escondido embaixo de uma mesa. Entretanto, ele foi um estudante ideal.

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A Bahia, Mãe Amaríssima Não o esquecera, entretanto, a Bahia. A memorar-lhe a imortalidade e a chorar-lhe a perda. Para o teatro e para as letras. No 15º aniversário da sua morte, homenageiam o conterrâneo pobre de bens, mas, milionário da glória. Seu sobrinho, Torquato Bahia, um grande espírito e um amigo dos artistas, escreveu a respeito essa comovida página: Durante seis anos o Bahia representou a Véspera de Reis em todo o Norte, sendo aclamado de teatro em teatro. Em 2 de fevereiro de 1881, contratado por Furtado Coelho para o Teatro Lucinda, mostrou-se pela primeira vez aos fluminenses no seu inolvidável papel. Foi nessa ocasião que vi em cena a minha comédia. Não reconheci o tabaréu que inventara. No texto o personagem estava apenas indicado: o ator dera-lhe tudo quanto lhe faltava, a principiar pelos vícios de linguagem, que tão hilariante o tornavam. Esbocei apenas o tipo; Xisto Bahia corrigiu o desenho, acentuou os contornos, e deu-lhe um colorido incomparável. Das minhas mãos inábeis, daquela noite em claro da rua da Conceição, saíra um títere articulado; Xisto Bahia pôs-lhe dentro uma alma, deu-lhe uma fisionomia penetrante, tornou-o profundamente humano. Aquele papel não era representado: era vivido. Depois dessa primeira representação da Véspera dos Reis no Lucinda, fez ver ao artista que o seu nome tinha o direito de figurar como o de um coautor da peça. Ele protestou; não consentiu que eu lhe desse metade dos aplausos que a generosa plateia fluminense dispensava ao comediógrafo, nem metade dos respectivos direitos de autor. Parecendo-me que o meu, que o nosso Bermudes devia figurar em quadro em quadro mais largo e mais desenvolvido que o da Véspera de Reis, escrevi, em 1888, o Barão de Pituaçu, comédia em que o tabaréu reaparecia durante quatro atos, desta vez no Rio de Janeiro. Infelizmente a peça passou quase despercebida. Foi representada num teatro aonde o público dificilmente se encaminhava, e que só depois começou a ser concorrido. Entretanto, Xisto Bahia era extraordinário, nem podia deixar de o ser, nesse prolongamento da Véspera de Reis. Quem será agora o Bermudes? Não sei. Por meu gosto a comédia morreria com o seu extinto intérprete. Entretanto, se os atores deixassem em testamento os seus papéis, estou convencido que Colás herdaria o de Bermudes. Se ele algum dia se quiser meter na pele do saudoso tabaréu, que o faça, mas copiando servilmente o mestre. Não há desar nisso, porque, uma noite, no Teatro São Pedro, o mesmo que está atualmente debaixo d’água, indo eu ao camarim do Coquelin saudá-lo pelo seu estupendo trabalho na comédia. Joie fait peur, o grande artista interrompeu-me, dizendo: - Não me cumprimente, porque nesta peça o meu trabalho não passa de uma macaqueação de Bouffé. E era o Coquelin!

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A modesta vida do ator, cujos triunfos rememoram hoje o espírito generoso da Bahia, como que para ocultar a grandeza da ação que pratica, levando o conforto a uma família, que desfolha os dias na angústia da orfandade e da pobreza, não demanda largas páginas. Descreve-se num traço. Entre o seu berço, que é a pobreza cheia de esperanças, e o seu túmulo, que é a pobreza cheia de lúgubres tristezas, está a sua existência inteira, que é a pobreza crucificada pela dor e mascarada por um riso eterno. Esses são os traços da vida de Xisto Bahia, eu ia dizer os únicos traços. Os que o viram no berço, despido de rendas, contavam que o seu destino teria as proporções das grandes montanhas; as fulgurações das estrelas que opulentam o céu da nossa Pátria; e uma primavera perenemente aberta à porta de telha-vã, na qual estalavam as risadas cristalinas do grupo folgazão dos irmãos. Os que o encontraram na vida, viram nele um espírito jovial e alegre; uma alma cheia de abnegação e de amor; um boêmio e um filantropo, capaz de passar a noite cantando ao luar, e de vender o relógio para matar a fome à primeira boca necessitada que lhe pedisse pão. Consumido, torturado por não poder assegurar aos filhos e à esposa o conforto da vida e um futuro independente, foi salteado sempre pelas provações da pobreza. Mas, tendo sempre também o cuidado de não deixar no rosto, em que acusava uma expansão de bem-estar, trair-lhe as dores íntimas, denunciar os temores de sua alma. 226

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Os que lhe assistiram aos últimos instantes viram a queda de uma árvore robusta, que depois de resistir às tempestades que a abalaram, cai lascada pelo raio. Ficava para a posteridade a glorificação do seu nome.

Seus Personagens Bermudes em Uma Véspera de Reis na Bahia de Artur Azevedo O Barão de Caiapó em O Mandarim de Artur Azevedo e Moreira Sampaio John Read em O Tipo Brasileiro de França Júnior Sir Andrés Douglas na opereta Dona Joanita São Bernardo em O Filho Avarento de Eduardo Garrido João Fernandes na opereta A Torre em Curso de Joaquim Manoel de Macedo

Suas Modinhas Perdoa-me Sê Clemente As Duas Flores Sempre Ela Tyrana, com Castro Alves 227

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Seus Lundus A Mulata, com Melo Morais Filho O Mulato Isto É Bom - primeira gravação no Brasil (1902, Casa Edison do Rio de Janeiro, Zonophone nº 10.001 de Frederico Figner), cantor Manuel Pedro dos Santos, conhecido como Baiano, natural de Santo Amaro da Purificação, Bahia (5/12/1870), falecido no Rio de Janeiro, RJ (15/7/ 1944) A Preta Mina, com Ernesto de Souza O Lundu do Pescador, com Artur Azevedo Yayá, você quer morrer

Sua Peça Duas páginas de um livro - comédia publicada em 1872, cópia restaurada no CEDIC - Centro de Documentação e Informação Cultural Sobre a Bahia, da Fundação Clemente Mariano – endereço: Rua Miguel Calmon, 57, 2º andar - Comércio - Salvador - Bahia. Notícias Sobre o Nome de Xisto Bahia Atribuído a teatros, outras instituições e uma rua: Teatro Xisto Bahia - em 1900, de Manuel Meireles, um barraco de madeira na Rua Castro Neves, em Brotas, Salvador, Bahia. Grêmio Xisto Bahia - em 1914 com sede no Teatro São João, em Salvador, Bahia, dirigido por Augusto Maria Bittencourt e Affonso Ruy. Espaço Xisto Bahia - sala de espetáculos, vinculada à Diretoria de Música e Artes Cênicas da Fundação Cultural do Estado da Bahia, no subsolo da Biblioteca Pública do Estado, no bairro dos Barris, em Salvador, 228

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Bahia (inaugurado originalmente em 1988, por iniciativa de Theodomiro Queiroz e Car mem Paternostro, refor mado em 1998, com a denominação Espaço Xis). Rua Xisto Bahia – no bairro da Federação, em Salvador, Bahia - CEP: 40.221080. Equipe de Pesquisas Cristiane Araújo Ferreira, Ednei Alessandro, Carlos Ribas e Armindo Bião

Referências LISBOA JÚNIOR, Luis Américo. A presença da Bahia na música popular brasileira: Breve comentário sobre música na Bahia. Brasília: Musimed/Linha Gráfica Editora, 1990. p. 14-21. BOCCANERA JUNIOR, Sílio. Autores e atores dramáticos: bibliografias. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1923. p. 120, 281-292. BRASIL. ORG. UK. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2003. DICIONÁRIO DE MPB. Disponível em: . 20 ago. 2003. ENCICLOPÉDIA da Música Brasileira. 2. ed. São Paulo: Art Editora/ Itaú Cultural, 1998. p.58-59. FRANCA, Lena. De La Traviata ao Maxixe. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2000. JABOTÁ, Paulo. Xisto Bahia um artista Nacional. Revista do IHGBA, Salvador, v. 77, p. 497-500. 1950.

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MELO, Guilherme de. História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947. p. 229-232. RUY, Affonso. Xisto Bahia, símbolo do teatro baiano (uma tentativa biográfica). In: ____. Boêmios e seresteiros baianos. [S.I.]: [s.n.], [19–?]. SALLES, Vicente. Épocas do teatro no Gão-Pará ou apresentação do teatro de época. [S.I.]: [s.n.], [19-?]. SOUZA, G. Galante. O teatro no Brasil. Rio de Janeiro: [s.n.], 1960. p.95-96, 581. TINHORÃO, José Ramos. Música popular: teatro e cinema. Petrópolis: Vozes, 1972. p. 05-07, 21-23.

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O papel do teatro baiano contemporâneo no drama e na comédia da contínua reconstrução da baianidade* Evocação Nos idos de dezembro de 1971, o jornal semanal baiano de contracultura Verbo Encantado1 intitulava o texto de abertura para uma entrevista com o novelista da Rede Globo, Vicente Sesso, La baianidad2. A alusão, em espanhol, à baianidade referia-se ao olhar estrangeiro sobre a cidade da Bahia, que era o do entrevistado, evocando em seu depoimento recorrentes reflexões de outros estrangeiros, acumuladas ao longo da história, sobre um provavelmente propício ambiente baiano para o exercício de valores éticos e estéticos, libertinos e libertários. Naquele momento da ditadura militar brasileira, a celebração jornalística desses valores identificava-se com o espírito do tempo de uma rede internacional de jovens artistas, intelectuais e jornalistas em transe, e parcialmente em trânsito pelo verão baiano – que ficou conhecido como “do desbunde” – que consolidaria o imaginário da Praça Castro Alves ser do povo e a vila praiana de Arembepe, dos hippies. Era naquele nó espaciotemporal (dezembro de 1971, na cidade da Bahia), que o entrevistado escrevia os capítulos de um dos maiores sucessos da história da telenovela brasileira, Minha Doce Namorada, enviando-os regularmente para a Globo no Rio de Janeiro. * Publicado originalmente em Pré-Textos para Discussão, Salvador, v. 6, UNIFACS. Universidade Salvador, Coordenadoria de Pesquisa, 2001, p.27-41. 1 Editado pela Alef Empresa Jornalística Ltda de Outubro de 1971 a Julho de 1972: 19 edições semanais regulares e três com periodicidade irregular. 2 Tratava-se de uma matéria para a página semanal “Almanaque de TV”, que eu assinava, com a chamada “O que pensa um homem de TV”, uma apresentação intitulada La baianidad, que descrevia o contexto e comentava a entrevista, e a transcrição da entrevista na forma de depoimento. Ver Verbo Encantado n.7, 04 a 10 dez 1971, p.3.

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Álvaro Guimarães, que então coeditava comigo e outros baianos o Verbo, comentando essa matéria, evocava Orlando Sena, o cineasta e diretor teatral que, em 1963, lançara Caetano Veloso como ator e Maria Betânia como cantora, no Teatro Oceania, em Salvador, na célebre montagem de O Boca de Ouro de Nelson Rodrigues. Segundo Alvinho, Orlando seria alguém muito interessado nas questões relativas a uma identidade tipicamente baiana, que, na entrevista, era associada à beleza natural, à tranquilidade, ao romantismo, ao misticismo, à mestiçagem, à criatividade, ao potencial de centro de produção artística e, num tom de lamento, ao desperdício de tanta maravilha. Esta evocação, aqui, tem função de introdução à temática que nos interessa neste momento: a participação das artes do espetáculo na Bahia, mais particularmente do teatro baiano, na construção da imagem identitária da cultura baiana. Minha! Nossa! A Baianidade! Nos 30 anos que se passaram, desde a publicação evocada acima, Salvador e seu entorno têm vivido a construção e a industrialização de uma mosaico e cambiante imagem identitária da cultura baiana, que aqui poderia ser denominada, de modo simplório, simplificado – e simplesmente – baianidade, em português mesmo, porque denominação assumida num discurso que se pretende nativamente brasileiro (falante de português), como resultado natural – e cultural – do diálogo constante com o estrangeiro. Para compreendermos esse processo de construção podemos recorrer à imagem de quatro pontos cardeais que se cruzariam em rede como pilares interligados de uma plataforma subterrânea, porém aparente – a epifania de um mistério – revelando múltiplos ícones, emblemas e símbolos, que sustentam um imaginário identitário, transversal aos diversos segmentos componentes da cultura baiana. Esses pilares, ou matrizes, são: 1. uma particularmente específica musicalidade associada a variadas tradições de oralidades, de fortes matrizes africanas, com aportes 232

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mouros, ibéricos e nativos – e a sensorialidade/prazer sensório mental decorrente e a partir dessa musicalidade e oralidades provocada; um fenômeno percebido e anotado desde o século XVIII, em documentos sobre sua exportação da Bahia para Minas Gerais e Lisboa, por exemplo3; por outro lado, no que tange à facilidade dessa musicalidade dialogar com novas tecnologias, antes mesmo da invenção do trio elétrico em 1950, vale lembrar que a primeira canção gravada no Brasil (Rio de Janeiro: Casa Edison, 1902) foi o lundu Isto é Bom!, de autoria do autor e músico baiano do século XIX Xisto Bahia, na voz do “cantor mais popular do Brasil do início do século XX”, Cícero de Almeida, natural de Santo Amaro da Purificação e conhecido pelo público como Bahiano (1870-1944); e vale destacar também que as duas primeiras composições registradas no Brasil, já na fase elétrica (Rio de Janeiro: Odeon, 1927), foram da autoria do “dançarino, editor de revista e dentista baiano, Antônio Lopes de Amorim Dinis, o Duque, consagrado em Paris, a partir dos anos de 1910, como o ‘criador do maxixe brasileiro’”4; 2. um primado imaginário e cultural barroco, que representa o paraíso na terra, de modo sensual e estético; o paraíso do bom selvagem – destruído – e dos mulatos – reinventado, inferno dos negros e

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Sobre os espetáculos barrocos de cortejo, a musicalidade, as “cantigas e modas” referentes “às raízes já então [século XVIII] assentadas da rica e tropical coreografia ritual e popular baiana”, ver Ávila, A. O lúdico e as projeções do mundo barroco I – Uma linguagem a dos cortes uma consciência a dos luces. 3. ed. São Paulo: Perspectiva. 1994. p.51. Sobre a música baiana em Lisboa (já também no século XVIII) ver TINHORÃO, J. R. Os negros em Portugal: uma presença silenciosa. Lisboa: Caminho, 1988, p.325 e seguintes. No século XX, poderíamos destacar a consolidação de um corpus musical brasileiro referente à Bahia, bem como a contribuição das tias baianas para a criação do samba carioca e, para a definição do panorama musical brasileiro contemporâneo, a contribuição do samba de roda do Recôncavo, de Dorival Caymmi e Assis Valente, da bossa nova com João Gilberto, do tropicalismo, dos Novos Baianos e da música axé. Ver GIRON, L.A. Mario Reis, o fino do samba. São Paulo: Ed. 34, 2001, p. 19 e p. 58.

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purgatório dos brancos – no imaginário barroco, embalado num estilo artístico e numa categoria estética de caráter multicontinental – incorporando, criando e recriando ícones, emblemas e símbolos das mais diversas culturas – autóctones e exóticas –, que acompanhariam a formação das modernas identidades nacionais, particularmente na América Latina5; 3. uma função comercial de cidade, baseada na mercancia de todo tipo de produto (inclusive de seres humanos, o que levou o famoso personagem Robson Crusoe, de Daniel Defoe, ao lendário naufrágio); mercadização revelada na retórica da comunicação de um importante porto da carreira para as Índias, as Áfricas, as Américas e as Europas, particularmente entre os séculos XVI e XIX, mais profunda marca identificadora da cultura baiana até o presente; 4. e um amoralismo ético, centrado: • Na autorreferência; • Em uma humildade frequentemente verdadeira, que, sendo reconhecida como tal pelo sujeito, pode se tornar presunçosa, podendo mesmo facilmente chegar à arrogância; • Em uma presumível, evidente e visível tolerância, que pode compreender momentos e situações de extrema tensão e crueldade; • Em uma convivência constante com formas de violência banal e fundadora, assentada no modo de organização sociocultural da escravidão, explicitado do século XVI ao final do século XIX, como perfil característico das terras da Bahia; • Tudo isso numa rede de diversas for mas de compadrio, apadrinhamento, servidão e etiquetas (ou pequenas éticas da estética). 5

A ideia de que a identidade brasileira – e da América Latina – construiu-se sob o signo do barroco encontra-se em diversos textos publicados nos catálogos de duas exposições sobre o barroco brasileiro: uma na França: Brésil baroque entre ciel et terre, Union Latine, Paris, 1999; outra no Brasil: Mostra do Redescobrimento Brasil + 500 imagens do Barroco, São Paulo, 2000.

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Podemos pensar a baianidade, enquanto noção de trabalho de investigação, como uma construção coletiva6, aqui apresentada em palavras e fraseado de minha responsabilidade, articulando a exuberância da terra à festividade do povo, à patifaria e à cafajestada da retórica e da prática social, bem como à sacanagem íntima, pessoal e coletiva das trocas de bens de toda sorte (toques, cheiros, gases, líquidos, sólidos, jeitos, sonhos, poderes). Como o teatro baiano tem participado desse processo de construção da baianidade? É o que pretendemos, ainda que de modo preliminar, responder a seguir. Panorama histórico São evidentes as relações entre o teatro e seu contexto cultural, claramente, na Bahia, no teatro jesuítico catequético, que incorporou mitos e modos de corpo do público ao qual se destinava, e nas festividades barrocas, que incluíam representações teatrais e a teatralização de rituais interativos. A história do teatro na Bahia registra, no século XIX, as polêmicas a propósito da obscenidade e do sucesso de Joana Castiga, cantadora de lundus no Teatro São João (“castiga meu bem, castiga!”); teatro de onde, aliás, saíram os figurinos para a rua, quando o poder local resolveu proibir o entrudo – de matriz portuguesa “transculturada” com a ludicidade africana e nativa – e institucionalizar o carnaval, de matriz europeia, que se “transculturaria”, no século seguinte, com a anterior7 e as novas tecnologias de comunicação e mercado. Compreender as artes do espetáculo na Bahia é compreender a baianidade. Mas o que aconteceu particularmente com o teatro na segunda metade do século XX em Salvador? Quem financiou? Quem viu? O que se usou

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Apesar de muitas serem as contribuições para a discussão sobre a baianidade, destaco aqui apenas uma, como representativa das demais: CARDOSO, A.S. Baianidade: uma constante elaboração e reelaboração de símbolos. Pré-textos para Discussão. Salvador, UNIFACS, ano VI, vol. 6, n. 10, p. 83-93, 2001. RUY, A. História do Teatro na Bahia. Salvador: Universidade da Bahia, 1959, p.36 et seq.

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como material emblemático e simbólico para a sua realização? Essas questões compõem um mosaico de interesse pessoal e profissional constante, ao longo de minha vida, na qual me defino como ator8, diretor teatral9, professor e pesquisador das artes do espetáculo e dos fenômenos de transculturação10 particularmente na cidade da Bahia, Salvador. Horizonte teórico-metodológico é numa perspectiva que, muito 8

Mesmo sem atuar desde 1997/98, quando tive a graça de fazer o ingênuo marido recém-doutorado de Hedda Gabler, de Henrik Ibsen, no Teatro Martim Gonçalves, com direção de Harildo Deda, pela companhia de Teatro da UFBA, estudando um clássico do teatro moderno e discutindo a situação da mulher no Brasil e na contemporaneidade. 9 Foi um aprendizado feliz e uma glória – dirigir e produzir, como parte de um projeto integrado de pesquisa em andamento, com meus alunos de pós-graduação Isa Trigo e Marcondes Lima, e de graduação do penúltimo semestre de Bacharelado em Artes Cênicas da UFBA – Habilitação em Interpretação Teatral, Analu Tavares, Amaya Lainez, Débora Santiago, Dilson Nery, Gustavo Granjeiro, Hilton Souza, Larissa Garcia, Majó Sesan, Marita Ventura, além do músico Luciano Bahia, a montagem didática Isto é Bom!, no Teatro do SESI, em Salvador, com quatro apresentações gratuitas em agosto de 2001. O espetáculo repetia o título do lundu de Xisto Bahia, gravado por Bahiano, em 1902, e era uma colagem de canções, poemas de Gregório de Matos, sermões de Antônio Vieira, notícias de jornais baianos do século XIX, depoimentos para a Inquisição na Bahia, cartas de José de Anchieta e Manoel de Nóbrega sobre os costumes na colônia e folhetos de cordel com personagens diabólicos da Commedia dell’Arte e uma canção de Nino Rotta para La Dolce Vita de Frederico Fellini, vertida para o português por Caetano Veloso. Isto é Bom! era apresentado como um sarau barroco sobre as matrizes da baianidade e como modo de treinamento para atores em formação na Escola de teatro da UFBA. 10 Destaco a palavra “transculturação” como referencial para uma perspectiva de análise de inúmeros cientistas sociais que estudaram os contatos culturais, como Roger Bastide, Melville Herskovits, Gilberto Freyre e Fernando Ortiz, por exemplo, sendo deste último a denominação aqui selecionada; a transculturação é apresentada e discutida em ORTIZ, F. Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar, Barcelona, Ariel, 1973. 11 Essa sensibilidade teórica tem como matriz a contribuição do polêmico sociólogo francês Michel Maffesoli, que orientou meu doutorado em antropologia social e sociologia comparada, na Sorbonne (Université René Descartes Paris 5, 1990), beneficiando-se da contribuição da fenomenologia pragmática, da antropologia do imaginário, do interacionismo simbólico, das histórias de vida, dos estudos sobre oralidade e sobre a performance, da etnocenologia e da proxêmica.

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rapidamente, poderia definir como compreensiva e relativista11, tendo como objetivo contribuir para a formação de pesquisadores no horizonte de conhecimento das artes do espetáculo e para a geração de conhecimentos novos nesse mesmo horizonte, que desenvolvo as breves reflexões a seguir. Inicialmente, é importante ressaltar alguns princípios de ordem epistemológica e metodológica. Primeiramente, não considero que possa contribuir para a definição de um conceito de baianidade; prefiro a ideia de poder colaborar para o debate sobre identidade e contemporaneidade na Bahia – aproveitando este gentil Espaço Aberto da revista Pré-Textos para Discussão – propondo-me a definir – apenas – uma noção de baianidade, sendo a diferença central entre conceito e noção aquela descrita por Michel Maffesoli em La connaissance ordinaire, que entende, contra a dureza e a fixidez do conceito, a moleza fugidia e o caráter líquido da noção como mais operacionais para compreendermos o atual e o cotidiano, nos quais estamos mergulhados até o – e além dele – pescoço12. Não consigo pensar a baianidade como um conceito acabado, completo, fechado, claro e unívoco. Não consigo dissecar essa ideia como se estudasse um corpo morto, prefiro pensá-la como algo vivo, dinâmico e cambiante, difícil de explicar, um possível ponto G para o gozo de mulheres e homens, que a anatomia não localiza de modo aceitável cientificamente por todos, mas cuja ideia para ajudar os que gozam, se compreendido como parte de um conjunto difuso de estímulos num organismo vivo – ou atrapalhar o gozo, se pensado e buscado ansiosamente como um órgão fisiológico localizado em algum lugar específico, verificável e sujeito à dissecação num corpo humano morto. Outra noção operacional aqui será a de sistema espetacular, remetendo ao conjunto de artes, comportamentos e práticas espetaculares, no qual está inserido o teatro como um elemento, um componente, uma parte

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Ver MAFFESOLI, M. La connaissance ordinaire. Paris: Méridiens; Klincksieck, 1985.

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de um conjunto interativo e dinâmico, sempre contextualizado num espaço real e simbólico e no ar dum tempo. Também nos é útil pensar a questão da identidade em necessária associação à questão da alteridade, na perspectiva maffesoliana, eu sugeri a noção de identificação como mais aplicável contemporaneamente na busca de resposta para essas questões. De fato, como muitos intelectuais aborrecidos com os rumos da cultura baiana – e da baianidade – denunciam, há quem se identifique baiano, ou se invente baiano, por dentro, num talvez criado ato de imitação ou de imaginação, e/ou por fora, num ato de linguagem, de invenção de uma tradição até então inexistente ou, ainda, de figurino, sotaque ou atitude, identificados pelo sujeito como sendo típico da Bahia, enfatizando um ou outro aspecto espetacular (para si e/ou para os outros). O imitar e o inventar associam-se à teatralidade e à baianidade, esta compreendida como a identidade de uma terra como outra qualquer, aliás – de múltiplos “seres” e “estares”. Com efeito, há múltiplas identificações identitárias na contemporaneidade – e não só na Bahia – só compreensíveis se pudermos pensar em sinceridades sucessivas e contraditórias, e mesmo simultâneas, contraditórias e complementares ou, dito no universo semântico do teatro, se pudermos pensar no ator como cavalo, sacerdote, folião, trabalhador e hipócrita, de múltiplos papéis. Aqui e agora, mais uma piscadela ao teatro, no caso o antropológico de Eugenio Barba, cujo lema é a assertiva do físico Niels Bohr: contraria sunt complementa. Outro conceito, com o qual intitulei parcialmente minha tese de doutorado13, o de espetacularidade, também pode nos ser aqui útil, se compreendido como a categoria dos fenômenos que rompem a rotina e o ordinário, seja para afirmar o caráter conservador do extraordinário,

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BIÃO, A. Théâtralité et spetacularité: une aventure tribale contemporaine à Bahia. Paris: Sorbonne, 1990.

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ou seja, eventualmente, para afirmar o caráter renovador ou mesmo revolucionário daquilo que surpreende e instala um novo ar do tempo. Este horizonte teórico aponta, enfim, para a construção em curso de uma possível cenologia geral, que hoje chamamos ainda de etnocenologia, uma perspectiva transdisciplinar remetendo às etnociências, que busca compreender a pluralidade e a diversidade de matrizes culturais e estéticas que geram variadas e mutantes formas de transculturação, reconhecidas coletivamente como espetaculares14. Em ter mos metodológicos, o fato de o teatro ser uma arte necessariamente coletiva, que implica a existência de pessoas em grupo compartilhando projetos comuns, criando realidades cênicas para a comunicação com público, remete ao histórico pessoal que contextualiza a presente reflexão, parte integrante de um projeto integrado de pesquisa em desenvolvimento com a participação de muitos pesquisadores15. A experiência de criação teatral, ação comunitária e pesquisa sobre teatralidade e baianidade, nesse horizonte biográfico autorreferencial, pode ser resumida em sete momentos: 1. O primeiro encontra-se referido na evocação de abertura do presente texto. A equipe que produziu o Verbo Encantado em 1971 e 1972 interessou-se pela contracultura e pela cultura baiana, tendo como ícone feminino a atriz e modelo Flora, como ícone masculino o ator negro Mário Gusmão e andrógino o ator branco-mestiço Marquinho Rebu; colocando-se já aí a questão da baianidade associada ao teatro baiano e à negritude; 14

Ver, sobretudo, BIÃO A. Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade. In: Temas em contemporaneidade, imaginário e teatralidade. São Paulo: Annablume, 2000, p.15-30. 15 O Projeto Integrado de Pesquisa Matrizes Estéticas no Teatro em Salvador, Bahia, 1999/ 2001 – estudos e experimentações em etnocenologia é financiado pelo CNPQ e pelo PIBIC/ CNPQ/UFBA/CADCT-BA, para o biênio 2001/2003, com a participação de doutorandos, mestrandos e graduandos. Vale registrar, e agradecer, a participação de bolsistas de Iniciação Científica deste projeto, Ednei Santos, Dilson Nery e Marconi Araponga, na reflexão sobre o presente artigo.

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2. O segundo momento reúne parcialmente o mesmo grupo do Verbo, integrando novos membros e produzindo a revista da BAHIATURSA Viver Bahia (22 edições mensais de 1973 a 1975), cujas capas e textos destacavam a diversidade natural e humana da Bahia e, principalmente, o diferencial negro de sua população; em paralelo, esse grupo continuava a produzir teatro de caráter experimental; 3. O terceiro momento mantém a mesma base de composição dos dois anteriores, agora em torno do Teatro Dan Dan, na Vila Matos, em Salvador, de 1974 a 1978, produzindo, sobretudo, espetáculos, dentre os quais Lei do Cão16; 4. O quarto momento, por sua vez, subdivide-se em duas fases, a primeira de 1987 a 1990, quando coordenei a instalação de um grupo de pesquisa dedicada aos estudos sobre o corpo, reunindo artistas e pesquisadores das artes do espetáculo (dança, teatro), da saúde (medicina, enfermagem, psicoterapias), da educação física e das ciências humanas (antropologia e sociologia), na Sorbonne, em Paris; e a segunda fase, desde 1990 até hoje, com o grupo mantendo suas atividades, com outros coordenadores e a mesma denominação: Groupe de Recherches sur l’Anthropologie du Corp set sés Enjeux – GRACE; este grupo realiza seminários, organiza eventos e tem publicado ensaios, sobretudo no periódico, dirigido por Michel Maffesoli, Societés; 5. O quinto momento corresponde à criação do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade – GIPE-CIT, na UFBA, em 1994, que existe até hoje e já realizou inúmeras publicações, eventos e performances, tendo gerado o sexto momento:

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Direção Luciano Diniz, 1976, Teatro Castro Alves, sobre a saga de Canudos, tendo a capoeira como parte integrante do treinamento corporal dos atores.

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6. Que foi a implantação, em 1997, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (mestrado e doutorado) da UFBA – que recebeu conceito cinco da CAPES, em 2001, e diplomou, até o final deste ano, 17 mestres e três doutores, mantendo o periódico Repertório Teatro & Dança, com cinco números publicados; 7. Tendo esses seis momentos anteriores, como consequência, o sétimo momento, a criação da Associação Brasileira de Pesquisa e PósGraduação em Artes Cênicas – ABRACE, sediada desde sua criação, em 1998, no PPGAC e no GIPE-CIT da UFBA; hoje reunindo sete grupos de trabalho e mantendo a publicação da série Memória ABRACE, com quatro números publicados e dois em editoração: um com os Anais do II Congresso da Associação, realizado na UFBA de 8 a 11 de outubro de 2001; outro com o banco de teses e dissertações de artes cênicas defendidas e aprovadas no Brasil e, quando da autoria de pesquisadores brasileiros, também no exterior. Os três últimos momentos têm se estruturado em torno de projetos integrados de pesquisa, além de outros projetos de mestrado e doutorado 17 . Entre os primeiros, vale destacar os já concluídos Indicadores para Avaliação da Produção Acadêmica da UFBA 19561996 (1994/97) e Etnocenologia no Nordeste: Dramaturgia e Encenação. É com base nesses projetos que fazemos a presente reflexão, enfatizando a seguir a produção teatral baiana nos anos 90 em relação à problemática da baianidade, a partir, sobretudo, de uma reflexão da jornalista, mestre em artes cênicas e professora da UFBA, Nadja Miranda18. 17

Tive a oportunidade de orientar ou de examinar teses e dissertações sobre os ternos de reis da Lapinha (Eloisa Brantes), a obra do teatrólogo Nelson de Araújo (Adailton Santos), a música afro-carnavalesca da Bahia (Antonio Jorge Vítor dos Santos Godi), a beleza negra na Bahia (Rita Maia), o Balé do Teatro Castro Alves – aspectos míticos, étnicos e rituais (Márcia Virgínia), o Museu Afro-Brasileiro (Marcelo Cunha), o teatro na Bahia no século XIX (Lena Franca) e a cobertura jornalística do teatro baiano nos anos 1990 (Nadja Miranda), por exemplo, no horizonte temático das artes do espetáculo e da identidade baiana. 18 Ver a excelente dissertação de Mestrado MIRANDA, N. Jornalistas em Cena, Artistas em Pauta: Análise da cobertura jornalística dos espetáculos teatrais baianos realizada pelos jornais A Tarde e Correio da Bahia na década de 90. Salvador: UFBA, 2001; particularmente o trecho intitulado “A baianidade no teatro da década de 90”, p. 205-213.

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Anos 90 – Tipos e exemplos Algumas referências sobre a segunda metade do século XX são importantes para a compreensão do teatro baiano nos anos 1990, e sua participação no processo – dramático e cômico – de construção da baianidade. A primeira é, sem dúvida, a montagem de um espetáculo tipo cortejo pelas ruas centrais de Salvador, com uma versão também para o Teatro do ICEIA, em comemoração ao quarto centenário de fundação da cidade, em 1949: o Auto da Graça e da Glória da Bahia. A montagem, financiada pelo governo do Estado, reunindo os artistas amadores de Salvador, narrava momentos históricos marcantes da cidade, destacando episódios de contatos culturais e, mais particularmente, a escravidão, extinta, então, no país, há apenas 51 anos. A criação da Escola de Teatro na Universidade nos anos 50, inserindo as artes cênicas locais num contexto cultural de vanguarda artística internacional, marcaria a reabertura dos portos da cidade às novidades estrangeiras. Já nos anos 60, a abertura do Teatro Vila Velha e do Teatro Castro Alves reafirmaria a forte relação do teatro baiano com os ícones históricos e artísticos da terra. O experimentalismo dos anos 70 religou fortemente a tradição de teatro local ao contexto internacional, com a diferenciação brasileira da censura ditatorial, cujo fim, com a abertura política, em 1979, é celebrado por um grande sucesso teatral, que foi o espetáculo Bocas do Inferno, sobre o paradigmático poeta baiano barroco Gregório de Matos – visto por milhares de pessoas no Renascente Circus, armado no estacionamento de São Raimundo e, em segunda temporada no Teatro Castro Alves19.

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Texto de Cleise Mendes, Carlos Sarno e Deolindo Checcucci, também diretor e produtor, ao lado de Wilson Mello, Mário Gadelha e este ator/pesquisador, intérprete do protagonista. Em 1987, uma nova montagem teatral seria produzida num circo – o Boca de Brasa, montado na Praça Municipal – sobre o mesmo tema: Gregório de Matos e Guerra, com direção de Márcio Meireles e produção da Fundação Gregório de Mattos.

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Os anos 80 são reconhecidos como o momento de início da profissionalização (no sentido de criação de um mercado de trabalho permanente para artistas e técnicos) do teatro baiano, com alguns espetáculos prolongando-se em temporada até os anos 90, quando é criada uma premiação para os melhores do teatro baiano, financiada por empresas do polo petroquímico da Bahia. Quem patrocina, quem faz, com que material, para quem, esse teatro? Tentamos criar categorias operacionais para organizar tanta informação e buscar responder a essas questões, até o momento ainda de modo preliminar, tendo como foco a noção que aqui busco descrever, a baianidade. 1. Uma primeira categoria, de transição histórica, pode ser representada pela montagem de um texto colagem de Aninha Franco, Dendê e Dengo, que remetia ao experimentalismo dos anos 70, sobre a temática da identidade baiana, sem patrocínio importante, que foi grande sucesso, de público e de crítica, a partir de sua estreia, em 1990; além da autoria, a direção e a interpretação estavam a cargo de mulheres, tendo a produção circulado por diversas casas de espetáculo, com rápidas temporadas fora da Bahia; seu ambiente de origem era extrauniversitário e extragovernamental, embora dialogasse com esses meios, tendo sido o espetáculo amplamente noticiado, como assinala Nadja Miranda, sobretudo pelo sistema de comunicação ligado ao governo do Estado da Bahia, ao qual retornava, naquele ano, Antonio Carlos Magalhães, que já patrocinara nos anos 70 a construção de um política baseada na indústria do turismo e na cultura baiana tradicional e contemporânea; 2. Uma segunda categoria, marcada pelo financiamento oficial do Estado da Bahia, compreende superproduções para o grande público sobre temas da história política, cultural e artística da Bahia (A conspiração dos Alfaiates, Canudos a Guerra do Sem Fim, Castro Alves), em 1992, 1993 e 1994; reunindo artistas-professores universitários (Paulo Dourado, 243

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Cleise Mendes, Deolindo Checcuci), este projeto contou, inicialmente, com a participação de Aninha Franco; a partir de 1995, o Teatro Castro Alves produziria, anualmente, textos de referência internacional (Shakespeare, Strindberg, Eurípedes, Koltès, Ben Johnson e Brecht), encenados com eventuais alusões – ou uso explícito de ícones da baianidade – além de um espetáculo musical sobre o Brasil (Lábaro Estrelado, texto de Cleise Mendes, direção de José Possi Neto); 3. Uma terceira categoria pode ser classificada como a de espetáculos com grande sucesso comercial, dos quais podemos destacar A Bofetada, da Companhia Baiana de Patifaria, direção de Fernando Guerreiro, cuja estreia deu-se em 1988, e 1,99, de Ricardo Castro, que estrearia dez anos depois; além do espetáculo Os Cafajestes, texto de Aninha Franco e direção de Fernando Guerreiro; sem patrocínio governamental importante, embora contando com a boa vontade e algum apoio ou simpatia do Estado, os espetáculos dessa categoria destacam-se por reunirem majoritariamente artistas e técnicos nãouniversitários e por utilizarem com abundância formas de linguagem e jeitos de corpo identificados facilmente como baianos, inclusive fora da Bahia, onde A Bofetada (“um besteirol pleno de baianidade”, no dizer de Aninha Franco) excursionou com ampla repercussão, como também Os Cafajestes, que recebeu o prêmio Sharp; 4. Uma outra categoria que pode ser definida como de origem marcante, acadêmica, cobre um variado leque de espetáculos didáticos e de pesquisa, matrizes estéticas, técnicas e temáticas valendo destacar: o grande sucesso do grupo Los Catedrásticos, originalmente de atores da Escola de Teatro da UFBA – organizados durante uma greve, em 1987 – com a participação de Paulo Dourado e Cleise Mendes, que criou o Recital da Novíssima Poesia Baiana, reunindo textos de Gregório de Matos e letras da música baiana carnavalesca contemporânea, numa perspectiva de polemizar, sem patrocínio, mas que viria a contar, de algum modo, de apoio institucional, inclusive para excursionar dentro e fora da Bahia; A Casa de Eros, que celebrava, em 1996, os 40 anos da Escola, com direção de seu ex-diretor dos 244

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anos 70, José Possi Neto, remontando cenas de espetáculos dirigidos por seu criador, Eros Martins (Martim) Gonçalves – colagem com textos de críticas e polêmicas da imprensa local sobre a Escola – financiados inteiramente pelo Estado, e que também se inscrevem nesta categoria; assim como Umbiguidade, a encenação de uma pesquisa vocal de mestrado, de Iami Rebouças, que alterna – o espetáculo ainda realiza temporadas – cenas com personagens já vividos pela atriz – reflexões sobre o seu ofício de atriz, professora e pesquisadora – com apoio institucional, sobretudo para excursionar fora da Bahia, e aludindo em seu título a grandes características da baianidade: a ambiguidade e a autorreferência; 5. Uma outra categoria de espetáculos poderia ser descrita como de ação comunitária, representada, por exemplo, pela montagem de Quem inventou o amor? Do Centro de Referência Integral do Adolescente – CRIA – que circulou junto a escolas públicas e centros comunitários; e pelo grande sucesso de crítica e público Cuida bem de mim, patrocinado pelo Liceu de Artes e Ofício da Bahia; o financiamento de origem eventualmente não-governamental não oculta o apoio do Estado a essas iniciativas, dirigidas, no final dos anos 90, por Maria Eugênia Milet e Luiz Marfuz, ambos docentes da Escola de Teatro da UFBA; essas produções punham em cena personagens e situações bem próximas da realidade baiana; 6. Uma sexta categoria pode ser representada pelas produções teatrais baianas em parceria com entidades internacionais de origem alemã, que se serviam de elementos musicais e outras referências culturais à Bahia, como o espetáculo Merlin ou a terra deserta (ICBA, 1993), Medeamaterial (TCA, 1995) e Medeia (TCA, 1997); 7. Finalmente, uma nova categoria pode ser definida como de afirmação étnica e política, representada pelas produções do Bando de Teatro Olodum, dirigidas por Márcio Meireles, particularmente a Trilogia do Pelô (1991-1995) e o Cabaré da Raça (1997), colocando em cena personagens do dia a dia de Salvador, a questão da negritude e o 245

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questionamento de políticas oficiais, tendo, contudo, ao longo da década, passado a receber apoio oficial e financeiro do Estado, sobretudo na forma de manutenção parcial, porém permanente, do Teatro Vila Velha, onde o grupo é residente. Conclusão momentânea Independentemente do ângulo da temática (antropológica, histórica, cotidiana), da linguagem (corporal, musical, falada), ou da origem (mercado, universidade, comunidade) todas essas categorias de espetáculos difundem ícones, emblemas e símbolos da baianidade, para um público cada vez mais vasto, ampliando e fortalecendo a rede de pessoas de teatro na Bahia. Feito por alunos e professores universitários, amadores e profissionais de mercado distantes da universidade, e por grupos comunitários reunidos em torno do teatro e de questões de ordem sociocultural, esse teatro contou com apoio institucional e – na maioria das vezes – financeiro do Estado, com pequenos aportes da iniciativa privada, de organizações não-governamentais e do público pagante. Exemplo disso é a manutenção do Teatro XVIII, no Pelourinho, em 2001, com a liderança de Aninha Franco, a participação de nãouniversitários e universitários, o apoio da Secretaria de Cultura e Turismo, do FAZCULTURA e da Souza Cruz, e espetáculos a preço popular. Quando me refiro à baianidade, penso sempre em sua complexidade e dinâmica que, por tradição histórica, apenas muito lentamente parece estar contribuindo para a redução dos vergonhosos indicadores socioeconômicos que ainda caracterizam a Boa Terra. Segundo alguns analistas, a baianidade estaria mesmo contribuindo para a manutenção desses indicadores. Contudo, alguns deles, além de outros intelectuais, defendem simultaneamente, o resgate de tradições culturais e espetaculares, abstraindoas de seu contexto sociocultural, que nos remete evidentemente à escravidão. Esses analistas e intelectuais, independentemente de sua boa-fé e boa vontade – sinceras – assustam-me mais – sinceramente – que a baianidade ou que as novas tecnologias de comunicação. Estamos condenados ao nosso passado – e a maioria de nossas famílias brancas, negras e mestiças, muitas 246

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delas escravocratas na Bahia, em Portugal, na África e alhures, também condenadas, por esse mesmo passado. Vivemos um presente assustador para muitos, mas promissor para muitos também. Já nosso futuro é um livro aberto – a meu ver, promissor, exatamente por causa de nossas artes do espetáculo e da baianidade. Podemos afirmar que o teatro baiano participou ativamente, como parte integrante do sistema espetacular baiano, do processo de contínua reconstrução dessa baianidade, que reúne miríades de influências internas e externas, fazendo dialogar, por exemplo, no campo da musicalidade, o samba, a marcha, o frevo, o forró, o rock, o funk, o country e o rap, no carnaval de época e de fora de época, bem como nas festas e formas espetaculares em geral. Em nossa perspectiva, a baianidade vive da diversidade estética e política; contribuindo simultaneamente, para a renovação e para a conservação do status quo. Tanto apresentar e discutir os aspectos positivos da estética e da ética da baianidade, quanto apresentar e discutir os péssimos indicadores socioeconômicos de Salvador e dos seus arredores, ou o machismo e o racismo típicos da cultura tradicional brasileira, nordestina e baiana, são formas de afirmar essa perspectiva de baianidade. Campo privilegiado para a etnocenologia, o teatro e o sistema espetacular, a identidade baiana pode nos fazer refletir, comparativamente, sobre outras identidades culturais, como a nigeriana, onde uma forma tradicional do teatro iorubá domina a cena nacional com apoio do Estado, sem se exportar; ou a francesa, onde o Estado financia uma diversidade de formas espetaculares, inclusive a forte referência da Comédie Française, com alguma circulação internacional nos meios teatrais; ou a norteamericana, onde a Broadway, o cinema e a televisão de alcance mundial, são a referência central; ou a indiana, que reúne formas tradicionais diversificadas a uma prolífica indústria cinematográfica, para consumo marcantemente interno; ou a japonesa, cruzando tradições locais e de fora, e dialogando internacionalmente em meios restritos; ou mesmo a identidade brasileira, de um forte teatro profissional, concentrado no eixo Rio/São Paulo, onde também se concentram as produções televisivas, com alguma inserção internacional. 247

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Podemos afirmar, sempre aqui preliminarmente, para questionarmos essas afirmações ao longo de um projeto de pesquisa que se inicia, que o teatro baiano é múltiplo e diverso, embora constitua uma rede de artistas e produtores fortemente interligados e dependentes do Estado. Podemos também lembrar: • Que a história do teatro mostra diálogos paradoxais entre artistas e políticos – o que ocorre também na Bahia; • Que déspotas, mais, ou menos, esclarecidos, financiaram Aristófanes, Shakespeare e Molière; • Que o nacionalismo integralista brasileiro dos anos 1930 gerou um autoritarismo ético e estético, num verde-amarelismo ameaçador para a liberdade e os direitos humanos; • E que os movimentos de busca da raiz e abertura à novidade se alternam e, às vezes, até se confundem, em nosso caso, na permanente reelaboração da baianidade. Esta baianidade, por tradição histórico-geográfica, constitui-se em baía portuária de fluxos e refluxos, em cena transcultural de entrada de influências externas e saída de influências internas, correndo pouquíssimo risco de repetir a postura fascista da cultura brasileira dos anos 1930. Mas é possível que alguns intelectuais e políticos baianos, mesmo entre os de maior porte e monta, desenvolvam posturas autoritárias sobre os saberes populares tradicionais e atitudes intolerantes em relação aos novos aportes culturais estrangeiros. Preferimos outra postura intelectual e política, mais próxima do senso comum, do homem sem qualidades excepcionais, da dinâmica transformadora da cultura popular e da constante transculturação em nível mundial. De modo perverso – por outra via – podemos pensar que exista em Salvador uma criatura caracterizada de modo aproximado com uma baiana tradicional e exercendo seu ofício, que seja de opção religiosa evangélica e que associe o candomblé ao inferno. Podemos também 248

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pensar que essa “falsa baiana”, ou um educador do Projeto Axé, um padre carismático, um espírita, um budista, uma prostituta, um turista do sexo, um policial, um ladrão, um político da situação, outro da oposição, um milionário, um mendigo, um artista, um estudante, um pesquisador, uma vez que se autoidentifiquem como baianos, estarão participando da comédia e do drama da construção da baianidade. A comédia faz rir, o drama – nos – faz corar e chorar de vergonha com os disparates socioeconômicos do panorama histórico e contemporâneo da Bahia. Isso é o melodrama da baianidade barroca. E é possível – provável, a nosso ver – que ela coopere para a melhoria de renda, das condições de trabalho e da qualidade de vida dos baianos, reduzindo aqueles vergonhosos indicadores. Essa esperança faz parte da profecia de autoimagem da baianidade, na perspectiva que aqui defendemos e que compreende a diferença de tantos “seres” e “estares”.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

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Matrizes Estéticas: o espetáculo da baianidade*1

A noção de matriz estética que dá título a esta palestra tem como base a ideia de que é possível definir-se uma origem social comum, que se constituiria, ao longo da história, numa família de formas culturais * Publicado originalmente em BIÃO, Armindo et al.. Temas em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade. 1ª. ed. São Paulo: Annablume, 2000. p. 15-30. v.1. 1 O presente texto é resultado parcial de um projeto integrado de pesquisa desenvolvido no período de agosto de 1997 a julho de 1999, que gerou inúmeros bancos de dados sobre espetáculos de teatro e de dança produzidos por 12 grupos de artes cênicas na Bahia, além de análises, relatórios, publicações, duas dissertações de mestrado e um novo projeto integrado de pesquisa, intitulado Etnocenologia no Nordeste: Dramaturgia e encenação (para o qual este texto constitui um termo de referência), sempre com financiamento da CNPq, a quem devo sinceros agradecimentos. Intitulado Etnocenologia, culturas e ence-nação na cidade da Bahia, o primeiro projeto integrado de pesquisa que tive a honra e o prazer de coordenar, contou com uma grande equipe: docentes do Programa de Pós--Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia - os doutores Sérgio Farias, Leda Iannitelli, Suzana Martins, Ciane Fernandes e Ewald Hackler; e os pesquisadores do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade - GIPE-ClT, também da UFBA- particularmente os bolsistas de aperfei-çoamento Ana Luiza Friedmann, Cleverson Suzart e Urânia Maia - e os bolsistas de Iniciação Cientifica André Mustafá, Cecília Ferreira, Renata Duarte, Tatiane Canário, Iara Vilaça, Dilson Costa, Zaida Amade e Marconi Araponga, todos esses, alunos dos cursos de graduação das escolas de teatro e de dança da UFBA, a quem também devo calorosos agradecimentos. Agradeço ainda aos colegas participantes dos ciclos de palestras do GIPE-CIT (de 1998 e 1999) e a meus alunos de etnocenologia no PPGAC/UFBA (em 1997.2, 1998.2 e 1999.2), que muito contribuíram com seus comentários e reflexões para as conclusões aqui apresentadas, a respeito de um dos objetivos originais do projeto, a caracterização da baianidade. Escrito a partir de uma palestra (gravada em fita magnética e transcrita pela bolsista de Iniciação Científica do GIPE-CIT Juliana Gutmann, estudante de graduação da Faculdade de Comunicação da UFBA), este texto encontra-se copiosamente repleto de notas (35), que dão conta, por um lado, das inúmeras digressões que ocorreram quando da realização da palestra e, por outro lado, de indicações bibliográficas e detalhes informativos sobre o panorama das artes e do espetáculo na Bahia, visando a assegurar, paralelamente, a ambiência da oralidade original e a compreensão mais completa possível da temática tratada, bem como sua relativa atualização (a palestra que foi proferida em abril de 1998), esperando que seus leitores relevem a eventual dificuldade de leitura que essa opinião poderá acarretar. Considerando a amplitude da temática e de sua abordagem, bem como as condições em que foi elaborado (revisão da transcrição de uma palestra), esse texto será objeto, no médio prazo, de uma reedição revisada e ampliada.

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aparentadas, como se fossem “filhas de uma mesma mãe”, identificadas por suas caracerísticas sensoriais e artísticas, portanto estéticas, tanto num sentido amplo, de sensibilidade, quanta num sentido estrito, de criação e de compreensão do belo. Esse duplo e interligado entendimento, digamos, matrilinear, inscreve-se na tradição filosófica alemã do século XVIII, cujos padrinhos seriam Emmanuel Kant (1724-1804), com sua estética transcendental, e Alexander Baumgarten (1714-1762), com sua concepção de estética como ciência do belo. Inicialmente, e em última instância, nossa matriz estética maior é a humana, em geral, e mais largamente ainda a da vida animal, que nos engloba e compreende. A matriz divina – ou sagrada – já se trata de uma referência interna à multiplicidade dos discursos humanos, e não a consideraremos aqui, no momento. Nossa muito ambiciosa intenção é a de definir as características fundamentais que dão sustentação às artes do espetáculo – e à cultura em geral como um todo – na Bahia contemporânea, a partir da identificação das matrizes estéticas que lhe deram consistência, singularidade e capacidade de comunicação em níveis local, regional, nacional e internacional. Assim, tentaremos no âmbito dessa palestra definir o que seria a baianidade. Para configurarmos um conjunto de matrizes estéticas que, em contato de transculturação entre si, definiriam as artes baianas do espetáculo, recorremos a uma proposição norte-americana dos anos 60, de uma disciplina voltada para o estudo dos usos do espaço e dos sentidos em situação de comunicação em diferentes culturas, que seria a proxêmica.2 E isto visando a contribuir para a construção de uma etnociência das práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados, que seria a etnocenologia – termo forjado em Paris em 1995 e motivo da realização

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Sugestão do antropólogo de Palo Alto (EUA) Edward T. Hall, 1966.

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de três colóquios internacionais (Paris, França/ 1995, Cuernavaca, Morelos, México/ 1996 e Salvador, Bahia, Brasil/ 1997).3 A partir de pesquisas de campo em diversos países, em três continentes, Edward T. Hall estabelece um quadro comparativo de classificação de distâncias progressivamente mais amplas (íntima, pessoal, consultivo-social e pública) e de comunicação sensorial, numa gradação até os tabus (percepção olfativa em espaço consultivo-social, por exemplo), sendo cinco, os níveis de percepção: sinestésico, térmico, olfativo, visual e oralauditivo. O quadro é detalhado e contém marcos precisos em metros e centímetros (HALL, 1966, p.126-7). Esse autor demonstra que, nas culturas de regiões tropicais e litorâneas, como, de um modo muito geral e correndo o risco da generalidade inespecífica, as latinas, a faixa de variação em termos de distância pessoal confortável seria maior que em outras culturas, como as anglo-saxônicas, por exemplo. Os italianos e os franceses (mediterrâneos), em comparação com os ingleses e os alemães, segundo o antropólogo, tocam-se muito mais e suporta uma maior proximidade interpessoal. Que diria ele se, na Bahia, ou mais extensamente no Nordeste brasileiro, recebesse, como cumprimento, “um cheiro”? Em registro semelhante ao da proxêmica, mas produzido nos anos 80, entre a Europa e o Oriente, um estudo comparativo das sensibilidades francesa e japonesa centrado em questões urbanísticas e linguísticas é

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Uma primeira obra em língua portuguesa dedicada a essa questão foi publicada pela editora Annablume (São Paulo, 1998): Etnocenologia textos selecionados. Os anais do I Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, realizado em São Paulo de 15 a 17 de setembro de 1999, publicados em Memória Abrace 1 (Salvador: Abrace, 2000), trazem também uma comunicação de nossa autoria dedicada aos aspectos epistemológicos e metodo1ógicos do que poderá vir a ser uma cenologia geral, constituída na interface das ciências da vida (o universo semântico da biologia, as ciências cognitivas) / do homem (no sentido clássico da antropologia como estudo sistemático do homem, na linhagem de Kant e de Claude Lévi-Strauss, compreendendo a filosofia, a sociologia do conhecimento e a hermenêutica) / da arte (a estética).

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belamente oferecido pelo geógrafo Augustin Berque, para quem os jardins de modelo francês e também inglês (como é o caso, na Bahia, da praça Dois de Julho, o Campo Grande) são feitos para o deleite, primordialmente, da visão, enquanto os jardins japoneses apelariam para um espectro sensorial mais abrangente, com seus obstáculos à perspectiva visual de grande alcance, criando amplas possibilidades de zonas de sombra e de correntes de ar para o gozo sinestésico e térmico, em primazia.4 Aí também a olfação, segundo o intelectual francês, teria um papel mais importante a desempenhar. Vale salientar, ainda, a estreita associação entre visão e razão, o que poderia nos levar a afirmar que os jardins da Europa ocidental seriam mais “racionalmente organizados” que os japoneses (ou, arriscaríamos afirmar, mais ainda que as roças dos terreiros de candomblé na Bahia), esses (em ambos os casos) mais organizados em função da imaginação, do simbólico e da vivência multissensorial. Tendo como variantes aspectos linguísticos e religiosos, geográficos e climáticos, poderíamos, por enquanto, pensar em uma matriz estética baseada na oralidade e em outra baseada na comunicação escrita. Esta última, por sua vez, poderia ser subdividida em duas matrizes, uma tendo como referência a escrita definida – grosseiramente – como fonética (que, derivando fundamentalmente do grego clássico, passaria pelo latim, gerando, entre outras línguas, o português), outra tendo como referência formas de língua escrita que não reproduziriam – histórica e integralmente – a língua falada (o árabe, o japonês e o hebreu, por exemplo). A matriz da oralidade, que identifica o conjunto de línguas africanas e ameríndias que formaram a baianidade contemporânea (associadas evidentemente ao português), têm em comum com a matriz da comunicação escrita não totalmente fonética o envolvimento multissensorial necessário à comunicação, no qual se valoriza: • a olfação, a audição e o tato (enquanto a matriz greco-latina privilegiaria o sentido da visão); 4

Ver BERQUE, 1982 e também 1986.

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• a dominância do passado, em termos de temporalidade referencial, nos processos de educação formais e informais (enquanto que a matriz greco-latina privilegiaria o futuro);5 • a convivência – sem hierarquias – de uma grande multiplicidade de formas espetaculares (enquanto a matriz greco-latina criaria uma nova forma espetacular exemplar, o teatro, baseada na ideia de uma construção especial para sua realização num espaço construído em função do olhar do espectador); • um funcionamento aparentemente mais equilibrado – ou, melhor dizendo, talvez menos especializado – dos hemisférios cerebrais humanos (enquanto a matriz greco-latina tenderia a privilegiar o hemisfério cerebral esquerdo como espaço da racionalidade linear). É fato que as novas tecnologias de comunicação, reintroduzindo ícones na comunicação visual “escrita” corrente, que a distanciariam de uma matriz fonética exclusiva, em todo o mundo contemporâneo conectado em redes, vêm revalorizando o multissensorial e favorecendo uma espécie de presenteísmo.6 Mas, se pensamos nas matrizes estéticas formadoras da cultura baiana contemporânea, antes do surgimento das telemáticas

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KERCKHOVE, Derrik de, do Instituto McLuhan (Toronto, Canadá), no ensaio sobre a drama-turgia grega e suas formas correlatas de temporalidade “Synthèse sensorielle et tragédie: l’espace dans Les Perses d’Eschyle” (1983: 69-83), desenvolve a ideia de que o século V a. C., na Grécia, é marcado pela perspectiva humanista valorizadora da intervenção humana na história e na construção do futuro, singularizando uma matriz cultural totalmente diferente das demais suas contemporâneas. Em minha tese de doutorado Théâtralité et spectacularité - une aventure tribale contem-poraine à Bahia (Université René Descartes, Paris 5, Sorbonne, 1990), a partir de sugestões de meu orientador Michel Maffesoli, dedico muitas páginas a esta questão, particularmente no que tange à questão da baianidade (que poderia ser compreendida como uma espécie de elogio ao aqui e ao agora, um hedonismo feito, simultaneamente, de preguiça, trabalho e festa). Ver também, a propósito do presenteísmo contemporâneo, MAFFESOLI, 1979.

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globalizantes, aliás, já perfeitamente incorporadas à baianidade,7 teríamos uma equação na qual a dominância da oralidade será marcante, pois a língua portuguesa, “última flor do Lácio”, reserva historicamente ainda grande poder a oralidade na constituição da cultura lusófona. Por isso, e de acordo com o imaginário brasileiro expresso em piadas, programas de televisão e canções, por exemplo, os baianos seriam um povo dengoso (faceiro, afetado, enfeitado, requebrado, jovial, feiticeiro, efeminado, manhoso, birrento), que fala alto e cantando, que adora ver e ser visto, que se pega muito, que reconhece os lugares pelos cheiros de azeite, de sujeira e de maresia, e que cultua: o aqui e o agora; o passado, mas, sobretudo, o presente; a preguiça e a festa; as praias e as ladeiras; as pimentas (que atiçam o paladar); as figas e os balangandãs (que enfeitam e protegem); a dança, a música e todos os espetáculos; além, de, naturalmente, todos os santos. Recorrendo às matrizes religiosas, poderíamos opor a matriz católica – sobretudo a da Contrarreforma – à protestante, com base na sugestão de Max Weber (o trabalho, no mundo latino católico, como penalidade - trabajo, travail, do latim tripalium, instrumento de tortura – em oposição ao trabalho como ação no mundo anglo-saxão – work, werk). Na Bahia, a primeira, o elemento cristão fundamental e dominante, se combinou com os sistemas religiosos africanos recriados no Brasil e com os próprios sistemas religiosos nativos ameríndios, na construção da baianidade, muito através da intervenção dos jesuítas. E isso com os aportes orientais da China e da Índia, processados pelos “soldados” da

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O tradicionalíssimo candomblé Axé Opô Afonjá de Mãe Estela de Oxóssi mantém um sítio virtual disponível na internet, por exemplo. A Universidade Federal da Bahia foi uma das primeiras do país a implantar sua rede de fibra ótica, constituindo-se em importante elo de ligação dessa rede com todo o Nordeste e Norte do país.

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Companhia de Jesus,8 que implantaram a matriz católica barroca da teatralidade e da espetacularidade no Brasil. Pensando em termos geográficos e climáticos, associados historicamente, chegaríamos a uma caracterização mais precisa das matrizes estéticas definidoras da baianidade e, aí, precisaríamos identificar, pelo menos, duas dominantes principais. Uma mais típica do litoral, mais particularmente do Recôncavo baiano e, ainda mais especificamente, do complexo urbanístico de Salvador, e outra, igualmente muito ampla, mais típica do interior da terra, ainda que com muitas nuanças entre as zonas de transição da mata, do agreste e do sertão. Sobre as matrizes africanas já se definiram duas principais em relação ao povoamento da Bahia, uma banto (correspondendo aproximadamente à área ocupada hoje por Angola e Moçambique), outra sudanesa (correspondendo muito grosseiramente a área ocupada hoje pela Nigéria e pelo Benim), sendo que esta, por sua vez, se subdividiria ainda em duas, uma de influência árabe muçulmana e outra – majoritária – mais claramente marcada pelos sistemas religiosos dos cultos de possessão jeje e nagô.9 Todas essas matrizes africanas se cruzariam no Brasil e, mais particularmente, na Bahia – de um modo ou de outro – com as matrizes linguísticas e religiosas nativas, notadamente tupi-guaranis, mas, complementarmente, gê-tapuias, contribuindo, ao longo do século XVIII, 8

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O público que frequenta monumentos religiosos no Brasil conhece as imagens de santos católicos existentes no Museu da Ordem Terceira do Carmo, em Cachoeira, no Recôncavo baiano, que se singularizam por seus traços fisionômicos claramente reconhecíveis como orientais (chineses? japoneses?). Há também inúmeros exemplos no Brasil, sobretudo no Nordeste e nas cidades históricas de Minas Gerais, de “chinoiseries” encontrados em objetos trazidos pelos portugueses (leques, pentes, porta-joias, porcelanas, etc.) e em elementos transculturais da decoração de templos barrocos do litoral e da zona da mata nordestina e do interior de Minas. Para que se possa superar essa nossa grosseira simplificação, poderíamos recorrer a uma já copiosa bibliografia. Um bom ponto de partida poderia ser o número 3.170 da coleção francesa Que sais-je, intitulado La civilisation afro-brésilienne (1997). Ver também LIMA, 1977.

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para a substituição da chamada “língua geral” – de base tupi-guarani – pelo português, que seria a língua comum dos africanos e de seus descendentes no Brasil, por eles difundida por todo o país. A matriz portuguesa, subconjunto por sua vez de uma muito maior matriz ibérica, associaria matrizes celtas, visigodas, judaicas e latinas (pagãs e cristãs) às matrizes árabes muçulmanas (durante séculos presentes de modo dominante na península do sudoeste europeu). Na Bahia, a matriz africana seria dominante no litoral, sobretudo em Salvador e em sua zona imediata de influência, o Recôncavo, enquanto as matrizes ibéricas e nativas predominariam no sertão, sempre em contato dinâmico com correntes migratórias internas e externas ao país. O teatro, associado à matriz greco-latina, e a seu desdobramento católico medieval, chega com força na terra fértil baiana com os jesuítas e sua preocupação catequética, ao longo dos séculos XVI e XVII, misturandose às formas espetaculares de dança, música e rituais indígenas e, inicialmente, em menor grau, também africanas. É a conformação do estilo barroco que, de fortes marcas espanholas e italianas, daria espaço social mais amplo à prática teatral e mesmo ao surgimento de uma possível identidade brasileira – e baiana –, marcada pelas grandes festas públicas espetaculares, entre os séculos XVII e XVIII.10 Com o processo de urbanização no Brasil, e de expansão internacional do iluminismo, no século XIX, uma influência francesa se faria sentir, deixando profundas marcas no teatro brasileiro – e baiano – até hoje.11 10

O catálogo da exposição “Brésil baroque, entre ciel et terre”, realizada no Petit Palais, em Paris, de 4 de novembro de 1999 a 6 de fevereiro de 2000, traz uma importante seleção de ensaios sobre o estilo barroco como fundador de culturas e sobre a influência da descoberta do Novo Mundo na crise do racionalismo renascentista que geraria a própria constituição desse novo estilo estético/artístico e de modo de vida (Paris: Union Latine, 1999). O discurso poético e a retórica de Gregório de Matos e Guerra e de Antônio Vieira, exemplos paradigmáticos do barroco, conforme é abundantemente documentado nesses ensaios, marcariam, aliás, para sempre a baianidade. 11 A esse propósito ver Thales de Azevedo, 1985; e nossa contribuição para a publicação da Banque de Donnés France-Brésil, dedicada às relações França/Brasil, no domínio das artes do espetáculo, “L’interface théâtrale” (Bião, 1990), reeditada em Estudos Linguísticos e Literários n. 16 (Salvador: UFBA, 1994, p. 19-25).

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No século XX, com o rádio e o cinema, seria a vez de uma matriz norteamericana impor-se, cruzando-se às demais em todo território nacional – e na Bahia evidentemente também. Para completar este amplo panorama matricial, no que se refere à baianidade, faz-se necessária uma referência à matriz judaica, ibérica,12 muito presente na matriz portuguesa (e brasileira, ao longo de todo o período colonial) de modo mais ou menos difuso, mas que é hoje uma marca muito forte nas artes do espetáculo das Américas (o teatro musical da Broadway e o cinema industrial de Hollywood são testemunhas desse fato), tendo, através da influência norte-americana na cultura brasileira após a Primeira Grande Guerra e, sobretudo, após a Segunda, voltado a marcar profundamente a cultura espetacular no Brasil. No que diz respeito à cidade da Bahia de Todos-os-Santos, nosso quadro matricial panorâmico completa-se com a situação político-administrativa e portuária de Salvador (em cuja “larga barra tem entrado”, desde o século XVII, de acordo com Gregório de Matos e Guerra, “tanto negócio e tanto negociante”). Fundada em 1549, sobre antigas aldeias tupinambás e nas imediações das vilas velhas de Catarina Paraguaçu e do capitão donatário Francisco Pereira Coutinho, que a viria a incorporar em seu tecido urbano, a cidade se configurou num entreposto de tradições, novas tecnologias e economia de mercado, uma verdadeira encruzilhada de artes, ofícios, etnias, religiões, línguas e ideias.13 12

Sobre os judeus sefarditas marranos (termo que, no Brasil, adquiriu conotação pejorativa) e novos-cristãos da Península Ibérica, ver os cinco ensaios de Yosef H. Yerushalmi (1998), da Columbia University. 13 O espiritismo positivista (novidade francesa que se queria filosofia de bases científicas e consequências religiosas), por exemplo, hoje tão mais popular no Brasil que em sua pátria de origem, cuja primeira obra publicada data de 1857 (Le livres dos espirits), já aparece no Recôncavo baiano em 1865, em Mata de São João, na forma de um Grupo Familiar de Espiritismo, dirigido por Luiz Olímpio Teles de Menezes (ver “Almanaque de Armindo Jorge Bião”, in Verbo Encantado, outubro de 1971). Em livro autobiográfico, o compositor, crítico e produtor musical carioca Nelson Motta (2000), relata sua surpresa quanto à insuspeita – para ele – cultura cinematográfica e musical do jovem Caetano Veloso, que acabava de conhecer em meados dos anos 60, quando da primeira viagem deste ao Rio, acompanhando sua irmã Maria Bethânia, então debutando em carreira nacional.

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A primeira gravação fonográfica brasileira, feita no Rio de Janeiro, no início deste século, registra a canção “Isto é bom”, do ator e músico mestiço baiano do século XIX Xisto Bahia, gravada pelo cantor Baihano, natural de Santo Amaro da Purificação, a mesma cidade onde nasceria Caetano Veloso. Se a esse pequeno exemplo de boas relações entre tradição, novas tecnologias e comércio somarmos as invenções tecnológicas do trio elétrico e do cinema novo baiano nos anos 50 e, mais ainda, a criação do tropicalismo de Caetano, Gilberto Gil, Tom Zé e outros, no final dos anos 60, teremos uma configuração cultural singular e única, que definiria a baianidade, que procuramos aqui identificar.14 A baianidade seria essa forma claramente mestiça, que associa tradição, novidade tecnológica e comércio. Uma cultura “novidadeira” e criadora de novidades, já desde o século XVII, quando a Bahia teria exportado para Portugal a “fofa”, que, segundo José Ramos Tinhorão (1988), daria origem ao fado português.15 Nesse contexto, o teatro desenvolveuse como urna forma espetacular quase sempre anacrônica, como costuma ocorrer praticamente em todo o mundo, enquanto a música, tanto a popular quanto a erudita das mais diversas matrizes estéticas, e até mesmo a dança de caráter erudito e de matriz estética expressionista

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Inúmeras obras que se reportam à cultura brasileira dos anos 60 registram o escândalo nacional provocado pelo tropicalismo, que integrou a guitarra elétrica e o rock’n roll de matriz norte-americana à música popular brasileira (ver, por exemplo, Motta, 2000, citado na nota anterior). Sobre o trio elétrico, ver Góes, 1982, ampliado com muitas fotografias e reeditado pela Copene em 2000. Os cineastas baianos Glauber Rocha e Roberto Pires ficaram famosos com seus filmes e suas invenções de material e de técnicas de filmagem. 15 Já o antropólogo francês Michel Agier (2000) fala de uma “inventividade sempre renovada da ‘baianidade’” – eu traduzo. Sobre o interesse francês por essa inventividade, a baianidade e sua negritude, ver também Franck Ribard, Le Carnaval Noir, 1999, e a nova edição da obra clássica de Roger Bastide, Le Candomblé de Bahia (Rite Nagô), com prefácio de Fernando Henrique Cardoso e introdução de Jean Duvignaud. Sobre baianidade e negritude ver ainda Bacelar, 1989, Risério 1993, e Dantas, 1994.

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europeia e moderna – e pós-moderna – norte-americana acompanhariam mais de perto a dinâmica cultural típica da baianidade.16 É fato que, hoje em dia, companhias teatrais baianas de grande sucesso, local e nacional, como a Companhia Baiana de Patifaria17 ou o grupo do espetáculo Os cafajestes,18 ou ainda o grupo Los Catedrásticos,19 com ênfase no humor e na musicalidade, se aproximariam mais claramente de um

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A propósito, ver Antonio Risério, 1995, sobre a ambiência cultural na qual se formaram os jovens artistas Glauber Rocha e Caetano Veloso, quando da criação das escolas de arte da Universidade da Bahia, nos anos 50. Yanka Rudzka, criadora da Escola de Dança, coreografou ritmos do candomblé; Martim Gonçalves (homem do teatro) realizou, conjuntamente com Lina Bo Bardi (artista plástica, curadora de exposições) e Vivaldo da Costa Lima (antropólogo), importante exposição sobre as artes da Bahia no Museu de Arte de São Paulo, também nesse período, que vai aproximadamente de 1955 a 1960, considerado como os anos dourados das escolas de arte da Bahia. Desde 1998, as escolas de teatro e de dança da UFBA, através de seu Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, lideram a implantação e consolidação da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas - Abrace. As escolas de música e de belasartes também continuam a ser referência nacional em sua área. 17 Um espetáculo dessa companhia, A bofetada, se encontra em cartaz há mais de dez anos, com grande sucesso em Salvador, no Rio de Janeiro, em São Paulo e outras capitais e cidades de todo o país. Nele, quatro atores exploram ao máximo o humor de homens travestidos. Na mesma linha de trabalho, a companhia se apresentou em Nova York com outro espetáculo, adaptado do repertório do teatro musical norte-americano (Nun Sense), com o qual obteve grande sucesso também em todo o Brasil (Fernando Marinho recebeu da Associação Paulista de Críticos Teatrais o Troféu de Melhor Ator por seu trabalho nesse espetáculo). 18 Com texto de Aninha Franco e direção de Fernando Guerreiro, o mesmo diretor de A bofetada, este espetáculo utiliza, como material dramatúrgico, musicais e ditados brasileiros de caráter machista, desconstruindo o preconceito. Recebeu o prêmio de Melhor Espetáculo de 1996, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e continua em cartaz em tournées constantes pelo país. 19 Uma brincadeira, desenvolvida por atores da Escola de Teatro durante uma greve em 1989, com dramaturgia original de Cleise Mendes e direção de Paulo Dourado, Los Catedrásticos realizaram o primeiro Recital da novíssima poesia baiana, explorando o humor de um jogral pretensamente sério, utilizando letras de música carnavalesca da Bahia ao lado de poesias mais, digamos, eruditas, como as de Gregório de Matos. Os espetáculos do grupo continuam em cartaz, circulando pelo país e atualizando seu repertório e forma de encenação.

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teatro que poderia ser considerado tipicamente baiano. O Bando de Teatro Olodum,20 o primeiro, desde os elencos profissionais mestiços com predominância negra do século XIX que proliferaram no Brasil,21 a reunir um elenco e – apenas no seu caso – também temáticas, marcantemente negras, contribuiria para a criação de um teatro com a cara, o espírito e o corpo mais tipicamente baianos. Negritude, muito humor e autorreferências22 identificariam assim a baianidade e o próprio teatro mais evidentemente característico dessa cultura. As escolas de teatro e de dança da Universidade Federal da Bahia, desde os anos 50, desempenhando seu papel de centros de formação de profissionais, de criação e difusão de conhecimentos novos, incluiriam no pano-rama geral das artes cênicas baianas um forte elemento de ligação com as atuais tendências do teatro e da dança em todo o mundo, contribuindo para dotar a Bahia de um movimento artístico dinâmico, plural e diversificado.23 Terceira cidade do Brasil em população e em movimentação de espetáculos de teatro e dança, Salvador dispõe de cerca de 25 salas de espetáculos e de cerca de dez outros espaços culturais usados regularmente para a apresentação de montagens teatrais e de dança. Com uma média anual 20

O Bando estreou em 1991 e é hoje um dos grupos residentes do recentemente refo rmado e ampliado Teatro Vila Velha, dirigido por Márcio Meirelles, Chica Carelli e Ângela Andrade. O Bando, assim como os outros três grupos anteriormente citados, têm feito temporadas de grande impacto também fora da Bahia. Ver Meirelles et al., 1995. 21 Ver, a propósito, nosso texto “Teatro e negritude na Bahia” (Meirelles et al., 1995: 15-21), 22 As peças do Bando tematizam, constantemente, a vida cotidiana da população afrobaiana; Los Catedrásticos usam a música popular baiana como material dramatúrgico de referência; a Escola de Teatro da UFBA celebrou, em 1996, seus 40 anos de existência com a produção do espetáculo A casa de Eros, texto de Cleise Mendes, direção de José Possi Neto, ex-diretor da Escola, tendo como referência a criação da própria Escola e a gestão de seu primeiro diretor, Eros Martins (Martim) Gonçalves. 23 Criadas em 1955, começaram a funcionar em 1956. Mantêm cursos de graduação para atores, diretores, dançarinos e professores de teatro e de dança, de especialização em coreografia (momentaneamente interrompido), além de mestrado e doutorado em artes cênicas. Referências nacionais – mesmo até internacionais –, essas escolas produzem cerca de 20 espetáculos por ano, dentro das mais variadas tendências.

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de cerca de 100 novas produções (60 de teatro para adultos, 20 infantis e 20 espetáculos de dança), das quais um quarto de caráter didático ou amador, cujas temporadas duram, numa média global, um mês, geralmente de quinta-feira a domingo, a cidade recebe constantemente espetáculos nacionais e estrangeiros em excursão. O Teatro Castro Alves (um dos maiores e mais bem equipados do país), anualmente, e institutos estrangeiros como o Goethe Institut, a Alliance française, ou a Cena Lusófona, por exemplo, promovem, eventualmente, a vinda de diretores e de outros profissionais da cena para participarem da produção de espetáculos na Bahia.24 No entanto, na perspectiva etnocenológica que é a nossa, o conjunto das artes do espetáculo na Bahia compreenderia não somente os espetáculos profissionais e amadores de teatro e de dança, mas também os espetáculos amadores e profissionais de música (estes compondo o subconjunto que movimenta o maior volume de recursos financeiros e o público mais numeroso), os eventos lúdicos que se encontram na interface profano/ sagrado (festas populares de largo, micaretas, carnaval) e os rituais públicos mais especificamente religiosos (procissões católicas, rituais públicos do candomblé, cultos evangélicos e espíritas), transbordandose daí para os campos do esporte, da política e até mesmo do lazer na vida cotidiana (como a frequentação de praias, por exemplo), nos quais a musicalidade e os jogos corporais coreográficos e de papéis sociais encontram espaço e tempo. Como figuras emblemáticas dessa baianidade espetacular, poderíamos pensar nos compositores cantores artistas do espetáculo Caetano Veloso e Carlinhos Brown, por exemplo, modelos “ideal-típicos” perfeitamente identificados com a matriz baiana litorânea de Salvador e de seu Recôncavo, com uma relação estreita com as novas tecnologias, as tradições, a tolerância, o mercado, o humor e um amplo espectro libertário de ideias. Glauber Rocha, por sua vez, poderia ser uma figura emblemática da matriz do interior, do sertão e do agreste, com um caráter mais 24

Sobre o teatro baiano, ver FRANCO, 1994.

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conser vador que o de seus conterrâneos praianos, embora progressivamente cada vez mais ousado formalmente – mais, até, aliás, que tematicamente. Para efeitos de comparação com uma matriz próxima, embora radicalmente diferente, a pernambucana, poderíamos pensar em Ariano Suassuna, que, em reação ao tropicalismo liderado pelos baianos no final dos anos 60, com a participação de artistas do Rio de Janeiro (Hélio Oiticica) e de São Paulo (José Celso Martinez Correia), proporia um outro movimento artístico-cultural que ele denominou armorial, mais restrito ao Nordeste e mais apegado às matrizes ibéricas, de caráter autoritário, conservador, intolerante e de pouco humor.25 Procurando, mais uma vez, definir matrizes estéticas com base em dados históricos, geográficos, linguísticos e religiosos, e até correndo o risco de desagradar amigos e artistas a quem muito admiro, poderíamos estabelecer alguns elementos dessa comparação entre a baianidade e o que seria uma possível identidade pernambucana:26

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O artista e pesquisador nordestino Antonio Cadengue, em seu artigo “Educação pela máscara: recortes de uma genealogia de Antonio Nóbrega” (in Folhetim 5, 1999) sobre Antonio Nóbrega e Ariano Suassuna, ambos artistas criadores de grandes obras de enorme valor estético e sociocultural, define muito bem esse caráter conservador, autoritário e intolerante revelado no discurso desses dois importantes artistas. Caetano Veloso e Carlinhos Brown, ambos constantemente exercitando o discurso provocativo (ainda bem recentemente, a propósito de seu recém-recebido prêmio Grammy, Caetano declarou à imprensa brasileira que criticara negativamente seu disco Livro, com o qual fora premiado, que o Brasil já levara o tri e a Bahia, o bi; Brown ficou nu em cima de um trio elétrico no carnaval de 1998) e também grandes artistas, criadores de importantes obras, responderiam pelo contrário dessa matriz pernambucana, podendo ser definidos como marcos da baianidade. 26 Agradeço ao colega Pierre Le Queau (Universidade René Descartes, Paris V, Sorbonne), que generosamente compartilhou reflexões a propósito dessas questões, quando da revisão da primeira versão desse texto, estimulando e contribuindo para a clarificação de algumas de minhas primeiras intuições comparativas a esse respeito. Agradeço, igualmente, à colega Ângela Andrade (Universidade Federal da Bahia), que, também generosamente, compartilhou reflexões sobre as questões mais polêmicas contidas neste texto. 264

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• o feminino Bahia e o masculino Pernambuco podem nos fazer pensar em uma forma linguística que indicaria maior receptividade (aberta à penetração) - a primeira - em relação à outra que estaria mais associada à agressividade e à posição sexualmente mais ativa, de aptidão para penetrar; • a cidade de Salvador da Bahia de Todos-os-Santos, muito conhecida também como Bahia (cidade da Bahia), remete à forma geográfica marítima côncava (da baía que lhe dá nome, estendendo-se linguisticamente – e geograficamente - à expressão de Recôncavo baiano), aberta, enquanto a cidade do Recife remete aos arrecifes que protegem o litoral da cidade, fechando-a (a cidade de Olinda, com sua expressiva forma linguística feminina designando a beleza da ambientação, não chegou a ser identificada como capital de Pernambuco); • a capitania de Pernambuco foi mais próspera que a da Bahia, ou a de Ilhéus e a de Porto Seguro, que corresponderiam ao que hoje é o Estado da Bahia, mas foi na da Bahia que o governo colonial foi instalado, transformando a região da Bahia de Todos-os-Santos (assim denominada por Américo Vespúcio em primeiro de novembro de 1501) no centro cultural, comercial e político da colônia; • a mais longa ocupação do território brasileiro, no período colonial (pela Holanda, de 1630 a 1654), foi centralizada em Pernambuco, que se transformou em centro de resistência e reação; aí, num fenômeno excepcional na colonização holandesa, o país conheceu o mais tolerante dos sistemas políticos em relação à liberdade religiosa de sua época, tendo judeus, católicos e protestantes, então, ampla liberdade de expressão e prática, ficando, assim, ainda que momentaneamente, a tolerância associada ao elemento invasor; • sede da Confederação do Equador, que pretendia a independência de parte do Nordeste brasileiro do resto do país, Pernambuco, uma vez derrotada essa pretensão, teve parte de suas terras transferidas para o domínio baiano, gerando um sentimento histórico de perda e de injustiça; 265

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• a divisão geográfica (geopolítica) do país, durante certo tempo, situava a Bahia como parte da região Leste, ficando Pernambuco como centro do Nordeste já então e ainda hoje, mesmo após a revisão dessa distribuição geográfica, que passou a incluir a Bahia no Nordeste; Recife continua sediando os principais escritórios nacionais e consulados estrangeiros da região (como a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, a famosa SUDENE, e o Consulado Francês, por exemplo). Esses elementos de comparação não são aqui apresentados no sentido de se opor uma matriz, eticamente ou esteticamente, mais importante, a outra menos importante, mas no sentido de contribuir para a caracterização da baianidade, um dos objetivos originais de nosso projeto integrado de pesquisa, ao qual me refiro na nota 1 deste texto. Ambas as matrizes estéticas, a pernambucana e a baiana, compõem o riquíssimo mosaico da cultura brasileira. E identidades só podem ser definidas em relação a alteridades. Só para citar dois fenômenos de referência à matriz pernambucana na cultura espetacular baiana (que adora divulgar as múltiplas influências que recebe), poderíamos lembrar que a música de trio elétrico, de acordo com o discurso de seus criadores e grandes divulgadores (Dodô e Osmar, Morais Moreira e Caetano Veloso), seria urna mistura do frevo pernambucano com a marchinha carioca. Aliás, a música emblemática de Morais Moreira a esse respeito contribuiu para a divulgação nacional do grupo carnavalesco pernambucano As Vassourinhas, que visitou o carnaval de Salvador em 1949 – “Varre, varre, varre, vassourinha, varreu um dia as ruas da Bahia[...]” –, inspirando Dodô e Osmar para a criação do trio e da guitarra baiana. No campo especificamente do teatro, é de bom alvitre lembrar que a Escola de Teatro da Universidade da Bahia foi criação do artista plástico, médico e diretor teatral pernambucano Martim Gonçalves, que dirigiu esta Escola por cerca de cinco anos, contribuindo, de modo definitivo, para a circulação das mais contemporâneas matrizes do teatro universal nesse Estado. 266

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Também no sentido de alegre empatia, mas na direção inversa, de referência à cultura baiana na cultura acadêmica pernambucana, poderíamos citar dois exemplos. O primeiro, do mestre Gilberto Freyre, que, apresentando Casa grande e senzala, informa – e agradece – da feliz e propiciatória acolhida – para si e para sua obra – que recebeu na Bahia, e que, mais adiante, nesse mesmo livro, desenvolve comentários comparativos sobre os baianos e as populações do “extremo Nordeste”, buscando nas origens étnicas dos negros transportados para cada uma das regiões razões que explicariam porque a Bahia, mais que o Recife, seria tão dada a opções estéticas, lúdicas e sensuais.27 O outro exemplo é o da belíssima dissertação de mestrado em antropologia, defendida e aprovada com distinção na Universidade Federal de Pernambuco, em 1999, da autoria de Márcia Virgínia Bezerra de Araújo, intitulada Meu corpo é um templo, minha oração é a dança – dimensões étnicas, rituais e míticas na Companhia de Dança Balé Teatro Castro Alves. Arte-educadora e dançarina, a autora desse trabalho, que deverá ser publicado em breve pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, revela, em seu esplendor, essa opção estética, lúdica e sensual da baianidade, à qual se referia Gilberto Freyre.28 À guisa de conclusão, gostaria de me referir à licenciosidade presente na poesia do “boca do inferno” Gregório de Matos, no lundu, dança e ritmo de grande expressão nos palcos baianos do século XIX (a atriz e cantora Joana Castiga chegou a ser proibida de se apresentar com seus lundus no Teatro São João),29 licenciosidade também muito presente em boa parte da música popular baiana contemporânea.30 Radicalizando os 27

Ver essa obra clássica sobre a formação da cultura brasileira, e particularmente da cultura nordestina, sobretudo na página 402 da edição José Olympio de 1964 (original de 1933). 28 Tive a honra e o prazer de participar do exame dessa dissertação, a convite de sua autora e de sua orientadora Danielle da Rocha Pita. O trabalho tem como horizonte teórico a antropologia do imaginário de Gilbert Durand e a sociologia do atual e do cotidiano de Michel Maffesoli. 29 Ver, a propósito, RUY, 1959. 30 Ver, a esse propósito, meu artigo “Obsceno em cena, ou O Tchan na boquinha da garrafa”, in Repertório Teatro & Dança I (Salvador: PPGAC/ GIPE-CIT/ UFBA, 1988, p. 23-26).

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mimodramas sexuais encontráveis em certas danças africanas, recriadas na Bahia, produzindo modos/ modas de corpo e dança de grande penetração no mercado do entretenimento, valorizando o ritmo, a musicalidade e as autorreferências,31 a Bahia se transformou em marco fundamental do imaginário brasileiro (a ala das baianas é obrigatória nas escolas de samba do Rio de Janeiro, por exemplo), encontrando-se presente num sem número de letras da música popular do país e sendo considerada como berço da religiosidade, da musicalidade e da identidade nacionais. Talvez uma protoideia de baianidade tenha surgido entre 1580 e 1640, quando a cidade de Salvador começava a se consolidar como a maior metrópole de todo o hemisfério sul do planeta e Portugal era dominado pela Espanha. Talvez date dessa época a criação de um adjetivo pátrio que viria a definir a identidade baiana, sobre o fato de constituir-se esse locus em singular nó da rede de relações culturais entre a Europa, as Américas, a África e o Oriente. De fato, a baianidade parece soar bem em espanhol: baianidad. Trata-se, sem dúvida, de uma identidade dinâmica já há mais de três séculos, caracterizada por suas matrizes africanas, ibéricas e ameríndias, pela troca entre elas – entre si – e todas as outras que com elas tiveram relações comerciais e artísticas, por sua posição proeminente no imaginário dos grupos culturais brasileiros, africanos e europeus que a conhecem e 31

O sucesso do que ficou conhecido nos meios de comunicação como axé music, assim como dos inúmeros grupos de pagode da Bahia, revela, através das letras de suas canções, uma presença avassaladora de referências à Bahia, em geral, e aos próprios grupos musicais que as cantam, o que se vê, de modo paroxístico, na produção do grupo de música/ dança É o tchan, originalmente conhecido como Gerasamba, por’ exemplo. Também sobre essa questão de autorreferências na produção espetacular baiana, podemos pensar no nome de artistas como Xisto Bahia, Baiano e Novos Baianos, ou na produção artística de Caetano Veloso e da Timbalada, de Carlinhos Brown, por exemplo. O humorista carioca Millôr Fernandes divulgou no famoso jornal dos anos 60 e 70 0 Pasquim a ideia de que a Bahia seria a maior agência de propaganda do país. 0 valor dessa piada poderia ser avalizado por alguns publicitários baianos de grande sucesso nacional, como Nizan Guanaes, Duda Mendonça, Sérgio Amado e Haroldo Cardoso, por exemplo.

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conheceram, e por suas funções de entreposto e de sede de poder político, comercial, cultural e religioso (Salvador foi capital do Brasil de 1549 a 1763, sendo ainda hoje sede do arcebispado primaz do Brasil; conhecida como “Roma Negra”, “boa terra” e polo turístico). Enfatizando – e buscando utilizar também aqui – o estilo autorreferencial e provocativo de uma retórica já tradicional, poderíamos afirmar que a baianidade seria essa coisa de “patifes”, de “cafajestes”, de gente que vive em “bando”, que tem “boca de inferno”, que ganha dinheiro com arte32 (num amplo leque de possibilidades, da mais cínica à mais – inicialmente – involuntária – Haroldo de Campos alertava os baianos na capa do disco Tropicália sobre essa possibilidade –, passando pelas tentativas frustradas, pela impotência de muitas iniciativas no campo do teatro e da dança, e pelo espírito aproveitador bem-sucedido), que produz trabalhos comunitários de grande aceitação,33 com um pé na escola e nas “cátedras” universitárias, outro nas margens da sociedade, trata-se de “baianada” – no sentido paulistano da palavra (fanfarrice, patifaria, entre

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0 ator Ricardo Castro mantém em cartaz no Teatro XVIII, há quase dois anos, um espetáculo no qual ele faz tudo, concepção, interpretação, direção, produção, operação de som e luz, bilheteria etc. intitulado 1,99; referência ao preço cobrado - R$ 1,99, o mais barato da cidade. Apreciado pelo público e pela crítica, o espetáculo já foi assunto do programa de televisão da Rede Globo Pequenas empresas grandes neg6cios. Ainda que não se constitua num verdadeiro “grande neg6cio”, o espetáculo radicaliza o caráter pretensioso da baianidade e sua bem-humorada e irônica relação com o dinheiro. De 1971 a 1976, no Teatro Dan Dan, na Vila Matos, eu mesmo experimentei a primeira parte dessa intuição, criando os espetáculos solo Blue marinho e Tabu. 33 O Projeto Axé, dirigido pelo educador Cesare de la Rocca, a Escola Criativa Oludum, os projetos artístico – comunitários dos grupos culturais Ilê Ayê, Malê Debalê e Araketu, o programa comunitário Tá Rebocado e a Escola de música Pracatum, ambos coordenados por Carlinhos Brown, são alguns exemplos excelentes – similares a tantos outros existentes hoje em todo o Brasil – que, utilizando as artes, se dedicam à atuação pedagógica no seio de comunidades ricas em carências de toda ordem, contribuindo, assim, para a organização da sociedade civil e para a redução das gravíssimas disparidades socioeconômicas que, infelizmente, ainda caracterizam o país. Esses trabalhos comunitários produzem arte com o valor simultaneamente ético e estético mais essencial, que a caracteriza como criação humana para a superação da dor e da desagregação social.

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outros sentidos ainda mais ofensivos e crítico-negativos registrados no Aurélio).34 Trata-se de uma nova/ velha matriz estética que se desenha no mapa cultural contemporâneo como, simultaneamente “singular e plural”,35 pretensiosa e servil, ambiciosamente inteligente e comercialmente bruta, barroca, nativa, africana, ibérica, judia, árabe, bárbara e altamente civilizada/ civilizatória, na qual o teatro é apenas um figurante. Na Bahia, o mundo é barroco e não é só um teatro, é muito mais, é um espetáculo total!

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Nosso famoso dicionário registra no verbete baianada: S. f.; I. Bras. Fanfarrice, impostura de baiano (4).; 2. Bras., S. Grupo de baianos [V. baiano (6).]; 3. Cap. queda no adversário, que se aplica, puxando-lhe a bainha das calças.; 4. Bras., S. Inabilidade em montar a cavalo ou em manejar as boleadeiras.; 5. Bras., S. Ação desleal, suja; sujeira, patifaria: Fez uma baianada comigo. Os grifos são meus. 35 Referência ao programa Bahia singular e plural, do Instituto de Rádio-Difusão Educativa - IRDEB, coordenado por Paolo Marconi, com direção de tv de Josias Pires, que vem produzindo discos e programas de televisão sobre formas de espetáculo tradicionais da Bahia e contribuindo para uma já antiga e – para mim - muito esperançosa e promissora aliança entre tradição e novas tecnologias, em tomo das artes do espetáculo, que pode funcionar no panorama da baianidade da qual tentamos aqui apresentar o perfil, como cimento comunitário e instrumento de melhoria da qualidade de vida e renda da absoluta maioria da população, realizando a boa, necessária e úti1 ética da estética.

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____. Le sauvage et I ‘artifice: les japonais devant la nature. Paris: Gallimard, 1986. BIÃO, Ar mindo. L’interface théâtrale. Cahiers du Bresil Contemporain, Paris, n. 12. 1990, p. 113-25. CROS, Laudi R. La civilization afro-bresilienne. Paris: PUF, 1997. DANTAS, Marcelo. Olodum: de bloco afro a holding cultural. Salvador: Olodum, 1994. FRANCO, Aninha. O teatro na Bahia através da imprensa: século XX (1900/ 1990'). Salvador: FCJA/COFIC/ FCEBA, 1994. GÓES, Fred. O país do carnaval elétrico. Salvador: Corrupio, 1982. HALL, Edward T. The Hidden Dimension. Nova York: Doubleday, 1966. KERCKHOVE, Derrik de. Tragique et tragédie dans la tradition occidentale. Montreal: Détermination, 1983. LIMA, Viva1do da Costa. A família-de-santo nos candomblés jejenagô da Bahia: um estudo de relações intragrupais. Salvador: UFBA, 1977. MAFFESOLl, Michel. La conquête du présent. Paris: PUF, 1979. MElRELLES, Márcio et al. Trilogia do Pelô: esta é a nossa praia; ó paí ó; bai bai pelô. Salvador: FCJA, 1995, MOTTA, Nelson. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. RlBARD, Franck. Le carnaval noir de Bahia: ethnicité, identité, fête afro. Paris L’Harmattan, 1999. 271

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O teatro na Universidade*

No Brasil, a primeira universidade a abrigar cursos de teatro foi a da Bahia, no ano de 1956, no do décimo aniversário de sua criação pelo Magnífico Reitor Edgar Santos. Para organizar e dirigir a Escola de Teatro foi convidado o médico, pintor e homem de teatro pernambucano, de formação internacional, Eros Martins Gonçalves. Durante mais de cinco anos, juntos, Edgar Santos e Martim Gonçalves (que simplificou o nome), graças à sensibilidade, inteligência e erudição, marcaram definitivamente o teatro e a cultura da Bahia. O alvoroço foi grande na imprensa local e nacional, por causa dos quatro eventos internacionais e das vinte e três produções teatrais realizadas no período (cronologia abaixo), além dos sofisticados acontecimentos sociais que então ocorriam no Palácio da Reitoria e, a partir de 1958, no Solar Santo Antônio (sede da escola, cujo início se deu nos porões da própria reitoria). O fato é que com o apoio de instituições nacionais e estrangeiras, particularmente da Fundação Rockfeller, um variadíssimo e inédito repertório de peças e técnicas teatrais, de informações artísticas e culturais de toda ordem começou a circular pela cidade. Contrariados com o evidente e entusiasmado apoio dado pelo Reitor às escolas de arte que criara, os estudantes universitários da época lideraram a reação contra a Escola de Teatro, seu diretor e toda a administração

* Publicado originalmente in: A Tarde, 8 jan. 1994. (Caderno Cultural de sábado do jornal diário); publicado também in: BOAVENTURA, Edivaldo (Org.). UFBA: trajetória de uma universidade; do centenário de Edgard Santos ao cinquentenário da Universidade Federal da Bahia; artigos, entrevistas, editoriais e notícias publicadas no jornal “A Tarde” e outros de 1994 -1996, Salvador, p. 231-234, 1999.

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acadêmica. Essa reação encontrou adeptos também na imprensa, acendeu paixões e manteve o alvoroço. A Bahia e o Brasil nunca mais foram os mesmos. Glauber Rocha e Caetano Veloso, por exemplo, foram frequentadores assíduos da escola nessa época. Com a participação de Lina Bo Bardi, Gianni Ratto, Nélson de Araújo, João Augusto, Luciana Petruccelli, Yanka Rudzka, Ernst Widmer, H. S. Koellreuller, Agostinho da Silva, Brutus Pedreira e Othon Bastos, dentre outros, formaram-se nesse primeiro momento da escola atores e diretores como Nilda Spencer, Carlos Petrovich, Sônia dos Humildes, Mário Gusmão, Helena Inês, Mário Gadelha, Jurema Pena, João Gama e Lia Mara. Cronologia 05-12.09.56 – I Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro. 11.09.56 – Na Reitoria, Recital de Poesia e Teatro Luso Brasileiro, vários autores, direção Martim Gonçalves. Nov. 56 – Santa Tereza, L’annonce fait à Marie. Paul Claudel (com o Madrigal e o grupo francês Les Comédiens de l’Orangerie), direção Martim Gonçalves e Roger Bernadel. Nov. 56 – Santa Tereza, Auto da Cananéia. Gil Vicente (ao lado do Madrigal da Universidade), direção Martim Gonçalves (primeira produção do Grupo da Escola de Teatro da Universidade “A Barca”). Dez. 57 – Pátio da Reitoria (hoje estacionamento atrás do prédio principal), O Boi e o Burro no Caminho de Belém, Maria Clara Machado, direção Martim Gonçalves (A Barca). Abr. 58 – Cruzeiro do São Francisco. A Via Sacra. Henri Ghéon (com o coro dos frades franciscanos, direção Martim Gonçalves (A Barca) (lançamento da Revista Repertório nº1). 274

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Mai. 58 – Inauguração do Teatro Santo Antônio - TST, Senhorita Júlia, August Strindberg, direção Martim Gonçalves (A Barca) (Repertório 2). Jun. 58 – TST. A Almanjarra. Artur Azevedo, direção Antônio Patino (A Barca) (Repertório 3). Set. 58 - TST. As Três Irmãs. Anton Tchecov, direção Gianni Ratto (A Barca) (Repertório 4). Nov. 58 – TST. Cachorro Dorme na Cinza. Echio Reis – Graça e Desgraça na Casa do Engole Cobra. Francisco Pereira da Silva – O Moço Bom e Obediente. Betty Barr e Gould Stevens, direção Martim Gonçalves (A Barca) (Repertório 5). Dez. 58 – Jardim da Escola de Teatro. O Tesouro de Chica da Silva, Antônio Callado, direção Gianni Ratto (A Barca) (Repertório 6). 1958 – O Rancho da Lua, folclore (Repertório 7). Mai. 59 – TST, Diálogo do Auto da Molina Mendes, Diálogo de Todo Mundo e Ninguém e Farsa do Velho da Horta, Gil Vicente, direção Martim Gonçalves (A Barca) (Repertório 10). Nov. 1959 – TST, A Sapateira Prodigiosa, Frederico Garcia Lorca, direção Martim Gonçalves (A Barca) (Repertório 11). Jun. 60 – TST, Uma Véspera de Reis, Artur Azevedo, direção Martim Gonçalves (A Barca) (Repertório 12). Set. 60 – TST, A História de Tobias e Sara, Paul Claudel, direção Martim Gonçalves (A Barca) (Repertório 13). 1960 – TST, Evangelho de Couro, Paulo Gil Soares, direção Martim Gonçalves (A Barca) (Repertório 14). 275

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

Nov. 60 – Palco do Teatro Castro Alves, A ópera de 3 Tostões, Bertolt Brecht e Kurt Weil, direção Martim Gonçalves (A Barca) (Repertório 15). Jun. 61 – Palco do TCA, Calígula, Albert Camus, direção Martim Gonçalves (A Barca). Jul. ago. 61 – III Seminário Internacional de Teatro. Jul. 61 – TST, Três Peças Modernas Japonesas, Shigan Naoya e Yukio Mishima, direção Herbert Machiz (A Barca). Ago. 61 – Palco do TCA, Por um Triz, Thorton Wilder, direção Charles Mc Gaw. Out. 61 – TST – A História do Zoológico e A Morte de Dessie Smith, Edward Albee, direção Luiz Carlos Maciel. A simples análise deste repertório de títulos e autores oferecerá ao estudante e ao pesquisador interessado farto material de reflexão sobre o fazer teatral, a arte, a educação, a história e a Universidade. O projeto de Edgar Santos continua a render frutos, como comprova a rica produção acadêmica da Escola de Teatro da UFBA. Mas seu potencial para um projeto futuro de teatro universitário continua quase inexplorado. A presente pesquisa, feita com exemplares dos 12 números disponíveis (dos 15 editados) da Revista Repertório, programas de espetáculos, os Anais do Primeiro Congresso de Língua Falada no Teatro (Rio, MEC, 1958) e o livro Arte na Bahia – Teatro na Universidade 1956-1961 (Salvador, Hélio Eichbauer; Dedé Veloso, EGBA-Corrupio) é apenas uma humilde contribuição.

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Uma vida sombria ao sol de Salvador*

Espetáculo Roberto Zucco confirma Nehle Franke como diretora original ainda que dividida entre a representação e os grandes efeitos. O sucesso de Divinas Palavras, de Ramón Valle-Inclán, a primeira montagem baiana da jovem alemã (hoje com 27 anos), revelou uma encenadora com estilo. Reunindo atores com caracterizações distintas e preciosas, em um mesmo estilo de interpretação e de definição de personagens, ela demonstra dominar bem o que pode distinguir e identificar as variadas faces teatrais do humano. Zucco, seu segundo espetáculo na Bahia, confirma o mesmo estilo e revela sua coragem: a de se distanciar da baianidade sertaneja que conseguiu atribuir ao texto anterior, galego, e de um tipo de encenação envolvente, bem recebido pelo público. A cena em Zucco é o urbano das megalópoles, espécie de cultura global indefinida, recursos audiovisuais agressivos – bem resolvidos pela cenografia e figurinos de Moacyr Gramacho – iluminação de Irmã Vidal, música de Supertom, do Confraria da Bazófia, e efeitos visuais de Fritz Gutmann. Novo projeto do Núcleo de Teatro do TCA, que já montou Otelo, O Sonho e Medeia (todos com um ano de duração entre a Bahia e excursões), Zucco, já motivou manchetes entusiasmadas: “impecável”, “divisor de águas”. Em uma visão pessimista da contemporaneidade, o texto de Koltés (1948-1989) apresenta um assassino que poderia ser qualquer um.

* Publicado originalmente In: CRÍTICA: uma vida sombria ao sol de Salvador. Revista Bravo!, Rio de Janeiro, p.64, n. 64, 1998.

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Nessa montagem, é revelado, de imediato e o tempo todo, seu destino singular. O ritmo corporal e vocal, baseado em exaustivo preparo físico (referência a métodos do diretor Eugenio Barba), a pequena variedade de cores e de tons sombrios, a trila sonora, tudo colabora para a antecipação das ações de Zucco. Sua relação com a mãe parece perder nuanças, como também o relacionamento com os transeuntes: sem surpresas. A diretora, após a pré-estreia, revelava o desejo de dispor de mais tempo para trabalhar com os atores. De fato, parece que três meses foram pouco (contra mais do dobro em Divinas Palavras) para levá-los a amadurecer a proposta, apesar de estarem entre os melhores no teatro baiano hoje. Laila Garin, no papel da menina, e Lúcio Tranchesi, interpretando vários personagens, destacam-se no elenco, que, no geral, deixa aparecer demais o trabalho. Este chega a aparecer mais do que a vida dos personagens desnudados perante o público, mais do que o jogo de caracterização e de estilo dos atores, o que tende, naturalmente, a predominar com o passar do tempo. Nehle Franke, para desenvolver seu estilo, parece necessitar de uma escola. A longa porta metálica giratória, à direita do palco, permitindo deslocamentos e ritmos, que pontuam a atmosfera de violência, orgias e mundo sem saída, os sons estranhos, os espaços cobertos com forro de cortina, transformando-se com luz e projeções em muros fechados e grades, as ações dentro desses espaços e os atores de humanidade absoluta em cena conduzem o público ao mundo de Zucco e confirmam um talento, uma vocação, um estilo.

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O obsceno em cena, ou o tchan na boquinha da garrafa*

O ato cênico que nos interessa é a performance de dois grupos artísticos de grande popularidade no Brasil nos últimos meses: o Gera Samba e a Companhia do Pagode. Desde o último verão, sobretudo após o Carnaval (fevereiro, 1996), esses dois grupos baianos apresentam-se em festas e programas de televisão de grande público e âmbito nacional, tendo sua música repetida pelas rádios de todo o País, e por centenas de milhares de cópias de seus discos vendidas. Os carros-chefes desses discos revelam-se pelos próprios títulos: É o Tchan; Na Boquinha da Garrafa; e são duas performances que implicam em música, dança, teatralidade e participação do público. De fato, a coreografia que as identifica tem sido executada por multidões, em Carnavais que têm se sucedido em várias regiões do Brasil, e por famosas personalidades do show business e do esporte, conforme têm registrado a imprensa e a indústria do entretenimento. Essas performances têm em comum três características principais: – a origem – a cultura baiana tradicional, em sua consolidada transculturação de profunda base ibero-afro-nativa, que já produziu outros sucessos nacionais do mesmo tipo; – o ritmo/ tipo de perfor mance – o samba, em sua versão/ denominação mais popular atualmente, o pagode; e – o tema – paradoxalmente alusivo e explícito, ao mesmo tempo, à sexualidade. * Comunicação ao II Colóquio Internacional de Etnocenologia, apresentada em 15.06.96, em Cuernavaca, México (Instituto Cultural de Morelos, UNESCO, Maison des Cultures de Monde); publicada na Revista Repertório Teatro & Dança, Salvador, n. 1, PPGAC; UFBA, p. 23-26, 1998.

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Exemplo de transculturação dominantemente afro-americana, que ocupa importante lugar na mídia de todo um país, e de espetacularização extracotidiana, as danças do Tchan e da Boquinha da Garrafa põem no proscênio da cena brasileira um modo de ser identificado à singularidade cultural da Bahia, sua sensualidade, ritmo e permissividade, remetendo a outros espaços semelhantes de transculturação afro-latino-americana (Rio de Janeiro e Cuba, por exemplo) e exacerbando as características da performance artística afro-americana (FRIGERIO, 1992). Todos os horários e todos os públicos da mídia brasileira têm assistido, quando não praticado, passos coreográficos que ressaltam o aspecto lúdico do ato sexual entre um homem e uma mulher, que pode resultar na geração de uma criança, ou, simplesmente, entre uma pessoa e uma garrafa, que só resulta em “ludicidade” e excitação. Essa lubricidade espetacular, identificada no imaginário ocidental e em exemplos etnográficos com a negritude africana “selvagem”, é tema recorrente na tradição tanto do jazz norte-americano quanto do batuque/ lundu/ samba brasileiro, em sua imprescindível relação com os entreatos característicos dos espetáculos profissionais “sérios” do século XIX, ou, já neste século, com o teatro de variedades e a revista musical (CALADO, 1990; RUY, 1959; FRANCO, 1994). A performance Na performance do Gera Samba para o Tchan, que conta com nove instrumentistas e cantores que asseguram a execução musical, os três dançarinos do grupo (duas mulheres e um homem) executam uma coreografia, parcialmente uma pantomima, ilustrativa e alusiva aos seios, à genitália, aos movimentos do coito e à gravidez. No texto cantado pela Companhia do Pagode, grupo também composto basicamente por nove músicos, a referência é uma mulher, mas, na performance do grupo, fazem a dança da garrafa uma mulher e também um homem que requebram e remexem aproximando e afastando a genitália da boca de uma garrafa. Ambos, o Gera Samba e a Companhia 280

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do Pagode, no texto cantado nessas performances (assim como em outras), referem-se ao nome próprio do grupo, anunciando-se ao público, que passa a associar o estilo performático, como produto, à marca de seu criador e produtor. Esse tipo de performance inscreve-se, sem dúvida, numa tradição da cidade do Salvador e do Recôncavo Baiano de folguedos populares do tipo samba de roda, onde muitas pessoas participam dançando e cantando, com uma base instrumental e um espaço circular definido pelos presentes à performance, que se alternam individualmente ou em duplas, assumindo o centro da roda para as evoluções coreográficas, constituindo-se o desafio, a sedução e a provocação em elementos dramáticos da interação. Essa tradição do batuque africano está na origem do lundu (que brilhou no teatro baiano do século passado) e, mais remotamente, do emblema musical da cultura portuguesa contemporânea, o fado (SIQUEIRA, 1978; SODRÉ, 1979; MOURA. 1983; ARAÚJO, 1986; CASCUDO, 1988; TINHORÃO, 1988; ANDRADE, 1989). A origem A cultura baiana tem como matrizes étnicas mais importantes a lusitana, a banto e a iorubana, apesar da presença significativa de traços indígenas tupis, espanhóis e galegos (LIMA, 1976; BACELAR, 1989; RISÉRIO, 1993). Essa configuração, consolidada em três séculos de prosperidade e importância (do XVI ao XVIII) e mais de um século (o XIX) de decadência social, política e econômica, passou a conviver, com relativa “naturalidade”, desde os anos 50 deste Século, com a industrialização e a explosão das novas tecnologias e meios de comunicação. O passado da capital colonial, de principal porto e metrópole do hemisfério sul, reduzido a uma lembrança nostálgica desde sua perda de status de principal cidade brasileira para o Rio de Janeiro, em 1763, assegurou-lhe uma proeminência simbólica na cultura nacional. Seu isolamento, a redução do fluxo migratório europeu e o aumento da imigração forçada de jejes e nagôs até meados do século XIX, intensificaram os traços culturais de origem africana. “Sociedade em 281

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conserva”, como a definiu Roger Bastide (BASTIDE, 1967; MATTOSO, 1992), a Bahia, compreendida como a cidade de São Salvador da Bahia e a faixa litorânea da Baía de Todos-os-Santos, entrou no século XX gestando singularidades que a levaram a constituir-se em terreno fértil paras as indústrias da cultura e do turismo, as quais mais se lhe adaptam em função de sua tradicional vocação econômica para o setor de serviços. A cidade de Salvador, a terceira do Brasil com mais de três milhões de habitantes, apresenta hoje indicadores sociais melhores que os da época da escravidão, que a fez crescer e manter-se, mas, sem dúvida, ainda indignos para a vasta maioria de sua população. Aí reside a maior interpelação à teoria: como, num dos piores quadros socioeconômicos do mundo, em termos de concentração de renda e de extrema precariedade de serviços públicos, articula-se uma dinâmica cultural entre as tradições lúdicas e artísticas de um passado de exclusão, cujo emblema maior é a escravidão institucionalizada mais longa das Américas, e as novas tecnologias, que configuram um mercado global que valoriza bens simbólicos? As indústrias fonográfica e turística, que consolidaram a Bahia como metrópole regional de cultura singular, graças a um amplo conjunto de tradições cotidianas e “extracotidianas”, semelhantes a outras regiões da América Latina atlântica com expressiva presença de etnias africanas, têm permitido uma mobilização social e uma mobilização comunitária em torno de valores da cultura afro-baiana, com efetivos avanços em termos de qualidade de vida e de afirmação da cidadania. A mídia e o marketing abrem possibilidades de promoção social na Bahia, “espetacularizando” suas tradições culturais. Conclusão A origem, o ritmo/ tipo de performance e o tema desse ato cênico que aqui nos ocupa têm suas raízes na África, que também informou a melodia e a harmonia tanto do samba brasileiro quanto do jazz norte-americano. As performances do Tchan e da Boquinha da Garrafa inscrevem-se 282

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perfeitamente no conjunto das seis características da “performance artística afro-americana”, propostas pela análise de Alejandro Friguerio (1992), a partir de extensa pesquisa de campo realizada na Bahia, em Buenos Aires e nos Estados Unidos da América do Norte. Para o sociólogo e “etnocenólogo” argentino, a mais importante dessas características é ser multidimensional, que dá a densidade da performance e está presente no Tchan e na Boquinha da Garrafa (simultaneamente permeando as dimensões da dança, da música, da mímica, do produto midiático e de marketing e da tradição lúdica presente no cotidiano da população afro-baiana). A qualidade participativa também se apresenta nos contextos festivos e recreativos, onde essas performances são executadas em grupo – a partir do modelo vivenciado ou apenas conhecido através dos programas de auditório das redes de televisão e de seus telejornais. Do mesmo modo, a ubiquidade da performance na vida cotidiana verifica-se no contexto da cultura baiana, na qual os eventos familiares e sociais são sempre ocasião para a prática do samba, dando complexidade à distinção entre cotidiano e “extracotidiano” que, assim, perde valor. Outros dois aspectos característicos da performance artística afro-americana, a elevada importância da “conversação” entre os performers e a expressiva relevância dos seus estilos pessoais, também se aplicam às criações do Gera Samba e da Companhia do Pagode. Seus músicos instrumentistas, cantores e dançarinos contracenam, seja em coreografias comuns ou diferentes, dentro de um mesmo estilo grupal que abriga estilos de caracterização pessoal, no qual cada um faz eco, respondendo, variando ou repetindo propostas cênicas dos colegas. Finalmente, concluindo a grade de análise proposta por Friguerio, quanto à função social dessas performances, além daquelas óbvias de entretenimento e de comunhão pública, o caso em pauta tem demonstrado possuir um alcance real e um valor simbólico de alto nível. De fato, grupos como o Olodum (que já contracenou com Michael Jackson e Paul Simon), o Araketu (que também já se posicionou no mercado fonográfico internacional), o Ilê Aiyê (que repôs a discussão do racismo na cultura baiana) e a Timbalada, cujo líder Carlinhos Brown (colaborador de Sérgio Mendes, Gilberto Gil e Caetano Veloso) vem de 283

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lançar um CD em nível tri-continental; todos têm se destacado pela valorização cultural (em geral não-exclusiva) das tradições afro-baianas e por ações no campo da educação e do trabalho comunitário, que suprem lacunas de atuação do poder público e anunciam possibilidades de mudança socioeconômica num quadro de exclusão social dos mais graves do mundo. É nesse contexto, que posicionamos as performances que nos levaram a essa reflexão. Colocando o obsceno (o sexo privado) em cena (o espetáculo público, por excelência), o Tchan e a Boquinha da Garrafa interpelam a etnocenologia na medida em que novas tecnologias de mídia e de marketing parecem estar contribuindo para a valorização, afirmação e difusão de uma tradição artística e cultural localizada, com efeitos na promoção da qualidade de vida e da cidadania de grupos sociais que a sustentam, a partir de uma explosão dionisíaca, que interessa à indústria cultural e do turismo e que não se identifica com a moral religiosa dominante, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Essas performances, hoje lançadas nos canais e redes da mídia globalizada do mundo contemporâneo (a montagem fotográfica de um corpo feminino nu com o rosto de uma dançarina do Gera Samba fazendo a Boquinha da Garrafa pode ser visto na Internet), têm levado a cultura baiana a todos os recantos do Brasil, gerando algumas reações contrárias de lideranças de outras culturas (ainda que muito próximas, como a pernambucana de Recife, Olinda e sua Zona da Mata, no nordeste brasileiro, por exemplo), não por uma questão ética ou moral, mas devido a uma vontade estética de defender tradições nem sempre semelhantes à da matriz da origem, e, no entanto, eventualmente, menos vivenciadas que esta, na atualidade, em sua própria região. A indústria fonográfica baiana, sustentada por um intensivo calendário de carnavais fora de época e de micaretas em cidades grandes e médias de todo o Brasil, tem, de fato, promovido a exportação de uma abundante produção; e a receptividade que tem tido, em âmbito nacional, expressa, pelo menos, uma compreensão e aceitação generalizadas das características da performance que lhe dá vida, e que é, de modo paroxístico, expresso nas danças do Tchan e da Boquinha da Garrafa. 284

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Resta saber como esse produto de exportação afetará, a médio e longo prazos, os públicos importadores, além dos grupos circunstantes dos produtores e, em que medida, seria ele único, identificando, assim, uma matriz cultural afro-americana singular e específica: a da baianidade, uma tradição devoradora de novidades simbólicas e tecnológicas e, ao mesmo tempo, geradora, em escala industrial, de novos bens de uso.

Referências ANDRADE, Mário de; ALVARENGA, O.; F. C., TONI. Dicionário Musical Brasileiro. São Paulo: EDUSP, 1989. ARAÚJO, Nelson de. Pequenos Mundos: O Recôncavo. Salvador: UFBA; FCJA, 1986. t.1. BACELAR, Jéferson. Etnicidade: Ser negro em Salvador. Salvador: PENBA; Ianamá. 1989. BASTIDE, Roger. Les Amériques noires: les civilisations africaines dans le nouveau monde. Paris: Payot, 1967. CALADO, Carlos. O Jazz Como Espetáculo. São Paulo: Perspectiva, 1990. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988. FRANCO, Aninha. O Teatro na Bahia Através da Imprensa: Século XX. Salvador: FCJA, COFIC, FCEBA, 1994. FRIGERIO, Alejandro. “Un Analisis de la Performance Artística Afroamericana y sus Raíces Africana”. In: SUPPLEMENTA Ethnologica. [S.n.]: Buenos Aires, 1992. 285

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LIMA, Vivaldo da Costa. “O Conceito de ‘Nação’ dos Candomblés da Bahia”. Afro-Ásia 12, Salvador, 1976. MATTOSO, Katia M. de Q. Bahia Século XIX: Uma Província do Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983. RISÉRIO, Antonio. História do Teatro na Bahia. Salvador: Universidade da Bahia, 1959. SIQUEIRA, Baptista. Origem do Termo Samba. Brasília: IBRASA, 1978. SODRÉ, Muniz. Samba o Dono do Corpo. Rio de Janeiro: CODECRI, 1979. TINHORÃO, José R. Os Negros em Portugal uma Presença Silenciosa. Lisboa: Caminho, 1988.

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Teatro e negritude na Bahia*

O teatro, pelo nome e pelos cânones, é uma tradição ocidental, grega. O teatro do oriente, até mais antigo, e hoje denominado e avaliado em relação a esta tradição. Formas teatrais e espetaculares existem em toda parte, mas foram os modelos europeus que predominaram como referência, em todo o mundo. O Brasil, com sua colonização barroca e escravocrata, conheceu o teatro jesuítico e os mitos, ritos e musicalidade nativos, simultaneamente. Os africanos e seus descendentes foram, aparentemente, personagens secundários desse drama, a história do teatro no Brasil, apesar de terem predominado em elencos brasileiros nos séculos XVIII e XIX – como atores do repertório europeu e artistas de variedades dos entreatos – onde o lundu pontificou e as formas musicais que caracterizariam Portugal (a fofa e o fado) tiveram suas origens. Entre festividades, experiências isoladas e a consolidação de um teatro de temas e tipos brasileiros, só com o Teatro Experimental do Negro, nos anos quarenta deste século, a negritude transformou-se em protagonista, e os conceitos de beleza negra difundiram-se com a criação dos concursos Rainha das Mulatas e Boneca de Piche, organizados pelo Teatro Experimental do Negro (TEN ) e por seu diretor Abdias Nascimento. O teatro baiano, marcado pelas tradições católico-popular, iluminista e elitista – que resultaram no movimento dos amadores e na criação da

* Publicado originalmente in: MEIRELLES, Márcio et al.Trilogia do Pelô: esta é nossa praia; ó paí ó; bai bai pelô. Salvador: FCJA; COPENE; Olodum, 1995. p. 1521.

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Escola de Teatro da Universidade, nos anos cinquenta – sempre conviveu com a musicalidade e a exuberância ritual dos negros. No entanto, só nos anos sessenta, encontram-se em cena baiana a negritude e o teatro, quando o grupo Teatro dos Novos inaugurou o Teatro Vila Velha com uma escola de samba dentro de um espetáculo teatral. Fatos como este, ao lado da presença de (poucos) atores negros em elencos baianos, continuavam, contudo, episódicos e periféricos. Nos anos 70 surgiu na Bahia o grupo cultural e carnavalesco Ilê Ayê, que viria a criar o Concurso Beleza Negra, fazendo eco aos concursos criados anteriormente, no Rio de Janeiro, pelo Teatro Experimental do Negro. Nos anos 80, também na Bahia, o grupo Palmares Iñaron brincou com a forma e o conteúdo da arte cênica em espetáculos voltados para a valorização dos dois grupos étnicos (o negro e o indígena) dominados economica, militar e politicamente, na formação cultural brasileira, pela matriz europeia. Mas a integração do movimento teatral baiano ao contexto cultural maior da cidade (muito mais negro) só se anunciaria após o tropicalismo, a contracultura dos anos 60 e 70, a ampla utilização política e pedagógica das técnicas teatrais da improvisação, a divulgação dos movimentos negros africanos e norte-americanos, a valorização cultural e turística do carnaval afro-baiano, a industrialização da região metropolitana de Salvador, e a consolidação da indústria fonográfica e da televisão, em nível local. O Bando de Teatro Olodum, desde 1990, e o bando anunciador dessa nova (velha) civilização baiana, da qual o teatro que incorpora consciente e definitivamente, tipos, personagens e formas de negritude faz parte. Aí, novas tecnologias e tradição vêm gerando novos valores éticos e estéticos. Sua trilogia de espetáculos “Esta é Nossa Praia”, “Ó, Pai, Ó!” e “Bai, Bai, Pelô”, cujos textos são objeto da presente publicação, evidenciam esta tendência no seio de um grupo cultural como o Olodum, que atraiu artistas de teatro de formação nitidamente europeia e que aí se transformaram em artistas de um novo tipo: tipicamente baiano, genuinamente universal e tradicionalmente contemporâneo. 288

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A criação, produção e circulação dos espetáculos do Bando de Teatro Olodum pelo país, ao longo dos últimos quatro anos, e a edição e publicação de três de seus textos, marcam uma mudança de ordem quantitativa e qualitativa na história cruzada da negritude e do teatro na Bahia e no Brasil. Esse novo fenômeno, e, de modo mais amplo, a interface das temáticas da negritude e da história do teatro no Brasil, tem sido objeto de pesquisas universitárias e uma incipiente bibliografia começa a se formar. O Banco de Pesquisas da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA) já pode ser consultado, encontrando-se à disposição dos interessados, atualmente, os relatórios de pesquisas que orientamos, de autoria dos estudantes Carlos Pronzato, Evani Tavares e Auristela Barreto. A seguir, apresentamos vinte dois títulos de livros, revistas e artigos, que poderão interessar a novos pesquisadores: 1 - BASTIDE, Roger. “Sociologia do Teatro Negro Brasileiro”. In: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. 2 - COMPELO, Samuel; DIEGUES JÚNIOR, Manoel. Fizeram os Negros Teatro no Brasil? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. 3 - MENDES, Miriam Garcia. O Negro e o Teatro Brasileiro entre 1889 e 1982. Rio de Janeiro: FUNDACEN, 1988. 4 - SUSSEKIND, Flora. O Negro como Arlequin: Teatro e Discriminação. Rio de Janeiro: Achiamé/Socci. 1982. 5 - MULLER, Ricardo Gaspar (Org.). Dionysos, Rio de Janeiro, n.28, 1988. (Número especial: teatro experimental do negro). 6 - NASCIMENTO, Abdias. Dramas para Negros e Prólogos para Brancos. Rio de Janeiro: tem, 1961. 7 - NASCIMENTO, Abdias. O Negro Revoltado. 2. ed. Rio de Janeiro: GRD; Nova Fronteira, 1962. 289

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8 - NASCIMENTO, Abdias. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 2., Jul., 1968. (Caderno Especial - Teatro Negro no Brasil: uma experiência sócio-racial). 9 - NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 10 - NASCIMENTO, Abdias.O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980. 11 - NASCIMENTO, Abdias. Sitiado em Lagos: Autodefesa de um Negro Acossado pelo Racismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 12 - MAGALDI, Sabato. La race sous une perspective mythique. Trad. M. Fiani. In: RODRIGUES, Nelson. L’ange noir. Paris: Quatre-Vents, 1988. p. 5-9. 13 - SIMON, Michel. Théâtres nationaux: le Brésil. In: DUMUR, G (Dir.). Histoire des spectacles. Paris: La Pléiade, [198_?]. p. 1303-1304. 14 - CACCIAGLIA, Mario. Pequena História do Teatro Brasileiro. São Paulo: EDUSP, 1986. 15 - RUY, Affonso. História do Teatro na Bahia. Salvador: Universidade da Bahia, 1959. 16 - FRANCO, Aninha. O Teatro na Bahia Através da Imprensa: Séc. XX. Salvador: FCJA;COFIC;FCEBA, 1994 . 17 - BIÃO, Armindo. O Ator nu (Notas sobre seu corpo e treinamento nos anos 80). Art, Salvador, n. 5, p. 33-50. 18 - BIÃO, Armindo. L’ interface théâtrale. Cahiers du Brésil Contemparain, Paris, n. 12, p. 80-86, 1990. (Publicado também in: Estudos Linguísticos e Literários, n. 16, Salvador, p. 19-25). 290

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19 - MARTINS, Leda Maria. A Cena em Sombras: expressões do teatro negro no Brasil e nos Estados Unidos. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991. 20 - SANDERS, Leslie Catherine .The Development of Black Theater. In: ______ . America, Baton Rouge and London. [S.l.]: Louisiana State Press, 1988 21 - JONES, Leroi. Four Black Plays: all praises to the black man. Indianopolis and New York: Bobbs-Merril, 1969. 22 - TINHORÃO, José R. Os Negros em Portugal: uma presença silenciosa. Lisboa: Caminho, 1988.

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Euforia e Ufanismo: Quantidade e Qualidade num mercado em crescimento* O teatro como atividade profissional regular é um fenômeno tipicamente urbano, concentrado em metrópoles regionais, como sobejamente demonstrou Jean Duvignaud em diversas de suas obras. É também uma modalidade da interface tradição/ritual/recreação, onde um grupo de pessoas assume como seu cotidiano, em nível de experiência e expressão, a prática de técnicas corporais extracotidianas, para o consumo habitual de seus contemporâneos. Apesar dos nativos fundadores e seus encontros espetaculares (extraordinários) com os náufragos, degredados autoridades e aventureiros europeus; dos jesuítas e seu teatro caquético; dos mestiços que sempre dominaram os elencos (destacando-se os mulatos até meados do séc.XIX); da praticante elite intelectual e jornalística do Brasil Império e começos da República, a Bahia (entendida como Salvador ou a Cidade da Bahia, no dizer dos baianos) é dominantemente uma cidade do teatro de amadores até quarenta anos atrás. Tradições circenses, de dramas, de danças dramáticas, de folguedos populares e de representações, frequentemente associadas a festas e festejos religiosos, sobretudo católicos, mas também afro-brasileiros, surgiram, sumiram, mantiveram-se e transformaram-se em quatro séculos de história da Bahia, sem estabelecer com clareza a categoria “teatro profissional”.

* Publicado in: Jornal de Artes Cênicas, [S.l.], v.7, p. 24-25, 1994.

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Quarenta anos depois Corresponde à euforia desenvolvimentista que dominou o país (e da qual a Bahia participou com cacau, petróleo, Paulo Afonso e o Cinema Novo), nos anos cinquenta, a criação das escolas de Música, Dança e Teatro pelo Magnífico Reitor Edgar Santos (cujo centenário se celebra em 1994), no corpo de uma Universidade fundada em 1946, que reunia centenárias escolas, como a de Medicina e a de Belas Artes (esta um pouco mais jovem). A velha sociedade colonial baiana, em “conserva” (para usar a crua expressão de Roger Bastide) durante bem mais de um século, começava a adquirir em fins dos anos cinquenta o contorno de metrópole regional, justificando o aparecimento da categoria “profissional” aplicada pela imprensa ao teatro com técnica e didática que se começava a fazer na universidade sob a direção de Martim Gonçalves. Desde então, com as sólidas bases plantadas pelos amadores (eruditos e populares), pela Escola de Teatro da Universidade (então da Bahia, hoje Federal da Bahia) e pela Sociedade Teatro dos Novos (liderada pelo exprofessor da Escola, João Augusto, durante os anos sessenta), a prática das artes cênicas transformou-se em atividade “profissional” regular para um número crescente de pessoas na Bahia. Os fatos aceleraram-se mesmo após os anos da censura, do ativismo político e do experimentalismo (1968 - 1979). As temporadas dos espetáculos começam a durar mais do que os períodos de ensaios, conforme anunciaram os sucessos de José Possi Neto na Escola de Teatro da UFBA (A Casa de Bernarda Alba e, sobretudo, Marylin Miranda), do Grupo Avelãs e Avestruz no Teatro Castro Alves, do musical Bocas do Inferno, num circo, e no TCA também. 294

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De fato, o teatro da cidade no início da presente década, assim como a música, mas a seu próprio modo, aproximou-se da indústria cultural que caracteriza a contemporaneidade, valorizando a performance e a movimentação de dinheiro. Trata-se bem de uma mudança quantitativa (mais aspirantes aos cursos de teatro, maior oferta de cursos e oficinas, mais atores, mais público, mais textos originais, mais salas de espetáculos, maiores temporadas, mais e maiores superproduções), mas também de uma mudança qualitativa (a identificação com a cultura baiana, o crescimento de lideranças femininas, a conquista de mais prêmios nacionais, o sucesso de produções locais fora da Bahia, a ampliação do mercado de trabalho para a propaganda, a televisão e a atuação em empresas). O presente A Escola de Teatro da UFBA, com seus cursos de graduação para atores, diretores e professores de teatro, seus cursos de extensão para adolescentes, adultos e terceira idade, mantém programação constante de espetáculos e prepara a implantação definitiva de cursos de pós-graduação, envolvendo 17 professores, 15 funcionários e cerca de 250 estudantes universitários (da própria escola e de outras unidades da UFBA), além de outros 250 alunos da comunidade. Sua produção artística e acadêmica tem sido reconhecida em nível nacional, como atestam os prêmios recebidos por suas montagens em Blumenau, Florianópolis, Vitória, Campina Grande e a participação de seus professores em eventos e programas de pós-gradação no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos da América. Seu Curso Livre de Teatro, com nove meses de duração e um espetáculo de conclusão – anualmente realizado desde 1985 (após as vitoriosas experiências do Teatro Castro Alves, de 1980 a 1983) – mobiliza regularmente 300 candidatos em média para 30 vagas, revelando o interesse permanente da comunidade para a profissionalização. 295

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No vestibular deste ano 261 candidatos concorrem para 50 vagas demonstrando um crescimento de mais de 200% nos últimos anos. O sucesso nacional de cinco anos de A Bofetada, da Companhia Baiana de Patifaria, outros sucessos locais com ecos fora da Bahia e no exterior, como é o caso do Recital da Novíssima Poesia Baiana, do Grupo Los Catedráticos e da criação eminentemente feminina Dendê e Dengo (de Anina Franco, Carmem Pasternostro, Rita Assemany, Iami Rebouças e Elisa Mendes), a presença de atores baianos em novelas globais (Jackson Costa, Regina Dourado, Ana Paula Bouzas, Círia Coentro), a realização de superproduções em praça pública pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) (Alfaiates e Canudos, de Paulo Dourado, Cleise Mendes e Aninha Franco), são algumas das razões que explicam tamanho interesse pelo teatro na Bahia, atualmente. O mercado tem se ampliado também com a contratação de diretores, atores, figurinistas, cenógrafos, iluminadores e técnicos por empresas como, por exemplo, a TELEBAHIA, os Correios e a COPENE (que mantém grupos e atividades teatrais com seus empregados), ou a ENCOL (que realiza test living com atores simulando moradores de empreendimentos imobiliários), ou ainda com treinamento de vendedores de shopping (como fez o Teatro Marqueteiro de Filinto Coelho) e a utilização do teatro em campanhas empresariais educativas e de treinamento. Também no campo institucional o teatro agita-se com a prefeitura municipal, que usa o teatro em campanhas de educação sanitária e a Secretaria Estadual de Educação e Cultura (SECT), que promove circuitos estudantis de espetáculos locais. A Gerência de Música de Artes Cênicas (GMAC) da Fundação Cultural da Bahia, além de manter oficinas e apoio a montagens locais, relançou os editais de financiamento de espetáculos profissionais, contribuindo para fazer crescer esse mercado. 296

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Esse crescimento é também decorrente do surgimento de outros cursos e oficinas eventuais na cidade e de trabalho de grupos como o Via Magia, por exemplo, que mantém uma escola desde 1984 e tem produzido uma movimentação teatral importante na cidade, em nível nacional e latino-americano. O segmento do mercado constituído pela propaganda mantém-se estável, com sinais de ligeira ascensão. O Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão do Estado da Bahia, cujo embrião data de fins dos anos 70, apesar da desmobilização da “classe” passa a ter sentido e a cumprir sua função, de promover, defender e prestigiar seus profissionais. O Bando de Teatro Olodum, com os espetáculos Esta é a nossa praia, Ópaí ó, O novomundo, Woizeck e Medeamaterial, tem aproximado o teatro da música e das temáticas afro-baianas, com excelente receptividade de público e crítica em todo o país, envolvendo parceiros internacionais, como Heiner Müller, e atores de teatro e televisão do eixo Rio-São Paulo, como Vera Holtz e Guilherme Leme. O número de lideranças femininas no teatro baiano tem crescido, como se pode constatar da observação das carreiras de Carmem Pasternostro (dançarina e coreógrafa de formação e diretora do grupo Intercena e do superespetáculo Merlin, de Tankred Dorst), Hebe Alves (atriz, professora da Escola de Teatro da UFBA e diretora do Grupo Cereus do sucesso O Homem Nu), Meran Vargens (atriz, professora da Escola de Teatro da UFBA e diretora do grupo Los Catedrásticos e do sucesso de público e crítica Bróder), Ro Reyes (atriz, professora e diretora da Casa Via Magia) e, sobretudo, Aninha Pedreira Franco (autora do Teatro Repertório), com três textos montados em alternância este ano, Oficina Condensada, Dendê e Os Sete Pecados Captados, das superproduções Alfaiates e Canudos – em parceria com Cleise Mendes e Paulo Dourado, ambos professores da Escola de Teatro da UFBA – 297

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e de uma monumental pesquisa a ser lançada brevemente em livro com o título A História do Teatro na Bahia Através da Imprensa 19001990). O ano de 1993 é também auspicioso para o teatro baiano pela criação do Troféu Bahia Aplaude, patrocinado pelo Comitê de Fomento Industrial de Camaçari (COFIC), com prêmios de US$ 1.000,00 a US$ 1.500,00 para seis categorias de melhores do teatro local, profissionalizando uma tradição de cerca de trinta anos interruptos de prêmios e troféus patrocinados por empresas de comunicação, críticos e colunistas. O que falta Como se vê por esse breve relato, o que não falta é euforia e ufanismo no teatro que se faz na Bahia hoje. Profissionalismo e profissionalização não são mais novidade, embora (ou talvez por isso mesmo) sejam eventualmente invocados como fetiche e sem rigor conceitual. O amadorismo ficou quase que identificado com o malfeito e o sem responsabilidade. Profissionais e amadores, na verdade, são interdependentes e tendem a crescer juntos, que é o que de fato ocorre hoje em Salvador. Mas já se pode começar a distingui-los tecnicamente e não esteticamente ou em termos de qualidade artística. Hoje, a existência de artistas e técnicos profissionais ativos, aposentados e desempregados, ao lado dos todavia sempre muito escassos produtores executivos, é um fator que contribui para relevar o caráter de metrópole regional da cidade. Uma metrópole carente – é certo – pois lhe faltam teatros bem equipados e confortáveis. Os melhores são sem dúvida os Teatros Castro Alves (TCA), Maria Betânia, ACBEU e Casa do Comércio; o ICBA tem ar condicionado e arquibancada; o Santo Antonio (da Escola de Teatro da UFBA) tem poltronas confortáveis, mas um sistema de refrigeração defeituoso; o 298

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Vila Velha tem problemas acústicos e técnicos, além de velhas poltronas de madeira, muitas das quais defeituosas; o Gregório de Matos é quente e não acomoda bem o público; o Gamboa é apertado e não dispõe de boa refrigeração; o do SENAC e o teatro experimental da Sala do Coro do TCA estão fechados; o Iemanjá é bom para convenções; o do ICEIA foi restaurado, mas continua com problemas iguais ou maiores. É o que falta: é onde está a carência maior do teatro baiano hoje, na quantidade e qualidade de suas casas de espetáculo e salas de ensaios. Aí continuamos amadores, em todos os sentidos, apesar das exceções. A cidade da Bahia é teatral e espetacular por si só, independentemente de seu teatro, que, como ela, é animado, festeiro, mas não atende com conforto a todas as necessidades do cidadão.

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Aspectos do comportamento corporal em performances de poesia oral*

Não apenas como profissional das artes cênicas e da educação, mas também como estudante e curioso, tenho dedicado a maior parte de meu tempo ao trabalho de ator, em sua concretude corporal vocal, enquanto treinamento e performance. Na oportunidade de escrever um breve trabalho na área da oralidade, e de participar, conjuntamente, da realização de uma pesquisa sobre o Romanceiro de Salvador, é natural que concentre minha atenção no mesmo foco convergente: aspectos corporais da performance – como conduzir a investigação. Numa procura de referencial teórico foram consultadas duas fontes essenciais para o suporte de uma possível organização metodológica: a bibliografia de língua inglesa, anotada por Martha Davis, Understanding Body Movement, New York, Arno Press, 1972; e a Introduction à la Poésie Orale, de Paul Zumthor, Paris, Éditions du Seuil, 1983. A bibliografia anotada por Davis contém 931 referências, por nome de autor, em ordem alfabética, relativa a aspectos psicológicos ou antropológicos do comportamento corporal. Consequência mesma da ênfase que as questões ligadas ao corpo humano passaram a ter no decorrer dos anos 60 – esse trabalho só compreende livros publicados até 1971, entre os quais: The Silent Language e The Hidden Dimension, de Edward T. Hall; e The Naked Ape, de Desmond Morris. Todos os livros são indicados por breve resumo. Os dois últimos servirão de sugestão inicial, em torno do eixo básico representado pelo texto de Zumthor.

* Publicado originalmente In: Cadernos de Textos, João Pessoa, n.2, p. 63-72,1990,

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Para completar o referencial escolhi o livro que Desmond Morris e sua equipe publicaram em 1979 (New York: Stein and Day), sobre os gestos cotidianos da linguagem corporal utilizados intencionalmente: Gestures. Um quarto livro de Paul Zumthor é dedicado à performance da poesia oral: La Performance. Num de seus quatro capítulos, La Présence du Corps (ZUMTHOR, 1983, p. 147-208), Zumthor afirma já existirem mais de 500 títulos com referência a uma antropologia do gesto, técnicas e linguagens do corpo. Ele propõe um “ponto de vista pragmático”. Afirma que a oralidade não se reduz à ação da voz; pois, sendo uma “expansão do corpo”, implica em tudo o que, em uma pessoa, se dirige a outra com quem se estabelece comunicação. Por isso, apesar de ter usado, antes, no mesmo livro, a expressão “estruturação vocal”, ele prefere “estruturação corporal”. A gestualidade, como conjunto de gestos e olhares e sua soma ao discurso vocal, comporia essa estruturação (ZUMTHOR, 1983, p. 193). Os movimentos corporais seriam assim sempre integrados a uma “poética” havendo, explicitamente, na tradição ocidental, “desde a codificação da Retórica Romana, uma correspondência permanente entre gesto e enunciado”. Essa correspondência, cotidianamente útil e utilizada, só deixaria de existir em alguns momentos, de inversão ou de transgressão, em que a manutenção do dinamismo vital exercesse uma descontinuidade naquela correspondência. Porém, dialética e estruturalmente, o resultado contínuo seria o próprio equilíbrio da comunicação social. Por exemplo, durante uma sessão de jazz, os cantores criam, variam e combinam gestos e enunciados de forma inusitada, estabelecendo um verdadeiro transe coletivo, no qual a estruturação corporal é totalmente alterada (ZUMTHOR, 1983, p. 193). Por outro lado, no ato da performance, o intérprete exibiria seu corpo e sua extensão ambiental, não apenas aos olhos do público, mas o exporia até ao contato físico, impregnando, por consequência, esse fato social, de um conteúdo erótico. (ZUMTHOR, 1983, p. 193). Vale recorrer à literatura teatral para reforçar a ideia de Zumthor. Ao propor um teatro 302

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“cibernético”, em Acting Power (1978)1, Robert Cohen afirma que todo comportamento é tático e visa, em última instância, à aceitação, a uma afirmação dos outros e, até mesmo, à proteção do carinho físico (COHEN, 1978, p. 33-85). No entanto, o autor de Introduction à la Póesie Orale relativiza seus comentários assinalando a enorme variedade de comportamentos corporais decorrentes das diferenças interculturais existentes (ZUMTHOR, 1983, p. 194). Sobre essa questão há uma contribuição que não pode ser esquecida: o livro The Hidden Dimension, de Edward T. Hall (1990)2, cujo tema central é a cultura como comunicação, a partir do estudo do uso do espaço pessoal e social em diversas culturas. Na verdade, ele cunha uma nova palavra em inglês: proxemics, para melhor definir seu trabalho de observações inter-relacionadas e teorias do uso humano do espaço como uma elaboração especializada de cultura. A partir de pesquisas de campo em vários países, em três continentes, Hall (1990) estabelece um quadro comparativo de classificação de distâncias (íntima, pessoal, consultivo social, pública) e de comunicação sensorial, numa gradação até os tabus (percepção olfativa em espaço consultivo social, por exemplo), sendo cinco os níveis de percepção: sinestésica, térmica, olfativa, visual e oral auditiva. O quadro é detalhado e contém marcos precisos (HALL, 1990, p. 126-127), de modo que é possível localizar as performances presenciadas em função da pesquisa do Romanceiro de Salvador, numa distância variável entre a distância pessoal (0,60m a 1,20m) e a consultiva social (1,20m a 3,00m), onde preponderam as percepções oral auditiva, visual e sinestésica. Ao longo do livro, Hall (1990) demonstra que, nas culturas de regiões tropicais e litorâneas, como, de um modo geral, as latinas, a faixa de variações em termos de distância pessoal confortável é maior que em 1 2

In: COHEN, Robert. Acting Power. Palo Alto: Mayfield P. C., 1978. HALL, Edward T. The hidden dimension. New York: Anchor Books, 1990. 217 p.

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outras culturas, como as anglo-saxônicas, por exemplo. Os italianos e os franceses, em comparação com os ingleses e alemães, segundo o antropólogo, se tocam muito mais e suportam uma maior proximidade interpessoal. Embora eu não tenha elementos nem experiência para uma análise comparativa, vale tentar situar as performances presenciadas, cujas informantes, nascidas e criadas no Recôncavo Baiano, são mestiças de branco, negro e índio, dentro daquela generalização categórica das culturas tropicais e litorâneas. Durante o ato das performances, a distância entre informante e pesquisador variou da “pessoal”, de 0,60m a 1,20m, à “consultiva social”, mas só até cerca de dois terços da área referida ao quadro, aproximadamente de 1,20 a 2,00m. Ao fim do capítulo “Présence du Corps”, Zumthor (1983) afirma que, ao lado do corpo, do espaço, do décor, das roupas, manifestos em formas, cores e tonalidades, as palavras da língua falada ajudam a compor um “código simbólico do espaço”, no ato da performance da poesia oral. Com uma série de referências a performances, nas quais o comportamento corporal do intérprete varia da imobilidade (em certos rituais africanos) até a movimentação convulsiva, passando pela dança o teatro e o carnaval. Quanto à sua finalidade, o poema oral se aproximaria da canção para dançar, enquanto performance: “... na Espanha dos séculos XVI e XVIII, (dançava-se) sobre récitas do Romancero: Menéndez Pidal descreve um baile desse gênero ao qual ele assistiu em agosto de 1930”. A oralidade, aliada ao uso da máscara na commedia dell’arte ou no carnaval, ou simplesmente, encadeada e enquadrada na corrente de todos os elementos que compõem a “totalização do espaço de um ato”, aproximar-se-ia do teatro, podendo, eventualmente, transformar-se numa performance tipicamente teatral tipo drama (PIDAL, 1930, p. 203-204). Todos esses elementos foram identificados na pesquisa de campo, que se desenvolveu em três performances, com quatro informantes, e recolheu 31 versões de textos, que, na quase totalidade, provêm da tradição de dramas, vivenciada pelas informantes que deles participaram como intérprete e/ ou público. No entanto, gostaria de reduzir minha reflexão teórica a um só tipo de gesto, recorrente em todas as performances. Trata-se de um gesto muito comum e utilizado, consciente ou 304

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inconscientemente, no cotidiano “teatral” das pessoas, para significar e expressar conteúdos significativos diversos. Basicamente, o gesto consiste em se levantar rapidamente a cabeça, mantendo-se o olhar no interlocutor. Zumthor (1983) distingue: “os gestos, segundo a amplitude do espaço corporal a partir da qual eles são produzidos: do rosto (olhar e mímica facial); dos membros superiores, cabeça e busto; e do corpo inteiro”. (ZUMTHOR, 1983, p. 195-196). O gesto escolhido na presente redução está referido em duas dessas categorias distintas: gesto de rosto (cenho, sobrecenho, pálpebras, pupilas, bochechas, lábios, mandíbula) e de toda a cabeça. Desmond Morris e sua equipe pesquisaram esse gesto em toda a Europa, descrevendo-o detalhadamente na página 162 de Gestures3. Aqui, em resumo: a cabeça é impulsionada para cima e para trás; o movimento é curto no impulso, podendo retornar de imediato, mas sempre mais lentamente. Após o impulso, a atitude pode ser mantida por um período variável de imobilidade. O movimento pode ainda ser acompanhado ou substituído por: franzido ou arqueamento dos lábios, elevação das rugas da fronte e/ ou das sobrancelhas e pálpebras, muxoxo4 produzido 3 4

MORRIS, Desmond. Gesture. Madrid: Alianza, 1993. Após a publicação deste trabalho, tomei conhecimento da descrição proposta por Luís da Câmara Cascudo para o muxoxo In: DICIONÁRIO do Folclore Brasileiro. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988. p. 518, que, de acordo com Morris, pode ser uma das possíveis substituições ou complementos do gesto escolhido, em circunstâncias de maior proximidade corporal, no âmbito da distância “pessoal”, que é o caso, como referência para o corpus para a presente reflexão, e que vale aqui transcrever: Som rápido, semelhando um estalido, obtido pela contração do terço médio da língua sobre a abóbada palatina, num brusco movimento de sucção, soltando-a imediatamente para que o som repercuta na garganta. Não há, como vemos, nos muitos verbetes dicionarizados, movimento nos lábios. É gesto tradicional e popular, significando o desprezo, pouco caso, indiferença. (CASCUDO, LXXXV) In: CASCUDO, Luís da Câmara., “Notas Pretas”. Revista do Arquivo Municipal, S. Paulo, LXXXV, 176). Os significados de “desprezo, pouco caso, indiferença” podem ser identificados ao de “superioridade” (4,1% da amostra de Morris; 33,3% da amostra desta pesquisa), o mais recorrente nas performances estudadas, com três ocorrências. Os significados de “negativa” (25% da amostra de Morris; 22,2% da amostra desta pesquisa) e de

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pelo estalar da língua nos alvéolos. A substituição geralmente ocorre em situações de baixa intensidade e maior proximidade, na área da distância “pessoal”. Em 1200 informantes da pesquisa, 46% desconheciam o gesto. As significações mais informadas foram: negativa (25%), chamamento/ apelo (9%), antagonismo (4,5%), superioridade (4,1%), questionamento (2,7%), saudação (2%), rejeição (2%) e outros (4,1%). (p. 162). Nas performances presenciadas, se observadas as intérpretes ao lado de suas coadjuvantes (filhas), e com exceção dos dois últimos, todos os demais significados foram identificados: negativa, superioridade e questionamento. Para apresentar, de forma breve e esquemática as observações feitas, o melhor caminho é organizar os comentários por performance. - Primeira Performance Dia 1º de Abril de 1986, terça-feira, 18:50h, Salvador, Bahia. Residência da informante (51 anos, viúva, de prendas domésticas, mãe de duas filhas), à mesa da cozinha: informante – filha de 20 anos – e pesquisador. - Comportamento observado: informante sentada todo o tempo com constantes movimentos de braços, dedos (tamborilar na mesa), tronco e

“questionamento” (2,7% da amostra de Morris; 22,2% da amostra desta pesquisa), com duas ocorrências cada, também poderiam ser identificados, ainda que parcialmente, com o significado de “desprezo”, atribuído por Cascudo ao muxoxo, o mesmo ocorrendo com o significado de “antagonismo”, com uma ocorrência (4,5% da amostra de Morris; 9,99% da amostra desta pesquisa). Apenas o significado de “chamamento/ apelo”, que também só teve uma ocorrência (9% da amostra de Morris; 9,99% da amostra desta pesquisa), ficaria, assim, sem identificação com o proposto por Cascudo. Dos três significados indicados por Cascudo, apenas um, o de “desprezo”, pode ser identificado com 97, 5% dos significados atribuídos pelo pesquisador ao gesto em foco, ficando os outros dois, os de “pouco caso” e “indiferença”, restritos a um terço das ocorrências, ao serem identificados, em conjunto com o primeiro, ao significado de “superioridade” anotado por Morris. No todo, as 97,5% ocorrências comparadas da amostra desta pesquisa com o que sugere Cascudo corresponderam a 45,3% dos significados atribuídos pelos informantes da pesquisa de Morris.

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cabeça, marcando compassos musicais, fazendo mímicas (inclusive faciais) de ações teatrais e narrativas, indicando, também com variações vocais, características de personagens, como sexo, idade e intenções. A filha presenciou a performance com raras intervenções vocais e comentários faciais. Usou o gesto poucas vezes. - Significados observados: - negativa – para negar-se a cantar certas músicas, por considerar que suas irmãs saberiam mais do que ela, ou que com elas presentes seria melhor. - superioridade – ao perceber o interesse do pesquisador, por exemplo, em sua versão de Dona Branca, tipo samba. - questionamento – ao tentar entender o interesse do pesquisador, que lhe explicara, com muita dificuldade, que não procurava nem cantiga de roda pura e simples, nem música de disco, rádio ou livro, assim efetivamente divulgada. - Segunda Performance Dia 5 de abril de 1986, 10:50h, Salvador, Bahia. Residência de uma das informantes, na sala: três informantes (irmãs de 55, 54 e 51 anos; uma solteira, uma casada, uma viúva, todas de prendas domésticas; as duas últimas mães de uma e duas filhas respectivamente), duas filhas (20 e 13 anos) e o pesquisador. - Comportamento observado: a informante A, a mesma da primeira performance, manteve-se sentada nos degraus de uma escada a maior parte do tempo, levantando-se, ocasionalmente, para cantar e dançar acompanhando as irmãs, A informante B, proprietária da casa, manteve-se de pé todo o tempo, quase sempre dançando e eventualmente fazendo mímicas ilustrativas, no centro da sala. A informante C, ausente para banho e troca de roupa no início da performance, desde que chegou à sala, ocupou a área entre a sala e a cozinha, que ficou como “pano de fundo”, e a moldura do portal da circulação, sem porta ou cortina, como “boca de cena”. Eventualmente, 307

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aproximou-se da área central da sala, onde, sentado a uma mesa, manteve-se o pesquisador durante toda a performance. Esta informante, a mais idosa, e que deverá ser entrevistada outra vez, apresentou movimentação corporal e variação vocal muito elaboradas. Todas as três foram empregadas domésticas na juventude e mantêmse atléticas e ágeis. Os trabalhos domésticos aparecem em certas mímicas a eles referentes e na expressiva utilização polirrítmica dos movimentos de ombros, braços e mãos. Todas risonhas. O repertório foi aprendido em escolas, residências e igrejas católicas das cidades de Maragogipe e Salvador, em variadas performances de dramas. As filhas mantiveram-se como espectadoras. Uma cantarolou algumas melodias. A outra manteve um ar entre o admirado e o indiferente. Traços comuns entre as intérpretes: marcação de ritmo com os pés; mímicas e passos coreográficos; expressão facial vocal e postura indicativas de personagens; vozes de canto indicando treinamento cotidiano, talvez durante a realização de tarefas domésticas, pelo prazer de cantar. Algo a ver com cantos de trabalho poderia ser uma alternativa de especulação. - Significados observados: - negativa – a informante B responde à insistência do pesquisador sobre seu eventual conhecimento de Juliana e Don Jorge. - chamamento/ apelo – a informante B insiste com sua filha para participar ativamente da performance. - antagonismo – informante C tenta corrigir B sobre Santa Iria. - superioridade – informante C ao cantar Moça da Varanda. - questionamento – informante V e C reagem às explicações do pesquisador sobre seu interesse em “cantigas que contam estórias”. - Terceira Performance Dia 17 de abril de 1986, quinta-feira, 20:00h, Salvador, Bahia. Residência da filha da informante (71 anos, casada, professora, mãe e de sete filhos), em volta da mesa da sala de jantar; informante – filha, 37 anos – e pesquisador. 308

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- Comportamento observado: informante sentada o tempo todo restringindo-se a pequenos movimentos de cabeça, mãos e braços. Sua versão do gesto observado realizava o movimento até seu limite máximo de cabeça para trás e queixo para cima, fazendo-se acompanhar de um riso sonoro. O fato de usar óculos talvez contribua para sua versão ampliada do gesto, ajudando-a no esforço de ver o interlocutor por sob os óculos. Apenas uma das cinco versões/ textos que cantou foi completamente de memória. As demais consultou num caderno com sua letra manuscrita, anotada em 1935/ 36, quando era professora numa pequena localidade do Recôncavo: Mombaça. A filha ausentouse a maior parte do tempo, aparecendo apenas para servir refrigerante e despedir-se. - Significados observados: - superioridade – ao perceber o interesse e o entusiasmo do pesquisador por suas histórias e seu caderno, o que ocorreu várias vezes. Essas observações são apenas a descoberta de um grande potencial de alternativas de pesquisas na área do comportamento corporal em performances de poesia oral. Constitui-se no registro de uma experiência concreta de pesquisa e de reflexão teórica que, talvez, possa subsidiar futuras pesquisas específicas.

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Variantes do romanceiro tradicional na Bahia*

I Romances tradicionais Seção A: A Mulher na estrutura familiar 3 Dona Branca 3.1 Dona Branca (05) Cantado por Tereza Conceição Araújo dos Santos, 51 anos, natural de Maragogipe – BA. Uruguai, 01 abr. 86. (BIA. 1.7). - Que Dona Isabel tem que está toda arrepiada? 2 Não come nem vai à mesa, parece que está inchada. - Não foi nada não meu pai, não é na [da] de admirar, 4 foi um copo de água fria que eu bebi de madrugada, pisei no cimento frio, estou com a barriga inchada. 6 Mandou chamar o padre, por ele tá bem julgado. O padre veio e disse: - Dona Isabel está endomoniada. 8 Mandou chamar o médico, por ele ta bem julgado. O médico veio e disse: - Dona Isabel tá emprenhada, 10 com nove mês de prenha, barriga bem avançada. * 11 textos de romances, transmitidos, sobretudo, oralmente, através da tradição dos dramas encenados em escolas do interior do estado (majoritariamente na região do Recôncavo, em Maragogipe, mas também com ocorrência na região do Agreste, em Irará) e das brincadeiras domésticas, recolhidos para pesquisa preliminar sobre o Romanceiro Baiano, coordenada por Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, no âmbito institucional de uma disciplina do programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFBA, na condição de aluno especial, em 1986, publicados num conjunto de 101 textos de romances, precedido de textos introdutórios sobre a poesia oral e o romanceiro em Salvador, além de notas sobre a edição e chaves de transcrição in: Estudos Linguísticos e Literários, Salvador, n. 7, p.47-146, 1988.

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11 Moça da varanda 11.1 Moça da Varanda (19) Cantado por Tereza Conceição Araújo dos Santos, 51 anos, natural de Maragogipe – BA. Uruguai, 01 abr. 86. (BIA 1.5). - Bom dia, boa tarde, moça da varanda! 2 - Meu pai não está em casa, o senhor vá retirando. (bis) Ele aí, ele vai. E chega aí: - Bom dia, boa tarde, moça da varanda! 4 - Meu pai já está em casa, o senhor vá se sentando. (bis) Aí o coronel vem: - Não quero me sentar de pá particular, 6 vim pedir a vossa filha para comigo casar. - Eu não quero casamento nesta terra alheia, 8 casamento que eu tenho pra ela está ali naquela peia (bis) - Ó meu pai, não diga isto nem torne a repetir. 10 Se eu não me casar com ele, me apronto e vou fugir (bis) 11.2 Moça da Varanda (20) Cantado por Maria Laura da Conceição Benn, 55 anos, natural de Maragogipe – BA. Mussurunga, 14 abr. 86 (BIA 3.6). - Bom dia, boa tarde, moça da varanda! (bis) 2 - Meu pai não está em casa, o senhor vá retirando (bis) - Bom dia, boa tarde, moça da varanda! (bis) 4 - Meu pai já está em casa, o senhor vá se sentando. (bis) - Eu não quero me sentar, vim falar particular (bis) 6 vim pedir a vossa filha pra comigo casar. (bis) - Eu não quero casamento nas terras alheias, (bis) 312

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8 casamento que eu tenho para ela está ali naquela peia. (bis) - Ó meu pai, não diga isso e nem torne a repetir, (bis) 10 se eu não me casar com ele, me arrumo pra fugir. (bis) Na passagem dessa ponte, que se deu a perdição, (bis) 12 um beijinho, um abraço e um aperto de mão. (bis) I Romances tradicionais Seção B: Conquista amorosa 15 O cego 15.1 O Cego (38) Cantado por Maria Hilda Conceição, 53 anos, natural de Maragogipe – BA, Mussurunga, 14 abr. 86. (BIA. 2.15). - Anda, Diana, mais um bocadinho, (bis) 2 sou um pobre cego, não enxergo o caminho. (bis) ................................................................................ Fazia-me cego porque eu queria, (bis) 4 Sou Conde da Lagem, Rei da Freguesia. (bis) I Romances tradicionais Seção C: Religiosos 19 Santa Iria 19.1 Iria (53) Cantado por Maria Laura da Conceição Benn, 55 anos e Maria Hilda Conceição, 53 anos, naturais de Maragogipe – BA. Mussurunga, 14 abr. 86. (BIA 3.5), (BIA 2.14). - Lá na casa de meu pai, 2 lá na casa de meu pai eu dormirei em colchão, nas terras alheias eu dormirei no chão. (bis) 4 Lá na casa de meu pai, lá na casa de meu pai eu comerei galinha 6 nas terras alheias eu comerei sardinha. (bis) 313

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- Ó minhas pastorinhas, 8 ó minhas pastorinhas, que estão pastorando, que santa é essa que estão adorando? (bis) 10 - Eu não sei dizer, eu não sei dizer, mas ouvi falar, 12 é a Santa Iria que foi degolada (bis) - Ó minha Santa Iria, 14 ó minha Santa Iria, meu amor primeiro, perdoai-me a morte por Deus verdadeiro. (bis) 16 - Eu não te perdoo, eu não te perdoo, ladrão carniceiro, 18 que do meu pescoço fizestes um carneiro. (bis) 19.2 Irias (54) Narrado/cantado por Maria Laura da Conceição Benn, 55 anos, natural de Maragogipe – BA. Uruguai, 29mai.86 (BIA 3.7). Era um príncipe que ia casar com a moça, que se chamava Irias. Então ele foi, falou com o pai dela, mas ela não queria casar. Ele aí planejou roubar, e roubou ela. Ela saiu cantando: - Lá na casa de meu pai, 2 lá na casa de meu pai eu comerei galinha, nas terras alheias eu comerei sardinha. (bis) Aí ele respondia: 4 - Cala a boa, Irias, cala a boca, Irias, casarei contigo. Ela responde: 6 - Eu já sou casada, já tenho marido, que é Deus do Céu e a Virgem Maria. 314

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E vão andando, e ela vai cantando novamente: 8 - Lá na casa de meu pai, Lá na casa de meu pai eu dormirei [em] colchão 10 Nas terras alheias eu dormirei no chão. (bis) - Cala a boca, Irias, 12 Cala a boca, Irias, eu casarei contigo. - Eu já sou casada, já tenho meu marido, 14 que é Deus do Céu e a Virgem Maria. Aí ele chega num lugar, mata ela e vai-se embora. Passa muito tempo sem vê-la. Quando ele volta, encontra uma igreja e o pessoal rezando. Ele aí pergunta: - Ó minhas pastorinhas, 16 ó minhas pastorinhas, o que estão pastorando? Que santa é essa que estão adorando? (bis) As pastoras respondem: 18 - Eu não sei dizer, mas ouvi falar, é a Santa Iria que foi degolada. (bis) Ele aí se ajoelha e pede perdão: 20 - Ó minha Santa Iria, ó minha Santa Iria, meu amor primeiro, 22 perdoai-me a morte por Deus verdadeiro. (bis) Ela aí responde: - Eu não te perdoo, 24 eu não te perdoo, ladrão carniceiro, que do meu pescoço fizestes um carneiro. (bis) 315

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Ele aí torna a pedir a ela. Aí ela responde: 26 - Eu já te perdoo: Eu já te perdoo, ladrão carniceiro, (Lembrando a ele o que ele fez no pescoço dela.) 28 que no meu pescoço fizestes um carneiro. Ela aí perdoa ele. 19.4 Santa Iria (56) Narrado/cantado por Hildete Santos Cordeiro, 43 anos, natural de Irará – BA. Uruguai, 29.05.86 (BIA. 5.1) A história de Santa Iria. Ela vivia em casa com os pais, mas tudo indica que ela era casada. E um rapaz se apaixonou por ela. E, como ela não o aceitou, ele carregou, roubou de seus pais. E tudo que ele oferecia ela não aceitava, porque ela achava que em casa dos pais ela tinha tudo melhor. Então tem uma parte em que ele diz assim: - Me dizeis, Iria, 2 me dizeis, Iria, onde tu dormias? E ela responde: - Em casa de meu pai dormia em bons colchões, 4 hoje em terras alheias, hoje em terras alheias, em esteiras no chão. 6 - Me dizeis Iria, me dizeis, Iria, o que tu comias? 8 - Em casa de meu pai eu comia galinha, hoje nas areias... (Porque uns dizem “hoje nas areias”, outros dizem “hoje em terras alheias”). 10 hoje nas areias eu como sardinha. 316

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Então estas coisas foi fazendo com que ele ficasse indignado com ela. E chegou um dia que ele não aguentou mais e degolou. É, tirou o pescoço dela. E foi embora. Passaram-se muito tempo. Depois ele voltou e viu aquela multidão de romeiros que rezavam diante de uma santa, de uma imagem erguida, e ele perguntou quem era a santa. E aí disseram, também cantando (que eu não me lembro dos versos) que era a Iria. E ele perguntou: - E quem é a Iria? - Ah, é uma santa que morreu degolada. Ele aí caiu em si. Foi aquele problema. Ele lembrou-se e aí se prostrou de joelhos diante da santa e cantou: - Minha Santa Iria, 12 minha Santa Iria, meu amor primeiro, perdoai minha Santa, eu serei seu romeiro. E a Santa respondeu: 14 - Eu não te perdoo, eu não te perdoo, um cão carniceiro, 16 pois tu me matastes como um carneiro. E ele, implorando: - Minha Santa Iria, 18 Minha Santa Iria, meu amor primeiro, perdoai, minha Santa, eu serei seu romeiro. Aí ela colocou um grande sacrifício, uma coisa que talvez não fosse acontecer, e cantou para ele: 20 - Eu não te perdoo, eu não te perdoo, um cão carniceiro, 22 pois tu me matastes como um carneiro. 317

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E a condição: - Eu só te perdoo, 24 eu só te perdoo, um cão carniceiro, se aqueles mares se virar em areia. Como o arrependimento dele era muito grande, os mares se transformaram em areia, e ele viu aquele deserto todo diante dele. E ele cantou outra vez: 26 - Minha Santa Iria, minha Santa Iria, meu amor primeiro, 28 Perdoai, mina Santa, eu serei seu romeiro. Aí ela respondeu: - Eu só te perdoo, 30 eu só te perdoo, um cão carniceiro, se aquelas areias se virar em flor. Aí todo aquele deserto se transformou em flor, e ele se prostrou diante dela. O grau de arrependimento dele foi tão grande que ele virou santo. 20 Barca Nova 20.1 Barca nova (57) Cantado por Maria Laura da Conceição Benn, 55 anos, natural de Maragogipe – BA. Mussurunga, 14.04.86. (BIA 3.3) Vamos, Maria, vamos pra praia passear, 2 vamos ver a barca nova, que do céu caiu ao mar. {bis} A barca virou, deixou de virar 4 por causa de Teresa que não soube remar. 318

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25 Tapuia 25.1 Tapuia e o Caçador (70) Cantado por Maria Nilda Tourinho de Carvalho, 71 anos, natural de Maragogipe – BA. Graça, 17.04.86. (BIA. 4.1) - Formosa tapuia, que fazes perdida 2 nas matas sombrias do agreste sertão? As matas são tristes, são tristes e são frias, 4 não queira tão moça morrer de sezão. - Não quero carinho, de onde nasci, 6 se delas não gostas, não entres aqui. - Então não desejas vestir uma saia 8 de fina cambraia e um lindo roupão? Teu corpo, tapuia, é lindo e bem feito 10 e fica malfeito vestir de algodão. - Não quero cambraia, sou pobre roceira, 12 só faço trabalhos com roupas grosseiras. - Basta tapuia, não digas mais nada, 14 não pensas fortuna, não tenhas maldade, passando o trabalho, serviço na roça 16 podendo tão moça morar na cidade. - Não quero a cidade, pois onde se nasce 18 Deus manda que a vida com gosto se passe. - Se fosses comigo morar na cidade, 20 decerto, tapuia, serias feliz. Sapatos de seda, adereços de ouro, ................... não são coisas vis. 22 - Não quero riquezas, o teu ouro é falso, meus pés não se estragam por andar descalços. 24 - Tapuia, eu te peço, não digas mais nada, te darei uma pluma de um verde linho. 26 Vamos para o Porto tomar com conforto três latas de doce e um copo de vinho. 28 - Não quero teu vinho, sou pobre tapuia, não bebo no copo, só bebo na cuia. 319

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26 Tapuia do Cacaual 26.1 Tapuia e o caçador (78) Cantado por Maria Nilda Tourinho de Carvalho, 71 anos, natural de Maragogipe – BA. Graça, 17.04.86. (BIA 4.3). - Tapuia, linda tapuia, que fazes no cacaual? 2 - Por aqui é meu caminho para ir ao cafezal. (bis) - Nem por aqui é caminho, nem há café que apanhar. 4 Tapuia, linda tapuia, o que vens aqui buscar? - Eu venho apanhar goiaba para dar a meu irmão. (bis) 6 - Ficam na beira do rio, não é nessa direção. (bis) - Eu venho colher baunilha, que minha mãe me pediu. (bis) 8 - Tapuia, no cacaual baunilha nunca se viu. (bis) - Pois então eu vou ao largo onde meu pai tem que vir. (bis) 10 - Ao largo, por este sítio? Para que estás a mentir? (bis) - O branco tanto pergunta que eu não sei mais responder, (bis) 12 mas sinto dizer: “Que queres o que veio aqui fazer?” - Todos os dias eu te vejo no meu cacaual a andar, 14 sempre a seguir meus passos, meus olhos sempre a fitar. - Adeus, branco, eu vou-me embora para não tornar a ver. (bis) 16 Se o branco não acha caça, não fui eu que a fiz perder. (bis) - Volta cá, linda tapuia, não vás assim a fugir, 18 tuas palavras são ternas, volta, volta a repetir. - Adeus, branco, eu vou-me embora para não tornar a voltar, 20 quem procura caça fina deve saber farejar. (bis) E a tapuia na selva para sempre se ocultou, (bis) 22 e o caçador das dúzias, mal da caça que ficou. (bis) 26.2 Tapuia (79) Cantado por Maria Hilda Conceição, 53 anos, natural de Maragogipe – BA. Mussurunga, 14.04.86. (BIA. 2.1). 320

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- Tapuia, linda tapuia, que fazes no cacauá? (bis) 2 - Por aqui é meu caminho para ir ao cafezá. - Nem por aqui é caminho, nem há café que apanhar. (bis) 4 - Tapuia, linda tapuia, o que veio aqui buscar? - Eu vim colher baunilha, que meu irmão me pediu. (bis) 6 - Tapuia, no cacauá, baunilha nunca se viu. - Adeus, ó que eu vou-me embora para nunca mais a vi, (bis) 8 quem procura caça fina deve saber farejar. II Narrativas cantadas em processo de tradicionalização 1 Menina onde tu moras 1.1 (84) Cantada por Maria Laura da Conceição Benn, 55 anos, e Maria Hilda Conceição, 53 anos, naturais de Maragogipe – BA. Mussurunga, 14.04.86 (BIA. 3.1/2.9) - Menina bonita, 2 aonde você mora? - Eu moro na Saúde, 4 do lado da Glória.

(bis) (bis) {bis}

- Menina bonita, (bis) 6 que idade você tem? (bis) - Eu tenho doze anos, 8 Não digo a ninguém. {bis} - Menina bonita, (bis) 10 eu quero lhe amar. (bis) - Senhor, Seu Marinheiro, 12 não venha me empatar. {bis} - Menina bonita,

(bis) 321

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14 eu quero lhe amar. - Senhor, Seu Marinheiro, 16 o papai pode falar.

(bis) {bis}

2 Romance do baile 2.1 (85) Cantada por Maria Hilda Conceição, 53 anos, natural de Maragogipe – BA. Mussurunga, 14.04.86. (BIA. 2.10) - Mamãezinha, eu fui ao baile, 2 um rapazinho me falou: {bis} Coisinha gostosinha, 4 no meu coração amou. {bis} - Minha filha, não diga isso, 6 que seu pai já reclamou. {bis} - Ele manda lhe falar 8 que ele também já amou. {bis} - Minha filha, sua idade 10 não pretende ter amor. - A senhora, mamãezinha, 12 com dez anos se casou. {bis} - Minha filha, eu me casei, 14 pois já estou arrependida. {bis} - Eu caso e não rependo 16 coisa boa é ter marido. {bis}

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MISCELÂNIA DO MESMO

Armindo Bião

Homenagem a Jean Duvignaud*

Em nosso livro coletivo Artes do Corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia 1, em sua Apresentação, rendemos discreta e sincera homenagem ao líder do encontro fundador da Etnocenologia, realizado em 1995, na UNESCO e na Maison des Sciences de l’Homme, em Paris, França. Aqui e agora, voltamos a render mais uma sincera e discreta homenagem a nosso grande inspirador: Jean Duvignaud (LA ROCHELLE, 22 de Fevereiro de 1921 - LA ROCHELLE, 17 de Fevereiro de 2007). Essa nova iniciativa é de dois pesquisadores do programa de PósGraduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Lúcia Fernandes Lobato e Érico José Souza de Oliveira, cujos doutoramentos tive a honra e o prazer de orientar. São eles que organizam a presente publicação. E o veículo de divulgação é o nosso periódico, do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade, os Cadernos do GIPE-CIT, que publicamos já há dez anos. Na vida, assim como na arte e na academia, quando tudo corre bem, andamos, voamos, navegamos, subimos em espirais, passando por muitas encruzilhadas, o tempo todo. Por isso precisamos, sempre, fazer escolhas, usando o verbo, aquilo que distingue uma coisa da outra. De fato, é a linguagem que nos permite avançar. Mas é também a linguagem – nossas

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1

Publicado originalmente em Cadernos do GIPE-CIT, Salvador, n. 20, p. 7-11, 2008. BIÃO, Armindo (Org.). Artes do Corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia. Salvador: P & A, 2007. 492 p.

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Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

línguas – que podem nos prender e fazer-nos ficar parados, empacados. Pode até mesmo nos fazer retornar aos inumeráveis becos sem saída que existem por aí. A linguagem liberta, mas também pode aprisionar, pois a tentação de nos direcionarmos aos nossos próprios umbigos é muito grande, nessas espirais do mundo. É a armadilha abissal por onde nossa vaidade nos engole, é o redemoinho das lamas movediças mais internas de nós mesmos. A busca do conhecimento pode nos levar a perder a alma, mas certamente pode também nos levar a contribuir para a formação de novos pesquisadores e a criação de conhecimento novo. A crença em nosso próprio conhecimento, contudo, pode nos abrir os caminhos do mundo, mas também pode nos levar a nossa própria perda, de ponto de vista, da necessária humildade e recuo, quando de eventuais passos falsos, tão naturais para quem anda muito. Só quem não anda não se machuca, nem a si nem aos outros. Jean Duvignaud caminhou muito, formou muita gente e legou-nos obras de referência, particularmente nas áreas das artes do espetáculo, da sociologia. É certo que somos, a todo momento, levados a fazer escolhas, opções, eventualmente fazendo – ou perdendo – amigos e colegas. Perdemos o professor, o colega e o amigo, mas ganhamos muito em nossa memória. Esse é o risco da vida, da arte, da academia e das encruzilhadas, onde encontramos os mensageiros, “os línguas” – intérpretes tradutores, as crianças perdidas, os exus e as pombas-gira. É também aí que encontramos Hermes (Trimegisto) – o três vezes grande, da hermenêutica, que nos ensina a decifrar os textos e Mercúrio, o das asas – e capacete – alado, que protege as artes e o comércio. Pois, como não poderia deixar de ser, foi nas encruzilhadas da vida, da arte e da academia, que conheci Jean Duvignaud, e foi nas escolhas de palavras para nos comunicarmos que eu cresci como pessoa, artista e acadêmico, correndo riscos, movimentando-me – muito – ganhando e perdendo, errando e acertando. Mas não apenas eu, é claro! 326

Armindo Bião

Tanta referência pessoal pode ser a reafirmação da tentação desastrada do doutor Fausto, de conhecer o máximo e ser feliz para toda a eternidade. Mas, na verdade, trata-se apenas de um recurso retórico, para dar conta da grandeza do homem que perdemos em fevereiro de 2007. E que tanto se interessou por aquilo que nos encanta, a festa e o teatro, por exemplo, e pelo que é, simultaneamente, maravilhoso e também perigoso, o diferente, o diverso, o anômico. Escritor, crítico de teatro, sociólogo, dramaturgo, ensaísta, cenógrafo e antropólogo, francês, dirigente máximo da Maison des Cultures du Monde durante muito tempo, Jean Duvignaud foi um desses seres das encruzilhadas, mensageiros do conhecimento, que nos ensinam a andar, voar, navegar, subir, falar e fazer escolhas. No caso muito particularmente do GIPE-CIT e do PPGAC/ UFBA, nosso mestre é referência maior, sem dúvida e nos tem – muito – inspirado, tanto antes quanto depois de maio de 1995, quando presidiu o colóquio de fundação da etnocenologia. Com suas obras dedicadas ao teatro – numa perspectiva bastante ampla – à festa e à diversidade cultural da humanidade, numa perspectiva de simpatia compreensiva, Jean Duvignaud legou-nos um patrimônio útil e acessível, universalmente, mesmo que sua também brilhante atuação como gestor cultural, na França, seja um bem mais particularmente usufruído por quem conhece o seu país. Do mesmo modo, honrado com sua participação, a convite de meu orientador Michel Maffesoli, como presidente da comissão julgadora de minha tese de doutorado, na Sorbonne, em 1990, eu e os meus colegas presentes a esse ritual de passagem acadêmico, na Sala Louis Liard, do histórico edifício universitário, pudemos usufruir, mais particularmente, de sua preciosa experiência – e expressão – acadêmica. Por isso meu prazer é multiplicado, aqui e agora, quando mais um leitor é informado desta singela homenagem que fazemos a Jean Duvignaud. E quando posso, num laivo deslavado de vaidade, arriscado sem dúvida, mas que, por isso mesmo, aumenta o meu prazer, pois repito o poeta Caetano Veloso, “tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso”, reportome a três momentos em que encontrei, nas encruzilhadas, o grande mestre. 327

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

O primeiro desses momentos – pessoais e envaidecedores, repito – ocorreu em Salvador, Bahia, em 1979. Foi quando, na Escola de Dança da UFBA, onde então eu começava a lecionar Filosofia da Dança, a convite dos professores Dulce Tamara Lamego e Romélio Aquino, por sugestão da colega Maria da Conceição Castro Franca Rocha, li, deslumbrado, a Sociologia do Comediante2 (publicado originalmente em francês pela Gallimard, em 1965, com o título L’acteur, sociologie du comédien). Ali, pude percorrer um vasto panorama da história e da sociologia desses outros seres das encruzilhadas, que são os atores, que vivem – e comunicam – entre a realidade e a fantasia, a sedução e a crítica, a servidão e a rebeldia. O segundo desses momentos ocorreu na cidade de Cuernavaca, no estado de Morelos, no México, em 1996. Foi durante a realização do II Colóquio Internacional de Etnocenologia, quando o ouvi cantar – seguidas vezes – músicas brasileiras e falar entusiasmado de nosso povo, de nossos artistas e de nosso país. Na companhia de Dionísio, nos luxuosos jardins de Cuernavaca, nas ruínas de Xoxicalco e nas monumentais montanhas de Morelos, testemunhei, por exemplo, a força do Teatro Campesino e Indígena, fundado em 1971 e que tem suas origens em cerimônias, danças, festas e manifestações artísticas tradicionais dos povos e comunidades indígenas e camponesas mexicanas, sob a liderança de María Alicia Martínez Medrano. Poder acompanhar Monsieur Duvignaud em seus comentários sobre o Brasil, o México, a Europa e a África, bem como sobre a criação da etnocenologia, nessa ocasião, encheu de sangue o meu corpo e de ar o meu espírito. O livro se fazia em gente e em conhecimento – e eu nasci de novo nesse momento. O mais recente momento ocorreu, em 2005, quando o visitei em sua casa natal, na cidade de La Rochelle, na Charente Maritime francesa. Conheci então sua família (como ele, também interessada pelas artes do

2

DUVIGNAUD, Jean. Sociologia do Comediante. Trad. H. Faço.Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

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espetáculo e pela diversidade cultural), bem como seus objetos de estimação, espalhados por toda a casa, muitos levados para ali daqui do Brasil. O Museu do Novo Mundo de La Rochelle (la rebelle), um porto de circulação de bens materiais e simbólicos, encruzilhada da anomia, registra as relações históricas entre essa cidade e o Brasil. A casa de Jaen Duvignaud também. Professor Duvignaud lecionou nas Universidades de Túnis, na Tunísia e Tours e Paris Diderot (Paris 7, Jussieu), na França. Fundou várias revistas, entre as quais Argumentos, com o filósofo Edgar Morin, nos anos 50, Causa comum, com o escritor Georges Perec e o filósofo Paul Virilio, nos anos 70, e Internationale de l’imaginaire, com Chérif Khannadar e François Gründ, nos anos 90. Seus livros mais importantes são: L’Acteur, esquisse d’une sociologie du comédien. Paris: Gallimard, 1965. Rééd. L’Archipel, 1995; Durkheim, sa vie, son œuvre. Paris: PUF, 1965; Sociologie du théâtre. Paris: PUF, 1965. Rééd. Quadrige, 1999; Georges Gurvitch, symbolisme social et sociologie dynamique. Paris: Seghers, 1969; Anthologie des sociologues français contemporains. Paris: PUF, 1970; Spectacle et société. Paris: Denoël, 1970; Introduction à la sociologie. Paris: Gallimard, 1971; Sociologie de l’art. Paris: PUF, 1972; L’Anomie, hérésie et subversion. Paris: Anthropos, 1973; Le Langage perdu, essai sur la différence anthropologique. Paris: PUF, 1973; Fêtes et civilisations. Paris: Weber, 1974; Le Théâtre contemporain, culture et contre-culture. Paris: Larousse, 1974; Le Ça perché. Paris: Stock, 1976; Le Don du rien, essai d’anthropologie de la fête. Paris: Plon, 1977; Le Jeu du jeu. Paris: Balland, 1980; L’ Or de la République. Paris: Gallimard, 1984; Le Propre de l’homme, histoires du comique et de la dérision. Paris: Hachette, 1985; La Solidarité, liens de sang et liens de raison. Paris: Fayard, 1986; Chebika, étude sociologique. Paris: Gallimard, 1978. Rééd. Paris, Plon, 1990; La Genèse des passions dans la vie sociale. Paris: PUF, 1990; Dis l’Empereur, qu’as-tu fait de l’oiseau ? (récit). Arles ; Actes Sud, 1991; Fêtes et civilisations : suivi de La fête aujourd’hui. Paris: Actes Sud, 1991; Perec ou La 329

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

cicatrice. Paris: Actes Sud, 1993; Le singe patriote. Talma, un portrait imaginaire (roman). Paris: Actes Sud, 1993; L’oubli ou La chute des corps, Paris: Actes Sud, 1995; Le pandémonium du présent, idées sages, idées folles, Paris: Plon, 1998; Le prix des choses sans prix. Paris: Actes Sud, 2001; Les octos, béant aux choses futures.Paris: Actes Sud, 2003; Le sous-texte. Paris: Actes Sud, 2005; La ruse de vivre, état des lieux. Paris: Actes Sud, 2006. Seu interesse pelo teatro, pela festa e pela anomia compõe um sistema coerente, tanto do ponto de vista conceitual quanto de sua produção literária. E é nesse interesse que todos também poderão se encontrar e compreender a extensão da homenagem que aqui fazemos a Jean Duvignaud. Rio de Janeiro, 26 de outubro de 2007

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Prefácio para livro sobre folias do divino

Meu caro leitor, você tem em mãos o produto de uma paixão razoável, por mais paradoxal que possa parecer essa expressão “paixão razoável”. E é meu desejo que você o aproveite bem e logo. Por isso, tentarei lhe expor, brevemente, não o tema da tese de doutorado, que tive a honra de acompanhar como professor orientador, desde sua gestação – durante o processo do curso de mestrado de Jorge das Graças Veloso – e que é dedicada às folias do divino do entorno da cidade de Brasília, no planalto central brasileiro. Mas sim, buscarei tecer algumas considerações sobre o teatro e a teoria, essa encruzilhada acadêmica e artística, onde foi gerado esse livro, que você agora manuseia. Dois fenômenos marcantes da história da cultura ocidental, a teoria e o teatro desenvolveram-se em paralelo: às primeiras dissecações de cadáveres de que se tem notícia na vida da humanidade; ao aperfeiçoamento de um alfabeto fonético simplificado e à valorização do sentido da visão, que percebe as maiores distâncias possíveis a partir do ponto de vista de um mesmo observador. Na verdade, costuma-se considerar que foi aí, nessa encruzilhada do tempo da antiguidade, antes de uma das mais famosas encarnações do divino de todos os tempos (a de Jesus Cristo), entre a Europa, a Ásia e a África, que também teria surgido a história, como o hábito de se registrar e comentar, por escrito, fatos e feitos. Tarefa ambiciosa a da humanidade, que, assim, se projetava para o futuro e criava uma cultura da pedagogia. Pois é exatamente nessa tradição que se insere o paradoxo ao qual me referi no primeiro parágrafo deste prefácio. As pessoas de teatro já labutam muito para fazer o que fazem e, quando possível, para viverem, financeiramente, disso que fazem. Quando se comprometem com a pedagogia e a academia, desdobramse e multiplicam-se, em termos de criação teatral e de reflexão crítica. 331

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Pois foi bem esse o desafio que Jorge, cheio de graças em seu sobrenome materno, de modo zeloso e veloz, enfrentou em seu doutoramento, concluído em 2004, e, também vitoriosamente, na publicação deste livro. Por caminhos inusitados do destino que nos reuniu na Bahia, no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas das Escolas de Dança e Teatro da Universidade Federal da Bahia, este seu livro, antes de se tornar realidade, também passaria, em Brasília, pelas mãos de outro doutor dos desafios na área da cultura, Tetê Catalão, de uma mesma rede que nos reúne em torno de Verinha Lessa, ou Vera Lessa Catalão, entre o planalto central baiano da Chapada Diamantina e o planalto central das “refazendas”, e que é presença essencial em meu bloco mágico e lua 1. Apesar do caráter fugidio das lousas mágicas, das ardósias e dos librillos de memoria, inclusive o que manuseou e no qual 1

Acabo de publicar um velho poema meu (escrito em Londres, em 1970) com esse título in: BIÃO, A. Bloco mágico e lua e outros poemas. Salvador: P & A, 2008, 284 p. e, também, acabo de ler uma versão, em língua portuguesa (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. XIX [1923-1925]: O Ego e o Id e outros trabalhos. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976, [1924?], p. 283-290), da versão inglesa (s.d.) ligeiramente corrigida de outra publicada em 1950, com notas adicionais e acompanhada de Nota do Editor Inglês, do artigo de Sigmund Freud, “provavelmente escrito no outono de 1924” e publicado originalmente em 1925 (Int. Z. Psychoanal., v. 11, n.1, p. 1-5), intitulado “Uma nota sobre o “bloco mágico”, que trata do “curioso pequeno aparelho”, conhecido comercialmente na Grã-Bretanha como “printator”, como referência real e concreta para considerações sobre a memória, o “neurótico” hábito de se tomar “nota por escrito” e o “funcionamento do aparelho percentual da mente”. Pois foi justamente a lembrança de uma “lousa mágica”, provavelmente uma versão brasileira simplificada do “bloco”, que recebi de presente quando criança, que me levou a intitular meu poema “Bloco mágico e lua”, sendo a lua, além de referência genérica à poesia e à loucura, um verdadeiro bloco mágico astronômico, na história da humanidade. Na apresentação que escrevi para esse meu livrinho, no qual só as páginas ímpares estão impressas, para que as demais pudessem ser usadas ao bel-prazer do leitor, sendo, assim, mais um bloco (ou meio bloco) de notas (encadernado pela margem superior, com uma espiral plástica), refiro-me ao bloco mágico da psicanálise, pois ao escrever essa apresentação, então, eu já ouvira falar do famoso artigo de Freud, que, no entanto, até esse momento, eu desconhecia, ou dele me esquecera, sem ter tomado qualquer nota que tivesse permanecido...

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escreveu Don Quijote2 – que se poderia estender, com parcimônia às teses de doutorado, disponíveis hoje no Brasil, em meios eletrônicos e raras bibliotecas especializadas – um livro, objeto concreto, real e com vocação para o futuro, também, evocará para sempre essa possibilidade humana de escrever e reescrever. Esse é o paradoxo da gente de teatro e, simultaneamente, de teoria, viver entre o efêmero da cena e da vida das pessoas comuns e dos foliões, o texto anotado em rascunho e reescrito para um relatório acadêmico de pesquisa e o texto final de um livro, como este. Só com muita paixão, uma grande dose de bom senso e de razoabilidade e, por que não dizer, um tantinho assim (no mínimo, pelo menos) de sorte, para chegar-se a bom termo, após tantas opções vislumbradas nessas múltiplas encruzilhadas, tantas tentações mediadas por Exu, que brinca conosco se não o tratamos direitinho, por Hermes Trimegisto, que nos ajuda a compreender as palavras, mas que também é grande demais para que o entendamos plenamente, e por Mercúrio, sempre tão veloz no trato das mercadorias e das artes. Quando percebemos que temos em mãos um texto sobre o divino encarnado em folias, em mais uma encruzilhada, agora do sagrado com o profano, da folia brincadeira com a folia afrancesada da loucura, da razão absoluta do urbanismo de Brasília com a emoção total que vai do bairro do Cruzeiro à Roça do Novo Gama, nossa admiração atinge o paroxismo. E o milagre se faz, de modo imediato: teoria e etnocenologia e anuncia, de modo radioso, mais teatro. Você poderá testemunhar e usufruir. É só se entregar à folia e ao divino, visitando este livro, os locais dos quais ele dá conta e muitos, mas muitos mesmo, teatros. Boa visitação. Salvador, 24 de novembro de 2008 Armindo Bião Pesquisador do CNPq

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Ver as referências a esse bloco de anotações no clássico de CERVANTES. Miguel de. Don Quijote de la mancha. Madrid: Real Academia Española, 2004, p. 213 - 807. e em CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura, séculos XI-XVIII. Tradução de Luzmara Curcino Ferreira. São Paulo: EDUNESP, 2007. p. 40 et seq.).

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Apresentação de livro sobre a dança de Iemanjá*

Miguel de Cervantes (1547 - 1616) registrou no livro marco fundador da modernidade (1605), a paixão delirante, ativista e entusiasmada pelos livros e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, o preconceito, ignorante, arrogante e destruidor, contra certa ideologia contida nesses objetos, ridicularizando os livros de cavalaria, populares na sua época. Você, prezado leitor, neste exato momento, tem em suas mãos, diante de seus olhos um objeto livro, cuja tese eu tenho a honra e o prazer de lhe apresentar. Os livros contêm escritos, dignos de serem compartilhados. Em nossa tradição cultural, de base greco-latina, são testemunhos da força de nossos alfabetos fonéticos e de uma perspectiva predominantemente antropocêntrica e racionalista, que aposta no futuro, no sentido da visão e na pedagogia. Isto em contraposição às culturas da oralidade e das escritas de profundas marcas icônicas (e quase nada fonéticas), que são (foram?) teocêntricas, valorizando o passado, os sentimentos e a transmissão de conhecimento – na proximidade que favorece os sentidos do tato e do olfato – e que, também, produziram livros, inclusive escritos, quando essas culturas geraram linguagens/ modos de transmissão desse tipo. Pois esses objetos, presentes em muitas e tão diversas culturas, persistem, mesmo hoje, em nosso globo terrestre contemporâneo, quando e onde as escritas fonéticas e icônicas convivem num novo complexo cultural ecocêntrico e se investem, sobretudo, no momento presente, exatamente neste em que você está começando a ler este livro.

* Apresentação, In: MARTINS, Suzana. A dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do corpo. Salvador: EGBA, 2008, p. 17-19.

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Aproveite-o, porque vale a pena, mesmo se ela, [a pena] de isolar-se, preferencialmente no silêncio, não for tão pequena assim, nem tão esotérica assim, como a poesia de cada dia. E isto porque você tem em mãos um livro sobre a dança, temática fascinante, apaixonante mesmo, inclusive para quem não lê livros, possuindo, assim, um público potencial (e efetivo) bem maior que o dos livros. Seu referencial estético e cultural, o Candomblé da Bahia, é um dos mais preciosos fenômenos religiosos de todo o Atlântico Negro e, também, razão suficiente para a paixão de alguns dos maiores racionalistas cartesianos, príncipes e reis das ciências humanas francesas, como Roger Bastide e Pierre Verger, por exemplo. E aqui já aparece uma questão de maior peso, no que se refere à transcrição escrita da oralidade iorubá, com todos os problemas que causa para os autores que, em qualquer língua, busquem grafar as palavras dessa cultura africana. Em inglês e francês, por exemplo, desde meados do século XIX e até hoje, as variantes são muitas e, frequentemente, copiadas por autores de outras línguas, como se esses fossem os padrões mais convenientes. Em português, já muito recentemente, se tem optado pelas formas já dicionarizadas dessas palavras (em língua portuguesa), como, por exemplo, no caso de ocorrências de palavras como orixá, babalaô e iroco. Quando desconhecida uma forma já dicionarizada para a transcrição de outras palavras, da mesma origem, tem-se optado, com todos os riscos a isso inerentes, por uma grafia fonética aproximada, de acordo com a norma culta hoje vigente para a língua portuguesa. Tudo isso, sempre, sem uso de sinais diacríticos e tonais, ainda muito correntes nas transcrições de língua inglesa e francesa. O presente livro se insere nesta linhagem, hoje absolutamente predominante em língua portuguesa. Para mais longe, na apresentação deste livro, vale considerar sua âncora de referência, o orixá Iemanjá, madrinha do Atlântico Negro e mãe de tantos outros orixás, rainha das águas salgadas, que tem seu belo sobrado no fundo do mar. A ela se deve reverência apaixonada. É o que faz a autora deste livro, com muita apetência e competência, de dançarina, pesquisadora, professora e devota. O leitor aproveitará dessa múltipla e 336

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multifacetada contribuição escrita para o conhecimento de Iemanjá, que aqui nos oferece, generosamente, Suzana Maria Coelho Martins. De fato, superando os mitos e limites do imaginário, que tentam reduzir o mundo da dança ao universo da oralidade, Suzana faz valer sua experiência de dançarina, estudante e professora de Dança, na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, a pioneira nas Américas, bem como em outras universidades – e salas de espetáculos – de todas as Américas e da Europa. Assim, ela nos apresenta os ícones coreográficos das danças de Iemanjá, de modo atraente e sedutor, bem no espírito desse orixá. Integrante do grupo de pesquisadores que criou o Programa de PósGraduação em Artes Cênicas (PPGAC), das Escolas de Teatro e de Dança, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1997, Suzana tem formado novos pesquisadores e continua lecionando no PPGAC e na Escola de Dança da UFBA. Este é seu primeiro livro, pleno e integral, mas outras publicações suas também já são (como o será sem dúvida este livro) referência para os interessados e estudiosos da dança e da cultura baiana. Boa leitura!

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Prefácio de livro sobre o carnaval de Natal, no Rio de Grande do Norte*

Conhecendo a maquinaria dos bastidores de um teatro, em Évora, Portugal, na transição do século XX para o XXI, evoquei as cordas – que não conheci – dos tempos das caravelas, das grandes navegações. Também evoquei a cordoaria dos saveiros da Baía de-Todos-os-Santos dos anos 1950, quando e onde os cordéis dos mamulengos e dos folhetos de feira iluminaram-me a infância. Essa mesma trama me enredaria, nos anos 1960, no teatro feito a partir da literatura de cordel, assim firmando os fios de minha vida e de meu coração, conforme revelei em 2003, em palestra na Academia de Letras da Bahia. Mas esses fios são na verdade fiapos frágeis, como as artérias que asseguram a vida dos seres, em risco permanente, até que a morte as sugue e seque. É esse o paradoxo que dá vitalidade aos espetáculos e às festas, representados, por exemplo, pelos rituais dionisíacos e pela expressão popular “fio da navalha”, que me faz evocar os dramas, novelas e folhetins de minha adolescência, e que também exprime o paradoxo da precisão, do perigo, da vaidade, da morte e da obsolescência. Em 1971, esse mesmo enredo, algo melodramático, me apresentaria, no carnaval de Salvador, que ficou conhecido como o “carnaval do desbunde”, na Praça Castro Alves, nas escadarias do Palácio dos Esportes, que já substituíra, há muitas décadas, o antigo Real Teatro São João, situado ali mesmo, naquela encruzilhada do então Largo do Teatro, o desfile farsesco e humorístico dos gêneros e transgêneros. Nos anos 1980 e 1990, entre a América do Norte, o Brasil e a Europa do Oeste, eu me encontraria reatando, em múltiplos nós, todos esses caminhos. Rotas e sendas – que passam pelas encruzilhadas de muitas artes clássicas do

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Texto inédito.

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espetáculo, como, por exemplo, o teatro grego, o elisabetano, o Nô japonês e o teatro português do tempo de Dona Maria – nas quais todos os papéis, masculinos e femininos, ficavam restritos aos atores, desses excluídas as atrizes. Confirmava-se então a circulação espetacular entre essas artes e as mil e uma maneiras de colorir-se o cotidiano, com as festas e as brincadeiras, todos esses fenômenos fazendo parte de um mesmo caleidoscópio de eventos, projetos, trajetos, objetos, sujeitos, gêneros e transgêneros humanos. Mais recentemente, conhecendo (ou re-conhecendo) um parente inscrito nessa mesma trama, do mundo lusófono, teatral e carnavalesco, do Nordeste litorâneo do Brasil, eu viria a descobrir a preciosidade de uma etnografia densa, que inseria o carnaval em Natal – a dionisíaca festa espetacular na tão cristã cidade – no âmbito de um projeto de pesquisa de pós-graduação. Por trilhas inusitadas e insuspeitas, que associam, na minha memória, do final dos anos 1970, casa noturna, prisão e liberdade, ponta negra e morro branco, reis magos e rainhas gordas – e magras, eu encontrava então um outro ator e diretor teatral, pesquisador e professor, Makários Maia Barbosa, estudando o tradicional bloco das kengas do carnaval de Natal, no Rio Grande do Norte, no extremo Nordeste brasileiro, como mais um nó da mesma rede de tantos fios entrelaçados, cuja conclusão de pesquisa tive a honra de testemunhar. E agora é a sua vez. É a vez de vocês testemunharem esse belo trabalho. Vocês são os que vão ler, aqui, em seguida, a publicação da dissertação de mestrado de Makários, sobre o desfile das kengas do carnaval de Natal. Trata-se de uma pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) e no Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade, o GIPECIT, ambos da Universidade Federal da Bahia, através de um Programa Interinstitucional de Qualificação, desenvolvido em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e o patrocínio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 340

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No momento em que, enfim, escrevo este – quase fiapo – de texto, sobre a publicação do trabalho de mestrado de Makários, este mesmo já se encontra alhures. Dentro da mesma trama interinstitucional, que gerou o presente livro, o jovem professor desenvolve agora suas novas pesquisas, em estágio doutoral de cotutela, pelo Colégio Doutoral Francobrasileiro, na Universidade de Paris 10 Nanterre, com a coorientação de Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, querida colega e professora. E assim se anima, revitaliza-se, expande-se e consolida-se a nossa rede, com um novo doutoramento em artes cênicas em andamento: “A cena por um fio! O Teatro de Cordel em Salvador da Bahia, entre os séculos XX e XXI”. Continuamos avançando todos juntos, na mesma corda bamba, do circo acadêmico internacional e da vida... que nos dá sentido: o sentido do maravilhoso e, simultaneamente, perigoso, conforme nos canta o poeta! E este livro, que o leitor manuseia agora, é um dos nós dessa trama toda, inclusive da rede que nos protege – nós cá em cima, passando pela cúpula do circo, perplexos – e ela entre nós e a queda. Trata-se de um dos muitos pontos – conosco e com “nós”, nós todos que nos conectamos pelos fios da vida e do coração e que recebemos você de braços, fios e páginas abertas. Sinta-se à vontade, como em sua própria casa! De passagem por Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, em 24 de setembro de 2007

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Apresentação do Relatório da Fundação Cultural do Estado da Bahia 2003/ 2006*

Este documento atende a um conjunto de objetivos integrados. Trata-se de registrar e divulgar as realizações da Fundação Cultural do Estado da Bahia, ao longo dos anos de 2003 a 2006, de relatar uma experiência de gestão planejada, no âmbito de uma política pública consolidada, e, finalmente, de subsidiar futuras gestões dessa Fundação, bem como de entidades similares. A Fundação Cultural, nesse quadriênio, a partir da configuração do sistema estadual de cultura instituída em 2002, na estrutura da Secretaria da Cultura e Turismo, concentrou suas ações na dinamização de seus espaços polivalentes (como, por exemplo, em Salvador, os complexos das artes do espetáculo do Teatro Castro Alves, no Campo Grande, e o das ações dedicadas ao audiovisual, nos Barris, e, no interior do estado, os Centros Culturais), bem como na valorização das diversas expressões artísticas e no desenvolvimento sociocultural. Nessa configuração, as ações diretamente ligadas às bibliotecas e arquivos reuniram-se no âmbito da Fundação Pedro Calmon – FPC e as ações voltadas prioritariamente para os museus, os monumentos e o patrimônio se concentraram no Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural - IPAC. Completando esse panorama, integrou-se ao sistema estadual de cultura o Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia - IRDEB, que, somados à Empresa de Turismo da Bahia S. A. - BAHIATURSA, compõem a estrutura da administração indireta da Secretaria da Cultura e Turismo.

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Publicada em Ações Fundação Cultural do Estado da Bahia 2003-2006, Salvador: FUNCEB, 2006. p. 4-14; e elaborada com a colaboração de Ninon Fernandes e toda a equipe de gestão.

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Criada em 1974, a Fundação compõe-se hoje de uma Diretoria Geral, com Conselho Curador, Assessoria Técnica e Procuradoria Jurídica, cinco diretorias-fim - dedicadas à Literatura - DIREL, às Artes Visuais e Multimeios - DIMAS, à Música e às Artes Cênicas - DIMAC, ao Teatro Castro Alves – TCA e ao Núcleo de Referência Cultural - NRC, além de uma diretoria-meio, de Administração, Orçamento e Finanças - DAOF. Trata-se de um órgão da administração descentralizada da Secretaria da Cultura e Turismo, com personalidade jurídica própria, que ocupa uma área total de, aproximadamente, 130.000 metros quadrados, divididos em 20 conjuntos de edificações, situados nos municípios de Alagoinhas, Feira de Santana, Itabuna, Juazeiro, Lauro de Freitas, Vitória da Conquista, Porto Seguro, Salvador (Abaeté, Armação, Alagados, Barbalho, Barris, Brotas, Centro Histórico, Campo Grande e Plataforma), Santo Amaro e Valença. Em sua equipe, trabalham cerca de 1000 pessoas, quase metade das quais do quadro permanente de servidores públicos do estado. Cerca de 30% é pessoal contratado através de empresas de terceirização de mão de obra, aproximadamente 17% ocupantes de cargos de provimento temporário e em torno de 10% contratados através de regime especial de direito administrativo. A Fundação Cultural do Estado da Bahia viabilizou a execução de suas ações no período 2003/2006 através dos seus orçamentos anuais, utilizando as fontes de recursos do tesouro do estado, de receita diretamente arrecadada e de convênios, além de recursos captados em parceria com empresas de produção cultural, através de leis de incentivo fiscal e de recursos do Fundo de Cultura da Bahia. Os orçamentos anuais de 2003 a 2006 totalizaram um montante de 133,9 milhões de reais, dos quais 46,2 milhões de reais foram destinados a projetos, atividades finalísticas e operação das unidades fins. Através do Fundo de Cultura da Bahia, nos exercícios de 2005 e 2006, foram destinados para ações da Fundação Cultural, recursos da ordem de 900 mil reais. Cabe ainda destacar, o investimento nas ações da Fundação Cultural, através das leis de incentivo fiscal – FAZCULTURA e Lei ROUANET, que somaram um volume de recursos significativos: 1,9 milhão de reais. Nesse particular, 344

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cabe ressaltar que, através do FAZCULTURA, foram aplicados 562,5 mil reais na Caminhada Axé, em 2003, 2004 e 2005, 360 mil reais no projeto Quarta que Dança, em 2003 e 2004 e, na Série de Concertos Eruditos da OSBA, em 2005 e 2006, o montante de 375 mil reais. Através da Lei Rouanet, foram captados, em 2006, recursos da ordem de 605 mil reais para o projeto dos 25 Anos do Balé Teatro Castro Alves. O período de 2003 a 2006 foi marcado pela redução de repasses de recursos externos para a cultura na Bahia, pela multiplicação de instâncias institucionais (públicas, privadas e do terceiro setor), locais, regionais, nacionais e internacionais, envolvidas com a cultura em nosso estado, bem como pela consolidação de novas formas de acompanhamento e controle de gestão, internas e externas. Em paralelo, desenvolveu-se também uma maior integração interinstitucional, interna e externamente ao sistema estadual de cultura, uma maior transversalidade entre as diversas áreas da própria Fundação, além de um bem-sucedido esforço criativo para a otimização das relações custo benefício, inclusive com a expansão das ações da Fundação para diversos bairros de Salvador e de sua região metropolitana, para o interior do estado e, ainda, para o exterior. Para que se possa compreender o conjunto de ações a seguir brevemente descritas e ilustradas, vale aqui relatar, de modo esquemático, os quatro pilares estruturais que sustentaram essa forma de atuação: a renovação e ampliação do escopo conceitual das ações da Fundação, a ampliação e renovação de sua abrangência espacial geográfica, a consolidação dos editais de premiação do mérito artístico e seu fortalecimento institucional. Renovação e ampliação do escopo conceitual O pilar fundamental das ações da Fundação Cultural de 2003 a 2006 foi a renovação e ampliação de seu escopo conceitual, valorizando-se a pesquisa e a memória, bem como as relações interinstitucionais. Nesse âmbito, merece destaque a implantação do Núcleo de Referência Cultural - NRC, que produziu o cadastramento dos acervos da Fundação relativos às artes do espetáculo, ao audiovisual e à literatura (onde a 345

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Fundação se revela como um dos maiores focos de guarda e difusão da literatura de cordel), agora accessíveis presencialmente e on-line. O NRC também promoveu eventos e reflexões, devidamente documentados, em parceria com universidades brasileiras e estrangeiras, sobre questões relativas à referência cultural. Quanto à valorização da memória, vale ressaltar que a sala de espetáculos do subsolo da Biblioteca Central dos Barris, conhecida, até então, como Espaço Xis, recebeu em 2003 a nova denominação de Espaço Xisto Bahia, em homenagem ao importante ator e músico baiano do século XIX, que teve fotografia e breves dados biográficos entronizados no foyer desse espaço, bem como material de pesquisa publicado na Revista da Bahia. Também foram adaptadas duas salas anexas a esse espaço para o uso cotidiano dos grupos de dança e de teatro, sempre carentes de espaços para ensaios. Com o lançamento do livro Memória da Cultura, editado a partir de pesquisa desenvolvida com base na metodologia da história oral, foram celebrados os 30 anos da Fundação, em 2004, quando também se inaugurou uma galeria de fotos de seus ex- diretores, realizou-se uma exposição de caráter histórico documental e lançou-se um carimbo comemorativo da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Como parte dessas celebrações, a Fundação Cultural concebeu e produziu o espetáculo Vixe Maria Deus e o Diabo na Bahia. Grande sucesso, esse espetáculo, teatral, coreográfico e musical, tem se mantido em cartaz desde então, em diversas cidades do estado da Bahia e em São Paulo, reunindo mais de 30 profissionais reconhecidos no panorama cultural baiano, três dos quais jovens dramaturgos, que adaptaram um famoso conto de Machado de Assis para o contexto do verão baiano, pontuandoo com ícones do imaginário popular local. Vale registrar que essa equipe participou do projeto concebido pela Fundação Cultural, em parceria com o IRDEB, e desenvolvido por esse instituto desde 2003, o Polo de Teledramaturgia - POTE. Realizando a vocação de criação e difusão artísticas com base num imaginário generosamente difundido nacional e internacionalmente, singularizado por sua musicalidade, mestiçagem de forte marca negra, humor libertário e libertino e uma história extremamente dramática, marcada pela escravidão, o POTE teve como 346

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motivação geral aproveitar-se do farto capital simbólico, humano e paisagístico da Bahia, visando à redução dos indicadores de desigualdade socioeconômica existentes. Projeto estruturante, de médio e longo prazos, seu objetivo primordial é dotar a Bahia de condições plenas para a realização de produtos das indústrias da imagem e do som, de modo articulado com as indústrias publicitária, fonográfica e turística, as artes visuais e cênicas. São também seus objetivos a ampliação do mercado de trabalho local para artistas e técnicos do espetáculo e a produção de uma programação para televisão identificada com a cultura baiana, para ampla divulgação. A valorização da pesquisa e da memória definiu, também, uma nova configuração para dois importantes projetos da Fundação: o Chapéu de Palha (conjunto de oficinas de artes do espetáculo em cidades do interior do estado, resultando em espetáculos sobre a memória regional), que passou a incluir pesquisa de história oral, com a produção de registro fonográfico de entrevistas e depoimentos; e a Caminhada Axé (cortejo de grupos de folguedos tradicionais de todo o estado, realizado em Salvador, na temporada de verão), que sistematizou seu banco de dados e de procedimentos metodológicos. A renovação e ampliação do escopo conceitual da Fundação Cultural do Estado da Bahia, sobretudo no que tange à valorização da pesquisa e das relações interinstitucionais, se revelam, sobretudo, na implantação, de 2003 a 2005, de novos convênios de cooperação, para o fomento de grupos de dança (com a Escola de Dança da UFBA/ FAPEX, o Grupo Vila Dança, o Liceu de Artes e Ofícios e o Projeto Axé) e de arte educação (com a Fundação Pierre Verger), que foram assumidos em 2005 pelo Fundo de Cultura, juntamente com os convênios já existentes no âmbito da Fundação Cultural (com a Academia de Letras da Bahia, a Casa das Filarmônicas, o Forte da Capoeira e o Sol Movimento da Cena/ Teatro Vila Velha). Por outro lado, desde 2004, foram implantados novos convênios, especificamente para a viabilização de estágios, para estudantes de nível superior da área de artes, com as Escolas de Dança e Teatro da UFBA, para atuação no projeto Viver com Arte, da Fundação. 347

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Finalmente, mas em muito destacado grau de importância, no âmbito de renovação do escopo conceitual de atuação da Fundação, um novo projeto, que deve ser considerado como grande marco do conjunto de ações aqui registrado. É a concepção e implantação, de 2003 a 2006, de uma ação interinstitucional, planejada a partir de extensa e sistemática pesquisa realizada já em 2002, de apoio a grupos comunitários organizados com foco em atividades culturais e expressões artísticas, o PopulAção Cultural. Ampliação do escopo espacial A renovação – ampliação do escopo conceitual da Fundação Cultural, no período de 2003 a 2006 – provocou, em paralelo, a ampliação do escopo espacial e geográfico de sua atuação, ultrapassando os muros dos espaços culturais polivalentes que mantém e administra. Assim, no âmbito espacial intrametropolitano, o projeto PopulAção Cultural se integrou a outros espaços culturais polivalentes, de caráter eminentemente comunitário, localizados em bairros menos favorecidos de Salvador e de sua região metropolitana, que já abrigavam atividades diversas de expressão artística e convivência. As ações do PopulAção Cultural, construídas a partir de demandas identificadas na comunidade através de ampla pesquisa, provocaram uma nova configuração, de coordenação pedagógica, do projeto Viver com Arte, já desenvolvido nos espaços da Fundação Cultural de Salvador e da RMS, mas tradicionalmente organizado a partir da oferta de técnicos da própria instituição. Com a inserção de estudantes universitários de dança e teatro, através de convênios com a UFBA, o Viver com Arte buscou atender parte da demanda já identificada anteriormente, ampliar a oferta de técnicos e centrar esforços em expressões artísticas de grande poder de integração de todas as artes do espetáculo, visuais e literárias. Um terceiro projeto nasceu na intersecção dos dois anteriores, o Armazém Cenográfico, estruturado em área remanescente do Centro de Convenções da Bahia e dedicado à interface artes visuais/ artes do espetáculo, como instrumento de guarda e renovação de material cenotécnico, bem como de treinamento e intercâmbio. 348

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No âmbito intraestadual, um grande programa visando à circulação de bens culturais em todos os sentidos (interior capital, interior interior e capital interior) foi desenhado pelo sistema estadual de cultura, envolvendo diversos órgãos e mecanismos de dinamização cultural, inclusive o Programa Estadual de Incentivo à Cultura através de renúncia fiscal, o FAZCULTURA. Trata-se do Circulação Cultural, que integrou, conceitual e estruturalmente, projetos já tradicionais, mas revistos no quadriênio de referência, como o Chapéu de Palha, a Caminhada Axé, o Saveiro Literário (projeto premiado, que consiste na doação de livros e na realização de atividades de diversas expressões artísticas, em comunidades litorâneas), os Salões Regionais de Artes Plásticas (oficinas e premiações realizadas de 2003 a 3006 em todos os centros culturais do interior do estado, que se encontrava então interrompido) e o Cultura Todo Dia (realização de oficinas de criação literária em diversas localidades do interior, da capital e da RMS). Também como parte do Circulação Cultural, ao longo do quadriênio, a Fundação Cultural concebeu e implantou o Circuladô Cultural (um conjunto de espetáculos e de oficinas das diversas artes do espetáculo, selecionados através de concurso público e realizados em espaços da própria instituição e de instituições parceiras, em todo o estado). No âmbito internacional, o destaque foi o conjunto de intercâmbios da Escola de Dança, da Diretoria de Música e Artes Cênicas da Fundação, com a Holanda, a França e os Estados Unidos, resultando em criações coreográficas conjuntas de artistas baianos e estrangeiros, quase todas apresentadas em Salvador, Amsterdã, La Rochelle e mais uma dezena de cidades francesas. No mesmo período, o Bahia Ballet, do Balé Teatro Castro Alves, realizou mais uma excursão internacional, a nona em 25 anos, dessa vez pela Alemanha, sempre com grande sucesso, tanto de público quanto de crítica. Registre-se ainda o apoio da Fundação Cultural a importantes eventos de caráter internacional realizados em Salvador, como o Mercado Cultural, a Mostra Pan-Africana de Artes e a Jornada Internacional de Cinema, bem como à programação baiana no Ano do Brasil na França, em 2005. Vale também registrar a realização de importantes eventos, de caráter acadêmico, em parceria com diversas 349

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instituições de pesquisa, do Brasil e do exterior, em Paris, na França, na Maison des Cultures du Monde e no Centro Cultural Gulbenkian, em Asilah, no Marrocos, em Tombouctou, no Mali, e em Salvador, na Biblioteca Central dos Barris, todos eles dedicados à Literatura de Cordel e aos projetos institucionais baianos que tratam do patrimônio imaterial: a Caminhada Axé, da própria Fundação, e o Bahia Singular & Plural, do IRDEB. Consolidação dos editais de premiação do mérito artístico Um importante eixo estruturante das ações da Fundação Cultural, de 2003 a 2006, é a consolidação dos editais públicos, de premiação do mérito artístico, como instrumento de democratização, transparência e acessibilidade a recursos públicos, em todas as expressões artísticas. Nesse âmbito, foram retomados, revistos e ampliados, os editais destinados ao teatro e à dança (interior, capital, pequeno e médio porte), às artes plásticas (os Salões Regionais), e à literatura (os prêmios nacionais de literatura – dramaturgia, literatura infanto-juvenil e literatura de cordel). Foram mantidos e realizados os editais da área da música (o concurso para Jovens Solistas da Orquestra Sinfônica do Estado) e da área do audiovisual (o Festival Nacional de Vídeo - Imagem em Cinco Minutos, o Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger e o concurso estadual para filmes de longa e curta metragem e para vídeo documentários). Finalmente, é importante destacar a criação, nesse período, de um edital inédito, destinado a todas as artes do espetáculo (o teatro, a dança e a música), que é o Circuladô Cultural. Vale também registrar, ainda, a renovação da premiação, através de publicação de obras literárias de autores baianos, da Coleção Selo Letras da Bahia, num formato que assegura a publicação das obras selecionadas no mesmo ano de sua premiação. Esse conjunto de editais se configura num verdadeiro programa de estímulo a todas as expressões artísticas, abrangendo todo o estado da Bahia e, eventualmente, até ultrapassando suas fronteiras. Esse programa estende as ações da Fundação Cultural, prioritariamente, a todos os interessados, baianos e/ ou residentes na Bahia, onde quer que se encontrem vivendo. 350

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Fortalecimento institucional Os ícones de maior visibilidade desse pilar das ações da Fundação Cultural, de 2003 a 2006, encontram-se em sua política de comunicação e em um novo paradigma de gestão para o TCA. No que se refere à comunicação, nesse período, a Fundação constituiu uma Assessoria de Comunicação e um grupo de trabalho dedicado à editoração e às relações interinstitucionais, inclusive internacionais, promoveu a revisão conceitual e operacional, além do aumento de sua tiragem, dos periódicos Bahia Cultural, mensal e da Revista da Bahia, semestral (para o qual se criou um conselho editorial), concebeu e implantou um Sítio Virtual, instalou um Painel Eletrônico de informações no Teatro Castro Alves e dinamizou o Informativo Eletrônico da DIMAS. No TCA, a Fundação Cultural promoveu novas intervenções em suas instalações, reformando todo o piso do palco principal, resolvendo pendências em sua climatização e na impermeabilização do jardim suspenso sobre o foyer, além de atualizar e ampliar seu parque de informática, inclusive de suporte ao sistema de venda descentralizada de ingressos, bem como seu conjunto de equipamentos cenotécnicos. Mas, na verdade, a grande ação da Fundação, no âmbito do TCA, nesse período, foi uma expressiva mudança de paradigma. Foi atribuída ao Complexo do TCA a autonomia de gestão, instaurando-se um forte processo de parceria com a iniciativa privada, resultando na assinatura de três contratos de cotas de patrocínio, e pelos instrumentos de captação de recursos através das leis de incentivo por renúncia fiscal, resultando no desenvolvimento de projetos de manutenção de atividades dos corpos estáveis da OSBA e do BTCA, em cujo âmbito foi criada uma segunda companhia, com seus dançarinos com mais de 15 anos de experiência, a Companhia Ilimitada. Também, após longos anos de tentativa, criou-se o Coro do TCA, enfim viabilizado através de parceria com uma cooperativa de artistas. Finalmente, essa mudança de paradigma de gestão resultou também, simultaneamente, na atualização dos valores de cessão de pautas de seus espaços, na maior ocupação dessas mesmas pautas, ampliando-se consideravelmente seu público, tanto na Sala Principal 351

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quanto na Sala do Coro, na Concha Acústica, no Foyer, no Jardim Suspenso e no Vão Livre, aumentando-se enfim a arrecadação direta de todo o complexo do TCA, cujo custo de manutenção, de grande monta, conforme se sabe, também foi elevado. No entanto, a relação custo benefício foi otimizada e o acesso de todas faixas de público a esse complexo facilitado. A mudança de paradigma ocorrida no complexo do TCA se estendeu, de alguma forma, aos demais espaços administrados e mantidos pela Fundação Cultural. Além das intervenções pontuais desenvolvidas nesse período, vale ressaltar a reforma e equipamento do Cine Teatro Solar Boa Vista, as obras no Centro Cultural Plataforma, e o diagnóstico, acompanhado da elaboração de projetos (civil, elétrico, hidráulico e cenotécnico), para os centros culturais de Juazeiro, Alagoinhas, Itabuna, Valença e Porto Seguro. Ampliou-se o sistema de parceria da Fundação Cultural com as universidades estaduais, para a manutenção dos centros culturais de Feira de Santana e Vitória da Conquista e realizou-se um significativo conjunto de obras visando a dotar algumas dessas cidades (Itabuna e Feira de Santana), além de outras novas (Guanambi e Mutuípe), de espaços culturais condignos com as necessidades da população de nosso estado. Uma nova política de ocupação desses espaços foi implantada, através de diversos projetos e ações que são detalhados no presente documento, com quase 7.000 eventos presenciados por um público responsável por quase dois milhões de ingressos. O fortalecimento institucional deu-se sempre, nesses quatro anos, nas frentes interna e externa, buscando-se ampliar a integração da Fundação com o sistema estadual de cultura, com o sistema administrativo do estado e com instâncias culturais diversas. Nesse particular, vale destacar o âmbito do audiovisual, que, na Bahia, mantém estreita interface com a Fundação/DIMAS, na realização de suas produções. No período de 2003 a 2006, ampliou-se e atualizou-se significativamente seu parque tecnológico e estreitou-se ainda mais esse relacionamento. Em nível interno, a ação que merece maior destaque, entre 2003 e 2006, foi a efetiva implantação de uma nova política para o pessoal do quadro 352

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permanente dos órgãos de cultura da Bahia, conhecido como Grupo Artes e Cultura, numa iniciativa que beneficiou todo o sistema estadual de cultura, mas que, do ponto de vista quantitativo, teve seu maior retorno no âmbito da própria Fundação Cultural, resultando numa nova configuração salarial. E, também em nível interno, importantíssima ação foi a que resultou na informatização da maioria das rotinas técnicas e administrativas, integrando-se quase todos os espaços da Fundação à rede governo de informática. De modo sintético, esta é a apresentação do conjunto de ações desenvolvidas pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, no quadriênio 2003/2006 e que, a seguir, são apresentadas, de modo esquemático, descritivo e ilustrativo, em ordem alfabética, de acordo com o sumário que se segue.

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Teatro Castro Alves: história e memória*

Com uns oito anos, em 1958, visitei-o. Lembro-me de veludos vermelhos e, depois, do fogo. Aos dezesseis, voltei, partindo do Vila Velha, onde atuava. O verde vem-me à mente. Aos dezenove, ali me despedi dos baianos convidados a saírem do país. Aos vinte, dali me despedi com o sangue trágico dos bodes de Macbeth, indo encontrar meus conterrâneos. Retornaria para bem-sucedidas temporadas de teatro infantil como ator e para grandes shows, como público. Fora da Bahia, na maior parte dos anos 80, não o vi fechar-se, mas sonhei com um novo TCA, lembrando o que já vivera, acrescentando-lhe o azul das águas da Bahia. Em 1993, reencontrei-o com novos vermelhos. Desde 2003, sinto-me honrado em tê-lo na estrutura da Fundação que dirijo. Mais assíduo do que nunca em suas plateias, salas e corredores, testemunho sua grandeza para a história e o futuro das artes cênicas na Bahia.

* Publicado originalmente in: MOURA, Diógenes. Teatro Castro Alves: história e memória. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia; Secretaria da Cultura e Turismo, 2005. p 83.

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Armindo Bião

Prefácio de livro sobre o projeto Bahia Singular e Plural*

Um livro é sempre um presente. É o que só existe, em sua plena finalidade (ser lido), no momento presente do leitor que o lê. O prefácio é um possível acesso a este momento. Também uma apresentação e, esperase, uma última tentativa de sedução para que o leitor cumpra enfim o seu papel. Daí um prefácio ser sempre um desafio para quem o escreve. Desafio este que eu aqui aceito por múltiplas e bastante motivadoras razões. A primeira dessas razões é meu grande apreço pela temática do livro, que é o projeto Bahia Singular & Plural, do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia – IRDEB, da Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia – que acompanho desde sua implantação em 1997. Dele tomei conhecimento por seu criador e então Diretor Geral do IRDEB, Paolo Marconi, a quem tive a honra de acompanhar para uma primeira apresentação pública da proposta, no Conselho Estadual de Cultura. As conversas que àquela época tive com Paolo descortinaram-me, enquanto pesquisador das artes do espetáculo – sobretudo da – e na – Bahia, um grande universo de referências para o estudo e a criação no campo das artes cênicas. Participante de uma rede internacional de pesquisadores, dedicada à etnocenologia, a etnociência das práticas e comportamentos espetaculares, lançada em 1995, em colóquio realizado na UNESCO, na França, eu começava a vislumbrar no Bahia Singular & Plural um forte e estratégico aliado. Saber que uma de suas fontes de

* Publicado em: PIRES NETO, Josias. Bahia Singular e plural: registro audiovisual de folguedos, festas e rituais populares. Salvador: SCT/ FUNCEB, 2005.

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inspiração fora o trabalho do também pesquisador, dramaturgo e professor – da mesma Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, a UFBA, onde então eu era professor titular – Nelson de Araújo, que chegara a propor uma etnoteatrologia, fortalecia-me a intuição de ter encontrado a trilha de um tesouro. Desde 1997, portanto, a cada reencontro com meus colegas de etnocenologia, em particular aqueles que anualmente se encontram no Festival de l’Imaginaire, na Maison des Cultures du Monde, em Paris – quando tive a oportunidade de apresentar vídeos e discos deste importantíssimo projeto, que hoje se encontra plenamente documentado nesta instituição mantida pelos ministérios franceses consagrados à cultura e às relações internacionais. Quando, em 1999, fui procurado em nosso emergente Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, das Escolas de Teatro e de Dança da UFBA, pelo diretor dos vídeos do Bahia Singular & Plural, Josias Pires, interessado na etnocenologia, certifiquei-me de que a trilha era bem a que trilhávamos e de que nos encontrávamos numa encruzilhada prenhe de muitos e preciosos caminhos. As matrizes plantadas pela proposta pedagógica de Nelson de Araújo e pela iniciativa de gestão pública na área da cultura de Paolo Marconi cruzavam-se bem com a etnocenologia e a universidade, onde Josias Pires viria a produzir este belíssimo documento de registro e reflexão, agora transformado em livro. Vale ainda registrar um outro e fundamental caminho que passou por esta mesma encruzilhada, o da gestão pública, ao qual passei a me dedicar, no âmbito do governo estadual, como Diretor Geral da Fundação Cultural, órgão da Secretaria da Cultura e Turismo, a partir de janeiro de 2003, exatamente no momento em que o IRDEB passava a integrar o sistema estadual de cultura. A competência e o dinamismo de seus gestores, testemunhada em parcerias com o órgão que passei a dirigir, iluminaram decisivamente nossos caminhos. 358

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Em 2003, a convite da Maison des Cultures du Monde, em colóquio realizado no Marrocos e registrado em publicações em francês e em português1, tive a ocasião de apresentar uma comunicação sobre duas muito relevantes e originais iniciativas de gestão na área do patrimônio cultural imaterial na Bahia: este Bahia Singular & Plural e a Caminhada Axé, da Fundação Cultural. A excelente repercussão do projeto do IRDEB, nesta ocasião então, se repetiria, em março de 2005, em sessões dedicadas à etnocenologia no IX Festival de l’Imaginaire, mais uma vez em Paris, e em conferência que proferi para os alunos e pesquisadores de Teorias do Drama e do Espetáculo da Universidade Nova de Lisboa. Nesta última circunstância intitulado Voz e espectáculo: memórias negras, caboclas, mouras e cristãs na Bahia, o projeto teria mais uma vez confirmada a sua importância para a pesquisa nas diversas áreas das artes cênicas e dos estudos sobre tradição e cultura contemporânea. É disto do que trata o presente livro, originalmente uma dissertação de mestrado no campo das artes cênicas, defendida em 2004 e da qual tive a honra e o prazer de ser orientador acadêmico. Sistematização do feito, de seus produtos até o momento –18 vídeos de meia hora e oito discos compactos (CDs) –, histórico e reflexão de ordem teórica e metodológica, este trabalho é relato de grande interesse para os profissionais das áreas da cultura e da educação, do audiovisual e, reiteradamente, da etnocenologia. Trata-se de material útil para análises mais pelas questões que sugere que pelas afirmações que poderia fazer, sobremaneira no que tange às relações custo-benefício no campo da gestão cultural. 1

“Un carrefour nommé Bahia: enjeux, problématiques ainsi que certaines pratiques concernant le patrimoine culturel immaterial à Bahia (Brésil)”.In: Internationale de l’Imaginaire nouvelle, Paris, n.17, p.175-187, 2004. “Uma encruzilhada chamada Bahia : o que está em jogo, qual é o problema e algumas práticas relativas ao patrimônio cultural imaterial na Bahia, Brasil”. In: Revista da Bahia, Salvador, v.32, n.38, p.16-23, 2004. A comunicação foi apresentada no Colóquio Le patrimoine culturel immatériel: les enjeux, les problématiques et les pratiques, realizado de 7 a 9 de agosto de 2003, na cidade de Assilah, com apoio da UNESCO e da Fundação Calouste Gulbenkian, dentro do XXV Moussem culturel international d’Asilah e da XVIII ème. session de l’université d’été Al Moutanid ibn Abbad.

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O interesse de estudantes e professores baianos, de todos os níveis, tanto do setor público quanto privado, por exemplo, bem como de outros interessados de dentro e de fora de nosso Estado, conforme atesta a importante demanda de aluguel e aquisição dos produtos desse projeto, na videoteca do IRDEB, é um indicador de sua relevância e benefício. Agregue-se a esse valor pedagógico o estrito valor documental de afirmação da pluralidade das identidades culturais baianas, bem como da singular autoestima de nossas comunidades da Bahia, muito comentada pelos formadores de opinião, em nível nacional – dentre as quais mesmo algumas das mais carentes em termos socioeconômicos – e teremos um conjunto de benefícios que pode superar o certamente grande investimento necessário em pessoal, material de consumo, equipamentos e custeio de viagens para a manutenção desse projeto. Assim, graças à competência acumulada pelo IRDEB, da qual o trabalho de Josias Pires é um testemunho, e graças à abrangência generosa da academia, à sensibilidade da Superintendente de Cultura, Sonia Maria Moreira de Souza Bastos, e ao apoio e interesse institucional do Secretário da Cultura e Turismo do Estado da Bahia, Paulo Renato Dantas Gaudenzi, o leitor poderá saborear este presente, sobre o qual, na verdade, tenho apenas uma certeza: ele é bom e útil. Espero que nisto o prezado leitor concorde comigo. Salvador, 21 de abril

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Pátria é nossa língua*

Nossa pátria é nossa língua e a Bahia um elo berçário para o Brasil e parte intrínseca e estruturante da rede intercontinental de países lusófonos. Navegar continua a ser preciso para que a arte e a cultura gerem renda e emprego e reduzam desigualdades socioeconômicas, tão alarmantes na maioria dessa nossa rede. Artistas, políticos e gestores parecem ter compreendido enfim este nosso destino e vocação. Cabe a cada um mergulhar de cabeça no oceano de problemas e soluções que nos fascinam, motivam e movem, e que nos cercam. Ainda mais ilhas isoladas que ilhéus a caminho de um verdadeiro arquipélago, nossas terras e gentes têm um futuro venturoso pela frente, se navegarem ao sabor das marés e ventos que já sopram. Em cada canto, porto e porta, um mundo de projetos. Alguns já em diálogo eventual. Na Bahia, sempre aberta ao exterior e amarrada a seu largo interior, estamos trabalhando, como em muitos outros lugares, para que ações frutifiquem e multipliquem-se. O panorama lembra a história, revela a geografia e anuncia uma nova antropologia pragmática. A imagem é de nós, laços e entrecruzamentos. A realidade é a nossa imagem; e semelhança. O Brasil possui enormes demandas internas e externas, de toda ordem. O comércio internacional é um grande desafio, assim como a diplomacia. A Bahia tem papel importante em ambos os casos no que concerne aos países africanos e de língua portuguesa, em geral. Aqui, por exemplo, desenhou-se a política internacional brasileira dos anos 90 para a África. E o mestre Agostinho da Silva participou desse desenho entre nós. O retorno político e simbólico do que foi feito neste campo tem sido

* Publicado em Cenaberta, Coimbra, Cena Lusófona, 10.05.2004. Disponível em: . Acesso em: 21.10.2008.

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grandioso, mas há ainda um longo caminho pela frente. Apesar das intervenções em andamento nos campos da engenharia e da publicidade, por exemplo, com ampla participação baiana, o que se investe em cultura de intercâmbio é ainda muito pouco. Hoje, com novos discursos e práticas, na área da cultura, desenhando-se no Brasil é necessário que se busque no passado o que, ainda útil no presente, poderá de fato alargar nossos horizontes, de nós brasileiros e nativos e nacionais dos oito países de língua portuguesa.

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Etnocenologia na serra*

Etnocenologia – todas as formas de espetáculo, do teatro profissional aos folguedos tradicionais e modos de vida – corrente acadêmica da qual faz parte o diretor teatral e pesquisador baiano Armindo Bião, encontra ecos em Guaramiranga. Em entrevista, ele conta a respeito. Vasos comunicantes. Para o diretor teatral e doutor em antropologia da teatralidade pela Sorbonne, na França, Armindo Bião, o teatro profissional é apenas uma das formas de espetáculo das mais diversas culturas. Nem mais, nem menos prodigioso do que os folguedos tradicionais. “Damos igual importância aos rituais e modos de vida cotidianos, compreendendo que tudo isso é um sistema, se inter-relaciona”, observa o também professor da escola de teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Afinado com a etnocenologia, ele prefere, portanto, falar em identificação, ao invés de identidade cultural. “A identidade seria um conjunto de identificações. Então, se os negros pobres da Bahia se identificam com os índios derrotados do faroeste americano, temos mais é que ouvi-los”, defende. Como pesquisador-bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Bião mergulha no universo das máscaras e investiga o teatro de cordel português, retroativo aos séculos XVIII e XIX. Em Guaramiranga, como jurado do X Festival Nordestino de Teatro, encontrou ecos de sua primeira pesquisa publicada, em torno dos dramas e romances que ouvia de esguelha, quando menino, nas vozes das serviçais de casa. “Aqui conheci dona Zilda, que cantou alguns trechos de dramas. O romanceiro ibérico é muito conhecido no Brasil, eram encenações que envolviam as famílias, a filha fala, o pai canta... Os dramas

* Publicado originalmente em jornal diário: O POVO, Fortaleza, Ceará, 16 set. 2003. Caderno vida & arte, p. 5.

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também vêm – muito – de colégios católicos. Então, enquanto dona Zilda cantava, lembrei: “Eu sou a rosa mais perfumosa / cheia de fragrância / Eu sou a rosa mais perfumosa / que representa o jardim da infância”, riu-se. Coordenador da Fundação Cultural do Estado da Bahia, Bião também trouxe, na bagagem, fitas de vídeos com o registro de dois projetos caros à etnocenologia: Bahia Singular e Plural e Caminhada Axé. No primeiro, há o registro audiovisual, em vídeo e CD, dos folguedos tradicionais baianos. No segundo, levam-se esses folguedos das várias regiões do estado para um desfile anual, em Salvador, semanas antes do carnaval. “Desde 1997, foram registradas mais de 200 manifestações de cerca de 300 municípios baianos. O trabalho gerou 17 fitas de vídeos e 8 CDs, que são alugados, exibidos, vendidos e doados a instituições. Também circulam no circuito de televisão educativa e cultural do Brasil e despertam o interesse da grande mídia”, apontou. Em conversa com o V&A, o filho de militar criado como espírita ortodoxo versa sobre o teatro como a arte do encontro e da troca. O P1 – Queria que você falasse de um encontro seu, durante o festival de teatro, com o mestre Vicente, que tem um boi aqui em Guaramiranga. Armindo Bião – Fui em companhia do escritor, pesquisador e dramaturgo cearense Ronaldo Brito. E Ronaldo queria que Vicente contasse como é o boi que ele faz. Mas Vicente não queria. Ronaldo perguntava: “Vicente, quando é que começa esse boi?” E ele: “Ah... não sei”. “E quanto tempo dura?”. “Ah... depende”. Foi quando Vicente perguntou para Ronaldo: “E o senhor sabe ler a bíblia do baralho?”. Foi quando me lembrei que a bíblia do baralho, é a história do soldado jogador, que é um folheto de Leandro Gomes de Barros, que depois foi comprado por João Martins de Athayde. Era a história de um soldado francês que se chamava Ricarte, jogador de profissão. Bom, ele jogava

1

Cf: O POVO, Fortaleza, Ceará, 16 set. 2003.

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tanto baralho que até na igreja jogava. Aí, um dia é descoberto jogando baralho na igreja e começa a dizer: “Quando pego em um ás que tem um ponto somente / me faz pensar que existe só um Deus onipotente / quando pego no dois / me lembro das duas tábuas de lei...” E assim vai fazendo com cada carta do baralho uma referência à Bíblia. Aí foi maravilhoso porque mestre Vicente começou a recitar e eu comecei a recitar junto. O que é mais incrível é que Ricarte, o soldado jogador, é um dos doze pares de França, um personagem incrível da história da Europa do século X. E está vivo aqui em Guaramiranga, interior do Ceará! Como está em São Tomé e Príncipe, na África, onde eu tinha estado um mês antes de vir para cá, e vi a luta de mouros e cristãos com Ricarte, que é o personagem que engana o gigante e consegue derrotar momentaneamente os muçulmanos, os mouros. Você vê então que é um personagem ligado a um fato histórico, a história de Carlos Magno e os Doze Pares de França e que no Brasil virou um personagem que inventa, joga baralho e faz o que quer. OP – Como nasce a etnocenologia e o que é pesquisado na prática? AB – A ciência desenvolve-se na tradição da Europa e a matriz grecolatina está na raiz das palavras que a define. A ciência tem a intenção de ser universal. E, a partir do século XIX, começou-se a ver que há conhecimentos que não são da ciência de tradição europeia, mas igualmente importantes e eficazes para a vida das pessoas. Então a ciência começou a se abrir para outras formas de pensar o mundo. Isso começou com a etnopsicologia. A psicologia dos povos. Nem todas as culturas têm as mesmas reações perante as mesmas coisas, certo? Então, a etnolinguistica, a etnobotânica, a etnomatemática são conjuntos de saberes que querem valorizar os conhecimentos que não são da ciência tradicional europeia. Em 1995, um grupo de pesquisadores reunidos na Unesco em Paris, propôs a ideia de que o teatro é apenas uma das formas de espetáculo. Há outras igualmente importantes. Na prática, procuro dialogar com isso que compõe o que chamo de um sistema espetacular. Que vai do teatro profissional aos folguedos, aos rituais e às formas de viver cotidianas. 365

Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos

Pessoalmente, a minha pesquisa tem a ver com o teatro português e brasileiro chamado profissional. Por outro lado, trabalho com as máscaras, que são a marca do teatro. Interessamo-nos pela Commedia dell’arte e suas máscaras porque queremos descobrir formas de usar as máscaras dos folguedos tradicionais da região do Recôncavo Baiano e da Chapada Diamantina para treinar atores. OP – Como a máscara chega ao Brasil? AB – Você vai encontrar máscaras em todas as culturas. É uma forma que o homem inventa de cobrir o rosto em parte ou no todo para representar os mortos, as divindades, os outros. Os índios já tinham máscaras antes de os portugueses chegarem. A tradição europeia tem as máscaras de teatro, algumas tradições africanas também usam máscaras. Os caretas, que existem em vários lugares do mundo, aparecem para as crianças terem o limite do medo. As máscaras saem assustando-as, é um susto pedagógico. Lembro-me de quando era criança e o quanto me abalavam. E tecnicamente, para o teatro, é um instrumento maravilhoso para o ator. Com a máscara, ele não pode deixar seu rosto passar por cima do personagem, tem que se submeter ao rosto da máscara. Há atores que não conseguem usar uma máscara. Porque é uma “paulada no ego”, como diz uma aluna minha, já que você não é reconhecido em cena. OP – Além das máscaras, que outras pesquisas estão em andamento? AB – Tenho me concentrado ultimamente no teatro de cordel português, o teatro profissional dos séculos XVIII e XIX, que fazia tanto sucesso perante o público que acaba se transformando em textos à venda, folhetos pendurados em um barbante. Na minha geração, na Bahia, trabalhou-se com adaptação de folheto de cordel para a cena. Então, numa pesquisa prática, os meus atores e alunos trabalham em duas vertentes: adaptar folhetos de cordel brasileiros para a cena e transformar em espetáculos textos do teatro de cordel português, lá chamados de entremezes. 366

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OP – Qual o caráter dos entremezes? AB – São sequências de cenas cômicas com números musicais. Chegam aqui como teatro profissional no Rio de Janeiro, em Salvador e outras cidades do país, no início do século XIX, com as companhias portuguesas, que trazem dramas, tragédias e, para concluir a noite, entremezes. A palavra é engraçada porque é um divertimento entre pratos de uma refeição. Na Europa, nos palácios, entre um prato e outro tinha um divertimento. Meio bufão, meio humorista. No Brasil, os entremezes acabam ganhando autonomia. E há espetáculos só de entremezes, no século XIX. São textos em verso, mas nem sempre. Não querem ensinar nada, é um meio de vida e de divertimento. Quando, no início do século XIX, as primeiras companhias brasileiras começam a se formar têm por um lado uma tendência de montar dramas e tragédias, mas o que vai ganhar corpo e fazer uma verdadeira tradição dramatúrgica no Brasil, evoluindo, por exemplo, para a comédia de costume, é o entremez, um fio tênue de intriga, de narrativa, que abria espaço para os musicais – aliás, muito licenciosos, muito safados, de duplo sentido. Tem uma atriz baiana chamada Joana Januária que cantava um lundu que dizia: “Castiga, meu bem, castiga ai, ai, ai...”. Aí seu nome virou Joana Castiga. Ela é proibida de cantar durante um tempo no teatro São João e o lundu é tirado de cena, por ser sempre uma alusão ao sexo. Tem um entremez, que é de 1789, nesse, aliás, é a primeira vez que aparece a palavra bião. É um balde que os negros caiadores, personagens recorrentes dos entremezes, usavam para carregar cal para pintar paredes. Conta a história de um velho chamado Pirralho, corcunda, rico e avarento, que deve a um bocado de gente e não paga. Aí o negro caiador vai cobrar o dinheiro. Ele diz que não vai pagar, que vai chamar a Justiça... E o negro caiador diz que é ele quem vai chamar a Justiça porque tem direitos. É a primeira vez, segundo José Ramos Tinhorão, que a categoria profissional negra, em Portugal, diz que tem direitos e meios legais para fazê-los valer. Então até do ponto de vista sociológico é interessante. OP – Como orientador, que pesquisas vêm interessando a você? 367

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AB – Tenho um grupo de pesquisa de doutorandos e mestrandos com seis pesquisas que estão em andamento. Uma pesquisa volta-se para as Cavalhadas em Brasília; outra estuda as máscaras da Bahia, criando máscaras também, a partir da convivência com mestres do interior. Um pesquisador trabalha sobre bois e cavalos-marinhos de Joaquim Cardoso, na Zona da Mata de Pernambuco; outro trabalha com índios – está fazendo uma pesquisa sobre as formas de encenação dos Tupinambás. Outro – da área de psicanálise – trabalha com a questão exibicionista do corpo masculino baiano, do tipo Carlinhos Brown, o tipo de homem que goza com o olhar do outro. Uma aluna minha pesquisa a comunidade remanescente de quilombo na Chapada Diamantina, predominantemente feminina, onde as mulheres têm uma série de festejos ligados ao calendário religioso e afro-brasileiro. Elas dançam com umas garrafas de cachaça na cabeça, bebendo. É interessantíssimo! No aeroporto de Cabo Verde, na Ilha do Sal, o painel principal representa mulheres dançando com garrafas na cabeça, veja só. Tive a oportunidade de visitar dois países da África e tomar contato com formas de espetáculo que existem no Brasil também, como a luta de mouros e cristãos, por exemplo, ou o chamado Ciclo de Carlos Magno. E qual o sentido dessa manifestação para a população pobre da Ilha do Príncipe, na costa da África, que é tremendamente pobre e uma vez por ano faz, durante o dia inteiro, esse espetáculo, mobilizando a cidade, que se divide entre mouros e cristãos, recontando uma história tão remota? Para eles, aquilo tem o poder de reunir a comunidade e é o que dá sentido à vida. Porque a arte é uma forma de ultrapassar a dor do dia a dia, a ameaça de morte. OP - Não é comum assistirmos a espetáculos que impressionam pelo texto em si, pura e simplesmente, Aconteceu aqui em Guaramiranga. Você acha que o teatro se distanciou da sua essência, a palavra? Seria por que no Brasil temos poucos dramaturgos em atividade? A quantas anda a dramaturgia brasileira? AB - O teatro como palavra surge na Grécia do século quinto, antes de Cristo, e se considera esse período e esse lugar a matriz do teatro europeu ocidental. E lá – realmente – o texto tem um peso muito grande. E foi 368

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assim na história do teatro ocidental durante os séculos. No século XX, a partir da década de 60, começa uma série de experiências tentando valorizar outros elementos dos espetáculos, além do texto. O visual, o texto não-verbal, a trilha sonora, a caracterização. No Brasil – é a época também da ditadura militar, muitos textos são censurados – ficamos muito tempo sem renovação da dramaturgia. Mas, ultimamente, isso tem acontecido, Deus Danado, de João Denys (N.R. espetáculo cearense apresentado no sábado, em Guaramiranga, como parte da Mostra Competitiva), é um dos sintomas dessa retomada da dramaturgia no Brasil.

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Conflito é exacerbação e quebra de equilíbrio*

Sou daqueles que acreditam que a arte, o jogo, a brincadeira e a cultura são criações humanas para superar problemas do dia a dia. A violência como algo que interrompe o equilíbrio das coisas é um fenômeno da natureza e da cultura. As artes são formas de superar esses elementos. A guerra é a exacerbação, no âmbito da cultura, dessa quebra de equilíbrio. Uma coisa que tem sido clara nas minhas pesquisas é que a demanda exacerbada dos conflitos é, da cultura, o jogo dos extremos. Encontramos conflitos em toda a história da humanidade. Uma outra forma de lidar com o desequilíbrio é o jogo e a arte, daí entram a diplomacia e a política. O que se espera depois do conflito é o fomento da arte e da brincadeira.

* Publicado In: A TARDE, Salvador, 20 mar. 2003. (A propósito da invasão dos EUA no Iraque, com a legenda NÃO À GUERRA)

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O estético dá a ligação comunitária*

Qual a sua visão sobre o conceito de identidade cultural e, particularmente, de uma possível identidade cultural baiana? Eu trabalho na área de Artes Cênicas, mais especificamente em Teatro, mas me interessam muito as matrizes culturais que dão perfil e contorno à cultura baiana de um modo geral, como o Teatro e as Artes Cênicas que se inserem nesse contexto. Nos últimos anos, estou trabalhando com uma rede de pesquisadores na Bahia, no Brasil, na França, nos Estados Unidos e em outros países também, em torno de uma ideia que nós chamamos de etnocenologia, que é a etnociência do espetáculo, na mesma medida em que foram propostas a etnomusicologia, etnolinguística, etnobotânica, etnomatemática. A ideia é superar o preconceito etnocentrista e valorizar a diversidade espetacular das diversas culturas. No caso da Bahia, tenho um projeto de pesquisa que venho desenvolvendo há alguns anos e que gerou uma publicação chamada “Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade” (encontrada em Temas em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade, livro organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA). Grosso modo, correndo o risco de ser superficial e rude, o que identificamos é uma multiplicidade de matrizes estéticas na Bahia, distribuídas de forma diferenciada entre Salvador, o Recôncavo, o litoral sul e norte, a Chapada Diamantina, o sertão, enfim, as várias regiões geoculturais que compõem a Bahia. Mais especificamente, tenho me concentrado no estudo da baianidade de Salvador e do Recôncavo, ou seja, da Baía de Todos-osSantos. Essas matrizes são evidentemente a nativa, que é múltipla, porque não é apenas tupiniquim ou tupinambá, é evidentemente europeia, mais

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Entrevista concedia para SBPC Cultural Bahia, Bahia, que lugar é este?, Disponível em: . Acesso em 17.10.2008.

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especificamente ibérica, mais particularmente portuguesa, mas com marcas importantes da cultura espanhola, das culturas latinas europeias, da cultura em geral da Europa Ocidental. Do mesmo modo, as culturas africanas, que são múltiplas e que chegaram em levas sucessivas ou simultâneas. Essas culturas se misturam numa cidade que, durante quase dois séculos, foi a maior cidade europeia fora da Europa, a maior cidade africana fora da África, e um ponto de circulação importante de informações vindas do Oriente, seja do Japão, da China, da Índia ou das Ilhas do Pacífico, da África como um todo, do Caribe e da Europa. A Bahia é um ponto de referência do comércio internacional há muitos séculos. Essa situação fez com que essas matrizes tradicionais se misturassem e continuassem a receber aportes novos durante muito tempo, o que fez com que esta se tornasse uma cidade aberta. É uma cidade que tem um nome feminino, que se remete a um acidente geográfico aberto, de entrada, uma baía, de todos-os-santos, o que já assegura uma certa pluralidade, e que se acostuma a absorver informação nova, a processar e a criar novidade. Assim, afirma sua perspectiva histórica de porto comercial, onde o mais importante, eu diria, não é a moral ou a ética no sentido estrito. Aquilo que dá cimento, que dá ligação comunitária, é o estético, o que se sente e o que se considera como belo. É uma cultura autorreferenciada, mas que absorve influências externas e diz isso. O trio elétrico, por exemplo, todo mundo sabe que apareceu porque um dia passaram aqui as vassourinhas, um bloco carnavalesco pernambucano. A gente gosta de criar novidade, de absorver novidade e depois jogar isso no comércio, e vive um movimento permanente de transformação cultural, que cada vez mais ratifica a tradição. E que tradição é essa? É aquela da abertura comercial e da incorporação das novidades e da criação de novas novidades. Qual seria a importância dessa discussão para o fazer artístico e para a sociedade, na Bahia? Para o fazer artístico, eu diria que seria uma atualização, uma retomada da linha evolutiva, no sentido de valorizar e difundir essa diversidade. 374

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Hoje, há grupos na Bahia que têm como temática a negritude, por exemplo, ou as culturas nativas. Claro que havia rituais representativos nas culturas nativas, nas culturas africanas, mas o teatro é uma matriz europeia, sem dúvida alguma. O fato é que temos práticas espetaculares que não se restringem ao teatro. Eu acho que as procissões, os rituais afro-brasileiros têm um componente espetacular muito grande. Então, para a criação artística, a compreensão dessa diversidade e dessa dinâmica faz com que a produção artística se diversifique, se inter-relacione, criando o que eu chamo de sistema espetacular, que vai desde o teatro à dança, ao esporte, à moda, ao carnaval. É um sistema na verdade único, complexo, mas inter-relacionado. Para a sociedade, os estudos mais recentes dos organismos internacionais apontam que está na cultura, no lazer e no turismo o futuro de criação de renda e emprego. Então, a minha expectativa, a minha esperança, é que essa dinâmica cultural venha a reduzir as desigualdades sociais, que são absurdas no caso da Bahia, do Nordeste e do Brasil, gerando renda e empregos. O meu discurso, evidentemente, tem um tom mais otimista do que o de muitos de meus colegas, que lamentam a degradação, a vulgarização, a banalização da cultura. E isso compreendendo que eu não posso separar a arte, a universidade, da sociedade; eu não posso separar a cultura do lazer, do entretenimento, até mesmo do turismo. O conceito contemporâneo de aglomerado ou de sistema faz com se compreenda que as coisas todas se tocam, todas dependem umas das outras, e que o valor maior, do meu ponto de vista, é justamente a diversidade, o espaço plural, para todas as manifestações espetaculares, desde as de cunho mais religioso, político às estritamente artísticas. Mas o que está em evidência na cultura baiana não é muito homogêneo, considerando que a Bahia é um espaço tão múltiplo? Não, eu não acho que ele é muito homogêneo Acho que ele é muito dinâmico e que tem modas dominantes temporariamente, mas elas se alternam e há nichos de mercado, para usar uma expressão da área, que sempre reservam um espaço importante para, por exemplo, um programa como o Bahia Singular e Plural, da maior importância, que o IRDEB vem fazendo, no sentido de registrar e divulgar folguedos e 375

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práticas espetaculares que não estão na dominante do mercado. Não estão, mas estão no Aeroclube Plaza, estão no IRDEB, têm gerado comerciais para a televisão, eventos de toda sorte, aumentando a autoestima e reafirmando certas matrizes que não são dominantes no mercado. Sim, mas nem tudo será dominante, e nada será dominante sempre. A gente tem que ouvir o que está sendo vendido, aprender com isso, inclusive não ter vergonha de achar a qualidade musical, artística e espetacular de todos esses segmentos, dominantes ou não. O mercado é dinâmico, e as instituições têm seu papel a cumprir. Eu acho que é possível haver formas de regulações de mercado. Eu não saberia o que propor. Tenho a propor no sentido de tentar entender o que é que acontece e, no caso do teatro e da dança, gerar pesquisas sistemáticas, com produção teórica, bibliográfica, artística e técnica sobre o que estudamos e o que encontramos. Que indicações você faria de manifestações culturais e artísticas baianas representativas? Eu falei do Bahia Singular e Plural, que tem levantado um acervo muito grande. Tem as procissões religiosas e as festas religiosas mistas ou não, sincréticas ou não, católicas, afro-baianas, e mesmo as evangélicas, que têm um componente espetacular muito grande. Tem o esporte... Foi muito interessante ver Popó brincando com Ivete Sangalo em cima de um trio elétrico. No Arerê Geral, um programa da TV Bahia, você vê uma modelo e um ator apresentando artistas de todo tipo. Tem dois espetáculos da Escola de Teatro, “Umbiguidades”, de Iami Rebouças, e “Insônia”, de Hebe Alves. A produção da escola é muito representativa e reveladora da baianidade. Essa é uma hipótese que se vem verificando, porque houve muita crítica – historicamente – de um distanciamento da escola da cultura baiana. Fora da escola, eu vejo alguns núcleos importantes, como o Bando de Teatro Olodum, que faz um trabalho da maior importância, de recriação da matriz afro-baiana. Tem uma companhia em Lauro de Freitas, chamada Companhia Tupã de Teatro, salvo engano, que trabalha mais especificamente com as matrizes nativas, um trabalho de Luís Laranjeiras. Carlos Petrovitch fez uma ópera recentemente, “O menino que queria ser rei”, com lenda de origem afro-baiana. E tem o Malê de Balê, que é motivo de pesquisa de doutorado no nosso programa. 376

Armindo Bião

Uma homenagem ao talento*

Armindo Bião é professor titular da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia e, até mergulhar fundo na empreitada do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC), foi um dos atores mais atuantes da cidade. Quem via teatro na década de 70, por exemplo, não deve ter esquecido de Cândido, um dos sucessos dele. Hoje, o ator veste o “personagem” professor, enfeitiçando plateias de alunos, com aulas que misturam teatro a filosofia, sociologia, geografia, música, história... Coordenador do PPGAC (conceito 5 na avaliação da Capes), Bião foi professor da Universidade de Paris, é presidente da Associação Brasileira de Pesquisa e PósGraduação em Artes Cênicas e, junto com outros professores, de outras universidades, de outros países, vem concebendo a etnocenologia, uma área de estudo que vem ganhando status de Ciência. Bião foi homenageado, essa semana, durante a cerimônia de entrega do Prêmio Copene de Teatro, no Teatro Castro Alves (que homenageou também o ator e circense Luís Carlos Vasconcelos e o ator espanhol Tortell Poltrona). Nesta entrevista, ele explica por que, há cinco anos, não pisa em um palco de verdade. P – Qual o significado de uma homenagem como a que você recebeu essa semana? R – Para mim, é ver-me parte de uma rede de artistas, atores, diretores, autores, técnicos de luz e efeitos especiais, produtores e gestores das artes do espetáculo da Bahia, que dialogam e realizam parcerias com seus pares em nível nacional e internacional.

* Entrevista publicada originalmente na Revista da TV, suplemento dominical do jornal diário A Tarde, Salvador, Bahia, p. 16, 07 abr. 2002.

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P – Por que você largou a prática para cuidar da teoria? R – Não larguei a prática para cuidar da teoria. Larguei para cuidar daquilo que sempre me fascinou – a prática do teatro (aquilo que é organizado por uns para o olhar dos outros), associada à teoria (o olhar sobre a prática), que é parte integrante dessa prática, num círculo virtuoso (organizar ações para o olhar dos outros leva a olhar essas ações – além de outras similares – e vice-versa) que leva ao conhecimento pleno. Na verdade, fui, também, levado a assumir funções de gestão no âmbito da Universidade. A gestão é que toma muito tempo. Mas continuo atuando na prática também como professor, pesquisador, diretor e, muito mais raramente do que desejaria, como ator. P – Foi fundamental você ter iniciado o movimento de criação do PPGAC, há cinco anos. Assim, você foi praticamente pioneiro no Brasil. R – Pela primeira vez no Brasil começou-se um programa de pósgraduação simultaneamente nos níveis de mestrado e doutorado. Isto também em 1997, na UFBA e na área das artes cênicas. Na época só havia doutorado nessa área na USP. A UNICAMP e a UNIRIO tinham só mestrado. Ora, a UFBA tem uma história singular de investimento em artes. A Bahia tem vivido nas últimas décadas um crescimento significativo no âmbito das artes do espetáculo e o Brasil vem se integrando à economia acadêmica internacional em termos de pesquisa e pósgraduação. O PPGAC é apenas uma interface de tudo isso. Eu e muitos colegas e alunos estávamos – estamos – no lugar certo, na hora certa, construindo, juntos, o PPGAC. P – Como vai o PPGAC, que você coordena? R – Vai bem, consolidando seus convênios com a UFBA, a UFPE e a UNB, ampliando suas parcerias com universidades da Amazônia (UFPA, UEPA, UNAMA) e da França (Paris 10 Nanterre e Paris 8 Saint-Denis), e iniciando novas formas de cooperação (com a Universidade Federal 378

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do Rio Grande do Norte). Continuamos sediando a Associação Brasileira de Artes Cênicas (Abrace) até o segundo semestre deste ano. Já formamos até hoje 22 mestres e três doutores, devendo formar, em 2002, mais 21 mestres e dois doutores. P – E a etnocenologia? R – Trata-se de uma busca transdisciplinar do sentido da diversidade humana espetacular. Há sete anos, reunimo-nos – Jean Duvignaud, Jean Marie Pradier, Chérif Khaznadar, Jean-Marcel d’Ans, Françoise Gründ e outros – na Unesco, em Paris, para discutirmos a proposição de uma nova disciplina que aliasse teoria e prática espetacular, de forma comparada. De lá para cá, realizamos muitos colóquios, publicações e eventos, em diversos países. Na Bahia, temos trabalhado com máscaras, etnociências afins, montagens didáticas, folguedos comunitários e formas codificadas de ação espetacular no cotidiano. Ora, cotidiano como espetáculo interessa às multidões e assusta e desafia – sem dúvida, muito – os intelectuais... P – Você estará voltando à cena em breve? R – É possível que, a convite de Harildo Deda (com quem fiz Hedda Gabler, de Ibsen, há cinco anos), venha a fazer, a partir do próximo semestre uma participação como ator numa montagem de Volta ao Lar, de Harold Pinter.

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Multiculturalismo: multiculturalidade*

A multiculturalidade é a categoria conceitual que reconhece a coexistência de matrizes culturais diversas em fenômenos contemporâneos, caracterizados pela dinâmica de contatos interculturais e pela criação de novas formas de espetáculo. No contexto da contemporaneidade, que tem posto na ordem do dia questões relativas a matrizes culturais, à diversidade étnica e à mestiçagem racial e cultural, a Bahia constitui-se num laboratório precioso para o desenvolvimento da etnocenologia e o estudo da coexistência das tradições com as novas tecnologias, da indústria cultural e do turismo, inclusive com os aspectos de globalização de mercado, que têm gerado emprego e renda, e podem gerar muito mais; e com a utilização de práticas cênicas em festas, no carnaval principalmente, o que seria a contribuição baiana para esses novos fenômenos espetaculares contemporâneos, na qual se inscrevem as artes do teatro e da dança, e as que atingem a vida cotidiana das pessoas em todos os cantos do mundo. Conceitos como transculturação, matrizes culturais (linguísticas, religiosas, étnicas, estéticas, técnicas e temáticas), identidade, alteridade, identificação, mestiçagem e sincretismo, usados no âmbito do estudo da multiculturalidade artística e social, podem ser instrumentos epistemológicos eficazes se definidos de modo “ideal-típico” e, se aplicados sempre a exemplos concretos. É o que pretendemos propor ao Grupo de Trabalho, a partir do desenvolvimento, ao longo de dois

* Publicado originalmente In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E ARTES CÊNICAS, 1., 1999, São Paulo. Anais... Salvador: Memória ABRACE I, Salvador, 2000. p. 635.

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anos, de um projeto integrado de pesquisa, intitulado Etnocenologia na Bahia: Culturas e Encenação, atualmente em fase de elaboração de relatório. Foram consideradas para este projeto as noções de matrizes linguísticas (da oralidade, da escrita portuguesa, espanhola e árabe), religiosas (cultos nativos, cultos africanos, catolicismo ibérico, islamismo), étnicas (tupi, banto, sudanesa, lusa), estéticas (barroca, etc), técnicas (cotidianas e extracotidianas) e temáticas (sacra, lúdica, cerimonial, existencial e cotidiana). Tentou-se realizar uma espécie de arqueologia da sensibilidade contemporânea.

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Orelha de livro sobre a imprensa alternativa na Bahia nos anos 1970*

1968 foi até 1979. A ditadura militar em pleno desenvolvimento econômico no Brasil. No mundo, guerras anticolonialistas e revoltas anarquistas anunciando o colapso dos grandes modelos de organização política, social e econômica. Anos 70: o apogeu da orgia e a ressaca dos anos 60, a consolidação dos mitos de origem para a crise mundial das instituições e para o fortalecimento das redes de relações interpessoais, a globalização e a segmentação dos mercados, a industrialização cultural e turística, a sofisticação e a banalização das tecnologias telemáticas, a valorização da tradição e da multissensorialidade, da imagem e do imaginário, da razão relativista e de todos os estados da consciência, inclusive o transe, o êxtase. O corpo humano reina soberano. Na Bahia, nesse período, o Centro Industrial de Aratu, o Polo Petroquímico de Camaçari e a profissionalização do turismo movimentam as velhas estruturas socioeconômicas, promovendo a mobilidade e a dinamização culturais. Salvador consolida-se como polo cultural com o tropicalismo, os ecos do cinema novo, o carnaval (estão transformados com a eletrificação soberana e a afro-baianização) e uma promissora indústria fonográfica. As elites e a juventude nunca mais foram as mesmas. Tudo isso tem um momento simbólico, o verão do desbunde (1971 / 1972), quando o Verbo Encantado se mantém em vinte e duas edições, um recorde entre os “nanicos” locais, e os baianos voltam do exílio em Londres.

* In: VILELA, Gleide et al. Os baianos que rugem: a imprensa alternativa na Bahia. Salvador: EDUFBA, 1996.

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É em boa parte esse o clima do trabalho de pesquisa de estudantes de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que, uma geração depois, debruçando-se sobre a produção jornalística alternativa baiana, bem orientados, documentam, registram, comparam e interpretam. Belíssimo exemplo da excelência da produção acadêmica da UFBA. Como envolvido na trama por uma rede de mais de duas décadas de tessitura, assinalo, apenas, o exemplo do Verbo, que se manteve tanto tempo graças a essa teia de relações interpessoais, à vontade no novo ar do tempo que começava a soprar e no clima amadorístico que costuma servir de berço às grandes mudanças culturais e profissionais. Temas e formas experimentados e expressos na época, como diferentes, inusitados, anômicos, passaram a ser utilizados como banais, corriqueiros, canônicos. Artes, costumes e variedades (além dos citados no livro, colaboraram com O Verbo Caetano Veloso, José Carlos Capinam, Chocolate, Paulinho Camafeu, Pedro Karr, Sérgio Farias, Marco Gavazza e Antônio Risério), convivendo como o esporte (França Teixeira, Nelson Rocha, Gilson Ney, Fernando José), política (José Sergio Gabrielli, Aécio Pamponet), direito (Luís Carlos Café). Este livro representa uma vitória da memória e uma promessa: no futuro, o passado terá o papel de fortalecer o presente. A Bahia ruge em todas as direções no tempo e no espaço. Essa baianidade, que cozinha, constantemente, os valores culturais dominantes no caldeirão da novidade e da contracultura, tem, aqui, seus temperos apreciados e servidos, através do estudo de um capítulo do jornalismo e da cultura brasileira contemporâneos.

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Uma viagem pela teoria em Paris*

Em setembro de 1986, deixava a Bahia, rumo a Paris, um dos mais festejados nomes do teatro baiano, o ator Armindo Bião. Sua permanência, de quatro anos, está apoiada numa bolsa de estudos obtida junto a um órgão ligado ao Ministério da Educação no Brasil e com a qual espera concluir um doutorado, onde, em essência, num plano meramente teórico, desfia como tema a teatralidade na vida cotidiana. Um doutoramento que o tem levado a consumir boa parte do tempo em Paris, debruçado em compêndios da literatura sociológica e antropológica. Em outubro de 1990, Bião defenderá sua tese, quando definitivamente retornará ao Brasil. No momento, está no País recolhendo todo o material necessário para a sua fundamentação, incluindo entrevistas com antropólogos, autores e diretores de teatro, editores e até vasculhando lembranças e entrevistando também algumas pessoas que estiveram fazendo um dos primeiros jornais alternativos do Brasil, inteiramente produzido na Bahia, no início da década de 70, o Verbo Encantado. Ao deixar a Bahia, Bião trabalhava no Departamento de Teatro da UFBA, ensinando Expressão Corporal, Interpretação, Indumentária e Dicção. Ele já participou de mais de 40 peças desde que se lançou como ator, no final dos anos 60, mas distingue três delas especialmente: Macbeth, Electra e Bocas do Inferno. O fato de você ficar quatro anos fora de Salvador decorre de desilusões e dissabores com o teatro baiano? AB – A palavra desilusão me lembrou uma música popular e eu acho que em relação ao teatro baiano é possível que tenhamos uma série de desilusões. Mas vamos situar isso melhor: faço teatro na Bahia desde 1967, no Teatro Vila Velha. Um teatro semiprofissional, semiamador, ao

* Entrevista a José Cerqueira, publicada no Jornal A Tarde, Salvador, a tarde, 18 jul.1988. Caderno 2, p. 1.

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qual nunca tive condições de me dedicar completamente. A primeira vez que tive condições de me dedicar 24 horas ao teatro não foi na Bahia. Ganhei uma bolsa da Fundação Fulbright para estudar teatro nos Estados Unidos, de 81 a 83, no estado de Minnesota. E como é que surge a bolsa para estudar em Paris? B – No caso dessa bolsa, eu tive que batalhar para conseguir junto à CAPES – Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior, um órgão ligado ao Ministério da Educação. Para fazer o quê, exatamente? B – Para fazer um doutorado na área de Ciências Sociais, onde a temática seria a questão do treinamento do ator, da teatralidade na vida cotidiana, mas como um trabalho em Ciências Sociais e não em Teatro. Não existem doutorados de performance, práticos, eles são eminentemente teóricos, inclusive na área de Teatro. O curso de pós-graduação, que fiz nos Estados Unidos, este sim, foi prático, de performance. Já que o meu estudo em Paris seria teórico, preferi estudar algo mais amplo, utilizando a Sociologia, a Antropologia, no sentido também de compreender um pouco a Bahia, que é minha terra, com a qual me identifico, mas que nunca pude compreender muito bem, já que gosto, rejeito, sempre tive uma relação ambígua. E qual é a tese que você defenderá? B – O meu doutorado é na área de Antropologia Social e Sociologia Comparada e defendo minha tese em outubro de 1990, que tem como título, Corpo, Teatralidade e Espetacularidade: Um Estudo de uma Aventura Tribal Contemporânea à Orientação Estética. É um nome pomposo e ao mesmo tempo técnico, mas que certamente será mudado. O seu envolvimento com a Sociologia e a Antropologia poderá resultar no retorno à Bahia de um Armindo Bião desinteressado pelo teatro? 386

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B – Acho que não. Meu interesse pelo teatro é como atividade profissional regular, como atividade artístico-amadorística, o teatro popular do tipo bumba meu boi, danças dramáticas e mesmo certos rituais do candomblé, que algumas pessoas acham que é teatro e que eu não concordo. Enfim, tenho uma área de interesse mais larga, que vai desde a televisão a cabo até os eventos da vida social que não são teatro, mas que têm aspectos teatrais e espetaculares. O teatro em si continua como o centro de interesse que me organiza, porque inclusive continuo trabalhando em teatro na França, participando de oficinas e agora estou inclusive coordenando oficinas. Como está o teatro na França? B – A impressão que tenho é a de um teatro bastante variado. Tem o teatro profissional de bulevar, de comédias picantes e que já existe há mais de um século e que sempre tem público certo, que funciona; tem o teatro das grandes vedetes da TV e do cinema, como Jean Paul Belmondo; tem a Comédie Française, que é um teatro tradicional, ligado à dramaturgia francesa; e há ainda os grupos de teatro mais independentes, remanescentes dos anos 50 e 60. De uma certa forma, todos eles são marcados pela força da tradição cultural literária francesa . No Brasil, o tema de que o teatro está morrendo é sempre muito discutido. Na França provoca também assombros? B – Não na mesma medida que aqui. Eles têm uma consciência histórica, de processo, muito profunda. Eu comparei, nem sei se é comparável, mas a cultura francesa tem uma visão de si própria como a cultura egípcia talvez tivesse, de uma civilização milenar. Quando digo francesa talvez esteja simplificando, mas um pouco a europeia. Então, o teatro tem apenas dois mil anos . E na Bahia, como você está vendo o nosso teatro? 387

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B – Eu não o tenho acompanhado, depois que viajei, mas sinto que a questão social, política, influi de forma estafante em nosso meio teatral. As coisas estão difíceis – não estão nada boas. Mas acho que a tradição cultural popular baiana é um grande material que a gente do teatro sempre deu muito pouca importância, desde os rituais corporais, de dança, do candomblé, capoeira, acho que é realmente uma área para ser trabalhada. Isso tudo pode dar material de espetáculo. A tradição dos contadores de estórias, de tradição africana, que existe na Bahia, também pode dar espetáculo. Quer dizer, a ideia do teatro antropológico me interessa porque é um teatro que não é profissional no sentido comercial, regular. É o que Eugenio Barba faz na Dinamarca. É claro, o sonho do ator é viver de seu trabalho de ator e, se isso não é possível na província é preciso que ele procure em outro lugar. De um modo geral, o teatro como atividade regular, profissional, é uma atividade de metrópole . Que tipo de material você está recolhendo para montar sua tese? B – O material teórico, de base, já tive acesso em Paris, mesmo alguns temas do Brasil. No Rio, devo ter alguns contatos com antropólogos, com o pessoal do Museu Nacional, da Editora Brasiliense, para pegar alguns referenciais que me interessam, nessa área de teatralidade da vida cotidiana, técnicas de corpo e do movimento – que me interessam mais historicamente, ou seja, o momento entre 68 e 77 no Brasil . Por que 68 e 77? B – Porque acho que, arbitrariamente, virou um marco histórico não só no Brasil, mas no mundo. Na França, o maio de 68; na Checoslováquia, a invasão russa; no Brasil, o AI 5 e o exílio dos artistas, toda a questão da ditadura, misturada com a Copa do Mundo de 70. É um período arbitrariamente escolhido, de 10 anos, com o qual me identifico, e relaciono a história de minha vida. Desse período, sobretudo me interesso pelo material que se refere a um grupo de jovens do qual fiz parte,e que, entre 68 e 77, desenvolveu uma série de atividades públicas, muito ligadas à produção artística. Estou, por exemplo, recolhendo o material publicado 388

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no jornal Verbo Encantado, que se constituiu de 22 edições de circulação nacional, de 71 a 72, e a revista Viver Bahia, de turismo, que existiu de 73 a 75, também 22 edições, por absoluta coincidência. Recolho também programas de espetáculos de música e de teatro dessa época. Além do material, realizo também algumas entrevistas . Nesses dois anos que você ficou em Paris, do ponto de vista pessoal, como tem sido a sua adaptação? B – No início foi muito complicado, muito difícil porque quando se vai viver em outro país por um tempo maior tem aquela fase de excitação, do deslumbre, e a outra, do dia-a-dia, que não é fácil porque você muda todos os seus hábitos, não apenas a língua. Você pode querer manter uma aparência completamente distinta, a mesma que tinha em seu país de origem, mas também pode querer mudar, dependendo do grau de integração que queira. No meu caso, eu queria ao mesmo tempo me comunicar numa relação agradável com os colegas, professores, amigos, vizinhos, e, por outro lado, questionei muito também a minha pessoa, porque, nos Estados Unidos, onde vivi três anos, passei por todas essas fases, mas me integrei um pouco menos do que atualmente, na França. Das dificuldades, qual a que você aponta a maior? B – Acho que é a do relacionamento interpessoal, os pequenos rituais do cotidiano das relações entre as pessoas. São diferentes na mesma cidade a depender de onde você esteja circulando. Eu precisei compreender um pouco a linguagem corporal, a distância de uma pessoa a outra . Onde você se sente mais confortável, fazendo ou ensinando teatro? B – É difícil dizer. Tem momentos que estou ensinando teatro e estou fazendo teatro também. Tenho um grande prazer de compartilhar, mostrar e ver, também, algo a ser criado por um aluno. O curso de teatro prático – interpretação, dança corporal, dicção – dá muito prazer. Mas também gosto muito quando estou no palco. 389

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