Violência, agressividade e dominação: Uma reflexão psicanalítica sobre a masculinidade
December 11, 2017 | Author: Sophia Carneiro Álvares | Category: N/A
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica
Violência, agressividade e dominação: Uma reflexão psicanalítica sobre a masculinidade
Eliana Lorentz Chaves
2008
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UFRJ
Violência, agressividade e dominação: Uma reflexão psicanalítica sobre a masculinidade
Eliana Lorentz Chaves
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Psicologia. Orientadora: Marta Rezende Cardoso
Rio de Janeiro Agosto/2008
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Violência, agressividade e dominação: Uma reflexão psicanalítica sobre a masculinidade Eliana Lorentz Chaves Orientadora: Marta Rezende Cardoso
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Psicologia.
Aprovada por:
_______________________________ Profa. Dra. Marta Rezende Cardoso
_______________________________ Prof. Dr. Paulo Carvalho Ribeiro
_______________________________ Prof. Dr. Joel Birman
______________________________ Profa. Dra. Regina Herzog
______________________________ Profa. Dra. Marisa Schargel Maia
Rio de Janeiro Agosto/2008
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Chaves, Eliana Lorentz Violência, agressividade e dominação: Uma reflexão psicanalítica sobre a masculinidade. Eliana Lorentz Chaves. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2008 183 f. ; 29,7 cm Orientadora: Marta Rezende Cardoso Tese (Doutorado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2008. Referências Bibliográficas: f. 177-183. 1. Masculino. 2. Feminino. 3. Violência. 4. Psicanálise. 5. Tese (Doutorado). I. Cardoso, Marta Rezende. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título
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Agradecimentos
A Marta Rezende Cardoso, orientadora dedicada e atenta que em muito contribuiu para o avanço de minha pesquisa. Aos professores do Programa de Teoria Psicanalítica pela inestimável oportunidade de trocas e aprendizagem. A CAPES, pelo investimento em minha pesquisa de doutorado e pelo louvável incentivo à pesquisa em Psicanálise. Aos professores Regina Herzog e Paulo de Carvalho Ribeiro, pela rica discussão que propiciou valiosas contribuições por ocasião da Banca de Qualificação. Aos queridos colegas da UFRJ. A Pedro Henrique Bernardes Rondon, pelo cuidadoso e primoroso trabalho de revisão e pelas enriquecedoras sugestões. Aos meus clientes, alunos e supervisionandos.
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A Jorge Elias Salomão, companheiro de todas as horas. A Santiago Chaves Ellwanger, filho querido.
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Resumo Violência, agressividade e dominação: Uma reflexão psicanalítica sobre a masculinidade
Eliana Lorentz Chaves Orientadora: Marta Rezende Cardoso
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Psicologia.
Nesta tese investigamos a masculinidade e seus enlaces com a violência, a agressividade e a dominação, considerando a articulação freudiana entre agressividade e sexualidade masculina. Partimos de duas observações intimamente associadas: os homens manifestam sua agressividade de forma mais evidente que as mulheres, e os homens dominaram as mulheres através dos tempos. Essas premissas nos levam ao estudo das relações de dominação e ao fenômeno da dominação masculina. Tomando o par masculino/feminino, vemos que as mulheres aparecem como depositárias da castração e da passividade, sendo sobre esta base que se alicerçam o desprezo, o medo e a hostilidade dos homens. Posto que não compartilhamos da fundamentação biológica freudiana para a agressividade masculina, buscamos na “teoria da sedução generalizada”, de Jean Laplanche, um referencial teórico que prioriza o outro na constituição do psiquismo. A partir de proposições que contrariam o postulado freudiano de uma masculinidade inicial da criança, contidas nas propostas das origens femininas da sexualidade e da identificação feminina primária, nossa questão se desloca do “feminino das mulheres” para o “feminino nos homens”. Este traz à tona os riscos da passividade,
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associada à homossexualidade. Seguindo os paradoxos da sexualidade masculina, buscamos compreender o que se encontra subjacente à dominação. Neste viés, os excessos do masculino aparecem como formações reativas ao feminino nos homens. No encerramento desta tese seguimos a questão do apagamento do outro sob a ótica do narcisismo fálico, o que dá forma ao fenômeno conhecido como “machismo”.
Palavras-chaves: Masculino – Feminino – Violência – Psicanálise – Tese (Doutorado)
Rio de Janeiro Agosto/2008
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Abstract
Maleness, violence and aggressiveness: A Psychoanalytic Reflection
Eliana Lorentz Chaves Tutor: Marta Rezende Cardoso
Abstract of the Thesis presented to the Post-graduation Programme of Psychoanalytic Theory, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as a part of the requisite for obtaining the Doctor's Degree in Psychology.
In this thesis we investigate masculinity and its ties to violence, aggressiveness and domination, taking into account the Freudian articulation between aggressiveness and male sexuality. We start from two closely interrelated observations: men exhibit their aggressiveness in a more obvious way, and men dominated women throughout the ages. These premises took us to the study of domination relationships and to the phenomenon of masculine domination. Taking the pair masculine-feminine, we see that women appear as depositaries of castration and passiveness, and upon such basis are grounded men’s contempt, fear and hostility. As we do not share Freud’s biological foundations for male aggressiveness, we searched Jean Laplanche “generalized seduction theory” for a theoretical framework that gives priority to the other in psychical constitution. Starting from statements contained in the propositions of the feminine origins of sexuality and the feminine primary identification, that oppose the Freudian assumption of an early maleness in the child, our issue moves from the “feminine of women” to the “feminine in men”. This latter surfaces the risks of passiveness,
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associated to homosexuality. Following the paradoxes of male sexuality, we tried to grasp what can underlie domination. In this angle, the excesses of the masculine appear as reaction formations to the feminine in men. At the end of this thesis we follow the issue of the other’s obliteration under the perspective of phallic narcissism, which gives form to the phenomenon known as “male chauvinism”.
Keywords: Masculine – Feminine – Violence – Psychoanalysis – Thesis (Doctor’s grade)
Rio de Janeiro August/2008
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Sumário
Introdução........................................................................................................................13 CAPÍTULO I Violência, agressividade e dominação ............................................................................17 I.1 – Introdução da noção de agressividade em Freud ................................................20 I.2 – A sexualidade masculina e a agressividade ........................................................23 I.3 – Concepções da agressividade em “Pulsões e destinos das pulsões” ...................26 I. 4 – A situação da agressividade em Além do Princípio do Prazer...........................29 I. 5 – Agressividade e pulsão de morte........................................................................35 I.6 – A passividade das origens ...................................................................................36 I. 7 – A agressividade e suas formas de manifestação ................................................41 I.8 – A dominação .......................................................................................................43 I.9 – A dominação e a sexualidade masculina.............................................................45 I.10 –As relações de dominação..................................................................................48 CAPÍTULO II O par masculino-feminino...............................................................................................52 II.1 – A bissexualidade na teoria freudiana .................................................................54 II.2 – O masculino e o feminino em psicanálise .........................................................59 II.3 – A oposição atividade-passividade e a oposição masculino-feminino................61 II.4 – A oposição fálico-castrado: a menina e a diferença ..........................................67 II.5 – A oposição fálico-castrado: o menino e a diferença ..........................................69 II. 6 – A “teoria” infantil da mulher castrada ..............................................................71 II. 7 – A castração e a angústia....................................................................................73 II.8 – A “realidade” da castração feminina: uma produção psíquica do menino ........80 CAPÍTULO III Ressonâncias da castração e da passividade na relação homem-mulher.........................83 III.1 – O medo dos homens frente às mulheres em “O tabu da virgindade” ...............85 III.2 – Os aspectos projetivos do medo que os homens têm das mulheres .................89 III.3 – Os perigos emanados da atração materna em “O estranho”.............................92 III.4 – As angústias masculinas e a recusa do feminino no homem............................95 III.5 – Os riscos da passividade.................................................................................100 III. 6 – A não-consideração do corpo feminino e suas conseqüências na teorização sobre a psicossexualidade masculina.........................................................................108 III. 7 – O retorno da questão do desconhecimento do corpo feminino .....................111 III. 8 – As origens femininas da sexualidade ............................................................114 III. 9 – A feminilidade dos homens e a degradação da mulher .................................117 III.10 – O recalcamento da identificação feminina primária.....................................121 III.10 – Os destinos do feminino no homem .............................................................125 CAPÍTULO IV Masculinidade e dominação ..........................................................................................131 IV.1 – Subjetividade e cultura: A dimensão de “gênero” .........................................132
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IV.2 – A designação do sexo e a identificação..........................................................136 IV.3 – Identificar-se ou ser identificado: a identificação primária............................140 IV.4 – A identificação primitiva ao pai da pré-história pessoal sob a ótica das atribuições de gênero.................................................................................................146 IV.5 – A questão do gênero e a assunção da identidade sexuada..............................149 IV. 6 – Os paradoxos da sexualidade masculina .......................................................153 IV. 7 – Os paradoxos da sexualidade masculina e seus desdobramentos na adolescência e na vida adulta ....................................................................................158 IV. 8 – A aposta fálica: o apagamento do outro ........................................................163 Considerações finais......................................................................................................168 Referências bibliográficas .............................................................................................177
Introdução Esta tese investiga a masculinidade, visando compreender suas articulações com a violência, a agressividade e a dominação. Entre as diversas formas de manifestação da violência e da agressividade, interessam mais propriamente a esta pesquisa aquelas que se mostram mais organizadas e visam “efeitos remotos”, articulando-se em torno do objetivo de dominar o outro. Ou seja, não focalizaremos especialmente os atos de agressão física que se revestem de um caráter de impulsividade, mas tomaremos em consideração, prioritariamente, aquelas ações que assumem o caráter de atividades que se orientam para o objetivo de dominar, de subjugar o outro. O recorte que decidimos privilegiar aponta para as diferentes formas que essas manifestações assumem no homem, principalmente quando se voltam contra a mulher. Em função da predominância masculina nos universos do poder – que levou, entre outros efeitos, à exclusão histórica das mulheres do espaço público – somos remetidos ao fenômeno cunhado pelas ciências sociais como dominação masculina (Cf. BOURDIEU, 2003). O fenômeno cujo exame decidimos privilegiar é composto, contudo, de diferentes formas de manifestação de violência, sendo que, no que diz respeito à violência sexual, não há como contestar as evidências de que os homens compõem a imensa maioria dos agressores (Cf. BALIER, 2000; 2006; MINAYO, 2005). Com o objetivo de desvendar aspectos daquilo que se encontra subjacente à dominação e à agressividade masculina, partiremos de duas premissas intimamente articuladas. A primeira, diz respeito à constatação de que os homens manifestam sua agressividade de forma mais evidente – e quantitativamente mais significativa – que as mulheres. Segundo Burin & Memer, a conexão entre agressividade e masculinidade configura uma realidade observável, na maioria das culturas, através da história da humanidade. As condutas agressivas, especialmente quando se evidenciam através de descarga muscular violenta, são tidas “como formas de expressão tipificadas como masculinas” (BURIN & MEMER, 2000, p. 199). Archer e Lloyd (2002) pontuam o fato de que a maioria dos crimes violentos e homicídios são perpetrados por homens, geralmente jovens. Considerando a onipresença da violência em nossas sociedades,
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Welzer-Lang destaca o fato de que esta violência é, “antes de tudo, e principalmente, masculina. Ou seja, exercida pelos homens” (WELZER-LANG, 2004, p. 113). A segunda premissa que nos guia, como já mencionamos, se pauta na constatação histórica de que os homens dominaram as mulheres através dos tempos. Este problema tem sido objeto de estudos psicanalíticos e antropológicos que investigam a maior incidência de manifestações violentas na população masculina – manifestações que assumem um espectro amplo, desde práticas de dominação (cf. BOURDIEU, 2003; HERITIER, 2002; BUTLER, 2002; 2003), às agressões, violência sexual, familiar e assassinatos (cf. BALIER, 2000, 2006; CORSI, 2004; ALVIM & SOUZA, 2004). Estes estudos situam a dominação masculina como uma realidade histórica que apenas recentemente vem começando a modificar-se (Cf. HERITIER, 2002, GODELIER,1997, BADINTER, 1993, 1986). Porém, ainda que partindo de uma perspectiva que encontra no universo masculino os atores privilegiados da violência, e visando especialmente a violência contra a mulher, não deixamos de considerar que os homens são, também, vítimas desta violência. Neste sentido damos destaque ao relatório do IBGE de 2002 que nos informa, entre outros aspectos, que a violência em nosso país eclode preferencialmente entre os homens brasileiros, enfatizando, ainda, que estas mortes violentas configuram uma das mais importantes causas da diferença de expectativa de vida entre homens e mulheres no país. Publicações voltadas para a saúde do homem mostram, ainda, o alto preço que vem sendo pago pelas pressões sociais que levam os homens a endossar as prescrições de gênero (Cf. Ciência & saúde coletiva, 2005). As observações sobre a predominância de manifestações violentas nos indivíduos masculinos nos levaram, assim, a indagar sobre aquilo que é subjacente a tais formas de apresentação do pulsional destrutivo, tipificadas socialmente como masculinas. A partir da obra freudiana, temos que o recurso à dominação do outro e às agressões sexuais expõe a faceta excessiva do masculino sádico, dominador e agressivo. Assim sendo, o recorte de nossa temática nos leva às especificidades da constituição psíquica masculina, às dificuldades inerentes ao “tornar-se homem” e aos prováveis percalços que entendemos como entrelaçados à agressividade masculina.
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Para desenvolver esse tema, no primeiro capítulo desta tese realizaremos um estudo sobre a questão da agressividade dentro da teoria freudiana, pondo em consideração as formulações que associam a agressividade à sexualidade masculina. Dentro dessa questão, nos deteremos nas diferentes formas de sua manifestação, o que nos levará ao tema da dominação e das “relações de dominação” (DOREY, 1981). Uma vez que não compartilhamos a fundamentação biológica das explicações freudianas para a agressividade masculina, voltamo-nos para um referencial teórico que prioriza o outro na constituição do psiquismo – como ficou estabelecido desde a “teoria da sedução generalizada”, de Jean Laplanche. Visto que nosso estudo se volta para a agressividade masculina, o segundo capítulo desta tese é dedicado ao par masculino-feminino. Nosso percurso por este tema inicia-se pela bissexualidade na teoria freudiana, onde levantamos as modificações ocorridas em certos postulados freudianos, como o complexo de Édipo enunciado apenas em sua forma positiva, a partir dessa noção. A proposta da bissexualidade psíquica evidencia, de forma mais incisiva, a complexidade de que se revestem as definições do masculino e do feminino, calcadas nos pares ativo/passivo, fálico/castrado. Seguindo esses pares de opostos, focalizaremos a castração da mulher como uma produção fantasística do menino. Em seguida, seguiremos a questão da angústia de castração e o temor à passividade, visando introduzir os aspectos que levam ao desprezo e à hostilidade frente às mulheres. Seguindo esta linha, o terceiro capítulo será dedicado às ressonâncias da castração e da passividade na relação dos homens com as mulheres. Sob este enfoque, nos deteremos nos textos freudianos que fornecem sustentação teórica para o medo que os homens têm das mulheres. Passando por “O tabu da Virgindade” e “O estranho”, chegamos à “Análise terminável e interminável”, onde se encontra enunciada a “recusa do feminino” para ambos os sexos. A partir desse texto, a questão se desloca do “feminino das mulheres” para o “feminino nos homens”, trazendo à tona os riscos da passividade, em sua associação com a homossexualidade. Para adentrar a questão do “feminino no homem”, seguiremos Jacques André em sua proposta sobre as origens femininas da sexualidade, complementando este estudo com a proposta de Paulo Ribeiro da identificação feminina primária. Dentro dessa perspectiva, os caminhos que levam o varão à masculinidade se tornam mais complexos à medida que se acrescenta,
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para o menino, o trabalho de desidentificar-se da mãe (cf. GREENSON, 1998). A partir das proposições que contrariam o postulado freudiano de uma masculinidade inicial da criança, seguiremos os destinos do feminino no homem através das contribuições de Thierry Bokanowski (1993), com as quais encerraremos este capítulo. A partir do estudado anteriormente, no quarto e último capítulo desta tese trabalharemos o tema da masculinidade e da dominação masculina dentro da vertente subjetividade e cultura. Tomando em consideração a noção de gênero, demos destaque à designação do sexo como uma atribuição que se origina do outro. Neste sentido, priorizaremos a dimensão passiva da identificação, ou seja: o “ser identificado”. Sob esta vertente, trabalharemos o conceito freudiano de “identificação primitiva ao pai da pré-história pessoal”, até chegar à proposta laplancheana de “identificação primitiva pelo social da pré-história pessoal”, que pontua o aspecto da passividade daquele que é identificado. Seguindo o tema da assunção da identidade sexuada, em coerência às teorias que levam em conta a noção de gênero, chegamos a que a dominação masculina sobre as mulheres é constitutiva dessa noção, pela via das imposições hierárquicas que a permeiam.
A partir dessas premissas, seguiremos os paradoxos da sexualidade
masculina, visando compreender o que se encontra subjacente à dominação. As propostas de Silvia Bleichmar e Peter Blos, nos levaram à homossexualidade constitutiva e aos momentos tardios de sua resolução no sexo masculino. Neste sentido, os excessos da adolescência aparecem como formações de reação à homossexualidade, sendo aí assentada, ainda, uma vertente explicativa para a violação de mulheres. No encerramento desta tese seguiremos a questão do apagamento do outro, sob o viés do narcisismo fálico, que dá forma ao fenômeno conhecido como “machismo”. Neste arcabouço teórico, a masculinidade vai se revelar como uma posição instável, devendo ser constantemente reafirmada no percurso de vida do varão, e é nestes movimentos afirmativos da virilidade – entendidos como reativos à passividade originária e à identificação feminina primária – que podemos situar a origem de muitas das respostas agressivas masculinas, tanto diante de seus pares como contra a mulher. Para concluir esta introdução, desejamos assinalar que a violência, a agressividade e a dominação constituem num problema complexo cujo esclarecimento implica a convergência de áreas diversas do saber. Nosso estudo, evidentemente, visa abranger apenas certos ângulos dessa questão.
CAPÍTULO I Violência, agressividade e dominação Esta tese tem por objetivo uma investigação sobre a questão da violência, da agressividade e do exercício da dominação sobre o outro, focalizando mais precisamente as manifestações violentas provenientes de indivíduos do sexo masculino. O problema visado nesse estudo é, prioritariamente, a violência masculina quando se exerce sobre a mulher, sendo que o encaminhamento dado a nossas questões nos situa, dentro do campo da psicanálise, na vertente subjetividade e cultura. O incremento da violência em nossa sociedade, que encontra seus agentes privilegiados nos indivíduos do sexo masculino, nos leva a indagar sobre o aquilo lhe é subjacente. Como forma de organização dos pontos que pretendemos abordar, focalizaremos inicialmente a questão da violência, da agressividade e da dominação, visando situar seus primeiros enlaces com o masculino – tema ao qual nos voltaremos especificamente em momentos posteriores. Com esse objetivo, percorreremos, neste primeiro capítulo, concepções psicanalíticas da agressividade, reportando-nos às diversas formas assumidas pelas manifestações violentas, nas quais se podem incluir as “relações de dominação”. Lançando um primeiro olhar sobre a escrita freudiana, verificamos que a questão da violência, da agressividade e da dominação – associadas à masculinidade – é um tema que perpassa essa obra desde os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905d/1989). Verificamos, ainda, a ausência de definições precisas dos termos violência, agressividade, hostilidade, crueldade, etc. Tratando primeiramente da violência, vemos que, apesar de sua importância em psicanálise, não contamos com um enquadramento rigoroso dessa noção. Como aponta Jurandir Freire Costa: “As definições dadas ao termo são sempre provisórias, operacionais e inferidas dos casos particulares” (COSTA, 1986, p.10). Na obra de Freud a palavra violência aparece unicamente na carta-resposta enviada a Einstein em 1932, sendo utilizada em substituição à palavra poder, sob o argumento de que, reportando-se às origens das formas de organização social humana, “é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra” (FREUD, 1933 [1932]/1976, p. 246).
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Para Freud, é um “princípio geral que os conflitos de interesse entre os homens são resolvidos pelo uso da violência” (loc. cit.). As comunidades humanas abrangem, desde seus primórdios, elementos de força desigual, sendo paradigmática a desigualdade entre homens e mulheres e entre pais e filhos. Seja pelo exercício da força bruta ou de imposições apoiadas no intelecto, a violência assume os contornos do exercício de poder e dominação dos fortes sobre os mais fracos. A partir desta situação inicial, “a justiça da comunidade então passa a exprimir graus desiguais de poder nela vigentes, sendo que as leis são feitas por e para os membros governantes, o que deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição” (Id., ibid., p. 248). Encontramos, assim, prenunciada na carta de 1932, a questão da qual nos ocuparemos: a dominação do homem sobre a mulher – e o que se insere de violência na instauração e manutenção desta posição de desigualdade. Na carta a Einstein, é a teoria das pulsões que fundamenta a explanação freudiana sobre o fenômeno da guerra, mostrando a articulação complexa das moções eróticas e destrutivas tanto no plano individual quanto no coletivo. O recurso à teoria pulsional indica o caminho para o reconhecimento das formas como a pulsão é investida no espaço social, permitindo apreender como se constroem os vínculos eróticos e amorosos entre os homens – bem como as inclinações a diluir estes mesmos vínculos. No ano em que foi escrita a “carta a Einstein”, Freud já havia promovido a grande “virada” em sua teoria das pulsões, ocorrida em 1920, tendo como fundamento a oposição entre pulsões de vida e pulsões de morte. A segunda teoria pulsional sustenta que “as pulsões humanas são apenas de dois tipos: aquelas que tendem a preservar e a unir – que denominamos ‘eróticas’ (...); e aquelas que tendem a destruir e matar, as quais agrupamos como pulsão agressiva ou destrutiva” (FREUD, 1933 [1932]/1976, op. cit., p. 252). No texto de 1932, o “desejo de agressão e destruição” que permeia as relações humanas é atribuído ao trabalho da pulsão de morte. Como conseqüência de um pouco de especulação, pudemos supor que essa pulsão está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece, com toda a seriedade, ser denominada pulsão de morte, ao passo que as pulsões eróticas representam o esforço de viver. A pulsão de morte tornase pulsão destrutiva quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigida para fora. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Uma parte da pulsão de
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morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa internalização da pulsão de destruição (Id., ibid., p. 254).
Nesta passagem é assinalado que as manifestações destrutivas que se dirigem ao exterior apontam para o trabalho da pulsão de morte, mas não se confundem com ela. Enfatizando que o trabalho da pulsão de morte não se resume às manifestações agressivas, verificamos que, na maioria dos escritos freudianos, este movimento para o externo é referido como pulsão de agressão. Vemos assim, como mostram Laplanche e Pontalis (1967/1983), que os textos freudianos “não permitem concluir por um emprego absolutamente unívoco da expressão, nem por uma repartição exata entre pulsão de morte, pulsão destrutiva e pulsão agressiva” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967/1983, p. 511)1. A passagem freudiana citada acima mostra que a violência manifesta entre os homens assume um caráter defensivo que aponta para a destrutividade interna. Como veremos mais adiante, a descarga ou liberação de energia corresponde ao propósito fundamental da pulsão de morte. Uma parte da pulsão de morte, ao voltar-se para fora – como resposta agressiva – indica um movimento que, segundo Freud, se associa à preservação da própria “vida”. Esta proposição se revela importante para o trabalho que estamos realizando, uma vez que veicula a idéia, desde uma perspectiva econômica, de uma restauração do equilíbrio psíquico atribuída à “descarga” agressiva. É este princípio que dará sentido à concepção freudiana de que o sadismo, diferentemente do masoquismo, não significa um risco para o psiquismo, conforme o exposto no texto “O problema econômico do masoquismo” (FREUD, 1924c/1976). O dado de coerência destas idéias reside na convicção de que a pulsão de morte é o que de mais fundamental se encontra no psiquismo humano. A proposta da pulsão de morte não foi, contudo, plenamente aceita pela comunidade psicanalítica, persistindo como objeto de crítica até os dias atuais. Não há dúvida, porém, de que as teorias psicanalíticas sobre a agressividade sofreram modificações significativas a partir da introdução do novo dualismo pulsional, como veremos a seguir, ao focalizar a questão da agressividade em Freud. Para adentrar este tema nos parece necessário, no entanto, percorrer os caminhos seguidos por Freud nos 1
Sobre a questão dos diferentes empregos dos termos agressão, destrutividade, crueldade, etc., remetemos à Tese de Doutorado de Suelena Werneck Pereira, A pulsão de morte e seus derivados: os avatares da teoria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, agosto de 2006.
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textos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905d/1989, op. cit.) e “Pulsões e destinos das pulsões” (1915b/2004). Fazemos notar, contudo, que não visamos um estudo aprofundado da pulsão de morte, mas sim levantar pontos de sustentação para a questão da agressividade e, mais especialmente, para a agressividade masculina.
I.1 – Introdução da noção de agressividade em Freud Apesar de que se possa considerar que teria sua importância reconhecida apenas a partir da “virada” de 1920, o tema da agressividade é presente na obra de Freud desde os textos sobre a interpretação de sonhos (FREUD, 1900a/1987) e “Fragmento da análise de um caso de histeria” (Id., 1905e [1901]/1989). A abrupta interrupção do processo analítico no “caso Dora” expõe, neste momento, a faceta agressiva da transferência, posteriormente enunciada como transferência negativa. A questão da agressividade, contudo, receberá tratamento detalhado somente a partir dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905d/1989) – texto marcado pela concepção freudiana de que a agressividade, bem como a sexualidade, encontraria sua origem por apoio em funções somáticas. No escopo da primeira teoria pulsional, que opõe o sexual e o autoconservativo, a agressividade é vista como operando desde os princípios da vida, sendo sua emergência da ordem de uma resposta à frustração, submetida ao princípio de prazerdesprazer. Visando discriminar os componentes da sexualidade infantil, é introduzido o conceito de pulsão parcial, que remete a uma geografia corporal que vai especificar a pulsão em função de sua fonte somática. Dentro da perspectiva freudiana do apoio – que focaliza em prioridade a função somática, colocando em segundo plano o papel do outro dos cuidados com o bebê – este esquema não se ajusta, precisamente, à “pulsão de crueldade”. Tal constatação levará Freud a uma certa elasticidade no que diz respeito às fontes somáticas e às zonas erógenas, culminando no argumento de que todo o corpo constitui uma zona erógena. No caso da pulsão de crueldade, o “órgão” componente seria a pele, não merecendo maiores desenvolvimentos, contudo, a forma como esta poderia constituir-se em uma fonte somática da agressividade. O que se depreende do texto, não sendo maiormente aprofundado por Freud, é que, como envoltório corporal
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sensível para as estimulações externas, a pele se configura como um “órgão” aberto ao contato2. Em 1905, frente às dificuldades em definir exatamente uma função corporal que possa dar origem à crueldade infantil, a solução encontrada para o problema se anuncia pela proposta de uma nova pulsão: a pulsão de dominação. (...) podemos supor que o impulso cruel provenha da pulsão de dominação e surja na vida sexual numa época em que os genitais ainda não assumiram seu papel posterior. Assim, ela domina uma fase da vida sexual que mais adiante descreveremos como organização pré-genital (FREUD, 1905d/1989, op. cit., p. 180n.).
Esta pulsão – à qual voltaremos posteriormente – é concebida como orientada para o exterior, falando mais propriamente do exercício de uma dominação sobre o objeto, para dele usufruir. Encontrando sua origem na pulsão de dominação, a crueldade infantil não se apresenta como produto de uma intencionalidade malévola. O fato de que a crueldade seja “perfeitamente natural no caráter infantil” indica que a capacidade para compadecer-se ainda não está presente na criança. Esta simplesmente ignora o sofrimento do outro, uma vez que é, ainda, incapaz de um reconhecimento do outro. O momento em que a criança é capaz de reconhecimento de si e do outro se acompanha da percepção dos efeitos de suas ações, o que prepara e encaminha uma “autocontenção”, a instalação da “trava” que faz a pulsão de dominação deter-se ante a dor do outro: a “piedade”. Como vemos, nos “Três ensaios”, Freud não estabelece uma distinção rigorosa entre os termos agressividade e crueldade. Mas o emprego diferencial dos termos permite isolar a noção de agressividade como uma tendência ou potencialidade humana, o termo crueldade infantil referindo-se aos fenômenos agressivos anteriores ao reconhecimento do outro enquanto tal. Neste sentido se orientam as distinções pontuadas por Mijolla-Mellor entre crueldade originária – que precede o reconhecimento da alteridade – e o sadismo. Segundo esta autora, a intencionalidade da crueldade é relativa ao domínio; “a crueldade provém da pulsão de domínio, mas não se confunde com ela” (MIJOLLAMELLOR, 2004, p. 30 – a tradução é nossa). A crueldade diz respeito a uma dominação violenta, talvez porque o objeto recusa a satisfação esperada. “Ela ataca o exterior, o 2
Questão que será desenvolvida por Didier Anzieu em “O eu-pele” (1985/1991).
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estrangeiro, que é odiento porque contraria a onipotência narcisista dos inícios da vida” (Id., ibid., p. 30 – tradução nossa). Ela é limitada ou inibida pela piedade ou a compaixão que “implica um reconhecimento e até uma identificação com o objeto sofredor” (loc. cit.). É esta possibilidade de reconhecimento de si e do objeto, como entidades separadas, que irá pautar diferenças entre a crueldade infantil e o sadismo. Bem longe da indiferença quanto ao sofrimento do objeto, o sadismo encontra no reconhecimento do outro sofredor a condição de seu prazer. Em outras palavras; o sadismo visa o prazer obtido com o sofrimento do outro, sendo que só podemos falar de sadismo propriamente dito a partir do momento da constituição do ego e do reconhecimento do objeto total. Como dirá Gantheret (1981), apesar do endogenismo presente em muitas das formulações dos “Três ensaios”, vemos que as pulsões de crueldade, “pulsões por natureza objetais”, induzem Freud a uma mudança de posição. É esta possibilidade de reconhecimento do objeto enquanto tal que irá marcar as distinções entre a crueldade infantil e o sadismo. Na forma exposta nos “Três Ensaios”, a agressividade no sadismo é concebida como uma das potencialidades da libido e corresponderia, nas palavras de Freud, “a um componente agressivo autonomizado e exagerado da pulsão sexual” (FREUD, 1905d/1989, op. cit. p.148). “Que a crueldade e a pulsão sexual estão intimamente correlacionadas é-nos ensinado, acima de qualquer dúvida, pela história da civilização humana, mas no esclarecimento dessa correlação não se foi além de acentuar o fator agressivo da libido” (Id., ibid., p.149). Na formulação proposta nos “Três ensaios”, o termo libido aponta para uma concepção energética firmando-se mais precisamente como um conceito quantitativo. ”Estabelecemos o conceito da libido como uma força quantitativamente variável que poderia medir os processos e transformações ocorrentes no âmbito da excitação sexual” (Id., ibid., p. 204). Tal formulação não implica, contudo, que a libido seja desprovida de qualidade. Freud destaca o caráter qualitativo da libido ao referi-la especificamente aos “processos sexuais do organismo”, processos que, neste momento de sua obra, se localizam em oposição aos processos autoconservativos cuja energia será enunciada como interesse. Como veremos posteriormente, esta concepção de uma oposição entre
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interesse e libido será posta em xeque pela introdução do narcisismo e da pulsão de morte. Dentro de uma perspectiva evolutiva, Freud descreve o sadismo e o masoquismo pela via de um desenvolvimento em fases, marcado pela sucessão das organizações oral e anal-sádica. Estes modos de organização da sexualidade pré-genital compreendem não apenas uma evolução da sexualidade referida às zonas erógenas como, também, certa forma de relação objetal. A noção de organização pré-genital é introduzida – sob a influência do pensamento de Karl Abraham – no artigo “A disposição à neurose obsessiva” (FREUD, 1913i/1969), e pressupõe a predominância de atividade sexual ligada a uma zona erógena determinada como fator unificador das pulsões. Verifica-se, contudo, que o texto freudiano se abre à leitura do objeto como desempenhando a função de organizador. Neste viés, os diversos modos de organização da sexualidade infantil se inserem numa série que vai do auto-erotismo ao objeto, passando pelo narcisismo. O sadismo infantil é localizado na fase anal-sádica caracterizada por certa forma de relação com o objeto, impregnada de significações ligadas à expulsão e à retenção das fezes. A fase anal-sádica situa-se no estágio pré-genital marcado pela sexualidade auto-erótica e pelo predomínio de certas zonas sensorialmente privilegiadas – seja pelas próprias funções orgânicas, seja pela via da estimulação dos cuidados com o infante3. Nos “Três ensaios”, na seção dedicada ao sadismo e ao masoquismo, são enunciadas as primeiras referências à relação entre a sexualidade masculina e a agressividade e a dominação.
I.2 – A sexualidade masculina e a agressividade Em 1905, Freud formula concepções sobre as origens do sadismo masculino, prenunciando uma das oposições que irão pautar o par masculino e feminino. Estas concepções, como veremos, permanecerão até o final da obra. No tocante à algolagnia ativa, o sadismo, suas raízes são fáceis de apontar nas pessoas normais. A sexualidade da maioria dos varões exibe uma mescla de agressão, de inclinação a subjugar, 3
Fazemos notar que a idéia de uma organização seqüencial de estágios é, nos dias atuais, objeto de críticas, como as de Jean Laplanche (1997).
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cuja importância biológica talvez resida na necessidade de vencer a resistência do objeto sexual de outra maneira que não mediante o ato de cortejar. Assim, o sadismo corresponderia a um componente agressivo autonomizado e exagerado da pulsão sexual, movido por deslocamento para o lugar preponderante (FREUD, 1905d/1989, op. cit., p. 148).
Nesta passagem observamos que o sadismo é associado às origens da sexualidade dos indivíduos masculinos normais. As raízes da agressividade manifestada pelo varão que se dispensa de cortejar o objeto são, contudo, delegadas à “importância biológica” de vencer a resistência do objeto sexual. Apesar de que a cena mencionada se preste, mais propriamente, a uma descrição genérica dos intercâmbios sexuais entre espécies não necessariamente humanas (sendo que, mesmo entre os machos destas espécies se verifica a presença de comportamentos que podem ser entendidos como um “ato de cortejar” – rituais de acasalamento – visando a obter a aquiescência da fêmea), Freud designa aquelas características como compondo a “sexualidade da maioria dos varões” humanos. Anos mais tarde, na conferência XXXIII, das “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise”, Freud irá reafirmar suas observações acerca da maior agressividade masculina recorrendo, novamente, à “biologia”, desta vez a um modelo explicativo calcado na atividade ou passividade das células sexuais. A célula sexual masculina é ativamente móvel e sai em busca da célula feminina, e esta, o óvulo, é imóvel e espera passivamente. Essa conduta dos organismos sexuais elementares é, na verdade, um modelo da conduta sexual dos indivíduos durante o coito. O macho persegue a fêmea com o propósito de união sexual, agarra-a e penetra nela (Id., 1933a [1932]/1976, p. 142).
O “modelo” descrito por Freud remete, novamente, a um macho ativo e agressivo, que persegue, agarra e penetra a fêmea, restando assim configurada a oposição entre um masculino sádico e um feminino masoquista dentro de um referencial “biológico”. Neste momento, vemos que Freud prescinde, na explicação do sadismo do macho, dos referenciais psicológico e sociológico que compõem sua concepção do masculino e do feminino. Neste mesmo texto é feita, contudo, uma referência ao sentido sociológico que recobre as diferenças entre o masculino e o feminino. Nota-se, porém, que esta perspectiva não é valorizada relativamente àquilo que diria respeito ao varão, sendo seguida a vertente que aponta para as mulheres e sua menor agressividade. Visando demarcar os contrastes observados entre meninos e meninas, Freud afirma que as diferenças entre estes sobressaem “na disposição instintual, que permite
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entrever a natureza subseqüente das mulheres. Uma menininha é, em geral, menos agressiva, desafiadora e auto-suficiente” (que os meninos) (Id., ibid., p. 145). Relativamente à mulher, contudo, além da vertente “biológica”, os aspectos sociológicos são efetivamente considerados. Devemos, contudo, nos acautelar para não subestimar a influência dos costumes sociais que, de forma semelhante, compelem as mulheres a uma situação passiva. (...) A supressão da agressividade das mulheres, que lhes é instituída constitucionalmente e lhes é imposta socialmente, favorece o desenvolvimento de poderosos impulsos masoquistas que conseguem, conforme sabemos, ligar eroticamente as tendências destrutivas que foram desviadas para dentro (Id., ibid., p. 143-144).
Do lado masculino observa-se, porém, que não há menção explícita a um paralelismo entre a situação social da mulher e do homem. Freud não coloca em discussão os fatores “sociológicos”, ou seja, as influências externas que possam encaminhar os homens à agressividade e, desta forma, favorecer a instalação e a livre expressão de impulsos sádicos no varão. Esta “omissão” freudiana induz a pensar em aspectos aparentemente inquestionáveis das concepções freudianas sobre a sexualidade masculina, e que se calcam, mais precisamente em “fatores biológicos” os quais indicam “naturalmente” o caminho da atividade e da agressividade. É para esta questão que Monique Schneider chama atenção quando destaca a importância da obra freudiana como base para a compreensão da repartição de papéis sexuados fundados mais precisamente em condições sociológicas geradoras de estereótipos. A autora pontua o fato de que Freud “denuncie os estereótipos sociológicos apenas no que diz respeito ao feminino”, sendo que “os critérios que regem a masculinidade não são questionados, como se, colocado em posição soberana, o modelo masculino escapasse por princípio a toda ameaça de alienação” (SCHNEIDER, 2003, op. cit., p. 13 – tradução nossa). Estas passagens freudianas apontam, como vemos, para uma das oposições que constituem o masculino e o feminino: a oposição sadismo-masoquismo. No contexto dessa oposição, já prenunciada nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905d/1989, op. cit.), Freud irá cunhar, em 1924, em “O problema econômico do masoquismo”, um masoquismo “feminino”, designando por meio deste termo, “a expressão da natureza feminina” (FREUD, 1924/1976, op. cit., p. 201). Na forma como é exposta em 1924, a livre expressão de impulsos sádicos masculinos não parece constituir-se como problemática, aparecendo referida ao
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princípio de prazer: “Assim, o masoquismo aparece-nos à luz de um grande perigo, o que de modo algum procede para seu correspondente, o sadismo” (Id., ibid., p. 199 – o grifo é nosso). Isto porque “A libido tem a missão de tornar inócuo o instinto destruidor, e a realiza desviando este instinto, em grande parte, para fora” (Id., ibid., p. 204). Neste momento, porém, ainda que o masoquismo venha a colocar-se do lado do feminino, Freud se exime da afirmativa de que este constitua um traço radicalmente distintivo entre homens e mulheres. Da mesma forma como veremos mais adiante, quando tratarmos dos pares de opostos masculino e feminino relativamente à oposição atividade-passividade, é mostrado que homens também podem ser “femininamente” passivos e masoquistas, uma vez que o masoquismo “feminino” é estudado, em 1924, por meio de diversos casos de pacientes homens. Nos primeiros momentos da obra freudiana – que antecedem o novo dualismo pulsional proposto em 1920 – é o sadismo que se apresenta como primário, sendo o masoquismo entendido como uma continuação do sadismo que se volta contra a própria pessoa, tema que será mais bem desenvolvido no texto “Pulsões e destinos das pulsões”, publicado em 1915.
I.3 – Concepções da agressividade em “Pulsões e destinos das pulsões” “Pulsões e destinos das pulsões” é o texto inicial da série de escritos publicados em 1915, através dos quais se enuncia a grande organização conceitual metapsicológica promovida por Freud, sendo possível situar, a partir deste texto, pontos que levarão às mudanças presentes em “Além do princípio de prazer” (1920g/1976, op. cit.). No escopo de “Pulsões e destinos das pulsões” se encontram definidos os quatro atributos das pulsões (impulso, finalidade, objeto e fonte) bem como as duas grandes classes de pulsões que, neste momento, compõem a oposição primacial: as pulsões de autoconservação e as pulsões sexuais. É relativamente às pulsões sexuais que Freud traça quatro destinos possíveis: o recalcamento, a sublimação, o retorno sobre a própria pessoa e a transformação em seu contrário, que se acompanha de um exame detalhado do problema do amor e do ódio. Em “Pulsões e destinos das pulsões” (1915b/2004), é indicado que a questão do recalcamento será trabalhada em um texto posterior – “O recalque” (1915a/2004), e que o problema da sublimação deverá ser objeto de outros
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estudos. Constata-se, porém, que tal escrito, se efetivamente foi executado, jamais se tornou público. O texto de 1915 indica que os representantes psíquicos da pulsão sexual é que irão conhecer vicissitudes diversas. Estas pulsões, já dotadas de finalidade (satisfação) e de objeto (contingente, variável) terão, assim, também um destino atrelado a modalidades de defesa: “Sugiro também que abordemos os destinos das pulsões relacionando-os com as forças motivacionais que se contrapõem ao avanço das pulsões, o que nos permite tratar tais destinos como se fossem modos de defesa contra as pulsões” (FREUD, 1915a/2004, op. cit., p.152). O representante ideativo sofrerá os destinos da sublimação, do recalcamento (não trabalhados no texto), do retorno em direção ao próprio eu e da transformação em seu contrário. A transformação em seu contrário pode manifestar-se de duas maneiras: como um re-direcionamento da pulsão da atividade para a passividade, e como uma inversão do conteúdo que Freud exemplifica através da transformação do amor em ódio. O retorno em direção ao próprio eu será explicitado através dos exemplos fornecidos pelos pares de opostos sadismo e masoquismo e voyeurismo e exibicionismo. Detendo-nos na inversão e no retorno ao próprio eu, vemos que estes dois destinos se referem essencialmente às pulsões de ver e se exibir, e as de crueldade, pulsões que Freud admitia terem por objeto, desde sua origem, outra pessoa. É dito, ainda, que estas pulsões são “ambivalentes”, ou seja, apresentam-se como pares de opostos. A análise freudiana do sadomasoquismo se sustenta, neste momento, na premissa de uma anterioridade do sadismo, o que converte o masoquismo em um sadismo voltado contra o próprio eu. Em 1915, o processo é apresentado da seguinte forma: A) O sadismo consiste em violência, em exercício de poder contra outra pessoa tomada como objeto. B) Esse objeto é deixado de lado e substituído agora pela própria pessoa. O redirecionamento contra a própria pessoa transforma, ao mesmo tempo, a meta pulsional ativa em passiva. C) Novamente outra pessoa é procurada como objeto, a qual, devido à transformação ocorrida na meta, tem então de assumir o papel de sujeito (Id., ibid., p. 153).
É essa última posição que configura, para Freud, o masoquismo, cuja satisfação decorre da posição passiva ocupada, agora, pelo sujeito. Vemos, no entanto, que esta concepção será alterada no momento de introdução do segundo dualismo pulsional, como veremos adiante.
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Mas, já em 1915, vemos apresentar-se os efeitos da questão que levará às modificações teóricas de 1920, os quais derivam da anterior “descoberta” do narcisismo. Em “Pulsões e destinos das pulsões” é indicado que as vicissitudes pulsionais têm em comum, ainda, o fato de, necessariamente, situar-se no contexto de um destino mais geral da pulsão sexual, qual seja: o narcisismo – o investimento libidinal do ego. A partir de “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914c/1974), Freud colocará em consideração uma espécie de balança entre os investimentos libidinais no ego e o investimento objetal. Na forma como o narcisismo é “introduzido” em 1914, o autor propõe que a autoconservação é, ela própria, libidinal. A sexualidade investida no ego, conforme nos mostra Laplanche (1988), é a grande “novidade” introduzida por Freud, novidade esta que levará a um necessário remanejamento da oposição entre sexualidade e autoconservação. Trata-se de uma exploração absolutamente nova, a do Ego como objeto de amor, a idéia de que os objetos exteriores são reflexo ou estão em relação com este investimento primeiro do Ego, pois que amamos o outro ou segundo nossa própria imagem ou então graças a um potencial amoroso que é antes o potencial que faz com que nos amemos a nós mesmos. A sexualidade, neste momento, tende portanto a ser absorvida por este aspecto do amor (LAPLANCHE, 1988, p. 102).
Vemos que Freud, no âmbito de sua primeira oposição pulsional, que propunha o dualismo das pulsões sexuais e das pulsões de autoconservação (definidas como pulsões do ego), apresentava a sexualidade como o pólo do conflito com a instância recalcadora. Ao estabelecer-se um investimento permanente da libido no Ego, é retirada a dimensão de contraste entre as pulsões sexuais e a autoconservação, posto que esta última é, de certo modo, assumida pela libido do ego. Como mostra Scarfone, a introdução do narcisismo leva a mudanças na teoria das pulsões uma vez que: para que esse investimento estável seja pensável, o ego deve conceber-se como resistência às pulsões (o que ele sempre foi), mas agindo doravante com as armas das próprias pulsões. É como se o “impulso” pulsional fosse absorvido e estabilizado no ego, agora concebido como o grande reservatório da libido (SCARFONE, 2005, p. 79).
Relativamente à agressividade, esta será acionada pelo ego como modalidade de resposta aos “ataques” ao narcisismo: “O Eu odeia, abomina, persegue com intenções destrutivas todos os objetos que se tornem para ele fontes de desprazer, sem levar em
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conta se são um obstáculo à satisfação sexual ou à satisfação das necessidades de conservação” (FREUD, 1915a/2004, op. cit., p.160). Os desenvolvimentos freudianos relativamente ao amor, ao ódio e à indiferença situam a agressividade, no entanto, numa posição dúbia entre o sexual e o autoconservativo – questão que permanece aberta até a atualidade, e cuja discussão reportamos a Laplanche (1985, 1988, 1997). O que se encontra claramente indicado em “Pulsões e destinos das pulsões” é que, a partir do narcisismo, aquilo que resta de “premente”, de “demoníaco”, na sexualidade, deverá manifestar-se noutra parte e sob uma nova ótica das oposições.
I. 4 – A situação da agressividade em Além do Princípio do Prazer A proposta da pulsão de morte, nos parâmetros em que Freud a introduz em “Além do princípio do prazer” (1920), persiste como objeto de críticas, especialmente quanto à sua fundamentação biológica. Ainda que Freud assinale que a psicanálise não lida “com a substância viva, mas com as forças que nela operam” é na “tendência a conduzir o que é vivo à morte”, que Freud assenta sua oposição entre a pulsão de morte e “as outras, as pulsões sexuais, que estão perpetuamente tentando e conseguindo uma renovação da vida” (FREUD, 1920g/1976, op. cit., p. 65). A partir de observações acerca da manifestação da inércia na vida orgânica, Freud é levado a propor uma propriedade geral das pulsões que lhe teria escapado até então: sua tendência a reinstalar um estado anterior. Tendo admitido o caráter regressivo de toda pulsão – afirmativa que contrasta com suas anteriores formulações que levavam a ver na pulsão o fator que incita à modificação e ao desenvolvimento, como o verdadeiro motor do progresso do aparelho psíquico – Freud procura determinar para qual estado anterior o vivo procura retornar. Se esse objetivo é um retorno ao inorgânico, e o que existia antes da vida era o “sem-vida”, então o objetivo de toda vida é a morte. É este raciocínio que leva a cunhar a nova pulsão como pulsão de morte, sendo contraposta às pulsões de vida. A reorganização conceitual que se instala pela vias da oposição entre pulsões de vida e pulsão de morte exige, no entanto, que sejam tomados em consideração aspectos decorrentes da introdução do narcisismo. É o narcisismo que permite que Freud reúna a
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sexualidade e a autoconservação em Eros, ou pulsões de vida, estabelecendo um pólo de oposição à pulsão de morte. A pulsão de morte evoca sempre a morte própria e está, em Freud, estreitamente ligada à noção de princípio do zero ou de Nirvana – expressão tomada de empréstimo à psicanalista inglesa Bárbara Low. Como apontam Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis, o princípio de Nirvana “designa algo diferente de uma lei de constância ou de homeostase”. Em termos econômicos, este princípio aponta para uma “tendência radical para levar a excitação ao nível zero, tal como outrora Freud a tinha enunciado sob o nome de princípio de inércia” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967/1983, op. cit., p. 465). Em “Além do princípio do prazer”, a idéia de uma tendência a um retorno à ausência de excitação pelas vias mais curtas se explicitará através das noções de ligação e desligamento. Segundo Freud, “seria tarefa dos estratos mais elevados do aparelho mental sujeitar a excitação pulsional que atinge o processo primário” (FREUD, 1920g/1976, op. cit., p. 52). Os termos ligação e desligamento encontram na obra freudiana sentidos diversos.4 O desligamento indica um processo de liberação súbita de energia. Conforme o Vocabulário de Psicanálise, “(...) o que assim se designa é um brusco aparecimento de uma energia livre tendendo de forma incoercível para a descarga” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967/1983, op. cit., p. 348). A ligação, por sua vez, indica a passagem dos processos primários aos processos secundários, podendo ser descrita da seguinte forma: uma energia livre (não-ligada), tendendo à descarga, transforma-se em energia ligada cuja descarga é adiada, contida. Assim, ligação reporta, primeiramente, a uma operação que tende a “limitar o livre escoamento das excitações, a ligar as representações entre si, a constituir e manter formas relativamente estáveis” (Id., ibid., p. 347). Vemos, contudo, que essa proposição não representa propriamente um fato novo dentro do pensamento freudiano. Desde o “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1895]/1990) Freud procurava desenvolver a idéia de ligação de forma coextensiva à noção de ego. Na linguagem fisiológica utilizada no texto de 1895, o ego é descrito como uma “organização de neurônios”, expressão que, posteriormente, evoluirá no sentido de uma organização de representações. De maneira sucinta, é no ego 4
Sobre essa questão, ver HERZOG, R. “O estatuto da Bindung na contemporaneidade”. Interações, Vol VIII, nº 16, p. 37-56, jul–Dez 2003.
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– como um conjunto de “neurônios” ou representações fortemente ligadas – que Freud localiza a tarefa de inibir os processos primários, ou seja, inibir o livre escoamento da energia psíquica. Como instância produtora de ligação, o ego se mantém em um nível energético relativamente constante. Neste sentido, qualquer aumento ou diminuição de tensão lhe é prejudicial, sendo considerados seus efeitos traumáticos. Em 1920, os percalços que podem afetar a tarefa psíquica de ligação são expostos pela via dos efeitos do traumatismo sobre o psiquismo – o traumatismo apontando para os “acidentes” capazes de pôr em xeque a função de domínio das excitações. As evidências clínicas sobre a repetição de experiências desagradáveis vão permitir
a
suposição
da
preeminência
da
tarefa
de
ligar
as
excitações,
independentemente do princípio de prazer. Na exposição efetuada em 1920, Freud recorre aos exemplos do Fort-da e dos sonhos de pessoas acometidas de neuroses traumáticas e da transferência para exemplificar a compulsão à repetição. Conforme Elizabeth Roudinesco e Michel Plon (1998), os aspectos relativos à repetição, expostos através do jogo do Fort-da, apontam para experiências que se inserem na série prazer-desprazer. A primeira interpretação freudiana localiza este prazer no segundo momento do jogo, quando a criança assume o poder de retomar o carretel anteriormente arremessado à distância. A essa primeira interpretação acrescenta-se uma segunda: a criança, através do jogo, encontraria uma forma de expressão de sentimentos hostis capazes de satisfazer seu desejo de vingança frente ao abandono materno. O que é entrevisto no jogo repetitivo das crianças – mesmo em se tratando da repetição de experiências desagradáveis – é a satisfação ligada à transformação da passividade em atividade, mostrando-se, neste exemplo, conjugadas as exigências do princípio de prazer e as de algo que, supostamente, ultrapassaria esse princípio. Em Além do princípio do prazer, o modelo do Fort-da vem ilustrar esse movimento de passagem a ativo. A criança, passiva até ali, não podendo senão sofrer o acontecimento, torna-se ativa, repetindo-o. (...) A atividade da criança ante a situação aponta para a idéia de uma dominação, dominação-controle da excitação (CARDOSO, 2002, p. 165-166).
Temos assim, que o jogo do Fort-da, não atende aos objetivos de exemplificação de um fenômeno para além do principio de prazer, posto que na série desenvolvida evidencia-se o prazer pela transformação da passividade em atividade, o prazer da recuperação do objeto e, ainda, o “prazer da vingança”. Quanto ao prazer
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obtido na transformação da passividade em atividade, é referido que a busca de uma posição ativa é uma característica das brincadeiras infantis de um modo geral. Na seqüência do texto, passam para o primeiro plano as observações clínicas sobre as neuroses traumáticas. Estas neuroses se revestem de um traço essencial: decorrem de um grande abalo psíquico e sua sintomatologia se caracteriza por reconduzir constantemente o indivíduo ao momento traumático. As evidências sintomáticas de uma recondução constante à situação traumática colocam em questão as concepções freudianas de que a vida psíquica seria regulada pelo princípio de prazer e, por derivação, de que o sentido dos sonhos seria orientado pela via da realização de desejo. A contradição apresentada pelos sonhos de indivíduos afetados de neurose traumática leva Freud a examinar uma possível tendência de retorno à situação de desprazer, cujo sentido lhe escapara até então. Nos desenvolvimentos teóricos produzidos a partir dessa observação, Freud conclui que as neuroses traumáticas resultam de uma ruptura do pára-excitações, essa espécie de invólucro protetor que atenua a intensidade dos estímulos provenientes do exterior. Sendo função do aparelho psíquico sujeitar a excitação de forma que possa ser escoada segundo as vias do princípio de prazer e do princípio de realidade, essa ruptura, ocorrida num momento em que o psiquismo está despreparado, provoca um afluxo maciço de excitações que impedem este funcionamento. O aspecto repetitivo dos sonhos emerge, então, a serviço de uma tarefa que se situa em anterioridade ao funcionamento do princípio de prazer: a tarefa de ligação do traumático, no sentido do controle das excitações. As considerações sobre a compulsão à repetição mostram que suas manifestações têm, por outro lado, um caráter pulsional. Esses dois aspectos da repetição – pulsional e de controle – indicam a conjugação das exigências do princípio de prazer e de algo que ultrapassou esse princípio. No entanto, seria impreciso considerar que a repetição de experiências desagradáveis estaria em oposição ao princípio de prazer, posto que a repetição, uma vez que visa o controle, apontaria mais precisamente para uma função mais primitiva do aparelho psíquico. Como se depreende do texto, esta função pode ser vista como fonte indireta de prazer. “Nada disso contradiz o princípio de prazer: a repetição, a reexperiência de algo idêntico, é claramente, em si mesma, uma fonte de prazer” (FREUD, 1920g/1976, op. cit., p. 53).
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A partir dessa constatação, Freud se reporta, então, à compulsão à repetição na transferência, em busca de fenômenos que apóiem a postulação de uma tendência conservadora da pulsão. No caso de uma pessoa em análise, pelo contrário, a compulsão à repetição na transferência dos acontecimentos da infância evidentemente despreza o princípio de prazer sob todos os modos. O paciente comporta-se de modo puramente infantil e assim nos mostra que os traços de memória recalcados de suas experiências primevas não se encontram presentes nele em estado de sujeição, mostrando-se elas, na verdade, em certo sentido, incapazes de obedecer ao processo secundário (Id., ibid., p. 53).
Os exemplos nos quais Freud se apóia para encontrar na transferência as evidências conservadoras do pulsional levam aos danos narcísicos decorrentes do “florescimento precoce da vida sexual infantil”. “Os pacientes repetem na transferência todas essas situações indesejadas e emoções penosas, revivendo-as com a maior engenhosidade. Procuram ocasionar a interrupção do tratamento enquanto este ainda se acha incompleto” (Id., ibid., p. 34-35). Nos casos observados em análise, passam para primeiro plano as “neuroses de destino”, nas quais o paciente se defronta com a repetição de uma mesma sina infeliz atribuída a algum poder “demoníaco”, poder que Freud situa no pulsional. A impressão causada pelos casos nos quais o indivíduo “parece ter uma experiência passiva, sobre a qual não possui influência”, e que o levam a defrontar-se repetitivamente com a “mesma fatalidade”, levam Freud a postular uma força radicalmente destrutiva no psiquismo, que sobrepuja o princípio de prazer. O desenvolvimento teórico que situa o pulsional como a própria fonte do traumático, parte da constatação de que o sistema psíquico não é provido de um escudo protetor relativamente às excitações de fonte interna (pulsional). Tendo-se em conta os atributos de pressão constante, de exigência permanente de trabalho para o psiquismo, as pulsões freqüentemente ocasionam perturbações similares às evidenciadas nas neuroses traumáticas. A pulsão de morte não tem energia própria e suas manifestações só são conhecidas através de sua mistura com Eros. O investimento do aparelho muscular emerge então como uma forma de desviar esta pulsão em direção ao mundo exterior como pulsão de agressão. Os “ataques” ao eu, originados da pulsão de morte, derivam do princípio de que esta pulsão trabalha no sentido da descarga, da liberação completa da energia, enquanto
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o eu trabalha no sentido da ligação, do escoamento submetido ao princípio de realidade. O eu sendo concebido, desde o início do teorizar freudiano sobre a matéria, como resistência às pulsões, com a introdução da pulsão de morte, os aspectos “mortíferos” visariam à destruição das próprias capacidades de ligação do aparelho psíquico, numa tendência à restauração de um estado anterior que – em última instância – seria a “nãovida” ou o “não-eu”. No plano psíquico, a “destruição” promovida pela pulsão de morte se traduziria no esfacelamento do aparelho psíquico no sentido de uma dissolução das ligações. Importa considerar, conforme assinala Laplanche, que a pulsão de morte não é a mesma coisa que a compulsão a repetição. Pode-se dizer que a compulsão a repetição é, antes, uma das maneiras de responder à pulsão de morte, uma das maneiras, talvez não a única, de tentar “ligar” (na acepção freudiana do termo, no sentido da Bindung) a pulsão de morte (LAPLANCHE, 1989, p. 196).
Na forma em que é introduzida em “Além do princípio do prazer”, a pulsão de morte coloca a tendência para a destruição como o princípio mais radical do funcionamento psíquico, designando uma tendência primária à autodestruição. Esta proposta terá conseqüências importantes no que se refere à concepção psicanalítica da agressividade. Sob a ótica do segundo dualismo, o foco se concentra na própria violência psíquica, interna, sendo a frustração, advinda do externo, relegada a um plano secundário, no sentido de uma causalidade do ato agressivo. Os atos de agressão assumem o caráter de uma resposta à própria violência pulsional, o que aponta para o despreparo do aparelho psíquico em processar as energias, em limitar o livre escoamento das excitações. O aspecto traumático desloca-se do acontecimento externo em favor da invasão dos limites do ego pelo pulsional; a resposta agressiva, no sentido econômico, fala de uma brusca liberação de energia não-ligada, correlata da falência da tarefa de ligar ou de dominar a excitação pela via dos compromissos da condensação e do deslocamento. Para Laplanche, o novo dualismo pulsional não cumpre, porém, um papel esclarecedor no que se refere ao problema da agressividade. Segundo este autor, a pulsão de morte “vai encobrir definitivamente, ou ao menos durante longo tempo, o problema real da agressividade”, problema para o qual “nada mostra que ela dá uma solução, a não ser muito abstrata” (LAPLANCHE, 1997, op. cit., p. 92). Segundo o autor, a pulsão de morte é uma “chave mestra” que foi utilizada mais propriamente para
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obscurecer e menos freqüentemente para esclarecer “os mecanismos tão complexos em jogo na agressão”. Mecanismos que deveriam ser inteiramente retomados para distingui-los segundo três níveis: “o nível vital e animal, o nível erótico e o nível narcísico” (Loc. cit.). Em sua perspectiva, a pulsão de morte só se mantém se pensada em termos de “morte para o eu”, e principalmente como “pulsão de desligação sexual”, ou seja, como pulsão sexual de morte (Id., ibid., p. 93).
I. 5 – Agressividade e pulsão de morte É através do conceito de pulsão de morte que, segundo Widlocher, Freud “pretende dar conta do dualismo pulsional fundamental, da tendência à compulsão à repetição, da origem da agressividade e da primazia da auto-agressividade sobre aquela dirigida a outrem” (WIDLOCHER, 1988, p. 8). Conforme o autor, diferentemente do conceito de agressividade – que permite classificar operações de pensamento e modalidades de ação – a pulsão de morte situa-se num plano epistemológico distinto, recobrindo um campo mais vasto que a agressividade – visto que obedece à finalidade de “formalizar uma teoria geral que organiza, num sistema explicativo mais vasto, a interação dos processos psíquicos” (Loc. cit.). Nesta formulação, a agressividade se situa como uma modalidade de resposta orientada para o alívio da tensão interna. Nesta perspectiva, o grande combate do ser humano se daria entre duas potências internas, uma que visa ligar e outra que, trabalhando silenciosamente, visa desligar, destruir. Neste sentido, podem-se considerar as manifestações de violência como apontando para o “ataque destrutivo e desorganizador que se exerce, tanto num nível singular quanto num nível coletivo, contra o permanente e inesgotável trabalho de ligação-interiorização do pulsional” (GUTIÉRREZ-TERRAZAS, 2004, p. 126). A questão da agressividade nos envia, assim, à motricidade impulsiva ou ao ato destrutivo como forma de descarga de aumentos de excitação que ameaçam a própria organização psíquica, a violência exteriorizada apontando para falhas do aparelho psíquico em sua função de domínio das excitações. Segundo René Roussillon, o apelo ao ato ou à motricidade impulsiva configura um “último recurso para sufocar aumentos de excitação disruptivos que visam conter/descarregar aquilo que ameaça a organização psíquica” (ROUSSILLON, 1995, p.
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183). O recurso à agressividade, bem como a dominação violenta do objeto e o estabelecimento de “relações de dominação” remetem, assim, primariamente à questão do domínio da excitação pulsional. “O ato de dominar o objeto pela força traz, subjacente, uma desesperada tentativa de dominação do excesso pulsional” (CARDOSO, 2002, op. cit., p.161). Tendo em conta a centralidade que adquire, nessa tese, a questão da dominação, na continuidade do tratamento do tema da violência e da agressividade consideraremos, entre outros conceitos, a proposta freudiana da pulsão de dominação na forma como esta vem sendo trabalhada por autores como Paul Denis (1992;1997), François Gantheret (1981) e Roger Dorey (1981), como veremos adiante. A questão da violência nos envia, ainda, aos aspectos traumáticos da própria constituição psíquica. Considerando-se a gênese do psiquismo, a violência se insere no encontro traumático com o outro humano em função do estado de desamparo do recémnascido – tomando-se aqui o desamparo não apenas como algo da ordem de uma incapacidade de prover as necessidades básicas ligadas à subsistência, mas também, e principalmente, tendo-se em conta o despreparo do pequeno ser humano frente ao enigma da sexualidade do outro adulto. Quando apontamos que a violência tem um vínculo com a psicossexualidade, estamos propondo que esta “tem uma origem histórica, ou que se origina na relação com o outro significativo” (GUTIÉRREZTERRAZAS, 2004, op. cit., p.120). Este enunciado implica, porém, uma tomada de posição relativamente à própria origem do pulsional, colocando em questão as discordâncias entre hipóteses endogenistas e hipóteses alteritárias sobre a constituição do aparelho psíquico – discussão que sustentamos tendo como referência a obra de Jean Laplanche, especialmente sua Teoria da sedução generalizada (1988; 1992).
I.6 – A passividade das origens A confusão estabelecida no pensamento psicanalítico por conta das indistinções entre o plano da autoconservação e o plano estritamente pulsional é um tema central das críticas de Jean Laplanche a determinados desenvolvimentos teóricos freudianos – como podemos ver, mais especialmente, em “Freud e a sexualidade – o desvio biologizante”
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(1997) e no texto La revolución copernicana inacabada (1992/1996). Através destes textos, o autor mostra que Freud, em muitos momentos de sua teorização, parece renegar a genialidade de sua própria descoberta do inconsciente, dando margem a leituras difusas sobre o que aparece como especificamente humano (pulsional) e aquilo que pertence ao mundo animal (instintual), ou ao reino da biologia. Para Laplanche, o movimento que constitui a pulsão sexual é o recalque originário, sendo seu ponto de partida a sedução originária. No que diz respeito ao inconsciente, o adquirido precede o inato e o subverte antecipadamente, ou seja, muito antes que a maturação da puberdade introduza a sexualidade biológica. Neste sentido, a pulsão é o sexual e um sexual que não emerge “naturalmente” do autoconservativo. A teoria laplancheana se constrói sob um viés crítico frente às conseqüências, para o ideário psicanalítico, do abandono da teoria da sedução segundo a qual a neurose teria sua origem numa cena de abuso sexual. A opção pela fantasia e o abandono do real da sedução do adulto sobre a criança tiveram como efeito o apagamento do outro na constituição do sujeito psíquico. Segundo o autor, na época anterior a 1897 o inconsciente era tomado como “essencialmente o resultado do recalcamento” em sua dimensão de “corpo estranho”, de “estrangeiro”. Ao abandonar a teoria da sedução, ou mais precisamente, ao não desenvolvê-la segundo um enfoque distinto do abuso sexual do adulto sobre a criança, Freud comprometeu, no entender de Laplanche, toda a metapsicologia. Observa-se, porém, que a sedução, para além de sua vertente do abuso do adulto pedófilo, manteve-se presente no teorizar freudiano sob a forma de uma das fantasias originárias ou de menções à sedução da cena primitiva e à sedução dos cuidados maternos. Mas, ainda que as referências à sedução tenham permanecido em momentos pontuais, o abandono de 1897 encaminhou o teorizar freudiano a concepções endogenistas e biologizantes do eu, da pulsão e do inconsciente. A releitura da sedução, efetuada por Jean Laplanche (1988, op. cit.; 1992 op. cit.) , desloca o foco da sedução “restrita” do abuso e resgata a dimensão de sedução precoce dos cuidados proporcionados pelo adulto à criança. Importa frisar que Laplanche não situa necessariamente a mãe como a única responsável pelos primeiros contatos com a criança. Esta posição, que distancia o pai e outros adultos deste contexto, deriva, como veremos, de injunções sociais e históricas.
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É a partir da situação inicial de passividade da criança diante do adulto que se desenvolve a teoria da sedução generalizada que situa o outro em lugar predominante na constituição do eu, do inconsciente, e da pulsão. Sob o enfoque da teoria da sedução generalizada, o “parceiro obrigatório da sedução é o adulto”, e sua característica mais essencial é “a passividade da criança em relação ao adulto” (Laplanche, 1988, op. cit., p. 109-110). A passividade infantil é concebida por Laplanche como um estado de “desauxilio” ou de “desajuda”. O que caracteriza o ”desauxilio” é, precisamente, “a incapacidade da criança para desencadear ela mesma a ação que possa esvaziar o reservatório de maneira durável” (Id., 1992/1996, op. cit., p. 34). Este reservatório dizendo respeito à excitação que atua “de maneira contínua” pode ser “esvaziado” apenas pela experiência de satisfação aportada pelo adulto. “Tudo o que a criança pode fazer é gritar, não sendo os gritos em si mesmos, por outro lado, nada mais que a expressão puramente mecânica de um transbordamento não-específico” (Id., ibid., p. 34). Caberá ao adulto que assume o encargo dos cuidados infantis – geralmente a mãe – dar um sentido às manifestações da criança que se revelam simples indícios que suscitam o auxílio alheio. Sendo o adulto dotado de um inconsciente, os cuidados oferecidos à criança estarão infiltrados por sua sexualidade. Os cuidados ”maternos” só são sedutores porque veiculam o enigmático – posto que são enigmáticos para o próprio adulto. As zonas erógenas, ponto focal destes cuidados, não se constituem, nesta perspectiva, como fonte “natural” das pulsões, sendo esta fonte um abalo exógeno promovido pela implantação do “corpo estranho” da sexualidade adulta transmitida à criança como enigma. É neste sentido que a criança, passiva em relação ao adulto, é “seduzida”, como vemos nas palavras do autor: Pelo termo sedução originária qualificamos, portanto, esta situação fundamental na qual o adulto propõe à criança significantes não-verbais tanto quanto verbais. Do que chamo significantes enigmáticos, não é necessário procurar longe para encontrar exemplos concretos. O próprio seio, órgão aparentemente natural da lactação: podemos negligenciar ainda seu investimento sexual e inconsciente maior pela mulher? Podemos supor que este investimento “perverso” não é percebido, suspeitado, pelo bebê, como fonte desse obscuro questionamento: que quer ele de mim? (Id., 1988, op. cit., p. 119)5.
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Esta passagem de Laplanche é objeto das considerações de Paulo de Carvalho Ribeiro (2000). A seção “Avaliação da capacidade de comunicação do bebê humano: a inexistência de um bebê tradutor”, integrante do seu capítulo 7, intitulado “Em busca de uma metapsicologia à altura das psicoses” contém os argumentos do autor relativamente ao período em que podemos considerar a existência, no bebê, de uma capacidade “tradutiva” das mensagens ou dos significantes enigmáticos provenientes do adulto.
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Laplanche concebe a pulsão como implantada no infante a partir das mensagens enigmáticas propostas pelo adulto. O outro humano, dotado de um inconsciente sexual, envia à criança mensagens comprometidas pela excitação que infiltra todas as modalidades de comunicação verbal e não-verbal. Na criança pequena “existe a prioridade do não-verbal” (Id., 1992/1996, op. cit., p.32). A parte inconsciente destas mensagens sexualmente carregadas se implanta na criança, que não dispõe dos meios para traduzi-las – uma vez que elas constituem um enigma para o próprio adulto. O intraduzível da mensagem do adulto instala-se na criança, assim, como objeto-fonte da pulsão. No dizer de Paulo de Carvalho Ribeiro, a realidade da sedução é a realidade da mensagem. Deste domínio da realidade, Laplanche assinala algumas características fundamentais: é uma realidade que advém da irredutibilidade do ato de comunicação à intencionalidade dos interlocutores. Dito de outra forma, trata-se da impossibilidade de traduzir completamente uma mensagem em imagens ou qualquer outra forma de expressão sem que se produza algum resto não traduzido ou não-traduzível. A realidade da mensagem pressupõe assim a existência de um excesso de conteúdo capaz de torná-la parcialmente ou totalmente opaca para aquele que a produz como para aquele que a recebe. Opacidade, no entanto, altamente operante e intrusiva já que invariavelmente ligada a um conteúdo sexual inconsciente (RIBEIRO, 1996, p. 50).
A mensagem sexual oriunda do outro, em sua dimensão traumática, aponta para aquilo que escapa da capacidade tradutiva, constituindo um “excesso” nãometabolizável que se implanta como enigma. A “teoria da sedução generalizada” de Laplanche nos permite pensar as origens do sujeito psíquico a partir de uma concepção da prioridade do outro, ou seja, na forma como a criança é, desde muito cedo, afetada pelas “mensagens enigmáticas” advindas do outro. A partir da concepção da passividade inicial frente ao adulto, abre-se um espaço teórico para pensar as questões relativas à “identidade sexual” da criança de forma menos atrelada aos referenciais biológicos ou anatômicos, constituindo-se estes um referencial entre outros igualmente significativos – como veremos mais adiante. Em relação à questão da agressividade, vemos que Laplanche adota uma postura crítica frente à proposição freudiana da oposição entre pulsões de vida e pulsão de morte. O ponto central de suas críticas – como encontramos exposto em “Vida e morte em psicanálise” (1985) e no texto “A pulsão de morte na teoria da pulsão sexual” (1988) – é o biologismo da teoria freudiana.
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Para este autor, o que Freud traz à tona através da pulsão de morte é o caráter demoníaco da pulsão sexual. Apontando que Freud concebeu a pulsão sexual, desde o início, como força desagregadora para o eu, o autor mostra que daí resultam as manobras defensivas deste último. A teoria do narcisismo, com sua proposta de uma “estabilização” libidinal no interior do ego, traz para o primeiro plano a questão da ligação e do desligamento. Estes dois regimes são, para Laplanche, os elementos essenciais do que Freud descreve como o último dualismo pulsional. No entanto, ao reunir as “pulsões do ego” e as pulsões sexuais em Eros, o aspecto demoníaco do sexual se mostra enfraquecido. Dentro deste enfoque, Laplanche propõe que se fale antes de pulsões sexuais de vida e pulsões sexuais de morte, trazendo para o primeiro plano uma dimensão de prazer sexual em qualquer manifestação de agressividade no homem. Dentro de sua teoria da sedução generalizada, que aponta para as origens alteritárias do psiquismo, torna-se possível discutir a questão de uma violência “constitucional” do humano. Isso porque, mesmo que consideremos que a criança venha ao mundo dotada de um “potencial de agressividade” derivado do autoconservativo, sua manifestação, sob as formas da agressão, será regulada pela relação com o outro. Neste sentido, a perspectiva laplancheana (em especial sua categoria de mensagem, na forma como enunciada em 1992 e 2003) abre espaço para pensar os aspectos relativos à agressividade que permeia as “mensagens” dirigidas à criança, uma vez que podem ocorrer diferenças quando o “receptor” é do sexo masculino ou feminino. Dito de outra forma: entendemos que essa teoria permite fundamentar, de forma mais consistente, a questão sobre as diferenças de posicionamento dos pais e adultos próximos à criança, relativamente à agressividade – quando se trata de um menino ou de uma menina. Esta hipótese abre espaço para pensar se a agressividade pode ser aceita – e até estimulada pelo adulto – mais nos meninos do que nas meninas. Tendo em conta que o objetivo desta tese é levantar questões sobre a agressividade masculina, esta visada teórica, que situa o outro nas origens do psiquismo, abre amplas perspectivas de discussão das teorias biologistas da agressividade. Essas propostas de cunho biológico, que buscam explicar a violência masculina através de hipóteses calcadas em descrições do homem como geneticamente dotado de uma maior “quantidade de agressividade”, dão relevância à sua maior massa muscular ou aos
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efeitos da testosterona, e consistem numa explicação clássica que atravessou os séculos XIX e XX e mantém suas ressonâncias no século XXI (cf. BADINTER, 1993). Apesar da adoção de uma posição crítica frente às “soluções” teóricas de cunho biológico para a questão da agressividade masculina – soluções a que nem o próprio Freud isentou-se de recorrer, como já vimos – constatamos, porém que compartilhamos, por assim dizer, das perguntas que permeiam o problema. Com o objetivo de expandir nossa abordagem da questão da agressividade masculina, nos voltaremos, neste momento, para as formas de manifestação da agressividade.
I. 7 – A agressividade e suas formas de manifestação A distinção entre agressividade e agressão é um dos temas tratados por Daniel Lagache em “Situação da agressividade” (1960) – texto considerado clássico para a psicanálise. Usando o recurso das concepções filosóficas de potência e ato, Lagache formula definições para agressividade e agressão. A partir destas concepções, a agressividade é situada na ordem “das disposições”, dos “estados”, permanentes ou transitórios, que apontam para uma “modificação que coloca o organismo em movimento” (LAGACHE, 1960, p. 147 – a tradução é nossa). O termo agressão, por sua vez, denota o ato em sua realização, sendo a mesma linha de raciocínio seguida por Laplanche e Pontalis, ao definirem a agressividade como “tendência ou conjunto de tendências que se atualizam em comportamentos reais ou fantasmáticos, (...)” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967/1983, op. cit., p. 37). Lagache situa a agressão no ângulo da intersubjetividade, considerando-a como “uma certa forma de entrar em relação com o outro” (LAGACHE, 1960, op. cit., p. 146). Como fator “complicador”, temos que o fenômeno da agressão não se limita a ações motoras que deixem explícita uma intenção de afastar ou destruir o objeto, os atos de agressão podendo seguir a via tanto de “descargas maciças, emocionais, mais ou menos eficazes”, ou manifestar-se “em ações pertinentes, visando efeitos remotos”, aspecto que se traduz em condutas mais elaboradas revelando uma atividade “das mais adaptadas” (Id., ibid., p. 147). Distanciando-se do viés adotado por Freud nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905d/1989, op. cit.), onde a origem da
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agressividade é buscada por apoio no funcionamento orgânico, esta origem é situada na “relação parasitária” do bebê com seu entorno, especialmente com a mãe, sendo creditada à imaturidade biológica e à passividade da criança diante de uma mãe essencialmente ativa e dominadora. Vemos aqui aspectos de similaridade com a teoria da sedução generalizada, de Jean Laplanche, à qual já nos referimos nesta tese. Lagache não se associa à idéia do bebê como uma mônada fechada, pressupondo uma “diferenciação primária” na criança, uma vez que esta vem ao mundo dotada de motricidade, de aparelhos de percepção e de memória. O autor entende ser difícil conceber a relação do bebê com o seio materno senão como a relação entre um ser minimamente dotado de capacidades de reconhecimento, e um objeto. É no confronto entre as demandas da mãe e as da criança que se instala a agressividade. “A criança, contrariada em sua demanda ou pela demanda do adulto, torna-se agressiva” (LAGACHE, 1960, op. cit., p.153). Não é a frustração o que induz a agressão, mas sim a “emergência endógena da necessidade, sentida como uma ameaça no interior do corpo” (Id., ibid., p.157). O bebê é invadido pela violência se sua demanda não é atendida, sendo através da demanda que se introduzem as relações de poder: a demanda, que pode ser atendida ou recusada, coloca limites à onipotência. O autor estabelece distinções entre a agressividade primária da necessidade, e a agressividade secundária da demanda, onde é localizada a origem do sadomasoquismo. Contrário à discussão da agressividade fora da sexualidade, Lagache entende que esta deve dar-se em referência ao sadomasoquismo, ao narcisismo e às relações de dominação-submissão. “Porque a agressão visa antes de tudo e primeiramente o homem, porque a agressão visa antes de tudo dominar e submeter, sendo sob a forma do sadomasoquismo que a agressividade humana se oferece a nosso estudo” (Id., ibid., p.150). No tratamento dado à questão do sadomasoquismo, este é articulado ao narcisismo. “O amor-próprio é a mais profunda das paixões comuns, e aquilo que há de mais agressivo e de mais vulnerável, é o amor-próprio do outro” (loc. cit.) – passagem que se aproxima, também, de questões enunciadas, anos mais tarde, por Roger Dorey (1981) no ensaio “Relações de dominação”, conforme veremos a seguir, ao voltar-nos para formas de expressão mais elaboradas da agressividade, como podem ser as relações de dominação. Como assinala Lagache, o domínio da agressão não implica uma inevitável referência à motricidade destrutiva. “O leque das formas dissimuladas e
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simbólicas da agressão é tão amplo que podemos dizer que não existe nenhuma ação, positiva ou negativa, que não possa funcionar como agressão” (LAGACHE, 1960, op. cit. p. 147 – a tradução é nossa). Vimos acima que a resposta agressiva não limita sua expressão à motricidade violenta e destrutiva, e que a agressão pode manifestar-se em comportamentos complexos que consistem em ataques minuciosos e sistemáticos ao outro, como os que encontramos nas relações onde predomina a lógica do dominante-dominado. Para dar continuidade a essa questão, nos reportaremos à questão da dominação, que interessa especialmente aos objetivos propostos por esta tese. Para adentrar este tema faz-se necessário, contudo, enunciar os sentidos que assume a noção de dominação dentro do pensamento psicanalítico.
I.8 – A dominação No Dicionário Aurélio de Holanda Ferreira (1977), o verbo dominar é definido como: exercer autoridade, poder, influência ou domínio sobre. Aparecem também os sentidos de reprimir, preponderar e conter-se (FERREIRA, 1977, p.169). O Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (1998) define dominação (dominare em latim) como ato ou efeito de dominar, aparecendo, também, soberania, poder absoluto, predomínio, domínio (p. 748). Domínio, por sua vez, é definido como qualidade de proprietário, faculdade de dispor de alguma coisa como senhor. Propriedade, autoridade, espaço ocupado, possessão, pertença, território que pertence a um indivíduo ou estado, aparecendo, também, os sentidos de conhecimento, influência e a referência ao domínio quando voltado para si próprio: autodomínio, no sentido de controle de si (Ibid., p. 749). Dentro da crescente complexidade que a noção de dominação adquire na obra freudiana, o termo dominação indica mais precisamente uma forma de relação com o objeto, enquanto o termo domínio remete à função de ligar o afluxo de energia que chega ao aparelho psíquico, no sentido de alguém se tornar senhor da excitação – como veremos através da análise dos termos Bewältigung e Bemächtigung, efetuada por Gantheret (1981). Segundo este autor, a dominação infiltra todos os modos de funcionamento do aparelho psíquico, podendo atualizar-se no funcionamento intra e intersubjetivo. Visando um melhor esclarecimento da questão da dominação,
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iniciaremos, então, um levantamento dos diversos termos associados mais diretamente ao tema, dentro do campo psicanalítico. Dominação – Bemächtigen está na raiz de Bemächtigungstrieb (pulsão de dominação, em português e pulsion d’emprise, em francês). Este termo refere-se à ação de tomar um objeto pela força, evocando alguma violência, sendo esta a expressão utilizada por Freud no momento de introdução da pulsão de dominação, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905d/1989, op. cit.). A pulsão de dominação é concebida como orientada para o exterior, sendo sua manifestação o exercício da dominação do objeto, constituindo-se no principal elemento da crueldade originária da criança. Bemächtigen indica, como vemos, que o objeto ao qual o sujeito dirige sua ação é um objeto externo a si mesmo. Esta característica é o que marca a diferença relativamente ao termo bewältigen – utilizado para designar um controle interno das próprias capacidades ou tendências. Este termo (que pode ser traduzido para o português como domínio, e para o francês como maîtrise) é utilizado no sentido de o sujeito tornar-se senhor da excitação, quer seja esta de origem pulsional ou de fonte externa. Bewältigen (domínio) aponta, assim, para a tentativa do aparelho psíquico de dominar os estímulos pulsionais, indicando os esforços de refrear a pulsão, “domesticar da pulsão” – expressão empregada por Freud em “O problema econômico do masoquismo” (1924c), e que é retomada em “Análise terminável e interminável” (1937c). Beherrschen expressa uma tentativa de refrear a pulsão no sentido de dominá-la. Freud se utiliza deste termo quando o que está em cena é o domínio do corpo próprio, como vemos em “Pulsões e destinos das pulsões” , quando é feita referência aos “esforços da criança para obter controle sobre seus próprios membros” (Id., 1915b/2004, op. cit., p. 155). Überwaltigen é um derivado do verbo bewaltigen, e implica uma idéia similar a maîtrise (domínio), remetendo ao processo de dar conta de uma tarefa. Segundo Gantheret, die überwaltigung designa a dominação por uma força tranqüila que mantém o objeto sob as vistas e à mão, seguro e vigiado (GANTHERET, 1981, op. cit., p. 105). Werneck Pereira (2006), nos informa que, no mesmo grupo semântico de bewaltigen, encontramos ainda gewalt (violência, força), como também, o verbo
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vergewaltigen, cuja tradução em português é estuprar (WERNECK PEREIRA, 2006, p. 211). Tendo em conta a explanação sobre os diversos sentidos atribuídos à dominação, nos reportaremos às formulações freudianas sobre a pulsão de dominação, a partir do texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905d/1989, op. cit.). Este conceito que vem sendo trabalhado especialmente por autores franceses, é visto como cercado de obscuridades em função, principalmente, das modificações sofridas a partir da concepção do segundo dualismo pulsional. A partir de 1920, a pulsão de dominação é vinculada à pulsão de morte; a dominação passa para o registro de uma função, como a forma que assume o pulsional mortífero quando sua atividade, a serviço da sexualidade, envolve a dominação do objeto visando à realização do ato sexual. Observa-se, porém, que ainda que Freud haja alocado a pulsão de dominação no território das pulsões de morte, ela preserva seu aspecto original em seu alvo que é dominar o objeto pela força. Este objetivo a distingue da pulsão de agressão cujo alvo é a destruição do objeto. A importância da noção de dominação para esta tese radica nos enlaces, efetuados por Freud, entre dominação e sexualidade masculina, como veremos a seguir.
I.9 – A dominação e a sexualidade masculina Tendo-se em vista os enunciados acima observamos que, nas primeiras proposições freudianas, o trabalho da pulsão de dominação – como sustentáculo de manifestação violenta dirigida ao objeto – não tem como alvo a destruição, apontando mais precisamente para uma dominação controlada, no sentido de uma posse, de um “ter a conservar”, visando a dominação do objeto para dele usufruir. É nos “Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905d/1989, op. cit.) que encontramos a primeira referência à dominação como uma tendência, de caráter propriamente pulsional, de pôr em movimento o organismo visando dominar o objeto pela força. Neste texto, a musculatura é indicada como suporte da pulsão de dominação. “A atividade é produzida pela pulsão de dominação através da musculatura do corpo” (Id, ibid., p. 186). Esta passagem se localiza na parte em que Freud trata das organizações pré-genitais, onde o que está em foco é a sexualidade infantil.
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É ao tratar da atividade da zona genital, que Freud enlaça a pulsão de dominação à sexualidade masculina. As conexões entre esta pulsão e a sexualidade masculina emergem das referências às práticas masturbatórias das crianças. A ação que elimina o estímulo e provoca a satisfação consiste num contato por fricção manual ou numa pressão (decerto preparada nos moldes de um reflexo) exercida com a mão ou unindo as coxas. Este último método é de longe o mais freqüente nas meninas. Nos meninos, a preferência pela mão já indica a importante contribuição que a pulsão de dominação está destinada a fazer para a atividade sexual masculina (Id., ibid., p. 176).
“Curiosa observação”, dirá Gantheret ao analisar esta passagem, aconselhando que devemos guardá-la na memória. Aqui a mão , encerrando o pênis, toma o objeto erógeno e, segundo Freud, esta ação “já indica” o trabalho da pulsão de dominação na atividade sexual masculina. Os elementos aqui associados são: a forma do corpo do menino e as práticas masturbatórias que se aliam a esta configuração anatômica, elementos que constituem o “cenário” de apresentação do trabalho da pulsão de dominação e que apontam para certo destino da sexualidade masculina: a dominação do objeto sexual. Segundo este autor, temos aqui “uma primeira indicação de uma indexação” (que é considerada significativa e freqüente) “da pulsão de dominação à polaridade masculino-feminino, e sobretudo a seu precursor pré-genital: ativo-passivo” (GANTHERET, 1981, op. cit., p.106). Neste sentido, Gantheret entende a mão como metáfora do eu, “e o sonho do eu é ser um punho imóvel fechado sobre o objeto” (Id., ibid., p. 115). O que se acentua, aqui, é o pólo ativo – precursor do masculino – indicativo de um apoio da atividade masculina na anatomia dos órgãos sexuais. A partir de Freud, se tem insistido no fato de que o essencial dos órgãos genitais da menina é incessível à visão, e que o pequeno clitóris da menina não se presta ao domínio manual, sua manipulação não sendo análoga àquela que a exterioridade do pênis torna possível. A polaridade ativo-passivo, que precede a polaridade masculino-feminino, é objeto de outras referências no texto freudiano de 1913: “A disposição à neurose obsessiva” , no qual encontramos a seguinte passagem: A atividade é suprida pelo instinto comum de domínio, que chamamos sadismo quando o encontramos a serviço da função sexual; e, mesmo na vida sexual normal plenamente desenvolvida, ele tem importantes serviços subsidiários a desempenhar (FREUD, 1913i/1969, p. 405).
Nos acréscimos inseridos nos “Três Ensaios” em 1915, Freud postula que a atividade é um aporte do lado da musculatura, ou seja, uma tendência operada pela
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motricidade e que encontra obrigatoriamente seu objeto no exterior. Estabelece-se aqui, também, a correlação entre masculino e sadismo, a qual já havia sido enunciada na primeira edição dos Três Ensaios: No tocante à algolagnia ativa, o sadismo, suas raízes são fáceis de apontar nas pessoas normais. A sexualidade da maioria dos varões exibe uma mescla de agressão, de inclinação a subjugar, cuja importância biológica talvez resida na necessidade de vencer a resistência do objeto sexual de outra maneira que não mediante o ato de cortejar. Assim, o sadismo corresponderia a um componente agressivo autonomizado e exagerado da pulsão sexual (...) (Id., 1905d/1989, op. cit., p. 148).
Segundo Paul Denis, a dominação é o que, na pulsão, a articula ao mundo exterior: “é o elemento realizador da pulsão” (DENIS, 1992, p.1334 – a tradução é nossa). A dualidade de polarização da dominação orientada aos espaços intracorporais e ao mundo exterior “é o que lhe permite de um lado se ligar às zonas erógenas, constituindo, assim, as pulsões parciais e, por outro lado, de transbordar este registro constituindo os modos de ligação dessas pulsões com os elementos do mundo exterior” (Id., ibid., p. 1334). A dominação, da mesma forma que a satisfação, é um componente pulsional, sendo o objeto, desta forma, duplamente investido, em dominação e em satisfação, sendo possível decompô-lo em objeto de dominação e objeto de satisfação. Nesta visada, a dominação possui “um caráter intermediário entre o sexual e o não-sexual” (Id., 1997, p. 33). O problema do intricamento entre sexualidade e dominação percorre as menções freudianas ao conceito. Roger Dorey pontua que Freud viu a dominação dirigida ao objeto como a “finalidade de uma pulsão especifica, não-sexual, à primeira vista atrelada à crueldade infantil, depois ao sadomasoquismo e, enfim, a partir de 1920, à ação propriamente dita da pulsão de morte” (DOREY, 1981, op. cit., p. 117 – a tradução é nossa). Segundo o autor, disso decorre a ambigüidade do conceito. Por essa razão, considera problemática a tendência a aproximar a pulsão de dominação à ação da pulsão de morte, o que, em seu entendimento, sacrificaria a precisão da utilização do conceito. A proposta deste autor é focalizar a dominação como um modo de relação com o objeto, como resíduo da relação arcaica com o objeto primário a qual encontraria suas vias de expressão no estabelecimento de “relações de dominação”.
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I.10 –As relações de dominação Nosso acesso aos textos psicanalíticos mais recentes sobre a dominação se origina da leitura do artigo de Marta Rezende Cardoso intitulado “Violência, domínio e transgressão” (2002). Neste texto, a autora trata do problema das passagens ao ato, “nas quais a questão do poder – poder do outro – revela-se fundamental” (CARDOSO, 2002, Op. cit., p. 161). Explorando a idéia de uma “transgressão pulsional” – expressão pela qual se enuncia a idéia de uma invasão dos limites do ego pelo pulsional – a autora se reporta aos casos marcados por fragilidades das fronteiras egóicas. A discussão sobre a presença transgressiva do pulsional subjacente aos fenômenos de violência é levada a efeito tendo como base a polaridade atividade/passividade, sustentáculo do desenvolvimento da noção de pulsão de domínio na obra freudiana. No intuito de explorar o tema do poder na vida psíquica e trabalhando os contrapontos existentes entre a idéia de dominação pulsional e a de um domínio sobre o objeto, a autora efetua uma análise dos termos domínio e dominação. Sua análise a leva a cunhar a pulsão normalmente traduzida como pulsão de dominação como pulsão de domínio, fundamentando-se em Laplanche e Pontalis (1976/1983, op. cit.), Dorey (1981, op. cit.) e Gantheret (1991, op. cit.). Sua leitura das relações de domínio e das passagens ao ato é calcada em hipóteses distintas daquelas comumente referidas ao problema da castração e da Lei, remetendo mais propriamente à idéia de “uma desesperada tentativa de dominação do excesso pulsional” (CARDOSO, 2002, op. cit, p.161). No tratamento deste tema, a autora se reporta ao estudo de Roger Dorey, “La relation d’emprise”, publicado na Nouvelle Revue de Psychanalyse, de 1981, através do qual seguiremos nossa análise das relações de dominação. Na publicação citada, o autor chama atenção para o número relativamente limitado de trabalhos voltados para a questão da dominação, fato que contrasta com a inegável importância clínica da noção. O autor pontua, também, que Freud não se manteve alheio à questão do exercício da dominação sobre o objeto, tendo visto em efeito, na dominação, “a finalidade de uma pulsão específica, não-sexual, num primeiro momento ligada à crueldade infantil depois ao sadomasoquismo e, enfim, a partir de 1920, à ação propriamente dita da pulsão de morte” (DOREY, 1981, op. cit., p. 117 – a tradução é nossa). Para o autor, a noção de pulsão de dominação permanece, contudo,
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muito ambígua no plano conceitual, sendo que, em sua perspectiva, ela se revela realmente fecunda se aplicada aos modos de interação entre os sujeitos. Neste sentido, a dominação corresponderia a um “modo muito singular de interação entre dois sujeitos, que não se reduz à atividade de uma única tendência, mas que corresponde a um agenciamento complexo da relação com o outro, onde a dinâmica pulsional fica inteiramente a precisar” (loc. cit.). No campo da intersubjetividade, Dorey identifica três dimensões que compõem a relação de dominação. A primeira se mostra através de uma ação de despossessão do outro. É um embargo, um confisco que representa uma violência infligida e que traz prejuízo ao outro por usurpação, invasão, ou seja, por reduzir sua liberdade. A segunda, inseparável da primeira, indica a idéia de um domínio intelectual ou moral exercido sobre um indivíduo ou sobre o homem de forma geral. Esta segunda dimensão faz referência ao exercício de um poder supremo, dominante, tirânico – pelo qual o outro se sente subjugado, controlado, manipulado e de toda forma mantido num estado de submissão e de dependência mais ou menos generalizada. Enfim o terceiro significado, que aparece como conseqüência da dupla ação apropriação-dominação, implica necessariamente a inscrição de um traço, uma marca. Aquele que exerce o domínio grava sua marca no outro e “desenha sua própria figura” (loc. cit.). Essas três ordens de significação complementares verdadeiramente especificam a relação de domínio. Segundo o autor, a relação de dominação visa sempre o desejo do outro. “A dominação traduz uma tendência à neutralização do desejo do outro, ou seja, à redução de toda liberdade, de toda diferença, à abolição de toda especificidade – o objetivo é reduzir o outro à função e ao estado de objeto inteiramente assimilável” (loc. cit. – a tradução é nossa). A relação de dominação não implica necessariamente destruição. Como assinala Suelena Werneck Pereira, “a dominação pressupõe um desenvolvimento, um progresso na organização tanto libidinal quanto egóica” (PEREIRA, 2007, p. 247). No entanto, ao se voltar sobre o objeto, mesmo se apresentando sob a forma de uma exteriorização de caráter mais organizado e sistemático, a dominação envolve uso de força e violência para a subjugação do objeto, para a neutralização do desejo do outro. Este aspecto da dominação, em sua dimensão psicopatológica, é desenvolvido por Dorey através de uma análise da neurose obsessiva e da perversão. Na perversão é
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acentuado o registro erótico, a dominação do perverso se volta, privilegiadamente, sobre seu parceiro sexual. “A arma utilizada é, essencialmente, a sedução”, que assume o valor de fascinação, tratando-se de uma verdadeira ação de apropriação “fraudulenta” que consiste em obter do outro uma resposta condizente ao desejo do perverso, o qual visa a sujeição, a servidão da vítima, a negação do desejo do outro. Dorey indica que a sedução do perverso “não deixa o outro, jamais, indiferente; podendo ele reagir tanto pela rebelião, como pela submissão” (DOREY, 1981, op. cit., p. 119). O “cenário” descrito pela relação de dominação perversa toma forma, essencialmente, no sadomasoquismo. Diferentemente do perverso, que utiliza as “armas” da sedução, a dominação presente na neurose obsessiva fala, principalmente, de um exercício de poder nos registros da violência manifesta e na ordem do dever. O outro deverá agir como o obsessivo comanda. Ele deverá pensar “segundo as normas que este lhe impõe”; deverá “desejar conforme um esquema que este traça” e adotar as concepções deste sobre “a ordem das coisas”, sem possibilidade de dúvidas (Id., ibid., p. 125). Segundo Dorey, esta “vontade de domínio” converte o obsessivo num “tirano”, mesmo quando se trata, muitas vezes, apenas de um “tirano doméstico”. É neste território das relações domésticas, que o poder do obsessivo se mostra mais eficaz, uma vez que “se exerce insidiosamente pelo controle permanente e pelas invasões repetidas que violam a intimidade do outro, destruindo os limites de seu espaço pessoal” (loc. cit.). Ao tomarmos em conta o exercício patológico da dominação, especialmente na vertente relativa à neurose obsessiva, somos levados de volta à questão da dominação masculina – ao “exercício do poder dos fortes sobre os mais fracos”, como dirá Freud em 1932. Neste sentido, passa para primeiro plano a questão das origens dessa obsessão pelo domínio, percebida historicamente maiormente em homens. Em relação a este problema, temos que Dorey demonstra que os aspectos que dão origem à relação de domínio podem ser investigados no âmbito das primeiras interações mãe-bebê, dentro dos parâmetros da teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche, referida anteriormente. Segundo Cardoso, Para Dorey, a sedução originária é o protótipo de toda relação de domínio. Os cuidados corporais proporcionados pela mãe e os enunciados identificatórios que esta endereça à criança vão,
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primeiramente, estabelecer entre elas um modo de relação ilusória, sem lugar para a alteridade, para a diferença (CARDOSO, 2002, p. 168).
O estado de desamparo do recém-nascido, correlativo da total dependência da criança à mãe, implica a onipotência desta, influenciando de forma decisiva a estruturação do psiquismo fadado a constituir-se na relação com o outro. A dimensão marcadamente presente nestes primeiros contatos entre mãe e filho é a da passividade inicial da criança frente ao mundo adulto, passividade que pautará a situação em que ocorrem as inscrições psíquicas necessárias à humanização do pequeno ser. A questão que orienta nosso percurso, e que deixaremos em suspenso neste momento, é de que maneira a passividade inicial da criança se inscreve relativamente à identidade sexual. Ou seja, de que maneira a passividade originária da criança se articulará à oposição masculino-feminino – tema sobre o qual nos voltaremos a seguir, no segundo capítulo desta tese. Nesse próximo capítulo trataremos das concepções psicanalíticas do masculino e do feminino, visando traçar caminhos de compreensão para o problema da dominação e da agressividade masculinas.
CAPÍTULO II O par masculino-feminino No primeiro capítulo desta tese tratamos do tema da violência, da agressividade e da dominação. A partir dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” vimos que a problemática da crueldade infantil – bem como a do voyeurismo – levou à necessária consideração do objeto, no que diz respeito às origens da agressividade. Isto porque a noção freudiana da emergência da sexualidade, apoiada em funções vitais, não recobre consistentemente, no escopo do texto de 1905, o problema da emergência da crueldade infantil. As dificuldades teóricas apresentadas por essa questão levam Freud, então, à introdução de uma nova pulsão: a pulsão de dominação, a qual encontra seu “apoio” na atividade muscular. Sob a égide do auto-erotismo, o objetivo da pulsão de dominação não é exatamente o de provocar sofrimento ao objeto. Como vemos em 1905, seu alvo é, antes, a dominação do objeto para dele usufruir. A suposição de uma “intencionalidade malévola” da criança apenas adquire consistência, mais propriamente, no momento de constituição do ego, correlativo ao reconhecimento do objeto propriamente dito. É neste sentido que Freud entende a pulsão de dominação como uma pulsão não-sexual, que somente secundariamente se une à sexualidade. Assim, o prazer com o sofrimento do objeto – aspecto central das concepções do sadomasoquismo – somente ocorreria no momento em que a criança fosse capaz de reconhecimento de si e do outro como separados. Neste sentido, revela-se impreciso falar de um “sadismo” ou “agressividade” na primeira infância, posto que o tratamento dado por Freud ao problema é sugestivo de uma “atividade”, ou uma “crueldade”, presente desde os inícios da vida da criança que não visa, contudo, a destruição ou o sofrimento alheios. A agressividade humana toma forma em seus enlaces com a sexualidade – mais precisamente no sadismo, o qual fala do prazer obtido através do sofrimento, da humilhação e do domínio do outro. Fazemos notar, contudo, que a distinção terminológica entre crueldade e agressividade não é explícita em Freud, posto que muitas vezes os termos crueldade, agressividade, hostilidade, etc. são utilizados como sinônimos, sendo que o termo agressividade se mostra bastante abrangente.
53 Ao tratar do tema do sadismo, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905d/1989, op. cit.), no primeiro capítulo desta tese, seguimos mais de perto o tema das origens da agressividade ou do sadismo masculinos, pondo em discussão a vertente “biológica” adotada por Freud. No escopo do segundo dualismo pulsional, a questão da agressividade se torna mais complexa a partir do enunciado de uma força interna radicalmente destrutiva. O problema das origens do pulsional, tanto o “erótico” quanto o destrutivo persiste, no entanto, trazendo à tona, em nosso entender, a necessidade de diferentes perspectivas teóricas que possam situar a emergência do psiquismo relativamente ao outro. Neste momento, nos colocamos mais próximos às formulações que conferem ao outro um papel fundamental nas origens do psiquismo e do pulsional, seguindo de perto as proposições que integram a teoria da sedução generalizada, de Jean Laplanche (1988, op. cit.). Tomando a agressividade como modalidade de resposta direcionada ao externo, demos prioridade à explanação sobre suas diferentes formas de manifestação visando, mais precisamente, a questão da dominação do objeto através de formulações atuais sobre as “relações de dominação”. Uma vez que temos por objetivo a questão da agressividade e da dominação masculinas, este primeiro capítulo se direcionou principalmente a assentar as articulações iniciais entre agressividade e sexualidade masculina. Dentro dessa proposta, colocamos em consideração as primeiras referências freudianas às especificidades da sexualidade masculina. No texto de 1905, vemos que Freud formula hipóteses que visam explicar uma maior propensão masculina à atividade e à agressividade. Partindo da observação das diferenças entre as práticas masturbatórias de meninos e meninas, essas explicações se assentam, mais propriamente, na distinta configuração anatômica dos sexos – a exterioridade do pênis favorecendo sua manipulação. Neste sentido, a apreensão do objeto auto-erótico pela mão remete ao trabalho da pulsão de dominação – o qual já prenuncia os destinos das relações de objeto masculinas. Tendo-se em vista que esta tese não tem por finalidade um estudo aprofundado da questão da agressividade, mas sim sua articulação com a masculinidade, nos dirigiremos, a partir de agora, para o tema do masculino e do feminino. Dentro desse tema veremos que, na evolução do jogo pulsional o masculino é, para Freud, o último termo de uma série que
54 compreende o ativo, o fálico e o sádico; o mesmo ocorrendo com o feminino, que se revela o termo último de uma série que compreende o passivo, o castrado e o masoquista. O objetivo desta abordagem será identificar momentos da obra freudiana onde as concepções acerca das diferenças entre os sexos se alinham a um referencial que situa o feminino como passivo e faltoso. Trazendo para o primeiro plano o complexo de castração, veremos que é sobre o corpo feminino que se assentam as teorias infantis do feminino castrado. Veremos, também, como a partir da integração das “teorias” sexuais infantis do varão ao escopo teórico da psicanálise, o sexo feminino é relegado à posição de misterioso, assustador, hostil e estranho. Tomando como referência as teorias freudianas da castração, seguiremos seus enlaces com a questão do desprezo e da hostilidade dos homens frente às mulheres. Essa articulação se mostra importante ao desenvolvimento de nossas idéias, posto que temos por objetivo investigar não apenas a agressividade masculina mas, especialmente, a agressividade masculina direcionada à mulher. Neste segundo capítulo, assumirão realce os aspectos paradoxais que permeiam as concepções freudianas sobre as diferenças (num sentido amplo) entre os sexos. Ao mesmo tempo em que determinadas postulações sugerem uma linha de continuidade com a ideologia da época – marcada pelo patriarcado e pela menor valia do feminino – outros conceitos consistem, no entanto, numa subversão da clássica separação e hierarquia existentes entre o masculino e o feminino. Uma das proposições freudianas que abalam os alicerces do ideário referente às diferenças entre o masculino e o feminino é, em nosso entender, a bissexualidade. Assim sendo, iniciaremos este capítulo através dessa noção.
II.1 – A bissexualidade na teoria freudiana O termo bissexualidade foi cunhado pela embriologia, originando-se na descoberta de que o embrião humano é dotado de duas potencialidades, uma masculina e outra feminina.6 Bem antes deste achado das ciências médicas, a lenda de Hermafroditos e o relato sobre Andrógino, feito por Aristófanes no Banquete de Platão, já constituíam fonte
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Encontramos em Badinter (1993) uma ampla exposição sobre as pesquisas biológicas relativas à bissexualidade.
55 de inspiração para os estudiosos da sexualidade e de seus “desvios” (COLEÇÃO OS PENSADORES, 1996). Segundo Elizabeth Roudinesco e Michel Plon, a contribuição da embriologia foi decisiva para que Freud adotasse a tese da bissexualidade uma vez que, a partir do exame microscópico do embrião humano, foi possível pensar que “a bissexualidade não era apenas um mito, porém uma realidade da natureza” (ROUDINESCO & PLON, 1998, op. cit., p. 72). A inserção da noção de bissexualidade no pensamento freudiano está marcada pela amizade e pelas trocas teóricas com Wilhelm Fliess. Segundo Menahem, Fliess desenvolveu a idéia que superpõe bissexualidade biológica e bissexualidade psíquica. “A bissexualidade biológica se prolongaria no homem em bissexualidade psíquica”, emparelhada à bilateralidade particular do organismo humano (MENAHEM, 1997, p. 23). Apesar da influência inicial das teorias de Fliess, a concepção freudiana passará por caminhos diferentes daqueles propostos pelo amigo. A ruptura com a idéia de que a bissexualidade psíquica seria um prolongamento da bissexualidade biológica é desenvolvida no primeiro capítulo dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905d/1989, op. cit.), onde é discutido seu papel como fundamento da “inversão” sexual em homens. Partindo da análise dos casos de hermafroditismo anatômico, estudados em sua época, Freud assinala que “em nenhum indivíduo masculino ou feminino de conformação normal faltam vestígios do aparelho do sexo oposto, que persistiram sem nenhuma função como órgãos rudimentares” (Id., ibid., p. 133). Esta observação apóia o descarte de uma transposição direta do hermafroditismo anatômico à bissexualidade psíquica. “Não é possível imaginar relações tão estritas entre o suposto hibridismo psíquico e o hibridismo anatômico comprovável” (loc. cit.). Ao considerar o fato de que a inversão sexual é compatível, nos homens, “com a mais plena virilidade anímica”, Freud conclui que a idéia de um hermafroditismo psíquico apenas “ganharia corpo se, com a inversão sexual houvesse, em paralelo, ao menos uma mudança das demais qualidades anímicas, pulsões e traços de caráter para a variante típica do sexo oposto” (Id., ibid., p. 134). As passagens citadas assinalam pontos importantes na evolução da noção de bissexualidade em Freud. Em primeiro lugar, porque sinalizam a desvinculação da
56 sexualidade, e seus “desvios”, de um suposto substrato orgânico. Em segundo lugar, porque indicam não haver coincidência necessária entre escolha de objeto e traços de caráter. A discussão do problema da inversão, no escopo dos “Três ensaios”, encontra continuidade em extensas notas acrescentadas em 1915 e 1920. Nestas notas, que tratam de casos de homens, Freud fala de “uma fase muito intensa, embora muito breve, de fixação à mulher (em geral, a mãe)”, fase esta seguida de uma identificação “com a mulher” – configurando-se esta seqüência como o processo que estaria na base de uma escolha narcisista de objeto explicativa da homossexualidade. Estes homens homossexuais tomariam a “si mesmos como objeto sexual” (Id., ibid., p. 136). Observações que colocam em consideração a possibilidade tanto de uma identificação da criança de sexo masculino à mulher (mãe), como questionam uma suposta “naturalidade” da escolha heterossexual: “No sentido psicanalítico, portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível” (loc. cit.). Como se observa, encontramos aqui prenunciado o Édipo “completo” que será enunciado em 1923 e 1925. Em “O ego e o id” (Id., 1923b/1976) e em “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (Id., 1925j/1976), Freud trata da forma como a bissexualidade “original” da criança se manifesta e intervém nos destinos do complexo de Édipo. Esta proposição acrescenta maior complexidade à anterior formulação segundo a qual o investimento erótico se dirigiria ao progenitor do sexo oposto ao da criança, enquanto a rivalidade e a hostilidade se direcionariam ao genitor do mesmo sexo . As modificações conceituais introduzidas pela concepção do Édipo em sua forma “completa” não se limitam, contudo, ao problema da escolha de objeto. A partir da postulação de uma universalidade da orientação bissexual das moções de desejo, são remanejadas conseqüentemente também as vicissitudes dos processos identificatórios. Assim, as diferenças ou semelhanças anatômicas com o pai ou a mãe não asseguram uma identificação do menino ao pai, ou da menina à mãe. Pareceria, portanto, que em ambos os sexos a força relativa das disposições sexuais masculinas e femininas é o que determina se o desfecho da situação edipiana será uma identificação com o pai ou com a mãe. Esta é uma das maneiras pelas quais a bissexualidade é responsável pelas vicissitudes subseqüentes do complexo de Édipo. (...) O estudo mais aprofundado geralmente revela o complexo de Édipo mais completo, o qual é dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na criança (Id., 1923b/1976, p. 47).
57 É este elemento complicador introduzido pela bissexualidade que torna tão difícil obter uma visão clara dos fatos em vinculação com as primitivas escolhas de objeto e identificações, e ainda mais difícil descrevê-las inteligivelmente (Id., ibid., p. 48).
Nesta passagem vemos a menção ao aspecto “complicador” da bissexualidade. Observa-se, também, que a “solução” freudiana para o desfecho identificatório da situação edipiana é atrelada a indefinidas forças das “disposições sexuais” sem que, contudo, seja explicitado em que consistem tais “disposições”. Tendo-se em vista as dificuldades promovidas à teoria, observa-se que a bissexualidade não será objeto de maior aprofundamento metapsicológico, sendo relegada a um segundo plano frente às descobertas referentes ao complexo de castração. Como conseqüência, temos que a noção de bissexualidade não encontra um desenvolvimento preciso na obra de Freud em função do interesse maior pela idéia de uma libido única, de essência masculina. O distanciamento dessa noção estará marcado, assim, pela crescente adesão freudiana às “teorias” infantis do sexo único. Como assinalam Laplanche e Pontalis, “concebe-se que haja para Freud uma dificuldade primacial em conciliar a idéia da bissexualidade biológica com outra, que se vai afirmando progressivamente na sua obra: a da preponderância do falo para ambos os sexos” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967/1983, op. cit., p. 89). Mas ainda que se ressalte a preponderância da tese do “sexo único” na teorização freudiana, constata-se que essa preponderância ocorreu de forma mais incisiva a partir dos anos 1920. Como aponta Kamel (1997), a bissexualidade permanece como ferramenta teórica necessária e presente na análise de textos clínicos como “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância” (FREUD, 1910c/1970), “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia” (Id., 1911c/1969) e “A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher” (1920a/1976). Como noção presente no pensamento freudiano desde 1897, a bissexualidade desempenha, ainda, um papel determinante nas proposições freudianas sobre o conflito psíquico. No “Rascunho M”, de maio de 1897 é levantada a suposição de que “o essencial do que é recalcado é o feminino” (FREUD, 1897/1990, p. 347). Em uma carta dirigida a Fliess em outubro do mesmo ano, Freud assinala que seu interesse pela bissexualidade está regido pela análise de sua hipótese segundo a qual o recalcamento emana sempre da feminilidade, por se dirigir contra a virilidade. No artigo “Fantasias histéricas e sua relação
58 com a bissexualidade” (FREUD, 1908a/1976) esta idéia é desenvolvida sendo a bissexualidade enunciada como uma disposição inata que sustenta a determinação do sintoma histérico. A natureza bissexual dos sintomas histéricos, que pode ser demonstrada em numerosos casos, constitui uma interessante confirmação da minha concepção de que, na análise dos psiconeuróticos, se evidencia de modo especialmente claro a pressuposta exigência de uma disposição bissexual inata no homem (Id., ibid., p. 169).
Posteriormente, Freud passa a conceber a bissexualidade não tanto como a origem e a expressão de um conflito entre uma libido viril e o feminino, mas como a forma pela qual os caracteres de um ou outro sexo, presentes em todo indivíduo, sofriam ou não o recalcamento em cada ser sexuado. Sua concepção do “repúdio à feminilidade”, tanto em homens como em mulheres, proposta em 1937, sinaliza, contudo, que a via de raciocínio que elege o feminino como o recalcado por excelência, nunca foi efetivamente afastada de suas considerações sobre o conflito, como se verifica nesta passagem: Viemos a saber, contudo, que todo ser humano é bissexual nesse sentido e que sua libido se distribui, quer de maneira manifesta, quer de maneira latente, por objetos de ambos os sexos. Mas ficamos impressionados pelo ponto seguinte. Ao passo que na primeira classe de pessoas [bissexuais manifestos] as duas tendências prosseguem juntas sem se chocarem, na segunda classe [heterossexuais], mais numerosa, elas se encontram num estado de conflito irreconciliável. A heterossexualidade de um homem não se conformará com nenhuma homossexualidade e vice-versa (Id., 1937/1975, p. 277).
Em nosso entender, as oscilações freudianas relativamente à plena inserção da bissexualidade na teoria expõem o problema dos limites subjacentes a concepções calcadas na diferença e na oposição entre os sexos. Tal concepção, apontando, como mostra Laplanche, para uma maneira de pensar a sexualidade “como binária, feita de dois pólos: pólo masculino e pólo feminino” (LAPLANCHE, 1988, op. cit., p. 42). Apesar de que, através da noção de bissexualidade se introduza a idéia de que o ser humano teria “constitucionalmente” disposições sexuais simultaneamente “masculinas” e “femininas”, a clareza e conseqüente utilização teórica desta proposição demanda uma apreensão mais precisa do par masculino-feminino. Esta tarefa remete, necessariamente, à complexidade dos enfoques biológicos, psicológicos e sociológicos que integram as noções de masculino e feminino. Não há, no entanto, como desconhecer os avanços representados pelas formulações sobre a bissexualidade. Como aponta André Green “A teoria freudiana da bissexualidade
59 teve o mérito de distinguir a bissexualidade psíquica da bissexualidade biológica” (GREEN, 1988, op. cit., p. 225). Ao mesmo tempo, porém, ante os problemas suscitados por essa noção, vemos que, “quando se defronta com questões difíceis em vários lugares de sua obra, Freud sustenta que a solução do mistério pode ser encontrada na biologia” (loc. cit.). As dificuldades relativas à bissexualidade podem ser observadas até o final da obra freudiana, não sendo raros os momentos de retorno às proposições clássicas sobre a criança nitidamente direcionada para o genitor do sexo oposto e identificada com o genitor do mesmo sexo. Principalmente no que diz respeito ao menino, são perceptíveis os esforços para preservar a idéia de uma masculinidade inicial da criança – que se traduz na prioridade dada ao investimento na mãe e em um conseqüente “apagamento” da figura do pai libidinal. Em que pesem essas questões, é impossível desconsiderar o papel inovador da teoria da bissexualidade psíquica nas teorias sobre o masculino e o feminino, sendo para estes aspectos que nos voltaremos a seguir.
II.2 – O masculino e o feminino em psicanálise A compreensão psicanalítica do masculino e do feminino virá colocar em discussão as definições usuais destes termos, tais como os encontramos no Moderno Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa (1998). Ali, o verbete feminino aparece definido como “próprio de mulher ou de fêmea; relativo às mulheres; qualificativo do gênero que indica os seres fêmeos ou considerados como tais” (p. 948). Sendo que o verbete feminilidade aponta para um qualificativo que se resume a “caráter próprio de mulher”. O termo masculino é definido como o que pertence ou se refere ao sexo do varão, sendo que masculinidade é definida como “qualidade de masculino ou másculo; virilidade”. Virilidade, por sua vez, é definida como “qualidade de viril, vigor, energia”. Viril aparece como “relativo ou pertencente ao homem ou varão; másculo, varonil; próprio de homem; próprio de um caráter varonil, esforçado, corajoso; enérgico” (p. 2208). As definições de dicionário apontam, como vemos, para especificidades que se assentam nas diferenças biológicas e anatômicas entre varões e fêmeas, bem como para as qualidades historicamente atribuídas a homens e mulheres. É digno de nota, contudo, que feminilidade
60 não outorga qualquer qualidade às mulheres ou fêmeas, em contraste com a masculinidade ou virilidade, que indicam qualidades como coragem, energia, vigor, força. Tomamos essas definições como ponto de partida para o nosso tema, posto que nelas se enuncia, de forma objetiva, o sentido usual de feminino e masculino, calcado na diferença e oposição entre os termos. Como veremos ao longo desta tese, para a psicanálise, esses termos terão um estatuto conceitual. Ao longo da obra freudiana, são inúmeras as advertências à impossibilidade de estabelecer precisas diferenças entre os conceitos de masculino e feminino, especialmente quando se pretende adjudicá-los a um indivíduo. Numa extensa nota de rodapé no Capítulo IV de “O mal-estar na civilização”, encontramos uma das diversas afirmativas freudianas sobre as dificuldades de estabelecer uma distinção nítida entre o masculino e o feminino em homens e mulheres: Acostumamo-nos a dizer que todo ser humano apresenta impulsos, necessidades e atributos instintivos tanto masculinos quanto femininos, e ainda que a anatomia, é verdade, possa indicar as características de masculinidade e feminilidade, a psicologia não pode. Para esta, o contraste entre os sexos se desvanece num contraste entre atividade e passividade (...) (FREUD, 1930a [1929]/1976, p. 126).
Na Conferência XXXIII (1933), Freud desilude seu “público”, habituado “a fazer esta distinção com certeza total”, pedindo-lhes que se familiarizem “com a idéia de que a proporção em que masculino e feminino se misturam em um indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas” (FREUD, 1933a [1932]/1976, p. 141). E logo adiante declara que “a psicologia é incapaz de solucionar o enigma da feminilidade” (Id., ibid., p. 144). O enigma, como vemos, assentando-se, contudo, prioritariamente sobre um dos pólos do par: o feminino. Apesar das dificuldades ressaltadas, a herança teórica com a qual contamos para tratar das questões pertinentes ao masculino e ao feminino consiste nas oposições ativopassivo e fálico-castrado. O par masculino-feminino é o último termo de uma série que inclui estes pares de opostos, sendo que, segundo Freud, a “separação nítida” entre o masculino e o feminino ocorre somente na puberdade. “Sabe-se que somente com a puberdade se estabelece a separação nítida entre os caracteres masculinos e femininos, num contraste que tem, a partir daí, uma influência mais decisiva do que qualquer outro sobre a configuração da vida humana”. (FREUD, 1905d/1989, op. cit., p. 206).
61 É na seção (4) do capitulo III dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, intitulada “A diferenciação entre o homem e a mulher”, que se encontram as primeiras referências à passividade como característica do feminino, formulada através de dados de observação: “elas preferem a forma passiva” (Id., ibid., p. 206). Sendo neste mesmo texto que se enuncia que a libido seja “regular e normativamente, de natureza masculina”, posto que libido é energia e, como tal, atividade. Pela via da bissexualidade, os contornos dessa “separação nítida” se tornam imprecisos por conta da ressalva de que a libido pode ocorrer tanto no homem quanto na mulher. Ou seja, a separação que é nitidamente proposta por Freud é entre os termos atividade e passividade, que compõem a seqüência que culmina na oposição masculinofeminino. Observa-se, no entanto, que não há nitidez na “mistura” entre tendências de fim ativo e tendências de fim passivo que possam ocorrer em um indivíduo. Dentro deste enfoque, tanto uma mulher pode ser ativa quanto um homem pode ser passivo. Visando maiores esclarecimentos sobre esta questão, vejamos de que forma a oposição atividade-passividade se insere na seqüência que culmina na oposição masculinofeminino.
II.3 – A oposição atividade-passividade e a oposição masculino-feminino Na concepção freudiana o desenvolvimento da sexualidade infantil se efetua em fases caracterizadas por formas de organização da libido, sob o primado de distintas zonas erógenas. Conforme Laplanche e Pontalis, a idéia de uma evolução da atividade libidinal em fases se caracteriza por uma organização “mais ou menos acentuada, da libido sob o primado de uma zona erógena e pela predominância de uma modalidade de relação de objeto” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967/1983, op. cit., p. 242). Seguindo a teoria do apoio das pulsões sexuais nas funções vitais, é na fase anal que se constitui a polaridade atividade-passividade. No artigo “Caráter e erotismo anal”, de 1908, Freud estabelece uma relação entre esta fase e traços de caráter que persistem no adulto, sendo em “A disposição à neurose obsessiva”, de 1913, que aparece a analidade como substrato de uma forma de relação
62 objetal marcada tanto pelo anseio de controle do objeto para dele usufruir, como pela destrutividade. Como foi visto na seção anterior deste capítulo, a passividade constitui o alicerce das primeiras referências freudianas ao feminino. Vimos, também, que esta associação não destitui as mulheres de sua parcela de atividade. Isto porque as condutas que situam o indivíduo numa posição passiva não refletem necessariamente sua passividade na forma como a psicanálise a concebe. Para Freud, atividade e passividade qualificam modalidades da vida pulsional, e quando observamos condutas que apontam para a busca de posição passiva, estas são indicativas de uma atividade pulsional – pois a pulsão é sempre ativa – que tem como alvo a passividade. Neste sentido, quando Freud enuncia que as mulheres “preferem a forma passiva”, não se entende que a passividade seja uma característica exclusivamente constitutiva do psiquismo das mulheres. A passividade remete a uma finalidade da pulsão traduzida ou exteriorizada em condutas percebidas como passivas e que dizem respeito à vida de fantasia. Quando temos a passividade adjudicada ao feminino, o que se entende é o feminino (em homens ou mulheres) como modalidade de funcionamento pulsional cujo alvo é passivo, como vemos exposto na seguinte passagem de “O problema econômico do masoquismo”: “Poder-se-ia considerar característica psicológica da feminilidade dar preferência a fins passivos. Isto, naturalmente, não é o mesmo que passividade; para chegar a um fim passivo, pode ser necessária uma grande quantidade de atividade” (FREUD, 1924c/1976, op. cit. p. 143). Desta forma, Freud não renega nem a passividade em homens nem a atividade nas mulheres, mas esta última se reporta ao “masculino” das mulheres. A linha de passagem que assimila a polaridade atividade-passividade ao par masculino-feminino é, no entanto, pouco rigorosa; sendo o próprio Freud o primeiro a pontuar as carências desta articulação, como lemos no texto “A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”, de 1920. No estudo deste caso clínico, Freud mais uma vez se refere às dificuldades da psicanálise para elucidar aquilo que “na fraseologia convencional ou biológica” é nomeado como masculino ou feminino. “Quando tentamos reduzi-los mais ainda, descobrimos a masculinidade desvanecendo-se em atividade e a feminilidade em passividade, e isso não nos diz o bastante” (FREUD, 1920a/1976, op. cit., p. 211 – o grifo é nosso) .
63 Assoun assinala o fato de que, necessariamente, ”a elucidação do masculino e do feminino passa por uma reflexão sobre o ativo e o passivo”, chamando atenção, contudo, para o caráter “volátil”, “vaporoso” das definições freudianas calcadas nesse par de opostos (ASSOUN, 2006, p. 38). “Por conseguinte, ‘ativo’ e ‘passivo’ são a versão vaporosa e deslavada do ‘masculino’ e do ‘feminino’” (Id., ibid, p. 39). As menções a pouca solidez teórica alcançada pela psicanálise no intuito de demarcar distinções entre masculino e feminino persistem até o final da obra freudiana, como se verifica nesta passagem do “Esboço de psicanálise” – a qual transcreveremos em toda sua extensão, em função da referência à questão da bissexualidade, já presente nesta tese. Na vida mental, encontramos apenas reflexos desta grande antítese e sua interpretação torna-se mais difícil pelo fato, há muito suspeitado, de que ninguém se limita às modalidades de reação de um único sexo; há sempre lugar para as do sexo oposto, da mesma maneira que o corpo carrega juntamente com os órgãos plenamente desenvolvidos de determinado sexo, rudimentos atrofiados, e com freqüência inúteis, dos do outro. Para distinguir entre masculino e feminino, na vida mental, usamos o que é, sem dúvida alguma, uma equação empírica, convencional e inadequada: chamamos de masculino tudo o que é forte e ativo, e de feminino tudo o que é fraco e passivo. Este fato da bissexualidade psicológica dificulta também todas as nossas investigações sobre o assunto e torna-as mais difíceis de descrever (FREUD, (1940 [1938]/1975, p. 216 – os grifos são nossos).
Nesta passagem se encontram evidenciados os problemas encontrados por Freud no sentido de dar consistência teórica a esta “grande antítese” constituída pelo masculino e o feminino, quando se tenta situá-la no território das subjetividades. Vemos, também, que a bissexualidade aparece menos como uma descoberta ou solução teórica, e mais como ocupando o lugar de origem de um problema. É o “fato da bissexualidade psicológica” o que dificulta a investigação, colocando questões incômodas à teoria. Como foi visto acima, a bissexualidade levou à ampliação do conceito de complexo de Édipo, introduzindo a idéia de ligações “homossexuais” no desenvolvimento normal da libido. Neste sentido, a bissexualidade mostra um poder desorganizador das concepções freudianas do Édipo positivo. Sabendo-se que Freud considera as mulheres mais bissexuais do que os homens (devido à fase inicial de ligação com a mãe), a bissexualidade “originária” irá colocar em questão, principalmente em relação ao menino, a concepção freudiana da criança “masculina desde o início” e que persistiria masculina não fosse a ocorrência de “desvios”. A bissexualidade irá, inegavelmente, levantar problemas à teorização sobre o masculino e o feminino desde o momento em que estas se mostrem regidas por uma lógica
64 atrelada, mais propriamente, à concretude da procriação (que se sustenta em distinções nítidas entre macho e fêmea) do que à própria concepção freudiana da sexualidade. Uma vez imerso em uma lógica binária, o princípio que rege a busca de definições do masculino e do feminino é o de separação e oposição, como nos mostra Jean Laplanche ao tratar do tema da diversidade e da diferença relativamente à questão de sexo e gênero. A idéia de diferença “implica uma lógica de dois valores”, uma dualidade, uma polaridade que se coloca entre dois termos. A lógica da diferença é uma lógica simples, e se define pela oposição em contrários. O autor mostra que “não existe lógica do conceito sem que ela se baseie, pelo menos virtualmente, numa atribuição possível desse conceito a um sujeito”, sendo que, pela lógica da diferença, “os contrários não podem ser afirmados simultaneamente, de um mesmo sujeito” (LAPLANCHE, 1988, op. cit., p. 40). Assim, se aceitamos a idéia de que masculino e feminino se constituem como pares de opostos, ficamos defrontados com o problema de pensar sua ingerência em um único indivíduo. Quando observamos mais detidamente um dos elementos que refletem essa “grande antítese”, descrito na citação acima como “modalidades de reação” de um e outro sexo, não são fornecidos os fundamentos desta categoria; ou seja, em que consiste uma modalidade de reação masculina ou feminina. Como o próprio Freud enfatiza, para dar consistência a esta distinção ingressamos no território do empírico, do convencional e do inadequado. Esta afirmativa nos levará, em momentos posteriores desta tese, a deter-nos sobre outras formas de compreensão desta polaridade, proposta por Freud, entre um masculino forte e ativo e um feminino fraco e passivo, recorrendo a formulações que levam em conta a questão da diversidade entre os gêneros (cf. Laplanche, 1988, op. cit.). Centrando-nos no enfoque relativo à questão do convencional (ou seja, aquilo que distingue os termos masculino e feminino no âmbito das convenções e papéis sociais) nos reportaremos aos diferentes sentidos nos quais Freud decompõe o masculino e o feminino. Isto porque entendemos ser nesta formulação que se encontram prenunciados os caminhos de compreensão de muitos dos problemas que envolvem esta oposição. Dentro dessa perspectiva, optamos por transcrever a extensa nota, datada de 1915, que consta nos “Três ensaios”, posto que esta enuncia não apenas as dificuldades teóricas que permeiam o masculino e o feminino mas também, e principalmente, o encaminhamento para seu maior esclarecimento:
65 É indispensável deixar claro que os conceitos de “masculino” e feminino, cujo conteúdo parece tão inambíguo à opinião corriqueira, figuram entre os mais confusos da ciência e se decompõem em pelo menos três sentidos. Ora se empregam “masculino” e “feminino” no sentido de atividade e passividade, ora no sentido biológico, ora ainda no sentido sociológico. O primeiro desses três sentidos é o essencial, assim como o mais utilizável em psicanálise. A isso se deve que a libido seja descrita no texto como masculina, pois a pulsão é sempre ativa, mesmo quando estabelece para si um alvo passivo. O segundo sentido de “masculino” e “feminino”, o biológico, é o que admite a definição mais clara. Aqui, masculino e feminino caracterizam-se pela presença de espermatozóides ou óvulos, respectivamente, e pelas funções decorrentes deles. A atividade e suas manifestações concomitantes – desenvolvimento muscular mais vigoroso, agressividade, maior intensidade da libido – costumam ser vinculadas à masculinidade biológica, embora essa não seja uma associação necessária, já que existem espécies de animais em que essas propriedades correspondem, antes, à fêmea. O terceiro sentido, o sociológico, extrai seu conteúdo da observação dos indivíduos masculinos e femininos existentes na realidade. Essa observação mostra que, no que concerne ao ser humano, a masculinidade ou a feminilidade puras não são encontradas nem no sentido psicológico, nem no biológico. Cada pessoa exibe, ao contrário, uma mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os traços biológicos do sexo oposto, e ainda uma conjugação de atividade e passividade, tanto no caso de esses traços psíquicos de caráter dependerem dos biológicos quanto no caso de independerem deles (FREUD, 1905d/1989, op. cit., p. 207).
Nesta passagem vemos explicitados os três sentidos – intimamente articulados – que integram os conceitos de masculino e feminino. É na oposição atividade-passividade que Freud faz recair o pólo ativo sobre o masculino justificando que a libido, posto que ativa, seja descrita como masculina. Tal afirmativa, para sua sustentação, não prescinde, contudo, dos outros dois sentidos outorgados ao masculino e ao feminino: o sentido sociológico – calcado na observação dos indivíduos existentes na realidade – e o sentido biológico. Não entraremos no mérito da discutível fundamentação biológica das afirmativas freudianas – discussão levada a efeito de forma sistemática e abrangente por Jean Laplanche (1992, 1996). Também não entraremos ainda nas questões pertinentes aos enfoques psicológico e sociológico. Neste momento nos centraremos mais precisamente no processo que dá origem especialmente aos enunciados sociológicos e psicológicos – o qual radica na observação. Freud observa que, no ser humano, a masculinidade ou a feminilidade puras não são encontradas em nenhum dos sentidos enunciados acima, sendo que, no sentido psicológico, cada pessoa exibe uma conjugação de atividade e passividade. Mas Freud observa, também, que “o desenvolvimento das inibições da sexualidade (vergonha, nojo, compaixão, etc.) ocorre nas garotinhas mais cedo e com menor resistência do que nos meninos” (Freud, 1905d/1989, op. cit., p. 206). Freud observa, ainda, que os homens se mostram mais agressivos que as mulheres. A observação aponta o problema, e a teorização posterior, como vemos, pretende compreender e explicar a origem do fenômeno observado.
66 Ocorre que a observação “científica” nunca é neutra ou descomprometida de hipóteses prévias. E, da observação psicanalítica, dizemos que ela só se dá, efetivamente, em situação de análise, especialmente quando visamos demarcar diferenças entre psicanálise e psicologia. Porém, como aponta Jean Laplanche, “Não reneguemos a observação psicanalítica. Há também a de Freud relativa ao jogo do Fort-da (...)” (LAPLANCHE, 1992, op. cit., p. 92), uma observação, como sabemos, realizada nos domínios da vida cotidiana. Mas Laplanche prossegue: Não procuremos a diferença entre uma observação psicanalítica e uma observação psicológica no fato de que uma seja indireta, a psicanalítica, e a outra não. As duas são indiretas; pois não existe observação que mereça este nome e que se prive de hipóteses, verificadas somente de maneira indireta. Mas repetiremos que a observação psicanalítica é duplamente indireta: 1) como toda tentativa de saber e conhecer, 2) porque seu objeto é, ele próprio, “indireto” (Id., ibid., p. 92).
Abrimos este parêntese sobre a observação, no caso, mais especificamente, aquela que dá origem às primeiras proposições freudianas sobre o masculino e o feminino, porque também esta tese parte de uma observação “sociológica” e “psicológica”, qual seja: de que os homens atuam sua agressividade de forma mais evidente que as mulheres. Nossas discordâncias com determinadas explicações freudianas ou nossos distintos ângulos de abordagem do problema se voltarão, mais bem, para a fundamentação – tomando este termo como a hipótese prévia que orienta a observação. Sem aderir a uma boa parcela das explicações, concordamos em princípio, contudo, com as observações freudianas – especialmente aquelas que remetem à preponderância das manifestações de agressividade no sexo masculino. Reteremos, porém, o material proveniente desta observação sobre a agressividade masculina para ser mais bem trabalhado em momentos posteriores. Isto porque nos falta, ainda, abordar outro dos pares de opostos que integram o masculino e o feminino: a oposição fálico-castrado. Como veremos a seguir, esta oposição encontra suas raízes também na observação ou, melhor dizendo, nas observações, posto que remete a dois diferentes “sujeitos observadores”. O primeiro deles é a criança que observa a diferença anatômica entre os sexos e constrói suas “teorias”. O segundo é o próprio Freud que constrói sua teoria sobre as “teorias” infantis. Nosso interesse em focalizar mais detidamente as “teorias” sexuais infantis da fase fálica reside no fato de que a teoria freudiana do feminino castrado é um dos elementos
67 sobre os quais é possível situar a rejeição, o desprezo e o medo de que são alvo as mulheres. Este aspecto importa especialmente a esta tese, posto que no desprezo e no medo podem ser localizadas muitas das explicações sobre a violência masculina contra a mulher. Voltar a um tema tão amplamente investigado por autores como André Green (2004) ou Jean Laplanche (1988, op. cit.), entre outros, encontra sua justificativa no fato de que as proposições freudianas centradas no complexo de castração, ainda que amplamente questionadas no que diz respeito à sexualidade e à constituição psíquica femininas, permanecem como referências necessárias sobre o masculino e suas angústias diante do feminino. Isto mesmo considerando-se que Freud tenha concentrado seu pensamento em torno da problemática da castração e da fase fálica, não dando maior atenção, no caso dos meninos, aos períodos que a antecedem. Tratando-se do feminino, foi especialmente o artigo “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (FREUD, 1925j/1976, op. cit.) que levantou maiores protestos dentro da comunidade psicanalítica, dando corpo à conhecida cisão entre Freud e a escola “inglesa”. Esta escola agrupava, entre seus membros mais conhecidos, Ernest Jones, Karen Horney e Melanie Klein. Como mostra Breen , “A idéia de Freud do monismo fálico, segundo o qual há uma inexistência precoce da vagina até mesmo no inconsciente, tornou-se o centro de um debate acalorado nos anos 20 e 30, conhecido como o debate Freud-Jones” (Breen, 1998, op. cit., p. 105). Mas nos reportaremos a esse debate após delinear as proposições freudianas sobre o complexo de castração da menina.
II.4 – A oposição fálico-castrado: a menina e a diferença Tomando o caso das meninas, Freud observa que estas “notam o pênis de um irmão ou companheiro de brinquedo, notavelmente visível e de grandes proporções, e imediatamente o identificam como o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível”, sendo que, a partir desta percepção, “as meninas caem vitimas da inveja do pênis” (FREUD, 1925j/1976, op. cit., p. 313). O que está proposto é que, na fase fálica, o reconhecimento das diferenças sexuais diz respeito à visibilidade e superioridade do órgão masculino que passará a ser invejado pela menina. Ou seja, as reações observadas por
68 Freud no menino e na menina se organizam a partir da referência visual da presença ou ausência do pênis. No caso da menina, a teorização freudiana indica uma aceitação imediata da percepção da diferença anatômica: elas caem sob o efeito da inveja daquilo que não têm. Na Conferência XXXIII das “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise”, tendo como base sua afirmativa sobre o desconhecimento da vagina e a prevalência do clitóris como zona erógena organizadora da sexualidade da menina, Freud postula a masculinidade primária da menina: nesta fase “a menininha é um homenzinho” (FREUD, 1933a [1932]/1976, op. cit., p. 146). A partir desta postulação, Freud conceberá suas teorias sobre a sexualidade e a constituição psíquica femininas de forma profundamente atrelada à teoria do monismo fálico.
Dentro desta vertente, o Édipo feminino se enunciará através dos efeitos da
“descoberta” de sua castração. Esta representa “um marco decisivo no crescimento da menina” levando-a a atribuir à mãe a culpa por ver-se desprovida de um pênis. Sua hostilidade em relação à mãe, que não lhe forneceu um órgão “apropriado”, leva a menina a investir o pai, movida pelo “desejo de possuir o pênis que a mãe lhe recusou” (Id., ibid., p. 157). Desta forma, a menina entra no Édipo pela via da castração e se verá confrontada pelas tarefas de uma mudança de objeto – da mãe para o pai; e de uma mudança de zona erógena – do clitóris para a vagina. Do sucesso ou fracasso que a menina logre na execução deste trabalho psíquico derivam “três linhas de desenvolvimento possíveis: uma conduz à inibição sexual ou à neurose, outra, à modificação do caráter no sentido de um complexo de masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade normal”, que a levará à maternidade como possibilidade de realização do desejo de um pênis (Id, ibid., p. 155). O que se encontra indicado, nessa teorização, é que a “solução” denominada como “feminilidade normal” situa necessariamente a mulher no destino da maternidade. Dentro desta perspectiva, no entanto, o desejo por um bebê emerge atrelado à substituição fetichista do pênis do qual a menina se viu “desprovida”. A partir da proposição da masculinidade inicial da criança, temos que o acesso à feminilidade para a menina resulta, assim, de uma tarefa mais árdua do que o acesso à masculinidade para o menino, uma vez que este, masculino desde o início, manterá o mesmo objeto – a mãe, e a mesma zona erógena – o pênis.
69 As formulações sobre o complexo de castração feminino levam, ainda, ao enunciado de toda uma série de características atribuídas à mulher. Tendo como premissa que a fase de vinculação amorosa com a mãe bem como a fase do complexo de Édipo não são adequadamente superadas no curso do desenvolvimento da menina, Freud designará, em 1933, certas características e sentimentos como próprios da “natureza” feminina. A importância da inveja do pênis na vida mental das mulheres leva à afirmativa que a vergonha, a inveja e o ciúme desempenham um papel de maior relevo na vida destas. Da mesma forma, pela permanência no complexo de Édipo por tempo indeterminado, a formação do superego “deve sofrer um prejuízo” (Id., ibid., p. 159). Elas são consideradas como “possuidoras de pouco senso de justiça” e “mais débeis em seus interesses sociais e possuidoras de menor capacidade de sublimar os instintos, do que os homens” (Id., ibid., p. 164). Sua capacidade de amar também se mostra afetada em função da “maior quantidade de narcisismo”, limitação que somente será mitigada pela realização através da geração de um filho, complemento necessário à carência do órgão adequado. A Conferência XXXIII é encerrada com uma reafirmação do desconhecimento psicanalítico acerca da feminilidade sem que, contudo, deixem de ser expostas razões pelas quais as mulheres, em função da “realidade” de sua castração, “são rebaixadas de valor pela menina, assim como depois o são pelos meninos e posteriormente, talvez, pelos homens” (Id., ibid., p.156). A questão que se coloca, contudo, diz respeito à “realidade” da castração. Realidade do quê e, principalmente, realidade para quem? Questão para a qual nos voltaremos através do complexo de castração no menino.
II.5 – A oposição fálico-castrado: o menino e a diferença É uma realidade admitida por Freud que a teoria da castração originou-se da observação de meninos, mais precisamente da “supervisão” do caso de Hans. O tratamento do menino – cuja publicação data de 1909, sob o título “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos” (FREUD, 1909b/1976) – foi efetuado pelo próprio pai da criança, com o acompanhamento de Freud. É inspirado neste caso que Freud formula a teoria do monismo fálico, que consiste em “atribuir a todos, inclusive às mulheres, a posse de um
70 pênis, tal como o menino sabe a partir de seu próprio corpo”, e remete aos efeitos que a percepção das diferenças entre os sexos tem sobre o menino (FREUD, 1908c/1976, p. 219). A continuidade dos desenvolvimentos desta construção teórica fundamentada na problemática que se apresenta ao menino, se dará nos textos “A organização genital infantil” (1923e/1976) e “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925j/1976, op. cit.), nos quais se articulam o complexo de Édipo e o complexo de castração. Tendo como base o material colhido em observação de crianças e nas lembranças infantis recuperadas em análises de adultos, situa-se em 1908 o momento em que Freud dá a público suas primeiras formulações sobre as “teorias sexuais das crianças”. Neste momento da obra freudiana, a castração não ocupa, ainda, o lugar privilegiado que lhe será destinado em anos posteriores. Em “Sobre as teorias sexuais das crianças” (1908c/1976, op. cit.) é o enigma do nascimento dos bebês que é tomado como ponto crucial do despertar da curiosidade infantil. Assim sendo, o texto de 1908 se volta para as fantasias infantis sobre a fertilização oral, o caráter sádico das relações sexuais dos pais e o nascimento dos bebês pelo ânus. Neste texto encontra-se também a menção à crença do menino de que todas as pessoas possuem um pênis, teoria infantil que assumirá importância crescente e que levará Freud, em 1925, a reformular sua concepção sobre o direcionamento principal das investigações da criança. Essa é uma oportunidade de corrigir uma afirmação que fiz há muitos anos atrás. Acreditava que o interesse sexual das crianças, diferentemente daquele dos pubescentes, era despertado, não pela diferença entre os sexos, mas pelo problema de saber de onde provinham os bebês (FREUD, 1925j/1976, p. 314n).
A partir de 1925, o enigma do nascimento dos bebês, que implica transformações visíveis do corpo da mulher em gestação, sofrerá um certo “apagamento” dentro do teorizar freudiano, passando para primeiro plano as questões sobre as diferenças anatômicas entre os sexos e o impacto sobre a criança dessa diferença calcada sobre a presença ou ausência do órgão masculino. O fato de que as teorias sobre a castração ocupem a posição de foco principal da curiosidade infantil não implica, porém, que os ciúmes provenientes do nascimento de um novo bebê ou os sentimentos conflituosos advindos das investigações infantis acerca da relação entre os pais deixem de ser considerados. Estes conflitos infantis
71 permanecem, como sabemos, ocupando um lugar primacial nas formulações do complexo de Édipo. A partir do predomínio da investigação da questão da castração, vemos que esta norteará as concepções do menino – mas também as de Freud – sobre a mulher. Assim, para fundamentar o desenvolvimento de nossas questões, retomaremos brevemente os principais postulados freudianos acerca do monismo fálico em função de sua importância para as idéias propostas nesta tese posto que, para Freud, a “castração” feminina se apresenta como um dos fundamentos do desprezo e da hostilidade dos homens diante das mulheres. Nosso objetivo será mostrar, como o faremos posteriormente – recorrendo a autores pós-freudianos – a adesão de Freud à teoria infantil do sexo feminino castrado e a subseqüente elevação desta “teoria” infantil ao estatuto de teoria psicanalítica.
II. 6 – A “teoria” infantil da mulher castrada Para o menino, o pênis é a principal zona erógena e o alto valor concedido a este "objeto sexual auto-erótico" torna-lhe difícil imaginar uma pessoa semelhante a ele desprovida desse "constituinte essencial". Seu corpo, conhecido principalmente através do olhar e de sensações, é a referência do menino sobre como todos os corpos devem ser. A explicação encontrada para a diferença percebida no corpo feminino é, então, que a mulher foi castrada. No caso do menino, a percepção do corpo feminino irá convocar um trabalho psíquico visando dar conta de uma ausência. “A falta de um pênis é vista como resultado da castração e, agora, a criança se defronta com a tarefa de chegar a um acordo com a castração em si própria” (FREUD, 1923e/1976, op. cit., p.182). Em 1923, a “realidade” da castração feminina assume seu caráter de universalidade com base nas fantasias do menino. Esta “realidade” é novamente mencionada em 1925, quando Freud enuncia distinções entre o desenvolvimento sexual feminino e o masculino. As conseqüências inteligíveis da percepção da diferença anatômica “correspondem à diferença entre uma castração que foi executada e outra que simplesmente foi ameaçada” (Id., 1925j/1976, op. cit., p. 319). A fantasia do menino de que a diferença entre os sexos se deve a uma castração “executada” fornece o fundamento da oposição fálico-castrado,
72 precursora da oposição masculino-feminino que, segundo Freud, só é alcançada na puberdade através do efetivo reconhecimento do órgão genital feminino. Na fase fálica, a criança supõe que a castração ocorreu como uma forma de punição. Esta acredita, porém, que apenas “pessoas desprezíveis do sexo feminino perderam seus órgãos genitais – mulheres que, com toda probabilidade, foram culpadas de impulsos inadmissíveis semelhantes aos seus próprios” (Id, ibid., p.183). Neste sentido se articula, aqui, como efeito da percepção de uma diferença, toda uma construção fantasiosa que remete aos desejos incestuosos infantis da fase edípica. O menino, segundo Freud (Ibid.), num primeiro momento “não vê nada” ou “rejeita” sua percepção do corpo da mulher. É somente mais tarde, quando sob os efeitos da ameaça de castração, que a observação da ausência do pênis no corpo feminino toma importância para ele. O menino cai vítima da angústia de castração que irá ocasionar o desinvestimento do objeto materno em função do investimento narcísico no pênis. A ameaça de castração assume, assim, um papel determinante na “dissolução” do complexo de Édipo, como mostrará Freud em 1924. No entanto, extrapolando seus efeitos para além da fase fálica, essa “combinação de circunstâncias” conduz a reações capazes de se tornarem fixas “tendo o poder de determinar permanentemente as relações do menino com as mulheres: horror da criatura mutilada ou desprezo triunfante por ela” (Id.,1924d/1976, p. 314). O que temos exposto aqui, é a crença do menino na “realidade” da castração feminina como subjacente ao horror e ao desprezo frente à mulher, manifestação afetiva que, em função da universalidade do complexo de castração, não se limitaria aos indivíduos defrontados às soluções negativas do complexo de Édipo. Vemos assim que, para Freud, é no complexo de castração que se fundamentam os sentimentos de hostilidade frente à mulher, uma vez que a castração assume um papel primacial no que concerne às angústias masculinas. Em função dos objetivos desta tese e tendo-se em conta o exposto acima, nos voltaremos mais diretamente para a questão da angústia de castração. Com o propósito de circunscrever fatores de especial importância na constituição psíquica masculina, nos dirigiremos aos aspectos nos quais a segunda teoria da angústia – em certa medida por conta da preponderância que adquire o tema da castração para Freud – se distancia de certos enunciados presentes na primeira teoria da angústia.
73
II. 7 – A castração e a angústia A angústia é um afeto da ordem do desprazer e que se revela central na formação dos sintomas. Como aponta Laplanche (1993), encontramos em Freud relações entre desprazer, dor e angústia, situadas tanto sob o ponto de vista tópico como sob o dinâmico e o econômico. Entre os psicanalistas há consenso em reconhecer que existem em Freud duas teorias da angústia. Na primeira teoria, cuja ênfase está marcada pelos aspectos econômicos, a angústia seria proveniente de um excesso de energia libidinal não descarregada. Nesta teoria vemos que as primeiras proposições sobre a neurose de angústia levam à consideração de um fundo de excitabilidade geral que aponta para um excesso. Nas palavras de Laplanche “essa excitabilidade geral traduz um acúmulo de excitação que o indivíduo revela-se incapaz de suportar”. O que serve de pano de fundo ao sintoma é a expectativa ansiosa: um “estado de ansiedade permanente, sempre propenso a se fixar, na menor oportunidade e ao menor pretexto” (Id., ibid., p. 19). A angústia, neste sentido, poderia fixar-se em qualquer coisa e manifestar-se tanto por uma expectativa ansiosa como por acessos de angústia. Considerando-se que o afeto e a representação são dois elementos separáveis, pelos efeitos do deslocamento, o afeto pode ser transposto para qualquer representação. Temos, no entanto, que o afeto, para Freud, é concebido de maneira próxima do somático, ele é constituído por descargas motoras enlaçadas a sensações de prazer ou desprazer. Disso deriva que “o próprio afeto já é apresentado como um nível de elaboração, um primeiro nível de ligação” no qual a angústia se mostraria “o afeto mais elementar, o mais primordial, o mais próximo de uma excitação que se descarrega de maneira não específica” (Id., ibid., p. 30) O que distingue mais nitidamente, em Freud, a neurose de angústia da histeria de angústia, ou neurose fóbica, é que, nesta última, a angústia aparece já fixada a um objeto substitutivo. Temos, então, que a primeira teoria da angústia fala de um excesso de energia libidinal não descarregada, a angústia podendo ser entendida pelo viés de uma “energia sexual não-elaborada” que se descarrega “de maneira mais ou menos anárquica”; mas temos também, ainda, os enunciados que falam da libido “desligada de suas representações, especialmente pelo processo de recalque”, e que se descarrega sob a forma de angústia. A angústia pode ser compreendida, assim, como uma primeira forma de
74 organização das excitações traduzidas em afeto. Disso decorre que os enlaces deste afeto com uma representação ou um objeto dariam conta, por assim dizer, de um movimento subseqüente a esta primeira organização em angústia. Tomando-se esta perspectiva da angústia temos, no texto “O recalque” 1915, uma passagem, referida ao caso do homem dos lobos, que condensa os aspectos que vêm sendo levantados relativamente a este “segundo movimento” de articulação da angústia e que prenuncia a segunda teoria. Restringindo-se às três psiconeuroses mais conhecidas, quero mostrar ainda, utilizando alguns exemplos, como os conceitos até aqui introduzidos podem ser aplicados ao estudo do recalque. Escolherei da histeria de angústia o exemplo bem analisado de uma fobia de animais. A moção pulsional que foi submetida ao recalque era uma atitude libidinal da criança em relação ao pai, pareada com o medo [Angst] que tinha dele. Depois do recalque essa moção desapareceu da consciência, o pai não mais aparece nela como objeto da libido. Em lugar correspondente ao pai, encontra-se agora, como substituto, um animal mais ou menos adequado para servir de objeto de medo [Angstobjekt]. A formação substitutiva da parcela representacional produziu-se pela via de um deslocamento. Esse deslocamento ocorreu ao longo de uma cadeia cujas conexões obedecem a certas determinações. Quanto à parcela quantitativa, esta não desapareceu, mas se converteu em medo [Angst]. O resultado é um medo [Angst] do lobo, no lugar de uma demanda amorosa em relação ao pai (FREUD, 1915a/2004, p. 184)
Voltando-nos para a segunda teoria, vemos que as modificações que trazem para primeiro plano a idéia de perigo se enlaçam às reformulações tópicas elaboradas em 1923. Mesmo antes de “O ego e o Id” (1923), porém, a idéia de perigo já aparecia na obra freudiana – como se verifica na citação acima. Sua articulação mais precisa dentro da teoria da angústia inicia-se a partir das definições freudianas dos termos angústia, medo e susto que encontramos em “Além do princípio de prazer” (FREUD, 1920g/1976, op. cit.). Em 1920, o termo angústia é utilizado na designação de um estado caracterizado pela expectativa do perigo e pressupõe uma certa forma de preparação para este – ainda que se trate de um perigo desconhecido. Já o termo medo pressupõe um perigo identificado, um objeto reconhecido e que é temido. Quanto ao termo susto, este é indicativo do despreparo diante de uma situação perigosa, sendo enfatizado o fator surpresa. Numa interpretação econômica, e tendo em conta a concepção freudiana de trauma, o susto traduz o estado do aparelho quando é repentina e inesperadamente invadido por excitações, estado que remete à impossibilidade de ligação psíquica. O texto onde são expostas as modificações da teoria da angústia é, principalmente, “Inibições, sintomas e ansiedade” (FREUD, 1926d [1925]/1976). No escopo das modificações terminológicas introduzidas em 1926, o termo susto se diluirá num
75 desdobramento da noção de angústia entre dois pólos: a angústia-sinal, que pressupõe uma preparação para o perigo, e a angústia automática, que sobrevém num estado de nãopreparação do aparelho psíquico, contendo, ainda, um não-reconhecimento do perigo. A angústia automática, para Freud, opõe-se ao sinal de angústia. A angústia-sinal assume um aspecto de preparação para o choque, enquanto a angústia automática pode ser definida como reação à situação traumática que corresponde ao estado do sujeito submetido a um afluxo de excitações, de origem interna ou externa, impossível de ser dominado. Em “Inibições, sintomas e ansiedade” Freud introduz o termo angústia real que diz respeito à angústia perante um perigo real – e que pode ser traduzida como medo. São as emanações da angústia real que se encontram na base das diversas classificações das fobias como fobias de algum objeto ou situação identificada. Na avaliação de Laplanche (1993), a segunda teoria é mais complexa, tendo como uma de suas “coordenadas essenciais”, a noção de perigo. Por outro lado, a segunda teoria traz para primeiro plano a noção de ego, sendo a angústia vista sob o viés da reação ou da preparação para o perigo. No entanto, o ego aparece não apenas como o lugar da angústia, mas “como podendo ser até causa da angústia, como podendo repetir a angústia por sua própria conta, pelo menos como sinal”. Nessa medida, nas palavras do autor, “a teoria econômica, por assim dizer mecânica, de uma transformação da libido em angústia foi parcialmente abandonada” (LAPLANCHE, 1993, op. cit., p. 43). Laplanche mostra que a segunda teoria assumirá um caráter mais funcional. Sendo buscada uma certa função para a angústia, ela assumirá, também, um caráter mais simbólico e atrelado à história individual. Isto porque “a angústia como sinal, ou como símbolo, deverá ser relacionada com outras experiências angustiantes que ela repete, sem deixar de constituir uma espécie de vacinação contra o retorno” (Id., ibid., p. 43). Essa teoria assume uma feição mais “objetivista”, dado que situaria a angústia neurótica como a reação ou a repetição de um perigo, o que não implica, necessariamente a destituição da primeira teoria que aponta mais precisamente para os aspectos econômicos da invasão do psiquismo por um perigo (externo-interno). Voltando-nos para a questão da angústia de castração, é no período compreendido entre os anos 1923 a 1925 que Freud situa o complexo de castração no conjunto da evolução infantil, destacando uma fase da sexualidade infantil: a fase fálica, na qual a
76 problemática da castração será dominante (FREUD, 1923e/1976, op. cit.; 1925j/1976, op. cit.). Vemos porém que os enlaces entre a castração e a angústia já se encontram presentes na obra freudiana desde o caso do homem dos lobos (FREUD, 1918b [1914]/1976). Neste caso, a angústia de castração se apresenta como uma forma possível de dominação das excitações suscitadas pelo espetáculo da cena primitiva. Efetivamente, uma forma de dominar a angústia é atribuir-lhe um objeto concreto, ou seja, transformá-la em medo, o que pode ser compreendido como uma tentativa de estruturação da angústia – neste caso, justamente, como medo de castração. Chamamos atenção, no entanto, para um aspecto assinalado por Paulo de Carvalho Ribeiro (2000). Em suas referências ao caso, o autor pontua que o “homem dos lobos” evidencia a presença de duas correntes libidinais opostas: a corrente heterossexual e a corrente homossexual direcionada ao pai. Tendo isso em vista, Ribeiro ressalta que a angústia de castração emerge como uma construção defensiva diante do desejo homossexual, ou seja, em última instância, a angústia de castração fala de um desejo de castração – aspecto este que será obscurecido nas formulações da segunda teoria. Dentro da nova concepção da angústia, a temática da castração relacionada à idéia de perigo se insere, mais claramente, em 1932. Na conferência intitulada “A angústia e a vida instintiva” (FREUD, 1933a [1932]/1976, op. cit.), Freud relaciona a angústia às fases de organização da libido propondo que, a cada período de evolução libidinal, corresponde uma angústia que lhe é própria. À época de imaturidade do ego, a condição da angústia diz respeito ao perigo de desamparo psíquico. A dependência dos primeiros anos da vida é correlativa ao perigo da perda do objeto. À fase fálica corresponde o perigo de castração, e ao período de latência, a angústia frente ao superego. Considerando-se o papel central atribuído por Freud à angústia de castração, a pergunta a ser formulada, então, é se a angústia de castração poderia ser um exemplo de medo natural e universal, ou seja, de um medo que emerge naturalmente e não necessita de explicação? Como aponta Laplanche (1988, op. cit.), a observação freudiana contradiz esta hipótese, uma vez que se verifica que a criança pequena praticamente não demonstra um medo natural que possa ser atribuído a qualquer montagem instintual. Segundo o autor, no que diz respeito à angústia, a castração em Freud é “uma espécie de ponto de estreitamento, agrupando angústias e perigos anteriores a ela (a que se dá o nome de angústias pré-genitais), e desembocando em novas angústias que poderíamos
77 chamar pós-castrativas” (LAPLANCHE, 1988a, p. 10). Este autor aponta para o caráter “extremamente lábil, móvel” da angústia de castração como ligação entre o afeto e a representação, pontuando que “o próprio Freud duvida da existência de um medo inato da castração” uma vez que esta angústia necessita ser situada numa “gênese complicada” entre angústias mais arcaicas e uma função de interdição própria do momento edípico. Em continuidade às questões levantadas pela articulação entre castração e angústia, nos reportaremos às considerações de Jacques André (2002) sobre o tema. Para este autor, o fato de que a castração seja um bom articulador da angústia, especialmente a masculina, não entra em contradição com a proposição inicial de Freud da angústia como efeito de um excesso. Com base na Conferência XXV (FREUD, 1933a [1932]/1976, op. cit.), André mostra que na primeira teoria estão contemplados dois aspectos: em primeiro lugar a “estreita relação entre a angústia e o excesso do sexual” ilustrado pela neurose de angústia – onde a angústia decorre da “presença flutuante de um quantum de libido, desligado de toda representação”. Esta libido “excessiva, indômita, que invalida as tentativas de elaboração, é a angústia em si mesma” (ANDRÉ, 2002, op. cit., p. 151). A segunda ilustração patológica nos encaminha para a histeria de angústia (fobia), em cuja análise o autor põe o acento no “ataque interno”. Neste caso, o afeto desligado da representação é a angústia. Mas vemos que a fobia “fornece a solução” contra este perigo interno do qual não se pode escapar, a solução fóbica consistindo em encontrar no exterior um objeto ou situação onde depositar a angústia, o que aponta para a substituição do perigo interno por um externo. André mostra como em “Inibições, sintomas e ansiedade” Freud desloca a questão do excesso do sexual e do caráter interno da angústia para um lugar subalterno, dando ênfase ao perigo externo. Na primeira teoria, a angústia é resultado do arrombamento dos limites do eu por parte da libido nãoligada, ainda que o eu, na primeira tópica, não esteja definido como instância. Na segunda teoria, o eu não é somente o lugar afetado pela angústia, mas sim a fonte desta última. O risco pulsional não desaparece, mas ocupa um lugar secundário: é perigoso apenas porque suscita uma situação de perigo exterior; em última instância: a ameaça de castração (Id., ibid., p. 152).
Dentro dessa perspectiva, André pontua que o papel central da castração como estruturador da angústia é indiscutível no que se refere aos homens. Reportando-nos novamente a Ribeiro (2000, op. cit.), temos a consideração de que a angústia de castração implica desejo de castração, tema sobre o qual voltaremos ao tratar do problema da identificação feminina primária, postulada pelo autor.
78 Tomando a questão da universalidade da angústia de castração, temos que no caso das mulheres, tanto a ameaça quanto a angústia de castração são improcedentes, uma vez que o complexo feminino se articula, segundo Freud, em torno da inveja e da angústia de perda de amor. Neste sentido, a questão da universalidade da angústia de castração é posta em discussão pela via da constatação de que ela, rigorosamente, diz respeito tão somente ao sexo masculino. A solução encontrada por Freud para este problema será, então, deslocar as fontes de angústia nas mulheres da representação da perda genital para a experiência geral de separação: a perda do seio, a perda do conteúdo intestinal, etc. Mas, como aponta André, estas perdas afetam indistintamente meninos e meninas. Sendo que “esta maneira de inscrever a castração na linha das perdas autoriza a manter o princípio de uma mesma fonte de angústia tanto nos homens quanto nas mulheres” (ANDRÉ, 2002, op. cit., p. 153). Neste sentido, a angústia de castração diria respeito apenas aos varões. No caso do homem, é inegável que estas perdas primeiras “preparam o eu para a castração e fazem dela a reedição (inclusive a quintessência) das experiências precedentes” (loc. cit.). Segundo André (ibid.), a teoria da criança da fase fálica “pode ser entendida como uma simbolização, como uma ligação da angústia associada ao recalcamento das representações inconscientes inaceitáveis” (Id., ibid., p. 69). Para o homem, o papel central da angústia de castração persiste como elo final de uma cadeia e com todo o potencial de condensação que esta fantasia organizadora das perdas adquire na chamada fase fálica. A angústia de castração aparece como uma forma de qualificar, de dar um sentido à angústia e, desta maneira, tornar mais manejável e até controlável, uma angústia em suspenso. Avaliando o caso do menino, “a qualificação da angústia diante da libido como angústia de castração é uma solução de notável simplicidade, cujo êxito é bem conhecido: o império exercido pela angústia de castração sobre o psiquismo masculino” (Id., ibid., p. 70). Este “império” se mostra prenhe de conseqüências quando o que está em jogo é a relação entre homens e mulheres, como veremos no terceiro capítulo desta tese. Como enfatiza o autor, porém, a angústia de castração não constitui a explicação última para as angústias masculinas, posto que “recobre e dissimula” uma “angústia arcaica: angústia diante do desejo, diante do ataque pulsional” (Id., ibid., p. 99).
79 Dentro deste enfoque, vemos que a leitura crítica de André, bem como as dos autores anteriormente citados, não diminui a importância da temática da castração dentro do ideário psicanalítico. Seus reparos remetem, mais propriamente, à excessiva centralidade conferida por Freud à castração em três sentidos: primeiramente no que diz respeito à teoria da angústia; em segundo lugar, por haver tratado a sexualidade e a constituição psíquica feminina a partir de formulações pertinentes ao psiquismo do menino; em terceiro lugar, pelo fato de Freud ter relegado a um segundo plano – principalmente no que diz respeito ao varão – os períodos que antecedem os complexos de castração e de Édipo. Mas voltaremos a esses pontos mais adiante. Apesar dessas ressalvas, vemos que não é negada a efetividade da castração no que diz respeito à investigação clínica de casos individuais – uma vez que a criança que persiste no adulto não a abandona. Mas o fato de que se constate sua “realidade” para a criança da fase fálica, não implica que esta teoria infantil deva elevar-se ao patamar de “palavra final” dentro do pensamento psicanalítico. Ou seja, não se coloca em questão que a descoberta freudiana das teorias sexuais infantis sobre a castração constitui um artefato importante para a escuta psicanalítica. O que é levantado, contudo, é que a castração não deverá converter-se na explicação última, tanto para as investigações sobre o feminino, como para as angústias masculinas – aspecto que pode ser inferido da leitura de “Análise terminável e Interminável” (1937c/1975), onde Freud reconduz as angústias masculinas de passividade à angústia de castração e seus enlaces fantasísticos com a “homossexualidade”. Apesar destes reparos, a teoria da castração persiste como ferramenta teórica necessária à compreensão do psiquismo masculino, de suas angústias e dos aspectos imaginários que permeiam a relação entre homens e mulheres, aspecto realçado nesta passagem de Jean Cournut (2002): Resolução dramatizada do complexo de Édipo, o complexo de castração instala, nos homens, um temor constante e estruturante, uma espécie de fobia universal. Uma vez que os homens acreditam – sempre segundo Freud – que as mulheres encarnam o feminino castrado, elas se tornam depositárias do temor dos homens da castração (COURNUT, 2002, p. 210 – a tradução é nossa.).
A citação de Cournut situa alguns pontos importantes para esta tese: em primeiro lugar, remetido a Freud, o autor qualifica de “universal” a fobia dos homens frente às mulheres; em segundo lugar o autor atrela essa fobia ao fato de as mulheres serem as
80 “depositárias” da castração. Ressaltamos, contudo que o autor não se limita a essa explicação para a “fobia universal” dos homens, como veremos mais adiante. Pelo visto acima, a angústia de castração assume o poder de ligar as excitações emanadas do contato com o sexo feminino. Em função dessas observações, a questão da “realidade” da castração passa para primeiro plano em nossa ordem de considerações. A pergunta que se coloca diz respeito, porém, à questão de saber para quais indivíduos a castração feminina se configura como uma realidade? Questão que nos levará a outros aportes sobre o tema
II.8 – A “realidade” da castração feminina: uma produção psíquica do menino Seguindo proposições de Jean Laplanche sobre a castração, vemos que o autor enuncia aspectos distintivos entre o complexo de castração feminino e masculino. Segundo Laplanche (1988, op. cit.), as diferenças entre as fantasias do menino e as da menina nos colocam em presença de duas articulações distintas ou, em suas palavras, “dois mundos fechados, aparentemente sem grande comunicação” (Id., ibid., p. 86). Tratando das diferenças entre o complexo de castração feminino e o masculino, se verifica que na menina “dificilmente se poderá falar de amputação, e ainda menos de medo ou angústia de castração” (Id., ibid., p. 85-86). Ou seja, a fantasia que remete à perda do órgão é uma produção psíquica exclusivamente masculina e fala de angústias também especificamente masculinas. Essas angústias levam ao encerramento narcísico defensivo, à recusa da diferença. Esse processo defensivo fundamenta a fantasia da mulher castrada como solução para o enigma da ausência do pênis e para as angústias que dele decorrem. Na menina, o complexo de castração se articula através da inveja do pênis – que pressupõe um reconhecimento da diferença: elas vêem e sabem que não têm. Dando-se prioridade à percepção visual somos reportados, assim, à questão da “superioridade” do órgão masculino: elas vêem, sabem que não têm e, necessariamente, segundo Freud, desejam ter – enquanto os meninos apenas temem perder aquilo que já têm. Nesta seqüência, se insere necessariamente, contudo, a dimensão fantasística da castração.
81 Como aponta Green, o complexo de castração é “uma formação psíquica nascida do desenvolvimento da sexualidade infantil, do desejo que esta provoca e de suas conseqüências na imaginação infantil” (GREEN, 2004, op. cit., p. 10). A explicação para a diferença do corpo feminino pela via da castração aparece como um produto imaginário coerente com o psiquismo do menino. Vejamos, no entanto, uma outra passagem de Green onde suas idéias aparecem mais claramente explicitadas. É verdade que a fantasia desconhece a anatomia, do mesmo modo como a realidade psíquica descuida a realidade exterior. Assim, não seria adequado [produtivo] reduzir a diferença dos sexos a diferenças anatômicas. O inconsciente não parece levar em conta a realidade anatômica, posto que as crianças de ambos os sexos supõem que existe somente um sexo: os varões pensam que todos os seres humanos têm pênis e as meninas acreditam que todas as pessoas estão feitas como elas. (GREEN, 2001, p. 161 – tradução e grifos nossos)
Nessa passagem, é enunciado que a diferença anatômica não concerne ao inconsciente. Retomando-se as características específicas desse sistema temos a ausência de negação e a indiferença diante da realidade como específicas do processo primário (cf. FREUD, 1911b/1969). No que concerne à menina, devido à ausência de uma idéia prévia de “incompletude” ou de registros mnemônicos da ocorrência de extirpação sangrenta de um órgão, resultaria incorreto falar de “realidade” ou angústia de castração, a inveja do pênis emergindo como uma produção secundária e submetida a outras contingências que não, apenas, a constatação visual de uma diferença. Este aspecto é enfatizado por ambos os autores citados, os quais mostram que a fantasia de que a mulher foi castrada é a solução encontrada pelo varão diante da percepção da ausência do pênis no corpo da mulher. Esta percepção se liga à ameaça de castração em função dos desejos incestuosos do menino que a mergulham, no momento edípico, em fantasias carregadas de angústia. Tomando a castração como uma produção fundamentalmente imaginária, organizada “em rede”, Green adverte que Freud “se desliza de uma fantasia própria dos varões a uma fantasia dos dois sexos” (Green, 2004, op. cit., p. 50). Como uma de suas conseqüências, é mostrado que: Desde o momento em que se impõe a idéia de que a conformação do sexo feminino se deve a uma castração, esta última se converte na explicação de todas as insuficiências experimentadas pela menina ou das inferioridades que se atribui em relação aos varões, os quais não deixam de aproveitar nenhuma ocasião para oprimi-la para defender-se contra sua própria angústia de castração (Id., ibid., p. 137).
82 Esta passagem indica a feição defensiva que assume a desqualificação e opressão do sexo feminino. Defrontados à angústia gerada a partir da percepção das diferenças anatômicas entre os sexos, os varões elaboram teorias que localizam a castração no outro. Esta localização da castração na mulher consiste, como apontam os autores citados, em um movimento defensivo frente à ameaça de castração imaginada pelo menino. As fantasias de castração do menino dão forma, assim, tanto à imagem da mulher castrada, como à imagem da castradora. Estas produções imaginárias masculinas sustentam, assim, dentro da obra freudiana, a idéia de perigo associada à mulher. Para seguir com esta linha de raciocínio, nos reportaremos, no próximo capítulo, aos textos que falam mais propriamente do problema das ressonâncias da castração na relação entre homens e mulheres. No terceiro capítulo seguiremos, contudo, a vertente dos perigos emanados da mulher dentro de um escopo teórico que irá, ao final, extrapolar a questão da castração, como veremos a seguir.
CAPÍTULO III Ressonâncias da castração e da passividade na relação homem-mulher Iniciamos o segundo capítulo desta tese tratando da noção de bissexualidade e dos remanejamentos teóricos a ela associados. A bissexualidade levou a modificações na primeira concepção do Édipo, obrigando à consideração dos investimentos “homossexuais” em ambos os sexos e revelando-se um elemento conflituoso tanto relativamente aos investimentos libidinais, como no que diz respeito às identificações. Pela via da bissexualidade, as concepções psicanalíticas do feminino e do masculino trilharam caminhos complexos que levaram a um questionamento cada vez mais efetivo das definições e das divisões convencionais entre os gêneros. A posterior formulação do complexo de castração, a consideração de sua universalidade e a afirmação crescente da teoria do sexo único promoveram, contudo, um certo apagamento da noção de bissexualidade e de seus desenvolvimentos na obra freudiana. A partir do predomínio do complexo de castração, vimos que Freud teceu considerações a respeito do psiquismo feminino, calcadas na “realidade” da castração da mulher. Essas considerações nos levaram à questão de que a castração feminina assumia uma feição de realidade na mente masculina, sendo esta “teoria” infantil explicativa, para Freud, do desprezo e do medo diante da mulher. A relação entre a castração e as angústias masculinas nos levou a focalizar as teorias freudianas da angústia, onde se verifica que a segunda teoria não pressupõe que a primeira tenha sido descartada. Mantendo o foco no complexo de castração, vimos que, no sexo masculino, a castração revela uma potencialidade de condensação das perdas e angústias que antecedem a fase fálica, uma vez que marca a possibilidade da perda de “uma parte” frente à possibilidade da perda de um “todo”. Ou seja, ao situar-se relativamente a uma fantasia de perda possível de representação, a angústia de castração revela-se “mais organizada”, comparativamente às angústias inomináveis de aniquilamento, de esfacelamento do aparelho psíquico. A potencialidade organizadora da castração deriva da constatação de que as fantasias que compõem o complexo se apresentam enlaçadas às formas dos genitais masculino e feminino. Quanto ao órgão masculino, como nos mostra Jean Laplanche
84 (1988, op. cit.), o pênis é externo, exposto, sendo mais propenso a que se o considere “destacável”. Disso deriva ser freqüente sua representação como uma parte separada e independente de seu “portador” – aspecto tornado evidente nos casos de impotência. “A excitação, e sobretudo a ereção, quando se apresentam como independentes da vontade do indivíduo, marcam como que em pontilhado a linha de recorte que vai ser a da castração” (LAPLANCHE, 1988, op. cit., p. 18). Ao constituir-se como uma perda que pode ser representada, a castração se mostra um aglutinador das fantasias do menino – o que leva a que o medo da castração assuma os contornos de um medo masculino universal. Em função da angústia de que se reveste, a fantasia de castração tende, contudo, a ser projetada sobre o objeto, deslocando-se a perda ou a “realidade” ameaçadora para o exterior. É neste sentido que a “realidade” da castração é transportada para o corpo feminino. Trata-se de um movimento defensivo que visa preservar a integridade narcísica. Através deste movimento projetivo, os perigos internos transfiguram-se em perigos externos, contra os quais é possível defender-se, uma vez que podem ser identificados e localizados como exteriores ao próprio sujeito. Estas observações encaminham nosso estudo para a investigação sobre as formas como a mulher, tida como castrada, se configura na fantasia dos homens como a castradora. Essa questão nos levará a “O tabu da virgindade” (FREUD, 1918a [1917]/1970). Este texto, em nosso entender, sintetiza os argumentos freudianos sobre as raízes do medo que os homens têm das mulheres. Quando Freud, em 1918, situa a inveja do pênis como a origem do rancor e da hostilidade das mulheres frente aos homens, nestes sentimentos se encontram as “razões” para que os homens situem nas mulheres a ameaça de castração. Partindo-se do princípio de que elas desejam ter o pênis, temos como conseqüência que desejam tomá-lo, ou seja, castrar o cônjuge; sendo essa a articulação que promove sustentação para o medo que os homens têm das mulheres.
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III.1 – O medo dos homens frente às mulheres em “O tabu da virgindade” O texto freudiano de 1918 toma como objeto de análise referências colhidas em estudos etnográficos da época sobre a existência de tabus, entre povos “primitivos”, referentes ao desvirginamento da mulher (VALADE, apud KAUFMANN, 1996, p. 642647). O exame deste tabu, realizado por Freud, visa conferir-lhe uma nova compreensão uma vez que, do ponto de vista da psicanálise, as explicações da etnologia se mostram insuficientes. O texto “O tabu da virgindade” (FREUD, 1918a [1917]/1970, op. cit.) consiste em indagações sobre o valor da virgindade, e sobre as razões pelas quais o ato da defloração deverá ser cercado de medidas protetoras para o homem. Com o objetivo de investigar os medos que fundamentam os tabus, são examinadas as hipóteses sobre o horror ao sangue, e sobre a ativação da angústia diante de situações desconhecidas. A primeira hipótese, que associa a defloração a um ato sangrento, poderia levar a pensar que o tabu se justifica pelo enlace ao horror ao sangue. Mas essa hipótese é considerada insuficiente por Freud. A segunda hipótese relativamente aos medos que fundamentam o tabu, é a da ativação da angústia diante de situações desconhecidas. Esta explicação remete a considerações sobre a neurose de angústia que, como já vimos em nossa análise sobre a angústia, aponta para a possibilidade de fixação da angústia flutuante em elementos de novidade, em situações que possam conter algo de inesperado. Mas o fato de que a defloração da mulher seja uma situação que inclua elementos de novidade não parece suficiente para justificar que este acontecimento desperte medo nos homens. A terceira hipótese, esta sim seguida mais de perto por Freud, encaminha à compreensão de que o tabu da virgindade faz parte de um todo que abrange a totalidade da vida sexual. Neste sentido a própria sexualidade emerge como tabu, sendo que o momento de introdução da mulher na atividade sexual, neste território por si mesmo objeto de tabus, se reveste de perigos. Estes perigos, contudo, não se referem propriamente aos riscos ou às angústias das mulheres diante dessa introdução à vida sexual. Os perigos estudados são aqueles que ameaçam os homens, uma vez que a defloração nas mulheres despertaria tão somente inveja e hostilidade.
86 O raciocínio seguido em 1918 indica que, quando estabelece um tabu, o homem “primitivo” teme algum perigo e, em “O tabu da virgindade”, este perigo é apresentado como proveniente das mulheres. Cabe, contudo, indagar como e por quê, tarefa que Freud executa através de uma passagem da psicologia do homem para a psicologia da mulher; movimento incomum nesse autor. É para esta peculiaridade do texto de 1918 que Laplanche chama atenção, mostrando que é “para um caminho decididamente intersubjetivo que Freud nos orientará, uma vez que, para explicar o tabu da virgindade no homem, ele sente a necessidade de passar da psicologia do homem para a da mulher” (LAPLANCHE, 1988, op. cit., p. 86). No que diz respeito à mulher, é seguida a vertente associativa de que o momento das primeiras relações sexuais seria especialmente propício à reativação do complexo de castração feminino marcado pela inveja, pelo ódio e pelo ressentimento. No momento das primeiras relações sexuais, a mulher se veria invadida por sentimentos de hostilidade calcados na inveja do pênis, a qual estaria na base do desejo de apropriar-se do pênis castrando o cônjuge. A análise freudiana nos encaminha a considerar, então, que o tabu da virgindade, observado nos povos primitivos, teria por objetivo proteger o homem do conjunto dessas reações da mulher ao primeiro ato sexual. Ou seja, o tabu da virgindade entre os “primitivos”, confirmaria a hipótese freudiana do complexo de castração feminino. Pelo lado da “psicologia do homem”, o temor destes, na ocasião do defloramento, se apresenta como uma modalidade de reação à inveja e à hostilidade femininas. A partir dessa pressuposição, o texto freudiano indica que a mulher delineia-se na fantasia masculina como a figura da castradora, da devoradora, sendo amplo o espectro das ameaças próprias a seu sexo, relatadas em “O tabu da virgindade”. O temor do homem em relação à mulher é explicado pelos mistérios que envolvem o sexo feminino. “Talvez este receio se baseie no fato de que a mulher é diferente do homem, eternamente incompreensível e misteriosa, estranha, e, portanto, aparentemente hostil” (loc. cit.). A mulher como um ser “passivo”, “castrado”, “misterioso”, “estranho” e “aparentemente hostil”, revela-se, assim, a depositária do que é temido pelos homens em sua afirmação viril. Uma vez que o feminino consiste em passividade e castração, o contato com a mulher se reveste de perigos: “o homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado
87 por sua feminilidade e, então, mostrar-se ele próprio incapaz” (FREUD, 1918a [1917]/1970, op. cit., p. 184). Importa considerar, contudo, que a idéia de “contaminação” nos envia ao território das identificações, mais propriamente à idéia de “infecção mental”, que será desenvolvida relativamente à identificação histérica, no texto “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921). Na análise de 1918, vemos que Freud situa o complexo de castração e sua “influência sobre a opinião em que são tidas as mulheres” no cerne da “rejeição narcísica das mulheres pelos homens, a qual está tão entremeada com o desprezo por elas” (FREUD, 1918a [1917]/1970, op. cit., p. 184-185). Ou seja, neste texto é enfatizado o desprezo que os homens nutrem pelas mulheres sem que este sentimento seja objeto de maiores considerações. Os homens não são apresentados como perigosos neste desprezo e hostilidade que nutrem relativamente às mulheres. Pelo contrário, são as mulheres as que aparecem como perigosas, sendo que a inveja do pênis, para Freud, confere um fundamento “objetivo” para o medo dos homens, constituindo a base de um “perigo real” contra o qual o esposo se protegeria mediante os ritos da defloração. O tabu da virgindade revela-se assim como uma produção defensiva que fala da inveja do pênis como um suporte imaginário para a “demonização” das mulheres justificando, desta forma, o medo dos homens. Esta perspectiva que coloca em primeiro plano a “realidade” dos perigos que emanam da mulher se complementa, contudo, no texto de 1918, com observações sobre os mecanismos projetivos, fundados na ambivalência do próprio indivíduo, aspectos que já haviam sido enunciados por Freud em Totem e tabu (1912-13/1974). A análise da questão da projeção nos povos primitivos se encontra no inciso (c) de “O Tabu em relação aos mortos”, onde é avaliado o papel da ambivalência diante dos mortos, como é enunciado nesta passagem: Mas essa hostilidade, aflitivamente sentida no inconsciente como satisfação pela morte, é tratada de forma diferente pelos povos primitivos. A defesa contra ela assume a forma de deslocá-la para o objeto da hostilidade, ou seja, para os próprios mortos. Esse procedimento defensivo, comum tanto na vida mental normal quanto na patológica, é conhecido como “projeção” (FREUD, 1912-13/1974, op. cit., p. 82).
Vemos que em “O tabu da virgindade” (1918a [1917]/1970, op. cit.), Freud retoma as proposições de 1913 ao descrever, em 1918, o “primitivo” como alguém que está “acostumado a projetar seus próprios impulsos internos de hostilidade no mundo exterior,
88 isto é, a atribuí-los aos objetos que sente como desagradáveis, ou mesmo, meramente, estranhos” (Id., 1918a [1917], op. cit., p. 185-186). Apesar disso, em função do predomínio do referencial da inveja do pênis da mulher, a hipótese de impulsos internos de hostilidade nos homens não é objeto de maiores aprofundamentos. Vemos que tampouco a questão da “contaminação”, que nos encaminharia a considerações sobre os “perigos” de uma identificação com a mulher, é devidamente pesquisada. O que se observa é que o perigo interno da invasão pulsional é deslocado para uma suposta realidade de um perigo externo. A prerrogativa da inveja do pênis na mulher assume assim, para Freud, o poder de dotar de “realidade” essa entidade, a figura da mulher realmente perigosa e castradora, o que permite que as medidas protetoras dos homens se direcionem para um perigo “externo” identificável. Para Freud, o que a psicologia dos “primitivos” expressa através de seus tabus é exemplar da realidade psíquica infantil, ou seja, daquilo que se encontra em estado de recalcamento no homem adulto. Em “O tabu da virgindade”, o que transparece como recalcado no homem é a passividade, temível porque associada à castração e à impotência. No texto de 1918, os perigos aos quais os homens se vêem expostos não encontram explicações mais precisas pelo lado de uma análise voltada para o psiquismo masculino. Estando por princípio assentado que os homens, masculinos desde o início, são avessos à passividade, os riscos adviriam da virulência do perigo “externo”; ou seja: a origem do medo que os homens têm das mulheres se explica pela inveja do pênis nutrida por estas. Sob o viés do complexo de castração, o que permanece de “primitivo” nos homens “civilizados” teme e despreza as mulheres; mas isso se “justifica” no fato de que estas invejam e desejam “apropriar-se” do órgão masculino. Ou seja, os riscos aos quais os homens encontram-se expostos não advêm de sua própria passividade ou de suas fantasias de castração, mas sim da passividade das mulheres – que pode “contaminá-los” – e do desejo destas de castrar o cônjuge. Tais considerações nos levam, no entanto, a considerar a projeção que se mostra operante nas conclusões expostas sobre o medo que, em “O tabu da virgindade”, os homens nutrem em relação às mulheres.
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III.2 – Os aspectos projetivos do medo que os homens têm das mulheres Para Freud, é nos momentos marcados pelos complexos de Édipo e de castração que as angústias experimentadas anteriormente pela criança se organizam, a castração revelando seu papel estruturante à medida que aglutina, em torno da ameaça de castração, os perigos vivenciados pelo menino. Estas questões são expostas na Conferência XXV, das “Conferências introdutórias sobre psicanálise” (FREUD, 1916-1917 [1915-1917]/1976) e discutidas por Laplanche, em Problemáticas I e II, (1988, op. cit.; 1993, op. cit.). Ocorre que os medos provenientes da fase fálica não se limitam à infância. Na forma como é apresentado por Freud, o medo de castração, mesmo após a puberdade, seguiria apresentando seus efeitos na relação entre homens e mulheres. Como afirma Cournut, “este medo da perda em forma de castração” é de tal modo avalizado pelos homens que estes, “vendo que as fêmeas não têm o pênis, projetam sobre elas suas próprias teorias: elas não o têm, logo elas são castradas, logo evidentemente elas reivindicam aquilo que perderam” (COURNUT, 2002, op. cit., p. 22). Esta questão é objeto, ainda, de considerações de André Green, que mostra que a conformação do corpo e a forma dos órgãos sexuais induzem fantasias. Através dessa observação, o autor indica que podemos “prolongar estas reflexões com a referência aos fantasmas da mulher castradora ou da mulher fálica. As mulheres castradoras ou fálicas também nasceram da imaginação dos homens” (GREEN, 2004, op. cit., p. 139). Uma vez que a castração é localizada no corpo do outro, a mulher se torna depositária desta ameaça. Como assinalam M. Cournut-Janin e J. Cournut (1993): “...é sobre o corpo do outro que se colhe o saber...e que se ancora a angústia. O complexo de castração é inteiramente construído sobre este modelo. Para o menino, o sexo feminino é o representante visível da ameaça” (COURNUT-JANIN & COURNUT, 1993, p. 1483 – a tradução é nossa) . Como veremos mais adiante, a castração como referencial principal das angústias masculinas será posta em questão pelo próprio Freud. Neste momento, contudo, nos manteremos na linha de raciocínio que conduz o medo que os homens têm das mulheres ao complexo de castração.
90 Sobre a permanência deste medo na fase adulta, temos que Laplanche (1988, op. cit.), discute essa questão. Para este autor, o problema com o qual nos deparamos são os efeitos da persistência da lógica fálica no adulto, problema que, em seu entendimento, não foi devidamente explorado por Freud. Há nele [Freud], verdadeiramente, uma espécie de hiato entre a organização fálica e o que ressurgirá na puberdade e na organização adulta. Em outras palavras, o problema consiste em saber como essa lógica da contradição reaparecerá na organização do desejo e, em particular, como o par masculinofeminino substituirá o par fálico-castrado. O que subsiste, no par masculino-feminino, da antiga lógica? O que restará dessa lógica fálica na lógica humana em geral, ou seja, em nosso modo de pensar? (LAPLANCHE, 1988, op. cit., p. 66).
Na análise do texto freudiano sobre o tabu da virgindade vimos como do complexo de castração derivam características de periculosidade atribuídas à mulher, uma vez que a inveja do pênis provê suporte fantasístico para a imagem da castradora potencial. Na discussão deste texto, Monique Cournut-Janin e Jean Cournut, ressaltam o papel das concepções expostas em “O Tabu da virgindade” para a compreensão do medo que os homens têm das mulheres. De fato, o homem moderno, nos diz Freud, reage como o primitivo em função de que a mulher é, como um todo, um tabu; ele considera a mulher como perigosa e a atitude de rejeição narcisista, misturada com muito desprezo, do homem em relação à mulher, deve ser atribuída ao complexo de castração e à influência deste complexo no julgamento sobre a mulher (COURNUT-JANIN & COURNUT, 1993, op. cit., p. 1427 – a tradução é nossa) .
Ao colocar em consideração a questão da diferença entre os sexos como uma das origens dos sentimentos hostis que os homens manifestam diante das mulheres, os autores pontuam que não existe somente desprezo, mas também temor. Em coerência aos enunciados de 1918, é seguida a vertente teórica do “narcisismo das pequenas diferenças”, à qual é atribuída a origem dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre os indivíduos, como se verifica nesta passagem de “O tabu da virgindade”: ...cada indivíduo é separado dos demais por um “tabu de isolamento pessoal” e que constitui precisamente as pequenas diferenças em pessoas que, quanto ao resto, são semelhantes, que formam a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria tentador desenvolver essa idéia e derivar desse “narcisismo das pequenas diferenças” a hostilidade que em cada relação humana observamos lutar vitoriosamente contra os sentimentos de companheirismo e sobrepujar o mandamento de que todos os homens devem amar ao seu próximo. A psicanálise acredita que descobriu grande parte do que fundamenta a rejeição narcisista das mulheres pelos homens, a qual está tão entremeada com o desprezo, ao chamar atenção para o complexo de castração e sua influência sobre a opinião em que são tidas as mulheres (FREUD, 1918a [1917]/1970, op. cit., p. 184-185).
91 Para Cournut-Janin e Cournut (1993, op. cit.), o que se verifica no texto de 1918 é a diferença anatômica entre os sexos como base de hostilidade especialmente quando se acredita que um dos dois sexos é castrado. Como depositárias do temor dos homens à castração, as mulheres tornam-se alvo de medidas defensivas que se exteriorizam na desqualificação do sexo feminino e na exaltação do sexo masculino. Atrelado ao temor que os homens sentem das mulheres, emerge um movimento defensivo de valorização das qualidades masculinas, ou seja, “essencialmente ativos, eventualmente sádicos, e eminentemente fálicos: qualidades glorificadas, mas sempre sob ameaça” (COURNUT, 2002, op. cit., p. 211). A “inferioridade” feminina provê imaginariamente suporte para o narcisismo fálico, para a superioridade masculina e, conseqüentemente, para a dominação das mulheres. Neste mesmo sentido se encaminham observações de Jacques André (2002, op. cit.), para quem a dominação masculina é um modo de relação entre os sexos que percorre a história da humanidade. Para ilustrar essa observação, o autor recorre a exemplos bíblicos reveladores do destino traçado para a mulher: “Multiplicarei seus sofrimentos e tuas gravidezes: engendrarás teus filhos com dor. Teu fervor será para teu marido, e ele te dominará” (Gênesis III, 16, apud André, 2002, op. cit., p.133). Segundo André, “o destino de sofrimento é o caminho daquela através de quem se abrem os olhos, revelando o corpo sexual desnudado. A submissão da mulher ao homem é o preço da queda” (loc. cit.). Esta observação remete à inferioridade atribuída à mulher que, pela forma de seu corpo, “revela” ao homem a “realidade” da castração, “justificando-se”, desta forma, o desprezo dos homens. Ao encarnar a castração e a passividade e, ao mesmo tempo, ao encarnar as ameaças de castração e de passivização dos homens, a mulher emerge como um perigo que precisa ser controlado, dominado. Neste sentido, André pontua o papel desta crença da qual derivam formas de organização social que aprisionam as mulheres em situações passivas. Referindo-se à Conferência XXXIII (FREUD, 1933a [1932]/1976) onde é assinalada “a influência dos costumes sociais” que “forçam as mulheres a situações passivas”, conclui que a passividade “forçada” das mulheres é somente um resultado, uma forma de “solução” para a angústia masculina. Em seu princípio se encontra a primazia do falo e, detrás dela, o que ela dissimula ou nega: o ataque da angústia de castração sobre o psiquismo masculino. (...) Sofrimento feminino e dominação viril constituem um antigo par, onde um dos sexos aponta o outro como “o defeituoso”, sendo este representado pela ferida (ANDRÉ, 2002, op. cit., p. 133).
92 A angústia e a hostilidade que a “realidade” da castração feminina evoca nos homens não se encontra ausente, tampouco, da relação do filho com a mãe, como mostram M. Cournut-Janin e J. Cournut (1993, op. cit.). Considerando que a angústia narcisista das pequenas diferenças libera uma agressividade que é dirigida ao objeto, os autores a evocam para mostrar seus efeitos também sobre a figura materna. Focalizando a relação de mãe e filho, Cournut-Janin e Cournut pontuam que a agressividade contra a mãe “é, talvez, o aspecto mais negado desta relação; pois a mãe é, sempre segundo Freud, precisamente para o menino, o ser mais próximo, o mais amado e o mais diferente” (Id., ibid., p. 1431 – a tradução é nossa – grifo nosso). Na obra freudiana, a figura materna tende a ser focalizada prioritariamente como objeto dos impulsos eróticos do filho. Dentro da repartição afetiva encontrada no Édipo positivo, à mãe caberia a parcela amorosa, enquanto os sentimentos hostis seriam reservados ao pai. No que diz respeito aos processos identificatórios, a identificação primária ao pai, enunciada em 1921, se mostra também impeditiva de maiores considerações a respeito de uma identificação da criança com a mãe. Mas voltaremos a este tema posteriormente. No momento nos manteremos seguindo a vertente dos perigos emanados das mulheres. Relativamente a essa questão, vemos apresentar-se em “O estranho” (FREUD, 1919h/1976) uma perspectiva que não se mantém aprisionada aos enquadramentos teóricos da castração. Neste texto, escrito no ano seguinte a “O Tabu da virgindade”, vemos que, além do estranhamento diante da diferença sexual, Freud indica que a atração exercida pelo corpo materno pode revelar-se uma fonte de angústia.
III.3 – Os perigos emanados da atração materna em “O estranho” O eixo em torno do qual se articula o texto “Das Unheimliche” consiste numa demonstração de que o sentimento de estranheza fala daquilo que é íntimo e familiar: “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (Id., 1919h/1976, p. 277). Para Freud “heimlich” é uma palavra “cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com seu oposto ‘unheimlich’” (Id., ibid., p. 283).
93 No decorrer deste artigo são investigadas as impressões sensoriais capazes de provocar o sentimento de estranheza. Tomando o grupo de sensações que correspondem aos complexos infantis recalcados, Freud observa o sentimento de inquietude apresentado por alguns homens frente aos genitais femininos. Em suas palavras: “Acontece com freqüência que os neuróticos do sexo masculino declaram que sentem haver algo estranho no órgão genital feminino” (Id., ibid., p. 305). Neste momento da obra freudiana, a explicação fornecida para a sensação de estranho não se encaminha diretamente para os efeitos da percepção visual da diferença anatômica entre os sexos. Para além dessa diferença, o “estranhamento” decorre do fato de que este lugar é o que existe de mais familiar para todo ser humano: trata-se do “antigo lar” de todos nós, sendo acentuados os efeitos da “antiga familiaridade” e da atração exercida pelo corpo materno. Há um gracejo que diz “O amor é a saudade de casa”; e sempre que um homem sonha com um lugar ou um país e diz para si mesmo, enquanto ainda está sonhando: “este lugar é-me familiar, estive aqui antes”, podemos interpretar o lugar como sendo os genitais da sua mãe ou o seu corpo. Neste caso, também, o unheimlich é o que uma vez foi heimish, familiar; o prefixo “un” é o sinal do recalcamento (Id., ibid., p. 305).
Essa passagem indica vias de compreensão para os perigos emanados da mulher que não se prendem aos riscos da castração, levando mais propriamente aos momentos que antecedem o Édipo. É verificada a atração exercida pelo corpo materno, mas as ameaças não se situam na relação triangular, ou seja, não falam diretamente de um terceiro interditor. Elas aparecem como provenientes de uma “antiga intimidade” com a mãe, do prazer experimentado neste “antigo lar”, de um anseio por um estado fusional. Tais afirmações remetem à atração e à luta contra o anseio de retorno ao ventre materno. A fantasia de retorno ao seio materno é uma contribuição de Jean Laplanche às fantasias originárias enunciadas por Freud. Como mostra Claude Balier , “enquanto Freud propôs três fantasias originárias: cena primária – sedução – castração, certos autores estabelecem quatro” (BALIER, 2000, p. 154 – A tradução é nossa). Entre os autores que estabelecem quatro fantasias originárias, Balier inclui Laplanche. Seguindo a via da fantasia do retorno ao seio materno, Jean Laplanche pontua que todas as fantasias originárias propostas por Freud têm “um duplo aspecto, positivo e negativo, um aspecto de desejo e um aspecto de contradesejo (de defesa ou de interdição)”
94 (Laplanche, 1988, op. cit., p. 167) Quanto à fantasia de retorno ao seio materno, nas palavras do autor: Se ela existe, trata-se realmente de uma fantasia de desejo, uma fantasia de fusão e de beatitude, a ponto de podermos assimilá-la a uma fantasia de Nirvana, uma realização da tendência para a abolição de todos os desejos por sua satisfação definitiva (Id., ibid., p. 167).
Mas o autor adverte que “seria um erro não desvendar igualmente nessa fantasia de retorno ao seio materno um aspecto negativo” (loc. cit.). O “retorno ao seio materno”, o retorno ao “arcaico”, ao mesmo tempo desejado e angustiante, remete aos movimentos regressivos do psiquismo humano que dão testemunho do trabalho do pulsional mortífero. Esta fantasia fala de uma dissolução do eu, de um retorno a um estado de indiferenciação entre mãe e filho, sendo seu poder de repulsão tão intenso quanto seu poder de atração. Seguindo o fio condutor desta tese – que segue a indagação sobre os perigos derivados do feminino – temos que, em O estranho, esses perigos envolvem a figura materna, apontando para os riscos da regressão temporal, ou seja, para os “momentos” de passividade da criança invadida pela sexualidade do adulto. Mas o texto sinaliza, ainda, os riscos da regressão tópica, da invasão das “fronteiras” do ego. As ameaças que emanam da mulher/mãe como primeiro objeto libidinal são também objeto de consideração de André Green (2005). Na passagem que se segue, este autor estabelece uma relação entre a dominação masculina e a atração exercida pelo objeto materno. Por trás dessa guerra de sexos se adivinha a dependência dos homens à mãe, o luto interminável que devem fazer de sua separação desta e a queixa que clama pelo retorno ao paraíso fusional perdido, oculto detrás de condutas de dominação masculina muitas vezes cruéis (GREEN, 2005, p. 163 – a tradução e o grifo são nossos).
Como vimos nos textos acima, em “O tabu da virgindade” as cadeias associativas que sustentam a inteligibilidade do medo e da hostilidade masculinas diante da mulher se encontram fortemente apoiadas no complexo de castração e no narcisismo das pequenas diferenças. Em 1918, predomina a idéia do perigo “externo”, ou seja, a mulher é efetivamente perigosa posto que potencialmente castradora. Em “O estranho”, a idéia de perigo não se encontra diretamente associada à castração, assumindo prioridade a atração regressiva de um “conhecimento antigo” (do paraíso fusional perdido) submetido ao recalcamento. O perigo que assume destaque, em
95 1919, é o da invasão pulsional diante da visão dos órgãos femininos, que fala dos anseios de retorno ao “antigo lar”, sendo as fantasias de recuperação do paraíso fusional perdido as que dão sentido à perturbação manifesta sob as formas do estranhamento. Em 1919, o feminino não é perigoso porque é castrado, mas é perigoso porque evoca a “completude” da criança fusionada à mãe. Ou seja, em 1919, a mulher não aparece como perigosa em função de sua inveja, sendo que os perigos se localizam, mais precisamente, na atração regressiva do “feminino”. Mantendo o foco na análise da temática dos perigos emanados do feminino dentro da obra freudiana, seguimos um percurso que nos leva, neste momento, ao texto “Análise terminável e interminável” (1937c/1975), onde Freud enuncia a recusa do feminino como a “rocha” onde naufragam os esforços de análise. Apesar da insistência freudiana na questão da castração, ”Análise terminável e interminável” se abre a diversas leituras, nas quais podemos entrever uma desvinculação entre passividade e castração e onde a passividade passa para primeiro plano. Como veremos a seguir, o texto de 1937 evoca, de maneira mais nítida, os perigos da passividade no homem, ampliando o campo das considerações sobre as ameaças que afetam o masculino.
III.4 – As angústias masculinas e a recusa do feminino no homem “Análise terminável e interminável” (FREUD, 1937c/1975, op. cit.) compõe, juntamente com “Construções em análise” (1937d/1975), o último legado freudiano sobre a clínica psicanalítica. Concebido posteriormente à introdução do segundo dualismo pulsional – que leva a modificações na tópica, na teoria da angústia, e na concepção do sadismo e do masoquismo – este texto trata dos limites da análise frente às intensidades pulsionais e à luta entre instâncias. A irredutibilidade dos sintomas fica situada, desde o ponto de vista econômico, no combate entre a potência excessiva do fator quantitativo da pulsão em relação à força ou debilidade do ego. É na seção VIII deste artigo que Freud, através de casos explicativos que situam o masculino e o feminino na origem das produções sintomáticas, formula a recusa do feminino como a “rocha” última onde naufragam os esforços de análise. Dentro do
96 referencial teórico do complexo de castração, na mulher a inveja do pênis aparece como o obstáculo mais difícil de ser transposto numa análise. No homem, o “protesto masculino” (expressão tomada de empréstimo a Alfred Adler) condensa as manifestações defensivas dos homens à castração e à passividade, termos que, conforme já vimos, sustentam as formulações do feminino em psicanálise. Analisando a resistência sob este viés, Freud declara que “freqüentemente temos a impressão de que o desejo de um pênis e o protesto masculino penetraram através de todos os estratos psicológicos e alcançaram o fundo e que, assim, nossas atividades encontraram um fim” (FREUD, 1937c/1975, op. cit., p. 287). Dentro do referencial do complexo de castração, no caso das mulheres, a inveja do pênis, como obstáculo intransponível numa análise, não aponta para o desejo pelo órgão masculino como objeto de prazer sexual na relação com o outro: fala do anseio de apropriar-se do pênis, do anseio por ser como o outro. No caso dos homens, o “protesto masculino” se alicerça na associação entre passividade e castração. No texto de 1937, é possível perceber dois encaminhamentos teóricos distintos relativamente à associação entre passividade e castração. O primeiro se direciona para a manutenção desta articulação e sustenta as angústias masculinas relativas à posição passiva diante de outro homem. Freud mostra que esta posição tem como efeito a reativação de angústias infantis fundadas na fantasia de ser privado deste órgão concentrador das sensações eróticas e investido narcisicamente. Mantendo o enlace entre passividade e castração, o problema exposto pela recusa do feminino encontra coerência, visto que passividade e castração remetem ao feminino. Em uma nota de pé da página, Freud esclarece que aquilo que o homem repudia não é a passividade “social” diante da mulher: “O que eles rejeitam não é a passividade em geral, mas a passividade para com um homem. Em outras palavras, o ‘protesto masculino’, de fato, nada mais é do que ansiedade de castração” (Id., ibid., p. 287). Ou seja, a situação de passividade diante de um mestre revela-se um obstáculo intransponível, posto que tal posição remete a fantasias de castração. No que diz respeito ao homem, em coerência à proposição da masculinidade primária da criança, Freud declara que:
97 Nos homens, o esforço por ser masculino é completamente ego-sintônico desde o início; a atitude passiva, de uma vez que pressupõe uma aceitação da castração, é energicamente reprimida, e amiúde sua presença só é indicada por supercompensações excessivas (Id., ibid., p. 285).
As questões vinculadas a essa passagem se fazem mais nítidas ao retornarmos a momentos anteriores do texto. Na parte VI de “Análise terminável e interminável”, vemos que Freud seguia a linha dos problemas apresentados pela bissexualidade constitutiva do humano. Neste contexto é enunciado que “a heterossexualidade de um homem não se conformará com nenhuma homossexualidade e vice-versa”. Essa observação é complementada, ainda, pela afirmativa de que “não existe maior perigo para a função heterossexual de um homem do que o de ser perturbada por sua homossexualidade latente” (Id., ibid., p. 277). Essas passagens falam da permanência, em estado de recalcamento, de moções homossexuais no homem adulto e heterossexual. Falam, ainda, de que essa “homossexualidade latente” se revela um “perigo maior” para a heterossexualidade de um homem. Considerando-se as citações acima, a “homossexualidade latente” se inscreve na linha dos obstáculos intransponíveis à análise. Mas temos que, para Freud, o intransponível do obstáculo se fundamenta na associação entre posição passiva e castração. Vemos, no entanto, que o próprio texto freudiano leva a colocar em questão essa associação. Seguindo essa vertente, vemos que pode ser justamente a associação entre passividade e castração a origem do obstáculo, como sugere outra passagem: “Estivemos ‘pregando ao vento’ quando procuramos convencer um homem que uma atitude passiva para com outros homens nem sempre significa castração e que ela é indispensável em muitos relacionamentos na vida” (Id., ibid., p. 286 – grifo nosso). Ou seja, é possível desvincular passividade de castração; sendo a aceitação da passividade um movimento necessário aos “relacionamentos na vida”. É para esta “admirável mudança de perspectiva” que M. Cournut-Janin e J. Cournut (1993, op. cit.) chamam atenção. Segundo sua leitura do texto de 1937, podemos entender que não é da passividade que advêm os problemas, mas sim de sua recusa; e esta se pauta na associação entre passividade e fantasias de castração Em 1937, para Freud, a rocha na qual se choca a psicanálise, é a recusa do feminino. Ou melhor, as recusas. As mulheres recusam a realidade, elas não têm o pênis, enquanto a recusa dos homens se situa em referência à fantasia: os homens se obstinam fortemente a recusar aquilo que de fato nada mais é que um mal-entendido. Em efeito, se uma posição deferente, submissa, passiva, e para dizer
98 tudo, feminina, frente a um mestre induz fantasias de castração, isso não passa de fantasias e nunca uma realidade (Id., ibid., p. 1343).
O termo fantasia, como apontam Laplanche e Pontalis “não pode deixar de evocar a oposição entre imaginação e realidade (percepção)” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967/1983, op. cit., p. 228). Em psicanálise, no entanto, o termo fantasia assume um sentido que evoca sua estreita relação com o desejo. Esta articulação se mostra necessariamente complexa, posto que fala igualmente de moções de desejo e de defesas contra o desejo. Em função disso, o tratamento psicanalítico se volta à tarefa de investigar as fantasias subjacentes aos sintomas ou a produções inconscientes como o sonho, as atuações ou os comportamentos repetitivos, etc. No âmbito das produções psíquicas individuais, temos que a fantasia não remete a cadeias associativas universalmente préformadas no que diz respeito a seus conteúdos, o que levanta questões sobre o inevitável de uma associação entre uma situação de passividade e fantasias de castração. Esta questão é nitidamente assinalada por Freud ao proclamar que uma atitude passiva nem sempre significa castração. Tal questão evoca necessariamente a investigação das origens dessa associação na vida de fantasia do indivíduo. Mesmo quando Freud haja colocado a castração no rol das fantasias originárias, outorgando a ela um caráter de universalidade, é difícil desconhecer que entre essa fantasia universal e sua ligação com a situação de posição passiva diante de um homem, existem cadeias associativas pertinentes ao psiquismo individual – ainda que tal “submissão” fale de vínculos afetivos e moções eróticas direcionadas a substitutos do pai. Mas temos que, ao mesmo tempo em que insiste na relação entre passividade e fantasias de castração, o próprio Freud declara que isso não passa de um equívoco, um obstáculo a ser enfrentado. Como apontam Laplanche e Pontalis a proposta do repúdio à feminilidade acontece “num texto que insiste na importância do complexo de castração” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967/1983, op. cit., p. 89). Em “Análise terminável e interminável” se verifica que, mesmo quando a inteligibilidade das angústias masculinas seja conduzida à castração, o foco principal aponta, antes, para os “perigos” da posição passiva, o que nos permite situar a passividade no cerne das angústias masculinas. Uma vez que, para Freud, a passividade e a castração compõem o feminino, estamos autorizados, ainda, a pensar que a “homossexualidade latente” seria um dos enlaces imaginários onde poderia situar-se o “protesto masculino” ou
99 a “recusa do feminino” no homem, sendo este, no entanto, apenas um dos caminhos possíveis para a compreensão da recusa do feminino. Seguindo esta vertente de pensamento, vemos que esta proposição vem sendo objeto de questionamentos por parte de autores como Silvia Bleichmar (2006), que considera que a psicanálise “mantém uma dívida com os homens que se aventuraram ao divã”. Esta dívida se desdobra em dívidas clínicas, mas também éticas. No que diz respeito à clínica, esta dívida reside, para a autora, no fato de que as fantasias de masculinização dos homens – “que em muitos casos se expressam direcionadas à busca de incorporação da virilidade a partir da relação com outro homem” – tenham sido interpretadas como “fantasias homossexuais” (BLEICHMAR, 2006, p. 13). Neste sentido, a autora relembra que qualificar uma moção de afeto como homossexual ou heterossexual diz respeito ao processo secundário, posto que o inconsciente é fechado a toda referência opositiva. O que quer dizer que qualquer concepção sobre uma “intencionalidade” inconsciente vai contra a descoberta original de Freud. Desta maneira, “não se é ‘homossexual no inconsciente’, já que o inconsciente desconhece a disjunção que levaria à diferença homossexualidade/heterossexualidade”. (Id., ibid., p. 14). O que é enunciado pela autora, em coerência à teoria freudiana, é que qualquer referência à identidade sexual nos leva à tópica; ou seja, toda identidade se posiciona do lado do eu. Em suas palavras: “Se o que caracteriza o inconsciente é a ausência de sujeito (se não há nele um verdadeiro eu oposto ao eu falso que acreditaríamos ser), a afirmação de Freud quanto a que, no fundo, somos todos homossexuais, deve ser tomada em seus justos termos” (Id., ibid., p. 98. Tradução nossa). Partindo da descoberta de que no inconsciente de todos os seres humanos existem forças, impulsos de desejo, direcionados a ambos os progenitores, não podemos deixar de levar em conta que estas moções desejantes desconsideram o caráter masculino ou feminino do objeto. A universalidade desses desejos é inquestionável. No entanto, uma vez que “as relações libidinais que marcam a sexualidade infantil são o efeito de ações realizadas por seres humanos que somente a posteriori serão reconhecidos como portadores de diferenças sexuais”, a qualificação desses desejos como homossexuais ou heterossexuais deriva da posição teórica do “observador” (Id., ibid., p. 99). Em se tratando da criança, esta oposição não encontra lugar se nos situamos em momentos anteriores ao reconhecimento das
100 diferenças entre os sexos. Em se tratando de material recalcado, temos que no inconsciente essa oposição não encontra lugar. No entanto, no momento em que emergem e se direcionam a pessoas do mesmo sexo, estes desejos são qualificados como homossexuais pelo eu. O que quer dizer que os perigos da “homossexualidade latente” se revelam como tais à medida que entram em conflito com os referenciais identificatórios do indivíduo. No caso dos homens admitidamente heterossexuais, as moções eróticas passivas ensejam conflitos uma vez que evoquem uma “homossexualidade latente” que, pela teoria freudiana da bissexualidade, se revelaria uma condição universal. Relembremos que Freud observa que nas pessoas ditas bissexuais, “a libido se distribui, quer de maneira manifesta, quer de maneira latente, por objetos de ambos os sexos” (FREUD, 1937c/1975, op. cit., p. 277). A leitura do texto leva a pensar que essa distribuição libidinal não seria geradora de conflito nos ditos “bissexuais”. O conflito é incisivamente localizado do lado dos heterossexuais, para quem a emergência da “homossexualidade latente” representa um “perigo maior”. Considerando-se porém que, se seguimos as proposições freudianas de que “no fundo” somos todos “homossexuais”, ou “bissexuais”, os caminhos que levam ao “malentendido” dos homens que se recusam a dissociar passividade de castração, nos defrontam com inúmeras outras questões referentes à teoria subjacente à clínica. Ou seja, neste sentido, o “obstáculo” que se apresenta à escuta de pacientes homens remete implicitamente aos impasses ou às obscuridades que permeiam a herança psicanalítica sobre o feminino e o masculino. Se passividade nem sempre significa castração, como fundamentar metapsicologicamente sua recusa? Ou seja, o que existe de perigoso na passividade que leva à sua recusa, por parte tanto dos homens como das mulheres? A resposta para essa pergunta, considerando-se que exista, nos leva a percorrer caminhos teóricos diversos, sendo que, neste momento, optamos por levantar algumas questões a respeito dos aspectos negativos da passividade e sua relação com o masculino e o feminino.
III.5 – Os riscos da passividade Como já vimos no segundo capítulo desta tese, a passividade em psicanálise fala de uma finalidade da pulsão expressa em condutas que são percebidas como passivas. As vias de acesso ao tema da atividade e da passividade passam, assim, por uma análise dos
101 investimentos pulsionais traduzidos em comportamentos observáveis, e das fantasias que lhes são subjacentes. A oposição atividade-passividade é, como sabemos, um dos pares de opostos onde se sustenta a oposição masculino-feminino. Quando Freud afirma, em 1920, que reduzir o feminino à passividade e o masculino à atividade é demasiado pouco, como vimos acima, somos forçados a concordar. Mas, ao mesmo tempo, sendo este o material com o qual contamos, permitimo-nos colocar em questão esta associação ou, mais propriamente, perguntar-nos sobre as origens da associação feminino-passividade e masculino-atividade. E um dos pontos a ser levantado, é que esta associação não consiste numa “descoberta” freudiana. Ela remonta a uma linha de pensamento que se vincula à medicina e à filosofia gregas antigas. O estudo de Michelle Perrot intitulado L’indifférence des sexes dans l’Histoire (2005) aponta para a influência do pensamento grego e sua permanência nas concepções que associam o feminino à passividade e o masculino à atividade. Referindo-se mais diretamente a Aristóteles, “o pensador da diferença radical”, a autora mostra como, no pensamento deste filósofo, o feminino adjudicado à mulher, e o masculino atribuído ao homem, se enunciam como duas espécies fundamentalmente diferentes e inclusive opostas: “Ao homem, ativo, seco, diurno, criador da vida e do pensamento, se opõe a fêmea, noturna, úmida, fria, passiva: o sol e a lua” (PERROT, 2005, p. 25 – tradução nossa). Neste mesmo sentido, encontramos em Thomas Laqueur (2001), um minucioso estudo sobre as concepções de masculino e feminino através da história da humanidade. Ao tratar do tema do masculino e do feminino, Jean Cournut (2002, op. cit.) pontua que, na lógica fálica freudiana, o feminino se encontra rebatido sobre a passividade que o caracteriza, sendo um conceito extensivo à mulher. Em coerência a essas concepções, no caso do homem, como já vimos através do texto de 1937, o feminino aponta para momentos em que este é invadido por uma “homossexualidade latente“. Dentro da definição freudiana do feminino e do masculino, contudo, é a gênese das características destas duas categorias que ilumina seu sentido, evitando a “armadilha” de uma oposição radical entre homens e mulheres – aspecto salientado pela afirmativa freudiana de que não encontramos em nenhum ser humano o feminino ou o masculino “puro”. O masculino, para Freud, é o último termo de uma série que compreende o ativo, o sádico e o fálico, “cada termo estando capturado, por sua vez, em uma evolução e em uma
102 estrutura” (COURNUT, 2002, op. cit., p. 65). O mesmo ocorre com o feminino que se revela, na evolução do jogo pulsional, o termo último de uma série que compreende o passivo, o masoquista e o castrado. ”Estamos, pois, em presença conceitual de duas séries de oposições, ditos pares de opostos, que são: ativo-passivo, sádico-masoquista, fálico-castrado e masculino-feminino”, onde cada elemento dos pares se define por oposição ao outro elemento. Lembremos que Freud acrescentou, ainda em 1923, outro elemento a esta série de opostos: a oposição sujeito-objeto. Somente após o desenvolvimento haver atingido seu complemento, na puberdade, que a polaridade sexual coincide com masculino e feminino. A masculinidade combina [os fatores de] sujeito, atividade e posse do pênis; a feminilidade encampa [os de] objeto e passividade (FREUD, 1923e/1976, op. cit., p. 184 – grifo nosso).
Seguindo esta série de opostos, Cournut pontua que a recusa do feminino se torna mais compreensível se pensamos que “os homens recusam o feminino, nas mulheres e neles mesmos, porque ele é o passivo, o masoquista e o castrado” (COURNUT, 2002, op. cit., p. 65) tendo em vista, contudo, que esta compreensão passa pela via da positividade ou negatividade atribuíveis a cada um dos elementos da série. É neste sentido que o autor se reporta às contribuições da observação antropológica relativamente à questão da valorização da diferença: Quando F. Heritier enumera os pares de opostos que encontra em todas as culturas, ela assinala que sistematicamente um dos dois elementos do par é valorizado em detrimento do outro. A atribuição deste valor, ou se queremos, deste valor a mais, é eminentemente variável através do tempo e do espaço mas, onde quer que seja, há sempre valorização e, conseqüentemente, desigualdade. O que quer dizer que toda oposição induz e se inscreve num sistema de valor, e que todo sistema de valor cria as oposições e as desigualdades de consideração e de tratamento (...) Da valorização à dominação não há uma distância muito grande, e podemos dizer que o medo é um bom indutor de valorização e de rejeição (Id., ibid., p. 44).
Cournut entende que o masculino “e seus antecedentes de atividade sádica e fálica” não parece colocar problemas aos homens quando eles estão convencidos de possuí-los: o masculino torna-se parte constituinte da virilidade dos homens. Quanto ao feminino, seguindo as formulações freudianas de 1937, este é, por parte dos homens, objeto de uma recusa neles mesmos, e objeto de temor e desprezo quando atribuído às mulheres. Relativamente a esta oposição, vimos que em Freud a atribuição da passividade às mulheres originou-se de dados de observação: “elas preferem a forma passiva” (FREUD, 1905c/1989, op. cit., p. 206). Esta afirmativa nos coloca frente a um dos aspectos pelos
103 quais temos acesso à passividade, ou seja, a forma como esta é perceptível nos comportamentos manifestos. Sob a ótica de uma observação dos comportamentos, Cournut chama atenção para o fato de que a passividade é socialmente mal vista. “Do ponto de vista social, ela tem uma má reputação; ela indica a ociosidade, a preguiça e a irresponsabilidade” (COURNUT, 2002, op. cit., p. 274). A passividade, percebida num indivíduo, levanta suspeitas sobre uma “incapacidade voluntária e teimosa”, sobre uma tendência a eximir-se de decisões. “A passividade é a mãe de todos os vícios, e o que é mais grave, ela é improdutiva” (Id., ibid., p. 274). “Um indivíduo passivo não contribui em nada para a sociedade”, aspecto considerado imperdoável. E o sentido desta má posição social ocupada pela passividade pode ser entendido em referência a uma definição simples: a passividade é o contrário da atividade. E a atividade está do lado de tudo que representa força e energia, seja do lado da motricidade muscular ou do trabalho intelectual, a atividade é o que produz a força do trabalho, da riqueza, da arte, da vida, enfim. Cournut mostra, porém, que as definições de dicionário cercam a passividade de uma “ambigüidade notável que estimula a ultrapassar as definições simplistas” (Id., ibid., p. 275).
Para abrir caminhos que indiquem distintas formas de compreensão para o problema das resistências masculinas à passividade, recorreremos às observações de André Green sobre “Análise terminável e Interminável”. Avaliando o texto de 1937, Green pontua que “as formulações de Freud, lidas hoje, parecem muito imprecisas e sobretudo muito fragmentárias” (GREEN, 2001, p. 52). O autor assinala, porém, que não se trata de que as formulações de Freud sejam equivocadas, mas que são “globais e vagas”, relembrando que, na época da escrita de “Análise Terminável e interminável”, Freud havia “perdido o gosto pela prática” e ainda, “que teve a coragem de confessar que lhe repugnava ocupar o lugar da mãe na transferência” (Id., ibid., p. 53). Vemos aqui que o autor se reporta a um enfoque que não é explicito em Freud em 1937. As observações de Green nos remetem às etapas que antecedem a problemática própria da castração e do Édipo. O autor chama atenção para o problema, que ele entrevê em Freud, de tentar teorizar o arcaico quando se parte de uma oposição à transferência materna e, ainda, sobre o peso que pode assumir esta confissão freudiana, quando se trata de avaliar a “rocha” da castração.
104 Em relação ao texto de 1937, o autor formula uma pergunta que se revela importante para os desenvolvimentos desta tese, qual seja: o texto de 1937 nos defronta com a “recusa da feminilidade ou recusa do maternal, como perigo de retorno ao arcaico?” Green indica que, para ele, ”a segunda resposta é a boa”, sem que, contudo, esta seja, por outra parte, “absolutamente contraditória com a primeira” (GREEN, 2001, op. cit., p. 53). Trata-se, assim, de distintos níveis de abordagem do problema. Remetidos ao Édipo e à castração, temos a “rocha” onde naufragam os esforços de análise. Se tomarmos em conta os períodos que antecedem estes “momentos” estruturantes do psiquismo, todo um outro universo de hipóteses se descortina. Neste sentido, a proposição freudiana da recusa do feminino se abre a um amplo espectro de considerações que nos levam ao “arcaico”, ao “irrepresentável” dos primeiros momentos da vida. É nesse sentido que localizam as observações de Jean Cournut (2002, op. cit.), direcionadas a estabelecer vinculações teóricas entre a recusa do feminino e o medo que os homens têm das mulheres. O movimento seguido pelo autor pode ser qualificado de regressivo no sentido de uma regressão temporal. Ou seja, o medo que os homens têm das mulheres pode ser compreendido pela via do que se supõe que se haja instalado antes e que se manifesta no a posteriori. Trata-se, como veremos, de articular o medo que os homens têm das mulheres ao medo de seu próprio “feminino”. Para responder ao “mais profundo” da questão de por que os homens têm medo das mulheres, o autor toma, como articulador teórico, a noção de irrepresentável. Este “irrepresentável” ao qual se refere não é um irrepresentável eventual, vinculado a momentos ou a intensidades que levem circunstancialmente a uma incapacidade de elaboração psíquica. É esclarecido que não se trata de avaliar o medo que tal ou qual homem possa ter, relativamente a uma mulher, diante de diferentes circunstâncias. Trata-se de avaliar o medo fundamental do qual se ressentem todos os homens relativamente às mulheres, ao feminino nas mulheres e ao feminino nos homens. Para Cournut, o medo que os homens têm das mulheres se enlaça à perda fundamental da qual se ressentem todos os homens em relação às mulheres, medo este que deriva do feminino definido “como conjunto erótico-maternal, que os homens não conseguem representar” (COURNUT, 2002, op. cit., p.196). Mas o medo que os homens têm das mulheres, que o autor reporta a uma dificuldade de representar o feminino das
105 mulheres, se associa, “mais secretamente”, à dificuldade de representar o feminino que eles trazem em si mesmos. Este feminino como esta “parte obscura do outro, esta questão da alteridade, esta diferença na qual se escandaliza o narcisismo uma vez que não a integra, este risco permanente de desligamento frente ao qual vacila o humano” (Id., ibid, p. 208). Ao buscar um “irrepresentável fundamental”, o autor remete a determinados conteúdos que teriam o poder de constituir-se como aqueles frente aos quais todos os seres humanos se encontram despreparados. Neste sentido, somos reportados às palavras freudianas sobre os grandes sofrimentos que se apresentam ao homem em “O mal-estar na civilização” (1929). Nas palavras de Cournut: “Irrepresentável da natureza, irrepresentável da origem e da caducidade do corpo: restando ainda, segundo Freud, as relações dos homens entre si, na família, no Estado e na sociedade” (COURNUT, 2002, op. cit., p. 207). O autor pontua que a expressão “as relações entre os homens” abrange também “as relações entre os homens e as mulheres”, tanto na família, como no Estado e na sociedade. Através destes enunciados, o autor levanta a hipótese principal que é desenvolvida em Pourquoi les hommes ont peur des femmes (2002, op. cit.). Esta hipótese consiste na consideração de que as relações de dominação masculina sobre as mulheres, que se verificam através da história, encontram como subjacentes o medo que os homens têm das mulheres e, especialmente, o medo que os homens têm de seu próprio feminino. Para circunscrever o fenômeno social da dominação masculina, Cournut parte de dados de observação provenientes de estudos históricos e antropológicos fazendo, ainda, uma extensa referência a lendas e mitos sobre a periculosidade das mulheres. Os antropólogos citados são Pierre Bourdieu (2003), autor de estudos sobre a dominação masculina, Françoise Heritier (2002), que critica a concepção de Lévi-Strauss sobre as mulheres como objeto de troca entre os homens, denunciando a violência contida nesta prática, e Maurice Godelier (1997), que sustenta a hipótese de que os homens dominam as mulheres através dos tempos porque temem e invejam o poder derivado de sua capacidade reprodutora. A partir da hipótese de que os homens dominam as mulheres porque as temem, Cournut se dedica a investigar por que eles as temem. O primeiro capítulo de Porquoi les hommes ont peur des femmes (2002, op. cit.) – que trata da questão da diferença e da dominação – é todo orientado na direção de uma análise das crenças masculinas sobre as
106 mulheres. Através da insistente formulação de que os homens têm medo porque pensam que as mulheres são perigosas, porque pensam que elas são castradas, porque pensam que elas invejam o seu pênis, etc., o autor percorre um amplo espectro do imaginário masculino sobre os perigos emanados das mulheres. Para tentar exorcizar este feminino que provoca medo neles mesmos e nas mulheres, e que os induz a dominá-las tanto vigorosamente como dissimuladamente, os homens de todos os tempos se contam histórias: histórias teóricas, científicas, morais, etc. (COURNUT, 2002, op. cit., p. 195 – tradução 7 nossa).
Neste contexto, as teorias psicanalíticas sobre o feminino e o masculino são tomadas como componentes de uma rede de crenças na qual o complexo de castração se mostra um elemento essencial. Para Cournut, um dos fundamentos do temor dos homens frente às mulheres é proveniente da crença masculina de que a forma do corpo feminino é resultado da castração. Mas, como já foi visto, a castração consiste numa via preferencial masculina possível de representar o irrepresentável.
A partir dessas considerações, acompanharemos a seqüência de pensamento que nos leva ao feminino no homem e a seus perigos. Para seguir esta linha de raciocínio retomaremos brevemente, contudo, alguns pontos do que já foi exposto neste capítulo. Até este momento, seguimos a vertente dos sentimentos hostis de que são objeto as mulheres através dos textos “O tabu da virgindade”, “O estranho” e “Análise terminável e interminável”. No primeiro texto, encontramos referências ao medo que os homens têm das mulheres, significativamente alicerçadas no complexo de castração e no narcisismo das pequenas diferenças. Dentro dessa vertente, a questão dos perigos que ameaçam os homens é trabalhada, por Freud, dentro de uma referência ao externo. Em função da inveja do pênis, as mulheres aparecem como efetivamente perigosas. No texto seguinte, a questão se desloca da problemática da castração para um “estranhamento” remetido aos anseios de retorno ao “paraíso” perdido. As angústias diante do corpo feminino enlaçam-se, desta forma, aos “perigos” regressivos que envolvem o
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Jaqueline Rousseau-Dujardin , no livro Orror di femmina – La peur qu’inspirent les femmes (2006) investiga esta questão através dos mitos gregos e romanos, de um romance de Balzac – Memoires de deux jeunes mariées, e de Carmen de Bizet.
107 anseio de retorno ao seio materno. O perigo, aqui, remete mais diretamente às fantasias e aos anseios do homem do que à “periculosidade das mulheres”. Ao chegarmos a “Análise terminável e interminável”, os perigos emanados da mulher não são objeto de maiores considerações. Em 1937, vemos que Freud situa o problema da geração de angústia na relação entre homens. Neste contexto, a castração volta a ser considerada, uma vez que promove suporte de compreensão para as dificuldades clínicas calcadas na associação entre uma situação passiva diante de um homem e a castração. O obstáculo revela-se, assim, em estreita relação com os perigos de feminilização – correlato da castração – do homem. No entanto, é mostrado que o obstáculo consiste justamente nessa associação: “Estivemos ‘pregando ao vento’ quando procuramos convencer um homem que uma atitude passiva para com outros homens nem sempre significa castração”. No mesmo texto vemos, ainda, que Freud – apesar de sua teorização referente à bissexualidade constitutiva do humano – não abdica da masculinidade primária da criança: “Nos homens, o esforço por ser masculino é completamente ego-sintônico desde o início”, o que nos leva a pensar, neste momento, que o teorizar freudiano sobre o masculino e o feminino se encontra diante de um impasse, para o qual é fornecida uma “solução” que não apresenta exatamente a marca da novidade. Os mistérios da recusa do feminino receberão seu esclarecimento, talvez, da biologia. “O repúdio da feminilidade pode ser nada mais do que um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo” (FREUD, 1937c/1975, op. cit., p. 287). Ainda assim, este texto freudiano tem o mérito indiscutível de trazer à tona o problema do feminino no homem à medida que são enfatizadas as dificuldades de integração da bissexualidade, ou seja, as resistências à elaboração psíquica das moções passivas, “homossexuais”. Buscando novos aportes para o problema da recusa do feminino no homem, nos direcionaremos à obra de outros autores cujas contribuições se mostram importantes para os objetivos desta tese. Assim sendo, dedicaremos a próxima parte deste capítulo a uma visão distinta das proposições freudianas sobre o feminino e o masculino, especialmente as que concernem ao complexo de castração. Para sedimentar esta linha de raciocínio, no entanto, somos levados a um antigo debate, datado dos anos 1920-1930, que ficou conhecido como o “debate Freud-Jones”.
108 O aspecto que centralizava a discussão entre Freud e os chamados integrantes da “escola inglesa” era o conhecimento (ou não) do órgão feminino pela criança. Apesar de que as discussões se dirigissem, mais diretamente, à questão do conhecimento da menina sobre seu próprio corpo, o conhecimento do menino sobre o corpo da mãe também era debatido. Este retorno às discussões dessa época assume a feição de uma introdução à questão do feminino no homem, objetivo principal desta última parte deste capítulo.
III. 6 – A não-consideração do corpo feminino e suas conseqüências na teorização sobre a psicossexualidade masculina . A retomada do histórico “debate Freud-Jones”, visa mostrar que outras formas de abordagem do feminino e do masculino já estavam presentes na obra de contemporâneos de Freud. O ponto central da discórdia calcava-se na teorização freudiana sobre o complexo de castração que se fundamenta, como já foi visto, na prerrogativa do desconhecimento da vagina. A partir dessa prerrogativa, no momento em que percebe a ausência do pênis na menina, o menino é levado a buscar uma explicação para essa ausência. Para Freud, esta explicação está dada pela “teoria” infantil da castração. Nossa menção a essa polêmica se deve ao interesse em situar, dentro da obra freudiana, um momento no qual o reconhecimento infantil do corpo feminino poderia ter sido admitido. Este não foi, contudo, o caso. Até o final de sua obra, Freud mantém sua posição sobre a masculinidade inicial da criança e persiste argumentando contra o conhecimento da vagina, como vemos nesta passagem da Conferência XXXIII, sobre a “Feminilidade”. É verdade que há também alguns relatos isolados de sensações vaginais precoces, mas não poderia ser fácil distingui-las de sensações no ânus ou no vestíbulo; de qualquer maneira, não podem ter muita importância. Estamos autorizados a manter nossa opinião segundo a qual, na fase fálica das meninas, o clitóris é a principal zona erógena (FREUD, 1933a [1932]/1976, op. cit., p. 146).
A questão levantada no debate dos anos 1920-1930, toma como ponto de partida uma premissa radicalmente distinta da freudiana, ou seja, a do conhecimento prévio da criança sobre o corpo feminino. Partindo daí, as teorias infantis sobre a castração assumem uma feição mais nitidamente defensiva, uma vez que apontam para uma produção imaginária que é secundária a um conhecimento anterior recalcado.
109 Como já foi visto nesta tese, a partir do estudo do caso do Pequeno Hans Freud enunciou a teoria do monismo fálico. Desde então, o desconhecimento da vagina foi defendido de forma irredutível – tanto no que diz respeito aos meninos como às meninas. Em relação ao menino é interessante observar, contudo, que Freud confere justamente à teoria infantil do monismo fálico o poder de atrapalhar o acesso do menino a esse saber, como se verifica nesta passagem: Se as crianças seguissem as pistas fornecidas pela excitação do pênis, chegariam bem mais perto da solução do seu problema. Que o bebê se forma dentro do corpo da mãe não é obviamente uma explicação suficiente. Como ele chega lá dentro? O que provoca seu desenvolvimento? Parece lógico que o pai tenha alguma coisa a ver com isso, pois diz que o bebê também é dele. O pênis também desempenha certamente algum papel nesses misteriosos acontecimentos, como comprova a excitação desse órgão que acompanha tais atividades mentais da criança. A essa excitação associam-se impulsões que a criança não consegue explicar, compulsões obscuras a um ato violento, a esmagar ou romper qualquer coisa, a abrir um buraco em algum lugar. Mas quando parecesse assim bem encaminhada para descobrir a existência da vagina e inferir que a penetração do pênis paterno na mãe foi o ato que gerou o bebê no corpo desta – nesse momento crítico, a criança perplexa e impotente é obrigada a interromper sua investigação. O obstáculo que impede que ela descubra a existência de uma cavidade que acolhe o pênis é a sua própria teoria de que a mãe possui um pênis, como um homem (FREUD, 1908c/1976, p. 221-222 – grifos nossos).
A questão do conhecimento do menino a respeito do corpo feminino permanecerá na obra freudiana, como se sabe, postergada para a puberdade, a teoria do monismo fálico apresentando-se como obstáculo a qualquer outra interpretação que leve à suposição da existência de dois sexos, e não apenas um. Ao ser postulado o desconhecimento do menino sobre a existência da vagina antes da puberdade, a erotização do menino tende a ser resumida a “contatos vagos e imprecisos” com a mãe, sendo sua constituição libidinal delegada à maturação biológica. As formulações freudianas fizeram acreditar que a questão da sexualidade masculina estaria suficientemente esclarecida pelo fato de o menino ser possuidor de um órgão visível “representável”, e pelo fato de que seu primeiro objeto é a mãe. Neste esquema, o acesso à masculinidade seguiria um percurso mais “natural” para o menino que o acesso à feminilidade para a menina. A partir da descoberta da importância fundamental da relação inicial da filha com a mãe, tão significativa que é comparada à descoberta de uma civilização oculta, Freud sugere que a fase pré-edipiana deveria ser investigada também nos meninos. Observa-se, contudo, que ele não seguiu sua própria sugestão. A partir de informações fornecidas por Dana Breen (1988, op. cit.), vemos que, no entanto, outros o fizeram. Os analistas que participaram do debate acima mencionado – entre os quais se destacam, além de Jones,
110 Karen Horney e Melanie Klein – defendiam que a menina possui um conhecimento inicial da vagina. Relativamente ao menino, estes autores postularam um conhecimento inconsciente da vagina, bem como um medo desta. Segundo Breen , “Jones acreditava que o menino nega a existência da vagina porque, assim, pode evitar conflitos de ciúme (evitando o conhecimento da relação dos pais) e a castração” (BREEN, 1988, op. cit., p. 33). Para este autor o medo da castração é correlato da idéia de uma cavidade perigosa a ser penetrada. Melanie Klein explicou este medo do corpo da mãe como resultante da projeção de impulsos sádicos para dentro dela. Em seus primeiros trabalhos, Klein descreve uma fase de feminilidade tanto em meninas quanto em meninos, que resultaria de um afastamento da mãe em direção ao pai e de uma identificação com a mãe. No caso do menino, este “complexo de feminilidade” fala do desejo frustrado ou da inveja dos órgãos da concepção, da gravidez e do parto. No que diz respeito ao menino, Karen Horney, por sua vez, sugere que o medo do pênis do pai emerge como uma forma de proteção diante do pavor intenso da vulva. Horney assinala a importância da distinção de tamanho entre os órgãos adultos e os infantis. Neste sentido, são buscadas referências pontuais nos próprios casos freudianos como, por exemplo, no relato do caso de Hans (FREUD, 1909b/1976, op. cit.). Aquela autora atribuía importância crucial ao conhecimento do menino de que seu pênis não é bastante grande para satisfazer a mãe, constatação que estaria na base de um medo do ridículo. Diferentemente de Freud, para os integrantes da “escola inglesa”, o pressuposto do conhecimento do menino relativamente ao corpo da mãe, as comparações que o menino fazia entre seu membro e o do pai, e a consideração de que seu pênis é pequeno demais para a mãe, levariam a uma angústia genital específica que fala de uma ferida em sua autoestima. No que diz respeito à menina, ao tomar em consideração a existência de sensações vaginais, os integrantes da “escola inglesa” sustentam nesta experiência da menina a afirmativa de uma “feminilidade primária” da criança. Para os “de Londres”, a partir da prerrogativa da feminilidade primária da menina e do papel destacado assumido pelas angústias referentes ao corpo paterno, a inveja do pênis é vista, sobretudo, como defensiva e localizada em uma fase posterior. Para Melanie Klein, as fantasias da menina falam de ataques que derivam da imagem da mãe contendo um pênis hostil em seu interior. Karen
111 Horney, por sua vez, focaliza prioritariamente a desproporção entre o pênis do pai e os órgãos da menina. A angústia principal da menina aponta para o medo do ferimento interno. A diferença entre a angústia masculina e a feminina teria, assim, origens distintas: enquanto o medo da mulher frente ao homem deriva de fantasias infantis de destruição do corpo, a angústia do homem diante da mulher remete ao narcisismo. Observa-se, assim, que os autores que seguiram a proposta do conhecimento inicial da vagina chegaram a conclusões distintas das de Freud sobre a evolução tanto da menina como do menino. A primeira descoberta daqueles que se distanciaram de certos postulados freudianos foi que a agressividade permeava a relação inicial do menino com a mãe. Tal constatação contraria a crença freudiana de que a relação mãe-filho era a menos ambivalente de todas. Em segundo lugar foi seguida a linha de que o menino enfrenta a tarefa de lidar com anseios passivos em relação à mãe. Em terceiro lugar, foi aberta a hipótese de uma fase feminina inicial da criança, com anseios sexuais dirigidos ao pai. No que se refere ao menino, porém, nos termos em que é proposta na época, a forma como este teria acesso ao conhecimento sobre os órgãos maternos não é precisa. Para buscar maiores esclarecimentos sobre esta questão, seguiremos os aportes de Jacques André (2005, 2002, op. cit., 2001), um autor que, relativamente ao debate entre Freud e a “escola inglesa”, se situa, “com matizes”, do lado dos “de Londres”.
III. 7 – O retorno da questão do desconhecimento do corpo feminino André critica o fato de Freud haver elaborado uma teoria psicanalítica do feminino com base na teoria sexual infantil do varão. Segundo o autor, quando Freud toma as fantasias do menino como modelo para a evolução de ambos os sexos, o que se verifica é o primado de “apenas um sexo”, ficando “o outro” reduzido a sua falta, marcado por aquilo que não está lá. Essas considerações são expostas no artigo intitulado “Fio de Ariadne – a teoria e o feminino”. Ali, André mostra que o “verdadeiro autor” da teoria do monismo fálico é a criança da fase fálica. Em sua concepção, ao tomar esta teoria infantil como sustentáculo das teorias psicanalíticas sobre o feminino, Freud comprometeu a metapsicologia: “o caráter discutível da tese freudiana pode ser apreciado na fragilidade que provoca no
112 edifício analítico” (ANDRÉ, 2001, op. cit., p. 119). A teoria infantil do sexo único obedece ao “movimento resolutório da lógica fálica” que é o de “apagar a alteridade” levando tudo à “representação do mesmo”. Para André, o corpo feminino é o grande ausente da elaboração freudiana, sendo refutada, pelo autor, a representação “de um corpo definido por aquilo que ele não tem” (Id., ibid., p. 119). A perspectiva adotada por André, ao situar-se dentro do escopo da teoria da sedução generalizada, de Jean Laplanche, fornece soluções distintas para o problema da integração psíquica do corpo feminino na mente do menino. Através da categoria de “mensagem enigmática”, é formulado que a criança é invadida por referências que fornecerão a base de uma representação do desejo e dos corpos materno e paterno. É dentro dessa posição teórica que a questão do conhecimento dos corpos e da sexualidade é retomada por Jacques André. Em As origens femininas da sexualidade, a descontinuidade de seu pensamento relativamente à forma como se desenvolveu a polêmica Freud-Jones pode ser apreciada nesta passagem: A partir dos anos 1920, tivemos a elaboração de duas teorizações adversas, e hoje em dia a questão da sexualidade feminina segue proposta quase nos mesmos termos. Tudo acontece como se a resposta à interrogação sobre se existe um “conhecimento precoce da vagina”, segundo seja afirmativa ou negativa, fosse suficiente por si mesma para decidir sobre a adesão a um ou outro dos conjuntos teóricos inconciliáveis. Trata-se de um debate sem fim que diz respeito, talvez, à coisa em si mesma: é conhecido o lugar que Freud reservava à “recusa do feminino” na hierarquia dos obstáculos à análise (Id, 2002, op. cit., p. 31).
Desde seu enfoque teórico, André formula uma crítica às propostas freudianas do desconhecimento da vagina e da masculinidade primária da criança, seguindo a vertente não do “desconhecimento” mas sim de um recalcamento deste conhecimento que é previamente admitido pelo autor. Para André, uma vez que a sexualidade é implantada na criança pela via dos cuidados sedutores do adulto com o infante, a criança é invadida, desde o início, pela sexualidade adulta materna e paterna. Relativamente aos termos da discussão sobre a convicção freudiana da primeira sexualidade infantil, tanto da menina como do menino, como exclusivamente voltada para a mãe, vemos que André resgata o papel libidinizante do pai. Para o autor, as fantasias de penetração do adulto, implantadas na criança, tanto pela mãe como pelo pai, revelam-se os fatores principais da constituição das zonas erógenas orificiais; no caso do menino, o ânus; no caso da menina, ânus e vagina. Apesar de que o autor privilegie as inscrições derivadas
113 do desejo penetrante do pai, no transcorrer de sua obra se observa que a presença efetiva do pai nos cuidados com a criança não se mostra necessária. Bastam as representações maternas das formas dos corpos e do desejo, para que estas sejam transmitidas à criança. A proposta singular de André sobre esta questão, como mencionamos, toma como ponto de partida a teoria laplancheana sobre a prioridade do outro na gênese da sexualidade. Conforme mostra Paulo de Carvalho Ribeiro (2000, op. cit.), para André, “a prevalência do outro (adulto) na gênese da sexualidade basta para superar toda a querela sobre o ‘conhecimento’ precoce da vagina”. O autor prossegue assinalando que: ”bastam as representações inconscientes da vagina no adulto, para que o significante incida sobre ela, o qual é enigmático, segundo Jacques André, que se vale mais uma vez de um conceito de Laplanche” (RIBEIRO, 2000, op. cit., p. 241). Este autor aponta que André traz para primeiro plano as inscrições fantasísticas, tanto aquelas provenientes da mãe, como as procedentes da sedução paterna. A partir dessas considerações, nos reportaremos às proposições de Jacques André sobre as origens femininas da sexualidade. Nosso objetivo, ao abordar esta teoria será, principalmente, mostrar os efeitos da proposta de uma feminilidade primária da criança sobre as concepções da psicossexualidade masculina. Não sendo a criança masculina desde o início, como propunha Freud, a assunção da masculinidade, no menino, torna-se um problema tão complexo e difícil quanto o que era proposto relativamente ao “tornar-se mulher”, para a menina. Assim sendo, a concepção da origem feminina da psicossexualidade humana abre um viés teórico distinto no sentido de compreender os percalços experimentados pelo varão. Tendo este desígnio em vista, não nos deteremos, em maior especificidade, nas questões mais diretamente pertinentes ao psiquismo feminino. Ao voltar-nos para a proposta de André sobre as origens femininas da sexualidade, nosso objetivo será situar a emergência da psicossexualidade masculina dentro de uma teorização diversa da freudiana. Sob esta perspectiva, será possível focalizar com mais nitidez certos momentos de maior dificuldade da constituição masculina que se concentram em torno da integração psíquica da passividade.
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III. 8 – As origens femininas da sexualidade Ainda que voltada mais diretamente para a sexualidade feminina, a obra de Jacques André irá levantar questionamentos importantes à concepção freudiana sobre o desenvolvimento sexual do varão. Sendo este o tema que interessa mais precisamente ao desenvolvimento desta tese, focalizaremos a teoria de André visando especialmente suas conseqüências sobre as concepções do masculino. A proposta das origens femininas da sexualidade toma como ponto de partida o pressuposto de um conhecimento recalcado dos corpos e da sexualidade. A partir desse pressuposto, Jacques André se afasta dos postulados freudianos sobre o desconhecimento da vagina nos períodos que antecedem a puberdade. Mas o distanciamento do autor se revela mais significativo à medida que, diferentemente da perspectiva clássica sobre a masculinidade inicial da criança, André postula sua feminilidade inicial. Para sustentar sua afirmativa sobre as origens femininas da sexualidade, o autor efetua uma releitura dos textos freudianos “Fragmentos da análise de um caso de histeria” (1905), da “história de uma neurose infantil (1918) e de “Uma criança é espancada” (1919e). Através destes textos, o autor investiga os indícios de uma feminilidade precoce submetida ao recalcamento. Esta revisão da obra freudiana assume duas direções intimamente entrelaçadas. Ao mesmo tempo em que o texto de André visa sustentar que a tese do sexo único teve como efeito o recalcamento da feminilidade primária na teoria, a própria tese do sexo único emerge como um produto do recalcamento da feminilidade primária no homem/teórico Freud. Em função de nossos objetivos, não seguiremos o enfoque relativo aos “desvios” do teorizar freudiano, derivados do recalcamento da feminilidade primária, mas sim à defesa de André das origens femininas da sexualidade. Para André, a criança, seja ela menina ou menino, é feminina em seu princípio; afirmativa que se fundamenta na concepção da passividade inicial da criança diante do adulto, de acordo com a teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche – cuja exposição se encontra no início desta tese. Ou seja, o norteador central da proposição de uma origem feminina da sexualidade, é o conceito de passividade, que Jacques André desdobra em diferentes sentidos intimamente interligados.
115 Precisando os distintos sentidos atribuídos à passividade temos, em primeiro lugar, a passividade originária que remete à posição inicial da criança diante da sexualidade do adulto. Situando-se nos momentos inaugurais da vida psíquica, a passividade originária caracteriza a situação geral de sedução experimentada pela criança, objeto dos cuidados do adulto. Para André, a passividade originária é uma evidência “quase empírica”, que reúne o recém-nascido em estado de “desauxílio” e o adulto cuidador. Em conformidade a Laplanche, André considera que a sexualidade não emerge naturalmente das zonas erógenas, sendo implantada pelo adulto, mais precisamente pela feição sedutora de que se revestem os cuidados de que é objeto a criança. A dimensão inconsciente da sedução do adulto e a passividade e o despreparo da criança diante de suas mensagens é objeto desta passagem do autor: O momento inaugural da vida psicossexual se situa, com relação ao infans, em uma dupla alteridade: a do adulto e a do inconsciente no adulto. Neste “encontro”, se trata mais de sedução que de comércio, devido a que a criança, dado seu caráter de prematuro, vê excedida sua capacidade de compreensão e de elaboração por aquilo que lhe é “injetado”. A vida psicossexual não começa por “eu introjeto” – nem tampouco por “eu me alimento e aproveito assim para succionar” – mas sim por ele implanta, ele intromete, sem saber o que ele faz. Uma criança é envolvida pela tormenta do sexual mais além do que sua resposta auto-erótica lhe permite apaziguar. Uma criança é penetrada por arrombamento (ANDRÉ, 2002, op. cit., p. 118).
Para André é esta invasão, este arrombamento, o que caracteriza uma reunião necessária entre passividade e feminilidade. Advertindo que a relação passividadefeminilidade permanece controvertida, o autor se pauta no referencial das diferenças anatômicas entre os sexos e na relação penetrante-penetrado. Para formular esta relação, o autor assinala que a conformação diferencial dos sexos induz fantasias. As relacionadas ao órgão masculino apontam no sentido da penetração e da atividade, enquanto o órgão penetrado é comumente associado à posição passiva. Na defesa desta afirmativa, são evocadas passagens do estudo de André Green (2004, op. cit.) sobre o complexo de castração. Ocupando-se das críticas formuladas a Freud em função de sua distribuição diferencial do par atividade-passividade, Green relembra que, “se toda libido é masculina (para Freud), então toda expressão do desejo sexual é ativa não importando em qual sexo” se apresente (GREEN, 2004, op. cit., p. 141). A questão não passa, dentro dessa perspectiva, pela atividade necessária à consecução do prazer, mas sim pela referência anatômica. Isto porque, segundo Green, não podemos desconsiderar que a forma do corpo e
116 dos órgãos sexuais induz fantasias: “Raramente se vê que a metáfora do pênis evoque o vaso ou o recipiente, ou que a vagina encontre na espada ou na faca uma comparação que se baste a si mesma” (Id., ibid., p. 142). Green indica o caráter de universalidade dessas fantasias, mostrando que não é necessário “invocar a patologia” para confirmar sua efetividade, uma vez que elas “se situam na derivação das fantasias principais próprias de cada sexo” (loc. cit.). Sobre este referencial, Jacques André formulará analogias entre a mulher penetrada e a criança “invadida”, “arrombada” pela sexualidade adulta. “A conjunção proposta da criança seduzida e a posição feminina encontra nesse lugar seu ponto de ancoragem mais arcaico: a criança seduzida é uma criança arrombada, uma criança de orifício” (ANDRÉ, 2002, op. cit., p. 118). A situação geral de sedução reúne um adulto arrombador e uma criança arrombada: as palavras nas orelhas, o mamilo na boca, o supositório no ânus... a penetração sedutora do adulto não é uma simples metáfora, mas ela passa pelo ato. Se essa penetração é, tal como pensamos, constitutiva da feminilidade da criança pequena, a teoria da sedução se desenvolve então até uma psicogênese da feminilidade precoce não explorada até o presente momento (Id., Ibid., p. 119).
No que se refere às questões que tratamos nesta tese, diversos aspectos das propostas de Jacques André nos interessam especialmente. Primeiramente, a discussão da teoria freudiana da masculinidade primária da criança. Para André, a sexualidade, tanto de meninas como de meninos, tem origem numa posição “feminina”, como vimos. Em segundo lugar, e em estreita conexão com sua proposição central, focalizamos o resgate, promovido pelo autor, da figura do pai sedutor, “abandonado” por Freud, em 1897, juntamente com a teoria da sedução. Para André, o desejo penetrante do pai, como adulto sexualmente maduro, deixará sua marca tanto sobre o psiquismo das meninas como sobre o dos meninos8. A proposta de uma feminilidade precoce calcada no desejo de receber o pênis paterno incide diretamente na teorização sobre a sexualidade do menino, questão que é objeto da análise que André efetua do texto freudiano “História de uma neurose infantil” (1918). Através da análise deste texto, André nos leva à masculinidade como formação
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Sobre esta questão, ver a apreciação de Paulo de Carvalho Ribeiro (2000) sobre a obra de J. André, especialmente a nota nº 53, onde o autor cita André: “A sedução paterna constitui uma fonte essencial desse pré-conhecimento [da vagina]: o desejo inconsciente do pai, desejo (de penetração) de um adulto sexualmente maduro, não pode não deixar sua marca, contribuindo de forma decisiva para fazer existir inconscientemente a vagina na menina” (ANDRE. La sexualité féminine: retour aux sources, In: Psychanalyse à l’Université, t. 16, n. 62, p. 25-26, abr-1991).
117 reativa à feminilidade primária da criança, aspecto estreitamente enlaçado à degradação da mulher.
III. 9 – A feminilidade dos homens e a degradação da mulher O tema da feminilidade dos homens é trabalhado por André através do texto freudiano sobre o “homem dos lobos”. Partindo-se da análise freudiana, temos que a fragmentação libidinal, no caso do paciente russo, se concentra em torno de dois grandes eixos. O primeiro sustenta sua eleição de objeto heterossexual e o segundo remete à permanência de moções homossexuais passivas. A análise efetuada por Freud mostra estas duas vertentes libidinais opostas, presentes no paciente russo e relacionadas à cena primitiva e à cena de sedução vivida com a irmã. Ambas as cenas colocam o menino em posição passiva, sendo que o material associativo referente à cena primitiva reporta à criança interrompendo o coito dos pais através de choro, gritos e a produção de uma evacuação, o que insinua uma resposta anal às excitações derivadas da cena. Tomando como referência a cena ou a fantasia de acoplamento dos pais de seu paciente, Freud chega à conclusão sobre a universalidade da cena primordial. O aspecto que chama atenção, nas conclusões do caso, contudo, é o fato de que esta cena se reveste, para Freud, sempre da forma de um “coitus a tergo”. Os psicanalistas atuais confirmam plenamente a importância desta cena, mas André discute a premissa de que esta seja uma forma universal de apresentação do coito dos pais, ou seja, o autor busca justificativas para este privilégio do coitus a tergo. A justificativa freudiana de 1918 apela para o ponto de vista filogenético, ao partir da premissa de que esta consiste na forma mais antiga de coabitação. Como aponta André (2002, op. cit.), na “novela paleontológica” de Freud, na “transmissão de caracteres adquiridos pela espécie”, o coito more ferarum reproduz “a maneira que o pai da horda tomava as fêmeas”. Neste sentido, “todo homem ‘colocado’ dessa forma reproduziria o gesto dominante do Urvater” (ANDRÉ, 2002, op. cit., p. 103). A discussão promovida por André remete ao aspecto de degradação, contido no privilégio do coito more ferarum, degradação que diz respeito não apenas às mulheres, mas também à feminilidade dos homens. O autor aponta que esta posição no coito não sugere
118 necessariamente a penetração anal, mas “a feminilidade dos homens se joga nessa posição” (Id., ibid., p. 106). Na avaliação do caso do homem dos lobos, temos que suas práticas heterossexuais nos reportam ao seu gosto por mulheres de grandes nádegas, e sua predileção pelo coitus a tergo levando-nos, ainda, à escolha de mulheres de baixa extração social. Como mostra André, “estas mulheres em posição ‘baixa’ estão rebaixadas em outro sentido, desta vez, metafórico: nosso homem as recruta entre as classes ‘inferiores’” (Id., ibid., p. 104) Para o autor, “a degradação da mulher e a posição a tergo no coito estão relacionadas. Isto é evidente tanto para o ‘Homem dos Lobos’, como para Freud e para tantos outros homens”. (loc. cit.). A partir dessa hipótese, somos levados ao texto freudiano “Sobre a tendência universal à degradação na esfera do amor”, de 1912, onde é efetuada uma análise da divisão entre as correntes ternas e eróticas. A patologia apresentada pelos homens estudados diz respeito à incompatibilidade entre o desejo e o amor, somente sendo desejada a mulher que pode ser “desrespeitada”, uma mulher “baixa”. O texto de 1912 apresenta também analogias entre a criança como “brinquedo erótico” do adulto provedor dos primeiros cuidados, e essas mulheres com as quais se pode “fazer tudo”. Como mostra André, “desde a criança brinquedo, a criança seduzida, a mulher com a qual se podem deixar de lado todos os escrúpulos éticos, somente há, evidentemente, um caminho fantasmático muito curto” (Id., ibid., p. 105) . As inferências de André indicam o estabelecimento de uma relação de contigüidade entre as representações da criança e da mulher. Isto porque as observações de Freud sobre a mulher “baixa”, “pouco educada”, remetem a uma “hierarquia de níveis culturais”, que André toma como um equivalente da diferença de gerações – o que permite que se restabeleça algo da atividade do adulto sobre a criança penetrada, seduzida, “pervertida” pela sexualidade deste. André aponta que, no “Homem dos lobos”, a “conexão entre a posição baixa no coito e a degradação forma parte daquilo que a análise traz à luz; o mesmo acontece com a contribuição do componente anal a este dispositivo fantasmático”. Esta conexão não se encontra claramente formulada no texto de Freud, devendo ser construída a partir dos elementos que a sugerem. Sendo sugerido que a postura erguida condensa as exigências
119 “elevadas” da civilização e a alta valorização do sujeito ereto, dominante. Mas o autor mostra que: Esse movimento ascendente, sublimatório, somente traz emparelhado um êxito parcial, a excitação amorosa permanece abaixo, nunca esquecendo definitivamente o laço íntimo entre o excretório e o sexual. Esta é a geografia do coitus a tergo e o sentido da degradação: voltar a encontrar algo da confusão entre o anal e o genital (Id., ibid., p. 106).
Para André, a masculinidade vertical, agressiva, obsessiva, emerge em oposição à feminilidade primária. A posição a tergo “feita de sadismo ereto”, não está longe de “aparecer como uma posição reativa, filha do recalcamento, onde o sujeito se defende na agressividade contra uma fantasia subjacente onde ele, desta vez, é penetrado” (Id., ibid., p. 109). Em seu sentido manifesto, a posição “a tergo”, tomada por Freud em caráter de universalidade na representação da cena primitiva, localiza a mulher em uma posição baixa, “bestial”, sendo que “este movimento de bestialização aporta satisfação ao sadismo do macho” (Id., ibid., p. 108). Submetendo a mulher desta forma, acalmam-se a angústia e o desejo de castração. Para André, a recusa do feminino “se alimenta da angústia de castração” (Id., ibid., p.110), mas sua hipótese é que esta recusa é conseqüência, em maior ou menor medida, da angústia diante da libido, da passividade diante do ataque pulsional. No prosseguimento desta parte dedicada às origens femininas da sexualidade, retomaremos alguns dos pontos principais desenvolvidos por Jacques André. Neste trabalho de síntese, recorreremos a observações de Paulo de Carvalho Ribeiro. Este autor mostra que, para André, “A feminilidade primitiva constitui uma primeira representação da passividade da criança diante da situação traumática de sedução. Por estar tão próxima da sedução originária, essa feminilidade primitiva é particularmente propensa ao recalcamento mais profundo” (RIBEIRO, 2000, op. cit., p. 146). É observado, também, que a principal zona erógena “na qual se assenta essa feminilidade primitiva” é “cloacal” na menina e “anal” no menino. O principal fator na constituição dessas zonas erógenas são “as fantasias inconscientes de penetração do adulto, e particularmente do pai” (loc. cit.). Vemos, também, que André se posiciona em concordância a Freud ao considerar que o elemento feminino é sempre o recalcado. O autor discorda, porém, de qualquer sexualização da libido, ou seja, entende que não há por que afirmar sua essência masculina ou feminina, como o faz Freud. Ao considerar que o elemento feminino é o recalcado por
120 excelência, André concebe a masculinidade sádica e agressiva como uma formação de reação à feminilidade primitiva recalcada. O encaminhamento teórico seguido pelo autor, que situa a passividade originária da criança como suporte da proposta de uma origem feminina da sexualidade, abre espaço para considerações distintas das adotadas por Freud em 1937. Ou seja, a proposta das origens femininas da sexualidade permite sair do impasse que levou Freud a delegar a compreensão da recusa do feminino à biologia. Seguindo uma direção oposta à concepção freudiana da masculinidade inicial da criança, as idéias de André permitem situar o sadismo do macho como modalidade de defesa contra a feminilidade. Esta perspectiva fornece a nosso estudo um indispensável referencial teórico para a compreensão do que pode estar na base das manifestações agressivas masculinas, principalmente aquelas direcionadas à mulher. Na continuidade de nossa pesquisa observamos, no entanto, que as perspectivas abertas por André, não focalizam, em mais detalhe, a questão das identificações. Ou seja, o problema da formação do eu não foi detidamente examinado a partir da proposta das origens femininas da sexualidade. Esta carência é o principal argumento das críticas formuladas por Paulo Ribeiro à obra de André. Este autor enuncia suas concordâncias “quase totais” com André sem deixar de pontuar que “o conceito de identificação não desempenha nenhum papel, ou pelo menos nenhum papel substancial, na sua concepção da gênese da feminilidade” (RIBEIRO, 2000, op. cit., p. 247). Ribeiro indica que as hipóteses de André sobre as fantasias inconscientes de penetração do pai e o papel desempenhado pela inoculação destas fantasias na erogenização da vagina e do ânus são corretas. Mas o autor sustenta “que essas penetrações não são, por elas mesmas, os principais fatores na gênese da feminilidade, com a qual elas somente se relacionam a partir da identificação com a mulher”. Para Ribeiro, “a identificação com a mãe é imprescindível para o surgimento da feminilidade” (loc. cit.). A partir dessas observações que trazem para primeiro plano a questão da identificação com a mãe e com a mulher nas origens da feminilidade, seguiremos as concepções de Ribeiro sobre as primeiras identificações com o objeto primário. Na seqüência do estudo sobre o recalcamento da identificação feminina primária, e seguindo indicações de Ribeiro, nos referiremos, ainda às formulações de Ralph Greenson sobre o problema da desidentificação da mãe. Através das proposições desses autores, buscaremos
121 subsídios para compreender os obstáculos enfrentados pelo menino em seu acesso à masculinidade que julgamos estar na raiz da violência masculina, especialmente da violência contra a mulher.
III.10 – O recalcamento da identificação feminina primária Paulo Ribeiro se dedica a descrever e fundamentar metapsicologicamente um fenômeno que interessa especialmente ao nosso estudo: a identificação primária. A hipótese principal defendida pelo autor, é a de que, nas origens do sujeito psíquico, encontra-se o recalcamento da identificação feminina primária, tanto para as meninas como para os meninos. Entre as diversas proposições do autor, nos voltaremos principalmente para os enunciados que se mostram mais próximos da teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche e da proposta de Jacques André sobre as origens femininas da sexualidade. Segundo Ribeiro, o conceito de identificação feminina primária é “o resultado de um esforço no sentido de repensar as origens do sujeito psíquico a partir da função do outro e da alteridade” (RIBEIRO, 2000, op. cit., p. 8). Nesse sentido, o autor leva às últimas conseqüências a idéia de que a criança é afetada “pela realidade antes de poder representála, antes de possuir qualquer instância psíquica capaz de dar conta desta afetação” (loc. cit.) Pela via de minuciosa análise dos textos teóricos e clínicos de Freud, o autor se empenha em localizar momentos da teoria onde se evidencia o problema do recalcamento da identificação inicial com a mãe. Ribeiro coloca em primeiro plano os efeitos, sobre a criança, do contato com a mãe, tanto no que diz respeito à instauração da sexualidade como no que se refere à constituição do narcisismo. Na defesa da prevalência da figura materna em sua abordagem, o autor mostra que mesmo que consideremos as diversas mudanças ocorridas na criação e educação das crianças, especialmente as mudanças pertinentes aos papéis de gênero – as mulheres continuam sendo “o primeiro e primordial objeto na vida de todos os bebês” (Id., ibid., p. 284). O autor entende que neste momento primordial de proximidade à mãe, quando a criança é invadida pelos cuidados sedutores do adulto, instaura-se a identificação inicial com a mãe. O autor pontua que sua concepção da identificação feminina primária “não se
122 confunde inteiramente” com a identificação inicial com a mãe, “embora exista entre as duas uma relação complexa” (Id., ibid., p. 47). Para a criança, no momento da feminilidade primária – que fala das origens femininas da sexualidade – “penetrar e ser penetrado, ter e ser o objeto” consistem, sem distinção, numa experiência única de prazer sem qualquer forma de oposição. Isto porque tal experiência não se encontra regida pelas oposições sujeito e objeto, ativo e passivo ou fálico e castrado. A feminilidade absoluta – que remete à criança seduzida, penetrada, arrombada pela sexualidade do adulto – será objeto de recalcamento em ambos os sexos, mostrando seus efeitos sobre a constituição psicossexual do indivíduo. Na observação deste momento, o autor levanta a seguinte hipótese: o primeiro tempo do recalcamento da feminilidade primária corresponde ao processo pelo qual a criança é moldada de acordo com a feminilidade consciente e inconsciente da mãe, sem que essa feminilidade, para a criança, se oponha à diferença anatômica dos sexos ou com ela se relacione (Id., ibid., p. 257).
Para fundamentar este raciocínio, Ribeiro retoma certas premissas de Laplanche onde é afirmado que “o recalcamento originário é apenas o momento primeiro e fundante de um processo que dura a vida toda” (LAPLANCHE, 1992, op. cit., p. 139). Segundo Laplanche, o recalcamento originário está submetido a dois tempos que “são indissociáveis do movimento que desemboca na criação do ego” (Id., ibid., p. 142). Laplanche prossegue mostrando que: Além disso, o a posteriori que opera entre os dois tempos do recalcamento originário, intervém também em relação ao próprio recalcamento originário tomado em seu conjunto. O que significa, concretamente, que o recalcamento originário necessita de uma chancela para ser mantido, necessita do recalcamento secundário. E é precisamente aí que se situa o lugar do Édipo, do complexo de castração e da formação do superego (Id., ibid., p. 145).
Para Ribeiro, é a descoberta da diferença anatômica entre os sexos que marcará o tempo do recalcamento secundário da feminilidade originária. Tendo-se em conta sua incidência sobre a diferença dos gêneros, esta descoberta coloca a criança frente ao imperativo de se posicionar perante as diferenças sexuais. É neste segundo tempo que ”a feminilidade se sexualiza” e “passa a ser comparada, avaliada e medida a partir do padrão fálico” (Id., ibid., p. 257). O ponto de ancoragem que marca essa passagem, centralizado na descoberta da diferença anatômica entre os sexos, incide decisivamente sobre os processos de individuação.
123 A operação simbólica que vem selar a constituição do sujeito psíquico, conferindo-lhe um senso de identidade mais ou menos estável, é uma operação em que a separação entre a criança e a mãe é metaforizada pela distinção das vivências corporais de penetrar e de ser penetrada, distinção essa que se origina e se apóia na diferença anatômica entre os sexos (Id., ibid., p. 283).
O autor mostra que a descoberta da diferença anatômica entre os sexos se torna problemática e determinante de diversas conseqüências psíquicas em função do fato de que a criança é levada a situar-se como semelhante (no caso da menina), ou como diferente da mãe (no caso do menino). Esta descoberta se acompanha, ainda, de uma exigência de reconhecimento do pai como detentor do objeto de desejo da mãe. A descoberta da diferença anatômica juntamente com o reconhecimento da importância do pai e do falo são, portanto, concomitantes à descoberta de que o objeto primordial de amor e identificação é do sexo feminino. A diferença dos gêneros, percebida pela criança anteriormente, adquire, nesse momento, um significado novo. Se até então a modelagem da criança pela mãe [...] podia ser emoldurada e fortalecida, de maneira quase automática e não conflitiva, seja pela absorção passiva ou pela imitação ativa dos diversos traços constitutivos de uma certa fenomenologia da mãe e de seu pertencimento ao gênero feminino, a partir da descoberta da diferença anatômica todos esses mecanismos identificatórios se tornarão problemáticos e conflitivos (Id., ibid., p. 284).
Segundo o autor, o conflito instaurado pela descoberta da diferença anatômica leva a criança à exigência de posicionar-se frente à identidade de gênero e de sexo. É neste momento que a criança recorre a “teorias” sexuais que se encontram “totalmente comprometidas com fantasias onipotentes de negação da diferença e da incompletude” (Id., ibid., p. 286). Entre as teorias infantis, o autor ressalta a fantasia da mãe fálica, que obedece ao objetivo de negar a diferença pela atribuição do pênis à mulher. Ao colocar em consideração as fantasias de castração do menino, Ribeiro entende que estas “não resultam de ameaças externas, mas sim do imperativo de negar a diferença e tentar preservar a possibilidade de identificação com a mãe” (Id., ibid., p. 287). Evidentemente, no caso do menino, a posse do pênis revela-se um dado fundamental no que diz respeito aos desdobramentos desse conflito. Ao descobrir a ausência do pênis na mãe, o menino é levado a “abrir mão de muitos elementos identificatórios” que o ligam à mãe. Para Ribeiro, o sucesso deste processo de renúncia aos elementos identificatórios com a mãe depende “de um verdadeiro jogo de interdição e sedução, em que o menino é ativamente conduzido pelos pais e educadores na direção de uma masculinidade que, ao contrário do que pensava Freud, nunca é dada de início, nem adquirida de forma natural ou espontânea” (Id., ibid., p. 286). Segundo o autor, a entrada do pai no universo infantil cumpre o papel de fazer reconhecer a diferença da criança em relação à mãe. Este
124 reconhecimento pode, no entanto, configurar-se como perda uma vez que compromete esta relação tão “carregada de significações e efeitos narcísicos como é a da criança com a mãe” (Id., ibid., p. 287). Na resolução desse conflito, o autor pontua que “o peso do pai no desejo da mãe”, bem como “o investimento do pai como objeto de amor pelo menino” são os fatores decisivos, que levarão a criança a uma solução negativa ou positiva. Marcada que é pela identificação feminina primária, a masculinidade se revelará, contudo, uma posição instável.
Na fundamentação destas propostas, Ribeiro se reporta a Ralph Greenson, autor que entende que o menino, para promover a “desidentificação” com a mãe e aceder à masculinidade deve valer-se de uma contra-identificação com o pai. Segundo Greenson, o menino, “para chegar a um sentimento saudável de virilidade, deve substituir o objeto primário de identificação, a mãe, e se identificar com o pai”. Para este autor, “a capacidade de desidentificação do menino [da mãe], determinará o êxito ou fracasso de sua identificação posterior com o pai. Estes dois fenômenos, desidentificação da mãe e contraidentificação com o pai, são interdependentes e formam uma série complementar” (GREENSON, 1968, p. 263). Greenson coloca em consideração o quanto é possível tomar a identificação com o pai, verdadeiramente, como “uma contra-identificação”, ou seja: “um meio de agir contra a identificação anterior”. Calcado nas evidências do peso dessa primeira identificação relativamente à sedimentação da masculinidade, ele mostra as incidências da identificação inicial com a mãe no temor à homossexualidade. O autor indica que o temor à homossexualidade é uma questão que afeta os homens de maneira mais persistente e intensa que as mulheres. Sustento que os homens são muito mais incertos quanto a sua masculinidade, do que as mulheres quanto a sua feminilidade. Creio que a certeza das mulheres quanto a sua identidade de gênero, e a insegurança dos homens quanto à deles, têm raízes na identificação inicial com a mãe. (Id., ibid., p. 370).
Para este autor, a menina também precisa se desidentificar da mãe para desenvolver sua identidade única, mas sua identificação inicial com a mãe, diferentemente do que ocorre com o menino, ajuda-a a estabelecer sua feminilidade.
125 Greenson sugere, ainda, que os homens, em nível mais profundamente inconsciente, nutrem inveja intensa das mulheres, especialmente da mãe, sendo que a defesa contra essa inveja, se apresenta pela fachada do desprezo e da desqualificação. Não é nessa área que encontramos uma resposta para por que tantos homens são inseguros quanto a sua masculinidade? Talvez seja a base insegura de sua identificação com o pai, sua contraidentificação, que os torna tão desdenhosos, reativamente, das mulheres, e, inconscientemente, tão invejosos (Id., ibid., p. 373).
Esta passagem do autor fala dos efeitos da identificação feminina primária relativamente à relação entre homens e mulheres, trazendo à tona uma explicação distinta da freudiana sobre o desprezo, a hostilidade e o medo que os homens nutrem pelas mulheres.
A partir dessas considerações sobre os efeitos do recalcamento da identificação com a mãe sobre a relação entre homens e mulheres, para encerrar este capítulo, tomaremos a questão dos destinos do feminino no homem – seguindo as proposições de Thierry Bokanowski (1993). O principal interesse em focalizar este autor consiste no fato de que sua abordagem da recusa do feminino no homem – efetuada a partir da bissexualidade – parte, também, de uma consideração da identificação inicial da criança com a mãe.
III.10 – Os destinos do feminino no homem O encaminhamento que buscamos dar à questão da violência manifesta do homem contra a mulher se orienta pela hipótese de que a agressividade dirigida à mulher se enlaça aos destinos do feminino no homem. Neste sentido, buscamos referências metapsicológicas que possam sustentar a compreensão das modalidades de contra-investimento do feminino no homem, levando em consideração seus efeitos manifestos. Os destinos do feminino no homem são objeto do estudo de Thierry Bokanowski voltado para as dificuldades que este feminino “atribuído às mulheres” impõe ao desenvolvimento psíquico masculino. A evolução do feminino no homem é analisada pelo autor a partir da proposição freudiana da bissexualidade. O estudo de Bokanowski se volta para o feminino como esta “categoria do humano que ultrapassa o quadro da sexualidade feminina e da feminilidade” e que, como tal, não é específica das mulheres.
126 Para categorizar o feminino, o autor se apóia nas definições de M. Cournut-Janin e J. Cournut (1993, op. cit.) de feminilidade e masculinidade, de sexualidade (masculina e feminina) e do feminino e do masculino – às quais nos reportaremos visando uma melhor compreensão das idéias expostas, uma vez que se verifica no discurso psicanalítico que o emprego destes termos não é homogêneo. Segundo os autores mencionados, quando falamos de sexualidade, acompanhada dos adjetivos feminino ou masculino, estamos usualmente referidos ao funcionamento sexual de mulheres e homens. Já os termos feminilidade e masculinidade, em sua abordagem, dizem respeito ao “conjunto das características próprias” de mulheres e homens, sendo que a feminilidade se encontra definida ”em oposição à masculinidade ou virilidade” (COURNUT-JANIN & COURNUT, 1993, op. cit., p. 1447). Para Cournut (2002, op. cit.), a masculinidade, ou a virilidade, compreende “o conjunto dos traços psíquicos e psicológicos” e dos “atributos característicos dos homens“, traços marcados por um temor de perda que é elaborado pela via da castração. Nas palavras do autor: “Forte, porém vulnerável, a virilidade está sempre sob a ameaça de castração que ela tenta desafiar” (Id., ibid., p. 64). Estas definições articulam os níveis psicológico e sociológico das concepções freudianas do masculino e do feminino. Quanto aos termos feminino e masculino, na concepção do autor, designam “uma categoria do humano” que não é específica de homens ou mulheres – categoria que ultrapassa o quadro tanto da sexualidade feminina e da feminilidade, quanto da sexualidade masculina e da masculinidade. O que se busca deixar claro, através das menções às definições destes autores, é que eles tomam o feminino e o masculino como categorias que indicam aspectos constitutivos tanto de homens como de mulheres. Conseqüentemente, estas categorias podem ser estudadas da mesma forma, tanto no homem como na mulher, questão posta em evidência por Freud (1924) ao estudar o masoquismo “feminino” em homens. Quando aplicamos a oposição masculino-feminino ao conhecimento dos indivíduos existentes na realidade e, mais propriamente, quando consideramos a proposta freudiana de uma bissexualidade originária da criança, temos que essa oposição “não recobre uma diferença radical dos gêneros, ela visa, também, o feminino no homem e o masculino na mulher” (COURNUT-JANIN & COURNUT, 1993, op. cit., p. 1530).
127 Através deste fenômeno psíquico qualificado de feminino, na forma definida acima, Bokanowski (1993) levanta questões acerca de sua instauração, no psiquismo, de sua procedência relativamente aos registros das moções pulsionais e das instâncias identificatórias primárias e secundárias. Na defesa de sua proposta, o autor argumenta que o fato de ser menina ou menino destina a criança a viver experiências corporais e psíquicas distintas. Tomando em conta as aproximações e os contrastes entre a fantasia e a experiência, o autor assinala que “antes do Édipo, como depois dele, as diferenças ligadas ao sexo anatômico, às diferenças corporais e ao vivido psíquico (elaboração fantasística) não param de se aprofundar entre os dois sexos” (COURNUT-JANIN & COURNUT, 1993, op. cit., p. 1587). Assim temos, como conseqüência lógica, que “o feminino no homem não é da mesma natureza que o feminino da mulher”, sendo a “recusa do feminino” aquilo que se mostra comum a ambos os sexos (Id., ibid., p. 1588).
Bokanowski aborda o feminino no homem e sua recusa a partir das falhas e impedimentos da integração harmoniosa da bissexualidade. Estas falhas se traduzem pela via de efeitos psicopatológicos “mais notórios” como a homossexualidade ou o travestismo, que o autor situa, em distintos níveis, como signos de “fracassos do trabalho psíquico do feminino”. Entre estes efeitos mais notórios, o autor menciona o “Don Juan”, ou seja, o sedutor compulsivo, em permanente busca de afirmação viril. Pela via desses fracassos da integração psíquica harmoniosa da bissexualidade, são colocados em consideração tanto os fracassos ligados à relação objetal, como aqueles relativos às regulações da evolução psíquica advinda do narcisismo. No que diz respeito à escolha de objeto, o autor aponta que “há um destino próprio do feminino no menino” que se revela fundamentalmente diferente daquele da menina. No caso da solução heterossexual, no momento do Édipo o menino reencontra um objeto que é do mesmo sexo que o objeto primordial, enquanto a menina deve renunciar ao seu primeiro investimento e voltar-se para o pai. Neste momento, vemos que o autor parte dos postulados clássicos sobre a mãe como primeiro objeto, não fazendo maior menção ao pai nos momentos iniciais da vida da criança. A questão que se coloca, relativamente ao narcisismo do menino, diz respeito às vicissitudes de sua identificação introjetiva primária ao feminino maternal – a partir do
128 momento em que ele é conduzido a se desligar da mãe. Para Bokanowski, o objeto primário induz, tanto no menino como na menina, “uma identificação primária ao feminino maternal” (BOKANOWSKI, 1993, op. cit., p. 1589). A identificação primária ao feminino maternal deriva do contato permanente com a mãe, o que propicia a introjeção e a identificação com os elementos femininos e maternais desta. O filho “se nutre” das introjeções da libido maternal e feminina da mãe. Para a criança este tempo é, também, o tempo do desenvolvimento do auto-erotismo e da constituição de uma matriz psíquica. A complexidade desta identificação deriva do fato de que a relação se dá não entre semelhantes, mas entre diferentes. Para Bokanowski, “as relações conflitivas que o homem apresenta frente ao seu feminino – e ao feminino “atribuído à mulher” – podem ser parcialmente esclarecidas se considerarmos que o feminino afeta o menino segundo modalidades mais traumáticas que na menina” (Id., ibid., p. 1587). A passagem da identificação primária ao feminino maternal para uma identificação ao feminino e ao masculino paternos se revela mais complexa e difícil para o menino, fazendo do feminino nele o “objeto de uma nostalgia irrecuperável (simbolizada, posteriormente, pela fantasia de paraíso perdido)” revelando-se, ainda, fonte de medo e ódio. Para Bokanowski, é a partir da perda do objeto primário e de seu luto – que permite a tomada de consciência da existência do pai como separador – que o pai se constitui, também, como objeto a amar. Neste sentido, o autor sustenta a hipótese de que as relações conflitivas apresentadas pelo homem frente ao seu feminino e ao feminino nas mulheres podem ser parcialmente esclarecidas quando avaliamos a hipótese de que o menino, da mesma forma que a menina, está submetido a uma mudança de objeto. “Assim, da mesma maneira que a menina que, passando da mãe ao pai, muda de objeto e se refugia no complexo de Édipo, podemos sustentar que o feminino do menino, passando da mãe ao pai, muda, ele também, de objeto” (Id., ibid., p. 1590). No momento do Édipo e em função dos efeitos do complexo de castração, as “moções femininas e ternas” do filho, que até este momento se dirigiam à mãe, passam a dirigir-se também ao pai. Essa mudança de objeto é descrita como um movimento masoquista. Tomando como base o texto “Uma criança é espancada” (1919e), especialmente a segunda fase descrita por Freud, o autor mostra que é a erotização
129 masoquista que permite integrar as moções dirigidas ao pai. O fantasma masoquista feminino central de “Uma criança é espancada”, tem por função “tornar este feminino, portador de inscrições de tipo traumático, tolerável” (Id., ibid., p. 1595 – tradução nossa). Este fantasma, segundo o autor, “esclarece admiravelmente a posição da criança ante a violência paterna, violência por sua vez temível, admirada e invejada”. É porque a criança cobiça esta violência, “que ela tenta se apropriar dela de um modo regressivo” (Id., ibid., p. 1595-1596). Neste momento, Bokanowski defende uma posição que encontraremos também, posteriormente, em Silvia Bleichmar (2006, op. cit.) e que consiste em relacionar o acesso à masculinidade a um movimento masoquista dirigido ao pai. Para Bokanowski, a situação característica da feminilidade – que, segundo Freud em “O problema econômico do masoquismo” (1924) reenvia a ser castrado, submetido ao coito e parir – “trabalha sobre um fantasma de apropriação por introjeção de um pênis paterno ‘não-castrável’ e todopoderoso” (BOKANOWSKI, 1993, op. cit., p. 1596). Para o autor, sob as formas da fantasia, a introjeção do pênis paterno favorece posteriormente a ereção de um pênis penetrante. Ou seja, este momento inicial de “homossexualidade” do menino traçará os destinos da heterossexualidade futura. Mas a questão se revela complexa porque, mesmo se através desse masoquismo dirigido ao pai, o menino se liberta do estado de união fusional com a mãe, este masoquismo traz , em si, “o traço, a memória e a cicatriz dessas inscrições pré-traumáticas (para não dizer traumáticas) relativas ao feminino nele” (Id., ibid., p. 1595). O autor fala do ódio ao feminino, que recobre o medo de uma passividade sentida como devoradora, assinalando que o ódio à mãe é, talvez, o único modo de se sentir existir como separado. No homem, este ódio toma forma pela via da valorização de uma falicidade agora desembaraçada do feminino da mãe. As proposições de Bokanowski permitem fundamentar a hipótese, que seguimos nesta tese, de que a masculinidade é uma posição instável a ser permanentemente comprovada. Esta posição instável da masculinidade, em nosso entendimento, predispõe o homem a respostas defensivas agressivas, não somente entre pares, mas, também, diante da mulher. Esta proposição pode adquirir materialidade através da observação das diferentes “provas de virilidade” a que assistimos cotidianamente, as quais tendem a assumir a forma
130 de relações de dominação e de tipos diversos de manifestações agressivas. Para dotar de maior consistência este raciocínio, seguiremos, no próximo capítulo, a questão da constituição psíquica e da subjetividade masculina. Nossa ulterior abordagem levará em consideração a noção de gênero, na forma como é introduzida no pensamento psicanalítico. As noções principais sobre as quais pautaremos nosso próximo estudo serão a identificação e a identidade sexual. Ao trabalhar esses conceitos nos direcionaremos, conseqüentemente, ao complexo de Édipo.
CAPÍTULO IV Masculinidade e dominação
No terceiro capítulo desta tese seguimos distintas vertentes de fundamentação teórica para o desprezo, o temor e a hostilidade dos homens frente às mulheres. Primeiramente, a partir dos postulados freudianos, percorremos a via referente à castração. Posteriormente, consideramos o “estranhamento” do corpo feminino sob o viés do narcisismo das pequenas diferenças e da ameaça de retorno ao seio materno. Através do texto “Análise terminável e interminável” (FREUD,1937c/1975, op. cit.), nos detivemos nos perigos da passividade – neste momento, menos enlaçados à mulher do que à emergência de “moções homossexuais” existentes em estado de latência. Sob a ótica desse texto, tornou-se mais nítida a questão dos perigos emanados do feminino no homem. Na continuidade de nossa pesquisa, fundamentados na passividade inicial da criança frente à sexualidade do adulto, nossos argumentos nos levaram às origens femininas da sexualidade. Ao associar-nos a essa vertente teórica, focalizamos a questão da identificação feminina primária, tanto para os homens como para as mulheres. A partir da premissa de que a criança é “feminina” em seu princípio, e não “masculina” – como afirma Freud – seguimos uma direção que focaliza a masculinidade como uma formação de reação à feminilidade e à identificação feminina primária. Dando prosseguimento a nossas questões, neste quarto e último capítulo, trataremos do tema da constituição psicossexual masculina reportando-nos à vertente intersubjetiva que sustenta a transmissão do masculino e do feminino através das gerações. Dentro desse objetivo, estaremos trabalhando tanto conceitos que se relacionam à ordem da “produção de subjetividade” como aqueles que pertencem à ordem da “constituição do psiquismo”, seguindo uma divisão operacional proposta por Silvia Bleichmar (2006, op. cit.). Nossa intenção é discutir a masculinidade sob o viés de uma análise que toma em consideração a noção de gênero. Com este objetivo, trataremos do conceito freudiano de identificação primária – o que nos levará a focalizar as heranças identificatórias que dão forma à masculinidade. Através desta discussão, pretendemos assinalar modos de compreensão da agressividade masculina pautados, mais precisamente, em “prescrições” identificatórias
132 veiculadas desde o nascimento da criança e que situam a agressividade e a dominação como características da virilidade. Isto quer dizer que estaremos nos reportando a uma perspectiva que acentua o fato de que a masculinidade não é produto de uma evolução endógena, ou seja, que não é um fenômeno “natural” sustentado apenas pela posse do membro viril. Da mesma maneira, entendemos que a sexualidade masculina não se articula como decorrência espontânea do fato de que o objeto primordial, sendo uma mulher, levará o menino, naturalmente, a uma escolha de objeto do mesmo sexo que a mãe. Para prosseguir com este percurso, nos reportaremos, neste momento, à noção de gênero que se revela mais um argumento teórico, entre os já considerados, que pode iluminar a questão da agressividade e da dominação masculina.
IV.1 – Subjetividade e cultura: A dimensão de “gênero” A noção de gênero implica que, para compreender a operação simbólica que estabelece as diferenças entre homens e mulheres, não é possível desconsiderar a existência prévia da feminilidade e da masculinidade cultural. Isto significa dizer que a denominação gênero é empregada com o objetivo de realçar a inserção do masculino e do feminino no território do social. Agrega-se a isso a constatação de que sua inscrição psíquica ocorre anteriormente ao reconhecimento das diferenças anatômicas sendo, por sua anterioridade, independente desse reconhecimento. Os estudos de gênero tendem ainda a considerar que as fantasias calcadas nas diferenças anatômicas não fornecem explicações suficientes para os desdobramentos hierárquicos observados entre os universos masculino e feminino, como veremos através das distintas compreensões da inserção do termo “gênero” em psicanálise. O conceito de gênero foi introduzido no campo da psicanálise por Stoller (1968) para acentuar a idéia de que o comportamento psicossexual deriva menos do sexo biológico e mais das experiências vividas pela criança desde o nascimento – a começar pela designação do sexo enunciada pelo adulto. Para este autor, a esta crença inicial dos pais de que a criança que criam é um menino ou uma menina, se acrescenta um desenvolvimento mais sutil e delicado que compreende a maneira pela qual os pais desejam que a criança expresse a sua masculinidade ou feminilidade, ou seja, como a criança deve conduzir-se
133 para corresponder aos ideais de feminilidade ou masculinidade dos pais e da cultura na qual estes se encontram inseridos. Para Stoller, a aquisição da identidade nuclear de gênero passa pela relação com a mãe, e se estabelece num momento anterior à descoberta da diferença anatômica entre os sexos. Entre a mãe e a criança existe um “estado simbiótico” que leva a criança a receber passivamente a feminilidade, sendo esta a matriz de uma “identificação feminina primária”, tanto nos meninos como nas meninas. E. D. Bleichmar (1997) assinala que a rotulação sexual do recém-nascido, realizada por médicos e pessoas da família, se converte no primeiro critério de identificação de um sujeito e determina o núcleo de sua identidade de gênero. A partir desse momento de identificação da criança como macho ou fêmea, os pais e todas as pessoas próximas a essa criança tomarão esse dado como referência, e passarão a ser os emissores de um discurso cultural que refletirá os estereótipos da masculinidade/feminilidade. A autora aponta que não se discute que as diferenças anatômicas contribuem para a divisão entre masculino e feminino, mas sinaliza que o dado anatômico é uma referência que adquire significado em um momento posterior à inscrição das diferenças genéricas. Motivados pelo feminismo, os primeiros estudos psicanalíticos de gênero se direcionaram a indagar preferencialmente sobre o feminino e a feminilidade, trazendo à discussão certos encaminhamentos das teorias freudianas sobre a mulher que davam margem a leituras estigmatizadas da constituição psíquica feminina. O que foi acentuado desde então, e que persiste até a atualidade como tema de investigação, foi a assimetria que se observa entre os gêneros no contexto das sociedades patriarcais. Entre os autores que colocam a problemática de gênero em discussão, N. Chodorow (1990) chama atenção para as implicações, para homens e mulheres, do fato de que os cuidados das crianças sejam exercidos principalmente por mulheres. A autora entende que a divisão sexual do trabalho, e a atribuição do cuidado infantil às mulheres, estão conectadas – e promovem a sustentação da predominância masculina no espaço público. Para esta autora (CHODOROW,1994) o gênero é uma construção social e pessoal; o sentido de gênero de cada pessoa é uma criação individual que, ao mesmo tempo, não pode ser vista à margem da cultura. Segundo ela, o feminismo não considerou devidamente o terreno do significado pessoal e emocional, e subordinou a questão das diferenças entre o masculino e o feminino ao reino da linguagem e do poder, descuidando de que, como mostra a
134 psicanálise, as pessoas se apropriam de significados culturais e imagens, mas os experienciam emocionalmente e através da fantasia. Jacqueline Schaeffer (2005) critica a tendência, observada nesses estudos, a falar de identidade de gênero. Segundo esta autora, os que adotam tal posição tendem a negligenciar o sexo biológico como uma variável secundária em proveito de uma construção, de uma escolha de gênero, tendendo a situar esta questão fora do conflito intrapsíquico. Este problema é objeto das considerações de Judith Butler (2002). Esta autora aponta que o caráter de construção do sexo e da sexualidade foi invocado pelos estudos de gênero, para fazer frente à idéia de que a sexualidade tem uma configuração e um desenvolvimento naturais. Em Problemas de gênero (2003), Butler desenvolve uma concepção do masculino e do feminino como construções sociais e culturais complexas. Retomando, por um viés foucaultiano, a genealogia enunciada por Nietzsche, procede a uma indagação sistemática da construção dos gêneros e das identidades, tomando como articuladores principais o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória. Por este viés, denuncia o investimento político que se insere nos processos de construções identitárias. Em Corpos que importam (2002, op. cit.), Butler coloca em questão o sexo como dado que inaugura a inscrição de todo ser humano na cultura. A autora pergunta se o sexo é algo referido à biologia ou se pode ser entendido como uma produção cultural que tem como conseqüência a fixação de limites de atuação, assim como a determinação de um valor para os corpos marcados pela sexuação. No entanto, a autora critica algumas limitações do discurso da desnaturalização, propondo sair da oposição entre construtivismo e essencialismo para passar ao problema mais complexo de como as restrições constitutivas podem delinear-se como limites simbólicos à indocilidade e desconformidade da sexualidade. Dentro desse objetivo, aponta que “há uma tendência a pensar que a sexualidade é algo ou construído ou determinado, sendo que, se é construída é, em algum sentido livre, ou, se é determinada é, em algum sentido, fixa” (Id., ibid., p. 144). Ela esclarece que é um erro associar o construtivismo com a liberdade de um sujeito para formar e exercer sua sexualidade de qualquer maneira, porque sexualidade não é algo que se possa fazer e desfazer sumariamente. Assinala, ainda, que essas oposições “não descrevem a complexidade do que está em jogo em qualquer esforço para compreender as condições nas quais se assume o sexo e a sexualidade” (loc. cit.). No
135 âmbito individual, este processo se inicia através da interpelação médica, que faz passar o bebê à categoria de menino ou menina através de uma denominação que o introduz no território da linguagem como ser sexuado. Vemos, assim, que a noção de gênero remete a um conjunto de atitudes e crenças relativas ao masculino e ao feminino, adotadas pelos núcleos humanos, e que se mostram dependentes de variações históricas e sociais. Essas atitudes e crenças são transmitidas à criança pelos adultos que assumem o encargo de seus cuidados. A temática que pretendemos discutir, tomando em consideração essa noção, consiste, principalmente, no que se pode inferir sobre a constituição psicossexual masculina a partir da constatação de que existe, por parte da criança, o reconhecimento de uma distinção entre os gêneros – que é anterior ao conhecimento das diferenças anatômicas entre os sexos. Dentro dessa perspectiva, como mostra Silvia Bleichmar, as categorias masculino/feminino são “anteriores à descoberta da diferença anatômica e coexistem de modo paralelo à sexualidade pulsional dos primeiros tempos da vida” (BLEICHMAR, 2006, op. cit., p. 77). Por essa razão, em seus primeiros anos de vida, uma criança pode considerar que é um varão “a partir do que o próprio Freud denominou como diversidade, ou seja, por certos atributos que a cultura põe em jogo”, como, por exemplo, o corte do cabelo ou as vestimentas (loc. cit.). Cabe a Jean Laplanche o mérito de haver destacado que a dimensão de “gênero” – ainda que não enunciada nestes termos – não esteve ausente das considerações freudianas. Conforme este autor, em “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925j), Freud admite a existência de “uma espécie de reconhecimento ‘précastrativo’ ou ‘pré-edipiano’, de uma distinção entre homem e mulher, entre pai e mãe” (LAPLANCHE, 1988a, op. cit., p. 25). Este reconhecimento indica, por parte da criança, a assimilação de distinções pautadas em referências outras que não a diferença anatômica entre os sexos. São essas distinções que permitem que a criança se localize e se enquadre, desde muito cedo, do lado dos meninos ou das meninas. Laplanche pontua que Freud reconhece “evidentemente, de um modo muito passageiro” que “existe, numa etapa précastrativa, o reconhecimento de uma distinção dos gêneros, precedendo a diferença dos sexos” (Id., ibid., p. 26). Ou seja, podemos depreender que existem, na obra freudiana,
136 referências a “uma diferença de gêneros (uma diferença entre masculino e feminino) admitida sem ser teorizada, anterior à diferença dos sexos” (Id., ibid., p. 156). Laplanche coloca em consideração, contudo, se a adoção da noção de gênero representa uma evolução para o pensamento psicanalítico. Para acompanhar em que medida essa resposta pode ser afirmativa, seguiremos algumas propostas do autor presentes, principalmente, no texto “Le genre, le sexe, le sexual” (LAPLANCHE, 2003). A discussão que será aberta por este texto, situa a designação do sexo como ato que inaugura a inserção da criança no social.
IV.2 – A designação do sexo e a identificação O texto “Le genre, le sexe, le sexual” principia com uma análise desses três termos. Para Laplanche, o gênero é plural e social, “como indica a história das línguas e a evolução social”. O sexo é dual, “por conta da reprodução sexuada, e também por conta da simbolização humana que fixa e ‘petrifica’ a dualidade em: presença/ausência, fálico/castrado”. Já o sexual, descoberta fundamental de Freud e verdadeiro objeto da psicanálise, “é múltiplo, polimórfico”. “Ele encontra seu fundamento no recalcamento, no inconsciente, na fantasia” (LAPLANCHE, 2003, op. cit., p. 69 – tradução nossa). A partir desses enunciados, o autor discute a noção de “identidade nuclear de gênero”, de autoria de Robert Stoller (1968, op. cit.). Mesmo registrando essa discussão, não nos deteremos, no entanto, nos pontos de discordância entre os autores, mas sim no aspecto que é resgatado por Laplanche das propostas de Stoller. A noção que Laplanche aceita e desenvolve é a de “designação do sexo” – que se inicia com a declaração, efetuada por um outro – geralmente o médico – sobre o sexo da criança. Esta “designação” integra, além do sexo da criança, dados como o nome, a paternidade, etc. O aspecto realçado por Laplanche, relativamente a este ato inaugural de inserção da criança no social, é que esta ação provém do outro adulto. A designação “sublinha o primado do outro no processo” (LAPLANCHE, 2003, op. cit., p 81). Laplanche destaca o fato de que a designação não se limita a um único momento nem consiste num único ato. A designação “é um conjunto complexo de atos” que não se
137 limitam ao momento do nascimento e do registro da criança. Este conjunto de atos “se prolonga na linguagem e nos comportamentos significativos do entorno”. Para o autor, trata-se de uma verdadeira “prescrição”, um “bombardeamento de mensagens prescritivas” que identificam a criança como tal ou qual (Id., ibid., p. 81 – tradução nossa). Outro ponto destacado pelo autor é que os atos que configuram a designação do sexo/gênero da criança, não provêm diretamente do social, mas sim do pequeno grupo próximo à criança. As mensagens que configuram a designação do sexo estão pautadas no sócio-cultural geral, mas aquilo que se inscreve na criança advém desse pequeno grupo próximo, ou seja, a mãe, o pai, e pessoas do entorno. Tendo como suporte sua teoria da sedução generalizada, que toma como ponto de partida a idéia de “mensagem” do outro, o autor mostra que estas consistem num “código”, ou seja, numa “linguagem de base, que é uma linguagem pré-consciente-consciente – sendo que o inconsciente parental é como o ‘ruído’ – no sentido da teoria da comunicação – que vem perturbar e comprometer a mensagem pré-consciente-consciente” (Id., ibid., p. 83). Ao enfatizar a precedência da designação, ou seja, a anterioridade da “identificação por”, Laplanche admite a precedência do gênero sobre o sexo. O aspecto com o qual o autor não concorda, relativamente à posição de Stoller, é que o gênero organize o sexo. Para Laplanche “o gênero precede o sexo. Mas, longe de organizá-lo, ele é organizado por este” (Id., ibid., p. 82). Segundo Laplanche o gênero é fixado em torno dos quinze meses, mas “o sexo virá fixar, virá traduzir o gênero no curso do segundo ano” (Id., ibid., p. 83), sendo que o complexo de castração se encontra no centro dessa problemática apresentada à criança. “A questão da diferença dos sexos dificilmente pode não se engajar no complexo de castração” (Id., ibid., p 85). As considerações do autor nos levam à formulação da assunção da identidade sexuada como um processo que se inicia pela designação do sexo, que situa a criança, primeiramente, no contexto das distinções genéricas. Esta primeira forma de organização das diferenças entre o masculino e o feminino adquirirá uma nova significação a partir do reconhecimento das diferenças anatômicas entre os sexos. Neste momento, a problemática da orientação do desejo começará a se apresentar à criança, inserindo-se esta problemática entre os fundamentos das distinções entre homens e mulheres. Assinalamos, porém, que não é a orientação do desejo o que fundamentará a assunção da identidade sexuada, uma
138 vez que o indivíduo pode perceber-se como em harmonia identitária relativamente ao seu sexo anatômico e às prescrições genéricas – mesmo quando seu desejo se oriente para pessoas do mesmo sexo. Em outras palavras, tomando-se o caso de homens homoeroticamente orientados – para utilizar a expressão introduzida por Ferenczi (1911) – esta orientação sexual não incide necessariamente sobre os referenciais identificatórios que sustentam sua inserção na categoria “homem”. A partir deste ponto, introduzimos certos enunciados de autoria de André Green (2005) que se revelam esclarecedores para a questão das implicações da precedência do gênero sobre o sexo. Este autor, ao tratar da questão do que é propriamente cultural na “cria” humana, assinala que: Uma vez instaurada a primeira relação de uma criança com seu progenitor – ou com quem o cuide – toda cultura que porta ”o criador” marca, a partir de então, a relação entre a criança e o adulto. Os costumes modelam a natureza e, ao fazê-lo, lhe conferem o rosto que terá a partir daí, antes que intervenha especificamente a mínima concepção etiquetada de cultural. Isto não apenas é insistir na importância dos fatores culturais, se não se ocupar de entender o papel estruturante e organizador daquilo que eu chamo o outro semelhante, denominação que alcança seu pleno sentido inclusive antes que, ainda que vagamente, seja apreendida a diferença de sexos (GREEN, 2005, p. 107 – o grifo é nosso).
Através dessa passagem, vemos que o autor se pauta pelos mesmos referenciais trabalhados por Laplanche, ou seja, o predomínio do outro próximo e a anterioridade das prescrições de gênero relativamente ao momento de percepção das diferenças anatômicas entre os sexos. Green prossegue mostrando que a família, por sua vez, deve ser compreendida dentro do grupo social do qual é parte integrante, fator que localiza a constituição subjetiva na experiência cultural. A família pode ser considerada como sociedade originária ou como matriz simbólica; as problemáticas individuais e grupais são nela indissociáveis. Desde esse tronco comum que ela mesma constitui, os fatores de causalidade sócio-antropológica se diversificarão até adquirirem novas potencialidades (Id., ibid., p. 108).
A criança recém-nascida – mergulhada no universo adulto – será marcada pelas atribuições advindas do outro, e as distinções que seja capaz de fazer, de início, sobre o masculino ou o feminino serão aquelas primeiramente conotadas por marcas sociais. A partir dessa perspectiva – e retomando uma expressão de Laplanche – podemos entender que a criança é invadida, “bombardeada” por mensagens identificatórias relativas ao feminino e ao masculino, desde o seu nascimento.
139 Retomando as proposições de Green, vemos que o autor assinala, ainda, que em função do predomínio feminino nos cuidados com a criança, se pode supor “que a psicossexualidade de um indivíduo é dominada pela fantasia da mãe” (Id., ibid., p. 226). No prosseguimento de sua análise sobre a atribuição de um sexo à criança, André Green considera que essa atribuição “age segundo o modo de uma impressão psíquica” (GREEN, 1988, op. cit., p. 225). O autor adverte, contudo, que a direção dessa “impressão” é oposta à que se insere no sentido usual do termo, ou seja, é o outro que “imprime”. Green indica, ainda, que essa atribuição depende estreitamente do desejo dos pais. “Essa impressão constitui-se na seqüência da percepção do corpo da criança como forma sexuada, a ser confirmada ou infirmada, nesta forma, pelos pais”. Disso decorre que “deve-se, portanto, atribuir à fantasia parental um papel de potente indutor no estabelecimento da monossexualidade individual” (loc. cit.). Ou seja, tomando-se a questão da designação do sexo da criança, não é possível desconsiderar a dimensão da fantasia e desejo parentais que, em certos casos, pode orientarse contra o que foi designado como o sexo da criança. Neste sentido, é relevante mencionar alguns exemplos trazidos pelo autor. Entre outros, Green pontua a possibilidade de ocorrência de uma “valorização inconsciente do sexo que a criança não tem” (Id., ibid., p. 226), aspecto que pode comprometer o processo de assunção da identidade sexuada em coerência ao sexo biológico. Neste caso, estaríamos defrontados, entre outros, com o problema das origens dos casos de transexualidade, ou seja, daqueles indivíduos que não se reconhecem como pertencendo à categoria determinada em função do sexo anatômico. A transexualidade, que se localiza entre os transtornos mais iniciais da constituição da identidade sexual, se caracteriza pela crença do indivíduo de ter vindo ao mundo com o corpo errado (cf. Stoller, 1968, op. cit.; Bleichmar, 2006, op. cit.). Entre os exemplos de como o desejo dos pais incide sobre o estabelecimento da identidade sexuada da criança, Green menciona, ainda, a possibilidade de que seja veiculada uma “intolerância mais ou menos total à bissexualidade psíquica do indivíduo por repressão e culpabilização das atitudes e tendências que não pertencem ao sexo biológico da criança” (GREEN, 1988, op. cit, p. 226). Este último exemplo fala de uma rigidez, de uma fixidez das concepções dos pais relativas às características genéricas. Essa observação do autor se revela valiosa aos propósitos de nossa pesquisa, pois permite que nos
140 reportemos ao fenômeno popularmente designado “machismo” – que se caracteriza pela desqualificação do sexo feminino – denunciando falhas da integração psíquica da bissexualidade. Este fenômeno, que toma forma no desprezo e na agressividade contra a mulher, será trabalhado nos momentos finais desta tese, a partir de observações de Jean Cournut (2002, op. cit.). Neste segmento, nossa intenção foi realçar um aspecto da problemática da identificação: a vertente que enfatiza o predomínio daquilo que advém do outro, ou seja, a que põe acento nas mensagens identificatórias que invadem a criança. Nesse sentido, Laplanche mostra que a idéia de designação (ou de “identificação como”) muda completamente o vetor da identificação (LAPLANCHE, 2003, op. cit., p. 81). A partir do que foi exposto, tomaremos as proposições do autor para nos aproximar, sob este enfoque, do conceito freudiano de identificação primária. Essa proposta nos envia aos distintos significados que permeiam o conceito de identificação em psicanálise. Para adentrar este tema, focalizaremos, mais de perto, o conceito de identificação. Nosso objetivo, neste próximo segmento, será colocar em discussão o conceito freudiano de identificação primária sob o prisma da “designação do sexo”, ou da “identificação por”.
IV.3 – Identificar-se ou ser identificado: a identificação primária Para formular sua definição do termo identificação, na forma como seu emprego se desenvolveu dentro do pensamento psicanalítico, Laplanche e Pontalis (1967/1983, op. cit.) recorrem ao Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, de Lalande. Neste vocabulário, são encontradas distintas acepções do termo identificação. O primeiro sentido, transitivo direto, se refere à ação de identificar, de reconhecer como idêntico; ou seja, é quando se reconhece um objeto como pertencente a uma certa categoria, ou ainda, quando uma categoria de fatos ou objetos é assimilada a outra. Em outro sentido, reflexivo, temos, o identificar-se como um ato pelo qual um indivíduo se torna idêntico a outro, ou um ato pelo qual dois seres se tornam idênticos (em pensamento ou de fato, totalmente ou parcialmente). Constata-se que ambas as formas são encontradas em Freud. A forma transitiva foi utilizada especialmente em referência ao trabalho do sonho, onde encontramos a
141 substituição de uma imagem por outra, por uma relação de semelhança. Mas o sentido mais largamente utilizado por este autor, em toda sua obra, foi o reflexivo: o identificar-se, percebido a partir da clínica da histeria. Para estabelecer conexões entre o que foi enunciado no segmento anterior deste capítulo e as questões que se abrem sob estas vertentes da identificação, nos voltaremos para o texto freudiano onde é apresentado o conceito de identificação primária. A seguir, tomaremos a noção de designação de sexo como um momento inicial em que a criança é identificada por outros como macho ou fêmea, visando iluminar em que medida tal noção pode abrir vias de compreensão para a proposição freudiana da identificação primária ao pai. O conceito de identificação primária é introduzido, na obra freudiana, no texto “Psicologia de grupo e análise do ego”, publicado em 1921, sendo posteriormente discutido em “O Ego e o id”, de 1923. Em 1921, Freud apresenta a identificação primária como o modo primitivo de constituição do indivíduo, situando essa identificação na ordem dos vínculos que dão conta das relações da criança com seus pais na pré-história do complexo de Édipo. A forma como este conceito é formulado merece, no entanto, certas considerações9. A identificação primária é apresentada como um fenômeno psíquico relativo aos modos de constituição do indivíduo que não é secundário a uma relação erótica. É um processo que fala de um momento no qual o objeto não seria, ainda, reconhecido como objeto total. A identificação primária remete, assim, a momentos da vida infantil, anteriores à constituição egóica e ao Édipo. Como a forma mais originária de laço com um objeto, a identificação primária aponta para momentos da fase oral primitiva onde, segundo Freud, os investimentos de objeto e a identificação não se distinguem um do outro. Conforme Laplanche e Pontalis (1967/1983, op. cit.), a identificação primária é situada em um momento em que o objeto não estaria situado como independente do sujeito, ou seja, num momento anterior ao advento do eu, sendo “estreitamente correlativa da chamada relação de incorporação oral”. “A identificação primária opõe-se às identificações secundárias que se lhe vêm sobrepor, não apenas na medida em que ela é a primeira cronologicamente, mas 9
Os capítulos 2 e 3 do livro de Paulo de Carvalho Ribeiro, “O problema da identificação em Freud” (2000) constituíram uma referência importante na elaboração desta parte deste capítulo.
142 também em que não se teria estabelecido consecutivamente a uma relação de objeto propriamente dita” (Id., ibid., p. 301). É digno de nota que Freud postulou que na fase oral primitiva a identificação e o investimento de objeto se mostravam indistinguíveis. Chama atenção, também, que essa modalidade de laço com outra pessoa, uma vez que se localiza numa fase anterior à diferenciação ego/não-ego, foi descrita principalmente como primeira relação com a mãe. Em “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921c), Freud se reporta principalmente à questão da identificação primária no menino. Avaliando o desenvolvimento do menino, Freud postula que este “mostrará interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele e tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma o pai como seu ideal”. Freud acentua porém, que este comportamento “nada tem a ver com uma atitude passiva ou feminina em relação ao pai”, configurando uma atitude “tipicamente masculina”. Tal atitude “combina-se muito bem com o complexo de Édipo, cujo caminho ajuda a preparar” (FREUD, 1921c/1976, op. cit., p. 133). Ou seja, o que se depreende deste enunciado é que se trata de um momento que antecede o complexo de Édipo, anterior ao reconhecimento da diferença sexual. A questão que se coloca, a partir desta passagem da obra freudiana, é: a que aponta esta atitude ”tipicamente masculina” – ou seja, a qual aspecto da masculinidade se refere? O que orienta este interesse especial pelo pai que leva o menino, num momento anterior ao reconhecimento da diferença sexual, a tomá-lo como seu ideal? Importa assinalar que esta afirmativa emerge no interior de um artigo cuja finalidade é compreender a relação do indivíduo com o líder, sendo que Freud estabelece comparações entre a idealização que predomina na relação de submissão ao líder, e o processo de identificação das crianças com os pais como adultos poderosos. Se considerarmos o tempo histórico no qual foi concebida esta proposição, um aspecto que toma realce é que, no âmbito das sociedades patriarcais, o pai emerge como figura poderosa, tanto no contexto familiar, onde se situa como chefe ou “cabeça do casal”, como no contexto social mais amplo. Os textos que se voltam para a preeminência do poder paterno no que diz respeito ao processo civilizador, mostram que o patriarcado está pautado pela idéia de hierarquia; ou seja, de uma hierarquia que coloca o pai no lugar do poder. Conforme nos mostra Green,
143 esta posição é coerente com o momento histórico vivenciado por Freud, sendo que para este último: A cultura implica o reconhecimento da referência ao patriarcado; os valores paternos são civilizadores, os valores maternos contra a civilização e para a família. O pai é aquela pessoa graças à qual, educados em família, podemos sair para tomar parte na construção da sociedade. Pois foi a sociedade que permitiu a preeminência do patriarcado. (...) O homem deve receber, por parte da mulher, o respeito e o reconhecimento da sua autoridade. O superego coletivo é masculino, assim como a essência da libido (GREEN, 1994, p. 60).
Esta referência ao momento histórico vivenciado por Freud, permite pensar que a afirmativa de que o menino toma o pai como ideal, está referida ao sentido sociológico que permeia as diferenças entre masculino e feminino. O problema que se levanta a esta hipótese consiste, no entanto, em que todas estas considerações diriam respeito às identificações secundárias do menino, e não a uma identificação primária. Na formulação freudiana é afirmado, contudo, que a identificação do menino com o pai ocorre num momento anterior ao reconhecimento das diferenças anatômicas entre os sexos e, ainda, sem o investimento objetal anterior, ou seja, que esta identificação não se relaciona a um amor perdido ou proibido do filho pelo pai. Considerando-se a concepção freudiana da masculinidade inicial da criança, acrescida, agora, da identificação primária ao pai, para dar conta dos “percalços” que desembocam na homossexualidade, Freud declara que a história subseqüente dessa identificação imediata e primária com o pai pode, porém, dissipar-se, diluir-se, perder-se de vista no momento edípico. Pode acontecer que o complexo de Édipo se inverta e que o pai seja tomado como objeto de uma atitude feminina, objeto no qual os instintos diretamente sexuais buscam satisfação; neste caso a identificação com o pai torna-se a precursora de uma vinculação de objeto com ele (FREUD, 1921c/1976, p. 134. O grifo é nosso).
Ou seja, o que se pode depreender do enunciado, é que Freud propõe que exista, no menino, uma identificação primária com o pai que, apenas posteriormente (no momento edípico), poderá “transfigurar-se” em um investimento libidinal no pai – isto, evidentemente, em casos de homossexualidade. O aspecto que desejamos salientar é que esta passagem coloca em evidência problemas que se referem às relações entre identificação e amor objetal, sendo que Freud se encaminha no sentido de uma distinção entre estes dois processos na origem do sujeito psíquico. Em sua introdução ao tema da identificação – efetuada no final do capítulo VI do
144 texto de 1921 – Freud propõe a existência de “outros mecanismos para os laços emocionais”, e enuncia a identificação como um mecanismo que se distingue desses “laços com objetos feitos pelos instintos amorosos que ainda perseguem objetivos diretamente sexuais” (Id., ibid., p. 131).
Na abertura do capítulo VII Freud define, contudo, a
identificação como “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (Id., ibid., p. 133). Esta afirmativa nos coloca, então, diante da problemática distinção entre um investimento propriamente sexual – o amor objetal – e outro “emocional”, mas não sexual – a identificação. E isto ocorre depois de Freud haver afirmado, em páginas anteriores, que a psicanálise toma o “amor” neste sentido mais amplo, “em sua origem, função e relação com o amor sexual” (Id., ibid., p. 116). Quando insiste em não misturar a identificação do menino ao pai com um laço libidinal de objeto, estaria Freud falando de uma forma de ligação afetiva – emocional – totalmente destituída de componentes sexuais, ou apenas pensando em uma inibição do objetivo sexual da pulsão? E, se assim fosse, ficaria ainda a questão acerca do que levaria o menino a operar uma distinção entre a mãe e o pai de forma a querer “ser” como o pai em um momento anterior ao reconhecimento das diferenças anatômicas entre os sexos, ou seja, anterior ao conflito edípico? Nesse sentido se orientam certas considerações de Judith Butler. A autora sustenta a idéia de que os indivíduos se constituem por múltiplas identificações, sendo que uma posição identitária não exclui o desejo pelo mesmo objeto. “Identificar-se não é opor-se ao desejo. A identificação é uma trajetória fantasmática e uma resolução do desejo ... mas este continua sendo desejo, ainda que apenas em sua forma repudiada” (BUTLER, 2002, op. cit., p. 152). Ainda nessa mesma direção, cabe perguntar como se coloca a questão da identificação primária ao pai, destituída de investimento sexual, tendo-se em conta a proposta freudiana da bissexualidade originária da criança. Jacqueline Schaeffer aponta para essa questão. Tomando a noção de bissexualidade, esta autora observa que “a bissexualidade psíquica cumpre um papel organizador no nível das identificações, especialmente das identificações cruzadas do conflito edipiano...” (SCHAEFFER, 2005, p. 103 – a tradução é nossa). Para esta autora, as identificações cruzadas, no caso do homem, sustentam a angústia homossexual de ser penetrado, ou seja, colocam, na esfera da relação
145 sexual genital, defesas pré-genitais contra a angústia de penetração. Esta angústia, no âmbito das identificações cruzadas, aponta para a luta contra o desejo homossexual de ser penetrado pelo pai. Ou seja, a proposta da bissexualidade psíquica primária, além de colocar em questão a identificação no momento edípico, aponta problemas na afirmativa freudiana de uma identificação primária do menino ao pai, descomprometida de investimentos libidinais. Com a postulação de um conjunto de disposições bissexuais da libido, não haveria razão para negar o investimento sexual original do filho no pai, mas Freud implicitamente mantém essa posição. A afirmativa do investimento primário na mãe é mantida, e a bissexualidade se assenta no comportamento masculino e feminino através do qual o menino tenta seduzir a mãe – sem que o pai libidinal encontre qualquer espaço nessa formulação, e sem que a hipótese de identificação da criança à mãe seja devidamente considerada. Em “O ego e o Id”, tendo em conta a ambivalência do menino em relação ao pai, Freud observa que a ambivalência parece ser “inerente à identificação desde o início”, tornando-se manifesta no momento edípico. Ao considerar a “bissexualidade constitucional de cada indivíduo” afirma, ainda, que “em ambos os sexos a força relativa das disposições sexuais, masculina e feminina, é o que determina se o desfecho da situação edipiana será uma identificação com o pai ou com a mãe” (FREUD, 1923b/1976, op. cit., p. 47). Quando buscamos, porém, um esclarecimento sobre essas “disposições masculinas ou femininas”, verificamos que o próprio Freud não é claro a respeito. Ao falar do Édipo invertido nas meninas, atribui este desfecho à “masculinidade em sua disposição”, acrescentando logo a seguir a observação: “seja o que for em que isto possa consistir” (loc. cit), o que nos defronta com a indagação acerca do que seriam estas predisposições que o próprio Freud não alcança formular – assim como nos permite perguntar de que forma o conflito edipiano poderia reforçar ou dissolver essas predisposições. Segundo Paulo de Carvalho Ribeiro, na proposição da identificação primária ao pai como anterior a qualquer vinculação libidinal, “o que salta aos olhos é que a necessidade de dotar o menino com uma identificação masculina sem nenhuma ‘contaminação’ pela feminilidade comanda o raciocínio de Freud” (RIBEIRO, 2000, op. cit., p. 55). O aspecto que Ribeiro põe em questão, e que já tratamos em momentos anteriores desta tese, remete ao fenômeno do “recalcamento da identificação feminina primária”, que perpassa a obra de
146 Freud. A partir dessa perspectiva, amplamente discutida e aprofundada por Ribeiro, a proposta da identificação primária ao pai revela-se prejudicada por contradições teóricas intrínsecas. Vejamos, no entanto, sob quais perspectivas essa noção pode mostrar-se fecunda para a compreensão dos problemas que afetam o sexo masculino.
IV.4 – A identificação primitiva ao pai da pré-história pessoal sob a ótica das atribuições de gênero Para sustentar esta discussão, traremos à consideração, como primeiro ponto, a dimensão ativa ou passiva constitutiva do conceito de identificação, já mencionada neste trabalho.
Neste momento, seguiremos essa questão através das contribuições de Jean
Laplanche (1988, op. cit.; 1996, op. cit.; 2003) e de Paulo Ribeiro (2000, op. cit.). Os dois autores apontam como problemático o fato de que a identificação seja tomada prioritariamente sob o viés de um processo ativo calcado naquele que se identifica, ficando a dimensão passiva relegada a um plano secundário, ou completamente desconsiderada. Laplanche mostra que “Projetar, introjetar, identificar-se, renegar, forcluir, etc., todos estes verbos, com os quais funciona a teoria analítica para descrever os processos psíquicos, se caracterizam por ter em comum o individuo em questão: eu projeto, eu renego, eu recalco, etc.” Tendo como referência a teoria da sedução generalizada, o enfatizado pelo autor é, exatamente, o aspecto desconsiderado desta questão: a passividade inicial da criança. “Os processos nos quais o indivíduo manifesta sua atividade [e a identificação é um deles] são todos secundários frente ao tempo originário", que é “aquele de uma passividade: a da sedução” (LAPLANCHE, 1996, op. cit., p. 105). Neste mesmo sentido, Ribeiro mostra que uma das incoerências que atravessam o conceito de identificação, é a necessidade de que haja um eu constituído para que o processo ativo do identificar-se tenha lugar, como vemos na seguinte passagem: (...) se a identificação é correspondentemente vista como um processo ativo, em que uma instância psíquica dotada de iniciativa “se identifica” a alguma coisa, e se essa instância, justamente por sugerir uma intencionalidade, é invariavelmente assimilada a um agente muito próximo, ou plenamente superposto ao eu, como poderíamos atribuir a ela um papel central na constituição do próprio eu? (RIBEIRO, 2000, op. cit., p. 201).
147 O identificar-se ativo da criança será, então, um processo que diz respeito à divisão do aparelho psíquico em instâncias e secundário à sua “identificação” pelo adulto. É essa primeira identificação, proveniente do outro, que pode ser vista, do lado da criança, evidentemente, como descomprometida de laços libidinais – como propõe Freud em 1921. O fenômeno descrito não consiste em um identificar-se mas, sim, em um ser identificada como antes mesmo do primeiro contato extra-uterino com a mãe. É através desta idéia de designação, de “identificação como” que, segundo Jean Laplanche, podemos aproximarnos da noção freudiana de identificação primitiva ao pai da pré-história pessoal. O autor utiliza essa perspectiva para oferecer um significado distinto à “bela” fórmula freudiana da “identificação primitiva ao pai da pré-história pessoal”. Vejamos, porém, as palavras do autor: “Eu coloco simplesmente a questão, ou melhor, eu proponho esta: não será, mais que uma ‘identificação a’, uma ‘identificação por’? Em outros termos, eu direi: ‘identificação primitiva pelo social da pré-história pessoal’” (LAPLANCHE , 2003, op. cit., p. 82). Neste mesmo sentido se orientam as considerações de Paulo Ribeiro que, ao tratar da questão do recalcamento da identificação feminina primária dentro de sua análise do texto “Psicologia de grupo e análise do ego” – trabalha no sentido de desfazer a distinção entre identificação e investimento de objeto – distinção proposta por Freud relativamente à identificação primária ao pai. Os argumentos do autor são consistentes ao mostrar que se revelaria improvável falar de identificação – neste caso, identificar-se, e não ser identificado como – sem qualquer investimento libidinal. Mas o ponto que realçamos, neste momento, das observações do autor refere-se ao papel que cumpre, dentro da obra freudiana, a “identificação primária ao pai da pré-história pessoal” relativamente à constituição psíquica masculina, como vemos nesta passagem. O recurso ao pai primevo demiúrgico é, do nosso ponto de vista, apenas mais um produto oriundo do recalcamento da identificação feminina primária na obra de Freud. A inevitabilidade dessa identificação, sua intensidade e sua relação com a passividade pulsional impõem a criação de salvaguardas destinadas, em última instância, a preservar a organização do eu. Para afastar essa ameaça, [da identificação feminina primária] nada melhor que assegurar à criança (ao menino principalmente) uma identificação com um pai dignificado e exaltado por seu narcisismo sem objeto, sua força, sua independência e sua vontade inabaláveis. O pai primevo, tal como foi idealizado por Freud, nos parece a imagem em negativo, tanto da Hilflösigkeit originária da criança e da passividade pulsional que a ela se liga, quanto de sua feminilidade originária (RIBEIRO, 2000, op. cit., p. 72).
148 Remetido à hipótese da identificação feminina primária, Ribeiro mostra que o descobrimento da diferença anatômica, associado ao reconhecimento da importância do pai e do falo, coincide com a descoberta de que “o objeto primordial de amor e identificação é do sexo feminino” (Id., ibid., p. 284). O aspecto conflituoso dessa descoberta leva a criança a tentar negar a diferença, sendo a fantasia da mãe fálica uma ilustração desse momento tão difícil para a criança. Para Ribeiro, as fantasias de castração do menino não resultam de ameaças externas, “mas sim do imperativo de negar a diferença e tentar preservar a possibilidade de identificação com a mãe, mesmo que para isso seja preciso abrir mão de uma parte do corpo particularmente importante como fonte de prazer e excitação” (Id., ibid., p. 287). É neste sentido que o autor enuncia um “desejo de castração” presente em todos os meninos, desejo que, para ser contra-investido, necessita não somente das injunções paternas mas também da valorização que a mãe dê ao pênis do pai. Através das palavras de Ribeiro, citadas acima, vemos que o conceito freudiano de identificação primária ao pai pode ser interpretado como assumindo o caráter de “salvaguardas”, de uma “ferramenta”, oferecida pelos pais e/ou pelo social, no sentido de possibilitar à criança um direcionamento contrário a sua feminilidade originária, como um “instrumento”, um referencial identificatório que visa possibilitar a separação entre a criança e a mãe. É dentro dessa perspectiva que o autor entende a formulação de Greenson, mencionada no terceiro capítulo desta tese, de que o menino necessita “valer-se de uma ‘contra-identificação’ com o pai para, assim, promover a ‘desidentificação’ com a mãe, e aceder à masculinidade” (GREENSON, 1968, op. cit., p. 286). O autor pontua que essa “desidentificação” assume um caráter de perda uma vez que compromete essa relação “tão carregada de significações e efeitos narcísicos como é a da criança com a mãe”. “A identificação com o pai, e a possibilidade de compartilhar com ele o poder fálico” (Id., ibid., p. 287) se mostram, assim, sob um viés compensatório para a criança defrontada com a necessária elaboração da perda do “paraíso” materno. Os caminhos de acesso à masculinidade passam, assim, pela “identificação primitiva pelo social da pré-história pessoal”, no sentido proposto por Laplanche, ou seja, passam pela constatação do sexo e pela inserção genérica. No âmbito das sociedades
149 patriarcais, a identidade sexuada oferecida ao menino se mostra, contudo, permeada por posições hierárquicas que situam o masculino no lugar do poder. Para prosseguir com essa temática tendo em conta os caminhos de acesso à masculinidade, nos voltaremos para o texto de Christophe Dejours “L’indifférence des sexes: fiction ou défi?” (2006), onde encontramos uma discussão da questão da assunção da identidade sexuada. O aspecto que realçamos da contribuição de Dejours, é que esta coloca em consideração a questão da dominação masculina.
IV.5 – A questão do gênero e a assunção da identidade sexuada No artigo “L’indifférence des sexes: fiction ou défi ? », Dejours (2006) toma como ponto de partida os enunciados de Stoller (1968) e Laplanche (2003), para expor sua própria concepção de gênero. Dejours entende que “o sexo é uma categoria anatômica” e que o gênero “é uma categoria social que reenvia aos comportamentos e às condutas no social” (DEJOURS, 2006, p. 41 – tradução nossa). Disso se depreende que é “definido socialmente por um conjunto de condutas típicas”, indicando, mais propriamente, “a crença ou o sentimento de pertencer a um dos dois gêneros, macho ou fêmea” (loc. cit.). O gênero se inaugura pela designação do sexo e se estabelece ao fim do primeiro ano, sendo imutável a partir do terceiro ano de vida da criança, ou seja, antes da descoberta da diferença anatômica entre os sexos. Dejours enfatiza, porém, que o primeiro referencial da designação consiste numa constatação. O autor mostra que o sexo é constatado, sendo o gênero aquilo que é propriamente designado; é relativamente ao gênero que se pode falar efetivamente de uma “prescrição” no sentido laplancheano. Dejours entende que Laplanche propõe uma definição psicanalítica de gênero em concordância com a teoria da sexualidade, ou seja, a de que o gênero é o pertencimento reconhecido de um indivíduo humano a uma das duas classes designadas como masculino e feminino. O aspecto central dessa definição recai, assim, sobre o reconhecimento, por parte do próprio indivíduo, de seu pertencimento ao gênero masculino ou feminino – uma vez que o reconhecimento indica a passagem “do gênero designado para o gênero assumido” (Id., ibid., p. 45). O que quer dizer que, entre a designação do gênero e a identidade de gênero, ou seja, entre a “identificação por” e a
150 “identificação”, no sentido do identificar-se, Dejours mostra que Laplanche “interpõe todo o trabalho mental do sujeito” (loc. cit.). Em outros termos, o reconhecimento remete à questão da criança como tradutora da mensagem prescritiva, da forma como esta a interpreta e como, eventualmente, dela se apropria. Neste sentido, o gênero assumido emerge como uma mescla “de social e de sexual inconsciente” (loc. cit). No texto de Dejours, é indicado, ainda, que a prescrição de gênero se mostra infiltrada por ambigüidades, posto que o próprio adulto é incapaz de definir o que é um homem ou uma mulher. Este mesmo aspecto é assinalado por Green (1988, op. cit.), ao atribuir à “fantasia parental” o papel de um “potente indutor” no estabelecimento da identidade sexuada. Estas ambigüidades formam o substrato de formações psíquicas que podem ter como resultado posições, mais ou menos radicais que se situam entre a contestação e o conformismo frente aos estereótipos de gênero. Analisando o aspecto da coerção proveniente do social relativamente à assunção do gênero, Dejours mostra que a designação do gênero começa com a declaração do nome, etc., passa pela fantasia dos pais – mas prossegue por outras vias que forçam a criança a situar-se dentro de um gênero, e a distinguir-se do outro. Como exemplo dessas vias coercitivas – que geralmente trabalham no sentido de situar a criança em harmonia com os estereótipos de gênero correspondentes ao sexo anatômico – é citado o ingresso em instituições educativas. O acesso a essas instituições, pela ampliação do universo das relações pessoais, torna mais incisiva a exigência de que a criança se localize frente aos ditames de gênero do grupo, sob a ameaça de discriminação ou exclusão. Além do mundo da criança, o autor pontua que, no universo adulto encontramos vias particularmente discriminatórias dentro da questão genérica, localizadas especialmente no mundo do trabalho e do emprego. É justamente neste ponto que esse autor mostra que as diferenças de gênero refletem a dominação dos homens sobre as mulheres: “Nós podemos mostrar que o gênero é indissociável da dominação dos homens sobre as mulheres” (DEJOURS, 2006, op. cit., p. 48).
Esta dominação se verifica sobretudo no trabalho, na
produção, em sua repartição e na apropriação de seus resultados. O autor pontua que “homens e mulheres não ocupam uma posição igual no âmbito do trabalho” (loc. cit.). Ao tomar em consideração a divisão social e a luta pela dominação do trabalho – visto que este é a fonte de toda riqueza – o autor entende que, neste âmbito “o gênero
151 responde a uma outra definição”, sendo possível falar de uma “manutenção de benefícios de produção de gênero”, benefícios que consistem “na exploração das mulheres” (loc. cit.). Ao acentuar as posições hierárquicas que dão forma às sociedades patriarcais, Dejours afirma que é a hierarquia “que produz a divisão do trabalho”, sendo que, em sua concepção, “é esta divisão do trabalho num sentido amplo que nós chamamos gênero” (loc. cit.). Neste mesmo sentido se orienta uma observação de Silvia Bleichmar sobre o fato da posição do homem e da mulher estarem associadas a certas áreas de trabalho pré-determinadas. Em suas palavras: “o sistema cultural põe em primeiro plano a ocupação, na definição do gênero, e não o pertencimento sexual biológico” (BLEICHMAR, 2006, op. cit., p. 215). 10 Dentro dessa perspectiva – que toma a desigualdade e a dominação como constitutivas da dimensão de gênero – Dejours aponta o fato de que nem a desigualdade nem a dominação se justificam pelas diferenças biológicas ou anatômicas, ou seja, o gênero “não possui um substrato físico”. Em outras palavras, é o gênero “que outorga sentido aos traços físicos que, não menos que o resto do universo físico, não possuem qualquer sentido intrínseco” (DEJOURS, 2006, op. cit., p. 48). A partir desse arrazoado, é constatado que a diferença de gêneros aparece como social e arbitrária, sendo efetivamente variável de sociedade a sociedade, sendo pontuado que a noção de hierarquia está firmemente ancorada no conceito. Segundo o autor, a dominação de gênero perpassa todas as culturas. Em sua concepção, “ela se modifica, mas não desaparece jamais” (Id., ibid., p. 49). Transportando suas conclusões para a esfera amorosa, Dejours assinala que a dessimetria de lugares no par amoroso constitui terreno fértil para a manutenção do gênero. Isto porque se constata que também as relações entre o casal estão ordenadas hierarquicamente, principalmente no que diz respeito à repartição dos trabalhos domésticos e do atendimento às crianças. Esta situação revela-se importante vetor da perpetuação das repartições genéricas, uma vez que o par parental consiste no principal emissor das mensagens sobre o masculino e o feminino, dirigidas às novas gerações. Vemos, assim, que as proposições do autor permitem entender que a dominação masculina não se encontra
10
Neste sentido, Godelier é incisivo ao afirmar que “assiste-se a uma espécie de lógica de desvalorização das tarefas femininas e de sobrevalorização das atividades masculinas” (GODELIER, 1997, p. 161-162). O autor prossegue mostrando que “o que é idêntico na lógica destas representações é o fato de tudo quanto o homem faz ser sempre sobrevalorizado em relação ao que a mulher faz” (Id., ibid., p. 162).
152 sustentada na natureza física dos corpos, sendo produto da dimensão hierárquica constitutiva da própria noção de gênero transmitida ou “prescrita” à criança.. A partir do que foi visto, para dar prosseguimento à nossa exposição, mostra-se necessário, neste momento, retomar algumas questões que foram abertas neste capítulo. Tomando os aportes de Laplanche, vimos que a identidade sexuada se constitui pela designação do sexo sendo veiculada através de “mensagens prescritivas” dirigidas à criança. Sob essa perspectiva, no caso do menino, vimos que o conceito de identificação primária ao pai da pré-história pessoal pode ser compreendido como uma identificação primitiva pelo social da pré-história pessoal. Esta consiste em um conjunto de enunciados identificatórios transmitidos de geração a geração – que situam o menino num lugar social “masculino” pré-determinado e vinculado a posições hierárquicas. Através da contribuição de Ribeiro, vimos que o “oferecimento” ao menino, de uma identificação com um pai poderoso e dignificado, assume o sentido de salvaguardar a criança da ameaça do desejo de perpetuação de sua posição feminina inicial. Estes enunciados tornam possível pensar que a imagem glorificada do masculino – que, na obra freudiana, remonta ao pai da horda – revela, assim, sua persistência histórica, relativamente à hierarquia que se evidencia nas distinções de gênero. Seguindo as proposições de Dejours, a dominação masculina aparece como um elemento essencial constitutivo das distinções genéricas. Vemos, ainda, que a dessimetria que se verifica entre os sexos, não encontra seu significado na pura diferença anatômica, o que leva os estereótipos de gênero a uma dimensão cultural que se distancia de qualquer prerrogativa da ordem da natureza. Através da pesquisa efetuada neste segmento, visamos mostrar que não existe uma relação necessária entre o sexo biológico e a identidade sexuada que possa ser desvinculada das mensagens prescritivas advindas do outro. A partir do que foi exposto, nossas indagações se voltam para o que se encontra subjacente a essa dimensão de exercício de poder constitutiva da identidade sexuada masculina. Para nos aproximarmos de algumas respostas, daremos prosseguimento ao nosso estudo voltando-nos para a sexualidade masculina, acompanhando mais diretamente as contribuições de Silvia Bleichmar. Da obra dessa autora, focalizaremos principalmente sua concepção sobre o aspecto paradoxal que permeia a sexualidade masculina, e que consiste na hipótese de que, para poder exercer sua potência genital, o menino necessita
153 receber esta potência pela incorporação do pênis do pai (BLEICHMAR, 2006, op. cit., p. 73). A partir dessa hipótese, é acentuado o caráter conflituoso de que se reveste tanto o acesso como a sustentação da masculinidade.
IV. 6 – Os paradoxos da sexualidade masculina Silvia Bleichmar é uma autora que se posiciona de forma francamente contrária a uma concepção endógena da sexualidade que, segundo ela, “leva à desconsideração da função do adulto, enquanto constitutiva da sexualidade infantil” (BLEICHMAR, 2006, op. cit., p. 72). Seguindo a vertente proposta pela teoria da sedução generalizada, de Jean Laplanche, Bleichmar entende que somente a recuperação do estatuto da fantasia “como recomposição metabólica da inscrição sexualizante do outro humano” (loc. cit.) permitirá à psicanálise evoluir em seu conhecimento. A autora localiza a sexualidade masculina entre os temas que devem ser tratados sob uma orientação teórica distinta, ou seja, pela via do primado do outro na constituição do psiquismo. No livro Paradojas de la sexualidad masculina (2006), Bleichmar denuncia a ausência de uma teoria psicanalítica da constituição da masculinidade. Sua denúncia consiste, mais propriamente, em apontar os limites de uma teorização que situa o masculino como mantendo sua zona erógena e seu objeto, “desde o nascimento até a tumba” (Id., ibid., p. 73). Para Bleichmar, a suposição de uma masculinidade originária da criança, a partir da presença real do pênis e do investimento inicial na mãe, bem como a suposição de uma identificação primária do menino com o pai, levaram ao tamponamento de muitas questões sobre o masculino. Na obra mencionada, constatamos, ainda, que a autora também se posiciona de forma crítica relativamente à concepção de uma bissexualidade constitutiva. Em seu modo de ver, a concepção da bissexualidade originária da criança tem como efeito descrever como “naturais” os aspectos femininos ou masculinos recalcados, presentes no psiquismo de todos os seres humanos. Ou seja, a autora considera um erro supor que, antes da puberdade, a criança é “bissexual”. Isto porque entende que, nos começos da vida, a criança
154 é introduzida, pelo outro humano, a uma sexualidade que é de “caráter pré-masculino ou pré-feminino” (Id., ibid., p. 81). Dentro dessa vertente, os dois tempos da sexualidade humana “não correspondem a duas fases de uma mesma sexualidade, mas sim a duas sexualidades diferentes” (Id., ibid., p. 95). A sexualidade infantil é implantada pelo adulto, derivada dos primeiros cuidados produtores de excitações que encontram vias de ligação e descarga sob formas parciais, não sendo, por isso, equivalente à sexualidade adulta11. A sexualidade adulta – estabelecida na puberdade – não é uma simples reedição da sexualidade infantil, mas sim “um modo de recomposição [da sexualidade infantil] ordenado e guiado pela existência de uma primazia de caráter genital” (loc. cit). Para esta autora, a principal conseqüência da teoria da bissexualidade, em relação aos pacientes homens, foi ter levado à interpretação “das fantasias homossexuais dos pacientes heterossexuais como o efeito de uma corrente feminina, independente, produto da ‘bissexualidade constitutiva’, alheia a sua masculinidade” (Id., ibid., p. 73). Para Bleichmar, o surgimento de fantasias femininas, no varão, não diz respeito a uma “homossexualidade inconsciente” – posto que o inconsciente não se rege por atribuições opositivas. Em outras palavras, o surgimento de fantasias femininas no varão não indica que “no fundo” este seja homossexual, isto porque o inconsciente não se rege por referenciais identitários. A partir desta prerrogativa, a autora aponta que o surgimento de fantasias femininas, no varão, pode ser compreendido como falando de uma busca “de apropriação e resolução da masculinidade a partir da incorporação do atributo genital de outro homem que outorgue potência e virilidade” (loc. cit). Dentro desse arrazoado teórico, a autora enuncia sua concepção de que a masculinidade se constitui por um aspecto paradoxal que consiste em receber o pênis do pai mediante uma identificação que impõe inevitavelmente uma fantasia homossexual. Ou seja, a “hipótese forte”, defendida pela autora, é que “a masculinidade se constitui sobre o pano de fundo da homossexualidade”, ou, mais rigorosamente, “sobre fantasias que seriam qualificadas pelo eu como homossexuais” (Id., ibid., p. 51). É esclarecido que esta identificação se estabelece “sobre
11
No livro La fundación do lo inconsciente (2002), Silvia Bleichmar apresenta, de forma detalhada, sua concepção sobre os modelos da estruturação inicial.
155 as marcas dos restos residuais com as quais o corpo do adulto – pai, mãe – se inscreve na criança, antes que as categorias da sexuação possam diferenciá-los” (Id., ibid., p. 74). No desenvolvimento desta proposta, ela aponta que toda identificação remete a uma introjeção, sendo que esta, por sua vez, fala de um modo de apropriação simbólica, “mas em última instância fantasmática, do objeto do qual o outro é portador” (Id., ibid., p. 35). Disso deriva “o caráter altamente conflituoso da constituição da sexualidade masculina – mais além da simplicidade com a qual se pretendeu reduzi-la à presença do pênis como órgão real” (Id., ibid., p. 95). Para sedimentar essa idéia, é estabelecida uma diferenciação necessária entre os movimentos pulsionais, desejantes, anárquicos, que atravessam a sexualidade – e os movimentos que atravessam o que é da ordem da identidade sexual, ou seja, aqueles que dizem respeito aos modos como o indivíduo se reconhece como pertencendo a um ou outro sexo/gênero. Bleichmar descreve a constituição sexual masculina em três tempos. Em um primeiro tempo, se institui a identidade de gênero, que não se sustenta no reconhecimento das diferenças anatômicas nem assume caráter genital. Esta identificação já implica, contudo, um posicionamento da criança relativamente à distinção masculino/feminino, e se trata de uma identificação oferecida pelo outro.
Segundo a autora, “este momento
constitutivo, identitário em sentido estrito, será o suporte, o núcleo egóico das identificações secundárias residuais em tempos posteriores”, sendo enfatizado que se trata de “um fato simbólico, e não biológico” (Id., ibid., p. 29). O segundo tempo da constituição sexual masculina está marcado pela descoberta da diferença anatômica entre os sexos. Na consideração desse tempo, a questão que é introduzida pela autora consiste em que, no menino, “o atributo real, biológico, existente em seu corpo, não é suficiente para constituir a masculinidade genital e a potência fálica em geral” (loc. cit.). Neste caso, é necessário que o pênis se invista de potência genital através da significação que o pênis adquire para a mãe, ou seja, pela “busca dos indícios, no olhar da mãe, do valor do pênis do qual é portador o sujeito infantil” (Id., ibid., p. 30). É necessário, ainda – e neste momento é enunciada a hipótese original da autora – que esta potência genital seja recebida de outro homem “através de uma fantasia de incorporação do pênis do adulto” (loc. cit.). Este recebimento assume um aspecto paradoxal, posto que
156 “somente se possibilita a instauração da virilidade ao custo da incorporação do pênis paterno, o que instaura a angústia homossexual dominante no homem” (loc. cit.). O terceiro tempo marca o momento no qual se definem as identificações secundárias, que dizem respeito não somente ao “ser homem”, mas sim a que tipo de homem o menino será. Este processo culmina com a identificação ao genitor do mesmo sexo. Acentuando que a identidade sexual tem um estatuto tópico, ou seja, que se posiciona do lado do eu, a autora marca que essa identidade, seja qual for, é da ordem da defesa. O “sou mulher” ou “sou homem”, núcleo da identidade sexual, não somente recolhe os atributos do gênero mas funciona como contra-investimento, em particular, dos desejos homossexuais sepultados a partir do recalcamento dos elementos que costumamos considerar, seguindo Freud, como da ordem do Édipo invertido (Id., ibid., p. 98).
Encontramos, assim, nesta autora, duas hipóteses que interessam ao nosso estudo. Primeiramente a de que a constituição da masculinidade não segue um percurso “natural”, calcado na posse do pênis. Em segundo lugar, a de que a potência genital é recebida de outro homem através de uma fantasia de incorporação do pênis do adulto, geralmente o pai, fator subjacente à angústia homossexual dominante no homem. As duas hipóteses nos defrontam com os aspectos conflituosos da sexualidade e da identidade sexuada masculina. Esta hipótese, como é possível perceber, difere amplamente da posição freudiana que atribuía ao varão um caminho menos acidentado, rumo à masculinidade, do que o da menina rumo à feminilidade. Para prover sustentação mais ampla a essas hipóteses, ou seja, para conferir a essa hipótese um caráter de universalidade, a autora se reporta, entre outros, a estudos históricos sobre as práticas homossexuais iniciáticas dos jovens gregos em sua entrada ao mundo masculino adulto. Entre os estudos considerados faremos menção, tão somente, às observações da autora sobre o livro A homossexualidade na mitologia grega, de Bernard Sergent. Segundo Bleichmar, “Bernard Sergent desenvolve, mediante um estudo exaustivo e cuidadoso da mitologia, a hipótese de que a homossexualidade iniciática no mundo grego, mais que constituir um episódio isolado, tem um valor humano universal” (BLEICHMAR, 2006, op. cit., p. 236). Apesar de considerar irretocáveis sob o ponto de vista ideológico as formulações desse autor, Bleichmar denuncia certas limitações em suas conclusões. Essas
157 limitações radicam no fato de que a iniciação passiva não implica efetivo exercício de práticas homossexuais, nem de ritos diretamente voltados à sexualidade. Em seu entender, o autor perde de vista o ponto central que consiste em que “a iniciação da sexualidade, sob um modo passivo, feminino, de recepção do pênis de um homem por parte de outro homem, é um ritual de acesso à masculinidade cujas formas simbólicas podem ter modos diversos de exercício” (Id., ibid., p. 238). Ainda assim, a autora considera que as pesquisas de Sergent confirmam sua “hipótese sobre a complexidade da masculinidade como um caminho que atravessa, inevitavelmente, a feminilidade” (Id., ibid., p. 239). A proposição de Bleichmar de que a masculinidade se constitui em um caminho que atravessa necessariamente a feminilidade, nos remete – guardadas as originalidades de cada autor – às origens femininas da sexualidade (Jacques André) e à identificação feminina primária (Paulo de Carvalho Ribeiro), mencionadas nesta tese. A teorização de Bleichmar sobre os aspectos paradoxais de que se reveste a masculinidade nos envia, ainda, às propostas de Peter Blos, enunciadas no artigo “Filho e Pai” (1998). Advertimos, porém, que o referencial teórico do autor difere do que vem sendo debatido até este momento, posto que se localiza no escopo das teorias das relações objetais. A inserção de suas contribuições se justifica uma vez que – apesar da anterioridade do artigo relativamente à obra de Bleichmar – oferecem uma espécie de continuidade, um desdobramento das conclusões desta autora: a partir de uma análise dos contatos iniciais do filho com o pai, Blos segue o percurso do complexo de Édipo negativo até a adolescência. Neste sentido, no artigo, são discutidos o complexo de Édipo e o momento de sua resolução. Ao focalizar esta fase especialmente conflituosa relativamente à assunção da sexualidade, o autor nos remete a certos fenômenos observados na adolescência. Na descrição destes, somos reportados a manifestações de agressividade, entre as quais se insere a menção à violação de mulheres – geralmente praticada em grupo. Assim sendo, no decorrer do próximo segmento, nos direcionaremos aos desdobramentos da concepção da sexualidade masculina em sua passagem necessária pela homossexualidade constitutiva.
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IV. 7 – Os paradoxos da sexualidade masculina e seus desdobramentos na adolescência e na vida adulta A partir do que foi visto acima, temos que a sexualidade masculina é necessariamente atravessada por fantasias homossexuais. Ao tratar do caso do menino, Peter Blos (1988/1998) entende que o momento edípico descrito tradicionalmente no teorizar psicanalítico dá conta tão somente da resolução do complexo positivo, ou seja, diz respeito apenas à ação dos interditos aos desejos infantis direcionados à mãe. Segundo Blos, este momento não abrange a problemática referida aos desejos direcionados ao pai. A partir dessa observação, o autor considera que a resolução do complexo negativo somente ocorre no fim da adolescência. Para Blos, antes do Édipo a criança estabelece com o pai uma relação dual, nos moldes daquela que é estabelecida com a mãe. O autor mostra que a relação filho/pai foi pouco considerada nos estudos psicanalíticos, diferentemente da relação filho/mãe, extensamente considerada. Importa sinalizar ainda que o pai, ao qual Blos se refere, é o pai da primeira infância, ainda não efetivamente discriminado da mãe, ou seja, um pai libidinal que não coincide com o pai edipiano – por definição, restritivo e punitivo. Segundo Blos, a relação “diádica” com o pai – relação que o autor designa, também como “isogenérica” – não encontra uma resolução paralela à da relação com a mãe. Para o autor, o momento descrito por Freud como a “dissolução do complexo de Édipo” diz respeito, apenas, aos desejos referidos ao complexo positivo, sem colocar em consideração a resolução dos desejos referidos ao complexo negativo. Em sua concepção, estes dois complexos – positivo e negativo – encontram sua resolução em momentos distintos. Enquanto o Édipo positivo se resolve no tempo determinado por Freud, precedendo o período de latência, o complexo negativo perdura pela adolescência, encontrando sua solução apenas ao final deste período, como vemos enunciado nas palavras do autor: a resolução do complexo de Édipo avança, em sua totalidade, de forma bifásica; a solução do componente positivo precede a latência – na verdade facilita sua formação – enquanto a resolução do aspecto negativo tem uma sucessão temporal normal e segue seu curso normal na adolescência ou, mais precisamente, no final da adolescência, quando facilita a entrada na vida adulta (BLOS, 1988/1998, op. cit., p. 62).
159 Para Blos, “a relação diádica do menino com o pai, que oscilava entre a submissão, a auto-afirmação e o compartilhamento da grandeza do pai, é levada mais intensamente para o reino do sexual com o surgimento da puberdade” (Id., ibid., p. 61). O autor mostra que a identificação de gênero se contrapõe a essa atração regressiva. “Cheguei a ver, muito claramente, que esta defesa entra em ação na esteira de um ressurgimento do complexo negativo do menino, que atinge, na puberdade, o ápice de sua conflituosidade” (loc. cit.). Ou seja, o autor constata que o surgimento da puberdade incita uma intensificação do complexo negativo, que se acompanha de uma intensificação defensiva das exigências de posicionamento frente à diferença sexual e às discriminações genéricas. Este estado conflituoso é de natureza transitória, “e declina com a resolução definitiva do complexo negativo, no fim da adolescência” (loc. cit.). Para Blos este período de intensificação do complexo negativo, e das defesas que contra ele se erigem, é o que permite compreender fenômenos que freqüentemente se apresentam na adolescência como a atividade heterossexual compulsiva, desregrada, ou, inversamente, a ansiedade que toma forma na inação ou evasão do contato heterossexual. “O fato de não haver superado ou resolvido o complexo do pai, como no caso de uma adolescência abortada, revela seu papel patogênico no nexo neurótico de qualquer paciente adulto do sexo masculino” (Id., ibid., p. 66). Este “nexo neurótico” é observado no que diz respeito às relações tanto com homens quanto com mulheres. Dentre outras várias questões levantadas pelo autor, enfatizamos que sua proposta de uma postergação da solução do complexo negativo para o final da adolescência – que pode prolongar-se por anos – é esclarecedora de fenômenos típicos desta fase. Entre estes fenômenos, é mencionado o “culto aos heróis”, sempre do sexo masculino, que assume o caráter de tentativas de identificação com um adulto idealizado. É verificada, ainda, a tendência a agrupar-se em “bandos” de rapazes, que excluem meninas, e se voltam para práticas variadas de afirmação de masculinidade. Estas práticas, por sua vez, podem variar desde manifestações de desprezo diante do sexo oposto, até condutas francamente delituosas, como a violação de mulheres, geralmente realizadas em grupo. A questão homossexual transparece nessas práticas a partir da constatação de que o que
160 efetivamente está em jogo é a afirmação da virilidade perante seus pares.12 Segundo o autor, é apenas a partir da resolução do complexo negativo – marcado por uma forma de relação dual como o pai – que estarão dadas as condições para o relacionamento heterossexual pautado pelo efetivo reconhecimento do outro. Pelo lado da hipótese da não-solução do complexo negativo, várias conseqüências são apresentadas como possíveis, entre elas, a homossexualidade atuada. Não sendo este o caso, o autor menciona que a não-resolução do complexo negativo se mostra associada ao estabelecimento de relações heterossexuais marcadas por distanciamento afetivo, pela desqualificação e o não-reconhecimento do outro. Ou seja, encontramos nas proposições de Blos, uma abordagem que permite a compreensão da indiferença, bem como do desprezo e da hostilidade que se apresentam nas relações de dominação. A proposta da não-resolução do complexo negativo forneceria, ainda, parâmetros de compreensão para os atos de violação praticados por homens que, dentro de referenciais cronológicos, estariam situados fora dos limites – imprecisos, sem dúvida – da adolescência. As vinculações entre as condutas de violação e a homossexualidade são objeto das pesquisas efetuadas por Claude Balier sobre os delitos sexuais. Este autor também considera a existência de um “período de homossexualidade estruturante na adolescência” (BALIER, 2000, p. 105). A questão dos delitos sexuais é trabalhada sob a ótica não dessa potencialidade estruturante da homossexualidade, mas sim focalizando o caso de sua potencialidade ameaçadora e de sua persistência para além dos momentos da adolescência. Os estudos de Balier sobre a violação são encontrados em duas obras: Psychanalyse des comportements violents (2006) e Psicoanálisis de los comportamientos sexuales violentos (2000). Nestes estudos, o autor relata suas conclusões teóricas e clínicas, obtidas a partir do trabalho terapêutico junto a indivíduos condenados por crimes sexuais na França. Em seu contato com indivíduos condenados por violação (tanto de mulheres como de crianças), Balier relaciona a problemática da violação ao medo da homossexualidade. Em suas palavras: “As observações nos mostraram, com efeito, pulsando por trás dos comportamentos agressivos, uma homossexualidade passiva, o apetite aterrador de ser
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Em relação a esta questão, é significativa uma passagem de Bourdieu, relativa à virilidade. Segundo este autor, a virilidade “é uma noção eminentemente relacional, construída diante dos outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do feminino, e construída, primeiramente, dentro de si mesmo” (BOURDIEU, 2003, p. 67).
161 penetrado. A problemática da violação seria, pois: penetrar para não ser penetrado” (BALIER, 2000, op. cit., p. 72). O autor pontua que “o medo à homossexualidade é uma construção elaborada e que implica a fase fálica”, sendo seu embasamento “de caráter narcisista” (loc. cit.). A abordagem dessa questão, efetuada pelo autor, não pretende circunscrever qualquer suposta “patologia característica” do violador. Da mesma forma, o autor é contrário a qualquer afirmativa sobre a existência de uma “pulsão de violação” inerente à sexualidade masculina. Em suas palavras: “Dizer que existe uma ‘pulsão de violação’ equivaleria a considerá-la como um desvio, (...) ou a trivializá-la como pulsão inerente à organização sexual masculina” (Id., ibid., p. 33). O autor pontua, ainda, que não podemos guiar-nos, tampouco, pelo “tipo de personalidade do autor [da violação], eventualmente neurótica, psicopática, paranóica, etc., e incluir a violação entre as manifestações agressivas através das quais se expressam as organizações patológicas em questão” (loc. cit.). Balier observa que os atos de violação não se inscrevem, necessariamente, num registro patológico determinado. Estes atos podem ser cometidos por adolescentes – não necessariamente psicóticos ou perversos – sob os auspícios de um momento especialmente delicado de afirmação narcisista fálica. Podem, ainda, ser cometidos dentro das situações perturbadoras de um rompimento afetivo – num momento pontual de debilidade egóica em que as pulsões destrutivas encontram seu predomínio sobre as pulsões eróticas. Ou seja, não é o ato, propriamente dito, o que permite a compreensão dos aspectos patológicos subjacentes; sendo que se observa que a dimensão patológica – que pode situar a violação fora dos registros da neurose – encontra fundamentação apenas à medida que o ato se manifeste de forma repetitiva, assumindo feição marcadamente compulsiva. O autor indica, ainda, que os violadores são predominantemente homens, em geral jovens, sendo que “este tipo de delito, efetivamente, raramente é cometido por uma mulher”. Quando isto ocorre, a mulher se situa na posição de cúmplice de um parceiro masculino (BALIER, 2000, op. cit., p. 23). As conclusões do autor que interessam principalmente ao nosso trabalho – uma vez que não visamos aprofundar questões situadas num registro fora do das neuroses – são aquelas que pontuam que o impulso à violação não deve ser considerado como algo inerente à sexualidade masculina, sendo que sua investigação leva à problemática
162 localizada do lado do narcisismo; ou seja, este ato fala de questões referentes ao nãoreconhecimento, ou ao “apagamento do outro” (para usar uma expressão de Green, 1988, op. cit.). Voltando-nos, neste momento para manifestações menos evidentes e estridentes da agressividade masculina – como é o caso da violação – verificamos que o narcisismo encaminha, ainda, a compreensão de fenômenos de violência mais freqüentes, ou talvez mais bem aceitos socialmente; para estes fenômenos nos voltaremos na continuidade deste estudo. Para efeitos de maior clareza das questões que serão expostas nesta parte final desta tese, é procedente, contudo, efetuar uma síntese do que foi visto neste capítulo. A questão principal que norteou o quarto capítulo desta tese, foi a identidade sexuada, e suas relações com a dominação masculina. No que diz respeito à identidade sexuada, nos orientamos, principalmente, pelas proposições de Laplanche sobre a prioridade do outro em sua inscrição. Seguindo Dejours, vimos como a identidade sexuada se articula à dominação masculina. Através das contribuições de Paulo Ribeiro, a questão da assunção da identidade sexual emerge defrontada com a identificação feminina primária, que evoca no menino um desejo de castração. Esta problemática se localiza dentro dos aspectos paradoxais da sexualidade masculina, trabalhados por Silvia Bleichmar e Peter Blos. Ao dar ênfase à persistência de uma “homossexualidade inconsciente” constitutiva, até a fase final da adolescência, fomos levados aos seus efeitos evidenciados na peculiaridade das condutas desta fase. A partir disso foi focalizada a questão da violação sob o viés de uma forma de expressão reativa às moções pulsionais passivas. Através das contribuições de Balier foi possível constatar que a violação consiste numa passagem ao ato que nos situa no âmbito do pulsional mortífero e da problemática do narcisismo. Considerando o que foi visto, passaremos a uma exposição sobre fenômenos que apresentam uma face menos rumorosa do narcisismo fálico, ou seja, fenômenos que dão conta de um tipo de violência mais difusa, menos claramente detectável, sendo assimilados às condutas mais ou menos triviais das sociedades marcadas pelo patriarcado. Neste próximo segmento, nos apoiaremos nos aportes de Jean Cournut (2000), sobre o “machismo”. Ainda antes de adentrar as questões que serão trabalhadas, pontuamos, porém, que a expressão “machismo” não encontra uma tradução precisa nos domínios da psicanálise,
163 sendo circunscrita, com maior objetividade, às ciências sociais13. Do ponto de vista da antropologia, o machismo consiste num sistema moral especial que preconiza a “verdadeira virilidade”. Para as ciências sociais, o machismo – como sistema ideológico – encontra sua origem no ideário compartido pelos povos mediterrâneos, especialmente do sul da Espanha, de onde partiram muitos dos colonizadores do nosso continente latino-americano. Nestas regiões, autores como Archer e Lloyd (2002) e Gilmore (1994) constatam que “a maior parte dos homens se identifica por completo com uma imagem de masculinidade que forma parte de sua honra e reputação pessoais” (GILMORE, 1994, p. 42). Constata-se, ainda, que dentro deste ideário origina-se a noção de “crime por defesa da honra”, utilizada no Direito Penal, como argumento de defesa dos assassinos de mulheres. Apesar de que nem o “machismo” e nem o “machista”, referidos por Cournut, encontrem uma tradução conceitual precisa dentro do campo da psicanálise, nas citações do autor mencionado seguiremos utilizando essas expressões, em função do necessário respeito às idéias veiculadas naquele texto.
IV. 8 – A aposta fálica: o apagamento do outro Sob uma perspectiva psicanalítica, como nos mostra Cournut (2002, op. cit.), o chamado machismo aparece como uma caricatura do masculino. Em sua dimensão caricatural, o machismo preconiza a superioridade do macho sobre a fêmea, abrangendo uma tomada de posição que se reflete extensamente no campo social – nas relações de trabalho e na vida doméstica. O machismo invade tanto as questões relativas ao erotismo, quanto à procriação, como veremos. Na visão do autor, o machismo é socialmente produtivo no sentido de prover sustentação para a dominação masculina. Em sua compreensão, no entanto, o machismo consiste numa forma de reação exacerbada ao medo que os homens têm das mulheres e do feminino. Ou seja, o machismo remete aos aspectos defensivos de que se reveste o narcisismo fálico. 13
Pontuamos, contudo, que uma aproximação ao “tipo” descrito por Cournut (2002), como “machista”, pode ser formulada tendo como referência o texto freudiano “Tipos Libidinais” (1931/1974), mais precisamente no terceiro tipo descrito como narcísico.
164 Ao descrever o “machismo”, Cournut pontua que, na convicção do macho, a dominação masculina emana de evidências tidas como incontestáveis: “os homens são mais fortes, mais inteligentes, mais engenhosos, mais corajosos”, em síntese – “os homens são mais” (Id., ibid., p. 270 – a tradução é nossa). E os homens são “mais” em função de diversos argumentos como aqueles que apelam para uma evidência biológica, “natural”. Remetido ao narcisismo das pequenas diferenças, o autor assinala que o machismo não suporta e denuncia as pequenas diferenças, como podem ser as diferenças de raça, religião ou gênero, mas, em contrapartida, “acentua, sublinha, exalta a diferença que faz dele, tudo e do outro, nada” (Id. ibid., p. 271 – a tradução é nossa). Ou seja, “a exibição narcísica fálica, corolário da supervalorização da diferença, nega o comparativo” (loc. cit.). Isso porque, na verdade, não está referido a um “mais que”, mas sim a um “o mais” que, estabelecido dentro deste “superlativo megalomaníaco e auto-suficiente”, poderá, se necessário, matar o outro. E isto, segundo o autor, “não por maldade nem por ódio, mas porque é assim”, afinal, “o outro já tem tão pouca existência...” (loc. cit.)14. Nestas palavras vemos descrito um encerramento narcísico, cujas manifestações transbordam o contexto da violência contra a mulher, sendo que qualquer “diferença” pode desencadear a destrutividade, que pode dirigir-se indiscriminadamente para os de outra “raça”, ou de outro credo, ou de outra orientação sexual, e assim por diante. Mas, ante o papel princeps que a diferença sexual adquire na constituição da própria categoria de diferença, vemos que as pessoas do sexo feminino se tornam alvo inevitável da agressividade escorada no narcisismo fálico. Neste sentido, o falocentrismo fala de um desconhecimento do outro, o que permite uma separação entre aquilo que é bom – e é meu – e aquilo que é mau, e que é projetado no outro. O que se apresenta, aqui, é uma situação na qual, para se constituírem como sujeitos, cidadãos, os homens “machistas” formulam uma recusa da alteridade15. Eles excluem as mulheres da cidadania, consideram-nas inferiores e/ou demoníacas, subtraem seu estatuto de sujeito para relegá-las à situação de objetos de prazer e reprodução. Mas, segundo o autor, o falocentrismo que funda esta comunidade dos homens apresenta uma debilidade,
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Uma descrição interessante da violência perversa no cotidiano é exposta por Hirigoyen (2000). A questão da alteridade é trabalhada, sob a ótica da psicanálise e da filosofia, por Arán (2006).
165 uma vez que necessita ser perpetuamente reforçado e re-assegurado pela via da desqualificação e da dominação do outro. O autor mostra que o falocentrismo não é apenas uma atitude banal ou uma bravata dos homens que visa assegurar sua condição masculina e seus prazeres. O falocentrismo diz respeito, como nos mostra a psicanálise, à identificação “com um pai viril, par ativo e geralmente sádico”, no contexto de uma “cena primitiva na qual ele se reserva a iniciativa e a supremacia” (Id., ibid., p. 272). A feição de debilidade desta posição se denuncia, no entanto, exatamente pela virulência de sua manifestação contra o feminino, sendo neste ponto que as proposições de Cournut se articulam mais claramente aos aspectos que vêm sendo considerados nesta tese relativamente à feminilidade originária da criança e à identificação feminina primária. Isto porque o autor pontua que ainda que o macho se identifique, “talvez conscientemente a um pai viril”, o que se verifica é que, “inconscientemente, o macho se identifica a uma mãe arcaica, fálica” (loc. cit.). A mãe fálica se mostra “temível, penetrante por arrombamento” – sendo nesta identificação localizada a reivindicação e a necessidade do antigo menino pequeno de se equiparar à mãe “para provar que ele existe” (loc. cit.). Mas o autor assinala que o narcisismo fálico se erige também em oposição à identificação a uma mãe degradada pela castração. “A regressão fálica é, de toda forma, defesa contra a identificação a uma mãe edipiana penetrada e contra a identificação a uma mãe pré-genital penetrante” (loc. cit.). Ao trazer à tona a questão da identificação à mãe fálica, temos que esta imagem se insere num processo que diz respeito às emanações traumáticas do momento de observação das diferenças anatômicas entre os sexos. Ou seja, a figura da mãe com pênis é produto de um momento especialmente difícil para o menino, em que ele é levado a desidentificar-se da mãe. Tomando-se o caso da persistência desta figura, no adulto, ingressamos num território que nos leva às perversões, mais propriamente, ao fetichismo, como nos mostra a obra freudiana. Com o artigo intitulado “O fetichismo” (FREUD, 1927e/1974), Freud expõe uma concepção da perversão que se revela ancorada na problemática da castração, na forma como esta se apresenta para o menino. Neste texto, a fantasia da mãe fálica revela sua origem defensiva numa ordem que ultrapassa os limites da neurose e cuja interpretação remete às ameaças de perda do objeto primário, por sua vez associadas a angústias que
166 ultrapassam o sentido da perda “de uma parte”, assumindo o caráter de angústias que se aproximam mais propriamente do aniquilamento e da inexistência. Tendo-se em conta que o texto se volta para a explicação teórica do fenômeno psíquico do fetiche, temos que este se erige contra uma ameaça de perda da identidade sexual, ou da identidade, pura e simples. Contudo, como aponta Balier, o fetiche fala de “uma aposta de existência, e portanto de narcisismo” (BALIER, 2000, op. cit., p. 158). Neste sentido, o fetiche assume a feição de uma defesa contra a psicose. Como nos mostra Green, “a diferença instaurada pela separação entre a mãe e a criança é compensada pela investidura narcisista” (GREEN, 1988, op. cit., p.136). Ainda segundo Green, é necessário recuperar as evidências de que “os narcisistas são pessoas feridas – de fato, carentes do ponto de vista do narcisismo”. (Id., ibid., p. 17) Dentro da perspectiva freudiana, na fase fálica, a angústia de castração é o que leva a criança a renunciar à posse da mãe, não sem antes tratar de negar a castração materna, como é exposto nesta passagem: “Não, isso não podia ser verdade, pois, se uma mulher tinha sido castrada, então sua própria posse de um pênis estava em perigo, e contra isso ergueu-se em revolta a parte de seu narcisismo que a Natureza, como precaução, vinculou a esse órgão específico” (FREUD, 1927e/1974, p. 180 – grifos nossos). Nesta passagem vemos exposto o investimento narcísico do pênis que incidirá na renúncia aos investimentos incestuosos da criança. Ao aceitar a realidade traumática da incompletude, o menino seguirá, neste caso, segundo Balier, o caminho – já bastante abordado nesta tese – “da linhagem fóbica” (BALIER, 2000, op. cit., p. 158). Por outro lado, a persistência na negativa da ausência do pênis na mulher tomará o rumo da perversão fetichista. Na idade adulta, o fetiche é revelador da fantasia da mulher com pênis, como modo de negação da ameaça de castração. Segundo Balier , “o perverso renega a ameaça, não reconhecendo a mulher como tal. Aferra-se ao fetiche, mais importante que tudo, pois garante a preservação de sua completude e de sua onipotência” (Id., ibid., p. 158). O autor mostra, ainda, que o indivíduo que apela aos comportamentos perversos está, “na realidade, profundamente desprovido, por mais que seu discurso proclame sua superioridade sobre todos” (loc. cit.). Tendo em conta essa proposição de Balier sobre a clivagem que caracteriza o fetichismo, vemos que este fenômeno também faz parte das considerações de Cournut
167 (2002, op. cit.). Sem ingressar propriamente numa análise sobre a perversão, o autor se reporta ao mecanismo de clivagem que opera nas distintas imagens de mulher produzidas pelo “machista”, e que encontra expressão na divisão entre mulher e mãe. Ele mostra que “o macho respeita sua mãe, e as mães”. Para ele, “sua mãe e as putas não são a mesma coisa” (Id., ibid., p. 272). Ou seja, as mães – referidas à imagem da Imaculada Concepção – são seres de outra ordem, que situam o feminino maternal em um território distinto do feminino erótico. Mas, ainda assim, submetido ao desígnio defensivo de retirar o poder desta figura ameaçadora – composta tanto pela mãe fálica como pela mãe castrada – “na ideologia machista, a mãe é somente nutridora”, ela apenas transporta, abriga a semente masculina que efetivamente produz os homens. Na ideologia machista da concepção, “o macho tem a convicção de que é o homem que engendra, que doa à criança não apenas o nome, sua filiação, seu espírito, mais também sua forma, sua substância corporal” (loc. cit.). Ou seja, transparece no falocentrismo, não apenas a insistência sobre a potência viril, sexual, penetrante, mas também, a insistência sobre sua capacidade de fecundar e de dar a forma ao ser que será gerado, subtraindo, desta forma, o papel que seria correspondente ao outro ou, em última instância, desconhecendo o outro. Esta negação do papel da mãe na geração do filho encontra sua expressão na glorificação do homem. A insistência na superioridade e na glorificação do masculino se evidencia, segundo Cournut, na plena aceitação e assimilação dos pares de opostos psicanalíticos: “a categoria ‘passivo, masoquista, castrado e feminino’ é plenamente aceita pelo machismo que valoriza a outra categoria, ‘ativo, sádico, fálico e masculino’” (Id., ibid., p. 270). No narcisismo fálico, a glorificação fálica aparece, segundo Cournut, como uma barreira defensiva erigida contra o medo que os homens têm das mulheres e do feminino. Ou seja, a recusa exacerbada do feminino fala do medo do “feminino erótico-maternal que os homens recusam nas mulheres e neles mesmos” (Id., ibid., p. 274). Em outras palavras, o “machismo”, estudado pelo autor, consiste numa “posição contrafóbica fundamental”, numa “exacerbação defensiva da recusa do feminino” que se revela sempre “potencialmente perigosa”, posto que “induz à barbárie”, pesando principalmente sobre o estatuto das mulheres (loc. cit.).
Considerações finais
A pesquisa realizada para o desenvolvimento desta tese nos direcionou para distintas correntes do pensamento psicanalítico que permitem orientar a compreensão da violência, da agressividade e da dominação masculinas. As questões relativas à violência foram trabalhadas tendo como ponto de partida sua associação ao exercício do poder, conforme enunciado por Freud em 1932. A associação entre violência e poder nos envia ao exercício da dominação sobre o outro. A agressividade, por sua vez, foi tomada como uma tendência, ou conjunto de tendências, que encontrará formas de manifestação na relação com o objeto. A partir dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” vimos que a problemática da crueldade infantil levou à necessária consideração do objeto, no que diz respeito às origens da agressividade. Visto que a suposição de uma “intencionalidade malévola” da criança apenas adquire consistência no momento de constituição do ego, Freud foi levado a introduzir a pulsão de dominação, cujo objetivo não é o de provocar sofrimento ao objeto, sendo seu alvo a dominação do objeto para dele usufruir. Diferentemente do que se verifica na agressividade, a dominação não implica necessariamente destruição. Quando nos reportamos à relação de dominação, vimos que o estabelecimento desta pressupõe um desenvolvimento, um progresso na organização tanto libidinal quanto egóica. No entanto, ainda que se apresente sob uma forma mais organizada que o ato impulsivo de agressão, a dominação envolve uso de força e violência para a subjugação do objeto, para a neutralização do desejo do outro. Os aspectos psicopatológicos subjacentes à relação de dominação foram desenvolvidos através de uma análise da neurose obsessiva e da perversão. Na perversão é acentuado o registro erótico, isto é, privilegiadamente a dominação do perverso se volta sobre seu parceiro sexual. O “cenário” descrito pela relação de dominação perversa toma forma, essencialmente, no sadomasoquismo. Diferentemente do perverso que utiliza as “armas” da sedução, a dominação presente na neurose obsessiva fala, principalmente, de um exercício de poder nos registros
169 da violência manifesta e na ordem do dever. Segundo Dorey, a “vontade de domínio” converte o obsessivo num “tirano”, mesmo quando se trata, muitas vezes, apenas de um “tirano doméstico”. A partir dessas considerações sobre a agressividade e a dominação, nossa questão principal consistiu em relacionar essa tendência ao “exercício do poder dos fortes sobre os mais fracos”, como dirá Freud em 1932, ao sexo masculino. Nos “três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, vemos que Freud formula hipóteses que visam explicar uma maior propensão masculina à atividade e à agressividade, partindo da observação das diferenças entre as práticas masturbatórias de meninos e meninas. Essas explicações se assentam, mais propriamente, na distinta configuração anatômica dos sexos – a exterioridade do pênis favorecendo sua manipulação. Freud considera que a apreensão do objeto auto-erótico pela mão remete ao trabalho da pulsão de dominação – o qual já prenuncia os destinos das relações de objeto masculinas. Freud entende, porém, a pulsão de dominação como uma pulsão não-sexual, que somente secundariamente se une à sexualidade. Assim, o prazer com o sofrimento do objeto – aspecto central das concepções do sadomasoquismo – somente ocorreria no momento em que a criança fosse capaz do reconhecimento de si e do outro como separados. Isto leva a considerar que, ainda que a criança venha ao mundo dotada de um “potencial de agressividade” derivado do autoconservativo, a manifestação agressiva será regulada pela relação com o outro. Neste sentido, nos reportamos a Lagache que situa a agressão no ângulo da intersubjetividade, considerando-a como “uma certa forma de entrar em relação com o outro” (LAGACHE, 1960, op. cit., p. 146). Observa-se, contudo, que a manifestação agressiva não se limita a ações motoras que deixem explícita uma intenção de afastar ou destruir o objeto, os atos de agressão podendo seguir a via tanto de “descargas maciças, emocionais, mais ou menos eficazes”, ou manifestar-se “em ações pertinentes, visando efeitos remotos”. Para Lagache, a origem da agressividade é situada na “relação parasitária” do bebê com seu entorno, especialmente com a mãe, sendo creditada à imaturidade biológica e à passividade da criança diante de uma mãe essencialmente ativa e dominadora. A partir dessas considerações, nos reportamos à teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche, que abre espaço para pensar os aspectos relativos à agressividade que permeia as “mensagens” dirigidas à criança. Esta observação permite pensar se a
170 agressividade pode ser aceita – e até estimulada pelo adulto – mais nos meninos do que nas meninas. A partir do que foi visto no primeiro capítulo, vieram para o primeiro plano as questões referentes ao masculino e ao feminino, bem como as descobertas psicanalíticas referentes à hostilidade e ao desprezo de que são objeto as mulheres. Na obra freudiana, a diferença anatômica entre os sexos é tomada como base do desprezo e da hostilidade masculinas frente às mulheres, visto que estas encarnam a castração. Como mostra Jean Cournut (2002), o complexo de castração instala, nos homens, uma espécie de fobia universal ligada à crença de que as mulheres encarnam o feminino castrado. Desta forma, elas se tornam depositárias do temor dos homens à castração. Dentro deste viés, seguimos a vertente dos sentimentos hostis de que são objeto as mulheres através dos textos “O tabu da virgindade”, “O estranho” e “Análise terminável e interminável”. No primeiro texto, encontramos referências ao medo que os homens têm das mulheres, significativamente alicerçadas no complexo de castração e no narcisismo das pequenas diferenças. No texto seguinte, a questão se desloca da problemática da castração para um “estranhamento” remetido aos anseios de retorno ao “paraíso” perdido. As angústias diante do corpo feminino enlaçam-se, desta forma, aos “perigos” regressivos que envolvem o anseio de retorno ao seio materno. Ao chegarmos a “Análise terminável e interminável”, os perigos emanados da mulher não são objeto de maiores considerações. Em 1937, vemos que Freud situa na relação entre homens o problema da geração da angústia. Neste contexto, a castração volta a ser considerada, uma vez que oferece suporte de compreensão para as dificuldades clínicas calcadas na associação entre uma situação passiva diante de um homem, e a castração. No mesmo texto vemos, ainda, que Freud – apesar de sua teorização referente à bissexualidade constitutiva do humano – não abdica da masculinidade primária da criança, uma vez que segue considerando que nos homens, “o esforço por ser masculino é completamente ego-sintônico desde o início”. Porém, a partir dessas considerações, nos voltamos para teorias que abordam o feminino no homem, como as de Jacques André sobre as origens femininas da sexualidade, e a concepção de Ribeiro da identificação feminina primária.
171 Ribeiro entende que, no momento primordial de proximidade à mãe, instaura-se a identificação inicial com a mãe. Na observação deste momento, o autor levanta a hipótese de que o primeiro tempo do recalcamento da feminilidade primária corresponde ao processo pelo qual a criança é moldada de acordo com a feminilidade consciente e inconsciente da mãe, sem que essa feminilidade, para a criança, se oponha à diferença anatômica dos sexos ou com ela se relacione. Segundo o autor, o conflito instaurado pela descoberta da diferença anatômica leva a criança à exigência de posicionar-se frente à identidade de gênero e de sexo. É neste momento que a criança recorre a “teorias” sexuais que se encontram “totalmente comprometidas com fantasias onipotentes de negação da diferença e da incompletude” (RIBEIRO, 2000, p. 286). Entre as teorias infantis, o autor ressalta a fantasia da mãe fálica, que obedece ao objetivo de negar a diferença pela atribuição do pênis à mulher. Ao colocar em consideração as fantasias de castração do menino, Ribeiro entende que estas “não resultam de ameaças externas, mas sim do imperativo de negar a diferença e tentar preservar a possibilidade de identificação com a mãe” (Id., ibid., p. 287). Através de Greenson vimos como é possível tomar a identificação com o pai como “uma contra-identificação”, ou seja, como um meio de agir contra a identificação anterior com a mãe. Calcado nas evidências do peso dessa primeira identificação relativamente à sedimentação da masculinidade, Greenson mostra as ingerências da identificação inicial com a mãe no temor à homossexualidade. O autor indica que este temor à homossexualidade é uma questão que afeta os homens de maneira mais persistente e intensa que as mulheres, em função de sua identificação inicial com a mãe. Sugere, ainda, que os homens, em nível mais profundamente inconsciente, nutrem inveja intensa das mulheres, especialmente da mãe, sendo que a defesa contra essa inveja se apresenta pela fachada do desprezo e da desqualificação. Nosso objetivo, ao abordar estas teorias foi, principalmente, mostrar os efeitos da proposta de uma feminilidade e de uma identificação feminina primária da criança sobre as concepções tradicionais da psicossexualidade masculina. Não sendo a criança masculina desde o início, como propunha Freud, a assunção da masculinidade torna-se um problema tão complexo e difícil para o menino, quanto aquilo que era proposto relativamente ao “tornar-se mulher”, o era para a menina. Sob esta perspectiva, foi possível focalizar com
172 mais nitidez certos momentos de maior dificuldade da constituição masculina que se concentram em torno da integração psíquica da passividade. Jacques André mostra que a masculinidade agressiva e obsessiva emerge em oposição à feminilidade primária. A questão do feminino no homem como fonte de hostilidade frente à mulher é um tema trabalhado também através das proposições de Bokanowski. Para este autor, o feminino afeta o menino segundo modalidades mais traumáticas que na menina. A passagem da identificação primária com o feminino maternal para uma identificação ao feminino e ao masculino paternos se revela mais complexa e difícil para o menino, fazendo do feminino nele o “objeto de uma nostalgia irrecuperável (simbolizada, posteriormente, pela fantasia de paraíso perdido)” revelando-se, ainda, fonte de medo e ódio. Neste momento, Bokanowski defende uma posição que encontraremos também, posteriormente, em Silvia Bleichmar (2006, op. cit.) e que consiste em relacionar o acesso à masculinidade a um movimento masoquista dirigido ao pai. Para Bokanowski, a situação característica da feminilidade “trabalha sobre um fantasma de apropriação por introjeção de um pênis paterno ‘não-castrável’ e todo-poderoso” (BOKANOWSKI, 1993, op. cit., p. 1596). Para o autor, sob as formas da fantasia, a introjeção do pênis paterno favorece posteriormente a ereção de um pênis penetrante. Ou seja, este momento inicial de “homossexualidade” do menino traçará os destinos da heterossexualidade futura. Mas a questão se revela complexa, porque a memória do estado de união fusional com a mãe persiste no menino como inscrição pré-traumática do feminino. O autor fala do ódio ao feminino, que recobre o medo de uma passividade sentida como devoradora, assinalando que o ódio à mãe é, talvez, o único modo de se sentir existir como separado. Dando prosseguimento a nossas questões, no quarto capítulo desta tese, tratamos do tema da constituição psicossexual masculina, reportando-nos à vertente intersubjetiva que sustenta a transmissão do masculino e do feminino através das gerações. Nesse capítulo, discutimos a masculinidade sob o viés de uma análise que toma em consideração a noção de gênero. Através desta discussão, assinalamos modos de compreensão da agressividade masculina pautados, mais precisamente, em “prescrições” identificatórias veiculadas desde o nascimento da criança e que situam a agressividade e a dominação como características da virilidade. Ou seja, acentuamos o fato de que a masculinidade não é produto de uma evolução endógena, que ela não é um fenômeno “natural” sustentado apenas pela posse do
173 membro viril. Para fundamentar essa proposta, seguimos as considerações de Laplanche que nos levam à formulação da assunção da identidade sexuada como um processo que se inicia pela designação do sexo, que situa a criança, primeiramente, no contexto das distinções genéricas. O aspecto realçado por Laplanche, relativamente a este ato inaugural de inserção da criança no social, é que esta ação provém do outro adulto. Laplanche destaca o fato de que a designação não se limita a um único momento, nem consiste num único ato. A designação “é um conjunto complexo de atos” que não se limitam ao momento do nascimento e do registro da criança. Para o autor, trata-se de verdadeira “prescrição”, um “bombardeamento de mensagens prescritivas” que identificam a criança como tal ou qual. Sob essa perspectiva, no caso do menino, vimos que o conceito de identificação primária ao pai da pré-história pessoal pode ser compreendido como uma identificação primitiva pelo social da pré-história pessoal, ou seja, como enunciados identificatórios transmitidos de geração a geração. Na contribuição de Ribeiro, vimos que o “oferecimento” ao menino, de uma identificação com um pai poderoso e dignificado, assume o sentido de salvaguardar a criança da ameaça do desejo de perpetuação de sua posição feminina inicial. Estes enunciados tornam possível pensar que a imagem glorificada do masculino – que, na obra freudiana, remonta ao pai da horda – revela, assim, sua persistência histórica, relativamente à hierarquia que se evidencia nas distinções de gênero. Seguindo as proposições de Dejours, a dominação masculina aparece como um elemento essencial constitutivo das distinções genéricas. Vimos, ainda, que a dessimetria que se verifica entre os sexos, não encontra seu significado na pura diferença anatômica, o que leva os estereótipos de gênero a uma dimensão cultural que se distancia de qualquer prerrogativa da ordem da natureza. Através da pesquisa efetuada neste segmento, visamos mostrar que não existe uma relação necessária entre o sexo biológico e a identidade sexuada, que possa ser desvinculada das mensagens prescritivas advindas do outro. No prosseguimento da questão da constituição da identidade sexuada masculina, nos reportamos às contribuições de Silvia Bleichmar. Da obra dessa autora, focalizamos principalmente sua concepção sobre o aspecto paradoxal que permeia a sexualidade masculina, e que consiste na hipótese de que, para poder exercer sua potência genital, o menino necessita receber esta potência pela incorporação do pênis do pai (BLEICHMAR, 2006, op. cit., p. 73). Esta autora descreve a constituição sexual masculina em três tempos,
174 sendo que, no primeiro tempo, se institui a identidade de gênero. Esta, consiste de uma identificação oferecida pelo outro. O segundo tempo da constituição sexual masculina está marcado pela descoberta da diferença anatômica entre os sexos. O terceiro tempo trata do momento no qual se definem as identificações secundárias, que dizem respeito não somente ao “ser homem”, mas sim a que tipo de homem o menino será. Este processo culmina com a identificação ao genitor do mesmo sexo. A ”hipótese forte”, defendida pela autora, é que “a masculinidade se constitui sobre o pano de fundo da homossexualidade”, ou, mais rigorosamente, “sobre fantasias que seriam qualificadas pelo eu como homossexuais”. Ao mostrar que a identidade sexual tem um estatuto tópico, ou seja, que se posiciona do lado do eu, a autora marca que essa identidade, seja qual for, é da ordem da defesa. A partir dessa hipótese, é acentuado o caráter conflituoso de que se reveste tanto o acesso como a sustentação da masculinidade já que a sexualidade masculina é necessariamente atravessada por fantasias homossexuais. Esta questão foi discutida, ainda, através das contribuições de Peter Blos, autor que considera que a resolução do complexo de Édipo negativo somente ocorre no fim da adolescência. Para Blos, certos fenômenos que se apresentam na adolescência, como o culto aos heróis ou o distanciamento do sexo feminino – que pode chegar a ponto do exercício da violência contra mulheres – se relacionam a este período de intensificação do complexo negativo. O autor menciona, ainda, que a não-resolução do complexo negativo se mostra associada ao estabelecimento de relações heterossexuais marcadas pelo distanciamento afetivo, pela desqualificação e pelo não-reconhecimento do outro. A proposta da não-resolução do complexo negativo forneceria, ainda, parâmetros de compreensão para os atos de violação praticados por homens que, dentro de referenciais cronológicos, estariam situados fora dos limites da adolescência. Uma vinculação entre as condutas de violação e a não-resolução das questões referentes às moções passivas direcionadas ao pai integra as pesquisas efetuadas por Claude Balier sobre os delitos sexuais. Este autor indica que os violadores são predominantemente homens, e em geral jovens. Mas o autor pontua que o impulso à violação não deve ser considerado como algo inerente à sexualidade masculina. Para Balier, esta forma de violência indica problemas referentes ao não-reconhecimento do outro.
175 A questão principal, que norteou o quarto capítulo desta tese, foi a identidade sexuada, e suas relações com a dominação masculina. Ao tratar deste tema, vemos que André Green marca o papel do desejo e da fantasia dos pais que podem favorecer ou dificultar o processo de estabelecimento da identidade sexuada da criança. Entre os exemplos mencionados por Green, é levantada a possibilidade de que seja veiculada uma intolerância à bissexualidade psíquica do indivíduo que se manifesta por repressão e culpabilização das atitudes e tendências que não pertencem ao sexo biológico da criança. Este último exemplo fala de uma rigidez, de uma fixidez das concepções dos pais relativas às características genéricas, e que pode dificultar à criança a integração de sua bissexualidade psíquica. Essa observação do autor permite uma associação ao fenômeno designado “machismo” – que se caracteriza pela desqualificação do sexo feminino, denunciando falhas da integração da bissexualidade. Este fenômeno, que toma forma no desprezo e na agressividade contra a mulher, foi trabalhado mais extensamente a partir de observações de Jean Cournut (2002). O “machismo”, estudado pelo autor, consiste numa “posição contrafóbica fundamental”, numa “exacerbação defensiva da recusa do feminino” que se revela sempre “potencialmente perigosa”, posto que “induz à barbárie”, pesando principalmente sobre o estatuto das mulheres (COURNUT, 2002, op. cit. p. 274). Este sistema ideológico – nomeado como machismo – traz para o externo as fragilidades da masculinidade, os percalços de sua assunção; questão que viemos trabalhando a partir das concepções sobre a origem feminina da sexualidade e da identificação feminina primária. As defesas contra a passividade originária da criança frente à sexualidade implantada pelo adulto se organizam, desta forma, na recusa exacerbada do “feminino” – ameaçador porque íntimo – e estendem seus efeitos numa necessidade constante de afirmação de superioridade, de atividade, de controle, de dominação sobre o outro. Como vimos ao longo desta tese, o estabelecimento de relações de dominação frente ao outro externo diz respeito, contudo, ao domínio do outro interno. Tomando o narcisismo fálico em efeitos mais extensamente perceptíveis – e, por assim dizer, mais disseminados dentro das sociedades marcadas pelo patriarcado – fomos levados, através das distintas formulações de Cournut, à análise de uma problemática psíquica que pode ser localizada no campo das neuroses – histeria de angústia ou neurose
176 fóbica. Relembremos que o autor localiza o medo que os homens têm das mulheres no quadro de uma “fobia universal”. Vemos que, nas próprias concepções do autor, este quadro pode, contudo, extrapolar os limites das afecções neuróticas, situando-nos no contexto das patologias dos limites, das perversões ou da psicose – cujo aprofundamento não integrava os objetivos desta tese. Diante do que expusemos até aqui na elaboração deste estudo, desejamos assinalar que os problemas levantados pela agressividade e pela dominação masculina orientaram nossa pesquisa em direção à investigação dos percalços experimentados pela criança do sexo masculino para ultrapassar a posição passiva ante o adulto, que marca os anos iniciais da vida. Tendo em conta a articulação freudiana entre feminilidade e passividade, podemos dizer que a criança – seja ela menino ou menina – é “feminina” em seu princípio. Entendemos, ainda, que o fato de portar um órgão masculino não é garantia para o menino de acesso à masculinidade, constituindo-se esta num processo, em nosso entender, mais complexo e conflituoso que o “tornar-se mulher” o é para a menina. Através dos textos trabalhados, vimos que a virilidade é uma posição perpetuamente sob ameaça – especialmente se comungamos com os preceitos de sua passagem necessária pela feminilidade e pela identificação feminina primária. Tal situação encaminha o homem a manejos defensivos que se manifestam pela via das diferentes “provas de virilidade” que não raro enveredam pelo caminho da violência16. Voltando-nos para a dominação masculina, desejamos encerrar este trabalho deixando em aberto uma questão. Podemos perguntar se não seria esta dominação que, através da repartição arbitrária das “funções” materna e paterna, daria um considerável tributo à criação da imagem da mãe fálica, aterrorizante, uma vez que o afastamento do pai não oferece à criança alternativas ao poder “engolfante” da mãe? Em outras palavras, podemos pensar que esta situação de afastamento do pai dos cuidados da criança pequena – inserida nas prescrições de gênero – poderia contribuir para que o poder da mãe sobre seu rebento encontre uma expansão que adquire uma feição mais nitidamente patogênica? O que encaminharia mais diretamente o ”antigo pequeno menino” a uma luta incessante contra o feminino – contribuindo, desta forma para a promoção, num círculo vicioso autoengendrado, da própria dominação masculina? 16
Sobre esta questão ver Ribeiro, P. C. & Carvalho, T. (in CARDOSO, 2001), e Cecchetto (2004).
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