UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO

April 26, 2017 | Author: Margarida Affonso Mascarenhas | Category: N/A
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO REITOR: Adriano Aparecido Silva VICE-REITOR: Dionei José da Silva PRÓ-REITORIA DE ENSINO E GRADUAÇÃO: Ana Maria Di Renzo PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO: Áurea Regina Alves Ignácio PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO E CULTURA: Vera Lúcia da Rocha Maquea PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVOLVIMENTO INSTITUCIONAL: Francisco Lledo dos Santos PRÓ-REITORIA DE ADMINISTRAÇÃO: Valter Gustavo Danzer PRÓ-REITORIA DE GESTÃO FINANCEIRA: Ariel Lopes Torres PRÓ-REITORIA DE ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL: Celso Fanaia Teixeira COORDENADOR DO CAMPUS DE TANGARÁ DA SERRA: Sérgio Baldinotti

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ESTUDOS LITERÁRIOS Coordenador: Aroldo José Abreu Pinto Vice-Coordenador: Agnaldo Rodrigues da Silva

Avenida Tancredo Neves, 195 – Carvalhada - Cáceres - MT - 78200-000

ISSN 2176-1841 (digital) ISSN 1984-0055 (impressa)

P ROGRAMA

DE

P ÓS -G RADUAÇÃO EM E STUDOS L ITERÁRIOS -PPGEL N ÚCLEO DE P ESQUISA W LADEMIR D IAS -P INO U NIVERSIDADE DO E STADO DE M ATO G ROSSO

ANO 06, V OL . 08, N. O 08, DEZ. 2013 – T ANGARÁ DA S ERRA /MT – P ERIODICIDADE SEMESTRAL

© copyright 2013 by autores EDITORES:

Aroldo José Abreu Pinto Hélvio Gomes Moraes Junior

ORGANIZADORES:

Walnice Aparecida Matos Vilalva Tieko Yamaguchi Miyazaki María Eugenia Flores Treviño

CONSELHO EDITORIAL:

Agnaldo Rodrigues da Silva (UNEMAT) Antônio Manoel dos Santos Silva (UNESP) Antônio Roberto Esteves (UNESP) Dante Gatto (UNEMAT) Diléa Zanotto Manfio (UNESP) Diana Junkes Bueno Martha (UNESP/IBILCE) Emerson da Cruz Inácio (USP) Franceli Aparecida da Silva Mello (UFMT) Frederico Góes Fernandes (UEL) Gilvone Furtado Miguel (UFMT) Graciela Sánchez Guevara (ENAH-Mx) Josalba Fabiana dos Santos (UFS) José Javier Villarreal Álvarez Tostado (UANL-Mx) Julieta Haidar (ENAH-Mx) Madalena Aparecida Machado (UNEMAT) Manoel Mourivaldo Santiago Almeida (USP) Manuel Cáceres (UGR-ES) Marcos Siscar (UNICAMP) Maria de Lourdes Netto Simões (UESC) María Eugenia Flores Treviño (UANL-Mx) Mário Lugarinho (USP) Olga Maria Castrillon-Mendes (UNEMAT) Susi Frank Sperber (UNICAMP) Tânia Celestino Macedo (USP) Tieko Yamaguchi Miyazaki (UNESP-UNEMAT) Vera Lúcia Rodella Abriata (UNIFRAN) Vima Lia de Rossi Martin (USP)

DIAGRAMAÇÃO, ARTE CAPA E MIOLO:

Walnice Aparecida Matos Vilalva (UNEMAT) Aroldo José Abreu Pinto

REVISÃO (PORTUGUÊS):

Tieko Yamaguchi Miyazaki

TRADUÇÃO E REVISÃO (INGLÊS):

Hélvio Gomes M. Junior e Ricardo Marques Macedo

CORRESPONDÊNCIA:

UNEMAT - Secretaria de Pós-Graduação Rodovia MT - 358, Km 07, Jardim Aeroporto Tangará da Serra / MT - CEP: 78.300-000.

É proibida a reprodução de partes ou do todo desta obra sem autorização dos autores. Revista Alere / Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários PPGEL - Núcleo Estudos da Literatura de Mato Grosso Wlademir DiasPino, Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Universitário de Tangará da Serra - v. 08. n.08, dez. 2013 - Tangará da Serra: Editora da Unemat, 2013. Periodicidade semestral

ISSN 2176-1841 (digital) ISSN 1984-0055 (impressa) 1.Linguística. 2. Letras. 3. Literatura. I. Universidade do Estado de Mato Grosso CDU 81 R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Avenida Tancredo Neves, 195 – Carvalhada - Cáceres - MT CEP: 78200-000

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APRESENTAÇÃO

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ENCONTRO DE GRUPOS DE PESQUISA EM LITERATURA DO CENTRO OESTE MEETING OF BRAZILIAN MIDWESTERN RESEARCH GROUPS IN LITERATURE Frederico Fernandes ARTIGOS

23

A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE REGIONAL EM NUEVO LEÓN - MÉXICO THE FORMATION OF THE REGIONAL IDENTITY IN NUEVO LEÓN – MEXICO Víctor Barrera Enderle; Trad. Tieko Yamaguchi Miyazaki

39

DE LA ‘VERDAD HISTÓRICA’ A LA ‘VEROSIMILITUD NARRATIVA’ DEL TERROR: LA FIESTA DEL CHIVO (VARGAS LLOSA) FROM “HISTORICAL TRUTH” TO THE “NARRATIVE VERISSIMILITUDE” OF TERROR: LA FIESTA DEL CHIVO (VARGAS LLOSA) Julieta Haidar

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Sumário

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FICÇÃO E HISTÓRIA SOB O PENSAMENTO DE WHITE FICTION AND HISTORY UNDER OF WHITE’S THOUGHT João Batista Cardoso

83

MEMÓRIAS DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL: UMA LEITURA DE NIHONJIN (2011), DE OSCAR NAKASATO MEMORIES OF JAPANESE IMMIGRATION IN BRAZIL: A READING OF NIHONJIN (2011), BY OSCAR NAKASATO Antônio Roberto Esteves

101

O EXÍLIO, A MEMÓRIA E A RELAÇÃO ENTRE ARTE E HISTÓRIA NA OBRA DE JORGE SEMPRÚN EXILE, MEMORY AND THE RELATION BETWEEN ART AND HISTORY IN JORGE SEMPRUN’S WORKS Marcia Romero Marçal

127

A NARRATIVA PICTÓRICA COMO UMA FRONTEIRA DESLIZANTE EM THE MADONNA OF EXCELSIOR DE ZAKES MDA THE PICTORIAL NARRATIVE AS A SHIFTING BOUNDARY IN THE MADONNA OF EXCELSIOR BY ZAKES MDA Divanize Carbonieri

153

MUHURAIDA: ENTRE A ÉPICA E A HISTÓRIA, UMA LIÇÃO DE NACIONALISMO MUHARAIDA: BETWEEN EPIC AND HISTORY, A LESSON OF NATIONALISM Tânia Pêgo

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Sumário

177

A DESCONSTRUÇÃO PARÓDICA DO DISCURSO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO EM O BRASILEIRO VOADOR DE MÁRCIO SOUZA PARODICDECONSTRUCTIONOFBIOGRAPHICALHISTORICALDISCOURSE IN O BRASILEIRO VOADORBY MÁRCIO SOUZA Cléber Luís Dungue

205

IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR: UMA FICÇÃO TOPONÍMICA IRACEMA, BY JOSÉ DE ALENCAR: A TOPONIMIC FICTION Suene Honorato

229

VIAGEM E EXPLORAÇÃO COLONIALISTA NA UTOPIA INGLESA CLÁSSICA VOYAGE AND COLONIALIST EXPLOITATION IN CLASSICAL ENGLISH UTOPIA Helvio Moraes

243

DEZESSEIS PALAVRAS QUE CHORAM: UMA LEITURA DA (DES)CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM NA CRÔNICA DE ROBERTO POMPEU TOLEDO SIXTEEN WORDS THAT CRY: AN INTERPRETATION OF THE (DE)CONSTRUCTION OF LANGUAGE IN A CHRONICLE OF ROBERTO POMPEU TOLEDO Ricardo Marques Macedo e Aroldo José Abreu Pinto

261

LA PRODUCCIÓN FICCIONAL DE LOS HABITANTES DEL NORESTE DE MÉXICO: LA SIMBÓLICA DE LAS DOCE VERDADES DEL MUNDO

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Sumário

THE FICTIONAL PRODUCTION BY NORTHEASTERN MEXICAN INHABITANTS: THE SYMBOLIC IN LAS DOCE VERDADES DEL MUNDO Gabriel Ignacio Verduzco Argüelles e María Eugenia Flores Treviño

295

LA FUNCIÓN MITOPOÉTICA DEL ‘ÉL ES DIOS’ DEL ACTO COMUNICATIVO EN LA DANZA CONCHERA EN MÉXICO THE MYTHOPOETIC FUNCTION IN EL ES DIOS OF COMMUNICATIVE ACT IN CONCHERA DANCE IN MEXICO José Luis Valencia González

333

A PRÁTICA MIDIÁTICA E A HISTÓRIA: EM FOCO, O SUJEITO INDÍGENA NO SÉCULO XXI THE MEDIATIC PRACTICE AND HISTORY: IN XXI CENTURY” POR “IN THE 21ST CENTURY Maria Luceli Faria Batistote e Caroline Hermínio Maldonado

353

NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS RULES FOR THE SUBMISSION OF ARTICLES TO ALERE

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O número 08 da Revista Alere está dedicado ao tema Literatura e História. Nele se reúnem colaboradores das seguintes universidades: Escuela Nacional de Antropología e Historia (ENAH), México;da Universidad Autónoma de Nuevo León (UANL), Monterrey, México; Universidade de Lisboa (FLUL); Universidade Federal de Goiás (UFG); Universidade Estadual de Londrina (UEL); Universidade Estadual Paulista (UNESP); Ponfícia Universidade Católica de São Paulo (PUCsp); Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT); Universidade Federal de Tocantins (UFT); Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT). Dentro do amplo universo delimitado pelo dossiê, tanto os objetos quanto as abordagens, em seu embasamento teórico e na metodologia aplicada, apresentam uma gama bastante variada, conferindo a este número da revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, da UNEMAT, uma abertura significativa de entendimento da relação da Literatura com a História. Cremos oportuno que este número se abra com a palestra proferida pelo professor Frederico Fernandes, da UEL, por ocasião do encontro de Grupos de Pesquisa em Literatura do Centro Oeste. Partindo da pergunta: “O que nos leva a deixar nossas casas para vir para Tangará da Serra, a 240 km de Cuiabá, para discutir possibilidades de convênio de pesquisa e R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Apresentação

formas de associativismo?”, encontra a resposta: “ [...] está no local de onde falamos e também na nossa própria trajetória”. Para explicar em que isso consiste, o professor faz um retrospecto da história da pesquisa da literatura e da linguística no país, lembrando a criação de associações como a Anpoll, Abralin, Abralic. E se vale de Agamben para justificar não só a pesquisa como os grupos acadêmicos que congregam especialistas de diferentes IES; segundo o professor, para Agambem, amigo é aquele que age pelo “consentir” e pelo “condividir”. O consentimento não é entendido como uma autorização, no sentido de que eu autorizo você a fazer, eu consinto, mas no sentido de “sentir com” e, se eu sinto com o outro, torno-me capaz de compartilhar as angústias e prazeres, sou capaz de dividir o que tenho de melhor. Tomando como enlace essa visão histórica da pesquisa acadêmica na atualidade, segue o artigo de Victor Barrera Enderle que, embora falando do norte do México, pode muito bem servir como norteador da leitura dos demais textos deste número da revista. A literatura produzida no estado mexicano de Nuevo León comparece nesse artigo cujo núcleo de preocupação se traduz na pergunta sobre a propriedade e acerto em denominar-se a produção literária nessa região como “Literatura do Norte”. Isto em vista das transformações histórico-culturais , em que o Estado, enquanto o patrocinador cultural por excelência, foi perdendo a hegemonia para as indústrias culturais, para as editoras transnacionais. Classificando-se como abordagens que privilegiam a relação entre o discurso historiográfico e o literário, seguem-se os trabalhos de Julieta Haidar, João Batista Cardoso, Antônio Roberto Esteves, Márcia Romero Marçal, Tânia Pego, Divanize Carbonieri, Cléber Luís Dungue, Suene Honorato, Helvio Moraes, Ricardo Marques Macedo e Aroldo José Abreu Pinto. Julieta Haidar focaliza o romance de Mário Vargas Llosa, La fiesta del chivo, em que, segundo a autora, se entrelaçam o ficcional e o histórico de forma tão estreita, o segundo parece superior ao R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Apresentação

primeiro, problematizando a fronteira entre eles. Fato que parece dever-se ao próprio desenvolvimento da América Latina e do Caribe. Aspectos fundamentais a examinar são, de um lado, “ el funcionamiento de lo prohibido, de los tabúes, en la reconstrucción de la memoria histórico-política del trujillismo”, e, de outro, a repercussão que o romance teve em países com Santo Domingo, Peru, Espanha. Nas obras Meta-história: a imaginação histórica do século XIX e Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura, de Hayden White, se inspira João Batista Cardoso, em seu artigo em que aproxima Euclides da Cunha, de Os sertões, e Vargas Llosa, de A guerra do fim do mundo, na análise de operações que possibilitam a compreensão da relação de um texto de pretensão histórica e outro, de cunho literário. Segundo Antônio Roberto Esteves o livro premiado Nihonjin, de Oscar Nakasato, ao retomar o tema da imigração japonesa ao Brasil, não o faz numa orientação épica, “pouco apropriadas aos tempos de globalização”, e a desloca para ponto de vista da “aventura de se tornarem brasileiros.” Isso visto não pela perspectiva de um imigrante mas de um filho e neto de imigrante que procura recuperar pela lembrança o que ouvira de seus familiares e preencher pela imaginação as lacunas do que teria sido essa saga. Em lugar de privilegiar a luta propriamente dos primeiros imigrantes em terra brasileira, como fizera Gaijin, de Tizuka Yamazaki, o livro focaliza o drama de pequenos grupos frente ao dilema da recusa ou aceitação da resultado da segunda Grande Guerra. Em O exílio, a memória e a relação entre arte e história na obra de Jorge Semprún, Márcia Romero Marçal focaliza a obra La escritura o la vida (1994) desse escritor espanhol, bilíngüe, roteirista de filmes como La guerre est finie, de Alain Resnais (1966) e Z, de Costa-Gravas (1970). Semprún foi membro importante do partido comunista espanhol. Mas nada mais marcante em sua história que Buchenwald. Nessa obra, diz a autora “o narrador questiona seu regresso de R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Apresentação

Buchenwald ao mundo “civilizado”, através do uso especial do termo “ressuscitado” ao invés de sobrevivente, ao mesmo tempo em que concebe o espaço do lager como a pátria-origem enquanto que o mundo como lugar de eterno exílio. Tal procedimento semântico nos informa que não há retorno ou futuro para quem esteve nos campos de concentração cuja catástrofe corresponde a uma perda irrecuperável”. The Madonna of Excelsior (2002), do sul-africano Zakes Mda, é o objeto da artigo de Divanize Carbonieri, para a qual iniciar-se cada capítulo desse romance pela descrição de pinturas é uma estratégia para a criação de uma metaficção historiográfica, cujo foco é o momento intervalar entre o período do apartheid e o seu fim. O interesse da análise de Carbonieri é a possibilidade de ler-se essa relação entre narrativas pictóricas e o todo da obra como “fronteiras textuais e metafóricas e o deslizamento entre violência e reconciliação. Trabalhar a hipótese de que Muhuraida – normalmente considerado um poema heroico - possa classificar-se como um poema heroico-religioso é o que faz Tânia Pego, baseando-se na religiosidade que nele se manifesta. Henrique João Wilkens recria em sua obra um acontecimento de seu tempo, a pacificação da tribo Mura, e nela “revela um certo sentimento patriótico, sustentado por uma velada denúncia dos abusos cometidos pelos colonizadores e missionários contra os índios”. A relação entre o discurso historiográfico e o literário é também o objeto de pesquisa de Cléber Luís Dungue; a literatura aqui na forma de biografia como se tem escrito atualmente. A figura escolhida é Santos Dumont e a obra, O brasileiro voador, de Márcio de Souza. Segundo o autor do artigo, a livro se estrutura como uma paródia, em que se desconstroi o mito nacional , livrando o inventor da ossificação histórica. “A leitura do romance, cotejada com textos críticos do próprio Alencar, mostrará” – afirma Honorato em seu artigo sobre R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Iracema, “como a máscara assumida por esse personagem-narrador parece condizente com o projeto alencariano de consolidação da língua e literatura no Brasil, que pretendia a criação de novas formas de expressão, de novos tipos literários, em conformidade com a originalidade da natureza brasileira”. Os primeiros escritos utópicos ingleses (Utopia de Morus e A Nova Atlântida de Bacon) são estudados por Helvio Moraes, comparando as concepções de um e outro quanto a colonização do Novo Mundo, na construção idealizada do mundo outro; analisa também relatos feitos pelos interlocutores do viajante em relação à forma como são tratadas as populações nativas. “Dezesseis palavras que choram”, crônica de Roberto Pompeu Toledo, publicada na Revista Veja, toma como tema a reação provocada pela fala do governador do Distrito Federal (2002), em que ele incitaria a crime de preconceito racial, ao convocar a população, numa manifestação/comício na cidade-satélite de Brazlândia, a uma “salva de vaias” a um aposentado negro que se encontrava próxima a uma faixa de protesto produzida por militantes do Partido dos Trabalhadores. Ricardo Marques Macedo e Aroldo José Abreu Pinto confrontam o texto do discurso e os argumentos da defesa do Governador contra a imputação do crime. Não só a literatura oficial comparece: manifestações de minorias e em outros suportes são consideradas em textos de Gabriel Ignacio Verduzco Argüelles e María Eugenia Flores Treviño, José Luis Valencia González, Luceli Faria Batistote e Caroline Hermínio Maldonado. Gabriel Ignacio Verduzco Argüelles e María Eugenia Flores Treviño se dedicam a pesquisar a tradição oral, o imaginário popular que se manifesta em relatos carregados de imagens simbólicas. Dentre eles, os autores escolhem Las doce verdades del mundo, do estado mexicano de Coahuila. Trata-se de um ritual para aprisionar bruxas. Partem os autores da hipótese de que a produção simbólica nesses relatos está condicionada pelo contexto vital, cujos sinais se R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Apresentação

identificam na peculiaridade de cada relato, ou no apelo à consciência religiosa do ouvinte. É o mitopoético, manifesto nas funções comunicativas, que interessa a José Luis Valencia González ao analisar o enunciado discursivo “El es Dios”, pronunciado durante o ritual da dança conchera mexicana. Segundo explica o autor, trata-se de uma dança que se pratica em várias regiões do país, e tem origem em tempos pré-colombianos. Nessa análise, Valencio se apoia Iuri Lotman, na Semiótica da Cultura da Escola de Tartu, e em Roman Jakobson. A prática midiática e a história: em foco, o sujeito indígena no século XXI: numa abordagem semiótica, Maria Luceli Faria Batistote e Caroline Hermínio Maldonado analisam um texto jornalístico veiculado em 2009, pelo jornal Correio do Estado: uma foto montagem em que a figura de um indígena, da tribo terena, aparece vestido, de um lado, de terno e gravata e, de outro, de fibras de buriti, acompanhadas de cocar, colares e com a parte do rosto pintado. Priorizando os níveis textuais da tematização e figurativização, as autoras buscam os efeitos de sentidos decorrentes do processo de textualização, na construção de uma identidade. TIEKO YAMAGUCHI MIYAZAKI WALNICE APARECIDA MATOS VILALVA MARÍA EUGENIA FLORES TREVIÑO ORGANIZADORES

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ENCONTRO DE GRUPOS DE PESQUISA EM LITERATURA DO CENTRO OESTE MEETING OF BRAZILIAN MIDWESTERN RESEARCH GROUPS IN LITERATURE Frederico Fernandes (UEL)1 O convite da professora Walnice Aparecida Matos Vilalva me instigou a fazer a seguinte pergunta: o que nos leva a deixar nossas casas para vir para Tangará da Serra, a 240 km de Cuiabá, para discutir possibilidades de convênio de pesquisa e formas de associativismo? O que há em comum entre pesquisadores de Vilhena, Cuiabá, Três Lagoas, Londrina e Tangará da Serra que os move num espírito de projeto comum? Penso que a resposta para estas questões está no local de onde falamos e também na nossa própria trajetória: fomos formados em universidades brasileiras classificadas entre as 1

Doutor em Literatura pela UNESP-Assis e pós-doutorado pela Brock University- Canadá. É Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina. [email protected]. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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ENCONTRO DE GRUPOS DE PESQUISA EM LITERATURA DO CENTRO OESTE F REDERICO F ERNANDES

top 500 do planeta (e paga a pena mencioná-las, pois tem sido delas que têm saído, há mais de 3 décadas, as principais lideranças intelectuais da pesquisa em Letras e Linguística do País: USP, UNICAMP, UFRJ, UFMG, UNESP, UFRGS)2, fomos aprovados em concursos públicos em instituições cuja pós-graduação se encontra em fase de afirmação /consolidação, fizemos o exercício de lideranças científicas em nossas IES, às vezes, assumindo cargos de coordenadores de Grupos ou Comissões de Pesquisa, Grupos de Trabalho junto a associações importantes como Abralic, Abralin e Anpoll ou de Programas de Pós-Graduação. Em resumo, protagonizamos um papel político da pesquisa no sentido em que Gramsci o percebe, como o exercício do intelectual orgânico, daquele intelectual que pesquisa e, na medida do possível, busca fazer a gestão do conhecimento. E é esse exercício que nos leva a querer pensar numa relação associativa que não apenas nos legitime enquanto intelectuais de instituições que não aparecem no ranking das 500 universidades mais importantes do planeta, o ranking de Xangai, mas que anseiam por ter voz no centro de decisões das políticas da área de Letras e Linguística do País. E não é por acaso que a área tenha atualmente como seu coordenador junto à CAPES um professor da UFPB após uma longa tradição de uspianos, e haja três membros no comitê de assessoramento do CNPq (entre 8) vindos de IES como UFS, UFPE e PUC/RJ. Mas ainda é muito raro ver representantes de IES do Paraná ou do Mato Grosso, e quem dirá de Rondônia, ocupando representações, pois o “fora do eixo”, nesse caso, tem sido quando muito representado pelo Nordeste. Entendo que a hegemonia de docentes advindos das 6 IES brasileiras (que não por acaso compõem o ranking de Xangai) à frente da CAPES, do CNPq como também das 3 mais importantes associações da nossa área no País (em que pese o fato de que a Abralic esteja atualmente em Belém, assim como a Abralin, e a ANPOLL na UFSC) é fruto de uma tradição associativa protagonizada por intelectuais pesquisadores da área que não merece ser menosprezada R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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numa reunião como esta. Parece-me importante observar que a área de Letras e Linguística desempenha um papel de pouca importância para o rankeamento das 6 IES mencionadas, já que para este ranking é levado, principalmente, em conta o fator de impacto de artigos publicados – o fato H. E nós temos apenas 3 revistas brasileiras na área de Letras e Linguística com fator de impacto, segundo classificação do SJR de 2010: Revista Alea (classificada nas áreas de Linguística e Língua e de Literatura e Teoria Literária), Delta (somente na área de Linguística e Língua) e Revista de Letras Unesp (na área de Litertaura e Teoria Literária). A leitura do Science Journal Reference (SJR) me levou às seguintes observações à época, resumidas aqui em 3 tópicos: A área de Letras, Linguística e Artes apresenta indicadores muito inferiores à Odontologia e Educação nos níveis nacional, latino-americano e internacional. Revistas conceituadas da nossa área não apresentam impacto de citação internacional, não sendo sequer classificadas. Esse impacto não é alcançado porque a nossa pós-graduação é refratária ao diálogo com a comunidade internacional. Voltando ao objetivo desta fala, se por um lado a nossa área parece contribuir pouco, por outro, há nas 6 IES, classificadas pelo ranking Xangai, uma tradição no fazer da pesquisa que capacita seus pesquisadores a protagonizarem lideranças científicas na área de Letras e Linguística do País. Assim, não se trata apenas de legitimar um discurso do “fora do eixo”, se este “fora do eixo” representar apenas a inserção do Nordeste na mesa já ocupada pelo Sudeste e pelo Rio Grande do Sul. O discurso do fora do eixo não deve apenas ter como argumento a difícil realidade em que vivemos, as enormes dificuldades que enfrentamos para estarmos onde estamos, o fato de que nos lamentamos em não protagonizar papeis políticos importantes, mas deve (e aí ele começa a se tornar atrativo para mim) pensar criticamente o nosso próprio fazer, a nossa prática de pesquisa, a maneira como, a nosso modo, faremos parte da história R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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da pesquisa em Letras e Linguística no País. Em outras palavras, enquanto o discurso do “fora do eixo” tiver um tom disjuntivo (do nós VS. o eles), pouco estaremos contribuindo para o crescimento da área de Letras e Linguística no País e estaremos correndo o sério risco de trocarmos 6 por meia dúzia. Para mim, pensando em Alberto Moreiras e, também, em Giorgio Agamben, é somente na crítica da amizade, na interlocução aberta, franca de igual para igual com o outro, que se pavimenta o avanço benéfico a todos. É somente na amizade, como diria Agamben, que podemos pensar o fazer político. Se o que nos move é o desejo de sermos representantes no centro das decisões por acharmos que somos “o de fora”, então começamos nosso projeto da mesma maneira equivocada do que aqueles que hoje questionamos, mas se nosso desejo for o de ter voz, for o de apresentar-se para o debate, e se nossa atitude for a da amizade, aí sim teremos uma chance de fazer a subsunção da pesquisa em Letras e Linguística no País. Volto para Tangará, estamos numa reunião, a meu ver, que nos inspira a amizade. Não se trata da amizade íntima e pessoal que muitos de nós demonstramos ter um com os outros devido aos vários anos de convivência. Para explicá-la recorro mais uma vez a Agamben: amigo é aquele que age pelo “consentir” e pelo “condividir”. O consentimento não é entendido como uma autorização, no sentido de que eu autorizo você a fazer, eu consinto, mas no sentido de “sentir com” e se eu sinto com o outro, torno-me capaz de compartilhar as angústias e prazeres, sou capaz de dividir o que tenho de melhor. O condividir não é uma relação generosa, não sou amigo porque sou bonzinho ao doar algo, mas porque acredito que se eu compartilho fortaleço o espírito comum, do qual também me beneficio. E prestem atenção nessas duas palavras: espírito comum. Lembro que Bachelard falava da diferença entre alma e espírito, enquanto a primeira dizia respeito a uma essência, o segundo dizia respeito a um modo de ser, uma forma de estar e agir no mundo. Volto com a questão inicial, agora reconfigurada, qual é o R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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nosso espírito comum aqui em Tangará nesse dia 06 de setembro? Não é o ato de assinatura de um convênio. Concordo que ele dará uma legitimidade institucional a nossas ações, mas ele não é o espírito que buscamos. A pergunta que me faço é como podemos criar espaços propícios para a condivisão? E vejam que a criação destes espaços pode funcionar como uma estratégia para sair da lógica perversa e competitiva que a CAPES/CNPq nos empurram. Aí me parece que as redes colocam-se como uma possibilidade para realização do espírito comum de que falo. Mas é necessário que, para tanto, pensemos isso conjuntamente. Para falar de rede, recorro a um biólogo aposentado da UEL, o prof. Luiz Carlos Bruschi, que publicou um livro intitulado A rede autopoiética, no qual busca uma compreensão da Biologia não a partir de uma ordem evolucionista das espécies, mas como uma colaboração entre elas. A seu ver, a variedade de seres é fundamental para a trama da rede da vida porque o princípio de evolução não reflete a adaptação da espécie apenas para a sobrevivência de si, mas a da outra. Como ele observa: “A organização da vida é feita em rede, não havendo organismos vivos que não mostrem formas de associação interna e com o meio que os circunda; os organismos vivos são sistemas abertos que trocam matéria e energia com o meio, mantendo-se íntegros à custa do aumento da desordem térmica desse último, e permanecem em constante autoconstrução.” Fica subentendido na apresentação do livro do prof. Bruschi que a rede vai se caracterizar pela amplitude, pela diferença e pela interseção entre os seres nela envolvidos. No caso do conhecimento científico, a constituição de redes não é algo inusitado e talvez as duas iniciativas mais conhecidas do século atual sejam o acelerador de partículas LHC, que ocupa 27 km de subterrâneo na fronteira entre a França e a Suíça, e o Projeto Genoma. Sobre este último, ele foi proposto no ano de 1987, após 15 anos de preparação, pelo Departamento de Energia do Governo dos Estados Unidos. Teve por principal objetivo detectar a composição química do DNA R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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humano. A sequência do genoma humano foi declarada completa em 2003. O projeto recebeu aporte de 3 bilhões de dólares durante sua fase de implantação. Para tanto, foi criado um consórcio com o Reino Unido, Austrália, Japão e França, envolvendo pesquisadores geneticistas de outros países. (a respeito ver, DeLisi, Charles (1988). The Human Genome Project. American Scientist 76: 488.) Mas estas redes parecem ser muito distantes de nossa realidade local e também de nossa área de conhecimento. Além de nunca termos ouvido falar em projeto de 3 bilhões de dólares, há na constituição delas um princípio contributivo (e vejam que não estou falando de impostos), no qual é delineado um objetivo comum responsável por envolver cientistas de várias partes do mundo. Desse modo, a contribuição, por meio do trabalho de formiguinha de cada um, vai levar ao cumprimento de uma meta que parece encerrar a rede ao ser definida. Nós, das Letras e Humanidades, ao contrário, constituímos redes a partir de um princípio rizomático em que um tema se liga a outro, e a outro e assim por diante. Não fiz o levantamento da média de idade dos 42 GTs das ANPOLL, mas seria curioso saber disso, pois os GTs são redes de pesquisadores que parecem ter longos anos de vida. O qual participo, por exemplo, tem certamente mais de 20 anos de duração, só eu sou filiado a ele há pelo menos 15 anos. O Atlas Linguístico do Brasil (ALIB), uma rede de pesquisadores da variação lexical e linguística, possui mais de 10 anos de existência e é constituído por pesquisadores que revistam a variação e promovem o mapeamento contínuo das variantes regionais. Outra característica de nossas redes, e aí estou trazendo o debate para o Centro-Oeste, é que às vezes elas se constituem por critérios geopolíticos, como por exemplo, a Rede CO3. O princípio regional proposto pela CO3 é muito significativo se pensarmos o debate inicial sobre estratégias de legitimação de pesquisas fora do eixo. E me parece que a fala de seus participantes vai muito nesta R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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direção. Ainda sobre a CO3, ela se abre para além da área de Letras e Linguística e promove o debate inter e multidisciplinar. A inter e multidisciplinaridade torna-se um grande entrave quando a constituição de rede em nossa área é pensada a partir dos Grupos de Trabalho da ANPOLL que, em seu regimento, inibe a participação de filiados que não pertençam a programas de Letras e Linguística. Este é um grande problema enfrentado pelo GT de Literatura Oral e Popular que, para superá-lo, criou a Rede Cartografia de Poéticas Orais. Esta rede foi gestada por 4 anos antes de se tornar um projeto. A rede Cartografia tem por objetivo colocar o pesquisador da poética oral frente a diferentes correntes de pensamento e também provocar o diálogo entre elas. Permite a ele ter um olhar crítico sobre o seu próprio fazer de pesquisador, de modo a pensar conceitos e formas de relacionamento com seu objeto de pesquisa. Vista nesta perspectiva, uma abordagem cartográfica acolhe diferentes olhares críticos em torno da poética oral e propicia o debate regional em torno de ideias. A rede de pesquisadores é nacional, constituída em torno do tema poéticas orais, em que cada nó é formado para a compreensão teórico-crítica de textos poéticos orais. A rede possui vários produtos, entre eles, cabe mencionar a Revista Boitatá e o Portal de Poéticas Orais. Pensando em específico no Portal de Poéticas Orais, ele tem por objetivos: Sair do eixo criando espaços alternativos para produção e circulação da cultura acadêmica voltada para a pesquisa em poéticas orais. Isso implica esclarecer preconceitos sobre o objeto na própria academia e enfrentar discursos que visam --deslegitimar a poesia oral em meio ao texto poético impresso. Promover o diálogo entre pesquisadores de diferentes instituições, mediado pela crítica da amizade explicitada acima. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Criar mecanismos para a integração e cooperações entre pesquisadores em seus projetos de pesquisa. Isso é ainda o grande desafio que se coloca para nossa rede. Compartilhar e ajustar referenciais teóricos, bem como criar um canal para disseminação e referência de busca de trabalhos de pesquisa na área. Fundamentar o saber produzido numa abordagem holística e gerar produtos que atendam aos anseios das comunidades por nós pesquisadas. Afinal, qual é a função última do pesquisador, apenas escrever teses, dissertações e artigos? Acredito que a Rede Cartografia de Poéticas Orais, ao colocar em tela especificidades de um produção poética que ainda luta pela sua legitimação nos meios acadêmicos na área de Letras, está também constituindo uma forma de associação e de relacionamento com a pesquisa específicos, isto é, diferente das formas mais tradicionais de associação da qual somos herdeiros e que no melhor sentido nietzschiano (se é que podemos chamá-lo de melhor) agimos para superá-la.

Nota 2

Trata-se do ranking de Xangai, divulgado no último mês de agosto de 2013, que pode ser acessado pelo endereço: http://www.shanghairanking.com/ARWU2013.html

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A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE REGIONAL EM NUEVO LEÓN – MÉXICO THE FORMATION OF THE REGIONAL IDENTITY IN NUEVO LEÓN – MEXICO Victor Barrera Enderle (UANL-Mx)1 Tradução: Tieko Yamaguchi Miyazaki (UNEMAT)2 RESUMO: Este ensaio trata da recente elaboração de uma categoria de classificação literária: a “Literatura do Norte”. A literatura mexicana recente tem experimentado uma série de transformações profundas. A hegemonia das indústrias culturais tem promovido deslocamentos profundos no interior do campo literário. A antiga centralização cultural se viu deslocada por no1

Docente de graduação e Pós-Graduação em Literatura e Ensino, da Faculdade de Filosofia e Letras (FFyL) da Universidade Autônoma de Nuevo León (UANL), Monterrey, México. [email protected] 2 Docente do Mestrado em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra. Mato Grosso. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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vas formas de ordenação e difusão da literatura. O Estado, antigo patrocinador cultural, perdeu seu lugar de protagonista para as novas editoras transnacionais que reorganizaram a cartografia das letras mexicanas sob critérios mercadológicos. Ao Norte correspondeu uma narrativa centrada em alguns tópicos: fronteira, narcotráfico, migração, deserto, etc. O presente ensaio aborda as diferentes manifestações desse processo. PALAVRAS-CHAVE: Literatura mexicana. Literatura do Norte. Indústrias culturais. Fronteira. ABSTRACT: This essay reflects on the recent development of what it seems to be a literary category:” Northern Literature”. Recent Mexican literature has undergone a series of profound transformations. The hegemony of cultural industries has produced deep movements into the literary field. Former cultural centralization was displaced by new forms of organization and dissemination of literature. The State, old cultural sponsor, lost its leading role among the new transnational publishers that reorganized the maps of Mexican literature under market logics. In the North, the narrative had to be centered on a few topics: borderland, drug trafficking, migration, desert, etc.. This essay discusses the different expressions of this process. KEYWORDS: Mexican literature; Northern Literature; Cultural industries; Borderland.

Mas quando surge a identidade de Nuevo León? Melhor: como se forma? Quais são as estratégias (políticas, sociais, culturais, lingüísticas, literárias) idôneas para sua configuração? É evidente que a identidade da região não nasce espontaneamente, de um dia para outro; ainda que ela tenha se consolidado, em nosso caso, em um período preciso: a independência. A emancipação política reavivou na região uma antiga disputa sobre um assunto de capital importância: a representação jurídica de seus habitantes. A transferência da condição de súditos de uma monarquia longínqua e R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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autoritária à de cidadãos de uma nação nova e com “futuro venturoso” avivou os desejos de participação e discussão da incipiente elite política local. Era preciso gestão de uma representação favorável aos interesses da comunidade (públicos e privados). Entretanto o problema de base era muito mais importante e obedecia à necessidade de construir uma imagem, uma ideia, uma experiência, uma identidade do espaço e da sociedade locais. Ninguém melhor que frei Servando Teresa de Mier compreendeu essa conjuntura: dele me ocuparei um pouco mais adiante. O novo problema: a relação com o centro. Durante a administração colonial, a região recebia um tratamento “legalmente” subordinado às autoridades monárquicas e religiosas; agora as coisas tinham mudado drasticamente. Existia a possibilidade de uma relação menos vertical com os poderes representativos da nação. Com relação a este assunto há algumas questões fundamentais que é preciso definir, ainda que de maneira sucinta. Antes de mais nada está uma palavra antiga que nesse momento ganhava um significado novo: nação. A nação havia sido, nos tempos anteriores à modernidade ocidental, uma designação regional; com o advento da Ilustração e a elevação da razão como principal instrumento de organização política, a nação havia adquirido uma designação hegemônica, política: o suporte e a legitimação do Estado soberano. Antes de prosseguir pelo sinuoso caminho da formação dos estados modernos, vou me deter no termo nação e me valho da definição que lhe dá o historiador inglês Eric Hobsbawn: “ A característica básica da nação moderna e de tudo que se relaciona com ela é a sua modernidade”. Antes da modernidade, nação significava, como acabo de assinalar, o “conjunto” de habitantes ou súditos de uma província, região, país ou reino. Foi o pensamento moderno, isto é, a racionalização das novas funções públicas, que configurou, ao longo dos séculos XVIII e XIX, a acepção moderna do termo: “Estado ou corpo político que reconhece um centro comum supremo de governo.” (HOBSBAWN, 2000, p.23). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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A grande mudança: a união de governo e nação. Esta unidade fortalece a elaboração de uma simbologia particular que fará seus habitantes (governados e governantes) se reconhecerem em um mesmo território discursivo. Na etapa pré-moderna, a nação, na medida em que se referia a uma região ou território, dificilmente constituía uma unidade política (fora das fronteiras estritamente regionais), embora, isso sim, configurasse um espaço identitário que se diferenciava de outros através de uma série de elementos básicos: língua comum, raça, tradições etc, e esse aspecto é digno de ser lembrado ao se refletir sobre a crítica e a literatura de alguma região. A nação moderna, ao ser uma elaboração simbólica realizada na esfera do Estado, tenderá a “eliminar” as características regionais (fundamentos da antiga acepção do termo em questão) nas aras da configuração d “o nacional”. Assim, um país, dotado de uma ou várias nações dentro de seu território, se consolidará, em seu processo de modernização, como um todo homogêneo, ou seja, como um discurso coerente em que se articulem a memória histórica, a língua hegemônica e o discurso político do governo em funções públicas e sociais perfeitamente definíveis, tudo com a finalidade de consolidar uma identidade coletiva sólida e garantia da nova vida política do país. Na América Latina o processo foi mais intenso. A formação dos Estados-nacionais se viu precedida (e cimentada) pelas lutas de emancipação. As independências colocaram as novas repúblicas na necessidade de projetar um modelo de organização política que garantirá a coesão entre os novos governantes e os novíssimos cidadãos. O grande repto: a demonstração plena da capacidade para o manejo dos assuntos públicos. Os novos problemas: a formação cidadã de seus habitantes e a implementação dos modernos sistemas políticos e econômicos. Porque devemos lembrar que o período da emancipação de nossos países “coincide” com um momento de expansão da economia capitalista, mais especificamente, com o auge do imperialismo ocidental. O próprio processo revolucionário hispano-americano foi projetado como uma R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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possibilidade comercial para as novas potências do norte da Europa, Inglaterra e França, ou pelo menos assim foi apresentado em Londres pela primeira missão da Venezuela independente em 1810, comandada por Simón Bolívar e Andrés Bello. A América Latina começava, assim, o seu diálogo com o mundo ocidental (suprimo aqui a relação com Espanha, não somente por ser esta uma monarquia “pré-moderna”, mas também pela hierarquia colonizadora que impôs em nossas regiões, tal imposição subministrou uma infinidade de elementos – língua, cultura, religião, formas de governo, literatura, artes; mas jamais promoveu um diálogo equitativo entre as duas partes) em termos que se pensavam, em um princípio, em harmonia. Para a intelectualidade hispanoamericana ( desde os jesuítas expulsos até os primeiros críticos insurgentes) a América hispânica apresentava todas as vantagens para a inversão e o desenvolvimento (claro, eles se sustentavam em documentos europeus, como El Ensayo político del Reino de la Nueva España, do barão Humboldt e outros: a literatura de viagens e em especial a literatura sobre a América espanhola que ganhou desde o século XVIII uma importância nada desdenhável. As economias em expansão procuravam com afã novos mercados e novas fontes de matérias primas e tinham agora o discurso científico – filho preclaro da modernidade – como via para legitimar suas empresas colonialistas e comerciais). Com um futuro tão próspero ad portas, a intelectualidade hispano-americana, debutando na discussão aberta dos assuntos públicos (recordemos a luta inicial desses sujeitos críticos por impor uma opinião pública, ou seja, um espaço discursivo liberado das censuras oficiais e religiosas), tinha como principal repto a definição de suas formas de governos. Era preciso e urgente demonstrar ante o mundo uma liberação total, verificável em todas as ordens (do econômico até o artístico). Agora bem, nessas discussões “ fundamentais” (a criação das novas repúblicas está em jogo, não menos que isso), há outro termo R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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fundamental que requer nossa atenção: o de soberania. A soberania é a garantia maior da existência jurídica do Estado-nação. A aparição do sujeito soberano consolida o discurso da modernidade e o define espacial e temporalmente. O ser humano deixa de ser uma abstração e se converte em um sujeito consciente, dotado de uma autonomia de pensamento e ação. Isto implica que os novos sistemas ou formas de governar devem – ou deveriam, pois a realidade foi sempre outra – sustentar-se em um diálogo mútuo entre governantes e governados. A soberania se sustenta pela constituição que é um documento moderno por excelência (excluo aqui as constituições monárquicas que sustentavam a sua validade por contratos divinos ou metafísicos, tornando seus reis ou imperadores vicários de deus ou de alguma outra divindade), ali se estabelecem relações em termos de representatividade. O discurso jurídico do Estado-nação busca a representatividade de todo o território sob a sua custódia. E a partir dessa instância reelabora a idéia de nação e a “constroi” como uma narração coerente e plena de significação. Tal plenitude inclui certamente os campos artísticos, e muito significativamente o terreno literário. A literatura transmite uma experiência (estética, ideológica, crítica, ontológica ) única, mas compatível com outras experiências. A ficção literária é, nesse momento de fundação, suporte para a imaginação nacional (e regional, consequentemente). Porque a ficção torna verossímil o discurso liberal configurado pelo pensamento moderno; vai mais além das restrições da realidade grosseira. Uma sociedade nova, imaginada através da escritura, se converte no tópico principal desse momento formativo. É certo, a nação moderna, no Ocidente, vai acompanhada da letra impressa. Da reprodução mecânica da escritura, o que provoca, no caso latino-americano, uma cisão profunda e ainda não resolvida: a oposição entre oralidade e escritura. Eu disse não resolvida porque a escritura ganhará em nossos territórios uma significação não somente jurídica mas também social e fará das expressões orais uma forma de marginalização. A escritura será a R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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princípio manifestação hegemônica, propriedade das elites ilustradas locais. Sua fórmula: a exclusão; sua garantia: o código compartilhado por alguns poucos. Poder, em uma palavra. Mas também acessibilidade. A grande mudança da era insurgente foi a discussão pública das idéias, dos valores cívicos e dos paradigmas estéticos. Uma vez desarticulado o monopólio do sistema colonial, pôs-se em discussão o trato dos assuntos públicos das novas nações. Quem se encarregaria agora do poder e do controle da representação? Que tipo de nações seriam esses novos países? Na introdução deste ensaio falei da fórmula herderiana que unia discursivamente a nação com a língua específica e com uma tradição bem configurada às necessidades do presente; pois bem, no caso latino-americano, a fórmula calhava com perfeição, pois sua aplicação supunha um forte grau de exclusão. A situação era clara: torna-se claro um contundente processo de diferenciação com relação ao exterior (em particular, com relação à antiga metrópole) e um coerente processo de assimilação com relação do interior. Diferenciação: porque era preciso demonstrar a existência de uma civilização própria, de uma cultura autônoma, possuidora de uma tradição, isto é, com um passado cheio de significação simbólica. Assimilação: porque, ao contrário das culturas metropolitanas (que contavam com uma “antiguidade literária” legitimadora de suas produções atuais), as nações hispanoamericanas deviam construir seu passado de maneira heróica e estética, fazer dos costumes locais uma fonte de inspiração artística e a base da identidade nacional. O problema não era simples: como dotar de literariedade uma língua que foi imposta pelo conquistador? Isto é, como dotar de um caráter próprio um idioma herdado? Eis aqui a principal tarefa no nascente campo literário hispano-americano. E eis aqui também a sua estreita relação com os processos discursivos dos novos projetos de nação. Por isso é inevitável a contextualização no momento de ensaiar uma interpretação crítica. É preciso, é quase uma necessidade R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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imperiosa deixar momentaneamente de lado as noções herdadas e impostas através de quase duas centúrias de preceptivas e modas literárias. Atrevemo-nos a duvidar de tudo, como sugeria Pedro Henríquez Ureña em seus Seis ensayos em busca de nuestra expresión.

Apontamentos sobre uma teoria crítica regional latinoamericana O tema que me preocupa aqui é a possibilidade de consolidar uma teoria crítica capaz de dar conta das preocupações literárias nas regiões, isto é, nas periferias geográficas, políticas e estéticas da já de per si marginalizada América Latina. Não estou falando, apressome a esclarecer, de configurar uma teoria literária de corte imanente ou restrita ao campo literário, isso chocaria com a noção de região e acabaria por diluir toda possibilidade de elaborar um discurso crítico alternativo, relegando o estudioso ou estudiosa da literatura (tanto no âmbito acadêmico como no público) a um simples reprodutor das interpretações hegemônicas do fenômeno literário. O que pretendo fazer é estabelecer e iluminar conexões entre as produções literárias regionais e as nacionais (e, agora acrescento, as “supra-nacionais”, sustentadas pela hegemonia das indústrias culturais ocidentais e cuja intervenção – e manipulação – no desenvolvimento da literatura latino-americana cresce dia a dia). Como adquire uma obra o “caráter representativo” de um espaço determinado? A representação costuma ser também um ato de exclusão e de tergiversação, sublinho porque é necessário não esquecer isso, sobretudo quando se embarca numa empresa como esta. Por isso, utilizo o termo “teoria crítica”, partindo das noções básicas estabelecidas pela Escola de Frankfurt ( isto é, um enfoque interdisciplinar que deve ou pretende dar conta do marginal, do outro silenciado nas nossas sociedades, para sua possível transformação, tudo através de um pensamento crítico e reflexivo), mas relacionando a problemáticas pontuais: os campos literários R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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no interior da América Latina. Em poucas palavras: concentro-me em tentar descrever as relações de poder estabelecidas dentro do quadro das chamadas literaturas nacionais. O tema é muito complicado porque leva a questionar outros aspectos da vida literária, tais como o discurso e o ensino acadêmico, entre outros. É preciso dizer que esta preocupação tem a ver com nossa função em classe e em gabinete de pesquisa, refiro-me por certo aos espaços marginais para o estudo das literaturas. Explico: ao sugerir um “nós”, remeto a todos aqueles que trabalhamos com assuntos literários a partir das periferias e não nos conformamos com a reprodução dos manuais de ensino da outrora chamada “literatura universal”. Como se vive a “experiência literária” nos espaços não centrais? Sem dúvida, todos temos experimentado em algum grau (incluso aqueles que trabalham nos centros) essa sensação de “carência” (de ferramentas, de bibliografia) e de exclusão (da história literária, do discurso crítico em voga etc.) que toda teoria literária impõe de maneira sutil ou descarada. Neste ponto, o problema toma uma nova direção: a do ensino da literatura no espaço da universidade (ou crítica acadêmica) e a de um novo contexto: o do auge das indústrias culturais. Já não é somente a indiferença do discurso teórico, como também a tergiversação das novas estratégias de mercado que fazem – ou costumam fazer – das regiões um exotismo temático muito próximo ao folclore pós-moderno (leia-se literatura do Norte, dos Pampas, do Amazonas, da Costa, etc) ou uma globalidade suspeita (em que não existem diferenças e a nova ordem econômica garante uma falsa igualdade tecnológica e temática). É preciso, pois, um discurso crítico que faça valer a autonomia de seu espaço de enunciação. Ação complicada e perigosa mas urgente. Estes apontamentos vão nessa direção, ainda que me apresse a reconhecer que a sua intenção está mais próxima da cartografia, da descrição de um território ainda desconhecido. Não é tampouco um ato de conquista mas uma possibilidade. Elias Canetti (1994, p.73), em seu ensaio “Diálogo com o interlocutor cruel”, definia os apontamentos (para distinguiR E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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los de outro gênero “menor”: o diário) como escritos que “são espontâneos e contraditórios. Contêm idéias que às vezes brotam de uma tensão insuportável, mas frequentemente também de grande superficialidade . Um risco e uma ameaça: a contradição e a superficialidade. Dois impulsos: a espontaneidade e a tensão. Eis aqui os perigos e as possibilidades destas modestas anotações minhas. O perigo seria a condição sempiterna de gérmen, de semente de uma obra que talvez nunca chegue (penso inevitavelmente nos Apuntes para la teoría literaria, de Alfanso Reyes), mas também confio na alta probabilidade de que esse gênero (ou “subgênero) possa manifestar ao menos a expressão de uma experiência (de novo penso nos Apuntes... de Reyes). Em primeira instância, seria necessário começar com os primeiros problemas que enfrenta a crítica regional. O primeiro é de ordem semântica: o que significa “crítica regional”? Um discurso reflexivo que fala sobre uma região exclusivamente, ou um pensamento crítico produzido em uma região qualquer? Inclino-me pela segunda opção, mas esclarecendo que, embora a crítica regional possa (e deva) abordar temas gerais (requer manter um diálogo permanente) com o mesmo direito que a crítica metropolitana, uma de suas funções primordiais consistirá em dar conta da produção local não somente para tentar corrigir uma “literatura nacional”, mas também para ajudar a ativar o campo literário regional. Como podemos observar, sua função vem suprir uma carência: a falta de atividade na vida literária. Sem crítica não há literatura, mas um catálogo de obras publicadas, na maioria dos casos, por instituições públicas (universidades, secretarias de educação ou de cultura) ou por um grupo de amigos ou editores independentes. E, sem um diálogo com a visão central, não há literatura nacional, mas literatura homogênea. A definição dessa atividade intelectual obriga a manter o acento no caráter aberto e na ação de discutir e avaliar todos os fatores para não cair na gíria chauvinista que faz da crítica regional um panfleto da secretaria de turismo. Não; é preciso reconhecer as R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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carências da produção literária caseira: seu “atraso” com relação às obras escritas ou difundidas na capital, mas dando conta de seu próprio desenvolvimento: quais têm sido as causas para que nossas obras privilegiem gêneros específicos e descartem outros? Que tipo de experiência têm tentado transmitir os autores marginalizados geograficamente? Penso num amplo repertório que vai desde os discursos nacionalistas das festas nacionais às produções poéticas de corte neoclássico, e de descrições costumbristas a romances atuais, povoadas, na sua maioria, de personagens que respondem mais a uma visão estereotipada das regiões que a um processo interno de criação literária. Antes de mais nada é preciso ter em conta que estamos trabalhando com uma carência, com um longo silêncio. Não contamos com histórias regionais críticas, mas com catálogos de obras e autores, no melhor dos casos. O século XIX representa um verdadeiro território ignoto, em que a falta de imprensa em muitas regiões e o descuido dos cronistas locais promoveram um impressionante desconhecimento. Sem sentido da tradição e sem uma vida literária sustentada pela recepção crítica, as literaturas regionais ficam à mercê das prebendas outorgadas pelas capitais. A teoria crítica deveria, pois, partir desse ponto: tentar iluminar esse vazio, e tratar de mostrar que não é somente um espaço vazio, mas um corpus sem integração. O questionamento deveria partir da atividade cultural durante o período colonial (muitas regiões cultivaram uma vida artística “secundária” durante esse período), mas sobretudo é preciso enfatizar os momentos do início da vida independente. Ali começam os debates entorno da futura relação das periferias com o centro: discussões sobre a possível unidade nacional ou sobre a suspeita independente organização federativa. Em poucas palavras, tomamos a cargo a elaboração discursiva das novas identidades coletivas. Posteriormente, seria necessário deixar de lado as concepções universalistas do fenômeno literário e começar a trabalhar a partir R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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do contexto enunciativo. Estabelecer os “momentos decisivos” de que falava Antonio Cândido em seu texto fundamental ( e pilar da crítica regional latino-americana): A formação da literatura brasileira. Requer-se um corte temporal para tentar um novo modelo de periodização, base para uma futura historiografia literária. Agora bem: que devemos entender por “momentos decisivos” e como poderíamos estabelecê-los em nossas pesquisas? Primeiramente, falaria de acontecimentos, criações e interpretações da comunidade letrada. A dimensão temporal é em si mesma vasta e complexa, e costuma ir mais além das criações literárias, mas toda produção está inscrita no tempo: é, de fato, uma forma de interpretação do temporal. Na realidade não falo do tempo no singular, mas de muitos tempos, ritmos diversos que costumam dar prova da heterogeneidade local. Falo de temporalidades, porque uma saída fácil para a classificação das produções literárias marginais tem sido relacionálas a escolas e movimentos literários centrais. Termos como romantismo, parnasianismo e tantos outros se utilizam com facilidade perigosa ao extremo. Tomar sem questionar tais classificações significa anular de fato qualquer possibilidade de sobrevivência para uma teoria crítica regional. A prioridade, estabelecer um paradigma caseiro, trabalhar com ele e começar a desbravar o terreno desconhecido (ou semi-desconhecido) das literaturas regionais. Tal empresa significaria desde o começo um enfrentamento direto com as estratégias de poder que têm configurado nossos cânones estéticos e ideológicos. Sem dúvida, neste ponto, a crítica de José Carlos Mariátegui representa um antecedente fundador. O choque passa por diversos níveis, mas quase todos eles têm a ver com certos tipos de problemas de enfoque: como é possível configurar uma literatura representativa de uma região sem passar por ou ficar nos estereótipos fixados normalmente de fora dessa zona de produção? Como conseguir incorporar as produções locais ao cânone nacional, latino-americano ou global, sem que tais obras R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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percam seu caráter peculiar? Mas sem tornar esse caráter peculiar uma fórmula de venda ou propaganda barata? Ou mais recentemente: como evitar a fixação mercantilista do regional propagada pelas atuais indústrias culturais? Esses questionamentos antecedem e prefiguram uma nova responsabilidade para a configuração de uma teoria crítica com caráter regional: sua relação com a já mencionada história literária, somada a um necessário vínculo com a crítica pública ou midiática. Na medida em que se “conquiste” um espaço maior nos meios de comunicação, poderão equilibrar-se os efeitos nebulosos dos decretos estabelecidos pelas casas editoriais transnacionais, da mesma forma será possível configurar, através de uma dimensão crítica, um sistema literário mais horizontal. Porque algo é certo, salvo evidentes exceções, a vida literária das regiões na América é precária (refiro-me sobretudo a uma série de aspectos que partem não precisamente da criação, mas da recepção, difusão e discussão dos textos literários), e a criação literária como tal ocupa um lugar marginalizado (sobre a crítica há pouco que acrescentar: a margem de uma margem). Evidentemente nos enfrentamos com um problema maior e o esforço requerido é – deve ser – notável. A teoria crítica regional, em si, deve questionar para quem escreve e qual será o fim do conhecimento produzido por ela e como afetará ele o sistema literário local. Paul de Man demonstrou acertadamente que a dinâmica do ensino universitário da literatura e sua reflexão escrita (leia-se crítica y teórica) requerem invariavelmente uma série de fórmulas que garantam o espaço dos estudos literários nas áreas humanísticas. As fórmulas funcionam porque geralmente são imóveis e asseguram uma rotina pedagógica (a reprodução de um conhecimento certificado). Mas também é certo que todo esforço teórico deve basear-se (em algumas ocasiones de maneira “negativa”) inevitavelmente em “considerações pragmáticas”. Retomo Paul de Man (1990, p.13) : “Uma tomada de posição geral sobre a teoria literária não deveria, em teoria, partir de considerações pragmáticas. Deveria tratar de questões como R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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a definição da literatura (que é a literatura?) e debater a distinção entre os usos literários e não literários da linguagem...” Até aqui de Man. Detenho-me agora numa frase aparentemente negativa, esse não deveria. Não deveria basear-se a teoria em considerações pragmáticas, e no entanto se baseia, sempre tem-se baseado (de Man sabia disso; Roberto Fernández Retamar inclusive tinha advertido isso antes que o crítico metropolitano). Essa “condenação” é – deve ser – a grande possibilidade para a concreção de uma ou várias teorias críticas regionais. A relação direta com o objeto, sua discussão e diálogo com ele, a iluminação dos vasos comunicantes entre obra, crítica e zona de recepção primária. Isso enquanto atividade acadêmica. Com respeito à relação da literatura e da crítica regionais com as indústrias culturais, somente posso aventurar alguns rumos e algumas possibilidades. É vidente que a dinâmica empresarial está afetando diretamente os campos literários de América Latina. A “bem-aventurada” globalização consolidou uma distribuição homogênea de títulos, formas, estilos e autores. E o ingresso neste vasto mercado precisa de um “contrato” que poderíamos definir como “unitário”; cobrir todos os requisitos para o “êxito”. Os autores, os autores regionais já não requerem realizar a famosa e instrutiva viagem ao centro. Se contam com um agente hábil em tais tarefas, contarão com financiamento e difusão sem ter que abandonar sua aldeia. Mas, apesar de tudo, isto só representa uma parte (talvez a mais visível agora) do fenômeno literário. Nem a globalização nem a mercantilização massiva obterão o monopólio da literatura. A possibilidade maior, ou poderíamos dizer: a salvação maior radica num ato de leitura: ler criticamente o fenômeno e emitir um juízo. Um dever maior ainda: ampliar o alcance do discurso crítico de tal juízo. Mas, para donde se dirige uma empresa como esta (a possível redação de uma teoria regional)? Avanço uma resposta como síntese de conclusão destas anotações: para uma revisão contínua. A sustentação: o olhar crítico, a leitura capaz de contemplar-se a si mesma e dar conta do processo. Nossa teoria crítica deverá suspeitar R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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da infalibilidade de todo discurso teórico, e questionar as instâncias onde se produzem e distribuem as noções básicas do literário, do nacional e do global. Mas sobretudo deverá levar seus agentes a um compromisso com uma atitude pública , isto é, terá que fazer dos críticos sujeitos responsáveis por seus juízos. Somente a partir dessa atitude desafiante, nossos apontamentos terão a possibilidade de deixar de ser um impulso “espontâneo e contraditório”, para converter-se em uma prática concreta, precisa e necessária.

Referências CANETTI, Elías: Diálogos con el interlocutor cruel. In La conciencia de las palabras, tradução de Juan José del Solar, México: Fondo de Cultura Económica, 1994. HOBSBAWN, Eric. Naciones y nacionalismo desde 1780. Trad. Jordi Beltrán. Barcelona: Crítica. 2000. MAN, Paul de: La resistencia a la teoría, in: La resistencia a la teoría, edición de Wlad Godzich y traducción de Elena Elorriaga y Oriol Francés, Madrid: Visor, 1990.

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DE LA ‘VERDAD HISTÓRICA’ A LA ‘VEROSIMILITUD NARRATIVA’ DEL TERROR: LA FIESTA DEL CHIVO (VARGAS LLOSA)1 FROM “HISTORICAL TRUTH” TO THE “NARRATIVE VERISSIMILITUDE” OF TERROR: LA FIESTA DEL CHIVO (VARGAS LLOSA) Julieta Haidar (ENAH.Mx)2

1 Un versión resumida del presente trabajo fue publicada en el Diario Hoy ( 27 y 28 Noviembre 2002), Santo Domingo, República Dominicana 2 Brasileña. doctora en ciencias políticas por la Universidad Nacional Autónoma de México, UNAM. Especialista en Análisis de Discurso y Semiótica de la Cultura, temas sobre los cuales ha publicado varios libros y ensayos en revistas especializadas de diferentes países. Profesora e investigadora titular de la Escuela Nacional de Antropología e Historia, ENAH, México.

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Helena, amiga de siempre Por su grandeza humana e intelectual. Porque ha logrado caminar con los arco-iris.

RESUMEN: Vargas Llosa’s novel, La fiesta del chivo, focuses on the ever complex relationship between reality and literature. In this work, the fictional and the historical are interwoven in a decisive way. Such a fragile bounf finds one of his supporters in the very development of Latin America and the Caribbean, once the real history often seems to belong and to overcome the fictional world. The work in question makes us rethink the problems concerning the typology of genres, the historical memory, the mnemonic processes, the taboos in the construction of the historical and political memory of the trujillismo PALABRAS CLAVE: Vargas Llosa. La fiesta del chivo. Historia. Ficción. Memoria ABSTRACT: Vargas Llosa’s novel, La fiesta del chivo, resumes always complex relationship between reality and literature. In this work the Romanesque and history are interwoven in a forceful way. This weakness of frontier finds one of his supporters in the development of Latin America and the Caribbean since often the real story seems to belong and to overcome the fictional world. The work in question does to rethink the problems concerning the typology of gender, historical memory, the mnemonic processes, the taboos in the reconstruction of historical and political memory of trujillismo, bringing the issue to the guideline of terror.

Introducción La novela de Mario Vargas Llosa, La fiesta del chivo, hace regresar de manera significativa, y con gran impacto, la relación siempre tan compleja entre la realidad y la literatura, que se puede abordar desde varios ángulos. En este discurso literario, lo novelesco R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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y lo histórico se entremezclan de una manera contundente. Esta debilidad de la frontera entre lo histórico y lo ficcional, a nuestro juicio, encuentra uno de sus soportes en el desarrollo mismo de América Latina y del Caribe, ya que en muchas ocasiones la historia real parece pertenecer y hasta superar al mundo novelesco. La fiesta del chivo, además, hace repensar los problemas relativos a la tipología de este género, que adquieren relevancia en el caso de esta novela histórico-política. Una problemática nodal de este texto literario es que se sitúa en los umbrales entre la historia y la literatura, tema siempre muy estudiado justamente por presentar dificultades analíticas, que se pueden sintetizar para nuestro caso específico en el contraste entre la “verdad histórica” y la “verosimilitud histórica” del terror del trujillismo, lo que constituye uno de los núcleos motivadores principales de la lectura de la novela, tanto en República Dominicana, como en otros países, Perú y España, por ejemplo. El problema se instala de inmediato, porque al ser una novela histórico-política muchos lectores suelen ubicarse sólo en esta dimensión, olvidándose prácticamente de lo novelesco en los momentos de la recepción. Una inquietud interesante se relaciona con el funcionamiento diferenciado entre la memoria histórico-política y la memoria ficcional literaria, ya que los acontecimientos pasan por reconstrucciones diferentes que deben obedecer a reglas distintas, como procuramos explicar más adelante. En otras palabras, los procesos mnemotécnicos siguen funcionamientos distintos en lo histórico-político y en lo literario. Además, en estos procesos operan de modo significativo el problema de los olvidos y de la conservación, desde la perspectiva fascinante que establece esta dialéctica de la memoria. Otro aspecto importante para destacar, es el funcionamiento de lo prohibido, de los tabúes, en la reconstrucción de la memoria histórico-política del trujillismo, y observar como éstos se pueden romper en la memoria literaria, presente en esta novela. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Por último, otro punto interesante para considerar y explicar es el diferente impacto y alcance de los discursos histórico-políticos sobre el trujillismo frente a los discursos literarios sobre esta era del terror. Una de las explicaciones para estas diferencias es la siguiente: los primeros se dirigen más a lo racional, a lo analítico, y los últimos a la emoción, al componente pasional. Estas consideraciones explican porque La fiesta del chivo mueve la memoria del pueblo dominicano, en sus más entrañables heridas, y porque logra un impacto superior a los discursos histórico-políticos, que sin duda cumplen otras funciones importantes para explicar y entender porque fue posible esta etapa del terror en República Dominicana, lo que no corresponde al la novela, a lo literario.

La novela histórico-política: problemas de clasificación La fiesta del chivo introduce, como decíamos, de manera irremediable e ineludible el problema de la relación historialiteratura, lo que en el fondo toca las relaciones palabra-mundo, semiosis-realidad, , discurso-extradiscurso. El isomorfismo (las semejanzas formales y referenciales) entre el mundo de la historia y el mundo novelesco, entre la realidad y lo ficcional plantea la distinción entre dos series discursivas: el discurso histórico-político y el literario. Entre la semiosis y la realidad (HAIDAR, 1994) pueden existir varios tipos de relación: de sustitución, de representación, de reflejo y refracción, de indicación, de construcción, en las cuales podemos destacar un funcionamiento causal o dialéctico entre las dos dimensiones, que siempre continúan generando complejidades analíticas. Si retomamos estas relaciones desde la literatura, como producción de una semiosis estética, ésta construye su propia realidad, premisa que introduce tensiones analíticas cuando tratamos una novela histórico-política, como es La fiesta del chivo. Para Lotman (1979), la literatura, como todas las artes, constituye una modelización de R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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segundo grado en relación a las lenguas naturales. Este planteamiento nos permite avanzar, porque no sólo abordamos la relación semiosisrealidad, sino también los procesos de intertextualidad que se dan entre la serie histórico- política y la literaria. Las categorías lotmanianas permiten reflexionar de una manera dinámica y dialéctica sobre la frontera entre la historia y la literatura. Sin embargo, esta propuesta es compleja porque en la modelización de segundo grado, los funcionamientos semióticos de la historia, de la política y de la literatura son diferentes y al mismo tiempo se entrecruzan; las fronteras oscilantes permiten los continuums entre las dos dimensiones; las supuestas líneas divisorias se desdibujan y lo que el lector siente es que la historia invade constantemente el mundo novelesco, en este subtipo de novela, que es la histórico-política. A pesar de esta continua invasión, de esta quizás peligrosa intromisión para el narrador, la historia no es literatura y vice-versa, por varias diferencias que establecemos más adelante en este estudio. Esta afirmación tiene una mayor validez sólo para un receptor no dominicano, porque para varios tipos de lectores en República Dominicana lo que se busca es la “verdad histórica”, por lo que varias personas dicen , repiten y discuten: “ Así mismo fue, Así mismo era, Esto no fue así, Esto no es verdad, Eso lo viví, Eso lo he leído, etc.”

Las condiciones de producción y recepción De las ocho propuestas que hemos sintetizado (HAIDAR,1998) para analizar las condiciones de producción y recepción de cualquier discurso, seleccionamos las más apropiadas para la novela histórico-política: a) la propuesta de Foucault (1970), b) la de la intertextualidad, interdiscursividad (varios autores) y c) la de la coyuntura (ROBIN, 1976). Los procesos interdiscursivos se definen como constitutivos de toda producción discursiva, en la cual están presentes en varias R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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dimensiones, como la histórica, la política, la religiosa, entre otras; mientras que los procesos intertextuales se refieren más concretamente a las relaciones orgánicas entre los textos concretos. En otras palabras, los procesos interdiscursivos tienen que ver con las condiciones de producción y recepción del discurso, en una dimensión macro, mientras que los procesos intertextuales se ubican en una dimensión micro. Sintetizando lo planteado, tenemos: Los procesos interdiscursivos de esta novela presentan dos dimensiones fundamentales: a) la primera remite a todos los discursos históricos, políticos, económicos de la dictadura trujillista que la cruzan, de manera casi siempre implícita pero también explícita la segunda remite a los testimonios autobiográficos y a las memorias sobre la denominada Era de Trujillo. Los procesos intertextuales presentan tres dimensiones: a) la primera se relaciona con las novelas sobre las dictaduras y los dictadores en América Latina; b) la segunda remite tanto a los discursos laudatorios sobre la dictadura de Trujillo, como a los críticos; c) la tercera abarca las novelas del mismo Mario Vargas Llosa, aunque no las abordemos en este estudio. De todo lo expuesto, deriva la complejidad del análisis de una novela, cuando se considera que varios procesos interdiscursos e interxtextuales la están constituyendo, lo que es un argumento más que suficiente para invalidar el análisis inmanente de cualquier discurso. En las condiciones de producción, además, nos parece importante considerar al sujeto del discurso, Mario Vargas Llosa, novelista peruano, que tuvo que investigar durante años la historia dominicana para poder escribir sobre una realidad, de cierto modo lejana a él, pero principalmente para poder reconstruir y condensar R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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la memoria histórica sobre el trujillismo. No podemos dejar de reconocer los desafíos que enfrentó el novelista tanto en La historia del fin del mundo (sobre un acontecimiento en Brasil), como en La fiesta del chivo, porque, sin embargo, fue exitoso al lograr manejar con destreza las características de la novela histórico-política, alcanzando e impactando los lectores de ambas. El análisis de las condiciones de recepción, entendidas también en la dimensión coyuntural, conducen a interesantes respuestas, dependiendo del país; para nuestros objetivos sólo consideramos República Dominicana y tangencialmente Perú. En República Dominicana, casi toda la recepción se mueve en el eje de buscar en la novela la historia de la dictadura trujillista, que se diferencia de acuerdo a cuatro tipos de receptores: 1. los que han vivido directamente la dictadura ; 2. los que no la vivieron, pero han heredado los lastres de la misma, como son los descendientes directos de las familias involucradas con el aparato trujillista, así como las familias de donde surgieron los opositores; 3. todo el pueblo dominicano que revive en su memoria histórica esta tiranía y 4. los analistas político-históricos que han vivido o no la dictadura. Por lo menos, son cuatro tipos de recepción complejas y diferentes, que reconstruyen distintos sentidos, porque para muchos todavía las heridas están abiertas, no se cierran a pesar de más de 40 años de la muerte del dictador. En efecto, los procesos de la memoria no logran borrar todavía tan cruel tiranía, ni todos los efectos negativos que dejó en la historia del pueblo dominicano, porque el neotrujillismo ha logrado seguir en el poder por muchos años, de una u otra manera, no obstante los esfuerzos y las innumerables luchas libradas por el pueblo dominicano para superarlo, desplazarlo y construir un verdadero sistema democrático, como fueron los momentos del gobierno de Bosch, en 1963, así como la resistencia armada contra las tropas de ocupación estadounidense en 1965, para señalar sólo algunos de los eventos más importantes. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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En República Dominicana, las condiciones de recepción son difíciles de despegarse de la historia trágica del trujillismo, porque, como algunos autores mencionan, el terror todavía subsiste en la memoria histórica del pueblo dominicano, como un tabú complejo instalado en un funcionamiento subjetivo, colectivo e inconsciente de cada dominicano (Cf. FOUCAULT, 1970 y ZAGLUL, 1977), lo que de cierto modo explica los desvaríos de una supuesta libertad, así como las dificultades para reconstruir valores que se subsumen en la violencia y en la rebelión, no propiamente positivas. Además, las condiciones de recepción no permiten que se olvide la historia , porque en la novela aparecen los personajes históricos con sus mismos nombres (creando el simulacro de la realidad), junto con otros que son propiamente literarios. La utilización del nombre histórico para los personajes de la novela (recurso ya utilizado por Julia Álvarez en El tiempo de las mariposas y por otros autores) constituye un artificio, una estrategia de doble filo, porque primero jala al receptor a una lectura histórica y después dificulta el despegue para que se pueda leer La fiesta del chivo, como una novela, en donde se reconstruye de manera literaria la historia real de esta era trágica del trujillismo. En el ámbito de la recepción, se produce, por lo tanto, una tensión entre la lectura desde la historia y la realizada desde la literatura. En las dos lecturas, pasamos por procesos de recepción en los cuales hay reconstrucciones diferentes, es decir, si la novela es leída desde la historia produce efectos de sentido distintos de los que se originan cuando es leída desde la literatura ( Cf. ECO, 1987 y otros autores de la teoría de la recepción) El análisis de las condiciones de producción y recepción de esta novela, nos permite, además, considerar los siguientes fenómenos de la producción literaria en República Dominicana: 1. Desde un orden cronológico, mientras vive Trujillo, primero surge una producción discursiva laudatoria innumerable , como plantea Andrés Mateo, y paralelamente en el exilio aparecen algunos R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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libros de denuncia de José Almoína , Jesús de Galindez , Germán Emilio Ornes y Juan Bosch , entre otros, así como muy escasas novelas. Después de la muerte de Trujillo se producen en primer lugar, con cierto retraso, los testimonios; posteriormente los análisis histórico-políticos y por último las novelas sobre la dictadura trujillista, desde diversos ángulos, fenómenos sin duda dignos de una investigación más detenida. En realidad, no encontramos todavía una explicación suficiente y convincente de la aparición tardía de los análisis históricopolíticos y menos explicativa todavía es la casi ausencia de las novelas sobre la dictadura de Trujillo. Una de las explicaciones podría ser la continuidad de un fuerte neotrujillismo en el país, que ha traído nuevos desequilibrios sociales y ha impuesto la necesidad de superarlo, fenómeno que sin duda continua hasta el presente en muchas dimensiones, aunque con menor fuerza. 2. La mayor producción de novelas sobre la dictadura de Trujillo sólo aparece por la década del 80 y más profusamente en la década del 90, hecho que puede obedecer a factores sociopolíticos nuevos y a la superación de factores psicológicos y del inconsciente en la generación de literatos y de cineastas posteriores a la muerte de Trujillo.

Las estructuras narrativas y los sociogramas Para el análisis de la dimensión intratextual, partimos de la macro-operación de la narración, pasamos al problema del sujeto narrador polifónico, para terminar con el análisis de la estructura narrativa y de los percursos narrativos, configurados por la construcción de diferentes sociogramas, en donde se materializan los ejes espacio-temporales y se construyen los personajes y sus acciones. I. En primer lugar, desde una perspectiva del análisis del discurso, consideramos la narración como una macro-operación, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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tan importante como la argumentación, la demostración y la descripción. La narración se desarrolla en el eje temporal, más que en el espacial, propio de la descripción. Las teorías narrativas son variadas y se originan primeramente ligadas a los análisis literarios, para después aplicarse a los discursos míticos, históricos, entre otros - para mayores detalles sobre esta operación discursiva, consultar a Weinrich (1974), a Ricoeur (1995), entre otros. Como macrooperación discursiva, la narración presenta invariantes y variaciones en los diferentes tipos y subtipos de discurso. Para ejemplificar, consideramos el funcionamiento de la narración en el discurso histórico y en el literario entre los cuales, como dijimos, existen fronteras oscilantes: A. En el discurso histórico, el autor es importante, por lo menos en el institucionalizado (en la tradición y en la historia orales aparecen sujetos anónimos y colectivos) y en el discurso literario ya hace años que no tiene pertinencia considerar al autor, que cede su lugar al sujeto narrador polifónico, categoría de mayor validez explicativa. También recordamos, la diferencia ya clásica, entre la narrativa en tercera persona del discurso histórico, frente a la alternancia de la primera de la segunda, y de las tercera personas en el literario. B. En el discurso histórico, se hace la pregunta por la “verdad histórica” (problema siempre muy complejo) y en el literario se cuestiona su grado de verosimilitud, es decir, lo que parece como verdadero. Como hemos mencionado en la introducción, existe la relación y la diferencia supuestamente irrefutable entre la “verdad histórica” del terror y la verosimilitud narrativa del terror del trujillismo, presente en la novela que analizamos. Un aspecto interesante ligado a lo anterior, se refiere al hecho de que en el discurso histórico es obligatorio el uso de una bibliografía y de fuentes de apoyo, mientras que en el literario este requisito nunca puede aparecer de modo explícito, aunque el escritor haya realizado múltiples investigaciones. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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C. En el discurso histórico, el autor con la narración procura dar cuenta del hecho histórico, y en el discurso literario, el sujeto narrador construye una trama narrativa ( el sujet en Lotman), sociogramas con momentos de suspenso, de secreto, de revelación, estableciendo a cada instante motivaciones y utilizando estrategias para cooptar al lector en las redes de sentidos que quiere producir. D. En el discurso histórico no tiene pertinencia hacer juegos de tiempos y espacios y en el literario, los juegos espaciotemporales presentan una variedad infinita y constituyen un recurso narrativo obligatorio, principalmente después del boom de la narrativa latinoamericana. E. Mientras en el discurso histórico se trabaja con “ supuestos” personajes concretos, en el discurso literario los personajes son ficcionales, y lo que puede parecer una simple tautología, contiene, sin embargo, varias dificultades. En efecto, esta diferencia se basa en varios aspectos: 1) Los personajes históricos suelen ser descritos y narrados desde un punto de vista exterior, mientras que en los literarios, más que privilegiar el punto de vista exterior, se destaca el interior, lo cual se homologa con lo que hemos planteado en el primer punto de las diferencias; 2). El personaje histórico es un objeto de narración y descripción, tanto en la dimensión del ser como del hacer, mientras que los personajes literarios emergen como sujetos que narran, que describen, que reflexionan, que modalizan su discurso, con todas las posibilidades en el ámbito del ser, del hacer, del parecer y 3) los personajes históricos suelen parecer como individuales y los literarios pueden ser individuales o colectivos (desde una teoría objetiva del sujeto, y si aparecen en la dimensión individual es para funcionar como estereotipos, como condensadores de sentido. Por ejemplo, Johnny Abbes García es un torturador criminal, un asesino verdugo, pero más allá de su individualidad en él se condensan todos los torturadores). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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F. El discurso histórico se dirige a la razón, a las reflexiones teórico-analíticas, mientras que el discurso literario despierta la emoción, hace funcionar a plenitud el componente emocional. Esta diferencia explica porque esta novela ha producido un mayor impacto que los mejores estudios históricos sobre el trujjillismo. Las diferencias planteadas, que pueden parecer simples en un primer momento, adquieren una gran complejidad cuando con el desarrollo del análisis del discurso se cambia el objeto clásico de la historia y ésta pasa a ser entendida como discurso, como escritura o como tradición oral discursiva. Este cambio motiva que todas las diferencias, que parecían más o menos evidentes, se trastoquen, y de cierta manera obliga a flexibilizar las distancias entre los dos discursos canónicos - el histórico y el literario- y reconocer que, en muchos casos, las diferencias deben ser matizadas y repensadas, porque estos dos tipos de discursos pueden aproximarse, pero conservan, a nuestro juicio sus especificidades. Como ejemplo de la necesidad de flexibilizar y asumir la oscilación sin miedo, debemos detenernos en el problema de “la verdad histórica”. En este sentido, es muy complicado cuando el lector de una novela quiere preguntarse por la verdad histórica, como ha ocurrido con La fiesta del chivo, lo que no tiene pertinencia porque en el mismo discurso histórico la pregunta por la verdad es compleja. Para concretar lo dicho tenemos varios ejemplos, pero sólo utilizamos lo observado en los mismos testimonios históricos sobre la era de Trujillo (subtipo del discurso histórico), en los cuales encontramos relatos no sólo con matices diferentes sobre diversos aspectos del trujillismo, sino hasta contradictorios, como es el caso de las diferentes narraciones existentes sobre como se enfrentó Trujillo frente al complot y a la muerte. En consecuencia, como tanto en la historia y en la literatura nos encontramos con reconstrucciones subjetivas peculiares y distintas, sólo nos resta concluir que la petición de la verdad para R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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los discursos históricos debe ser de otro orden, y que no tiene pertinencia esta preocupación en la producción literaria. II. El problema del sujeto narrador polifónico, como habíamos mencionado en la introducción, plantea la necesidad de destacar las peculiaridades de la polifonía en esta novela, ya que asumimos que todo sujeto discursivo es polifónico, como una característica constitutiva de la subjetividad (Cf. BAJTIN, 1982). El sujeto narrador de esta novela es polifónico porque pasan por él todas las voces seleccionadas (y también las no seleccionadas) para reconstruir, literariamente, la estética del terror de una dictadura paradigmática. En este sentido, el sujeto narrador polifónico condensa una memoria histórica colectiva, institucional y no institucionalizada, que logra reproducir ficcionalmente, de una manera impactante, el terror del trujillismo. Aunque en casi todo análisis literario no tiene pertinencia remitirse al autor de la novela, en este caso, hay aspectos peculiares que nos hacen regresar a esta categoría, que está planteada tan bien por Foucault (1970): si el autor no fuera Vargas Llosa, seguramente la circulación y la recepción de la novela tendrían alcances distintos. Con este principio, el autor no es el individuo en si mismo, sino un lugar subjetivo que da una coherencia al discurso, lo permite circular, y está respaldado por las sociedades del discurso. III. En este tercer y último ítem, analizamos los percursos3 narrativos y sus respectivos sociogramas, para deconstruir y reconstruir la arquitectura narrativa de la novela. Los percursos narrativos se relacionan con las rutas de los personajes que se construyen, se reconstruyen y se resemantizan durante toda su acción novelesca; esta categoría tomada de la semiótica narrativa greimasiana, la utilizamos sólo como un punto de partida y de anclaje para explicar los percursos de los personajes (GREIMAS y COURTÉS, 1979). Además, esta categoría puede articularse a la de sociograma, y enriquecer nuestra propuesta analítica. La categoría de sociograma R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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proviene de una tendencia opuesta a la greimasiana, que es la de la sociocrítica, de cuyos exponentes destacamos a Claude Duchet ( 1979, su fundador) y a Edmond Cros (1986). Esta tendencia se propone buscar en el texto literario como se configuran los funcionamientos de lo ideológico, lo social en forma de preconstruidos implícitos y explícitos. La sociocrítica postula que, por medio de la escritura, la realidad referencial sufre un proceso de transformación semántica, por el cual se reorganizan y se resemantizan las diferentes representaciones de lo vivido individual y colectivamente. La articulación de estas dos tendencias tan disímiles, nos parece pertinente porque permite por un lado reconstruir los percursos narrativos de la novela con más detalle y por el otro analizar los diferentes sociogramas que van emergiendo en todo el desarrollo de la trama. En este sentido, estas dos categorías son los pilares del modelo operativo que utilizamos para el análisis intratextual, desde una perspectiva transdiciplinaria. En los sociogramas, están presentes representaciones parciales, inestables y conflictivas que giran en torno a un núcleo narrativo, y que se articulan entre si. Los sociogramas son esquemas representativos del discurso social que se integran orgánicamente, en conjuntos co-textuales dinámicos. Los textos reencuentran y trabajan estos sociogramas. Sin embargo, Cros (1994) considera importante la ampliación que plantean Angenot y Robin (1992), según la cual para el análisis de los sociogramas es necesario considerar lo pretextual y no sólo quedar en el texto, lo que a nuestro juicio constituye un aporte teórico-metodológico fundamental para complementar la propuesta de la sociocrítica, con la del análisis del discurso. Para analizar la estructura narrativa de la novela La fiesta del chivo, destacamos los cuatro percursos narrativos fundamentales, estableciendo su alternancia para visualizar la arquitectura narrativa, en cuanto al tiempo, al espacio y a los personajes. El primer percurso R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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narrativo se centra en Urania, el segundo en Trujillo, el tercero en el Grupo de Complot y en la muerte de Trujillo, y el cuarto en la persecución, las muertes y la caída del régimen trujillista. De este modo, los sociogramas presentes en los percursos narrativos permiten analizar la estructura del relato, los personajes, los juegos espacio-temporales, que rompen la linealidad, entrelazando el pasado, el presente, el futuro, rompiendo la supuesta continuidad espacio-temporal de la realidad, lo que instaura el ritmo narrativo, la construcción del sujet , que atrapa al lector de una manera peculiar, estableciendo una dialéctica entre el terror y la emoción, entre la tragedia y el dolor. En la arquitectura narrativa de la obra, se destaca la estrategia del suspenso establecido de un capítulo a otro, que incita al lector a continuar con la lectura; este constituye un buen mecanismo de interpelación narrativa, muy utilizado en la novela contemporánea. El suspenso y algunas claves de la lectura están presentes desde el primer capítulo, cuando surge de golpe Urania, un solo nombre, en un solo sintagma que condensa tantos sentidos; al inicio aparece suelta, desdibujada y es sólo con el desarrollo de su percurso narrativo cuando se va definiendo, hasta aclarar todo el secreto en los capítulos finales de la novela. El texto se inicia con Urania y termina con Urania, en una estructura clásica de la narrativa cíclica. En el desarrollo de la novela, en el percurso narrativo 3, del Grupo del Complot, el narrador coloca el momento cumbre, la muerte de Trujillo, justamente a la mitad del relato: esta colocación permite separar la narrativa en dos partes. En la primera aparecen percursos narrativos distintos y con sociogramas diferentes y en la segunda algunos percursos continuan, pero en ésta predomina el percurso 4, con sociogramas que se construyen en torno al terror, al horror y a la disputa por el poder. Otro elemento muy interesante es que la arquitectura narrativa presenta un equilibrio estético, porque de los 24 capítulos que componen la novela, los 12 primeros alternan simétricamente entre R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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los tres percursos narrativos, y en la mitad, justamente en el capítulo 12 se da el ajusticiamiento del dictador. Después del capítulo 12, vuelve la alternancia de los percursos narrativos en los capítulos 13, 14, 15, en el 16 sigue el percurso 1, y al final todos los capítulos, con algunas excepciones pertenecen al percurso 4, exceptuando el último, el capítulo 24, cuando se vuelve al percurso 1 ( al cual se subordina el 2 referente a Trujillo), cuando Urania relata su encuentro con el dictador, y se despide de la familia y del país.

Diagrama de los capítulos y los percursos narrativos Cap.I- Percurso 1

Cap.XIII- Percurso 1

Cap.II-Percurso 2

Cap.XIV - Percurso 2

Cap.III-Percurso 3

Cap.XV - Percurso 3 y 4

Cap.IV- Percurso 1

Cap.XVI - Percurso 1

Cap. V- Percurso 2

Cap.XVII- Percurso 4

Cap.VI- Percurso 3

Cap.XVIII-Percurso 2

Cap.VII-Percurso 1

Cap. XIX- Percurso 4

Cap.VIII-Percurso 2

Cap. XX - Percurso 4

Cap. IX -Percurso 3

Cap. XXI- Percurso 4

Cap.X - Percurso 1

Cap. XXII-Percurso 4

Cap.XI - Percurso 2

Cap.XXIII-Percurso 4

Cap.XII - Percurso 3

Cap. XXIV-Percurso 1 y 2

Como podemos observar en este diagrama, la arquitectura narrativa de la novela sigue una lógica estructural peculiar. En la primera parte de la novela, como mencionamos, existe una rigurosa alternancia de los tres percursos narrativos; en la segunda parte de R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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la novela, después del magnicidio, hay alternancia de los percursos narrativos, ya no con el mismo orden, introduciendo incluso dos percursos en un mismo capítulo (en el XV y el XXIV), hasta equilibrarse de nuevo la narrativa con el percurso 4 en los capítulos XIX, XX, XXI, XXII, XXIII y terminar con el último capítulo XXIV, cuando vuelve el percurso 1 (al cual se integra el percurso 2). En el análisis de los ejes espacio-temporales de la novela, partiendo de los percursos narrativos, encontramos el cruce de los tiempos del relato, a partir de tres recursos: 1. la narración desde el sujeto narrador, 2. el discurso indirecto libre de los personajes, que evocan la memoria a corto, mediano y largo plazo, y 3. el discurso directo de los personajes en innumerables diálogos. Pero antes de proseguir, es importante detenernos en el análisis de la dimensión temporal y su complejidad. Si partimos de la lingüística, se afirma que el tiempo en la lengua no corresponde al real histórico, y si a esto agregamos que en la literatura se trabaja con dos tiempos, -denominados de distinto modo de acuerdo a diversos autores: el del relato y el del discurso, el de la enunciación y del enunciado, el tiempo comentado (mundo comentado) y el tiempo narrado (mundo narrado)- nos encontramos con cuatro tipo de relaciones temporales, que conforman una arquitectura del tiempo, entre otras posibilidades. En La fiesta del chivo, el juego temporal entre el presente, el pasado y el futuro se realiza de múltiples formas, pero lo que debemos resaltar es que todos estos tiempos pertenecen a capas distintas, de acuerdo a los percursos narrativos y sus sociogramas constitutivos, como procuramos ejemplicar, a seguir. En el percurso 1, de Urania, encontramos el uso del presente y del pasado en varias etapas, y capas temporales que van desde lo más cercano, hasta lo más lejano, cuando sólo tenía 14 años, en 1961; una densidad temporal que se va configurando en los diversos capítulos de este percurso. En el último capítulo, se alternan el presente/ el pasado de 1961, que termina con el presente narrativo R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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de 1996, año de su regreso , indicado en la página 529, por primera vez, de manera indirecta: “De repente alzó el brazo y me miró con sus ojos rojos, hinchados. Tengo cuarenta y nueve años y, de nuevo, vuelvo a temblar. He estado temblando treinta y cinco años desde ese momento”, (se refiere a su encuentro con Trujillo en 1961). El presente de Urania de 1996, no es el presente de Trujillo y de Urania de 1961, cuando esta tenía 14 años, son tiempos que pertenecen a capas distintas, que se alternan sólo por las licencias del discurso literario.

Conclusiones Terminamos con una reflexión inquietante. Con todo el análisis desarrollado, percibimos que todavía la historia en República Dominicana colinda con la ficción, todavía lo histórico parece ficcional porque, de lo contrario, cómo podríamos entender que todavía en el año 2000, con la compleja coyuntura internacional y nacional dominicana, un candidato nonagenario, ciego, sin poder sostenerse a sí mismo, Balaguer, no sólo se presente como candidato a la presidencia de su país, sino que tuvo posibilidades de ganar. Otra vez la realidad regresa con una fuerza novelesca que aturde a cualquiera y nos hace recordar El otoño del patriarca, García Márquez, con el tirano muerto-revivido, para seguir con la dominación. Con La fiesta del chivo, Vargas Llosa logra poner en la mesa del debate la dictadura de Trujillo, pero lo interesante es que lo realiza literariamente, desde la ficción, ya que el personaje histórico de Trujillo y su régimen dictatorial no han dejado de producir en estas últimas cuatro décadas una especie de tensión que va de la fascinación a la dura crítica para muchos dominicanos, la cual se expresa, entre otros elementos, en la amplia producción bibliográfica, que incluye la historia, la política, la economía , investigaciones y testimonios, como son ejemplos: la producción de documentales R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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cinematográficos, de René Fortunato, y las obras literarias sobre la dictadura trujillista que abordan momentos trágicos y cruciales, El masacre se pasa a pie, de Freddy Prestol Castillo, En el tiempo de las mariposas, de Julia Alvarez, y en menor medida Galindez, de Manuel Vázquez Montalban. Sin embargo, toda esta producción tuvo un gran impacto, pero no había logrado despertar el interés masivo del pueblo dominicano, como pasó con la novela de Vargas Llosa, que repercutió en dar mayor relevancia a muchas producciones que no tuvieran la circulación merecida. En realidad, Trujillo y su régimen dictatorial no han constituido un tabú, en toda la dimensión que esto significa, para una buena parte del pueblo dominicano, el cual más bien ha sentido una fascinación contradictoria por su inmenso poder, resumido en el sintagma: Dios y Trujillo. El problema más bien se encuentra en la ausencia significativa de la narrativa, de la ficción, aunque paradójicamente con Trujillo, como ya mencionamos, lo histórico se confunde y hasta llega a superar la ficción. Al respecto no deja de ser curioso, que algunas de las novelas más importantes sobre la tiranía hayan sido escritas, bien por extranjeros, como Vázquez Montalban (Galindez), o por dominicanos que, como Julia Alvarez, han vivido y se han formado fuera del país ( Con la excepción de El masacre se pasa a pie, sobre la matanza de haitianos, obra escrita por un dominicano del país). Las explicaciones de esta ausencia, que ya se está superando, pueden ser de varios órdenes: 1. Para la intelectualidad dominicana eran más importantes los estudios e investigaciones histórico-políticas, así como los testimonios, que la ficción; 2. La producción de un texto histórico o político depende de una investigación y formación universitarias, mientras que la narrativa implica una mayor dificultad, al tener el narrador que dominar todos los avances de la literatura latinoamericana desde el boom de la década de los 60, que no puede olvidarse como una intertextualidad R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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fundante. En otras palabras, la formación de un historiador, de un analista político es más tangible en menos tiempo, que la gestación de narradores de talla a nivel nacional e internacional. A pesar de estos intentos explicativos, quedan todavía muchas dudas sobre esta ausencia, que por fortuna ya empieza a superarse con clara evidencia, en la década del 90. Vargas Llosa ha logrado con su novela un gran impacto, ha logrado llegar al pueblo dominicano y producir toda una discusión por varias razones: primero, por utilizar un lenguaje sencillo, recuperando en cierta medida el lenguaje oral dominicano; segundo, porque conser va algunas características de la narrativa latinoamericana contemporánea, pero se distancia de sus producciones más complejas anteriores, en términos narrativos; y el tercero, porque la trama de la novela reconstruye la dictadura en su totalidad, destacando los hechos, momentos, personajes y características definitorias más importantes de esta tiranía única, con toda la crueldad y la sumisión que produjo, al ultrajar por el espacio de 31 años la dignidad del pueblo dominicano. Por último, el gran reto que se presenta a los escritores dominicanos es escribir una novela donde se rescate el papel de la resistencia del pueblo dominicano contra la tiranía de Trujillo, y muchos otros aspectos que no se han tratado. Este reto corresponde a una tarea histórica ineludible para los escritores dominicanos, no sólo para recoger todas las inquietudes que han surgido en varios artículos sobre La fiesta del chivo, sino también para cumplir con la función histórico-crítica que debe asumir cualquier escritor en su producción literaria, como lo logra con la excelencia de un emérito, Pedro Mir, en su poema inmortal Hay un país en el mundo. A nuestro juicio, este es el reto que los escritores dominicanos deben asumir, para ser creadores de un pensamiento crítico desde la producción literaria. En realidad, el problema nodal de cualquier obra de ficción es lograr la condensación de una sociedad, con una postura crítica, en donde la historia no es la dimensión constitutiva fundamental, ni la recepción debe ser realizada en estos términos, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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sino lo que debe operar es la fascinación del texto, en su materialidad irrefutable frente al mundo concreto de nuestra compleja realidad. La fiesta del chivo es una novela histórico-política, en donde la tragedia del terror es un componente inevitable, al constituir su objeto central la reconstrucción literaria de una ‘tiranía sin ejemplo’, como lo ha señalado y analizado magistralmente, Juan Bosch. En este texto literario, la lectura cumple con su función socio-cultural de crear una reflexión crítica sobre la historia de las dictaduras, y de intentar producir una conciencia frente al futuro, para que nunca más surjan dictaduras, ni dictadores. Pero sólo puede lograr una interpelación más eficaz para una postura crítica, porque la literatura se dirige a la emoción, mueve el componente emocional de los sujetos, al contrario de la historia que se orienta a la razón. Con esta novela, quedan todavía pendientes muchas inquietudes, para superar las trayectorias de un pueblo masacrado de modos diferentes por el trujilllismo y el balaguerismo, como hemos señalado. Para finalizar, la lectura de esta novela debe integrar la reflexión de que la humanidad ya vive en el tercer milenio, en el siglo XXI, en donde los principios de la ética deben orientarnos en la lucha continua por la libertad y la justicia, para así lograr que los horizontes de la historia se limpien y dejen aparecer muchos arco iris, llenos de esperanza.

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Nota 3

Categoría traducida del francés ‘parcours’, cuyo equivalente en español sería recorrido, trayectoria, pero preferimos hacer una traducción literal, creando un neologismo, que ya se ha hecho también en portugués.

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FICÇÃO E HISTÓRIA SOB O PENSAMENTO DE WHITE FICTION AND HISTORY UNDER OF WHITE’S THOUGHT João Batista Cardoso (UFG)1 RESUMO: O vislumbre do mundo a partir de um espaço poético é feito tanto pelo historiador quanto pelo escritor de obras literárias. Essas constatações podem ser exemplificadas em autores de obras literárias, cujos textos são lidos pelos estudiosos que buscam conhecimentos acerca da conduta social e política de certo período. Inúmeras obras produzidas com o objetivo de transmitir conhecimentos acerca de um momento histórico apresentam esse momento de forma romanceada, tendo o autor almejado produzir um texto que articula fato e fantasia, o que tem gerado dificuldade para demarcar, em algumas obras, o limite entre a ficção e a realidade. O historiador tem um propósito que subjaz à sua narrativa. Da mesma forma que o 1 Mestrado em Estudos da Linguagem. Departamento de Letras. Universidade Federal de Goiás (UFG). Câmpus Catalão. CEP: 75.704-020, Catalão, Goiás, Brasil.

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historiador elimina aqueles aspectos que não lhe interessam, cria outros oriundos de sua interpretação dos fatos para tornar sua narração coerente, agradável à recepção e vivaz. Essas operações aproximam os historiadores dos autores de obras literárias, como será demonstrado no presente artigo que tomou como fonte para suas considerações o pensamento de White, expresso em sua poética do discurso. PALAVRAS-CHAVE: Literatura. História. Ficção. Realidade. Abstract: The glimpse of the world from a poetic space is done either by the historian or the writer of literary works. These findings can be exemplified by authors of literary texts whose are read by scholars who seek knowledge about the social and political behavior of a certain period. Numerous works produced with the aim of imparting knowledge about a historical period present this moment in a romanticized form, its author being concerned with producing a text which combines fact and fantasy, which has generated some difficulties in defining, in some works, the boundary between fiction and reality. The historian has a purpose that underlies his narrative. In the same manner which the historian eliminates those aspects that do not interest him, he creates others from his own interpretation of the facts, to make his story consistent, pleasant to reception and vivacious. These operations approach historians and authors of literary works, as will be demonstrated in this article which took, as a basis of reflection, White’s thought , expressed in his poetic of the speech. KEYWORDS: Literature. History. Fiction. Reality.

Os estudos literários ancoram-se nas disciplinas que abordam o homem em suas interações sociais, históricas e antropológicas. A história também contribui para o estudo do texto literário, não somente porque há uma história da literatura, mas também porque há uma articulação entre ambas, pois dividem métodos, formas de R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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discurso, personagens e eventos. Cada qual com uma ênfase que as diferencia e as coloca em campos opostos. A história afasta-se do mito e se aproxima do conceito e da realidade, privilegiando a objetividade, ao passo que na literatura prevalecem o mito e a subjetividade. Os limites que estabelecem essas distinções tornamse muito vagos em certos textos literários ou historiográficos. Muitos autores de obras literárias escrevem história quando pensam que estão escrevendo ficção e muitos historiadores escrevem ficção em seus textos historiográficos. O vislumbre do mundo a partir de um olhar poético é feito tanto pelo historiador quanto pelo escritor de obras literárias. Por isso, a pesquisa histórica não pode prescindir do estudo dos textos ficcionais nem a análise dos fatos pode ocorrer sem que se pesquise o tipo de discurso empregado, tendo em vista que o modo poético dominante, isto é, a visão das interações entre os elementos, auxilia o estudioso na tarefa de entender a visão de mundo que fundamenta seu discurso. Essas constatações podem ser exemplificadas em autores de obras literárias, cujos textos são lidos pelos estudiosos que buscam conhecimentos acerca da conduta social e política de certo período. As obras literárias não têm a função de documentar um momento da história, fazem-no, entretanto, acidentalmente, porque há interlocução entre o texto e o contexto. O encontro entre o historiador e o autor de obras literárias ocorre, portanto, na fonte onde ambos buscam seu material: o universo social onde o homem transita. Inúmeras obras produzidas com o objetivo de transmitir conhecimentos acerca de um momento histórico apresentam esse momento de forma romanceada, tendo o autor almejado produzir um texto que articula fato e fantasia, o que tem gerado dificuldade para demarcar, em algumas obras, o limite entre a ficção e a realidade. Se por um lado, a realidade humana, que é objeto da história, está repleta de fantasia e mitos, por outro, o historiador não tem sua tarefa completada quando registra os fatos. A conclusão R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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da tarefa depende da análise dos dados colhidos e comentários. Estes conduzem sua visão de mundo particular e suas crenças. O historiador tem um propósito que subjaz à sua narrativa. Inúmeros fatos que ele registra entram em colisão com esse propósito. Assim, vários trechos de suas anotações são alijados, seja pela pouca importância que ele lhes dá, seja porque apresentam ruptura com a caracterização que ele pretende conferir ao seu enfoque ou ao mundo que representa. Há, portanto, uma interpretação e todo ato interpretativo é pessoal e carreia a subjetividade do interpretador. Da mesma forma que o historiador elimina aqueles aspectos que não lhe interessam, cria outros oriundos de sua interpretação dos fatos para tornar sua narração coerente, agradável à recepção e vivaz. Esse processo é eminentemente subjetivo e, quiçá, poético. Nas obras históricas basilares, os personagens, mesmo sendo reais, têm sua atuação identificável com algum dos gêneros reconhecidamente literários. Essas questões têm sido discutidas à luz de distintas teorias, desenvolvidas há vários séculos, desde os clássicos gregos, em obras como a Poética de Aristóteles, que apresentam conclusões aplicáveis a textos literários em todos os tempos. O texto também evolui e se transforma, porque a história oferece, em sua evolução, novos anseios, novos conteúdos, fazendo com que evoluam também as expectativas de recepção. Da mesma forma que um texto produzido no final do século XIX seria estranho à sociedade de Aristóteles, as conclusões desse teórico são, isoladamente, insuficientes para um estudo acurado do mesmo, sobretudo em se tratando de trabalhos que se situam no limiar da história e da literatura, haja vista que Aristóteles especifica em campos distintos a História e a Poesia. As conclusões de White servem como fonte de explicação e análise para os textos dessa fase, pois os métodos desse pesquisador aproveitam os ensinamentos aristotélicos e as contribuições que se somaram a esses ensinamentos ao longo dos séculos. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Ainda que a teoria literária seja antiga, não pode, hoje, prescindir das ideias geradas pelo racionalismo, pelo iluminismo e por pensadores independentes que, articuladas às ideias dos mais antigos, serviram de fonte para White construir sua teoria. Nesse sentido, qualquer trabalho que aplique suas conclusões a textos concretos apresenta contribuição para o progresso dos estudos literários e históricos. Eis o escopo do presente artigo. Duas obras literárias em que se pode testar essas postulações são Os sertões, de Euclides da Cunha e A guerra do fim do mundo, de Vargas Llosa. Euclides da Cunha foi a Canudos como repórter. Seus textos seriam, portanto, documentais. Deles surgiu inicialmente a obra Canudos: diário de uma expedição que serviu de fonte para a obra Os sertões, cuja classificação tem gerado polêmica entre os estudiosos. Para alguns, prevalece nela o elemento sociológico; para outros, é literária e há os que sustentam seu caráter híbrido. A crítica que considerou Os sertões como texto literário teve em vista, sobretudo, sua identidade com as características que determinaram a classificação de várias obras como pré-modernistas; isto é, obras que, carreando um viés nacionalista, ensejam uma análise crítica de um aspecto da realidade brasileira, incluindo-o, dessa forma, entre autores como Monteiro Lobato, Lima Barreto e Graça Aranha. Vale ressaltar, como tributo à grande estudiosa de Euclides da Cunha e, de resto, de toda a literatura brasileira, Walnice Nogueira Galvão que a inserção de Euclides no pré-modernismo ocorre pela falta de melhor categoria (GALVÃO, 2009, p. 28). A guerra do fim do mundo de Vargas Llosa é outra obra no limiar entre literatura, história e ensaio sociológico; resultou de pesquisa de campo e articulou a concretude dos eventos relatados à imaginação. O historiador também utiliza a imaginação, mas no caso de Vargas Llosa assim como de Euclides da Cunha, esta foi predominante. A imaginação, no entanto, não inibiu em Euclides “um mapeamento de temas que se tornarão centrais na produção R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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intelectual e artística do século XX, ao debruçar-se sobre o negro, o índio, os pobres, os sertanejos, a condição colonizada, a religiosidade popular, as insurreições, o subdesenvolvimento e a dependência” (GALVÃO, 2009, p. 28). É possível encontrar elementos da história e da sociologia em obras literárias sem que estas desfigurem sua caracterização como tais. Os sertões e A guerra do fim do mundo apresentam tais elementos de forma muito acentuada. Mantidos os devidos limites contextuais e estéticos, bem como a cosmovisão subjacente à produção dos textos, é possível dizer que se trata de obras histórico-literárias, em que se associou pesquisa histórica, construção do enredo e ação ou forma como se deu a peripécia dos personagens. Enfim, Euclides da Cunha e Vargas Llosa conduziram para a literatura um momento da formação do Brasil. A representação da realidade efetuada por Euclides da Cunha e Vargas Llosa é realista. Mas a intensidade com que essa estética aparece em suas obras é variável. O realismo euclideano constrói-se sob os emblemas da estética clássica, ao passo que em Vargas Llosa o realismo é menos denso. Considerando o realismo e o romantismo em pontos equidistantes, Vargas Llosa ocuparia um ponto entre o meio e o polo em que se situa o realismo, enquanto Euclides da Cunha encontrar-se-ia mais à frente, mais perto do polo realista. A obra literária é condicionada pelo contexto histórico que participou de sua gestação. Alijando destas considerações os demais fatores históricos, como a evolução do pensamento, e mantendo a questão apenas no que diz respeito às relações humanas, conclui-se que o elemento histórico que, neste aspecto, poderia marcar a visão de mundo euclideana foi a escravidão. Durante a vida de Euclides da Cunha (1866-1909) não houve, no Brasil, a luta pelo controle da nação com base na opção pelas armas ou pela ditadura. Havia um clima de normalidade em que o imperador permaneceu no poder ao longo de quase meio século, mantendo as liberdades individuais e libertando, aos poucos, os R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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escravos através de sucessivas leis que culminaram na lei Áurea de 1888, assinada por sua filha, a princesa Isabel. Euclides assistiu à Proclamação da República e até participou dela, mas o movimento republicano não foi uma luta contra a opressão que, ainda que tenha existido como trauma social oriundo das contradições sociais e dramaticamente registrada em obras literárias, não tem sua existência documentada pela historiografia de então, por isso, a transição de um a outro regime ocorreu sem traumas. Vargas Llosa, tendo nascido 27 anos depois da morte de Euclides da Cunha, em Arequipa (Peru), a 28 de março de 1936, não conheceu, em sua terra, um regime monárquico constitucional, mas uma sucessão de governos militares que tomavam o poder pelas armas e o mantinham por meio da opressão e da censura, com notáveis e inquestionáveis exceções. Esses acontecimentos políticos e esse ambiente ideológico contribuíram para motivar a sensibilidade de Vargas Llosa em direção a uma literatura voltada à crítica social e engajada na busca de um mundo mais justo para a América Latina. Eu diria, utilizando ensinamentos de Antonio Candido acerca da literatura empenhada e engajada, que a obra vargasllosana tem claro engajamento na luta pela mudança, tendo em vista que Vargas Llosa é um apologeta da liberdade. Ele vive uma história individual subjacente à sua formação de escritor que o leva a produzir uma literatura que alia arte e protesto, já que seu universo histórico-social particular apresenta contradições que sugerem denúncia e transformação. Seria subestimar a preocupação de Euclides da Cunha em face das populações marginalizadas do interior se não fizesse registro semelhante acerca do Os sertões, entretanto, a relação entre a vida de Vargas Llosa e sua obra é mais patente. Sobre esse aspecto em Euclides da Cunha, há poucos estudos, apenas algumas conclusões limitadas a poucas linhas sobre sua filiação ao positivismo e sua apologia da forma republicana de governo. Euclides da Cunha também era apaixonado pela mudança e angustiado com a condição do homem, mas essa angústia e suas causas não são objetos de estudo, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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como o foram em Vargas Llosa. A mudança que ele postulava era pela introdução da modernidade no universo social brasileiro, para ele isso já havia se concretizado com a proclamação da República, mas cedo descobriria que havia se enganado, já que os anacronismos do regime anterior mantinham-se sob o novo sistema de governo. O pensamento humano apreende o mundo, simultaneamente, como uma entidade concreta e uma possibilidade. Essas duas formas de apreensão — o que existe de fato e o que é possível existir — estão na base das perguntas subjacentes à formação da Filosofia, da Ciência e da Arte. A realidade concreta subjaz à realidade possível que responde à visão de mundo da pessoa que a formula. Enquanto nos contextos que valorizam o gosto realista as fronteiras que separam as imagens do possível do mundo real são porosas, os momentos comprometidos com o gosto romântico criam imagens fantásticas que apresentam pouca sintonia com a vida concreta. White (1995, p. 212) diz que a literatura utiliza o mundo das possibilidades como seu objeto de representação, em oposição à realidade concreta que é o objeto da História, cuja atuação privilegia a revelação das forças reais presentes nas tentativas “de concretizar o ideal [e] cartografar as reais possibilidades para o futuro de uma sociedade”. Paul Ricoeur (1995, p. 10) entende que a oposição entre as criações literárias e a narrativa histórica não se dão pela “atividade estruturante investida nas estruturas narrativas enquanto tais, mas sim a pretensão à verdade”, que predomina nos enredos das narrativas históricas. Quer dizer que, na concepção de Ricoeur, a organização e a sequência do enredo não são itens a considerar no memento de diferenciar Ficção e História, essa tarefa é reservada pela pesquisa da verdade que deve demarcar a ação do historiador. A fronteira que separa o real do ideal é tênue e não raro escapa à observação. No momento em que se cartografam as reais possibilidades futuras de uma sociedade, a História opera no mundo do possível e seu método de investigação adquire semelhança com os métodos do autor de obras literárias, mas enquanto este R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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simplesmente imagina e escreve sem se preocupar com o atendimento do que prescrevem as convenções de veracidade, o autor historiográfico prenuncia com base em sua pesquisa da verdade assentada nos eventos passados ou presentes. A arte clássica tende a representar o mundo privilegiando a forma e a ordem em detrimento do caos que marca as produções românticas. O elemento referencial é, portanto, mais pleno nos textos clássicos. Da mesma forma que a arte clássica vê a ordem e não o caos, as narrativas históricas representam a realidade, pois não distorcem o modo como esta aparece. Mesmo que a realidade das interações humanas se apresenta caótica, a historiografia tende a colocá-la numa ordem que atenda a uma lógica com modo de sequência identificável. Entre o artista e o historiador há, portanto, pontos em comum; mas esses pontos não são capazes de transformar um artista em historiador e vice-versa; este último vislumbra acontecimentos e busca as ideias que estabelecem a ligação entre eles, enquanto o artista enfatiza a forma e o equilíbrio — tomadas também como fundo para representar a deformação e o desequilíbrio. Os acontecimentos históricos apresentam um conteúdo de superfície — identificável como fenômeno da essência ou forma visível dos conteúdos mais íntimos da realidade — e outro de profundidade, que é o aspecto mais íntimo ou a forma essencial dos acontecimentos. O conteúdo de superfície pode, ideologicamente, ocultar os conteúdos mais íntimos do acontecimento histórico. Por isso, o historiador deve ultrapassar esses conteúdos e penetrar o âmago, onde os fatos se interpenetram, desnudando a sequência coerente dos eventos. Cada aspecto de um acontecimento insere-se no contexto global da História, mas a interação que ocorre entre eles não é suficiente para formar um enredo, que só ocorre quando o historiador recorre à literatura, onde busca os princípios que orientam a colocação dos eventos num enredo. Essa interpretação resulta de uma operação em que os acontecimentos em sua particularidade são colados uns aos outros, resultando uma história R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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que possa discernir os fatos em sua evolução temporal e em sua convivência no espaço. Não deve haver tantos opositores a essa formulação, pois a História, como o próprio nome indica é, sim, uma sequência de acontecimentos que o historiador entretece entre si, e disso resulta uma historiografia em que os acontecimentos particulares se juntam num bloco com sentido. Enfim, as narrativas ficcionais e os textos historiográficos dividem entre si os princípios que fundamentam a junção dos acontecimentos particulares num bloco com sentido, mas sempre lembrando a ressalva feita acima por Ricoeur, quando falou sobre a pretensão de verdade que é apanágio da história. Certos textos literários são fontes de informação para o historiador, porque oferecem uma visão dos fatos e indicam a cosmovisão predominante em certa sociedade e período. A História é composta não só de acontecimentos, mas de ideias que produzem os acontecimentos e ideias que estes geram. Um acontecimento pode ser representado, por exemplo, por meio de uma linguagem jornalística vazia de poeticidade, pois o texto jornalístico compromete-se com a exatidão das informações apresentadas, esgotando-se, dessa forma, no relato e na maneira como esse relato recupera o acontecimento referenciando-o para o receptor. Já as ideias têm na arte o meio onde se corporificam, pois transcendem o elemento representado e os insere no universo das imagens. As postulações acima autorizam afirmar que os recursos estilísticos do romance têm lugar também na historiografia, pois o historiador, além de identificar o acontecimento, também formula, cria e imagina sua sequência e a costura ou a tensão interna entre os fatos, de modo a construir uma história particular — um enredo. Nesse sentido, a História realiza-se como uma arte que só se difere da arte literária porque esta recupera a realidade a partir da dialética entre o possível e o impossível, enquanto aquela separa o real do irreal, isto é, o compromisso com a verdade é sua característica fundamental e a pesquisa desta é aspecto premente da ação dos historiadores. A apresentação das situações históricas condicionaR E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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se à “sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica de enredo com o conjunto de acontecimentos históricos aos quais deseja conferir um sentido particular. Trata-se essencialmente de uma operação literária, vale dizer, criadora de ficção” (WHITE, 1994, p. 102). Melhor seria dizer que se trata de um modelo de ação que aproxima a historiografia da literatura, mas, ao contrário do texto historiográfico, na literatura o resultado de tal processo redunda na criação de ficção. A filosofia desenvolveu-se com base na intuição. Os filósofos intuem — pensam — o mundo e constroem um sistema de ideias de onde buscam formular conclusões acerca do desenvolvimento do homem. A ciência trabalha com conceitos. Seu critério de abordagem do mundo é empírico. A filosofia questiona a experimentação empregada pela ciência como forma de abordagem do mundo. A História é intuitiva, conceitual e estética, realizando-se, dessa forma, simultaneamente, como filosofia, ciência e literatura. O historiador pesquisa os acontecimentos e imagina, intuitivamente, sua interpenetração. Não há contradição nessa operação, pois intuição e imaginação são conceitos muito próximos. Os campos semânticos de que fazem parte apresentam pontos comuns. A própria forma como os documentos históricos afloram-se ao olhar do historiador contribui para tanto, visto que há neles vazios e áreas nebulosas que o estudioso esclarece conceitualmente. Além disso, o conceito em si — o conteúdo do documento e sua parte nebulosa — precisa ser analisado, criticado e posto como parte de uma estrutura com nexo entre os segmentos. Ao atuar nesses níveis o historiador passeia entre dois polos: ora é poeta e filósofo, quando age intuitivamente, ora é apenas filósofo, quando age analiticamente e do jogo dessas funções surge o texto histórico. Mas o lado poético do historiador não pode aflorar ao ponto de comprometer a verdade. Para tanto, a intuição e a análise submetem-se à crítica, visto que todo historiador precisa interpretar os acontecimentos “a R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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fim de construir o padrão que irá produzir as imagens em que deve refletir-se a forma do processo histórico” (WHITE, 1994, p. 65). Nem todos os elementos encontrados na cena histórica são aproveitados, pois o propósito narrativo do historiador interfere na produção do texto, ele retira os fatos irrelevantes ou que considera como tais. Além disso, entre os documentos há lacunas que são preenchidas com inferências ou especulações (WHITE, 1994, p. 65); ambas as atitudes: a da retirada de fatos irrelevantes e o preenchimento das lacunas são subjetivas. Ele imagina o que um hipotético documento poderia ter informado sobre algum acontecimento, ainda que o documento não esteja sob seus olhos ou mesmo não exista, mas o resultado de sua imaginação deve assentar-se em princípios lógicos tão rigorosos que não deixem dúvida quanto à sua exatidão. Passado o momento da crítica dos fatos em que o historiador decide quanto ao que deve ser omitido, vem o momento poético, que consiste em recriar, “em sua vitalidade e individualidade, a miscelânea de acontecimentos como se eles estivessem diante dos olhos do leitor” (WHITE, 1995, p. 105). O historiador articula, portanto, imaginação e observação. O resultado é um tipo específico de enredo. Cada campo histórico particular é único e os fenômenos que se apresentam à percepção dos estudiosos são os mesmos. Entretanto, os historiadores têm, à moda dos autores de romances, um estilo individual e cada momento histórico apresenta um estilo de época em consonância com os estilos de época literários; da mesma maneira, há, conforme conclusões de White (1994, 1995), tantas maneiras de elaboração de enredo para os textos literários quanto para os textos historiográficos. Convém advertir, no entanto, que a despeito de White acreditar dessa forma, a quantidade e a qualidade de maneiras de elaboração de enredo para o autor de obras literárias não conhece limite, ele submete apenas à sua vontade as distintas formas de combinação dos elementos constantes de sua narrativa. Já a pesquisa da verdade que deve governar a ação do R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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autor de obras historiográficas deve limitar a quantidade e a qualidade das maneiras de elaboração de enredo. Sendo assim, é evidente que há uma maior quantidade de maneiras de elaboração de enredo para os textos literários do que para os textos historiográficos. Tudo que aparece na História é provocado pela própria História, é consequência de outro fato antecedente, ou motivado por fatos concomitantes. Essa postura é, no entanto, contestada pela História Nova, mas não é escopo do presente ensaio explicar em que ela consiste. Preferimos manter neste estudo a concepção tradicional de que a História é diacrônica e inúmeros estudiosos, privilegiando o processo e a mudança. Se Euclides da Cunha fosse autor de obras historiográficas, seria incluído entre os historiadores que praticam esse tipo de historiografia. Os fatos históricos não apenas se sucedem no tempo, eles convivem no espaço e influem uns sobre os outros ou se condicionam mutuamente, formando uma estrutura. Dessa forma, os acontecimentos históricos são demarcados também sincronicamente. Se Vargas Llosa fosse autor de obras historiográficas, seria incluído entre os historiadores que praticam esse tipo de historiografia. Há, portanto, uma concepção da História como diacronia e outra como sincronia. Essa assertiva é aceita por White (1995, p. 20), para quem certos historiadores sondam “o que há por trás dos acontecimentos a fim de revelar as ‘leis’ ou os ‘princípios’ de que o ‘espírito’ de uma determinada época é apenas uma manifestação ou forma fenomênica”. Para esses historiadores há uma relação mecânica entre os fatos, na medida em que estes se integram numa relação de parte com parte ou de causa e efeito. Os historiadores que veem os acontecimentos em termos de convivência espacial devem conceber “sua obra primordialmente como uma contribuição para a iluminação de problemas e conflitos sociais existentes” (WHITE, 1995, p. 20), pois os fatos históricos estariam vinculados, organicamente, como partes do todo. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Os historiadores apresentam, esteticamente, os fatos históricos como narrativas construídas com estrutura de enredo, na medida em que selecionam “um paradigma de explicação que dê aos seus argumentos uma forma, um impulso e um modo de articulação específicos” (WHITE, 1995, p. 20). Para tanto, realizam uma análise dos dados, operando epistemologicamente e adotando, portanto, postura cognoscitiva. Essas decisões do historiador não são tomadas aleatoriamente. Existem em função de uma postura ética que penetra no campo da ideologia, porque conduz a uma apreensão crítica dos problemas sociais. O leitor já se apercebeu que, neste ponto do estudo estou explicando as teses de White em sua formulação original como corpo teórico para explorar a ação dos historiadores. A pretensão, no entanto, é de transcender esses limites e adentrar o universo da arte literária à luz dessas postulações. White (1995, p. 11) afirma que o trabalho histórico “é uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa. As histórias [...] combinam certa quantidade de ‘dados’, conceitos teóricos para ‘explicar’ esses dados e uma estrutura narrativa que os apresenta como um ícone de conjuntos de eventos”. Dubois (1990, p. 96) caracteriza o texto narrativo como aquele que apresenta “oposição inicial resolvida no próprio relato, intriga presente, mediação encontrada na intriga, nível objetivo”. Esta caracterização de Dubois acrescenta dados novos à definição de White, pois este falou em estrutura narrativa e Dubois listou as características atinentes a essa estrutura. A formulação de White se dá a partir de uma base historiográfica, a de Dubois assenta-se sobre bases literárias. Lima (1983, p. 26) é de opinião que “o discurso literário existe em si, constituindo uma função verbal diferenciada das outras”. Isso é fato, mas os limites entre os outros discursos e o texto literário podem ser mais ou menos porosos, conforme contenham em menor ou maior grau as qualidades que a teoria literária confere à literatura. Na obra literária de Euclides da Cunha, Os sertões, as marcas R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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qualitativas da literatura estão reduzidas ao ato criativo, à maneira subjetiva de abordar o universo do Conselheiro articulado a uma reflexão do mundo e sobre o mundo. Euclides cria e imita, afastandose do método histórico de abordagem, quando transcende os limites tracejados pela crônica dos acontecimentos e, posicionando-se além desses limites, passa ao largo da fidelidade e da objetividade. O fato que ele viu em cada cena teve a mera serventia de aguçar-lhe a imaginação e recriar o conflito de Canudos como um drama literário. Um drama cujo enredo atende aos requisitos da tragédia clássica. Esta conclusão acerca de Euclides da Cunha assemelha-se, com alguma variação, ao que White afirma sobre a atividade do historiador em geral, pois defende a objetividade e a imparcialidade como aspectos do método histórico, mas essa operação científica de abordagem do evento realiza-se pela mediação da imaginação. Enfim, a história é documento e a literatura é documento e criação, mas se o historiador também cria e recria, então onde está a diferença? Recomendo cautela, neste ponto, para não tomarmos acriticamente as teses de White, pois se um historiador criar e recriar excessivamente sobre a realidade histórica, o trabalho resultante será literário; isto é, o historiador terá cometido o engano de ter feito ficção quando pensava que fazia historiografia. Para White (1995, p. 11), os textos históricos “comportam um conteúdo estrutural profundo que é em geral poético e, especificamente, lingüístico em sua natureza”, na medida em que o historiador somente pode levantar suposições sobre as ocorrências do processo histórico em sua dinâmica diacrônica, quando realizar o ato poético de “prefigurar como objeto possível de conhecimento o conjunto completo de eventos referidos nos documentos” (WHITE, 1995, p. 45). A poeticidade de tal ato origina-se na circunstância de ser ele “precognitivo e pré-crítico na economia da própria consciência do historiador. É também poético na medida em que é constitutivo da estrutura cuja imagem será subsequentemente formada no modelo verbal oferecido pelo historiador como representação e explicação daquilo ‘que realmente R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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aconteceu’” (WHITE, 1995, p. 45). Mas não se pode esquecer que, a despeito dessas considerações, a história é uma ciência, enquanto a literatura é uma modalidade de arte. Essas postulações implicam que é possível transformar a crítica do texto histórico em um capítulo da crítica literária utilizando a teoria tropológica do discurso, na medida em que essa teoria proporciona “um meio de classificar diferentes tipos de discurso mais por referência aos modos lingüísticos que predominam neles do que por referência a supostos ‘conteúdos’ que sempre são identificados de modo diferente por intérpretes diferentes” (WHITE, 1994, p. 35). Os modos linguísticos — insiste-se — marcam qualitativamente os textos poéticos. Neste artigo, o vocábulo poesia e os vocábulos que deste derivam têm o sentido genérico da palavra literatura e seus cognatos. Nem todos os eventos que o historiador encontra na crônica dos acontecimentos dão a completude dos fatos que ocorrem no campo. Neste caso, ele imagina como seriam os eventos ausentes e os acrescenta em sua historiografia, mas o faz seguindo rígidos padrões lógicos de inferência. Euclides da Cunha e Vargas Llosa não são historiadores, mas literatos. Ambos recriaram a realidade. As mudanças efetivadas por Euclides da Cunha se deram por meio de recursos hiperbólicos e pela personificação do mundo natural e Vargas Llosa articulou fato e ficção no mesmo contexto narrativo. De acordo com Vargas Llosa, não apenas as tendências realistas da literatura comportam a convicção de que a literatura é uma variante da história ou a história é uma variante da literatura, para ele, “la grandeza de la obra artística, de cualquier género, sea pictórica musical o literaria, es que crea las claves para la comprensión de la época en que el artista vivió” (VARGAS LLOSA, 1989, p. 61). Demonstra essa afirmação, exemplificando com “el romanticismo alemán de principios del s. XIX, cuando los Fichte y los Heine, todos los de la gran R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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literatura alemana romántica estaban creando e interpretando a su pueblo, y dándole las claves de su propia identidad” (VARGAS LLOSA, 1989, p. 61). A revisão da realidade por meio da literatura é um processo natural que ocorre sem intencionalidade por parte do autor. É resultado da reação do autor em face do mundo. Seria o caso até de admitir a intencionalidade, mas como produto da reação. White diz algo semelhante quando fala da prefiguração poética do campo histórico pelo historiador, visto considerar que é a primeira reação deste diante do campo que determina a prefiguração em algum dos modos linguísticos ou, sendo mais específico, a prefiguração é, em tese, essa reação que, por sua vez, influirá no modo de explicação, no modo de elaboração de enredo e no tipo de implicação ideológica. Isso aponta, em tese, para o fato de que a obra literária e, por extensão, a obra histórica, não é ideologicamente neutra. A propósito, Lyra (1979, p. 140) é de opinião que “toda obra literária tem um alcance político — sobretudo quando não explora problemas especificamente políticos”. A própria insatisfação que qualifica a visão de mundo do escritor é uma demonstração dessa vinculação ideológica da obra literária e da obra historiográfica. No caso do texto romântico, o sentimento de fuga que o caracteriza não pode expressar uma alienação do poeta em face do mundo que o rodeia, mas a manifestação de que, estando insatisfeito com seu mundo, almeja outros. O campo histórico, cuja crônica se apresenta ao historiador, ou a realidade que se mostra ao poeta é único, mas pode ser tratado de diferentes maneiras, implicando tipos distintos de história ou de poesia, de acordo com a forma particular com que é referenciado no texto. Dessa forma, a guerra de Canudos é um tema que, tratado por Vargas Llosa e Euclides da Cunha, se bifurcou em dois temas distintos, evoluindo para o romance em um e a tragédia em outro. A maneira como o herói aparece e atua é fundamental para se estabelecer os gêneros. Assim, na estória romanesca o herói em R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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processo de redenção manifesta autoridade sobre a realidade opressora; na tragédia ocorre uma falta ou falha grave que o herói enfrenta; na comédia o que de início aparece como falta ou falha grave evolui para aquela situação em que se apresenta um defeito do herói, daí que ele labuta contra uma realidade com a qual se reconcilia. O desfecho é alegre. A sátira caracteriza-se pela presença de um herói que vislumbra o mundo com descrença e niilismo. Para Lima (1983, p. 261), “as ideações a priori não implicam que as obras empíricas as realizem em sua pureza — sua definição corre por conta da centralidade da tensão. O dramático se atualiza como trágico quando o autor radicaliza a pergunta sobre a razão de ser de algo” e, citando Staiger, assevera que “o autor cômico cria a tensão para desfazê-la” (1983, p. 116). Essa concepção indica que não existe um gênero puro, tanto o trágico quanto o cômico possuem em comum pelo menos a falha essencial e primeira que desencadeia o conflito; da mesma forma, eles se impregnam de lírica e épica. No texto de Euclides da Cunha prevaleceram as interligações entre os eventos tanto no tempo quando no espaço, já no de Vargas Llosa o campo foi tomado como povoado por entidades dispersas. Desta forma, Euclides da Cunha privilegiou o processo, sua obra é diacrônica, apesar de sua permeabilidade, aqui e ali, à sincronia, enquanto Vargas Llosa fundou sua preocupação na estrutura, seu texto é sincrônico, a despeito de uma visão diacrônica pontual do universo canudense. O autor de obras literárias não é neutro em sua atividade. Ele tem uma história individual da qual deriva sua visão de mundo e daí uma maior ou menor crença nos homens e nas instituições. O mesmo conjunto de fenômenos pode ser visto por ângulos distintos: aquilo que um escritor vê por um ângulo, outro apreende de outro ponto de vista que, por sua vez, determina a forma como apreende cada evento no seio da sociedade ou na História, onde se ancora para construir seu enredo. Para alguns, nem há eventos, mas um amplo R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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contexto de que cada fenômeno é tão-somente um microcosmo. Houvesse apenas uma visão, ou fosse a literatura uma ciência, haveria uma só história contando o que se passou em Canudos. Conclui-se que o conjunto de eventos e fenômenos realizados a partir da atuação do homem num espaço há que ser poeticamente prefigurado, pois nele há personagens agindo. Não há um nível de consciência padrão à disposição de todos, mas tantas quantas forem as cosmovisões que subjazem ao labor literário. Um escritor pode ver os personagens agindo de forma causalmente determinada. Outro pode entender que cada evento constante do mesmo palco seja uma amostra do todo e que, na medida em que os fatos estejam necessariamente integrados no contexto, este pode ser apreendido a partir do entendimento de cada fato isoladamente. Há, ainda, os que utilizam, como único critério para a explicação dos fatos, a relação do homem com os mitos. São os escritores que percebem a crônica dos acontecimentos como determinada pela apreensão, por parte do homem, das semelhanças e diferenças com um mundo desconhecido, porque distante no tempo ou fora da realidade sensível. Por último, há quem erige sistemas de pensamento e conclusões a partir de todas as apreensões possíveis apenas para questioná-las e duvidar de sua validade, pois não vê sentido algum na ação dos personagens. O sertanejo — que é o personagem central tanto em Euclides da Cunha como em Vargas Llosa —, dado seu isolamento, fazia parte de uma sociedade fatalista, à margem da civilização como era conhecida, vivida e concebida no final do século XIX; tendo, dessa forma, criado um modo de viver que se marcou por crenças e superstições. A conquista de um lugar no outro mundo, como ensinado pelo catolicismo e pela Bíblia, se tornou sua meta primordial; a realidade sensível passou a ser o elemento pelo qual ele pôde apreender todos os mitos derivados de sua visão religiosa. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Referências CUNHA, Euclides da Cunha da. Os sertões: campanha de Canudos. 37.ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995. DUBOIS, Jacques et al. Retórica da poesia: leitura linear, leitura tabular. Trad. de Carlos Felipe Moisés. São Paulo, Cultrix, Edusp, 1990. GALVÃO, Walnice Nogueira. Euclidiana: ensaios sobre Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. Janeiro: Francisco Alves, 1983.

2.ed.

Rio de

LYRA, Pedro. Literatura e ideologia: ensaios de sociologia da arte. Petrópolis: Vozes, 1979. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. de Marina Appenzeller. São Paulo: Papirus, 1995. VARGAS LLOSA, Vargas Llosa. A guerra do fim do mundo. Trad. de Remy Gorga Filho. Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1990. WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Trad. de José Laurênio de melo. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1995. _____. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Edusp, 1994.

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MEMÓRIAS DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL: UMA LEITURA DE NIHONJIN (2011), DE OSCAR NAKASATO MEMORIES OF JAPANESE IMMIGRATION IN BRAZIL: A READING OF NIHONJIN (2011), BY OSCAR NAKASATO Antônio Roberto Esteves (UNESP-Assis)1 RESUMO: A imigração japonesa é uma das mais importantes do Brasil e o processo de construção de identidade dos descendentes da diáspora nipônica talvez seja um dos mais doloridos, por motivos variados. O paranaense Oscar Nakasato, descendente dessa diáspora, escolhe o romance, com suas múltiplas possibilidades, para abordar o tema. Fugindo das construções 1

Docente do departamento de Letras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), câmpus de Assis. [email protected] R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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épicas, pouco apropriadas aos tempos de globalização, ele relata através da saga de três gerações o complexo processo de deixar de ser japonês e passar a ser brasileiro. Seu romance Nihonjin (2011) é um dos parcos exemplos que tratam da integração de imigrantes japoneses à cultura brasileira. Ancorado no processo da memória, esse romance histórico faz uma espécie de leitura a contrapelo do processo de inserção dos nihonjin na cultura brasileira. Com uma narrativa ao mesmo tempo ágil e suave, entrecruzando várias vozes e pontos de vista, o romance tenta preencher as muitas lacunas existentes no relato da épica familiar. Escorando-se em vozes dissonantes, prefere construir, em lugar da saga dos emigrantes japoneses e seu sofrimento ao abandonar a pátria, a aventura de se tornarem brasileiros. PALAVRAS CHAVE: Memória da imigração japonesa no Brasil. Construção da identidade nipo-brasileira. Romance histórico brasileiro. Oscar Nakasato. Nihonjin. ABSTRACT: Japanese immigration is one of Brazil’s most important populational movements and the process of identity construction by the descendants of the Nipponese diaspora is perhaps one of the most painful, for various reasons. Oscar Nakasato, descendant of this diaspora, chooses the novel, with its multiple possibilities, to approach the theme. Evading epic construction, almost inappropriate to the globalization era, he reports, through the saga of three generations, the complex process of ceasing to be Japanese and becoming Brazilian. His novel Nihonjin (2011) is one of the few examples related to the integration of Japanese immigrants to Brazilian culture. Anchored in the memory process, this historical novel is a kind of reading in a contrary direction of the process of insertion of the nihonjin in Brazilian culture. With a narrative at once agile and gentle, intersecting multiple voices and points of view, the novel tries to fill the many gaps in the history of the family epic. By yielding on dissenting voices, the author prefers to build, instead of the saga of Japanese emigrants, as well as their suffering for abandoning their country, the adventure they experience in becoming Brazilians. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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KEYWORDS: Memory of Japanese immigration in Brazil. Construction of Japanese-Brazilian identity. Brazilian historical novel. Oscar Nakasato. Nihonjin.

Nihonjin, nissei, nipo-brasileiro, nipônico, Nikkei e ni sei o que, assim nós, os descendentes dos pioneiros que vieram do outro lado do mundo, fomos chamados ao longo das décadas.” Jorge Nagae

Uma porta que se abre... É quase um lugar comum abordar a saga das grandes massas imigratórias que cruzaram oceanos em busca de uma terra que oferecesse condições de vida que essas pessoas não tinham em suas terras de origem, particularmente na transição do século XIX para o XX. Muitos japoneses, expulsos de suas terras pela reorganização econômica causada pela industrialização, optaram por vir para o Brasil, uma das terras da promissão. Na mentalidade de boa parte desses emigrantes, no entanto, o deslocamento seria provisório e deveria durar apenas o suficiente para acumular algum capital na nova terra e poder retornar. Na maior parte dos casos, porém, a separação foi definitiva e eles tiveram que se integrar à terra adotiva, tratando de assimilar a cultura local, ao mesmo tempo em que eram assimilados por ela. O trauma da não concretização do desejo inicial e o confronto com a realidade posterior costumam estar no centro dos relatos dessas comunidades que passaram a enriquecer o processo de mistura que deu origem a essa entidade multicultural que chamamos de Brasil. A construção da nova identidade é demorada e traumática. Há o confronto da identidade antiga, construção discursiva que trata de se manter viva na memória daqueles que abandonaram sua terra, com o desejo das novas gerações de deixarem de ser diferentes e se transformarem em brasileiros. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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A imigração japonesa foi uma das mais importantes do Brasil: representou o quinto contingente, no período de 1819 a 1939, depois de italianos, portugueses, espanhóis e alemães (ALVIM, 1998, p. 233). E o processo de construção de identidade dos descendentes da diáspora nipônica talvez seja um dos mais doloridos, por motivos variados. Em geral, a primeira geração nascida no Brasil, ainda imbuída da esperança dos pais, acalentou o desejo de regressar ao Japão. Mesmo tendo se integrado relativamente à cultura brasileira, cultivou muitos valores ancestrais preparados para se reintegrar à velha pátria quando fosse necessário. Mantiveram a língua japonesa não apenas em situação familiar e principalmente aqueles que foram educados antes do governo brasileiro proibir, nos anos trinta, as escolas em língua estrangeira, aprenderam a ler e escrever nessa língua, além de serem alfabetizados em português. Nesse contexto, a chamada colônia japonesa em nosso país foi uma das mais conservadoras, se pensamos em projetos de integração ao país de adoção. Mesmo quando se esvaeceram as possibilidades reais do retorno à terra dos antepassados, especialmente depois da derrota do Japão na Segunda Guerra, essa colônia criou um discurso especial de manutenção e exaltação de sua cultura. Praticamente integrados à cultura dos Estados em que se fixaram, especialmente os Estados do centro-sul do país, os nipobrasileiros marcaram profundamente a economia dessas regiões, sobretudo graças às inovações por eles introduzidas na agricultura. Da mesma forma, tais inovações agrícolas acabaram por impor também uma série de hábitos alimentares e gastronômicos. Em termos gerais, também na cultura pode ser notado o rasto de sua presença. Além disso, edificaram e alimentaram uma construção simbólica: o nipo-brasileiro é bem educado, sério e responsável. A família é bem estruturada, seguindo os valores nipônicos que colocam a coletividade em primeiro plano, restando pouco espaço para manifestações da individualidade. Os mais velhos são respeitados e dos jovens se exige, além do respeito àqueles, seriedade R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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nos estudos e no âmbito profissional. Devem ocupar os primeiros lugares, tanto nos estudos, quanto no trabalho. Seria uma forma de se integrarem na nova cultura ocupando um espaço normalmente negado aos estrangeiros (NAKASATO, 2008). Com todos esses estereótipos, os descendentes da diáspora nipônica no Brasil têm que lutar arduamente em seu dia a dia, na construção de sua identidade brasileira.

Nihonjin ou a árdua luta para se tornar brasileiro Publicado em 2011, Nihonjin, o primeiro romance do paranaense Oscar Nakasato, anteriormente conhecido e laureado como contista, já nasceu premiado: foi o vencedor do Primeiro Prêmio Benvirá de Literatura concorrendo com quase dois mil participantes. Em 2012 receberia o tradicional Prêmio Jabuti em sua categoria. A obra traça a trajetória de três gerações de uma família de imigrantes japonese e suas peripécias no processo de adoção da nova terra. A história é narrada por um neto de Hideo Inabata, uma espécie de protótipo do imigrante orgulhoso de sua condição nipônica, que desembarca no Brasil nos anos 20 acalentando o sonho de conseguir dinheiro suficiente para voltar à terra natal o mais breve possível. Ao longo da vida ele enfrenta o árduo trabalho rural, a difícil adaptação em uma terra desconhecida e o conflito com diversos membros da família pouco dispostos a seguirem suas estritas normas de conduta, baseadas em regras ancestrais de um Japão tradicional, pouco adequadas à realidade que o rodeia. Em sete capítulos, com narrativa em primeira pessoa, na voz de Noboru, neto do patriarca, o romance alterna um “estilo ora objetivo ora poético” (NAGAO, 2012). A memória pessoal se junta à memória familiar e a imaginação preenche as muitas lacunas que vão surgindo entre os relatos dos mais velhos. As duas pontas do arco narrativo, que conta a história das três gerações familiares, marcam R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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o período situado entre a saída do Japão do patriarca Hideo, em um dia indeterminado dos anos 20, para concluir, em outro dia também indeterminado, talvez nos anos 90. É quando o narrador, que reconstrói minuciosamente a saga familiar, faz uma visita final ao avô, poucos antes de empreender a viagem de volta, à procura de um homem antigo, rural, talvez o avô, mas também ele próprio, em um Japão pós-moderno, com o pretexto de seu trabalho como dekassegui. A temporalidade é escorregadia como a memória: há poucas datas no romance. Uma delas marca o dia em que Hideo foi preso: 06 de abril de 1943 (NAKASATO, 2011, p. 83). Acontecimentos históricos servem como marco cronológico: a Segunda Guerra Mundial e a derrota japonesa ou a ditadura militar brasileira dos anos 60-80, entre outros. Em geral, no entanto, o tempo flui com os acontecimentos cotidianos, recuperados pela rede de memória familiar, seja a do próprio narrador, seja a dos demais membros do clã. O próprio narrador apresenta sua definição de tempo: “O tempo só existe porque se fazem coisas, umas após as outras, e elas, quando são evocadas, surgem em uma nova realidade, e então não são as mesmas. [...] O tempo é atemporal.” (NAKASATO, 2011, p. 174). E todo o relato que constitui o romance, reconstituição da memória individual, do narrador e de sua família, por metonímia da própria imigração japonesa no Brasil, é for mado pela superposição de um passado, resultado da fusão de fragmentos da memória que se juntam para formar a totalidade construída pelo narrador. Aí, passado e presente se fundem: o presente reelabora o passado que dá sentido ao presente: “O passado agora habitava outro espaço, surgia para justificar o presente, era reconstruído, e não se necessitava ter restauradores, que eles são rigorosos, preocupam-se com milímetros e cores exatas”. (NAKASATO, 2011, p. 174). Nessa reelaboração, o silêncio adquire papel essencial, uma vez que é “uma ausência necessária para que as lembranças e as aflições pudessem povoar os nossos desvãos.” (NAKASATO, 2011, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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p. 175). Tais desvãos são preenchidos de várias formas: através dos relatos dos vários membros da família ou principalmente através da imaginação do narrador, que cria uma teia de vozes em mise en abyme para ocupar tais espaços antes vazios. “Tio Hanashiro me contou alguma coisa dela que o vovô havia lhe dito muito tempo atrás, coisas de que o próprio ojiichan se esquecera [...]” (NAKASATO, 2011, p. 10). Fragmentos de fotografias e relatos dos mais velhos são os vestígios através dos quais os ausentes adquirem vida e povoam o presente da narrativa. As fotos antigas e as histórias explicando e identificando cada uma daquelas imagens amareladas pelo tempo são o elo que estabelece a ligação entre fiapos da memória familiar e que permite criar a história daqueles imigrantes embrutecidos pela dureza da vida nos cafezais. São as reminiscências a que se refere Benjamin (1985, p. 224), que precisam ser apropriadas para poderem significar. É a forma através da qual a imagem do passado perpassa, veloz, para deixar-se fixar como “imagem que relampeja irreversível, no momento em que é reconhecido”. (BENJAMIN, 1985, p. 224). Muitas são as histórias que se perdem, indivíduos que são apagados pelo esquecimento, natural ou proposital. É contra esse apagamento que se ergue a voz do narrador, tratando de extrair do fundo das gavetas ou de obscuros rincões da memória, resquícios convertidos em cacos de memória que serão cuidadosamente colados para reconstruir figuras desconhecidas ou olvidadas. Se a fotografia é um importante resquício desse passado perdido, o jogo do olhar ocupa um papel fundamental no relato. É através dele que antigas imagens borradas readquirem novos significados e contam outras histórias, até então apagadas e/ou esquecidas. O olhar do narrador incorpora o olhar do outro presentificando-o em seu relato. “Depois, quando o navio chegou ao porto de Santos, vi Kimie se espremendo em meio aos homens e mulheres maiores que ela, procurando um espaço na amurada.” (NAKASATO, 2011, p. 17). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Pode-se dizer que o romance de Nakasato realiza, a partir das bordas, com o foco em personagens ex-cêntricos (HUTCHEON, 1991), uma leitura da saga da imigração, desmitificando o modelo tradicional, centrado na epopeia heroica com o objetivo de louvar o sacrifício dos imigrantes que, mesmo em condições adversas lutaram para manter de pé os valores, em geral ultrapassados, racistas e preconceituosos, daquilo que consideravam ser o pilar da cultura japonesa. De alguma forma, essa leitura dessacralizadora já tinha sido feita, em 1980, pelo filme Gaijin, de Tizuka Yamasaki, com o qual Nihonjin dialoga de modo claro. Desse modo, a saga de Hideo Inabata é contada enfocando três personagens silenciados pela tradição familiar, que são recuperados pelo relato do narrador. Cada qual a seu modo e com sua atuação particular, esses personagens ajudam a corroer o louvado modelo tradicional do imigrante nipônico. Dois deles são mulheres, já per se pouco consideradas numa sociedade patriarcal e falogocêntrica (CEIA, 2013) como a cultura japonesa de fortes marcas rurais do século XIX. Apontar a mulher como elemento secundário na cultura japonesa tradicional é quase um lugar comum. Cabia à mulher, naquela sociedade agraria e rural, um papel secundário de mero coadjuvante do homem, com a função de esposa obediente e trabalhadora e mãe zelosa. Duas das três mulheres que ocupam o protagonismo do romance fogem a esse papel e são extirpadas do núcleo familiar sofrendo seu desprezo. O terceiro protagonista ousa a enfrentar o feroz nacionalismo nipônico e pagará com a vida o desejo de integrar-se à sociedade brasileira. Cronologicamente, e também no relato, uma vez que abre o romance, o primeiro desses personagens ex-cêntricos é Kimie, a primeira esposa de Hideo. Dela pouco se sabe. “Há uma fotografia dela em preto e branco [...], as bordas cortadas em pequenas ondas pontudas, amarelada [...]. Quem se lembra dela?” (NAKASATO, 2011, p. 9). No momento do desembarque, o narrador a vê “se espremendo em meio a homens e mulheres maiores que ela, procurando um espaço na amurada.” (NAKASATO, 2011, p. 17) R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Frágil e sonhadora, estará sempre procurando um espaço próprio, mas não conseguirá vencer as adversidades. Acaba por morrer de tristeza, por não adaptar-se à nova terra nem ao rigor do marido. Antes de morrer, não sem muita crise de consciência, ela tem uma aventura extraconjugal com Jintaro, o agregado da família, sensível e poeta, homem oposto a Hideo. Ela morre sonhando ver a neve caindo nos cafezais paulistas. Dela resta apenas uma fotografia apagada e alguns fragmentos narrativos. No entanto, é ela, sempre “calada, cabisbaixa, encaramujada”, como corresponde a uma mulher japonesa de seu tempo, quem primeiro estenderá a mão rumo à integração à nova terra e à sua gente. Apesar de não se adaptar à vida bruta da fazenda de café, ela estabelece amizade com Maria, negra “altiva, sorridente e bela” (NAKASATO, 2011, p. 17), que vem lhes dar as boas vindas por ocasião de sua chegada à colônia de café. Apesar da oposição do marido, Kimie mantém sua amizade com Maria, conhecedora de chás e ervas que a curam várias vezes, mas que não são suficientes para salvá-la. Evidentemente, tal personagem deveria ser banido da memória gloriosa da imigração nipônica. Pode ser um exagero de Nakasato concentrar em Kimie uma série de características indesejáveis na construção idealizada do imigrante japonês: mulher; frágil; inadaptada ao trabalho duro da lavoura; apaixonada pelo agregado familiar que cultiva as letras e é sensível; amiga de uma negra, contrariando as ordens do marido e, principalmente, incapaz de gerar filhos para seu marido rude e autoritário. Com a partida de Jintaro, agregado ao casal para atender às exigências das autoridades migratórias brasileiras de três enxadas por família; e com a morte de Kimie, Hideo teve que se juntar, agora como agregado, a outra família. Acaba se casando com uma das filhas e então constitui sua própria família. A nova esposa é o que se espera de uma japonesa: trabalhadeira, obediente, calada. Nascem e crescem os filhos e como normalmente ocorre com os R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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imigrantes, a família abandona a fazenda de café e arrenda um sítio, onde se dedica à agricultura e à pecuária. Mais tarde se dirigem para a cidade, fixando-se como comerciantes no bairro da Liberdade, em São Paulo. A educação da prole segue o padrão da colônia: a escola brasileira visando dar aos filhos conhecimentos básicos de língua portuguesa e ao mesmo tempo a rigorosa escola japonesa. É nesse contexto que começam, já de criança, os problemas com Haruo, o segundo filho, o “diferente que queria ser igual”, que não hesita em contrariar os ensinamentos paternos em seu afã de tornar-se um brasileiro. Ele é o núcleo do segundo foco ex-cêntrico do romance. Desde criança nega-se a aceitar a identidade de nihonjin, preferindo aproximar-se dos gaijin. Os conflitos com o pai serão inúmeros, mas o preço maior de sua opção integracionista é seu assassinato pelos kachigumes da Shindo Renmei, a Liga do Caminho dos Súditos, logo após a Segunda Guerra mundial. Sua morte, nos braços do pai, que era militante da Liga, imprime uma marca dolorida no caráter de Hideo, que não deixa, no entanto, de ser um homem extremamente rigoroso. No âmbito privado, ele sofre a morte do filho, mas o final do romance mostra um ancião que, embora atormentado pela morte do filho, se dedica com mãos firmes à técnica do bonsai, modelando com arame e alicate, as formas da planta. O episódio da Shindo Renmei talvez seja a parte mais controversa da história da imigração japonesa no Brasil. Por um lado, costuma ser usado pelos nacionalistas brasileiros para denegrir a imagem desses imigrantes e dos nipo-brasileiros. Os idealizadores da saga heroica da imigração japonesa, por sua vez, durante muito tempo preferiram passar de modo superficial e rápido pelo episódio. Vista com desconfiança pelo grosso dos brasileiros devido a seu caráter fechado, a colônia japonesa foi bastante atingida durante a ditadura nacionalista de Getúlio Vargas. Entre outras coisas, o regime de Vargas proibiu a educação em língua estrangeira no país, além da circulação de publicações em língua estrangeira. Com a R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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entrada do Brasil na Guerra, os japoneses passaram a ser vigiados de perto, ficando praticamente confinados e isolados. Nesse contexto, em 1942, como resultado da reação a ataques violentos contra japoneses em Marília, um grupo de nacionalistas japoneses fundou a Shindo Renmei, Liga do Caminho dos Súditos, em japonês. Com a derrota do Eixo na Guerra, a colônia japonesa dividiu-se em dois grupos: aqueles que se negavam a aceitar a derrota do Japão, conhecidos como kachigumis e os que aceitaram a derrota, normalmente mais propensos à integração ao país, conhecidos como makegumis, os “corações sujos”. Estes últimos, em geral pessoas mais cultas, mais esclarecidas, que ocupavam o topo da sociedade nipobrasileira, passaram a ser perseguidos pelos tokkotais, membros das “Unidades Especiais de ataque por choque corporal” (DEZEM, 2000, p. 69), braço armado da Liga, sendo muitas vezes executados. Capítulo pouco lembrado pela historiografia oficial da imigração, esse episódio merece destaque especial no romance, com o relato da morte de Haruo e suas ressonâncias na família. O capítulo 6 começa com a frase “LAVE A SUA GARGANTA, TRAIDOR” (NAKASATO, 2011, p. 131). Trata-se da frase escrita em japonês no muro da casa de Haruo, texto com que normalmente começavam as cartas com a sentença de morte ditada aos makegumis. O intertexto, neste caso, é o conhecido livro de Fernando Moraes, quem após rigorosa pesquisa sobre o tema, relata o episódio dos conflitos entre kachigumis e makegumis em Corações sujos, de 2000, onde também apresenta um bom panorama da história da imigração japonesa no Brasil. Do mesmo ano, decorrente da abertura dos arquivos do antigo DEOPS e do inventário de seu conteúdo, é o estudo de Rogério Dezem, Shindô-Renmei: terrorismo e repressão, que provavelmente também foi utilizado nas pesquisas de Nakasato, uma vez que várias informações ali constantes aparecem no romance. Assim, ao trazer para o centro de seu romance essa “página negra da História da imigração japonesa no Brasil” (DEZEM, 2000, p. 28), Nakasato, de acordo com os princípios norteadores do R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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romance histórico contemporâneo, trata de trazer o episódio para o centro das discussões, contribuindo para superar o tabu que havia relegado ao esquecimento tal episódio. Assim, parece que Nakasato, ao retomar a questão, da forma como a apresenta em Nihonjin, não apenas indica a necessidade de evitar o esquecimento, mas também sinaliza para a necessidade de uma memória apaziguada, uma memória reconciliada, enfim, uma memória feliz. (RICOEUR, 2007, p. 504) O foco principal do romance, no entanto, é a história de Sumie, também filha de Hideo e mãe do narrador, que abandona o marido e os filhos pequenos para viver um grande amor com o brasileiro Fernando. Embora a narrativa sinalize para o perdão, parece que ninguém na família a perdoou, com exceção de sua mãe Shizue. O capítulo 5 começa com a frase “Às vezes penso em ir vê-la” (NAKASATO, 2011, p. 99), mas fica a impressão de que o rancor pesa mais que o amor e o narrador, embora tenha em seus olhos sua imagem, não consegue superar o trauma de ter sido privado da presença materna em sua infância. E tampouco ele toma a iniciativa de ir vê-la, ainda que sofra ao antecipar sua possível morte... Esse é o drama da família que, de alguma forma, humaniza e enlaça os dois protagonistas básicos do romance. O velho patriarca, imigrante japonês, faz um balanço de sua vida no qual parecem constar mais derrotas que vitórias. Sua pretensa retidão, sempre seguindo os preceitos de um código rígido, fundado em valores arcaicos, parece ruir diante de tantos dissabores. Seu esforço parece ter sido em vão: não conseguiu voltar à sua terra natal e não conseguiu forjar seus descendentes de acordo com seus valores. O último capítulo do romance, nesse sentido, oferece uma leitura aberta (até mesmo dúbia). Por um lado, Hideo reconhece que perdeu a oportunidade de compreender os próprios erros, reconhecendo-os diante do filho Haruo, executado pelos tokkotais da Liga. Ao mesmo tempo em que sinaliza que “não conseguira compreender a tempo que vivia uma grande ilusão” (NAKASATO, 2011, p. 171), referindo-se a sua postura intransigente com relação R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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ao Japão, ele é apresentado no jardim, podando com golpes firmes seus bonsais. Essa comunhão entre a natureza e as mãos humanas produz belas flores, sinalizando simbolicamente, e paradoxalmente, se pensamos que as mãos são de um ancião, o ciclo vital da primavera. Por outro lado, no entanto, reitera o controle da tesoura firme que poda galhos e dirige os brotos de acordo com o desejo humano. Do mesmo modo, o velho japonês vê com ceticismo a ideia de o neto ir ao Japão e lhe diz com palavras nuas que o Brasil é a sua terra. A imagem final, aberta, aponta o narrador despedindo-se do avô, e também da história, e dirigindo-se ao portão. Simbolicamente, o portão representa uma zona de transição, uma travessia, um entrelugar (SANTIAGO, 1978). Desta vez, como se a roda da vida girasse ciclicamente, a partida se faz em sentido inverso. O velho japonês, que veio para o Brasil com a ideia de permanecer pouco tempo e nunca mais regressou, fica no jardim, uma vez que já não vê nenhum sentido na pátria antiga. O neto, que se considera brasileiro, e que conhece os mecanismos da história, pois é historiador, fará o caminho inverso, talvez tentando reencontrar a terra abandonada pelo avô. Como historiador ele trata de reconstruir através de um relato, não histórico, mas ficcional, a saga familiar. A reconciliação necessária com a mãe, no entanto, fica pendente. Pode-se associar, neste caso, a mãe com a terra, com as origens. Apesar de não voltarem a vê-la, nem o avô, nem o neto, ambos sabem que ela está ali, na memória de ambos, talvez esperando a reconciliação necessária para que a primavera possa ter o sentido de vida que se recicla...

Seguir em direção ao portão (aberto)... Apesar da ruptura com a tradicional saga da migração, o romance de Nakasato mantém alguns lugares comuns dos relatos que tratam do tema. A família se encaixa perfeitamente no caminho R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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seguido pelos imigrantes. Ao chegar ao Brasil, Hideo fixa-se no campo, inicialmente na lavoura de café, para depois dedicar-se a um sítio, antes de imigrar para a cidade, onde monta um estabelecimento comercial no bairro paulistano da Liberdade. Seus filhos serão comerciantes ou prestadores de serviços. Netos e bisnetos irão à Universidade, já integrados à cultura brasileira. Um bisneto treina “numa escolinha de futebol com um ex-jogador do Palmeiras” (NAKASATO, 2011, p. 167). O tripé valorizado pelos imigrantes japoneses e seus descendentes: família, educação e trabalho (NAKASATO, 2008) é mantido firmemente. Isso explica as fraturas ocorridas, no caso das mulheres que escapam do tacão do patriarcalismo exacerbado. O romance, entretanto, faz uma releitura dessacralizadora da saga da imigração japonesa. Mais que a saga do imigrante japonês em terras estrangeiras, temos a aventura da integração do nihonjin ao novo país e à nova cultura. Mesmo o retorno em busca das possíveis raízes efetuado pelo dekassegi, ao final do relato, reveste-se mais de constatação da diferença que de busca da identidade. O avô, na despedida, afirma que é o Brasil, não o Japão, a terra do neto. Nessa leitura desmistificadora o foco está no próprio relato, tentativa de reconstrução da memória a partir do preenchimento das lacunas apagadas pelo esquecimento. Trata-se, portanto, de uma metaficção historiográfica (HUTCHEON, 1991) que evidencia claramente o construto discursivo como eixo da narrativa. Há um narrador que reúne relatos dos mais velhos tentando entender o porquê de certos apagamentos na memória familiar. Ao mesmo tempo, ele vai articulando fragmentos de memórias próprias e alheias e, a partir delas, constrói outra versão para a saga familiar. Nesse transcurso, as fotografias, reminiscências do passado que se atualizam no presente, tem um papel importante. O espaço entre o instante passado perpetuado no papel e sua significação no presente vai sendo preenchido pelo relato que, a cada instante, negocia e renegocia significados. Nesse processo as verdades consolidadas, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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pela voz do patriarca, pela tradição do discurso heroico da saga do imigrante, pelo discurso estereotipado sobre os nipo-brasileiros, entre outras, vão se dispersando, dando lugar a verdades negociadas, relativas; versões que surgem da polifonia de vozes que ressoam a cada instante. Cabe, ao leitor, responsável pelo processamento dessas versões, reconstruir e/ou acatar aquela que mais lhe interesse, aquela mais esteja de acordo com seu desejo. Como romance histórico, gênero híbrido por natureza, a narrativa de Nakasato incorpora procedimentos tanto da ficção quanto da história, em especial o “desejo de selecionar, construir e proporcionar auto-suficiência” (HUTCHEON, 1991, p. 146). E principalmente o objetivo de duvidar das verdades consolidadas e hegemônicas, de corroer as versões impostas pelo poder patriarcal, assentado em versões homogêneas que desconsideram o diferente, o particular. Daí a importância da mudança do foco, trazendo para o centro da narrativa o ponto de vista dos ex-cêntricos, dos apagados, dos esquecidos, dos silenciados. A metáfora do bonsai com que se fecha a história é significativa: modela-se o passado de acordo com o presente. Mesmo que o narrador de Nihonjin seja masculino, o relato trata de tirar do anonimato as vozes femininas reprimidas. Nesse processo, uma técnica narrativa característica do romance histórico pós-moderno articula a construção de Nihonjin: o diálogo intertextual. Ao reescrever em seu romance a saga da imigração japonesa no Brasil, Nakasato faz uma leitura a contrapelo da saga da imigração. Seu romance é uma espécie de paródia da épica da imigração que normalmente se repete no imaginário do discurso heroicizante da imigração. As páginas do romance de Nakasato, nesse sentido, dialogam, às vezes diretamente, às vezes indiretamente, com uma biblioteca virtual, uma espécie de “memoria literária” (SAMOYAULT, 2008, p. 75) que reúne um repertório literário e cultural vivo, sobre a imigração japonesa no Brasil. Dessa biblioteca, talvez a presença mais evidente, notada desde o título, seja o filme de Tizuca Yamasaki, de 1980, que de alguma forma, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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embora ainda mantivesse um tom heroico, já apresentava importantes inversões na saga do imigrante, principalmente ao colocar a mulher no centro da epopeia e ao defender a integração do japonês à cultura brasileira. A saga da imigração é pintada em Nihonjin com cores muito similares àquelas que apareciam nas imagens de Gaijin. Isso evidencia não uma simples leitura, mas uma homenagem da narrativa de Nakasato ao filme de Yamasaki. Tanto Gaijin quanto Nihonjin dialogam com a matriz tradicional do relato épico da imigração, tratando de dessacralizá-la. Em ambas as obras, o ponto de vista deixa de ser patriarcal e localiza-se na mulher que trata de romper a estrutura imposta por uma cultura assentada no poder do macho castrador. Se em Gaijin, de um modo idealizado, a narrativa conclui apontado para a difícil, mas possível integração do imigrante ao novo país e para a libertação das amarras que prendiam a mulher, em Nihonjin, mais realista, ocorre a recuperação dessas vozes que pagaram com a vida ou com a solidão a ousadia de sua transgressão. Assim, ao se estruturar no enredamento entre ficção e história, entre realidade e fantasia, estilhaçando o tempo linear e rompendo com o documentalismo essencialista, com o localismo restritivo e com a visão plana da história, o romance de Oscar Nakasato descontrói lugares comuns da historiografia da imigração japonesa no Brasil, do pensamento excessivamente exaltador e muitas vezes doentio de um falogocentrismo exacerbado. E nas gretas dessa desconstrução faz brotar novas possibilidades de leitura da saga dessa imigração, entre as quais o drama da integração do nipobrasileiro à cultura brasileira e, por contiguidade, desse enorme palimpsesto a que damos o nome de cultura brasileira.

Referências ALVIM, Zuleika. Imigrantes: a vida privada dos pobres do campo. In SEVCENKO, N. (Org.) História da vida privada no Brasil. 3: República: R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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O EXÍLIO, A MEMÓRIA E A RELAÇÃO ENTRE ARTE E HISTÓRIA NA OBRA DE JORGE SEMPRÚN EXILE, MEMORY AND THE RELATION BETWEEN ART AND HISTORY IN JORGE SEMPRUN’S WORKS Marcia Romero Marçal (UFMT)1 RESUMO: Esse artigo tem a finalidade de apresentar e analisar algumas perspectivas da fortuna crítica do escritor Jorge Semprún sobre temas importantes de sua obra, como o exílio, a memória e a relação entre arte e história, e tecer algumas considerações sobre a visão dialética do autor a respeito da relação entre ficção e realidade que permeia seu fazer literário.

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Professora Doutora do Departamento de Letras-Espanhol da UFMT. [email protected]

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PALAVRAS-CHAVE: Jorge Semprún. Exílio. Memória. Ficção e realidade. Literatura de testemunho ABSTRACT: The purpose of this article is to present and review some perspectives from the critical fortune of Jorge Semprún about key topics of his work such as the exile, the memory and the relationship between art and history, and make some considerations about the author’s dialetical view regarding the relationship between fiction and reality, which permeates his literary creation. KEYWORDS: Jorge Semprún. Exile. Memory. Fiction and reality. Literary testimony

Escritor espanhol bilíngue, roteirista de La guerre est finiede Alain Resnais (1966), de Z (1970) de Costa-Gavras, autor de ensaios sobre história e geopolítica, reunidos em Pensar en Europa (2006), dirigente do PCE (Partido Comunista Espanhol), ministro da Cultura (1981-1983) – várias facetas caracterizam a atuação política e intelectual de Jorge Semprún. Há, no entanto, uma experiência em sua história de vida que determina a dimensão humana e humanista de seu pensamento: Buchenwald. Semprún nasce em Madri, em 1923, no seio de uma família republicana e burguesa, aficionada às artes e à poesia. Após a vitória de Franco e o falecimento da mãe, exilam-se na França. Em Paris, em 1941, o jovem abandona os estudos de filosofia da Sorbonne e ingressa na Resistência francesa para lutar contra as forças nazifascistas. Em janeiro de 1943, depois de capturado e torturado pela Gestapo, é deportado ao campo de concentração de Buchenwald, onde participa do aparelho comunista clandestino. Com a libertação do campo, em abril de 1945, o sobrevivente entrega-se à militância partidária clandestina. Expulso em 1964 do PCE por divergências políticas e críticas aos expurgos e crimes cometidos pelo regime totalitário stalinista, somente após dezoito anos de R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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silêncio Semprún consegue enfrentar a memória traumática de Buchenwald, através da escrita, com seu primeiro testemunho literário, Le Gran Voyage (1963). Sem dúvida, o campo de concentração deixa profundas cicatrizes neste intelectual engajado que, a partir de então, conceberá sua identidade pessoal e histórica, sua atividade política e literária, inextricavelmente interligadas, fruto desta experiência muitas vezes reconhecida por ele como eterno exílio. Se, por um lado, ele vivenciou grandes catástrofes do século xx - a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, o campo de concentração, a ditadura franquista - por outro, procurou denunciá-las e transformálas em temas de reflexão e expressão literária, forma para ele privilegiada de transmitir o indizível. Os textos críticos que se debruçam sobre a obra do escritor madrileno analisam seus temas, estilo, concepções, influências literárias, experiências de vida, valores e ideologia sob perspectivas diferentes ainda que coincidentes em alguns aspectos. Em geral, a crítica costuma apontar uma relação direta entre experiências pessoais e históricas do escritor e temas de sua poética, de modo a gerar ciclos, identificados segundo a experiência prevalecente no texto, e formas textuais diversas tais como a autobiografia, o romance, o testemunho, as memórias, etc. Assim, ela tende a classificar os temas de sua obra em função das fases de sua vida e a selecionar um em detrimento de outros conforme a importância atribuída ao mesmo em determinada obra, ciclo ou na evolução do conjunto das obras do escritor. A memória, o testemunho do campo de concentração, a relação entre arte e vida, a militância clandestina e o exílio são os temas mais abordados por sua fortuna crítica. O exílio, por exemplo, é considerado por Ofélia Ferrán (1998, p. 109) a experiência que explica a relação do autor com o mundo e a literatura. Segundo Ferrán, o primeiro exílio do escritor, o político, ocorre com o desastre da Guerra Civil Espanhola; o segundo, o do Holocausto, a experiência mais radical de exílio por ele vivenciada, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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corresponde à deportação a Buchenwald, que o leva à beira da morte e atormenta incessantemente sua memória; o último, o da língua, ligado ao bilinguismo, deriva “de la incapacidad de diferentes naciones de saber incorporar plenamente a alguien que ha cruzado tantas barreras de tantos tipos en su vida.” (FERRÁN, 1988, p. 109). Conforme a crítica, os romances do autor buscam não somente representar esses diferentes exílios, mas também superá-los ao construir um terreno ao qual possa se sentir pertencer como uma pátria: a linguagem; paradoxalmente, fazer da linguagem sua única pátria implica por princípio uma instabilidade permanente, já que a escrita exige um constante processo de (re)criação. Quando Semprún explica que escrever em francês é transformar o exílio em uma pátria, expressa que a invenção linguística assemelha-se ao exílio na medida em que está em permanente reelaboração e ressignificação. Esta, sem dúvida, é uma precária positividade fundamentada na contínua necessidade de reacomodar-se. A crítica ainda afirma que o exílio dos sobreviventes prossegue quando libertos, pois “pasan [...] a un exilio que continuarán sufriendo mientras su recuerdo les siga ‘deportando’ al universo concentracionario que no logran, fácilmente, dejar atrás.” (FERRÁN, 1998, p. 107) Em nosso estudo sobre La escritura o la vida (1994), observamos como o narrador questiona seu regresso de Buchenwald ao mundo “civilizado”, através do uso especial do termo “ressuscitado” ao invés de sobrevivente, ao mesmo tempo em que concebe o espaço do lager como a pátria-origem enquanto que o mundo como lugar de eterno exílio. Tal procedimento semântico nos informa que não há retorno ou futuro para quem esteve nos campos de concentração cuja catástrofe corresponde a uma perda irrecuperável. A incerteza de ter regressado, a sensação de eterno exílio, o sentimento de não possuir uma pátria, de desenraizamento total, acentuam o desamparo, a impossibilidade de luto e a rara percepção de não poder acordar para a vida depois do campo, que se lhe apresenta tragicamente envolta em uma atmosfera de irrealidade, em um sonho. O excesso de realidade do campo causou ao sobrevivente um distúrbio no princípio de realidade. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Em La escritura o la vida, Semprún justifica a escolha do francês como sua nova língua originária por ser para ele a antítese da noção oficial de pátria e origem; defende, portanto, que sua segunda língua se torne, contraditoriamente, sua língua materna na medida em que é sua língua do exílio, já que “había hecho del exilio una patria”. Notamos que a dialética entre pátria e exílio está condicionada ao sentido da transformação radical vivenciada em Buchenwald. A Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, a militância clandestina no PCE, o campo de concentração, a Resistência na França e o franquismo são os temas identificados, por exemplo, por Domingo Pérez Minik (1979) em seu breve artigo sobre El desvanecimiento (1967). Nenhum tema dominante é apontado pelo crítico que, contudo, se centra na descrição do tipo de memória que atua e se articula aos procedimentos cinematográficos empregados na obra. O fundamental desta leitura reside no fato de Minik (1979) elevar o elemento memorialista a princípio organizador e estruturante do texto, submetendo a ele os temas de modo não hierárquico. Minik (1979) analisa o modo ambíguo e contraditório como esta memória funciona em El desvanecimento (1967), configurando uma luta da lucidez contra a confusão, da consciência versus a inconsciência, entre a realidade e o sonho; uma luta, ao fim e ao cabo, da memória contra o esquecimento. Em efeito, a memória aparece na crítica de Semprún como um elemento ao mesmo tempo problemático e revelador, posto que se refere a acepções distintas de sua obra. A exemplo disso, José Ortega (1976), que se detém na interpretação de La segunda muerte de Ramón Mercader (1969), nota que a memória na obra do escritor radicado na França corresponde a uma memória de, mais precisamente à memória do exílio (da Guerra Civil Espanhola), a da perda de identidade pessoal e política, da qual o autor se serve para objetivar sua visão crítica das ideologias esquerdistas partidárias e do contexto histórico-social representados pelo enredo e personagens no romance mencionado. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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A memória também é sublinhada por Felipe Nieto (2003) um fator problemático da escrita sempruniana, cujos temas principais levantados são o exílio, a deportação e a militância, e cujo fato pessoal e histórico determinante é a deportação a Buchenwald. Conforme Felipe Nieto (2003), a memória da experiência da deportação em Semprún representa um trauma que torna a sobrevivência do ex-prisioneiro precária, dividida em um dilema: contar e escrever, o que o remete à morte de antanho, à dor insuportável de recordá-la, ou calar e esquecer, recurso para conservar-se com vida. Este dilema, acrescentado ao conflito interior de sentir-se culpado de ter sobrevivido, quando os companheiros não tiveram o mesmo destino, e o imperativo ético de falar do mal perpetrado, denunciar as atrocidades em nome e no lugar da voz dos companheiros desaparecidos, constitui o tema fundamental de La escritura o la vida. Desta maneira, o crítico classifica o livro de Semprún e os demais pertencentes ao ciclo de Buchenwald - El largo viaje (1963), Aquel domingo (1980), Viviré con su nombre, morirá com el mío(2001) - uma escrita memorialista na qual o estatuto de ressuscitado, estratégia do sobrevivente para mover-se em um mundo estranho, que se encontra entre duas mortes, assume um caráter literário. Segundo Felipe Nieto (2003), a memória do ressuscitado Semprún, uma das poucas testemunhas que restaram nesse estranho mundo, para tornar-se verossímil, deve ser imortal. O inesgotável da memória da testemunha se liga, portanto, a um recurso da imaginação literária encontrado para transmitir a visão de quem sente ter vivenciado a morte e ter como tarefa manter o mais viva possível a recordação do mal como forma de luta a favor da liberdade e dignidade humanas. Na formulação de Enric Bou (2005), quem toma Autobiografía de Federico Sánchez (1978) como objeto de estudo, a memória do exílio e da experiência das ditaduras no século xx constitui um elemento de tensão para a construção da forma autobiográfica: no caso de Semprún, a memória do exílio impingido pelo franquismo sofre um conflito entre o plano individual e o coletivo, procedente R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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da situação histórica de desterrado e/ou de luta clandestina contra a ditadura. Na exposição de Bou (2005), a situação do escritor exilado, dentro ou fora de seu país de origem, condiciona uma contradição entre a memória pessoal de sua experiência e aquela propagada pelas instituições oficiais da sociedade em que se insere. Ao fundamentar seu argumento, o crítico emprega as concepções de Paul Ricoeur sobre a relação entre memória coletiva e individual, segundo a qual a subjetividade necessita da dimensão coletiva para formar uma unidade coerente e manifestar-se. Seguindo tal linha de raciocínio, ele conclui que a autobiográfica do exílio pressupõe uma impossibilidade de constituir-se uma forma literária pura. Dito de outra maneira, a condição do exílio acentua de tal modo as contradições da autobiografia, uma vez que nesta situação falta ao escritor o substrato coletivo para sedimentar sua rememoração individual, que não é possível considerar tais textos (muitas vezes auto intitulados) autobiográficos a não ser como um esforço irônico de legitimação de uma verdade individual frente a uma ficção/ mentira coletiva. A reflexão de Enric Bou (2005), em primeira instância, contribui para pensar a relação entre ficção e verdade, memória coletiva institucionalizada e memória individual deslocada, na literatura de testemunho e de exílio, mas principalmente para defender a possibilidade de representação literária da catástrofe. A respeito dessa polêmica, Jorge Semprún ironiza sua posição de mal testigo, testigo molesto, ao questionar a hipótese de existência de uma testemunha ideal postulada por uma linha do saber e discursiva sobre a shoah na qual esta corresponderia aos que não sobreviveram, à testemunha integral. Esta vertente teórica tem como consequência radical negar a possibilidade de se contar a verdade da experiência da catástrofe e representar artisticamente o inominável do horror, posto que não vivido. Semprún se opõe a este pensamento e reivindica o direito a transformar uma vivência atroz em experiência transmissível através do artifício e da mediação da literatura. Em certo sentido, sua reivindicação significa uma luta pela liberdade de R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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expressão e de elaboração da memória individual novamente sufocada pelas ideologias e saberes produtores de uma memória coletiva homogênea, excludente, mistificadora e monopolista. A crítica de Karsten Garscha (2003), que inclui El desvanecimiento (1967) no ciclo de relatos literários sobre a experiência da deportação a Buchenwald, busca mostrar a transformação pela qual passa Viviré con su nombre, morirá com el mio (2001) sobre o tema, no que concerne ao modo de descrever e narrar a passagem por Buchenwald. Garscha (2003) afirma que, à diferença de outras narrativas sobre o campo de Semprún, esta logra penetrar no presente, no interior dos sofrimentos cotidianos do campo, podendo assim relembrar a morte dos companheiros e a sua própria. Decorre dessa ideia que a memória traumatizada ou a memória do trauma pôde ser superada mediante a atividade literária crítica e reflexiva, obtida graças ao distanciamento temporal em relação ao ocorrido em Buchenwald. Outra questão assinalada pela a crítica se refere a como a reflexão do relembrado e narrado está em tensão com as divagações sobre as recordações, registradas pela combinação de iterações e variações. Para Garscha (2003), as repetições, levadas a cabo pelo discurso iterativo do narrador, indicam a impossibilidade de transmitir em sua totalidade a vivência em Buchenwald; a memória da catástrofe, por sua vez, aparece em seu duplo aspecto: como elemento estruturador do texto, substrato inesgotável que permite que o sobrevivente testemunhe escrevendo e reescrevendo uma história interminável, mas também como matéria indomável, resistente à reflexão, que se impõe por meio de imagens que serão aceitas ou rechaçadas pelo sobrevivente em função de seu poder de aguentá-las, descrevê-las e narrá-las. A singularidade da interpretação de Karsten Garscha (2003) consiste em conceber a presença de citações literárias na escrita de Semprún como um recurso consciente de entrada da memória individual na memória coletiva. O que ela denomina proceso de R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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literaturización de lo real corresponde a uma saída que permite que experiências traumáticas possam ser descritas e propiciem ao leitor, mas também ao próprio autor escritor, a apreensão e o conhecimento do que está contido em uma memória problemática. Tendo em vista as análises de Garscha e de Enric Bou neste ponto, podemos pensar que a literaturización de lo real na poética de Semprún funciona como um meio ideológico e político de legitimar sua versão da realidade, de reclamar a participação de sua memória individual na memória coletiva, através da transgressão dos códigos culturais e científicos que estabelecem a definição e a fronteira entre o real/a verdade e a ficção/o falso. A crítica de J. Sinnigen (1982), centrada na obra Autobiografía de Federico Sánchez (1978), ressalta a consciência que o escritor bilíngue tem da importância da linguagem e dos discursos na fabricação da memória coletiva e da visão de mundo. Sinnigen (1982) sublinha o caráter político e crítico da escrita de Semprún ao mostrar que para o toda memória está carregada de ideologia e que ela assume uma função distinta na vida social, segundo a linguagem que se utiliza para construí-la e expressá-la. Conforme o crítico, a escrita literária de Semprún empreende uma luta contra o esquecimento sistemático na medida em que reflete e duvida das fronteiras entre o fictício e o real, o romanesco e o testemunhal, na medida em que a memória ideológica penetra e condiciona as formas da tradição literária. A exemplo disso, Autobiografía de Federico Sánchez revela a Sinnigen (1982) como a intenção política de fazer relembrar, questionar e denunciar se encontra indissociável da forma do texto. A questão da memória na escrita do intelectual espanhol, mais especificamente em Aquel domingo (1981), é indagada por AntoniMunné (1981) mediante um enfoque que favorece seu papel em detrimento da experiência. A partir da diferença entre memória e experiência, o crítico desdobra outra distinção, no plano das formas narrativas, entre forma memorialista e/ou autobiográfica e literatura de testemunho. Munné (1981) defende que, tratando-se de R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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autobiografia ou de memórias, os limites entre o discurso da ficção e o da vida real se confundem na obra de Semprún, dificultando sua inserção nos modelos usuais destas formas literárias. Mas ao referirse ao que ele designa el apartado genérico de la literatura testimonial, o crítico afirma que a obra de Semprún não deve ser afiliada a tal forma, pois sua atitude literária sobrepuja o interesse na realidade histórica. Na realidade, a crítica de Munné (1981) insiste na ideia de que a memória da vida do sobrevivente não somente se constitui no suporte fundamental de sua obra, mas que também as formas literárias tradicionais, que lhe são atribuídas pela crítica - as memórias, a autobiografia ou ainda o testemunho - não proporcionam paradigmas suficientes para pensar seu trabalho literário. Isso porque, de acordo com Munné (1981), cada obra de Semprún conforma um enfoque diferente sobre a memória de sua vida que, assim, é esmiuçada em biografias distintas, correspondentes ao extenso amálgama de vivências do escritor, e convertidas em experiências pela própria reflexão literária sobre sua memória. Na opinião do crítico, o aspecto inacabável dos relatos, derivado do tratamento literário que o escritor dá à sua memória, confirma a hipótese de que esta com seu funcionamento descontínuo e sem fim conforma o sistema de estruturação de suas obras. Em suma, Munné (1981) parece querer retirar a escrita de Semprún de todas as possíveis classificações que possam encaixá-la em formas definidas pela tradição literária, atribuindo-lhe um lugar independente no leque da teoria contemporânea das formas literárias. Embora o texto crítico de Munné (1981) não tenha conhecido La escritura o la vida (1994) e a posterior produção literária de Semprún, entendemos que a concepção de testemunho literário que se desprende de seu estudo não é adequada. De fato, como fundamenta Valeria De Marco (2004), a realidade histórica vivenciada pelo escritor testemunha enquanto violência do Estado moderno é fator determinante da forma testemunhal. No entanto, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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o tratamento literário da mesma não implica a negação de sua verdade histórica, em outras palavras, o testemunho de uma realidade histórica pode ser transformado em ficção literária sem prejuízo de sua condição de verdade ao mesmo tempo em que não anula sua natureza literária e artística. Semprún elabora esta questão no prólogo de Seguir viviendo(2008) de Ruth Klügerda seguinte maneira: há dois tipos de testemunho, um com mais elaboração literária e outro com menos, o que significaria que elaboração estética e verdade histórica não são para ele inconciliáveis, não representam oposições excludentes. Inclusive o autor pensa que somente a ficcionalização do horror vivenciado nos campos nazis é capaz de aproximar o leitor/ouvinte de uma verdade cuja compreensão racional é tão difícil. Munné (1981), de certo modo, segue os rastros de Minik (1979) ao recusar as fases da vida do escritor como chave interpretativa das obras ou dos ciclos a que possam pertencer e ao privilegiar o trabalho especial que Semprún realiza sobre o funcionamento da memória como alicerce e princípio organizador de seus textos, minando assim as tentativas da crítica de classificá-los segundo formas afiliadas à escritura de la vida. O estudo teórico e crítico de Alicia Molero de laIglesia (2000) define a desilusão ideológica, o exílio, a morte, a deportação e a relação entre arte e verdade como temas da obra sempruniana. Salvo o último, podemos notar como os demais se originam das experiências de vida de Semprún, das quais a crítica destaca a da morte, a da clandestinidade e a do exílio. A partir destas experiências, Molero de laIglesia (2000) distingue dois grandes ciclos na narrativa sempruniana: o da experiência da morte em Buchenwald e o do desalojamento da consciência comunista. À diferença de Minik (1979) ou de Munné (1981), a crítica acrecita que não é a memória que se constitui no elemento estruturador da narrativa de Semprún; ao contrário é a temática cultural que estrutura a memória e o modo de narrar do escritor. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Na compreensão de Molero de laIglesia (2000), o processo associativo de imagens literárias e culturais e o uso iterativo de fatossignos de natureza simbólica (como o branco da neve associado à morte em Buchenwald e ao tempo do esquecimento e ao papel branco referente ao não registro escrito desta morte) consistem em recursos da imaginação criativa do escritor que proporcionam estabilidade à memória e operam como argumento e fio condutor de sua narrativa. Dentro de uma escala que situa as obras de Semprún entre um grau mais alto de invenção e outro mais elevado de valor testemunhal, o texto crítico de Molero de laIglesia (2000) propõe uma gama variada de nomenclaturas para explica-las e classificá-las. Nela encontramos textos autobiográficos - Federico Sánchez se despide de ustedes(1993), La escritura o la vida (1994), Adiós, luz de veranos(1998) -, textos romanceados como Autobiografía de Federico Sánchez (1978), textos de referencialidade mediatizada por formas de desdobramento do eu - El largo viaje (1963), El desvanecimento (1967), La montañablanca(1999)- ou por uma máscara alegórica como La algarabía(1981). Em qualquer caso, a crítica exalta o fundo comum sobre o qual se assentam tais obras: a reescrita contínua do eu de Jorge Semprún. Molero de laIglesia (2000) concebe a tarefa de o autor contar renovadamente as experiências de vida em função de uma revisão auto expressiva e da linguagem como o princípio organizador de suas obras; sua escrita, uma auto ficção cujos processos reiterados de construção da identidade fragmentada geram diversos personagens, diferentes histórias e obras, atravessadas pelas recorrências de fatos, dados, motivos e paralelismos de uma mesma vida. Para ela, a própria concepção sempruniana da relação entre vida e arte, tema presente em todas suas obras, é responsável por esta diversidade formal de auto narração. Naspalavras de Semprún, citadas por Molero de la Iglesia, “un poco de artificio nos aproxima al arte, por tanto a la verdad del mismo modo que su exceso nos separa de ella” (MOLERO DE LA IGLESIA, 2000, 349). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Na constelação dessa proposição, a estudiosa descreve a ocorrência de um mimetismo existencial entre personagens e autor e indica a relação entre a abdicação à escrita depois de Buchenwald, o tempo de militância clandestina no PCE e o desdobramento da identidade nas obras do escritor. Isto é, conforme a crítica, as experiências históricas e políticas variadas e radicais deste escritor engajado, cindido entre a experiência do nazismo e a forte influência da dialética marxista, constituem o motor propulsor dos desdobramentos do eu em suas obras. Molero de laIglesia (2000) deixa entrever que, se a autor narração é retomada por diversas afluências e se mistura a seu cultismo, é porque há um exercício permanente de reflexão deste escritor intelectual sobre a interpenetração entre vida e literatura que redunda na reescrita renovada de sua vida (e, acrescentamos, de sua obra). Os vários papéis que ele assume e as transformações radicais pelas quais sua identidade passa na vida fazem as vezes de personagens para suas histórias assim como as várias histórias lidas contribuem para a reflexão, ação e intervenção na realidade concreta. A perspectiva de Molero de laIglesia (2000) nos leva a perceber que ela sugere que a reflexão do escritor sobre a relação entre arte e verdade, baseada em um vasto e rico acúmulo de vivências históricas radicais e em sua experiência como leitor e homem erudito, corresponde à causa de uma produção literária recheada de dados autobiográficos, mas não restrita a modelos tradicionais da escrita de si mesmo – a ausência de cronologia biográfica e de linearidade nas suas obras o comprova. Como vimos, o olhar de OfeliaFerrán (2001) nos oferece uma visão diversa da relação entre realidade e ficção na escrita sempruniana. As fases da vida do escritor, definidas como tipos de exílio, correlatos a essas múltiplas identidades, se unificam na identidade de eterno estrangeiro, uma experiência que linda com a sensação de permanente irrealidade da existência. Para Ferrán (2001), a experiência da morte e do horror inimagináveis dos campos nazis é a que funda sua maneira particular de encarar a relação entre arte e R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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vida real, refletida em todas suas obras. Desse modo, a invenção linguística em Semprún se coloca a serviço de narrar fatos históricos, como o de sua própria morte que ultrapassa a compreensão humana, e que, consequentemente, só poderiam ser comunicados por um modo de contar que transmita a irrealidade dessa experiência real, mediante o que ele chama de artifício literário. Como mencionamos anteriormente, Ferrán (2001) nos sugere que se em Semprún história e historiografia se entrelaçam com a ficção, isso é fruto de uma forma de existência quase virtual, a de não ter uma pátria estável e precisar criá-la permanentemente. A declaração que Semprún faz de ser um expatriado por definição, um bilingüe por desterrado, de ter como pátria não uma ou duas línguas, senão a linguagem, corrobora tal argumento. A literatura para Semprún, reforça a crítica, se transforma em sua pátria virtual e universal, um solo, não obstante suas próprias leis, composto da imaginação da linguagem, principalmente no modo encontrado para dar conta da experiência fundamental de sua vida, Buchenwald. A noção de matéria inesgotável, inacabável, de reescrita continuamente renovada, enunciada pelos narradores/personagens das obras de Semprún, é examinada por Ferrán (2001) como uma faceta de sua condição de eterno estrangeiro, jamais superada. A tarefa da testemunha da catástrofe é assumida como eterna por Semprún porque comporta uma experiência insuperável por completo. Nosso estudo analítico de La escritura o la vida (MARÇAL, 2009) é devedor das premissas de Ferrán (2001). Exemplo de um modo de representação presente em outras obras do autor como em Aquel domingo, tal romance apresenta uma relação entre o fictício e o real sustentada por uma visão dialética desenvolvida pelo narrador: o imaginário da ficção em uma relação contraditória com o inimaginável da realidade. O texto de Ana María Amar Sánchez (1990) aborda diretamente este problema teórico que está longe de ser resolvido R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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no que se refere à forma testemunhal, já que em torno de seu processo de canonização existe atualmente um confronto de discursos críticos e teóricos cujas filiações ideológicas não são menos controvertidas que suas ideias. Amar Sánchez (1990) trata a literatura de testemunho por relatos de no-ficción e busca investigar de perto os problemas teóricos que eles albergam quanto à relação entre o real e a ficção, o testemunhal e sua construção narrativa. Sua tese defende que os relatos de não-ficção possuem um paradoxo que lhes é constitutivo: por uma parte, não são ficções, posto que os fatos a que se referem aconteceram e, por outra, não traduzem fielmente, como espelhos, esses fatos, pois a linguagem literária, enquanto outra realidade que possui suas próprias leis, transforma o real, recortando-o, expandindo-o, organizando-o, enfim, ficcionalizando-o. A crítica adiciona que o relato de não-ficção, ao submeter seu material proveniente de testemunhos, gravações, documentos a uma lógica interna, se afasta do realismo ingênuo e da pretensa objetividade de alguns discursos, como o jornalístico, tendo como consequência o questionamento da representação fiel e imparcial da realidade ao mesmo tempo em que destrói a ilusão ficcional alimentando-a. Para Amar Sánchez (1990), do choque e da destruição dos limites entre os discursos testemunhal e fictício surge uma zona intersticial que constitui a nova forma da não-ficção; uma zona fraturada, desmistificadora da linguagem como pura transparência, se desenha nas margens das formas, do literário e do político, do imaginário e do real, trabalhando e resolvendo, em cada obra de maneira singular, a contradição entre o testemunhal e a invenção literária. A crítica identifica dois elementos nos relatos de não-ficção que caracterizam esta zona intersticial conflituosa: 1º) a ficcionalização das figuras humanas oriundas do real com sua consequente transformação em narradores e personagens; 2º) a unidade da escrita do autor-testemunha. O primeiro supõe o lugar R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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onde a fronteira entre os campos real e ficcional sofrem uma ruptura. Os sujeitos do texto são simultaneamente pessoas reais do mundo exterior e personagens ou narradores virtuais do mundo interior ao texto. De acordo com a Amar Sánchez (1990), não ocorre uma alternância entre ponto de vista interior e exterior, mas sim uma sobreposição coincidente entre eles que conduz à transformação narrativa. O segundo dispõe uma intertextualidade entre as obras de um mesmo autor determinada por uma interdependência orgânica entre seus textos, criando assim um campo diferencial entre os mesmos e os demais de não-ficção de outros autores. A crítica toma quatro exemplos de autores de literatura de testemunho a fim de confirmar suas observações: Jorge Semprún, E. Poniatowska, Rodolfo Walsh y Vicente Leñero. O texto de Semprún a que se atém é Autobiografía de Federico Sánchez. O desdobramento do eu do autor em narrador e personagem e o diálogo estabelecido entre ambos exemplificam o processo de subjetivação que determina a transformação do material histórico real em ficcional. Amar Sánchez (1990) ainda nota como os vários códigos (o testemunhal, o romanesco, o autobiográfico) presentes na obra de Semprún atuam como um meio encontrado pelo autor para solucionar a contradição entre o ficcional e o testemunhal; um modo de representá-la através do qual se estabelecem as formas e se violam os limites entre as mesmas simultaneamente, questionando, assim, o contrato do discurso não-ficcional. A crítica parece partir de uma noção dialética dos textos testemunhais literários, designados por não-ficção, notadamente quando emprega os termos luta e contradição à descrição do espaço fronteiriço no qual os discursos testemunhal e ficcional, originários de instâncias tradicionalmente concebidas como opostas, se encontram e se movem em direção a um território de entrecruzamento (um entrecruzamento de duas impossibilidades, ou seja, um entrecruzamento impossível). No desenvolver de sua R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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argumentação, aplica fundamentos teóricos do estruturalismo, do estudo das formas e dos estilos autorais a fim de definir a especificidade de uma forma em processo de canonização que, segundo Amar Sánchez (1990), a crítica em geral não consegue compreender, pois esbarra no seguinte problema: presa en este vaivén que mantiene la vieja distinción entre forma y contenido – técnicas y material testimonial -, no puede pensar el espacio de la no-ficción como un campo donde se contituye una diferencia, y sólo atina a describirla y clasificarla. (AMAR SÁNCHEZ, 1990, p. 449)

Apesar de um sinuoso movimento conceitual, os dois elementos, situados dentro do âmbito formal, promovidos a definidores do específico do processo de ficcionalização do testemunho por Amar Sánchez (1990), se nos apresentam discutíveis. Em primeiro lugar, não somente as pessoas, pertencentes ao real histórico, mas também outras dimensões, igualmente identificáveis no mundo real, se ficcionalizam e continuam existindo nos dois universos, o real e o fictício. Também os lugares reais se transformam em espaços narrativos, referências e componentes de cenas narrativas; cumprem muitas vezes uma função simbólica no texto e são descritos sob uma percepção subjetiva. Os dados cronológicos, as datas nas quais se registraram os fatos, são convertidos no tempo da ficção, elemento fundamental da narrativa e que, na poética de Semprún, passa por uma operação sofisticada estética através da qual os planos temporais se sobrepõem e se entrelaçam, formando um complicado jogo que exige a presença de um leitor atento e crítico. Poderíamos falar dos enredos construídos para organizar os acontecimentos reais dentro de uma sequência cuja lógica interna, inclusive destacada por Amar Sánchez (1990), altera a percepção de sua natural realidade, e conforme uma perspectiva particular e subjetiva, a do narrador-testemunha, que geralmente se apresenta em primeira pessoa. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Não atinamos, por conseguinte, a razão por que selecionar o processo de construção das personagens como eixo definidor deste espaço intersticial conflituoso. Ademais, o fato de que os espaços se sobreponham no eixo de cruzamento entre pessoa e personagem, de que haja um encontro simultâneo, sem alternância ou preponderância do ponto de vista externo-pessoa ou do ponto de vista interno-personagem, não retrata exatamente uma relação contraditória resolvida e superada entre os dois campos. De fato, na literatura de testemunho podemos observar a tensão existente entre o discurso referencial e o figurado como uma característica que manifesta a tensão entre o real e o fictício na mesma. As formas narrativas que os textos testemunhais literários assumem são diversas e, claro, trazem as tendências estilísticas e experimentações formais de cada autor. A expensas de descobrir a singularidade na forma testemunhal literária, Amar Sánchez (1990) esquece o conteúdo do material histórico que se transforma nos assuntos e temas de seus relatos. A situação e a condição concreta da testemunha-escritor, transposta ao texto como narrador/personagem, protagonista, personagem ou transcritor organizador do texto que cede a voz ao outro não letrado (no caso do contexto do testemunho literário na América Latina), é que podem dar pistas para uma compreensão da relação problemática entre o real e o fictício nesta forma literária. A ideia de uma relação contraditória entre um discurso que se pretende objetivo, científico ou neutro, como o do jornalismo oficial, o da historiografia ou outro qualquer pertencente às instâncias produtoras de um saber socialmente legitimado como verdade, e um discurso subjetivo, pessoal, ligado às falhas da memória individual, que, não obstante, não descarta seu compromisso com a realidade histórica objetiva, nos parece mais produtiva para pensar a tensão entre o real e o fictício na literatura de testemunho. Em efeito, o testemunho literário se elabora em uma zona fronteiriça: não é pura ficção, nem pura historiografia. A mimesis que ele realiza R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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dos atos, acontecimentos, pessoas, espaços e referências temporais recordados é livre mesmo que não seja infiel, que não comprometa sua veracidade. O processo de criação do testemunho literário passa fundamentalmente pelo ato discursivo da testemunha-escritor. São a situação, a condição, a proposta, o projeto de escrita e a consciência deste sujeito que nos podem elucidar a relação problemática entre o real e o ficcional nesta forma. O sujeito da escrita testemunhal enfrenta uma convenção sociocultural que separa e distingue o histórico e os discursos estabelecidos e legitimados socialmente para produzir um saber sobre ele do fictício e suas formas e tipos discursivos que, por sua vez, têm a autoridade e a legitimidade para manejá-lo. Daí as normas e convenções tradicionais literárias terem determinado que na prosa de ficção literária só caibam a invenção e a imaginação sobre o real, enquanto o discurso historiográfico, por exemplo, se encarrega da realidade histórica objetiva. Tal dissociação excludente e estanque entre estas duas dimensões conceituais, produtoras de saber e verdades, nas quais também está em jogo a relação não menos problemática entre forma e conteúdo, se torna objeto problemático do projeto de escrita do escritor-testemunha. Este, mais ou menos consciente destas determinações históricas e ideológicas sobre a produção e a disputa pelo espaço de enunciação da verdade, na tentativa de conquistar um espaço discursivo (por convenção próprio da invenção imaginária do conteúdo e da forma) onde caiba sua versão subjetiva da verdade histórica objetiva, busca derrubar as muralhas que separam as duas instâncias discursivas. O território fronteiriço problemático do testemunho literário constitui uma zona de conflito em que as verdades objetiva e subjetiva se enfrentam na consciência do escritor-testemunha e que ele tem que atravessar para instaurar o lugar de enunciação de sua verdade. O escritor-testemunha, por um lado, não abdica pertencer a uma R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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realidade histórica, ter vivenciado uma situação injusta de violência do Estado moderno, ter um compromisso ético com os companheiros que compartilharam com ele toda essa dor, enfim, tem como objetivo denunciar as atrocidades sofridas às quais sobreviveu. Por outro lado, sabe que a memória de sua vivência é falível, sua percepção da realidade vivenciada corre riscos de deformação, seu julgamento se confunde com os ressentimentos derivados da humilhação sofrida, sua razão e lucidez podem estar contaminadas de perplexidade, hiatos e paralisação. Sua verdade é subjetiva, em crise e, não obstante, clama a autoridade de verdade histórica objetiva, ainda que em uma instância que, por tradição, não lhe seja própria. O escritor-testemunha busca penetrar com sua memória individual na memória coletiva, transformar sua vivência em experiência, seu sofrimento e ressentimento em compreensão de si, da realidade em que esteve imerso, fala em nome dos que no podem falar, quer substituir o esquecimento institucional e social pelas lembranças pessoais. Seu discurso reivindica a força de uma autoridade diferenciada: vem de dentro, do inframundo sombrio da degradação humana no contexto histórico das ditaduras e totalitarismos do século xx, traz consigo as feridas incuráveis dessa história, as obsessões e os traumas insuperáveis na memória e no corpo, a desilusão e a perda definitiva de confiança no mundo, a experiência de não ter sido escutado pela sociedade quando confinado por um Estado racionalmente administrado, a sensação de vertigem das sucessivas quedas no submundo de si e do humano, o conhecimento da ausência completa de liberdade e dignidade perpetrada por uma opressão sem limites. Sua linguagem se viu sacudida, afásica, censurada pela língua do inimigo e algoz, pela imposição do silêncio e esgotamento das forças, pelo declínio das faculdades de pensar. Sua consciência foi estreitada e sua identidade, desintegrada e anulada. A narração para ele significa uma saída dessa condição, a retomada do poder da palavra, o contato com a dura memória da ofensa, a ampliação da consciência do vivido, a R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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recuperação do pertencimento à espécie humana, à sociedade dos direitos humanitários. O escritor-testemunha é o objeto de uma realidade histórica objetiva que requer ao mundo ser sujeito, falar dela, em nome dela e dirigido a ela, mediante um saber, contudo, subjetivo. O saber e a experiência vivida do escritor-testemunha, ou seja, sua verdade, por mais distanciada, reflexiva, crítica e objetiva que se mostre no relato construído por ele, não pode negar sua natureza subjetiva, que é a substância de sua matéria. As histórias testemunhadas configuram um processo de construção de sentido para uma realidade histórica objetiva, vivenciada subjetivamente, muitas vezes desprovida de sentido para o sujeito desse processo. A verdade construída a partir da experiência transformada em testemunho literário pertence a dois deuses que haviam pactuado delimitar seus territórios de produção e enunciação de duas verdades distintas: uma, real histórica e objetiva; outra, imaginária subjetiva mediatizada pelo tratamento formal literário da linguagem mesmo quando assumisse a primeira como matéria bruta. Por um lado, a verdade do testemunho remete a uma realidade histórica objetiva, que não pode nem quer negar, mas se apresenta como uma versão subjetiva da mesma, isto é, reclama para a condição de enunciação de sua verdade a necessidade da existência de um discurso subjetivo para dar conta da objetividade de uma realidade histórica. Por outro lado, sua situação de testemunho a partir de um ponto de vista subjetivo, que tampouco pode nem quer negar, condiciona-lhe, muitas vezes, formas com parentesco e originárias da prosa de ficção literária. Além disso, o escritor- testemunha é um indivíduo inserido na cultura de seu tempo e herdeiro das formas de sua tradição literária. Muitos relatos testemunhais se apresentam modestos, sem pretensões estéticas, muito menos de caráter ficcional, como é o caso de Primo Levi. Entretanto, o resultado é inegável: a crítica R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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tem que dar conta de uma nova forma que invade os modelos da ficção literária, reivindicando, porém, uma verdade não fantasiosa. O escritor- testemunha pode ter maior ou menor consciência desta invasão assim como maior ou menor domínio e habilidade da linguagem e das formas literárias. Essa consciência e esse conhecimento constituem um fator que determina a forma que seu relato assume. De qualquer maneira, a presença de sua escrita mina as convenções literárias, representando assim um problema teórico para a crítica e para a lógica que fixa as normas dos gêneros discursivos. A zona de confronto em que se instala sua verdade subjetiva e objetiva ao mesmo tempo exprime a fenda do saber normativo que delineia seus limites. A escrita testemunhal literária é um discurso intrusivo sobre a verdade histórica objetiva que se apropria dela e irrompe no espaço discursivo por definição fictício, corroendo os sedimentos de sua normatização crítica e teórica. O realismo desse discurso é problemático, porque carrega a contradição entre o objetivo e o subjetivo. O sujeito que vivenciou a catástrofe e quer narrar essa experiência da maneira mais fiel ao que ocorreu se volta sobre uma matéria resistente, árdua, dura à apreensão e representação. Para ser fiel ao vivenciado, em geral o narrador-testemunha adota a perspectiva em primeira pessoa do sujeito na situação passada como um presente fictício. O estreitamento da distância estética constitui a técnica comum quanto à perspectiva narrativa aos textos testemunhais literários. É ele que representa a condição precária de um sujeito em situação, na situação iminente de morte e de perda total do poder de ação. Em La escritura o la vida, a relação entre arte e verdade histórica atravessa o texto não só como um dos temas de reflexão do narrador, mas também como um elemento problemático na estrutura da obra. Semprún evidencia ter consciência da quebra transgressora que o discurso de não-ficção exerce sobre o contrato de ilusão do discurso ficcional. O autor declara a intenção de seu projeto de escrita: criar um romance com a matéria da experiência vivenciada R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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em Buchenwald. O motivo: o artifício literário tem o poder de aproximar o leitor à essência do mal radical, uma experiência inalcançável. Problemas: converter uma realidade inverossímil em verossímil e entrar em contato com a memória da morte sem suicidar-se, sobreviver a ela. Os problemas são de duas ordens: o primeiro passa pela questão da relação entre forma e conteúdo e o segundo, à primeira vista, se refere ao âmbito existencial e psicológico do sujeito da escrita. Semprún articula os dois transformando o segundo na matéria do romance. Como assinala Valeria De Marco, o enredo do romance está estruturado pela história de sua própria composição (DE MARCO, 2009). O autor põe deste modo em perspectiva a experiência primeira de sobreviver a Buchenwald, alçando ao primeiro plano do enredo romanesco a segunda sobrevivência, falsa e verdadeiramente diferente da primeira, a de sobreviver à sobrevivência a Buchenwald. Esse processo de imaginação encontrado, uma imaginação sem dúvida sobre a forma e o conteúdo, conquistou imprimir verossimilhança ao inverossímil da matéria? A verossimilhança da experiência é um falso problema que expressa outra dificuldade, a de achar um modelo arquetípico irônico, um esquema mítico, fonte histórica da narrativa oral tradicional, para deslocar e estruturar os acontecimentos reais? RaúlIllescas (2004) problematiza o estatuto de romance do livro e se detém na presença da literatura nele. Para Illescas (2004), as vozes de poetas e pensadores permitem ao narrador uma reflexão sobre a experiência, a possibilidade e o modo de narrá-la. Os problemas confluem a um mesmo ponto, o ponto nuclear do testemunho, o de construir um sentido com os acontecimentos vivenciados. O processo de construção de sentido na narrativa moderna é historicamente problemático. Nos termos de Walter Benjamin, como transformar uma vivência pobre em experiência em uma matéria narrativa social e culturalmente transmissível? Como suportar vivências que arruínam o desejo e a possibilidade de seguir R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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vivendo e acumulando experiências na vida? Parafraseando Adorno, como fazer poesia após Auschwitz? Podemos pensar a relação conflituosa entre o real e o fictício na literatura de testemunho na medida em que integrarmos os aspectos da forma e do conteúdo na figura historicamente determinada do narrador-testemunha. O narrador do testemunho é um sujeito historicamente problemático que, mais ou menos consciente dos limites que dividem os campos de forças discursivos que disputam o direito à enunciação e à produção das verdades da história real objetiva e da literatura ficcional subjetiva, emerge neles com uma voz e uma história incômodas, intrusivas, tensionando-os. Onde enquadrar sua voz e sua história? Como classificá-las? Se elas tendem aos dois campos, se elas transgridem as normas que os separam, se o histórico objetivo desemboca na ficção literária e esta o devolve ao histórico objetivo, é porque o sujeito narrador do testemunho, em seu processo de construção de sentido intrinsecamente ideológico, acaba por abrir um espaço de enunciação para verter sua verdade memorialista em uma voz audível, que manifesta a precariedade e a arbitrariedade do mundo que lhe coube viver, narrar e representar mediante a própria exibição da insuficiência das normas e convenções que o regem. Na obra de Semprún, isso fica claro. O escritor- testemunha transforma seu testemunho em um romance. Em seu projeto de escrita, o romance não negaria seu valor de testemunho, nem o testemunho negaria o caráter romanesco da experiência histórica. Se a crítica se debate em classificá-lo –romance ou ensaio ou autobiografia ou memórias ou testemunho, dentro ou fora da ficção ou da literatura – é porque a nova forma traz imanente, de maneira radical, o problema constitutivo do contexto histórico do qual ela é fruto: como construir um sentido a tal vivência histórica, sem sentido, pobre em experiência, em um mundo em que o sentido imanente do mundo se dissociou das formas artísticas que o representavam? R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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A NARRATIVA PICTÓRICA COMO UMA FRONTEIRA DESLIZANTE EM THE MADONNA OF EXCELSIOR DE ZAKES MDA THE PICTORIAL NARRATIVE AS A SHIFTING BOUNDARY IN THE MADONNA OF EXCELSIOR BY ZAKES MDA Divanize Carbonieri (UFMT)1 RESUMO: No romance The Madonna of Excelsior (2002), o sulafricano Zakes Mda insere a descrição de pinturas no início de cada capítulo, criando um espaço de trânsito para o leitor antes dos eventos ficcionais. Essa estratégia dá um novo sentido à 1 Doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo. Professora-adjunta do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, Instituto de Linguagens, Universidade Federal de Mato Grosso, CEP 78060 900, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Email: [email protected]

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criação de uma metaficção historiográfica particular, que retrata um momento nevrálgico da história da África do Sul: justamente a travessia entre o período do apartheid e aquele que caracterizou o seu fim. O objetivo deste artigo é analisar a relação entre a representação dessas narrativas pictóricas como fronteiras textuais e metafóricas e o deslizamento entre violência e reconciliação realizado pelo todo da obra. PALAVRAS-CHAVE: narrativas pictóricas, fronteiras, metaficção historiográfica, África do Sul, Zakes Mda ABSTRACT: In The Madonna of Excelsior (2002), South-African Zakes Mda includes the description of paintings at the beginning of each chapter, creating a transitional space for the reader before fictional events. This strategy gives a new meaning to the creation of a particular historiographic metafiction, which depicts a neuralgic point in South Africa’s history: precisely the transition between apartheid and its end. The aim of this paper is to analyze the relationship between the representation of these pictorial narratives as textual and metaphorical boundaries and the drifting between violence and reconciliation that the work performs. KEYWORDS: pictorial narratives, boundaries, historiographic metafiction, South Africa, Zakes Mda

Introdução No romance The Madonna of Excelsior, publicado pela primeira vez em 2002, o sul-africano Zakes Mda examina alguns importantes momentos da história recente de seu país. Acompanhando a trajetória de uma mulher negra, Niki, e seus filhos, ele percorre diversas molduras temporais que vão desde o período sombrio do apartheid até a sua completa desarticulação, passando pelos decisivos instantes da resistência organizada pelo Movimento Negro, com a sinalização, ao final, de um possível futuro mais igualitário para a África do Sul. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Ainda que não se furte a representar a traumática violência sofrida pela população negra e mais pobre durante a vigência do racismo institucionalizado, Mda apresenta seus personagens derradeiramente se reconciliando com o passado, apontando, assim, o caminho para a cura individual e coletiva em sua narrativa. Sua obra pode ser considerada uma metaficção historiográfica, tal como é definida por Linda Hutcheon (1991), não apenas por sua investigação de fatos históricos, mas principalmente por um intenso caráter autorreflexivo, possibilitado, sobretudo, pela constituição de uma voz narrativa coletiva, um “nós”, que corresponde à comunidade negra sulafricana, instada a refletir sobre suas ações e inércias nesses pontos nevrálgicos da jornada coletiva rumo à libertação. Uma outra característica fundamental desse reexame histórico metaficcional realizado por Mda surge na escolha de uma configuração espacial para o desenrolar dos eventos ficcionais. A história nacional não é analisada a partir de seu centro principal, de suas mais importantes cidades e agentes, mas sim tendo como foco uma pequena cidade da zona rural sul-africana, Excelsior, com seus extensos campos de girassóis e desconhecidos fazendeiros africâneres e trabalhadores negros. Isso parece contribuir para a elaboração de uma visão mais heterogênea do discurso histórico, questionando a exclusividade de uma única verdade central, conformada pela grande narrativa oficial, e apresentando, em seu lugar, a possibilidade de outras verdades, mais periféricas, mas ainda assim importantes para a compreensão do processo de desenvolvimento do país. Assemelhando-se à cidade colonial descrita por Frantz Fanon (1990), Excelsior também é dividida em compartimentos. De um lado, assomam as sólidas moradias dos patrões africâneres, cópias das residências dos antigos colonizadores ingleses, embora caracterizadas por uma embaraçosa (e dispendiosa) deselegância: A casa era uma cópia imperfeita de um chalé inglês. Mas era mais exuberante do que um chalé inglês. [...] Duas janelas salientes adornadas R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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com vitrais coloridos a cada lado da porta dupla de cor marrom, que também tinha vidros pintados. Colunas de cor roxa apoiando a arquitrave também roxa. Pilares cujos capitéis ficavam a meio caminho entre o estilo jônico e o coríntio. O telhado era verde. Era feito de folhas de metal corrugado ao invés de telhas. [...] Chaminés verdes e brancas de lados opostos, uma com uma cobertura e a outra com uma antena de TV atrelada a ela. A televisão tinha apenas alguns meses de vida na África do Sul. A casa, contudo, pertencia a um homem que não apenas tinha dinheiro para essas novidades como também estava determinado a lançar moda (MDA, 2007, p. 6-7, tradução nossa).

De outro lado, apresenta-se o bairro negro, Mahlatswetsa Location, composto de instáveis barracos de madeira, dos quais aquele em que Niki vai morar com seu marido Pule é um bom exemplo, com seu espaço interno reduzido e mobília improvisada (cujo mal gosto ironicamente se assemelha àquele encontrado nas casas dos mais abastados, como se a vulgaridade fosse uma característica comum entre as classes e etnias apartadas da cidade): Pule estava sentado na cama, sem se mexer, encarando a porta. Como um gato selvagem aguardando para se lançar sobre a presa. Sua cabeça quase tocava o teto porque a cama havia sido erguida com latões de tinta cheios de terra para torná-la mais imponente do que realmente era. E para abrir espaço suficiente debaixo dela para duas malas cheias de roupas e lençóis. A cama dupla, com uma cabeceira encapada com pelúcia, dominava o cômodo, fazendo uma mesa verde dobrável e três cadeiras se apertarem num canto e um pequeno armário de madeira, com pratos, vasilhas e utensílios, se agachar no outro (MDA, 2007, p. 32, tradução nossa).

O bairro negro é entendido como um apêndice excrescente daquilo que é considerado a cidade propriamente dita, que é, na verdade, apenas o compartimento dos brancos africâneres, no qual os negros só podem entrar a trabalho. De qualquer forma, essas duas locações principais serão perpassadas por diferentes tempos R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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no decorrer da narrativa. Alterações são introduzidas em ambas e a compartimentação, em certa medida, se enfraquece. Essa fusão entre espaço e tempo permite que as caracterizemos como cronotopos menores a compor o cronotopo maior representado pela cidade de Excelsior e, por extensão, por toda a África do Sul, do apartheid até a era democrática. Contudo, esses talvez não sejam os únicos ou mesmo os mais importantes cronotopos da trama. Os eixos espacial e temporal também parecem se unir num nível mais textual. Isso ocorre porque Mda introduz, no início de cada capítulo do romance, a descrição de um quadro do padre Frans Claerhout, um famoso pintor de origem belga a viver e produzir sua arte na África do Sul. Essas descrições são feitas com sentenças curtas, frequentemente no tempo presente e com uma ênfase na cor ao invés de qualquer outro atributo. Uma cena supercolorida é apresentada, então, ao leitor, antes que os eventos ficcionais envolvendo Niki e/ou os outros personagens sejam narrados. Ainda que as figuras que povoam essas telas estejam congeladas num presente estático, sua vibração colorida sinaliza uma potencialidade de ação, o que, mais do que simples descrições, pode caracterizar esses fragmentos iniciais como verdadeiras narrativas pictóricas. Parecem realizar afinal uma espécie de transição entre espaços e tempos, funcionando como cronotopos diferenciados, verdadeiras fronteiras entre a atualidade da leitura e o passado dos eventos que estão sendo recontados. Como são a transposição, para a tessitura do romance, de pinturas que o leitor pode ver com seus próprios olhos, esses trechos interconectam o espaço da vida, o espaço pictórico com suas especificidades e o espaço da narrativa. Eles também deslizam entre o tempo do leitor e os tempos narrados, passado e presente da África do Sul. Dessa forma, as pinturas de Claerhout servem como gatilhos que, uma vez acionados, dão início ao mundo ficcional encerrado pelos limites desse romance. Assim, não é à toa que ele é chamado de trindade na obra, por ser ao mesmo tempo padre, artista e homem. Mas também por ser uma entidade criadora, responsável R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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pela ignição que proporcionou a Mda a criação dessa metaficção historiográfica. E não é menos importante o fato de Mda parecer deslocar a autoria artística, de si mesmo para um colega artista2, numa espécie de homenagem3, que nos remete inclusive à tradição das artes visuais, em que diversos artistas se reuniam em ateliês para realizar, em conjunto, trabalhos que posteriormente receberiam apenas a assinatura de um mestre. Bem de acordo com as estratégias da metaficção historiográfica, esse procedimento enfatiza o caráter provisional do relato, enfraquecendo a noção de uma fonte única original e reforçando uma perspectiva mais plural e aberta. A própria gênese também parece transformada. “No início era a imagem”, parece ser a ideia nova proposta. Uma imagem vista por Mda e seus conterrâneos que influenciou de alguma forma a sua criação, sendo traduzida por ele em palavras. Essa transformação da imagem numa narrativa pictórica a funcionar como fronteira entre espaços e tempos relaciona-se com a condição atual da literatura pós-colonial, que se volta principalmente para as produções de situações fronteiriças, sejam elas geográficas, sociais ou metafóricas. O objetivo deste artigo é analisar a relação entre essas narrativas pictóricas que surgem no limiar de cada episódio do romance e o deslizamento efetuado pelo todo da obra entre violência e reconciliação no contexto da África do Sul contemporânea. Para tanto, parece ser necessária inicialmente uma discussão a respeito da conceituação das fronteiras dentro dos estudos pós-coloniais.

Fronteiras, travessias e pós-colonialidade A metáfora da fronteira está imbricada na constelação metafórica da diáspora. Aquilo que as pessoas comuns normalmente tomam por diáspora origina-se da narrativa bíblica ou histórica tradicional, implicando a narração de um deslocamento forçado de um grande contingente de pessoas, movendo-se ao mesmo tempo. Essa imagem é, no entanto, um tipo possível de diáspora, embora R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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não o único. Ainda que a noção de diáspora invariavelmente remeta a um fluxo coletivo, não necessariamente as pessoas devem se mover num bloco compacto ou exclusivamente de forma involuntária. Sucessivos deslocamentos de membros de um grupo social ou étnico, realizados em diversos momentos históricos e por diferentes razões, constituem uma diáspora, reunindo em si também as jornadas individuais voluntárias, aparentemente desconectadas do grande fluxo, mas que, na realidade, ajudam a compô-lo. Avtar Brah (1996) entende a diáspora da seguinte forma: [n]o coração da noção de diáspora está a imagem de uma jornada. Porém, nem toda jornada pode ser entendida como diáspora. As diásporas não são o mesmo que viagens casuais. Elas também não se referem normativamente a estadas temporárias. De uma forma paradoxal, as jornadas diaspóricas são essencialmente a respeito de estabelecer-se, de fixar raízes em “alguma outra parte” (BRAH, 1996, p. 182, tradução nossa).

Nessa definição, estão presentes a ideia da jornada ou deslocamento, que deve pressupor a permanência num novo contexto, e o conceito de um “lar”. O lar tanto pode ser o local do qual se partiu quanto a locação onde outras raízes serão assentadas. Pode ser ainda que nenhuma dessas instâncias seja reconhecida como tal, uma vez que muitas vezes o que se tem na memória ou no campo imaginário da esperança como o lar não corresponde ao que se vivencia na realidade. Brah enfatiza mais a relação entre ambas do que a substituição de uma pela outra. Essa intersecção relacional é chamada por ela de espaço diaspórico, entendido como algo “habitado não apenas pelos que imigraram e seus descendentes, mas igualmente por aqueles que são construídos e representados como nativos” (BRAH, 1996, p. 181, tradução nossa). Na verdade, o espaço diaspórico de Brah é constituído por uma confluência de narrativas, combinando as histórias da dispersão R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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com os relatos da permanência. É nesse sentido que uma multiplicidade de metáforas ou símbolos pode surgir dessas experiências diferenciadas que se interconectam na diáspora. O importante é buscar compreender suas significações, atentando para seus contextos específicos, mas também para as justaposições, intersecções e contrapontos possíveis com outros loci de enunciação ou focos de onde surgem as narrativas. Roland Walter (2009) intensifica o dinamismo do espaço relacional diaspórico de Brah ao afirmar que: [a]tualmente, com o aumento de culturas migratórias e hifenizadas, o conceito [de diáspora] significa menos um estado/vida entre lugares geográficos, conotando, de maneira mais abrangente (e talvez de forma menos concreta), um vaivém entre lugares, tempos, culturas e epistemes (WALTER, 2009, p. 43).

O “vaivém” de Walter, de alguma forma, enfraquece a oposição entre dispersão e permanência que ainda existia em Brah, tornando a relação entre elas bem mais fluida e provisional, o que condiz com os tempos em que vivemos. Ainda que Brah tenha se esforçado para enfatizar a relação entre esses polos e não exatamente a existência única de cada um deles, o simples delineamento dessa oposição parece mais próximo de uma época em que as possibilidades de mobilidade e trânsito não eram tão abundantes e facilitadas pelos desenvolvimentos tecnológicos e pela organização geopolítica do mundo globalizado. Na contemporaneidade, a intensificação do fluxo de deslocamentos pode tornar as raízes lançadas em qualquer parte menos profundas, e não é incomum que as pessoas fixem residência em diversos lugares durante suas vidas. O retorno aos locais de origem pode inclusive ocorrer inúmeras vezes, o que contribui para minar aquela nostalgia inerente às concepções mais tradicionais de diáspora. No entanto, Walter nos alerta para o risco de privilegiarmos o deslocamento em detrimento da permanência ou continuidade, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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que ainda continua sendo a escolha de muitas pessoas. Ele retoma o trabalho seminal de Paul Gilroy (2001), que estabelece a metáfora do Atlântico Negro para compreender a movimentação das populações negras entre os continentes banhados por esse oceano. Faz parte do Atlântico Negro de Gilroy a grande diáspora negra ocasionada pela escravidão, mas também todos os outros deslocamentos posteriores de povos negros em inúmeras direções, dentro desse contexto, por razões políticas, econômicas, sociais, pessoais, etc. Gilroy propõe a experiência da diáspora como “uma alternativa à metafísica da ‘raça’, da nação e de uma cultura territorial fechada, codificada no corpo”, uma vez que ela “é um conceito que ativamente perturba a mecânica cultural e histórica do pertencimento” (GILROY, 2001, p. 18). Walter louva Gilroy por mudar a percepção paradigmática das culturas negras de raça para diáspora, ou seja, de uma relação fixa e supostamente essencial para um compartilhamento de experiências comuns em sucessivos deslocamentos, mas o critica por ainda insistir numa preferência de rotas sobre raízes, o que, segundo ele, conteria o risco de se incorrer num novo essencialismo.4 Para Walter, Stuart Hall apresentaria uma visão livre desse perigo ao propor a seguinte conceituação: [...] a experiência da diáspora é definida, não por essência ou pureza, mas pelo reconhecimento de uma heterogeneidade e diversidade necessária; por uma concepção de ‘identidade’ que vive não apesar, mas com e através da diferença; por hibridismo. As identidades diaspóricas são aquelas que constantemente se produzem e reproduzem de novo por meio de transformação e diferença (HALL apud WALTER, 2009, p. 48).

Diferença e hibridismo são as palavras-chave no entendimento de Hall sobre a diáspora. Assim, não haveria sentido em se pensar em identidades diaspóricas essenciais ou excludentes. De forma semelhante, Walter percebe a diáspora negra como sendo R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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composta simultaneamente pelas histórias dos que permaneceram, dos que foram escravizados, dos que fugiram ou se rebelaram e também dos que colaboraram com o sistema opressivo. O entrecruzamento dessas experiências diferenciadas faz com que a configuração do Atlântico Negro seja marcada por uma constante negociação tensa entre elas, por um hibridismo, que impede que se forme qualquer imagem homogênea do fenômeno. Ao invés da predominância de uma dessas narrativas sobre as demais, o que é importante, segundo Walter, “no entendimento e na análise do holocausto do Atlântico Negro, é a inter-relação entre os seus elementos e as suas cores constituintes” (WALTER, 2009, p. 48). A importância da diáspora para os estudos pós-coloniais se dá na pulverização que realiza na configuração dos territórios circunscritos por limites fixos. No seu início, a crítica pós-colonial se voltou para o exame das relações conflituosas entre metrópoles e colônias, o que equivale a dizer que manteve o foco nas interações entre dois tipos definidos de nações: as imperialistas e as colonizadas. As primeiras produções literárias a receber o nome de pós-coloniais foram aquelas que se originaram das lutas pela descolonização, cujo principal veículo ideológico de resistência foi o nacionalismo. Contudo, a partir da década de 1990, o surgimento das cartografias diaspóricas representou uma alteração radical de paradigma crítico. A diáspora transfere, como vimos, o foco de interesse, da nação, para bases transnacionais ou antinacionais, do território delimitado, para a desterritorialização, e, das existências únicas ou exclusivas, para a inter-relação entre diversos elementos díspares. Entendendo as diásporas sobretudo como espaços relacionais entre grupamentos humanos, a crítica pós-colonial passou a investigar as manifestações literárias dos oprimidos ou excluídos em seus diversos posicionamentos pelo globo e em suas interações e contrapontos com outros povos. Essa mudança de perspectiva fez com que ocorresse uma revitalização na crítica pós-colonial, que continuou sendo capaz de realizar análises efetivas mesmo depois de tanto tempo desde o período histórico das descolonizações. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Homi Bhabha (2001), ao refletir a respeito dos estudos literários na atualidade, afirma que: O estudo da literatura mundial poderia ser o estudo do modo pelo qual as culturas se reconhecem através de suas projeções de ‘alteridade’. Talvez possamos agora sugerir que histórias transnacionais de migrantes, colonizados ou refugiados políticos – essas condições de fronteira e divisas – possam ser o terreno da literatura mundial, em lugar da transmissão de tradições nacionais, antes o tema central da literatura mundial. O centro de tal estudo não seria nem a ‘soberania’ de culturas nacionais nem o universalismo da cultura humana, mas um foco sobre aqueles “deslocamentos sociais e culturais anômalos” [...] (BHABHA, 2001, p. 33).

Bhabha entende a situação contemporânea/pós-colonial como a condição de se viver na esfera do “além”, numa espécie de fronteira deslizante entre algo que já ocorreu e algo que ainda não se deu, algo que ainda não está totalmente delineado. Para ele, o “pós” presente em termos como pós-modernidade, pós-colonialismo e pós-feminismo aponta invariavelmente para esse além, mas só poderá de fato se imbuir de sua energia revisionária e libertadora se ocupar o presente, transformando-o em uma vivência passível de transformação e de empoderamento de grupos historicamente oprimidos. Bhabha ainda ressalta que, na atualidade, as histórias que estão sendo trazidas para o primeiro plano, no palco das discussões internacionais, são as narrativas da migração, da diáspora, do exílio, das situações fronteiriças. Dessa forma, “a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, do além” (BHABHA, 2001, p. 24). Localizar-se na fronteira é, então, ocupar esse espaço liminar, intersticial, esse entre-lugar, esse terceiro espaço, dado pela tensão, pela negociação, pela tradução de valores entre um sistema familiar, conhecido, e um sistema ainda inexplorado, ainda não tateado. E é essa tradução difícil, constante, instável, tensa que cria o novo, a nova possibilidade, a nova condição. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Em contrapartida, Walter visualiza a fronteira como o espaço em que a diferença é vista paradoxalmente como separação ou como relação. Isso porque a fronteira, enquanto linha divisória de diferenciação espacial, temporal, política ou cultural, separa as identidades que estão do lado de cá daquelas que estão do lado de lá. Porém, na qualidade de um espaço compartilhado e atravessado, ela representa a possibilidade de se transgredir a separação, interconectando e colocando em negociação identidades diferenciadas. Em outras palavras, as fronteiras “constituem lugares tanto de poder do Estado repressivo e normalizador, quanto de transgressivas funções e práticas transnacionais e transculturais” (WALTER, 2009, p. 49). De forma semelhante, Néstor García Canclini (2013) compreende as “fronteiras entre países e as grandes cidades como contextos que condicionam os formatos, os estilos e as contradições específicos da hibridação” (CANCLINI, 2013, p. xxix, grifo no original). Nesse sentido, ele também vislumbra o potencial transgressivo da travessia das fronteiras, que se torna inclusive inevitável, uma vez que mesmo “[a]s fronteiras rígidas estabelecidas pelos Estados modernos se tornaram porosas” (CANCLINI, 2013, p. xxix). O hibridismo ou hibridação, como prefere Canclini, é o resultado desses trânsitos, atravessamentos, negociações, permitindo a geração de estruturas, valores e práticas renovadas. É essa noção da fronteira enquanto travessia que nos interessa particularmente aqui. As narrativas pictóricas presentes em The Madonna of Excelsior constituem fronteiras textuais e metafóricas que, ao serem atravessadas, emprestam novos sentidos às narrativas que surgem em seguida. Ignorar as potencialidades desses trânsitos talvez não comprometesse a compreensão do enredo, mas certamente tornaria a leitura do romance mais pobre. A partir da configuração dessas fronteiras de palavras e da experiência de se deslizar por elas até se atingir os eventos ali imbricados, Mda propõe ao leitor uma nova possibilidade de adentrar o universo ficcional. O leitor é levado a estabelecer relações entre as imagens e cores traduzidas em palavras R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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e as cenas que se desenrolam a partir delas. São algumas dessas relações que pretendemos discutir a seguir.

Fronteiras pictóricas deslizantes Para facilitar a análise, escolhemos alguns poucos trechos que parecem marcar momentos extremamente importantes no desenrolar da narrativa: Um homem de calças azuis, blusa azul e boina vermelha está em pé sobre o telhado negro de uma casa retorcida numa noite azul. [...] Cabeças com olhos abertos aparecem no céu azul, branco e amarelo. Olhos branco-leitosos com pupilas negras como piche encaram o homem. Penetrando na casa com seu olhar maravilhado. [...] Olhos brilhantes no céu veem tudo. Veem um bebê recém-nascido envolto em linho branco. Uma estrela de Belém intrusa se esgueirou por uma das janelas contorcidas e brilha sobre o corpo do bebê. Enche o quarto de uma luz amarela. Os humanos se ajoelham de cada lado do bebê adormecido, com as mãos reunidas em oração. Um deles é um homem de terno azul e boina azul. O outro é uma mulher num hábito azul de freira. A grande estrela de Belém se ergue acima do traseiro dela. Não havia sido fácil para Niki, embora esse tivesse sido seu segundo parto. A bolsa havia rompido. As contrações haviam inundado seu corpo. [...] Deveria ter sido mais suave. Mas o bebê tinha outras ideias. Deu às parteiras as suas costas e permaneceu preso na passagem da vida (MDA, 2007, p. 57, tradução nossa).

O que há de comum entre a narrativa pictórica e a cena a seguir, envolvendo a protagonista Niki, é o tema de um nascimento. Na pintura, há o que parece ser a retomada do nascimento do Cristo ou de algum bebê de origem divina, já que a luz da estrela brilha sobre ele e os humanos se ajoelham ao seu lado. Na segunda cena, quem está nascendo é o segundo bebê de Niki, uma menina coloured, que, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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no inglês sul-africano, indica uma criança miscigenada, um mestiço entre branco e negro. Seria essa criança, de alguma forma, também divina? Não exatamente, mas se pensarmos na gênese do universo ficcional que está sendo realizada, parece evidente que sua aproximação com a cena pictórica anterior sinaliza o papel importante que terá no desenvolvimento da trama. Ela própria parece ter um início incomum, nascendo de costas e ficando presa no canal vaginal. Nascimentos incomuns muitas vezes caracterizam as crianças especiais das narrativas mitológicas sobre a criação do mundo. Contudo, não é possível deixar de observar que o caráter incomum ou especial presente no seu nascimento tem a ver com um inegável sofrimento, com uma entrada dificultosa no mundo, ao contrário da figura na cena anterior, envolvida numa aura iluminada e pacífica. Outra característica importante a conectar ambas as cenas é a questão da cor. Na pintura, praticamente todos os elementos recebem uma cor. E, na narrativa do romance, apenas a filha de Niki e outras pessoas como ela serão chamadas de coloured, num universo povoado praticamente apenas por brancos e negros. As cores da pintura parecem ser luminosas e radiantes, o que poderia indicar que assim também deveriam ser encaradas as pessoas às quais são atribuídas cores na África do Sul. Mas Niki dá à luz sua filha miscigenada em 1971, quando o regime do apartheid estava em vigor e as relações sexuais entre brancos e negros eram consideradas crime, com as crianças frutos dessas uniões sendo tomadas como provas da contravenção de seus pais. O bebê miscigenado de Niki recebe o nome de Popi, que significa “boneca” em sesotho, a língua de sua mãe. A razão do nome tem a ver com sua beleza diferenciada, associada de alguma forma à pele mais clara, uma vez que “as parteiras disseram que o bebê se parecia com uma boneca de porcelana” (MDA, 2007, p. 58, tradução nossa). Mas também aponta o seu status de “não pessoa” em sua sociedade, já que é negra demais para ser considerada africâner e branca demais para ser aceita como igual na comunidade negra. Bhabha descreve o coloured sul-africano R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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como um indivíduo que “representa um hibridismo, uma diferença ‘interior’, um sujeito que habita a borda de uma realidade ‘intervalar’” (BHABHA, 2001, p. 35). Nesse caso, Popi ocupa permanentemente a fronteira entre uma identidade e outra, incorporando em si mesma a condição do além mencionada pelo mesmo teórico. O modo como Popi foi concebida representa o coroamento de uma série de relações violentas entre gêneros, classes e etnias na África do Sul. Não é uma concepção pelo amor, mas pela violência. Niki é introduzida nesse mundo por suas amigas Mmampe e Maria, que, talvez por dinheiro, “a conduziram de propósito até uma armadilha” (MDA, 2007, p. 17, tradução nossa). A armadilha se chamava Johannes Smit, que após lhe oferecer dinheiro, ao qual ela aceitou quase que automaticamente, “agarrou Niki pelo braço e a arrastou para o campo de girassóis” (MDA, 2007, p. 16, tradução nossa). Niki é instada por suas companheiras a se conformar com o estupro, em primeiro lugar, porque o fato de ter aceitado o dinheiro faria a polícia acreditar que a relação teria sido consentida, abrindo margem para que fosse acusada de violar o Ato de Imoralidade.5 Em segundo lugar, porque Johannes seria incapaz de manter uma relação sexual até a penetração, o que tornaria as coisas inofensivas para ela. E Niki acaba fazendo o que lhe mandam, não porque concorde ou tenha algum interesse material, mas porque nada mais parece poder ser feito: “[a] cada ocasião, nos campos amarelos, ela apenas se deitava ali para se tornar um instrumento de masturbação. [...] Para a surpresa dele, um dia ele a penetrou, rompendo sua virgindade e fazendo-a sangrar” (MDA, 2007, p. 18-19, tradução nossa). Nesse sinistro ritual de iniciação envolvendo Niki, podemos perceber a complexidade no delineamento dos papéis de vítimas e vilões existentes no romance. É claro que, para Johannes Smit, não parece haver nenhum tipo de redenção, mas ele não teria conseguido realizar seus intentos sem a valiosa ajuda de Maria e Mmampe. Porém, o conhecimento a respeito da dinâmica das relações sexuais com ele indica que ambas já estiveram na mesma posição que Niki. Nesse R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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caso, por que não é possível um elo de solidariedade entre elas e Niki, algo que poderia ter evitado que a última tivesse o mesmo destino das primeiras? A situação da própria Niki não é, sem dúvida, das mais fáceis, mas talvez ela pudesse seguir seus impulsos iniciais e se rebelar contra o que lhe estava acontecendo. Assim, de uma forma bastante corajosa, Mda, antes de lançar a totalidade da culpa sobre os africâneres, examina a responsabilidade dos negros no que lhes sucedia. Uma estranha espécie de inércia parece pairar sobre a população de Mahlatswetsa Location, minando qualquer possibilidade de reação e bloqueando as consciências de classe, gênero e etnia. Johannes Smit não será o pai da filha miscigenada de Niki. Ele apenas abre caminho para um outro homem que se considera o verdadeiro possuidor dos direitos sobre seu corpo, seu patrão na loja de carnes, Stephanus Cronje: “_ Droga, Niki – ele disse freneticamente – é comigo que você deveria estar fazendo essas coisas, não com Johannes Smit” (MDA, 2007, p. 50, tradução nossa). Após o fracasso de seu casamento com Pule, Niki cede às investidas de Stephanus, mas apenas porque deseja vingar-se da esposa dele, Cornelia, que a havia humilhado, fazendo-a despir-se completamente na frente dos outros empregados do açougue para verificar se não estava portando um pedaço de carne roubada: “Ela não via um patrão ou amante. Ela via o marido de Madame Cornelia. [...] E ela o tinha inteiramente em seu poder” (MDA, 2007, p. 50, tradução nossa). Contudo, a “vingança” de Niki não passa de um expediente ingênuo. Não é possível para ela ter Stephanus realmente sob seu controle. Ainda que fossem consideradas ilegais, as relações sexuais entre brancos e negros, do modo como são retratadas no romance, não subvertem as relações de poder. Na verdade, esses relacionamentos desiguais entre africâneres ricos e jovens negras pobres apenas mantêm o status quo na sociedade sul-africana durante o apartheid. Ainda que o leitor se solidarize com a situação de Niki, é impossível não perceber seu grau de responsabilidade em seu próprio enredamento. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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O resultado é o nascimento de Popi e a prisão por transgredir o Ato de Imoralidade: Aqueles eram dias em que os campos de girassóis haviam perdido seu amarelo e assumido um profundo tom marrom. Dias em que a paleta da trindade se tornara quente e sombria. Dominada por sienas e tons queimados. Niki e Popi brincavam nos espaços abertos que a trindade criava para todos os que amavam os espaços abertos. Aqueles que apreciavam os grandes céus que se fundiam com a terra. Eliminando horizontes. Tornando impossível determinar em que ponto a terra terminava e o céu começava. Era uma visão arrebatadora. Popi, verdadeiramente colorida em vermelho e pedaços azuis, correndo por entre os girassóis marrons. As pétalas estavam murchas e haviam perdido a cor amarela. Popi, nua e desigualmente colorida. Ainda não madura o suficiente para engatinhar. Ainda não madura o suficiente para caminhar. Porém, brincando e correndo no campo marrom. Niki, nua e livre, correndo atrás dela. [...] Até que mulher e criança se fundiram no cinza escuro. E se tornaram unas com ele. Desaparecendo nas pinceladas da trindade e se tornando parte da compaixão que elas evocavam. Ninguém jamais as encontraria. O tilintar das chaves e o som metálico das vasilhas de mingau de milho sem açúcar sendo empurradas pelo chão de concreto as encontraram. E as arrancaram sob protestos das pinceladas. Elas não haviam submergido completamente. [...] Elas foram encontradas e trazidas de volta para o mundo de nervosismo e perplexidade. De mulheres maliciosas e bebês que não paravam de chorar. Niki estava vivendo com eles na cela lotada (MDA, 2007, p. 69-70, tradução nossa).

Diferentemente do que acontecia no trecho anterior, aqui não parece haver a descrição de uma tela específica, mas antes de uma mudança mais sombria nas cores e tons empregados por Claerhout, talvez numa determinada fase de sua carreira, que, na narrativa, corresponde ao período de aprisionamento de Niki e outras mulheres negras com seus filhos, todas acusadas de manter R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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relacionamentos proibidos com homens brancos. Mda retoma, nesse ponto, um fato realmente ocorrido em Excelsior em 1971 que ficou famoso após ser divulgado pelos jornais do país: o julgamento de dezenove cidadãos, homens africâneres e mulheres negras, pelo descumprimento da legislação em torno do comportamento sexual. Mas ele o reescreve, preenchendo-o com personagens e eventos fictícios. No romance, provavelmente em consonância com o que deve ter acontecido na realidade, apenas as mulheres são encarceradas. Os homens africâneres respondem ao processo em liberdade. Além de a alteração nas cores da pintura, de mais radiosas para mais sombrias, realizar a transição para um período ainda mais difícil na vida de Niki, uma outra fronteira parece ter sido atravessada nesse trecho. O espaço pictórico parece confluir com o espaço dos sonhos das personagens, no qual elas podem se movimentar livremente e até correr, ao contrário do confinamento a que estão condenadas na vida de vigília e para o qual são arrastadas de volta pelos barulhos metálicos da distribuição da refeição matinal na cadeia. Niki e Popi brincam pelos campos abertos criados pelas pinceladas de Claerhout numa espécie de prefiguração do que ocorrerá meses mais tarde, quando, sem conseguir trabalho nas casas das famílias, justamente por seu envolvimento no caso, Niki começa a posar para o padre em troca de dinheiro, juntamente com sua filha, servindo ambas de modelos para as madonas e crianças que ele pinta. Mda, então, estabelece uma intersecção entre suas personagens e a pessoa de carne e osso que é o padre e que ele transportou da realidade para as páginas de seu romance. A trindade assume, além da função de entidade insufladora do universo ficcional, o papel de salvador da vida de Niki e Popi, proporcionando a elas os meios necessários para sua subsistência num momento em que a mais ninguém interessava ajudá-las. A perseguição contra os contraventores do Ato de Imoralidade torna-se uma febre no país: R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Era a Época Dourada da Imoralidade no Estado Livre. A Imoralidade era um passatempo. Sempre havia sido popular, até mesmo antes que leis fossem promulgadas no Parlamento para contê-la. Tornou-se um passatempo no primeiro dia em que os navios dos exploradores lançaram âncora na Península do Cabo séculos atrás, e em que eles viram as partes amarelas dos corpos das mulheres khoikhoi. Mas o que nós estávamos vendo durante essa Época Dourada era como uma praga. Em várias remotas cidades do interior, magistrados africâneres estavam sentados em seus bancos, ouvindo os detalhes picantes e escondendo dolorosas ereções embaixo de suas túnicas magistrais. Africâneres processando companheiros africâneres com zelo canibalístico. Africâneres enviando companheiros africâneres para cumprir sentenças de prisão. Tudo por causa de partes de corpos negros (MDA, 2007, p. 93-4, tradução nossa).

Assumindo um tom irônico, a voz narrativa que Mda elege para contar sua história emprega a palavra “Imoralidade” para se referir às relações sexuais entre brancos e negros, exatamente como os legisladores africâneres que as transformaram em crime. A ironia continua ao defini-la como um passatempo, existente desde o início da história da África do Sul, quando os primeiros europeus desembarcaram por ali e começaram a se relacionar com as mulheres locais. O questionamento levantado nesse trecho parece ser bem claro: sendo um costume sexual tão difundido e tão imbricado no passado do país, faz algum sentido considerá-lo imoral? Ou ainda, faz algum sentido considerar o sexo entre seres humanos imoral de qualquer forma? A atribuição da cor amarela aos corpos das mulheres khoikhoi também parece se revestir de uma importante significação numa obra em que as cores desempenham um papel tão fundamental. Os khoikhoi foram nomeados pelos discursos colonialistas britânicos como Bushmen, homens da mata ou bosquímanos, sendo considerados pelos mesmos discursos um dos grupos mais “primitivos” entre os “primitivos”, em virtude de seu estilo de vida extremamente frugal, que aos europeus do período se afigurava R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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como um atraso cultural. Comparados a outros grupos africanos, os khoikhoi normalmente apresentam a pele mais clara, num tom amarelado. Porém, na narrativa de Mda, essa menção à cor de seus corpos não é apenas descritiva. Ela parece assinalar a diferença, a alteridade, considerada pelo discurso oficial sul-africano um atributo da inferiorização. No século XIX, algumas mulheres khoikhoi foram levadas para a Europa e exibidas em exposições e feiras em razão de características anatômicas relacionadas à herança genética de seu grupo: a presença de culotes e quadris bastante salientes. Se esses traços físicos faziam com que parecessem anormais aos europeus vitorianos, a ponto de serem exibidas como animais, também é verdade que os mesmos atributos despertavam fascínio e desejo em seus observadores. Um eco dessa relação conflituosa aparece na reação dos magistrados africâneres descrita no trecho em questão, que, ao ouvir os relatos sobre as relações interétnicas que deveriam punir, mal conseguem disfarçar sua excitação. Mda revela a hipocrisia que havia por trás do Ato de Imoralidade, demonstrando toda a dinâmica de seu mecanismo autoconsumidor. O “zelo canibalístico” que lançava africâneres ao encalço de outros africâneres não parecia ser, afinal, tão intenso, uma vez que desde o princípio o tratamento dispensado às mulheres negras acusadas de crime sexual era bem pior do que aquele oferecido aos seus amantes. De qualquer forma, era uma febre destinada a passar em breve, uma vez que um grupo privilegiado não seria capaz de trazer, por sua própria conta, a mais completa destruição sobre si mesmo, ainda mais em decorrência de atos que seus membros estavam acostumados a realizar. Mas Mda também põe a descoberto a complacência da comunidade negra diante dos fatos. A inércia, como uma espécie de névoa compacta a cobrir a tudo e a todos, parece ter bloqueado o campo de visão das pessoas: “[e]sses pecados de nossas mães aconteceram diante de nossos olhos. Então, alguns de nós se R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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tornaram cegos. E permaneceram assim até os dias de hoje” (MDA, 2007, p. 74, tradução nossa). Mda retorna, nesse ponto, ao emprego da ironia, não só por designar o que estava ocorrendo como “pecado”, o que é ainda mais forte do que crime, mas também por circunscrever esse pecado apenas às mulheres negras, “nossas mães”, o que correspondia à visão do senso comum africâner da época, que as acusava de seduzir os homens e os induzir ao crime/pecado. Assim, ele demonstra que a cegueira coletiva, além de parecer ter sido uma escolha diante da extrema dificuldade de se poder alterar as coisas, na verdade, implica também uma adoção do ponto de vista alheio, uma visão negativa e redutora em relação ao próprio grupo. De qualquer forma, como as mulheres de Excelsior aceitam não apresentar evidências contra seus parceiros, elas são liberadas da cadeia, e Niki pode finalmente voltar para casa. A partir daí, o papel de protagonista é transferido gradativamente para Popi, e nós somos capazes de acompanhar o desenvolvimento da menina em diversos momentos: Quem é essa menininha em pé diante de um céu polvilhado de azul com flores cor-de-rosa como estrelas? Um céu grande e um cosmo rosa embaixo de seus pés descalços como se fossem papel de parede. Quem é essa menininha numa bata branca como a neve de mangas compridas? Cobrindo suas pernas até seus calcanhares. [...] Quem é essa menininha com cachos compridos e grandes olhos brilhantes e lábios finos? Cabelo pintado de preto. Raízes mostrando que sua cor natural é castanho claro. Quase loiro. [...] A menininha era Popi, na última vez que ela se sentou para posar para a trindade. Ficou de pé para posar para a trindade, para ser exato. Adeus, dinheiro ganho com esse trabalho. Ela não era de fato uma menininha, embora parecesse uma. Tinha quatorze anos. E odiava o espelho. Ele expunha para ela mesma quem na realidade era. Uma menina boesman. Uma menina hotnot. Morwa towe! Sua bosquímana! Ou, quando os bons vizinhos queriam ser educados, uma menina coloured (MDA, 2007, p. 113, tradução nossa, grifos nossos). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Nesse trecho, mais uma vez temos uma variação na configuração das narrativas pictóricas. Popi está plenamente transformada numa das figuras que povoam o universo das telas de Claerhout, mas ela não parece estar representando uma criança divina em alguma manjedoura. Ao contrário, representa a si mesma, com suas próprias cores e características. Isso se coaduna com o aumento de importância que passará a ter a partir de então. Dessa forma, a fronteira deslizante caracterizada pela narrativa pictórica no início do fragmento nos prepara para a passagem do foco principal de Niki para sua filha. O excerto também chama a atenção para as características físicas da garota. Um dos grandes problemas de Popi é que ela não aceita sua aparência miscigenada: seus olhos azulados, seus cabelos longos e castanhos, sua pele dourada. E parece ter razões para isso, uma vez que, durante toda a infância, tem que aguentar uma série de ataques: [q]uando as outras crianças a viam na rua, elas gritavam: “‘Boesman! Boesman!’. E, então, corriam, dando risadas” (MDA, 2007, p. 110, tradução nossa, grifos nossos). Boesman é a palavra africâner para bosquímano. Popi é chamada assim não apenas por ter a pele mais clara, como as pessoas desse grupo. Se a questão fosse apenas essa, não haveria motivo para as crianças rirem e para ela se ofender. Na verdade, está implícito nessas “ofensas” que a comunidade negra adotava a mesma visão dos colonialistas brancos a respeito dos khoikhoi, considerando-os também como atrasados e inferiores. Além de não apresentarem solidariedade em relação a esse grupo irmão, os moradores de Mahlatswetsa Location também não conseguem se solidarizar com Popi. Ela é tão oprimida pelos africâneres quanto eles, mas seus conterrâneos a veem a partir da perspectiva com que também são vistos por seus opressores. Aos quatorze anos, esse é um momento de passagem para Popi, não apenas porque vai assumindo aos poucos o centro dos acontecimentos, mas também porque é a fase em que entra na puberdade, o que, para ela, além de tornar-se uma mulher, também significa ver pelos começarem a crescer em suas pernas. E isso é R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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mais um sinal da sua diferença: “[o]utras meninas negras da sua idade não tinham pelos nas pernas” (MDA, 2007, p. 118, tradução nossa). A não aceitação da herança genética miscigenada também se reflete no fato de Popi não saber o que fazer com os pelos: “[e]la apenas deixou estar. [...] Popi temia que, se raspasse as pernas alguma vez, elas se tornariam ainda mais peludas” (MDA, 2007, p. 119, tradução nossa). O desenvolvimento de Popi, de uma menina insegura que só se esconde para alguém que vai assumir um papel ativo em sua comunidade, assemelha-se à trajetória da população negra da África do Sul, que vai reagindo cada vez mais às agressões até conquistar o fim do regime que a oprime. Viliki, o irmão mais velho de Popi, filho de Niki com seu marido Pule, é o primeiro a ingressar no Movimento Negro: “[e]le havia se unido aos guerrilheiros, aqueles que estavam lutando para liberar a África do Sul da opressão dos bôeres” (MDA, 2007, p. 125, tradução nossa). Após ser ferida pela polícia durante uma manifestação em 1993, da qual não estava participando, Popi decide ter uma participação mais intensa no Movimento, o que vai culminar com ambos os irmãos sendo eleitos como representantes da cidade quando o apartheid termina: “[p]ela primeira vez na história de Excelsior, o conselho da cidade tinha membros negros. E eles eram maioria” (MDA, 2007, p. 164, tradução nossa). Assim, os habitantes de Mahlatswetsa Location abandonam a inércia que os consumia. Um dos primeiros atos de Popi como conselheira municipal é propor a adoção de uma outra língua para os trabalhos do conselho, realizados ainda em africâner: o inglês. “_ Ninguém fala inglês em Excelsior [...]. _ Bem, então, teremos que aprendê-lo – disse Popi, com finalidade” (MDA, 2007, p. 178-179, tradução nossa). A viajante da fronteira, a verdadeira in-between que é Popi propõe, assim, uma língua de negociação no conselho, onde agora todos têm que ter uma voz. Continuar a empregar o africâner ou simplesmente substituí-lo por sesotho ou alguma outra língua africana correria o risco de alimentar possíveis radicalismos ou unilateralidades. O inglês, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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sendo a língua do grupo que dominou tanto bôeres quanto africanos, ainda assim tem um status de língua neutra nesse contexto porque é um estranho para ambos os grupos em Excelsior. Com a sua aprendizagem, eles serão capazes de atravessar suas diferenças rumo à reconciliação necessária, mesmo que seja através de uma negociação constante e difícil. No caso de Popi, sua cura individual se dá pela reconciliação com suas origens e com a aceitação de sua aparência: “[u]ltimamente Popi passava todas as manhãs olhando para si mesma no espelho, admirando seus olhos azuis e escovando seu longo cabelo marrom dourado” (MDA, 2007, p. 266, tradução nossa). Mesmo os pelos não são mais problema: “[e]la não era nenhuma boneca Barbie: não iria raspar as pernas peludas. Seus braços peludos. Mesmo as axilas. Ela se regozijava com seus cabelos e pelos” (MDA, 2007, p. 266, tradução nossa). Assim, o romance de Mda realiza a travessia da violência, do trauma e da mágoa para um momento em que as diferenças podem ser finalmente respeitadas e admiradas.

Considerações finais Qual é a importância da fronteira para o entendimento de uma obra que se volta para um enclave rural num país africano como a África do Sul? Muitos poderiam objetar contra essa possível significância, afirmando que Mda não está afinal representando os africanos que vivem na diáspora, fora de seus países de origem, como fazem outros escritores pós-coloniais. Os personagens de The Madonna of Excelsior não realizam grandes deslocamentos físicos e não chegam nem mesmo a mudar de cidade. No entanto, a fronteira que vivenciam inicialmente se refere às separações entre brancos e negros impetradas pelo apartheid. É uma fronteira racial, social, política, jurídica e até mesmo sexual, delimitada pela força e pela violência. Talvez o mais irônico é que o atravessamento dessa fronteira se dá a princípio pela própria violência, como é o caso do R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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nascimento das pessoas coloured, surgidas no romance como resultado de relações desiguais, e também das ações de guerrilha do Movimento Negro. De qualquer forma, essa fronteira vai sendo minada gradativamente durante a narrativa, não de forma pacífica ou tranquila, mas sempre através de uma dura luta de interesses. A fronteira pictórica existente no nível textual da tessitura do romance nada mais é do que uma metáfora desse atravessamento. Afinal, ela é também uma fronteira de cor ou de cores. A diferença é que, desde o princípio, ela não se estabelece como separação propriamente dita, mas como relação, interconectando espaços e tempos, imagens e significados. A sua simples existência torna mais esperançosa a vivência das personagens, mesmo nos momentos mais difíceis do enredo, estabelecendo uma relação heterotópica com o espaço opressivo de suas vidas. O mundo das telas de Claerhout é sempre mais aberto, povoado de grandes céus e grandes campos de cor, onde personagens transformadas em figuras podem correr livremente, mesmo na fase mais sombria. Assim, o trabalho de cura coletiva e individual é iniciado pelas obras da trindade, reinterpretadas e traduzidas por Mda para o seu universo ficcional, e finalizado com a maior conscientização que as personagens vão adquirindo.

Referências BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. BRAH, A. Cartographies of diaspora. London; New York: Routledge, 1996. CANCLINI, N. Culturas híbridas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. FANON, F. The wretched of the earth. London: Penguin Books, 1990. GILROY, P. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Universidade Cândido Mendes, 2001. HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991. MDA, Z. The Madonna of Excelsior. Cape Town: Oxford University Press, 2007. WALTER, R. Afro-América: diálogos literários na diáspora negra das Américas. Recife: Bagaço, 2009.

Notas 2

O próprio Mda, além de escritor, é também artista plástico. A ideia de homenagem é corroborada pela própria dedicatória do romance, feita para Claerhout: “Em 10 de maio de 2000, juntamente com uma facção das minhas filhas, visitei o Padre Frans Claerhout em seu estúdio em Tweespruit, no Estado Livre. Sempre quis conhecê-lo. Ele havia sido o mentor de alguns artistas amigos meus, de James Dorothy, em particular. Claerhout me presenteou com um livro sobre sua obra escrito por Dirk and Dominique Schwager. Mas primeiro ele pintou um pássaro dourado na contracapa preta e assinou seu nome. Dedico este romance ao pássaro” (MDA, 2007, dedicatória, tradução nossa). 4 Gilroy brinca com a semelhança de som entre as palavras do inglês, routes (rotas) e roots (raízes), privilegiando as primeiras em detrimento das segundas, principalmente ao eleger “a imagem de navios em movimento pelos espaços entre Europa, América, África e o Caribe como um símbolo organizador central para este empreendimento [de estabelecer a metáfora do Atlântico Negro] e como [seu] ponto de partida” (GILROY, 2001, p. 38). 5 Era chamada dessa forma a legislação em torno da proibição das relações sexuais entre brancos e negros. 3

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MUHURAIDA: ENTRE ÉPICA E A HISTÓRIA, UMA LIÇÃO DE NACIONALISMO MUHARAIDA: BETWEEN EPIC AND HISTORY, A LESSON OF NATIONALISM Tânia Pêgo (FLUL )1 RESUMO: O poema que serve de objeto de estudo a este trabalho – Muhuraida – recria um acontecimento histórico, contemporâneo ao seu autor, Henrique João Wilkens, ocorrido na Amazônia. A narrativa gira em torno da pacificação e conversão dos bárbaros índios Mura, considerados um empecilho para o desenvolvimento econômico e social da região adjacente ao rio Madeira. A pacificação dos Mura ora é vista como um milagre efetuado pela fé cristã, ora é atribuída aos esforços dos agentes do Governo, dividindo-se entre a apologia do Cristianismo e do “Diretório dos Índios”. A Muhuraida é 1

Mestre em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – FLUL. Investigadora no CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da FLUL), Linha 3 – Multiculturalismo e Lusofonia. [email protected] R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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apresentada pelo seu autor como um poema heroico. Entretanto, os fortes indicadores de religiosidade presentes no texto permitem que este possa ser considerado um poema heroicoreligioso. Wilkens vai buscar inspiração na épica moderna. Assim, o seu texto, além de privilegiar a verossimilhança e o maravilhoso cristão, vai apresentar uma inovadora trilogia de heróis. Sem o prestígio conseguido por outros épicos brasileiros do seu tempo, o certo é que a Muhuraida, além de dar um precioso contributo para a reconstrução de uma página da história amazonense, também revela um certo sentimento patriótico, sustentado por uma velada denúncia dos abusos cometidos pelos colonizadores e missionários contra os índios. PALAVRAS-CHAVE: Mura. Poética. Flagelo. Redenção ABSTRACT: The poem we study in this paper - Muhuraida – recreates a historical event, which is to contemporary to the author, Henrique João Wilkens. The narrative is about the pacification and conversion of the barbarian Indians Mura, considered as an impediment to the social and economic development of the area surrounding the Madeira river. The pacification of the Mura is seen either as a miracle performed by the Christian faith or credited to the Government’s agents efforts, between the apology to Christianity and to the “Diretório dos Índios”. Muhuraida is presented by its author as a heroic poem. However, the strong religious indicators presented in the text allow it to be considered a heroic religious poem. Wilkens was inspired by the modern epic. Thus, his text, besides privileging the verisimilitude and the marvelous Christian, introduced an innovative trilogy of heroes. Although it didn’t achieve the prestige of other Brazilian epics of its time, Muhuraida made a precious contribution to the reconstruction of the Amazonian historical page and it also reveals some patriotic feelings, sustained by a veiled accusation of the abuses perpetrated by the settlers and the missionaries against the Indians. KEYWORDS: Mura. Scourge. Redemption R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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A Muhuraida ou O Triunfo da Fé Na bem fundada Esperança da enteira Converção, e reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra, poema composto em 1785 por Henrique João Wilkens, oficial português a prestar serviço na Amazônia, foi publicado em Lisboa em 1819, pelas mãos do Pe Cypriano Pereira Alho. Numa altura em que as atenções encontravam-se já voltadas para a nova tendência literária que começava a instalar-se na Europa – o Romantismo – é natural que tão grande atraso na sua publicação possa ter sido responsável para que a Muhuraida não tivesse divulgação no Brasil do Século XIX, ficando excluída das principais obras de referência sobre a literatura produzida no Brasil durante o período colonial, como a de Manuel de Oliveira Lima (s/d) ou a de Varnhagen (1845), dentre outras, não obtendo a mesma repercussão que os seus pares brasileiros, O Uraguai, de Basílio da Gama (1769), e Caramuru, de Frei José de Santa Rita Durão (1781). Seria preciso passar mais de um século para que um primeiro estudo crítico sobre o poema fosse apresentado no Brasil, por Mario Ypiranga Monteiro (1976). Contudo, tal estudo, inserido no leque de obras referentes à literatura desenvolvida na e sobre a Amazônia, nega à Muhuraida o seu valor literário, valorizando unicamente o seu contributo para a reconstrução da história amazonense. A descoberta do manuscrito 2 da Muhuraida conduziu à publicação de uma nova edição do poema, em 19933, primeira no Brasil. Contribuiu também para elucidar alguns equívocos que se formaram em torno da sua autoria e da língua em que foi escrito. Sem acesso ao manuscrito e, provavelmente, fundamentando as suas observações nas exíguas biografias de Wilkens e do Pe Alho, Mário Ypiranga Monteiro incorre num erro que pode ser facilmente esclarecido com uma consulta ao manuscrito quando afirma que a Muhuraida havia sido escrita “originalmente em linguagem mura pelo oficial de milicias Enrique João Wilkens, não se sabe vazado em que combinação poética [e, posteriormente,] traduzido em oitavas camoneanas pelo padre português Cipriano Pereira Alho e publicado em Portugal” (1976, p. 23). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Ainda mais curiosa e equivocada é a afirmação feita pelo historiador Artur César Ferreira Reis (s/d) de que “um vigário de Moura escreveu a «Muraida», em que cantava, em tom heróico, o episódio da pacificação dos índios Mura4”. Equívoco inexplicável, já que não deixa de constar na folha de rosto da edição impressa em 1819 que o poema foi “composto por H. J. Wilkens” e “dado a’ luz” pelo “Pe Cypriano Pereira Alho”. A leitura do manuscrito vem também pôr em evidência mais uma particularidade da Muhuraida. Importantes alterações, dissimuladas sob o véu de uma simples revisão, foram efetuadas pelo seu editor, o Pe Alho, o que faz com que o manuscrito de Wilkens e a edição impressa em 1819 não possam ser tratados como um texto único. A “pretenção” do Pe Alho em não tratar o texto com o distanciamento próprio de um revisor/editor fica logo patente nos paratextos, quando edifica o trabalho do editor igualando-o ao do autor, citando, para tanto, o seguinte trecho da Carta X de Antonio Ferreira: Igualmente direi sempre ditoso, Ou quem fez cousas dignas de memoria, Ou quem poz em memoria o proveitoso. (Pe ALHO, p. 174)

Longe de restringir-se às suas competências enquanto revisor e editor, o Pe Alho adota uma postura nada comum, apropriandose do texto e introduzindo alterações que o percorrem, passando por uma abreviação do título, pela substituição da dedicatória e da introdução e pela eliminação, alteração e acréscimo de algumas notas. As modificações efetuadas pelo Pe Alho estenderam-se ao estilo e à ideologia do texto, provocando uma nítida mudança de enfoque no poema, que resultou numa suavização da imagem dos Mura e na corroboração dos métodos aplicados pela política administrativa local quanto à questão dos índios. Aparentemente, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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esse procedimento pode ser lido como pretexto para a construção de uma figura mais mítica do indígena. Ignorando a crescente animosidade provocada pelos constantes desentendimentos que marcaram as relações entre o índio e o português, o Pe Alho faz realçar as características do homem natural, cultivando a semente que já desabrochava no Arcadismo e que mais tarde viria a dar lugar a um dos modelos do herói romântico brasileiro – o índio. Embora possamos considerar a hipótese de que essa tentativa do P Alho tenha tido como objetivo a divulgação do poema e a sua aceitação no universo literário, é sobre o manuscrito e as dúvidas que pairam sobre a sua epicidade e literariedade que nos pretendemos debruçar, numa tentativa de esclarecer certas dualidades que atravessam o poema, que vêm acompanhadas de alguma inovação, merecedororas de uma análise mais atenta. e

A Muhuraida é hoje considerada como o primeiro poema produzido na Amazônia que trata de um assunto local de conteúdo histórico. Contudo, Monteiro a restringe a uma “página de história reduzida à técnica metriforme” (1976, p. 24) e afirma que o poema traduz “uma preocupação indianista de circunstância, não de ‘escola’ ou de movimento” (1976, p.206). Lida sem qualquer outra referência que não seja a de uma simples obra literária, sem procurar estabelecer uma ligação fundamentada a um qualquer movimento estético, percebe-se que a Muhuraida deixa emergir o desabrochar de um espírito patriótico e indigenista através da preocupação com a defesa do território e com o estabelecimento da paz com os índios e da “natureza do colonialismo português em relação aos povos indígenas” (BARROS, 1993, p.9). Apresentada pelo seu autor como um poema heroico, a sua estrutura externa assim o atesta, desenvolvendo-se ao longo de mil e setenta e dois versos que se encontram distribuídos por cento e trinta e quatro estrofes, reunidas em seis cantos. As estrofes, construídas em oitavas heroicas, como estipulado pela tradicional fórmula para assuntos de caráter épico, não R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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apresentam nenhuma irregularidade a acentuar no seu conjunto. Wilkens adota o modelo camoniano de rimas alternadas nos seis primeiros versos e emparelhadas nos dois últimos. Na sua quase totalidade, o acento principal recai na sexta e na décima sílabas, o que impõe um ritmo vigoroso e grave ao poema. A brevidade dos cantos, que segue naturalmente a dimensão do assunto, não incorre em nenhuma quebra dos princípios ou normas da poética épica, que sobre essa matéria ainda não encontrou conformidade, tendo os autores, como já afirmava Joseph Freire (1759), uma certa liberdade regrada. Contudo, distingue-se, em extensão, dos principais poemas épicos que tiveram projeção no passado, como Os Lusíadas, de Camões; A Eneida, de Virgílio; Gofredo, de Tasso ou A Ilíada, de Homero, que são bem mais longos, contando com dez ou mais cantos. Nesse aspecto, aproxima-se do seu contemporâneo, O Uraguai, de Basílio da Gama, que possui apenas cinco cantos, num total de mil, trezentos e setenta e sete versos. Seguindo os seus princípios essenciais, a Muhuraida apresenta as quatro componentes típicas obrigatórias da epopeia clássica: Título, Proposição, Invocação e Narração. Porém, nem sempre elas estarão em conformidade com os preceitos coligidos por Joseph Freire e apresentados na sua Arte Poética. O título do poema – Muhuraida – não se refere nem ao lugar nem ao herói da ação, como de costume entre os clássicos, mas sim ao antagonista: os índios Mura. Estes, por sua vez, vêm a ser a personagem de maior impacto na narrativa. Ao referir-se com maior ênfase ao índio, o autor parece pretender não só valorizar a ação de pacificação, ocorrida em 1784, que tão importante foi para a manutenção do sistema mercantil estabelecido na região, como também salientar a necessidade de se ter os índios como aliados na defesa e manutenção das fronteiras definidas pelo Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1777. Independentemente das suas motivações, o certo é que Wilkens procurou dar ao título de sua obra a majestade buscada pelos antigos. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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A simplicidade e força conseguidas com a união de um substantivo, MUHURA, com um sufixo designador de ação, IDA, são, contudo, quebradas com o acréscimo de um longo desdobramento: “ou o Triunfo da Fé Na bem fundada Esperança da enteira Converção, e reconciliação da Grande e feróz Nação do Gentio Muhúra”. Com essa extensão, Wilkens antecipa o assunto e o desfecho do poema, ao mesmo tempo que reforça a importância que é dada ao índio. Essa antecipação também vai surgir no início de cada canto, com a apresentação de uma estrofe que resume o assunto do mesmo. Wilkens constrói a Proposição da Muhuraida num estilo simples. Nos seus versos iniciais utiliza expressões que coroam o êxito da empresa, novamente chamando a atenção do leitor para um final feliz: Canto o Successo fausto, inopinádo, Que as faces banha em lagrimas de gosto; Depois de ver n’hum Seculo passádo, Correr só pranto, em abattido rosto, (WILKENS,1993, p.99)

Incorre, assim, segundo as anotações de Joseph Freire, no erro de prenunciar o fim da ação, já inicialmente referido no desdobramento do Título. Nos versos que dão seguimento à sua proposição, Wilkens, rende graças à Providência – Canto o Successo, que fáz celebrádo Tudo o que a Providência tem disposto, Nos impensádos meyos admiráveis, Que os altos fims confirmão inscrutáveis. (WILKENS,1993, p.99)

–, deixando mais uma vez claro que é o milagre da pacificação que se evidencia na narrativa. Afastando-se das musas R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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e das divindades pagãs, prática comum nas epopeias clássicas, Wilkens vai buscar inspiração na Luz, fonte de verdade que clarifica o raciocínio e indica o caminho mais certo e seguro, invocando-a: Mandai rayo da Luz, que communica A entendimento, acerto verdadeiro, Espirito da Páz! que vivifica A frouxa idea, e serve de roteiro No Pelago das Trévas em que fica O misero mortal, que em captiveiro Da Culpa, e da Ignorancia navegando Sem voz, he certo, incauto hir naufragando. Invoco aquella Luz, que diffundida Nos coraçoens; nas Almas obstinádas, Faz conhecer os erros; e a perdida Graça adquirir; ficar justificadas; A Luz resplandecente, appetecida Dos Justos; das Naçoens dezenganádas Da pompa; da vaidade do Inimigo, Que ao eterno condúz final perigo. (WILKENS,1993, p.99-101)

A Invocação traduz um dualismo que se repete em muitas passagens do texto. A “Luz” em que Wilkens se apoia e a que recorre para lhe conceder a inspiração tanto pode referir-se ao Iluminismo, tendência dominante no século XVIII e que se apresenta no poema através da sua simplicidade formal, como ao Cristianismo, numa aceitação à prática religiosa vigente. É só muito mais adiante, no Canto 5.º, numa passagem que pode ser considerada como uma segunda Invocação, outra irreverência de Wilkens, quando o poeta dirige-se à Deus para agradecer a sua intervenção na difícil pacificação dos Mura, que a força da fé, já referida no título, é realçada: R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Oh Tu Supremo Author da Natureza! Que fundas na equidade o teu Juízo; Protector da innocencia indefféza; Que ao Insecto não faltas co’o precizo, Oh Tu! Que aos coraçoens, Alma e feréza, Illustras, e mitigas; No concizo, Prescripto espaço pondo os Elementos; De tudo regulando os Movimentos. Tu foste, que o feróz, barbaro peito, Do indomito Muhúra mitigando, Tão docil; tão contente, e satisfeito, Fizeste a Sociedade se hir chegando. Dos que te amando, co’o maior respeito, A Victima nas Aras immolando, Propiciatorio tem, no medianeiro, Páz, Alimento; Pai, Deos verdadeiro. (WILKENS,1993, p.147)

Tal invocação parece servir de pretexto para que o poeta, na estrofe seguinte, valorize a importância dessa pacificação, largamente noticiada no Estado do Grão-Pará e também em Portugal. Por ter sido motivo de grande regozijo, a pacificação dos Mura justifica a sua imortalização através da composição do poema: Faz Epocca o Successo memorável, Nos Annaes do Pará; Da Luza Gente; Pois fáz. Que assumpto sempre lamentável, Do maior gosto seja transcendente. Admiração não cauza ver domável O Tigre ser; Manso o Leão; Serpente Domesticar se; quando o feróz Muhra, Dezeja a Páz; Socégo so procura. (WILKENS,1993, p.147)

A Dedicatória da Muhuraida é feita fora do poema, por meio de uma carta, onde o autor oferece a sua obra ao Governador e R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Capitão General do Estado do Grão-Pará, “Sua Exª o Senhor João Pereira Caldas”. Wilkens considera ser esta “huma Offerta, que [tem] toda a apparencia de Tributo, [...] affecto, veneração, e respeito, que [consagra] á Illustre Pessoa” do referido Governador, visto ter sido este não só um “méro spectador, mas sim, depois de Deos, o primeiro Motor, e Agente dos opportunos meyos, que este fim interessante [, ou seja, a pacificação dos Mura,] ao Serviço de Deos e da Soberana, [conseguiu] completamente”. ( WILKENS,1993, p. 89)

Quanto à Narração, ao ser analisada sob os princípios básicos da épica moderna, ou renascentista, é de se esperar que o texto apresente as características principais deste gênero, ou seja, uma ação inspirada num acontecimento da história nacional, centrada na figura de um herói – mais humano e generoso, de elevada grandeza moral e digno representante dos ideais coletivos de um povo –, e que privilegia a verossimilhança e o maravilhoso cristão. Girando em torno da pacificação e da conversão do bárbaro e indomável gentio Mura, “Inconstante, e feroz, qual outro Scytha” (WILKENS,1993, p.101), que é conseguida após várias décadas de esforços para o seu controle, a ação da Muhuraida decorre num espaço de tempo relativamente curto – Mais de dez Lustros eram já passados (WILKENS, 1993, p.101)

–, período que, segundo os documentos consultados, compreende três fases: a primeira, em que os Mura assolavam a extensa região do rio Madeira e as povoações vizinhas impedindo o desenvolvimento econômico e social naquela zona – […] Espreitando Nas margens lá do Rio, e Lagos fundos, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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O incauto Navegante, (WILKENS, 1993, p.105)

–, a segunda, descrevendo as várias e infrutíferas tentativas do Estado e da Igreja para a sua redução, as dificuldades em levar a bom termo o processo de catequese – Não se cançáva o Zelo, e a piedáde, De meyos procurar mais adequádos, A Conversão de tal Gentilidáde, Mas sempre os lamentáva então frustrádos. Mil vézes, co-o fervor da Caridáde, Das Religioens os Filhos, animádos Entre perigos mil, e amesma Morte, Se esforçávão buscarlhes milhor sorte. (WILKENS, 1993, p.113)

– e, finalmente, a terceira, quando se dá o milagre da rendição e conversão dos Mura: Também lá no Madeira a excellencia Da Graça diffundindo, os attrahia, A procurar a Páz interessante, (WILKENS, 1993, p.159)

A ação, narrada in media res, apresenta um relato misto que conjuga a fala do narrador com a das personagens principais. A épica exige uma imparcialidade e um distanciamento do narrador da matéria que relata, que o atiram para um plano secundário e não participativo. Entretanto, o narrador mantém a sua onisciência, revelando-se em alguns lugares dentro da narrativa, como na Proposição, na Invocação, na Dedicatória e no Epílogo. Com exceção da Dedicatória, que na Muhuraida encontra-se fora do corpo do poema, Wilkens faz uso das outras três posições, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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libertando o sujeito poético, apresentando-se ao leitor na primeira pessoa, respectivamente: Canto o successo fausto, inopinádo, [...] Canto o Successo, que fáz celebrado (Wilkens, p.99) Invoco aquella Luz, que diffundida Nos coraçoens; nas Almas obstinádas, (Wilkens, p.99) Sempre os progressos a Cantar disposto Aqui suspendo a Vóz; A Lira encosto. (WILKENS,1993, p.169)

De um modo geral, Wilkens procura manter no seu poema o distanciamento exigido pela épica, quer nos momentos em que assume o discurso – como narrador –, quer quando delega a palavra às personagens. Há, contudo, algumas passagens em que a impessoalidade do poeta é substituída por um discurso direto. A sua estreita ligação com as personagens que descreve e o profundo conhecimento e proximidade dos fatos que narra levam-no a incluirse no grupo dos portugueses que desejam a paz e a propagação da fé cristã. Esta inclusão é marcada pelo uso da primeira pessoa do plural, que se encontra nas seguintes passagens: Os Templos entre os nossos Luzitános, Mais que nunca, se hir devem frequentando; (WILKENS,1993, p.149) Não menos memoráveis nos ficárão Os dias venturózos de Janeiro; Pois nelles nos deo Páz, felicidade O Author da Vida; A Fonte da Verdade. (WILKENS,1993, p.149) R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Tal inserção faz-se também notar quando o narrador revela a sua onipresença, o que acontece quando se coloca no grupo dos que presenciaram a integração dos Mura – Héra do Sexto Méz, o nono dia, E quarto neste Pôvo de festejo, (WILKENS, 1993, p.167)

–, ou no lugar dos viajantes que percorriam os rios infestados por esses índios. Dessa forma, transporta o leitor para o interior da narrativa, guiando-o pelos mesmos caminhos aterradores, tão seus conhecidos, e reconstituindo todo o horror dessa arriscada jornada: D’aqui de agudas flechas hum chuveiro (WILKENS, 1993,p.107)

Esse processo de construção do discurso funciona como um reforço da noção de verossimilhança pretendida pelo autor. O conhecimento dos fatos é adquirido através da participação direta na ação. É esse saber que se repete e se reafirma no momento em que os Mura chegam à aldeia de Santo Antonio do Imaripi – Alvoroçado estáva o Povo enteiro De ali o Parente; Aqui o filho perdido, Ao Pai; a Irmãos; a Amigos encontrando, (WILKENS,1993, p.139)

–, e que dá credibilidade ao relato do narrador. Como militar, Wilkens tem o compromisso em apresentar a “verdade histórica”, não raras vezes vividas em primeira pessoa ou ouvidas e descritas nos seus relatórios. Por conta desse dever moral, a ação da Muhuraida é enriquecida por breves episódios que se R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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encontram diretamente ligados à trama e que contribuem para redesenhar a história dos Mura, vítima da traição de alguns colonizadores, que é lembrada por um velho Mura, memória viva do seu povo, veículo que exterioriza a verdade vista pelo lado do índio: Já não lembra o agrávo, a falsidáde, Que contra nos os Brancos maquinárão? Os Authóres não forão da crueldáde? Elles, que aos infelices a ensinárão? Debaixo de pretextos de Amizáde, Alguns mattando, outros maneatárão, Levando-os para hum triste Captiveiro, Sorte a mais infeliz, mal verdadeiro. Grilhões, Ferros, Algémas, Gargalheira, Açoutes, Fomes, Dezampáro, e Morte, Da ingratidão foi sempre a derradeira Retribuição, que teve a nossa sorte. Desse Madeira a exploração primeira, Impedio, por ventura, o Muhura forte? Suas Canoas vimos navegando, Diz; fômos, por ventura, os maltractando? (WILKENS,1993, p.131)

Nesse aspecto, o poema cumpre duas exigências da épica moderna: a valorização dos episódios nacionais e a modernização do tema, resgatando uma das máximas da poesia épica, ou seja, a imortalização da história de um povo. A epicidade do poema pode ser posta em causa pela ausência de confrontos bélicos e de um episódio lírico. Em verdade, a excessiva proximidade e envolvimento de Wilkens com os fatos relatados, aliados à falta de distanciamento temporal da ação narrada, não permitem que sejam incluídos na Muhuraida, pois, de outra forma o texto perderia toda a sua credibilidade histórica. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Não se pode refutar o fato de que os textos épicos constituem uma rica e complexa fonte de pesquisa histórica, servindo de canteiro para a reconstrução do memorial histórico de um povo. Criar uma obra que mereça crédito, ganhando através da verossimilhança a legitimidade do discurso narrativo é a função do poeta épico. Assim, a historicidade, dentro do poema épico, não é a finalidade do discurso, mas um instrumento para a sua tessitura, assegurando ao tecido verbal a veracidade artística. O autor se vale dos fatos históricos para criar a trama narrativa, que vai ganhando autonomia e caracteres de arte dramática através da construção de imagens grandiosas ou fantásticas, atirando os fatos históricos para um plano secundário. E o que não falta na Muhuraida são elementos que emergem do texto e que conduzem o leitor para uma leitura metafórica, conferindo ao poema um evidente valor artístico. Na Muhuraida, o processo de fabulação faz-se presente a partir do instante em que o maravilhoso entrelaça-se com o discurso narrativo e extrapola os limites do real. É o caso da passagem que relata a aparição do Anjo pacificador – Mas lá desde o Divino Consistorio, Do Eterno, Immutável, Sabio, Justo, Omnipotente Ser; Desse alto Imporio Desce velóz o Mensageiro Augusto; (WILKENS,1993, p.115)

– e o da interferência do Príncipe das Trevas, que age nas sombras, espalhando o mal, com o intuito de dissuadir os Mura de estabelecer a paz com os colonos: Mas lá na Habitação do eterno dánno, O Principe das Trévas; Monstro informe, [...] Deo o enorme Sinal acostumádo, (WILKENS, 1993, p.159) R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Temivel, larga, ignifera Torrente; No transito impetuózo quanto appanha As cinzas reduzindo; indifferente, A dura penha, a flor, Jardim vistózo, Casal humilde, ou Povo numerózo. (WILKENS, 1993, p.161)

Essa incursão no ‘maravilhoso’, que encaminha o texto para uma leitura poética, não foge ao racionalismo ditado pelo pensamento iluminista do Século XVIII e que caracteriza toda a ação. A interposição do imaginário se processa de maneira nítida, dotada de minuciosa lógica. E é dessa forma insólita que Wilkens resolve o problema do confronto entre as forças opositoras. A habilidade oratória, que se apoia na astúcia e no respeito imposto, não deixa de ser um enfrentamento tão arriscado quanto o físico. É o mundo civilizado que se apresenta e que encontra a ordem, reintegrando os valores da sociedade cristã. A alegoria do confronto entre as forças do Bem e do Mal, entre a Luz e as Trevas realiza-se para mostrar, de forma subjacente, uma crítica à opressão a que os índios estão sujeitos pela sociedade exploradora e escravagista e que é preciso fortalecer o papel dos agentes pacificadores, último recurso para introduzir os Mura no seio da comunidade cristã. Dessa forma, os Mura abandonam o papel de antagonista e passam ao de vítima daqueles que só visam os lucros da colonização. Os indicadores da literariedade vão também passar pela construção das personagens, sobretudo a do herói, elemento principal dentro da estrutura épica e que determina os rumos da narrativa. Estabelecer o herói dentro da complexa estrutura ideológica da Muhuraida põe-nos diante de uma grande interrogação – quem é o herói? Quem conseguiu transformar o “feróz, indomável” (WILKENS,1993, p.91) gentio Mura num índio “Tão docil; tão contente, e satisfeito” (WILKENS,1993, p.147)? A ação de pacificação e de conversão dos índios Mura apresenta mais de R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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uma figura que se destaca no papel de herói, o que pode ser considerado como mais um ponto de negação da epicidade do poema. Ora é vista como um milagre, fruto da providencial intervenção divina manifestada através da figura de um Anjo, ora é atribuída aos pressurosos esforços dos agentes do Governo, ora é entendida com o resultado da vontade dos próprios Mura. Três são as figuras que partilham o papel de herói dentro do poema. O primeiro é um “Anjo humanado”, emissário da palavra de Deus que, servindo-se de um disfarce, sopra no ouvido do jovem Mura, sensibilizando-o, humanizando-o e mudando a sua concepção sobre o homem branco: Que fazes? Meu Irmão! / lhe diz seréno / De Inimigos se teme novo insulto? Quando eu cuidára, que Regato Ameno, Banhando te acharia, e dando indulto Aos lassos Membros; Vejo, que o terréno, De frutas; plantas, produções inculto, Coberto está de flechas; de instrumentos, Que indicão todos belicosos intentos! (WILKENS,1993, p.117) E para que conheças a verdáde De tudo, que eu relato, vai correndo, Vai logo; Ajunta os teus, com brevidade, Veras, se he certo, o que te estou dizendo; (WILKENS,1993, p.125)

O segundo é um Mura jovem, que se deixa seduzir pelo Anjo e incita o seu povo a desarmar-se e estabelecer a paz com os colonos: Levantai-vos! Parentes meus amados! Dispertai, de lethargo tão profundo! Olhai, que para empréza sois chamádos, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Que nome vos dará, já em todo o Mundo. Temidos, atheagora, respeitados, So fômos em Dezertos, Bosque immundo. Mas já o destino quer, a nossa sorte, Que o Mundo todo admire ao Muhura forte. (WILKENS,1993, p.127)

O terceiro herói é Mathias Fernandes, agente local do Governo português, que atua diretamente no terreno do conflito: A todos precedendo, vai primeiro [...], já dos Muhuras conhecido; A quem por Director, e por guerreiro Seguindo; respeitávão destemido. (WILKENS,1993, p.139)

Se considerarmos que o herói da Muhuraida é aquele que consegue o milagre da redenção de um povo temido por sua ferocidade e selvajeria, torna-se impossível analisar a atuação de cada um dos três elementos independentemente. Mathias Fernandes não teria conseguido o intento do Governo português sem a intervenção do Anjo sobre o jovem Mura e deste sobre o seu povo. A heroicidade, aqui, não se resume à ação isolada de um indivíduo dotado de valores e capacidades superiores. Três são os elementos que se cruzam e interagem, construindo, verso a verso, o conjunto de ações grandiosas que conduzem à realização de um feito valoroso, ditado pelo espírito épico e perpetuado pela história nacional. A trilogia no plano narrativo da Muhuraida retoma o espírito da épica religiosa e destaca o maravilhoso cristão, remetendo à Trindade formada pelo Pai-Filho-Espírito Santo. Sob essa ótica, concebemos a figura do diretor Mathias Fernandes, na qualidade de agente do Governo e representante da força e da soberania do colonizador, como uma representação simbólica do Criador – o Pai. O jovem Mura, que se converte e espalha a mensagem de Deus R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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entre o seu povo, é o Filho. E o Anjo, instrumento da redenção, mensageiro que anuncia os milagres e as intenções de Deus e que zela pela paz entre os homens, é o Espírito Santo. As três presenças heroicas – a força militar, que atuava na região, protegida pelo Diretório do Índios, a fé, obra do incansável e incessante trabalho dos missionários das diferentes Ordens Religiosas, e as necessidades do próprio Mura, na altura em guerra com os índios Mundurucus – revelam o conflito político-ideológico resultante da aplicação da política indigenista oficial e da preservação do domínio religioso na esfera da questão indígena. As frequentes alterações das leis, ora atribuindo a tutela dos índios à Igreja, ora ao Estado, só servem para mostrar como a questão do índio estava ainda mal resolvida. Por outro lado, a passagem do Mura de selvagem irracional, retrato de uma bestialidade demoníaca, para a de um povo cooperante, disposto a aceitar a sua assimilação no projeto desenvolvimentista de colonização, deixa transparecer, em primeiro lugar, a opressão sofrida pelos Mura nas mãos do poder colonial português, que num determinado momento da narrativa assume o papel de antagonista e, em segundo, o efeito da religiosidade sobre o coração humano – é o ser primitivo, irracional, animalizado que se humaniza através da fé, trazida pela civilização ocidental. Nesse ponto da narrativa, a teoria rousseauniana do ‘bom selvagem’, que fundamenta a produção do Arcadismo, encontra berço, elevando o texto de Wilkens ao mesmo nível de O Uraguai e Caramuru, que também defendem, à sua maneira, a inocência e o direito natural dos índios. Protegido dos seus agressores, os Mura podem ouvir a voz de Deus. O poder da fé não é, assim, algo para ser colocado em segundo plano dentro da narrativa. Ela se sobrepõe até mesmo à voz da experiência. O diálogo entre o Mura jovem e o Mura velho, já aqui isoladamente reproduzido, revela com grande eficácia a força da religiosidade. Como um jogo entre a razão e a emoção, o velho tenta, inutilmente, chamar à consciência o jovem R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Mura, alertando-o para a falsidade e traição do homem branco. Contudo, a fé penetrou no coração do jovem índio que, humanizado, traz agora o espírito aberto, limpo, puro, pronto para perdoar o passado e acreditar num futuro de paz, onde brancos e índios possam conviver em harmonia, dividindo o mesmo território, numa proposta de unificação. E é esse Mura convertido pelo poder do Espírito Santo – o novo Mura –, que consegue conduzir o seu povo à redenção. Numa parábola bíblica, é o Filho que vem aos homens para ‘tirar os pecados do mundo’, constituindo o elemento intermédio do processo de pacificação, que se faz através da redenção espiritual. Para consolidar esse processo é necessário um elemento que guie os recém convertidos pelos caminhos da Luz. Esse guia é o Pai, que através da sua autoridade e do respeito que impõe, evita que as suas ovelhas se desgarrem. Nessa leitura, deve-se à religião católica e às leis do Estado os louros da vitória, sendo o resultado dessa comunhão o início, o meio e o fim do processo. Através da religiosidade e da autoridade, Mathias Fernandes consegue firmar a paz entre os dois povos. Temos, então, a presença ativa e valorosa de três elementos que, entrelaçando-se, complementam-se, tornam-se ‘uno’, configurando a imagem do herói que, dotado de exemplar sentido de oportunidade e conveniência, concilia forças com o próprio inimigo para conquistar o equilíbrio necessário à preservação da paz. O herói da Muhuraida, menos idealizado e, portanto, mais humano, despe-se de vaidade, dispensando a glória pessoal e o reconhecimento público, e reveste-se de toda a grandiosidade que lhe é consagrada pelo espírito épico moderno, trabalhando em prol do bem coletivo. Não se pode negar que a simplicidade estrutural e uma certa objetividade e brevidade descritivas condicionam a narrativa do poema. Tal simplicidade formal tem como objetivo manter o equilíbrio entre razão e emoção, preservando a ‘verdade’ da R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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narrativa. Assim, a ausência de descrição de um combate físico ao longo do poema, apontado como um dos fatores que restringem a sua característica épica, não é de todo relevante, já que faz todo o sentido que o poeta não o introduza, uma vez que parece ser sua intenção destacar o estado quase animalesco e a irracionalidade dos índios Mura, sem, contudo, despertar demasiada atenção para a inadequação dos colonos portugueses, quer ao meio, quer à forma de conduzir a sua relação com o indígena. As admiráveis qualidades guerreiras dos índios são realçadas não como um elogio à sua figura, mas para lembrar a falta que tão formidável exército faz nas colunas portuguesas. Ignorar os elementos factuais do texto de Wilkens em função da busca de indícios literários contradiz o realismo imanente em todos os géneros literários da época. A própria filosofia do ‘Século das Luzes’, primando pela razão, prezava a riqueza da informação geográfica e histórica, naturalista e antropológica em detrimento do rebuscamento das formas e subjetividade temática. Assim, a Muhuraida, longe de ser uma narrativa idealizada que promova a evasão da realidade, transforma-a em extrato de ficção, como clamava o “homem setecentista, interessado por aspectos exóticos e desconhecidos da realidade humana e física” (DURÃO, p.11). Nessa ordem, a composição descritiva da Munuraida encaixase perfeitamente no lema inutilia truncat que visava eliminar os exageros, o rebuscamento e a extravagância característicos do Barroco, submetendo a poesia ao império da razão, segundo os moldes estéticos do racionalismo francês. Seguindo os modelos antigos, inclusive renascentitas, Wilkens mantém um equilíbrio entre a razão e o sentimento, a realidade e a fantasia, a informação e a invenção, ao construir a história da pacificação dos gentios Mura, numa simplicidade próxima da objetividade do mundo burguês. Dessa forma, o poema de Wilkens aproxima-se, em todos os aspectos, dos mais renomados poemas Setecentistas brasileiros: do tratamento do tema à estrutura formal, passando pela construção do herói até a discussão dos ideais burgueses. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Assim, não parece despropositado dizer que se percebe na Muhuraida a presença de um espírito nacionalista. É evidente que não se trata de um nacionalismo resultante do espírito nativista que começava a desabrochar em várias regiões do Brasil, relacionado com os movimentos de insurreição, como o da Incofidência Mineira, e de independência, e que mais tarde se consolidaria nas produções do Romantismo. O nacionalismo de que falamos está condicionado ao meio ao qual o autor da Muhuraida está veiculado, ou seja, a uma vivência passada ao serviço do Estado, numa região inóspita, cuja integridade territorial era preciso defender dos avanços espanhóis e da rebeldia de algumas tribos menos cooperantes. Trata-se de um nacionalismo que se traduz pela necessidade de se formar uma aliança com os Mura, protegendo-os, fortalecendo-os e disciplinando-os, para que estes pudessem garantir a fixação das fronteiras na Amazônia. As intenções políticas, naquele momento e naquela região, são, portanto, de preservação e de manutenção da unidade política, administrativa e territorial. Servindo-se do rigor histórico que está presente em todo o poema, Wilkens confronta o leitor com a triste questão do índio. A Muhuraida não trata o índio de forma idealizada, quase europeizada, como os que se apresentam em O Uraguai e Caramuru. O índio da Muhuraida é autêntico, quer na sua selvajeria – ao enfrentar o português, que em muitas ocasiões se revelou um invasor furtivo, traiçoeiro e predador –, quer na sua inocência – quando acredita na mudança de intenções desse mesmo português e que uma aliança com os colonos só lhe trará vantagens. Percebese, assim, uma velada preocupação do autor em fazer a denúncia da exploração e do massacre dos índios – processo desencadeado pelos colonizadores –, e da sua aculturação, manipulada pelos missionários. Disputado pela Igreja e pelo Estado, o índio perdeu a sua identidade natural e é agora um esboço, um fantasma que pouco tem a ver com aquele que Pedro Álvares Cabral um dia encontrou na “Ilha de Vera Cruz” – o Brasil. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Sem preencher de forma total e satisfatória os requisitos definidos pela crítica literária e necessários para o seu enquadramento num modelo épico específico e sem ser suficientemente inovador, impondo um novo estilo, a Muhuraida foi afastada das páginas das histórias da literatura brasileira. Contudo, é certo que a Muhuraida, além de dar um precioso contributo para a reconstrução de uma das páginas da história amazonense, também revela um certo sentimento patriótico, sustentado por uma velada denúncia dos abusos cometidos pelos colonizadores e missionários contra os índios. Ao reunir em suas páginas a verossimilhança e o maravilhoso cristão, a Muhuraida vai desenhando em seus versos o Brasil selvagem e primitivo, revelando uma reflexão sobre os problemas locais, refletindo, de forma clara, o espírito da literatura ilustrada.

Referências BARROS, Marcus Luiz Barroso. Apresentação. In: WILKENS, Henrique João. Muhuraida ou o triunfo da fé, 1785. Manaus: Biblioteca Nacional/UFAM/ Governo do Estado do Amazonas, 1993. DURÃO, Frei José de Santa Rita. Caramuru. Rio de Janeiro: Agir, 1957 [1769]. FREIRE, Francisco Joseph. Arte Poética, ou Régras da verdadeira poesia em geral, e de todas as suas especies principais, tratadas com juizo critico. 2.ª edição, Tomo II, Lisboa: Offic. Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. GAMA, José Basílio da. O Uraguai. Rio de Janeiro: Publicação da Academia Brasileira, 1941 [1769]. Grande enciclopédia portuguesa e brasileira. v. 36, Lisboa, Rio de Janeiro, 1989 [195-]. LIMA. Manuel de Oliveira. Aspectos da literatura colonial brasileira. Rio de Janeiro: INL, s/d. MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fatos da literatura amazonense. Manaus: Universidade do Amazonas, 1976. REIS, Artur César Ferreira. A Língua Portuguesa e a sua imposição na R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Amazônia. Revista de Portugal, Série A: Língua Portuguesa, v. XXIII, Lisboa, 1958. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Épicos brasileiros. Lisboa: Imprensa Nacional, 1845. WILKENS, Henrique João. Muhuraida ou o triunfo da fé na bem fundada esperança da enteira converção, e reconciliação da grande e feróz nação do gentio muhúra. 1785. (manuscrito) ______. A Muhuraida, ou a conversão, e reconciliação do gentio-muhra. Lisboa: Impressão Regia, 1819. ______. Muhuraida ou o triunfo da fé, 1785. In ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, v. 109, 1989. Rio de Janeiro, 1993, p. 79-275. ______. Muhuraida ou o triunfo da fé, 1785. Manaus: Biblioteca Nacional/ UFAM/Governo do Estado do Amazonas, 1993.

Notas 2

O manuscrito encontra-se depositado na Torre do Tombo sob o códice: Mss. Brasil. C. 16 E.147 P. 6. Ficheiro 36, Avulsos: 3, n.º 24. Foi localizado e divulgado pelo antropólogo Carlos de Araújo Moreira Neto. 3 Esta edição deveu-se a uma iniciativa conjunta entre a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e a Universidade do Amazonas. As citações da Muhuraida aqui empregadas foram retiradas da edição publicada em livro em Manaus, dado que ela reúne o manuscrito (cujas páginas não se encontram numeradas) e a primeira edição portuguesa de 1819. Para facilitar a identificação das mesmas, abriremos aqui uma exceção e usaremos apenas o nome do autor ou do revisor seguido do número da página. 4 Convém referir que o nome da tribo aparece quase sempre referenciado no singular, ao contrário de outras grandes nações, como os Mundurucus, os Tapuias, os Guaranis etc, o que nos leva a supor que os Mura criaram uma sociedade onde o coletivo impera sobre o indivíduo, fruto de uma coesão em massa.

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A DESCONSTRUÇÃO PARÓDICA DO DISCURSO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO EM O BRASILEIRO VOADOR DE MÁRCIO SOUZA PARODIC DECONSTRUCTION OFBIOGRAPHICAL HISTORICAL DISCOURSE IN O BRASILEIRO VOADOR BY MÁRCIO SOUZA Cléber Luís Dungue (PUC/SP)1 RESUMO: A vida e a história de Santos-Dumont já foi tema de mais de uma centena de biografias, muitas delas escritas segundo um modelo tradicional que procura enformar, 1 Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. CEP: 05014-901

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engrandecer e perpetuar a figura heroica do aviador. Em O brasileiro voador, Márcio Souza propõe um projeto de desconstrução desse mito nacional por meio da paródia, que se configura como uma estratégia de deformação e reinvenção da realidade de maneira crítica. A partir da leitura desse livro, é possível perceber a desmontagem de aspectos ideológicos que contribuíram para o propósito de tornar Santos-Dumont um heroi nacional. No romance, a sátira que faz rir é também potencialmente aquela que questiona verdades canônicas. Ela permite tanto levantar o véu que encobre as contradições e desventuras do patrono da aviação brasileira, como também desconstruir o convencionalismo da história oficial.Uma das medidas tomadas por Márcio Souza para livrar Santos-Dumont do engessamento histórico e da seriedade inócua é compará-lo a personagens burlescas. Nesse sentido, a ironia, a caricatura, o burlesco e o deboche são estratégias eficazes para instigar o posicionamento crítico do leitor diante do texto. PALAVRAS-CHAVE: Biografia. Santos-Dumont. História official. Desconstrução. Paródia.

ABSTRACT: The life and history of Santos-Dumont was the subject of more than one hundred biographies. Many of them were written according to a traditional model that try to frame, exalt, and perpetuate the heroic figure of the aviator. In O brasileiro voador, Marcio Souza proposes a project of deconstructing this national myth through parody, which constitutes a strategy of deformation and reinvention of the reality in a critical manner. From the reading of this book, it is possible to notice how the author dismantles the ideological aspects that contributed to make Santos-Dumont a national hero. In the novel, the satiric aspects that make one laugh can also raise questions to the canonical truths. The satire allows us to lift the veil concealing the contradictions and misadventures of the patron of Brazilian aviation as well as to deconstruct the conventionality of the official history. One of the strategies used by Márcio Souza is comparing R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Santos-Dumont to burlesque characters – by doing this it is possible to free him from his historic cage and from the innocuous seriousness he is interpreted with. In this sense, irony, caricature, burlesque comparisons and debauchery are effective strategies to engage the reader in a critical positioning. KEYWORDS:Biography. Santos-Dumont. Official history. Deconstruction. Parody. O desmistificador não está acima e a salvo dessa geléia geral da cultura de massa; está dentro dela, procurando apenas ter uma visão mais crítica do que a do simples consumidor. A arma do desmistificador não é o anátema ou a censura, mas o humor; foice (e não martelo) cuja função é limpar o terreno, abrir caminho (ROLAND BARTHES: o saber com sabor, Leyla Perrone-Moisés).

O brasileiro voador começa a ser elaborado em 1979 pelo escritor amazonense, Márcio Souza,a partir de uma solicitação feita porTizukaYamazaki. O objetivo inicial não era o de produzir um livro, mas sim escrever o argumento que, posteriormente, seria convertido em roteiro do filme que a cineasta pretendia fazer sobre a vida de Santos-Dumont. O projeto, no entanto, não foi concretizado. Em 1986, Souza publica o romance quenão chegou a ser transformado em filme. Ainda assim, quer pelas sugestões epelo apoio dados pela cineasta, quer pela incorporação das técnicas narrativas aprimoradas a partir do próprio trânsito do autor pela sétima arte, o cinema está no cerne da elaboração deste livro. Questionada sobre a possibilidade de ainda transformá-lo no roteiro a ser filmado, a diretora de vários filmes do cinema brasileirose mostra desestimulada: Havia desistido uma vez, pois consegui a coprodução com a França e não consegui a parte brasileira. Na época, soube de um comentário, por parte de um general, segundo o qual eu seria comunista!!! Os militares podem ter criado resistência, com medo de que uma “comunista” fizesse do patrono da aeronáutica R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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um herói ”veado” e suicida. Engavetei o projeto. Anos depois, com o advento da “Lei de Incentivo”, acreditei que o projeto poderia cativar grandes empreendedores. Refiz o projeto, consegui aprovação e o coloquei no mercado. Nada! Nem um investidor. Desisti de vez. (YAMAZAKI, 2011)2.

Nos agradecimentos, ao final do livro, Márcio Souza diz que deve muito ao exaustivo levantamento sobre a vida e as invenções de Santos-Dumont feito por Henrique Lins de Barros, por meio do qual teve condições de elaborar o romance.Barros chegou a viajar a Paris, custeado pelo CNPq, com a finalidade de aprofundar a pesquisa sobre Santos-Dumont, que já desenvolvia há tempos no Brasil. O referido pesquisador do CBPF — Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas — é autor, entre outros, dos livros Santos Dumont: o homem voa! (2000), Santos-Dumont e a invenção do voo (2003), Desafio de voar(2006). Segundo Barros,o seu trabalho em torno da vida e das criações de Santos-Dumont foi motivado inicialmente pelo fascínio que tem por aviões3. O autor de Santos-Dumont e a invenção do voofaz interessantes considerações, ressaltando a importância do aeronauta brasileiro no progresso da aviação: Sempre gostei de aviões. Gosto de ver aviões e faço pequenos modelos em escala. Ao se debruçar sobre a história da aviação, o nome de SantosDumont aparece de forma estranha. Ele é apagado da história que a gente lê, mas é o nome de maior destaque no início do século, sempre tratado com enorme respeito. Numa ocasião estava em SP e vi a réplica do “Demoiselle20” no Ibirapuera. Resolvi fazer o modelo e comecei a buscar informações do aparelho. Para minha surpresa, não existiam informações. Somente em textos de época era possível achar alguma coisa. Aí encasquetei e comecei a levantar informações sobre SantosDumont. E isso é como uma bola de neve. Comecei a receber material e informação. Foi aí que conheci Tizuka. Já tinha uma boa quantidade de informação e tinha descoberto Santos-Dumont, não como um herói acima de qualquer suspeita, o Pai da aviação, mas como uma pessoa genial e geniosa. (BARROS, 2011). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Já havia uma preocupação por parte de Henrique Lins de Barros em mostrar por meio de sua pesquisa uma imagem mais realista do inventor, menos idealizada. O pesquisador não compactua com a imagem mítica criada pelas biografias encomiásticas sobre Santos-Dumont. Barros explica, na entrevista já mencionada,o seu ponto de vista a respeito daheroificação do aviador da seguinte forma: “de fato, um ponto que me chamava a atenção era de como se construiu a imagem de herói e de como esta construção levou ao desgaste do próprio herói.” Apesar da perspectiva crítica quanto a isso, o autor de Santos-Dumont e a invenção do vôo não pensa na possibilidade nem na eficácia da desconstrução desse herói, sua estratégia é outra, mais relacionada com demarcar a devida dimensão criativa e a importância histórico-científica das realizações do aviador, até então esquecidas, apagadas ou relegadas a segundo plano nos anais da ciência. Por isso, faz questão de deixar claro seu descompasso com o projeto de TizukaYamazaki e Márcio Souza. Segundo Barros (2011),a cineasta queria fazer um filme leve, tipo comédia Vaudeville da Belle Époque. O pesquisador começou a escrever o argumento para a elaboração do roteiro, mas abandonou o trabalho em função da perspectiva menos séria que a cineasta queria dar ao seu filme, achava que seria muito difícil abordar o tema nessa ótica tendo como protagonista Santos-Dumont. Márcio Souza (2009, p. 301) diz nos agradecimentos de O brasileiro voador que também tinha objeções quanto ao projeto de TizukaYamazaki, pois “não tinha muita simpatia pelo protagonista” (2009, p. 9). Convencido pela cineasta, que soube dirimir a aversão do escritor, assume o desafio de usar os dados históricos como base para recriar, com total liberdade ficcional, a figura de Santos-Dumont. Seria um enfoque completamente diferente da perspectiva adotada por Barros. Sobre o papel do material histórico, no processo de construção de O brasileiro voador, o autor amazonense faz o seguinte esclarecimento: “escrevi o romance com total liberdade ficcional, é romance, não biografia ou ensaio histórico. Por isso, esqueça a R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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documentação e tudo mais, que só foi levantada para dar base ao filme, especialmente na parte de reconstrução de época e veracidade nas máquinas voadoras”(SOUZA, 2011)4. Tendo em vista essa discussão sobre se o referido livro é romance ou biografia, talvez seja melhor analisá-lo em função da fusão dos dois gêneros, ou seja, como romance-biográfico, no qual a narrativaé conduzida pela paródia.

A enunciação paródica É preciso ressaltar, quanto a um possível julgamento estético de O brasileiro voador, que em nenhum momento Márcio Souza se propõe a fazer “alta literatura”, mas sim o que ele mesmo chama de “romance mais-leve-que-o-ar e novela de entretenimento, contada com discreta inflação de sentimentos” (SOUZA, 2009, p. 05). Ainda assim, por trás da aparente facilidade de uma estrutura narrativa que remete amiúde à cultura de massa, emerge uma constante ironia. Ao longo do livro, o mito construído pelos biógrafos mais tradicionais será desconstruído pelo autor amazonense, tendo em vista o desmascaramento da suposta objetividade que sustenta os relatos biográficos oficiais. Já na nota introdutória, valendo-se do recurso metalinguístico, o narrador/autor critica a configuração oficial dada ao aeronauta brasileiro: Ao ser apropriado pelo culto militar, Santos Dumont se transformou numa figura insossa, símbolo de um patriotismo medíocre e ressentido, tipicamente brasileiro, uma espécie de semideus franzino e amarelinho, injustiçado apenas por ter nascido nesta terra de carnaval e boemia. Enfim, uma daquelas histórias exemplares que sempre estão a nos enfiar na cabeça, apenas para confirmar que nascemos para ganhar e não levar. (SOUZA, 2009, p. 09).

Ao questionar a organização linear e objetiva da vida e dos feitos deSantos-Dumont, apresentadasegundo o ponto de vista dos R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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biógrafos tradicionais, o autor coloca sob suspeita as conclusões simplistas a respeito da suposta verdade biográfica. Com isso, lança sobre a certeza e a ordem dos fatos a dúvida e o deboche, os quais são reiterados durante todo romance. A voz narrativa passa a desordenar a bíos de Santos-Dumont, a explorar as ações, os vazios, as contradições, as confusões, os detalhes de somenos importância. Esse aspecto emerge em O brasileiro voador5 quando o narrador (o ente ficcional que sustenta ou organiza o suposto relato biográfico) começa por satirizar não só a imagem de Santos-Dumont, como a própria história que tentou transformá-lo em herói. Assim, desestabiliza o peso da verdade histórico-biográfica, apresentando ao leitor uma figura caricaturada, que se aproxima algumas vezes da loucura, do grotesco, do bestializado e dos personagens de contos de fadas, como se percebe nas seguintes passagens: Ficou o janotinha enfezado das fotografias e o tipo ambíguo das biografias pernósticas. Um excêntrico sob a lupa da psiquiatria lombrosiana. [...] Mas já podiam perceber [dois empregados de Santos-Dumont] que, se houvesse em Paris um concurso de excentricidade, o tampinha sulamericano ganharia folgado o primeiro lugar. [...] O mordomo apeou da charrete e aproximou-se do rapaz [o próprio Santos-Dumont] que mais parecia um felpudo cão pequinês naquele casaco de marta. [...] Deutsch adorou a sagacidade daquele pequeno polegar de bigodes encerados. [...] O brasileiro agia como um caramujo. [...] Sorte que Paris adora escargot, sempre dizia Goursat. [...] E naquela manhã, quando observava [conde D’Eu] da janela a chegada daquele ridículo gnomotropical, confirmara mais uma vez o quanto eram hipócritas os brasileiros. O gnomo de fraque ostentava uma gravata vermelha... [...] R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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A turma do Aeroclube torce o nariz pela falta de critérios desse pernóstico liliputiano. (BV, p. 17, 49,55, 57, 64, 70, grifos nossos).

José Alonso Torres Freire (2004), no artigo “Um diálogo explosivo”, analisa a relevância da sátira e da paródia em outra obra de Márcio Souza (1981), A resistível ascensão do Boto Tucuxi. Segundo o referido pesquisador, uma das principais características da sátira é a redução ou transformação do personagem a ser satirizado em uma caricatura. Em O brasileiro voador, esse processo se dá por comparações e metáforas, como se percebe nos fragmentos acima citados. Ao longo do texto, Santos-Dumont é quase sempre transformando em figura cômica, ora atrapalhada e desajeitada, ora ordinária ou grotesca, por exemplo, quando é comparado a “janotinha enfezado”, a “tampinha”, a “cão pequinês”, a “gnomo” e a “caramujo”. Como bem observa José Alonso Torres Freire (2004, p. 199), é por meio desses “artifícios degradantes que o satirista busca o apoio do leitor para a crítica que pretende empreender no intuito de rebaixar a figura histórica, alvo da narrativa”. A sátira é um dos recursos explorados ao longo do romance, dando forma às passagens mais interessantes, tendo em vista o projeto de desconstrução do herói da aviação. É usada para ridicularizar, além da imagem de Santos-Dumont, instituições, costumes, textos pré-existentes e ideais ufanistas. Junto com a ironia (por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender), a caricatura (que permite deformar o texto e as imagens), o burlesco e o deboche, a sátira funciona aqui como suplemento da paródia. Não há uma relação de complementaridade entre esses termos, pois podem predominar na enunciação de um texto independente um do outro, mas tambémnão seexcluem mutuamente. Por isso, seria possível pensar que tais termos sustentam um jogo suplementar, como se fossem elementos a mais, servindo dessa forma à organização paródica do romance em questão. Asátira, a caricatura, a ironia, o burlesco e o deboche são, portanto, excessos solicitados estrategicamente pelo paródico. Por excederem um ao outro e, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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aomesmo tempo, não se fecharem semanticamente, esses conceitosaparecem confundidos em algunsestudos, ora abordados como sinônimos, ora apresentados em função de diferenças. Em O brasileiro voador,percebe-se que todos eles desembocam na enunciação paródica, enriquecendo-a e potencializando o seu efeito profanador sobre as biografias tradicionais e sobre o sujeito biografado. Nesse contexto, a paródiapode ser pensada, em um sentido amplo, como um “canto paralelo”, como a deformação, por diferentes estratégias discursivas, do texto preexistente. Essa perspectiva fica mais clara quando a paródia é entendida a partir da sua etimologia, tal como o fez Genette ao procurar sua raiz semântica, ampliando-a assim como figura literária: Primeiramente, a etimologia: ôdè, que é o canto; para, “ao longo de”, “ao lado”; parôdein, daí parôdia, que seria (portanto?) o fato de cantar ao lado, de cantar fora do tom, ou numa outra voz, em contracanto – em contraponto –, ou ainda, cantar num outro tom: deformar, portanto, ou transpor uma melodia. (GENETTE, 2010, p. 24, 25).

Voltando ao contexto satírico da obra, cabe lembrar o destaque dado aos personagens bufões, representados principalmente pelos dois ajudantes de oficina,Lachambre e Machuron, que auxiliam Santos-Dumont durante a execução de projetos, quase sempre considerados absurdos pelos seus contemporâneos. As passagens apresentadas a seguir são exemplos do tom burlesco que Márcio Souza dá à obra a partir dos personagens bufos: Lachambre, como era sentimental, tremeu nas bases ao ver o jovem brasileiro entrar na oficina com um projeto de balão. Machuron, com seu espírito prático, pegou um lápis e um bloco de papel, e pôs-se a fazer seus cálculos. O rapaz olhava os velhos baloneiros com uma autoconfiança irritante. Você está louco, gritou Machuron, quebrando o lápis. Onde já se viu um balão com invólucro tão leve e cem metros de cubagem? R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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[...] Lachambre dava tapas na cabeça e levantava as mãos aos céus. [...] Machuron agora morde o bloco de papel. (BV, p. 47). O Nº I subiu a favor do vento e foi chocar-se contra as árvores do jardim, destroçando-se inteiramente. Com as roupas rasgadas e vários cortes pelo corpo, o lunático sulamericano foi retirado do meio dos destroços esbravejando contra Lachambre, Machuron e Aimé. Idiotas, gritava o maluco. A culpa é de vocês que me obrigaram a largar a favor do vento. Incompetentes... Os cortes sangravam e o rosto estava deformado por uma equimose escura. Mas o homenzinho não parava de distribuir insultos. Foi levado ao hospital, onde um médico de maus bofes acalmou o exaltado. (BV, p. 53).

As figuras dos bufões ajudam a compor um cenário cômico, no qual Santos-Dumont vai sendo alterado, ao se retirar sua aura mítica, até tornar-setambém uma figura burlesca. Ao longo do livroé dado destaque às excentricidades do aviador. Principalmente por querer inventar máquinas de voar, é visto pela sociedade da época como inconsequente, e é cognominado no livro, seja pelo narrador, seja pelo discurso direto de algum personagem, por adjetivos como “alucinado inventor”, alguém que “padecia de destelhamento do juízo”, “abilolado”, “jovem desmiolado”, “insano”, “o louco do ChampsElysées”, “maluco”, “insanidade alada”. Até mesmo as personagens Machuron e Lachambre, apresentados na narrativa como ajudantes bufões, achavam que não só o aeronauta era excêntrico e esquisito, mas também consideravam, indutivamente, que todos os brasileiros também eram dados a extravagâncias e imprudências. Numa perspectiva típica dos preconceitos sustentados pelo senso comum, julgavam o todo pela parte: Os dois já sabiam que todo brasileiro era meio maluco. Machuron, porque o sócio lhe contara. Lachambre, por já ter estado no Brasil a R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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serviço de um outro alucinado, o deputado Augusto Severo, que pretendia construir um dirigível gigantesco para fazer a rota Rio-Paris, transportando carga e passageiros. (BV, p. 51).

Essa perspectiva preconceituosa figura em outros momentos do relato. Fazendo uso do recurso metonímico, por meio do qual se toma a parte pelo todo, típico do olhar estrangeiro sobre os brasileiros (segundo o qual o Brasil é país do futebol e do carnaval), o autor/narrador apresenta de forma irônica nomes de figuras conhecidas mundialmente, como se elas representassem todo brasileiro, ou como se a identidade nacional fosse sustentada em função de ídolos da massa. É o que se observa na leitura do capítulo “Tecnologia de ponta”: De vez em quando o Brasil se confunde com uma pessoa. Nos campos da Suécia um negrinho mineiro se transformou no Brasil. Até mesmo um garçom de Hanói passou a saber quem é Pelé. E sabendo de Pelé, pensava saber do Brasil. Antes dele, uma cachopa elétrica encarnou o Brasil. Até mesmo um lavrador do Alabama sabia quem era Carmem Miranda. E sabendo dela, pensava que sabia do Brasil. Antes dela, um moreno rapaz de Minas representou o Brasil. Até mesmo um escriturário de Zanzibar sabia quem era Santos Dumont. E sabendo de Santos Dumont, pensava que sabia do Brasil. Neste século o Brasil, então, foi um atleta, uma cantora e um aviador. Três magistrais inventores: dois mineiros e uma portuguesa. O atleta fez sua fama usando chuteiras. A cantora e o aviador usavam sapatos de plataforma. (BV, p. 249).

O narrador, como se estivesse utilizando os recursos de uma câmera, focaliza as personalidades por meio dos recursos de zoom e plongée, próprios da linguagem cinematográfica, mas também da publicitária. Nesse movimento, o olhar do leitor vai afunilando-se do geral para o específico, de cima para baixo, até chegar ao plano detalhe no qual as botinhas de plataforma, que deixavam o aviador alguns centímetros mais alto, ganham status de personagem da cena. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Em uma relação de contiguidade ou em um processo de coisificação, as figuras passam a ser representadas por calçados: Pelé, por chuteiras, Carmem Miranda e Santos-Dumont, pelos sapatos de plataforma. Entra em questão, nessa passagem, a influência dos mass media na sociedade contemporânea do espetáculo e do show. Produtos da indústria cultural, o atleta, a cantora e o aviador são exemplos da cultura do entretenimento. Pelé consolida sua notoriedade ao se tornar o único jogador de futebol a sagrar-se três vezes campeão do mundo como atleta, conquistou tamanha fama que veio a ser chamado de o esportista do século. Muitos dos seus gols e jogadas foram filmadas e reproduzidas pela televisão e cinema, o que contribui sobremaneira para fortalecer, no imaginário popular, o seu status de ídolo. Já Carmem Miranda— nasceu em Portugal, mas veio com a família morar no Rio de Janeiro antes de completar um ano de vida — depois de consagrada no Brasil, tornou-se, entre os anos de 1930 e 1940, personalidade muito popular nos Estados Unidos, onde foi apelidada the Brazilian bombshell. Nesse país, atua na Broadwaye em vários filmes hollywoodianos. No meio midiático brasileiro, passou a ser chamada de “pequena notável”. Também o inventor brasileiro, quer de forma carinhosa, quer pejorativa, em função das mesmas estratégias de sedução dos massmedias, ficou reduzido a “Petitsantôs” — “Pequeno Santos”. Márcio Souza mostra, em uma sequência de capítulos, a força midiática e espetacular das invenções do “Pequeno Santos”, em paralelo com a figura carnavalesca de Carmem Miranda e com a desenvoltura do esportista. Aqui fica claro como os títulos são importantes fontes de significação no texto do autor amazonense — eles funcionam como signo para uma leitura crítica. Neste caso, não se pode deixar de percebera aparente contradição entre os títulos e o enunciado dos três capítulos que formam uma sequência semântica: Tecnologia de ponta II Cada subida de Petitsantôs era um espetáculo coreográfico que encantava R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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as multidões e impressionava os outros pioneiros. Os braços eram frenéticos: como os braços de Carmem Miranda sob a inspiração de Busby Berkeley. O corpo anunciava a flexível malícia de Pelé. Tecnologia de ponta III Pelé foi contratado como relações-públicas de uma multinacional. Carmem Miranda foi parar em Hollywood com a cabeça cheia de bananas. Santos Dumont virou um aeroporto de vôos domésticos no Rio de Janeiro.” (BV, p. 250).

O resultado irônico surge exatamente na oposição do título com o conteúdo do capítulo. É certo que Carmen Miranda ajudou a divulgar a cultura popular e as músicas brasileiras no exterior, por meio de seu personagem com turbante de frutas na cabeça, sapatos plataformas e roupas de baiana. De modo semelhante, Pelé também se tornou muito conhecido no exterior e símbolo de um Brasil vigoroso, com jinga e habilidades notórias advindas de seu modo particular de jogar futebol. Contudo, também contribuíram para fortalecer a máxima, diante do olhar estrangeiro, de que o “Brasil não seria um país sério” ou avançado, focado no investimento em “tecnologia de ponta” e nas variadas formas de conhecimento, principalmente acadêmico. Assim, sob o olhar estrangeiro, o Brasil só é lembrado de forma positiva em função do carnaval e do futebol. Nesse contexto,Santos-Dumont, que seria o maior representante da brasilidade, tendo em vista a contribuição que deu para a criação e o desenvolvimento de uma “tecnologia de ponta”, também se torna, por contágio metonímico, uma figura folclórica e carnavalizada. De igual maneira, ressaltando o tom burlesco, em vários momentos, sobretudo no início do livro, os voos de Santos-Dumont são apresentados seguidos de bruscas quedas, por meio das quais o narrador, refletindo a visão do meio social da época, dá relevo ao ridículo e ao rebaixamento do herói. Rebaixar o herói é algo característico do universo cômico. Diferentemente do gênero trágico que, em função da purificação e da purgação, busca mostrar na queda R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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a grandeza do herói, como acontece em Édipo Rei de Sófocles, por exemplo, no cômico a queda está diretamente associada ao gracejo, à bufonaria, ao chiste, à malícia. Em O brasileiro voador, a inversão e o rebaixamento são reforçados ainda na comparação de SantosDumont com animais, como nos títulos dos capítulos: “O lobo solitário”, “O caramujo em sua casa”, “O caramujo empreendedor”, “A besta humana”, “Tirando o animal da toca”.

O rebaixamento do heroi Além do protagonista ser submetido ao rebaixamento, ressaltando-se seus defeitos, suas limitações, suas angústias e frustrações, outra configuração que diminui a figura heroica é dada quando se divide a personagem Santos-Dumont em duas: Alberto, o homem sisudo, sério, responsável, triste, e Petitsantôs, o espontâneo, alegre, frívolo e fútil, como demonstra a seguinte passagem: O que deseja Petitsantôs? As pequenas expectativas que se disfarçam de grandes. Uma rodada no pano verde. Acordar tarde. Exibir-se aos olhos da cidade. E Alberto? Ele não sabe. Teme apenas a ausência inquietante dos desafios. Renasce a cada dia esse temor, no gosto dos pratos finos, no sabor do vinho. Está melancólico, indiferente, magoado sem saber por quê. (BV, p. 72).

O riso, no romance, não deixa de se configurar como ato crítico do ufanismo, da política brasileira, da sociedade conformista e do leitor ingênuo. Além da escancarada ironia, o foco centralizado no ridículo e na inversão dos valores das biografias encomiásticas permite ver os problemas até então encobertos. Márcio Souza, ao longo de sua carreira literária, faz clara opção pelo gênero satírico e justifica da seguinte forma a sua recusa por personagens trágicos R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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em suas criações: “a tragédia e o drama são tipos de arte que pedem personagens sérios, de responsabilidade, e não encontrei nenhum ‘coronel de barranco’ de responsabilidade que servisse para uma tragédia” (SOUZA, 1982, p. 07). Assim, para o autor, no contexto brasileiro, o riso se configura como uma forma de crítica, ou seja, em suas palavras,o humor “é uma arma violenta contra a alienação” (Id.,Ibid., p. 07). Nessa perspectiva, a paródia se configura como uma estratégia de deformação, que permite reinventar a realidade de maneira mais consciente, no caso específico de Santos-Dumont, percebendo os aspectos ideológicos envolvidos em toda heroificação. Na sequência de capítulos intitulados com nomes de fármacos — “Xarope Bromil”, “Emulsão Scott”, “Xarope de hipophosphitos do Dr. Churchill”, “Xarope Larose”, “O sabão mágico da Drogaria Pizzarro” e “Cafiaspirina” —, o sarcasmo funciona como antídoto contra a hipocrisia e a seriedade da história. Nesses capítulos, o autor faz uma crítica, por meio da ironia, aos discursos empolados da sociedade burguesa e dos políticos brasileiros. O discurso hipócrita dos “donos do poder” da nascente república brasileira emerge constantemente na narrativa como um véu que encobre os problemas da sociedade. É o que se verifica, por exemplo,nos capítulos “Biotônico Fontoura” e “Vocação agrária”: Petitsantôs agora é Santos-Dumont, dileto filho da terra verdejante, o homem que voa mas chega por mar. Foi para ele que embrulharam para presente o Pão de Açúcar, e ali fizeram pender uma faixa de boasvindas. E de outra coisa não se fala no Café do Rio. O dândi logo desfilará em carro aberto, “à laRenaissance”, como é do gosto de madame Rui Barbosa. Entre as barbas e bigodes, as peles escuras misturam-se. Pelo menos hoje a rua do Ouvidor democratizou-se. (BV, p. 179). ... e esta vai ser a última oportunidade para que o senhor veja o nosso Rio de Janeiro como uma infecta vila colonial, de casario miserável, surtos de cólera e febre amarela. Não podemos continuar assim, com R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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os navios estrangeiros recusando aportar aqui, a cidade ganhando fama de empesteada... Positivamente o Rio de Janeiro precisa se transformar numa cidade moderna, capital de uma república progressista. [...] Sou político por vocação, mas aqui neste país a política não é uma dama casta, é uma cortesã. Uma cortesã! [...] Não é a Bela Otero, não, senhor Santos Dumont! É a triste política desta terra de mulatos. Uma rameira. (BV, p. 185).

Essa aparência enganosa da política, da ordem e do bem-estar é posta diante do leitor de maneira irônica, exigindo deste um posicionamento crítico. O autor-narrador de O brasileiro voador age como um iconoclasta, que dessacraliza o herói, mas também as instituições e a historiografia tradicional. No referido livro, a sátira, a caricatura, a ironia, o burlesco e o deboche são recursos que potencializam tal objetivo. É por meio deles que o escritor amazonense pode desconstruir e humanizar o herói das biografias oficiais. TizukaYamazaki, em entrevista já citada, confirma essa percepção quanto à função dos recursos paródico-satíricos no filme por ela idealizado e, de maneira mais efetiva, no romance que foi publicado por Márcio Souza: O viés satírico é seu grande trunfo, ainda mais para um herói “chapa branca”. Sempre quis um Santos-Dumont jovem, ousado, aventureiro, muito diferente do sujeito velho e carrancudo com um chapéu enfiado na cabeça, que conhecemos pela história oficial e pelas imagens oferecidas pela imprensa. (YAMAZAKI, 2011).

Portanto, a sátira que faz rir, para a diretora de cinema, é também potencialmente aquela que questiona verdades canônicas, que permite tanto levantar o véu que encobre as contradições e desventuras do patrono da aviação brasileira, como também do “convencionalismo pernicioso” da história oficial — pernicioso porque, segundo Mikhail Bakhtin (1993, p. 279), tal R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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convencionalismo é frequentemente representado do ponto de vista de alguém que não participa dele, que está de fora e por isso mesmo não o compreende. Uma das medidas tomadas por Márcio Souza para libertar Santos-Dumont do estigma de herói “chapa branca” é compará-lo, amiúde, a personagens burlescas, como se pode perceber pelo uso estratégico de alguns títulos de capítulos, tais como: “Tartarin de Tarascon”, “Aprendiz de feiticeiro”, “Comédia de Georges Méliès” ou “Max Linder detetive” — esse último se desdobra em mais dois, mudando-se apenas o algarismo que demarca a sequência. No romance de Alphonse Daudet (1872), Tartarin de Tarascon, o personagem que dá título à obra, é um herói picaresco especialista em caçadas. A obra de Daudet é declaradamente inspirada no livro Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Mitômano, hiperbólico e glutão, entre outras coisas, Tartarin funde características tanto de Dom Quixote como de Sancho Pança e vive buscando na ficção as aventuras e emoções que não encontra na realidade. Aprendiz de feiticeiro, ou Der Zauberlehrling em alemão, é o título de um poema homônimo de Goethe (1797). Uma narrativa breve, composta a partir de uma lenda popular, na qual persistia um certo aspecto moralizante. No texto de Goethe, um aprendiz, na ausência de seu mestre, o feiticeiro, atrapalha-se na tentativa de encantar um esfregão e assim fazer a limpeza,da qual o mestre tinha-lhe encarregado. O texto só ganhou o tom humorístico quando foi transposto para o poema sinfônico de Paul Dukas em 1897. Em 1940, foi adaptado pela Disney para o cinema como longa-metragem de animação, tendo como título unicamente a palavra Fantasia. No filme, Mickey Mouse interpreta o aprendiz atrapalhado e bufão, tornando a história mundialmente conhecida por seu aspecto lúdico e humorístico. Já Georges Méliès foi ilusionista e é considerado pioneiro na criação de efeitos especiais para o cinema. Suas fantasiosas e criativas elaborações imagéticas, resultado das estratégias de corte e montagem da película, além da trucagem da ação que ele deu o nome de stop-action, provocam encantamento e trazem a marca do R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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humor. Criou ainda várias outras técnicas cinematográficas, tais como jogo de perspectiva (que permite explorar a ilusão de ótica), múltiplas exposições ou filmagens em alta e baixa velocidade, que davam a seus filmes sempre um efeito cômico. Alguns desses recursos aparecem com frequência na composição de O brasileiro voador. Além disso, como bem percebe Lilian Victorino Félix de Lima (2009, p.15), em Dilemas do pós-modernismo na cultura de massa, alguns dos trabalhos do ilusionista francês, como A lua a um metro (1898), Viagem à lua (1902), A estátua animada (1903), Vinte mil léguas submarinas (1907), A conquista do pólo (1912), são filmes inspirados na literatura do visionário Júlio Verne e seus temas de exploração espacial e terrestre. Também as máquinas voadoras de SantosDumont, segundo seus biógrafos, são inspiradas nos livros do escritor francês. Outra figura bastante explorada no livro de Márcio Souza é a de “Max Linder”. Tal personagem, alter-ego cômico do ator Gabriel Leuvielle (que inspirou fortemente o trabalho cinematográfico de Charles Chaplin), é uma personagem burlesca, urbana, que usava ternos elegantes e chapéu. Além da semelhança imagética que pode ser estabelecida entre Max Linder e o Santos-Dumont apresentado pelo autor amazonense, há outro elemento de enunciação que aproxima as duas personagens. Como bem lembra Odair José Moreira da Silva (2004), em A manifestação de Cronos em 35 mm, Max Linder, assim como Charles Chaplin, Mack Sennett, Buster Keaton, entre outros, são personagens que usaram, desde os primórdios do cinema, o recurso do andamento acelerado das cenas, o que dá ainda mais comicidade à ação do ator. Dessa forma, certas situações triviais tornam-se engraçadas ou se transformam em burlescas dentro da narrativa em função do ritmo acelerado dado à imagem, assim como o faz o narrador-autor de O brasileiro voador, em vários momentos, ao representar Santos-Dumont com a mesma dinâmica. Ademais, Márcio Souza deixa latente, na analogia estabelecida entre os dois homens, o fato de o ator e o aviador terem, ainda que por diferentes motivações, cometido suicídio. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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A percepção do jogo paródico “Chapin fazia uma imitação perfeita do presidente da França. Quando ele começava, parodiando a solenidade de entrega da Legião de Honra a Petitsantôs, todos paravam para rir da pantomima” (BV, p. 199). O excerto citado, se entendido como metatexto, desvela o sentido de paródia adotado por Márcio Souza na composição de O brasileiro voador, qual seja, a deformação cômico-satírica das biografias oficiais de Santos-Dumont e do discurso histórico e verborrágico. Considerando que o título do capítulo é “Honrarias e desafios”, talvez o desafio do escritor fosse contar uma história livre da tradição encomiástica. Na deformação proposta por Márcio Souza, a semântica da palavra glória, uma das tópicas organizadoras das biografias tradicionais sobre Santos-Dumont, é invertida por meio da ironia e profanada por meio do deboche. Para tanto, busca a cumplicidade do leitor, quer por meio do riso, quer pela inversão irônica do contexto até então grandiloquente, o texto leva-o a ter uma postura crítica em relação à história oficial, ao herói e às glórias nacionais. Tal como pode ser encontrado no capítulo que encerra o livro, o gesto supersticioso de bater na madeira para afastar o mau agouro é, paradoxalmente, o índice da sublevação do leitor diante da imagem grandiosa e mítica que lhe foi imposta como espelho: Glória nacional Sabe o que acontece quando você diz o nome de Santos Dumont a bordo de um desses aviões de milhões de dólares que circulam pelo Brasil? A tripulação em peso isola batendo na madeira. Santos Dumont. Toc-toc-toc. (BV, p. 299).

A ironia, a caricatura, o burlesco e o deboche, nesse contexto, são as estratégias eficazes para instigar o posicionamento crítico do R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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leitor diante do texto. Mesmonos momentos em que explora a “inflação de sentimentos”, típica dos folhetins românticos brasileiros, o caráter paródico da obra acaba por transformá-la, no arremate do texto, em algo contrário ao quese dava a entender em princípio. Esses elementos que moldam o enunciado juntam-se à paródia de tal modo que se possa profanar o texto-objeto original e assim fazer uma retomada crítica do passado. Nesse sentido, a paródia passa a ter uma função reflexiva, pois dirige o olhar do leitor para as preocupações extratextuais. Antes, contudo, é preciso que o leitor reconheça o contexto paródico como tal.A professora da Universidade de Toronto, Linda Hutcheon (1989), em seu livro Uma teoria da paródia, faz a seguinte observação: Por outras palavras, além dos códigos artísticos vulgares, os leitores devem também reconhecer que o que estão a ler é uma paródia, até que ponto o é e de que tipo. Devem também, evidentemente, conhecer o texto ou as convenções que estão a ser parodiadas, para que a História seja lida como outra coisa que não qualquer peça de literatura — isto é, qualquer peça não paródica. (HUTCHEON, 1989, p. 118).

A partir da percepção do jogo paródico no texto, a acuidade do sujeito é aprimorada — o sentido da obra é ampliado a partir de uma leiturapor meio da qualse perceba a transformação do código original, que se abre assim para a construção de significados novos. Isso tudo exigiria um leitor atento que pudesse apreender ao menos parte das relações paródicas, das ironias e das inversões presentes no texto. Em uma situação ideal, o leitor reconheceria os textos que serviram de base, perceberia o diálogo entre eles, e a leitura se transformaria em um ato de múltipla decodificação. Tal observação encontra acolhida na proposição bakhtiniana citada por Beth Brait: Não há nem primeira palavra nem derradeira palavra. Os contextos do diálogo não têm limite. Estendem-se ao mais remoto passado e ao mais distante futuro. Até significados trazidos por diálogos provenientes R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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do mais longínquo passado jamais hão de ser apreendidos de uma vez por todas, pois eles serão sempre renovados em diálogo ulterior. Em qualquer momento presente do diálogo há grandes massas de significados esquecidos, mas estes serão de novo reinvocados em um dado momento no curso posterior do diálogo quando ele há de receber nova vida. Pois nada é absolutamente morto: todo significado terá algum dia o seu festiva de regresso ao lar. (BAKTHIN, apud BRAIT, 1998, p. 173).

Em O brasileiro voador, a partir dessa perspectiva dialógica, caberia a esseleitorideal identificar e estabelecer relações associativas entre os títulos (no referido romance, eles funcionam como índices que remetem sempre a outros signos) e o texto, conectar os fragmentos em função da sua compreensão da narrativa; concomitantemente, caberia também buscar correlações externas ao texto, seguir as pistas, pesquisar as fontes, para assim perceber as várias possibilidades semânticas do relato. Entretanto, nada obriga o indivíduo, no momento da leitura, a praticar tal exercício intelectual, a fazer cruzamento de signos, aparentemente incompatíveis muitas vezes, ou a recorrer a complicadas elaborações da teoria literária. Não se nega a possibilidade de uma leitura que se mantenha puramente nos domínios das sensações prazerosas. Mas esse prazer se tornaria ainda mais intenso, e com alguma relevância na formação intelectual desse sujeito, ao se fazer uma leitura mais profunda da narrativa. Nesse sentido, ter-se-ia a oportunidade de perseguir, como um detetive, os dados intratextuais e extratextuais que permitiriam ampliar a compreensão do que é lido.No caso de O brasileiro voador, principalmente, deveria buscar as inter-relações potenciais a partir dos títulos dos capítulos. Para evitar o proselitismo ou a linguagem empolada, que afastaria o leitor, nesse romance paródico-biográfico, como em boa parte de sua obra, Márcio Souza procura soluções simples, por exemplo, ao usar títulos que se referem a textos bastante conhecidos, tais como os “O gato de botas”, “Chapeuzinho vermelho”, “Uma pulga atrás da orelha”, “A maçã de Newton”, “Os santos do R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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calendário”, “Com que roupa”. Tais textos estabelecem relações com signos já bastante conhecidos. No entanto, aparecem intercalados outros signos menos conhecidos que convidam o sujeito a perseguir e decifrar pistas. Como o próprio escritor ressalta, em entrevista feita para a edição número dezenove de Os Cadernos de Literatura Brasileira (2005, p. 38), do Instituto Moreira Salles, o que reivindica é o direito de ser lido. O autor amazonense chega à seguinte constatação: “Eu sou um escritor dos leitores, insisto. Eu gosto dos leitores. Espero que os leitores leiam os meus livros. Isso não quer dizer que eu vá sucumbir e preparar uma literatura pasteurizada”. Portanto, não se deve esperar apenas facilidades na leitura de O brasileiro voador, pois o narrador-autor vai constantemente seduzir e trair o leitor. Ao se fazer uma leitura atenta, rastreando os títulos de O brasileiro voador, encontra-se várias referências eruditas, entre elas: “Minha formação” (título do livro de Joaquim Nabuco); “A máquina celibatária” (máquinas inventadas Raymond Roussel em Impressions d’Afrique; também pode ser associada à obra de Duchamp, “La Mariéemise a nu par sescélibataires”); “Os sertões” (título do livro de Euclides da Cunha); “Sturm unddrang” (movimento literário que predomina na primeira fase do Romantismo alemão e pode ser traduzido por “tempestade e ímpeto”); “Teoria das classes ociosas” (título do livro de ThorsteinVeblen); “A besta Humana” (título do livro de Émile Zola) Também há uma série de referências ao Movimento Modernista brasileiro, em títulos como: “Poesia PauBrasil” (que remete ao “Manifesto Pau-Brasil” de Oswald de Andrade); “Paulicéia desvairada” (livro de poesias de Mário de Andrade, publicado em 1922, o qual é marcado pela sátira social); “Rudepoema” (composição de Heitor Villa Lobo para piano); “No meio do caminho tinha uma pedra” (verso do poema “No meio do caminho” de Carlos Drummond de Andrade). Essas alusões atuam como índices que impulsionam o leitor a buscar informações extratextuais, paraassim entender melhor a relação dos títulos com o desenvolvimento da narrativa. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Por meio da intertextualidade paródica, é possível reconhecer ainda determinadas marcas da influência modernista na obra de Márcio Souza, sobretudo dos dois romances de Oswald de Andrade, Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte-Grande (1933). A relação com a obra oswaldiana é ampliada no capítulo “Feijoada de inverno”, no qual o leitor toma conhecimento de uma espécie de glutonaria, relacionada com o preparo e comilança de uma feijoada na casa da “Redentora” — denominação dada pelos brasileiros à Princesa Isabel.Nessa passagem, percebem-se ecos do ritual que inspirou o instigante “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade. Na comedela, toda ela preparada para se degustar alimentos típicos da culinária popular brasileira, fica bem marcado pelo narrador o descompasso do marido da Princesa, de origem francesa. Segundo tal versão, o Conde d’Eu tinha certa aversão aos hábitos e às iguarias brasileiras, consideradas por ele bárbaras e primitivas. O almoço é descrito como um conjunto de atos e práticas próprias de uma cerimônia comunitária, pouco lembra um evento promovido por aristocratas. No dia e na hora escolhidos, cada convidado contribui com algum ingrediente para o rito “bárbaro”. A Princesa “toca o sino” para dar início ao banquete tão pouco nobre, reforçando o aspecto de mistura e de embate entre elementos diferentes. Inverte-se a ordem do empréstimo cultural em pleno solo francês. Dona Isabel mistura a refeição, que está associada a suas raízes brasileiras, aos hábitos aristocráticos europeus: Dona Isabel tocou o sininho de prata e os criados entraram com a esperada iguaria. Era um sábado, dia de feijoada, ritual brasileiro que raras vezes a princesa podia cumprir, fosse pela raridade dos ingredientes autênticos ou pela sempre veemente oposição do senhor conde, homem de estômago frágil que se revoltava frente à barbárie de semelhante acepipe. A princesa, no entanto, fartava-se sempre que podia. Uma feijoada completa era como regressar ao mormaço de uma tarde carioca. Graças à gentileza do marquês de Sapucaí, o feijão preto era da última R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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safra, colhida em sua propriedade no norte do Rio. Uma recente visita da viscondessa de Garanhus fornecera as orelhinhas e os rabinhos de porco que o convidado olhava com gula. O paio era da fazenda do marquês de Abrantes, e a carne-seca, da fazenda do barão da Torre. A couve mineira, conservada em gelo, era um presente do arcebispo de Mariana. A sobremesa estava garantida, e sempre provocava a retirada intempestiva do conde: queijo com goiabada (...). (BV, p. 65).

Essa é uma cena simbólica que guarda em si as linhas de força que sustentam o que parece ser o principal objetivo de O brasileiro voador, qual seja, a confluência da desconstrução da figura do herói com a da narrativa. Santos-Dumont contribui para essa cerimônia carnavalizada, chamada pelo autor amazonense de “Feijoada de inverno”, trazendo queijo de Minas para ser deglutido como parte da sobremesa. Qual seria o papel do aviador nesse locus carnavalizado? Ao que parece, ele representa o herói decaído que se junta aos destronados: a princesa Isabel, exilada na França após a Proclamação da República do Brasil, e o conde D’Eu, duplamente desterrado — primeiro, em 1848, logo depois da vitória da segunda república francesa, obrigado a exilar-se com sua família em Londres e, posteriormente, com sua esposa Dona Isabel, banidos do Brasil após a Proclamação da República. Em O brasileiro voador, o mito do “pai da aviação”, orgulho nacional, transforma-se em herói destronado, assim como os monarcas exilados. Essa inversão se dá progressivamente, com o acúmulo de elementos da enunciação, os quais vão rebaixando a dimensão heroica do aviador. Nesse contexto, a carnavalização, como processo de inversão paródica, revela o lado oculto do que é, em termos bakhtinianos, a “mentira oficial” do brasileiro. Assim, por meio do que não parece sério, Márcio Souza procura denunciar uma certa manipulação que fica embutida em qualquer representação heroica. A ideologia que sustenta essa manipulação é desvelada pelo autor. Ao explorar as dissonâncias e a ambiguidade da figura heroica, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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por meio da paródia, acaba por abrir o discurso oficial para possíveis e necessárias interpelações. Dessa forma, o romance-paródicoafasta-se do discurso autoritário e monológicocaracterístico das biografias oficiais, nas quais o espaço textual, que deveria se abrir em função da pluralidade dos erros e acertos do homem, fecha-se em torno de uma perspectiva teleológica. O herói que se configura a partir desse olhar é unidimensional e infalível. Caminha junto, portanto, com o próprio formato do discurso que o enuncia, baseado em uma verdade monológica, absoluta, que se pretende incontestável. Abafam-se assim as vozes, perde-se a ambiguidade das múltiplas posições de enunciação por meio das quais o herói poderia ser visto ou se faria ouvir. O autor de O brasileiro voador, ao contrário dessa linha de enunciação, utiliza-se de uma constelação de citações e referências bibliográficas, abrindo assim variadas perspectivas semânticas para a decodificação da obra. Tal conjunto se configura como um catálogo de textos lidos pelo autor, que na obra se multiplica em combinações variadas e arranjos insuspeitos. A cada leitura, o conjunto de referência vai sendo ampliado, o que faz com que os leitores tenham a impressão de que a lista de citações do autoré sempre incompleta, visto que também há referências bibliográficas que ficam implícitas e outras tantas que nem mesmo o escritor percebe que está utilizando. Até onde ir, na recensão das leituras feitas pelo autor de um texto, é o que questiona Antoine Compagnon na seguinte passagem: Deve-se acrescentar os jornais, os romances policiais? Como distinguir aquilo que foi útil, aquilo que surgiu ao acaso? E por que não os filmes? E as conversas? E as velhas leituras, as da infância, que me fazem ainda sonhar? Uma bibliografia verídica, sincera e exaustiva é tão impossível quanto uma confissão verdadeira. Há na bibliografia um problema patente que leva o autor a precauções quando a qualifica de “sumária”, como se se desculpasse da falta de alguma coisa. Seria necessário interrompê-la, como à confissão de seus pecados, pela invocação de R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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uma circunstância atenuante para o esquecimento, e esquece-se aquilo que se quer. É por isso que o mais simples, para resolver o problema, e oferecer, mesmo assim, um repertório ao leitor potencial, é seduzi-lo com uma “lista de obras citadas”; e é nisso que consiste, muitas vezes, a bibliografia, declara ou não como tal. (COPAGNON, 1996, p. 76).

Em O brasileiro voador, as marcas de citações heterogêneas ajudam a compor uma estrutura narrativa aberta. Essa multiplicidade textual substitui a concepção de unicidade, colocando em seu lugar o intercâmbio, atestando a impossibilidade de pensar em fronteiras que demarquem gêneros puros. Para refazer a trajetória de SantosDumont, portanto, recuperando a polêmica em torno de seu processo de heroificação, Márcio Souza não reconstrói o mito, mas o homem com suas contradições, utilizando uma rede de textos que dialogam entre si. Nesse embate de muitas vozes, que se completam, respondendo ou não umas às outras, problematizando a figura do herói, “afirma-se o primado do intertextual sobre o textual”, ou seja, como observa a ensaísta Diana de Luz Passos Barros (2003, p.4) “a intertextualidade não é mais uma dimensão derivada, mas, ao contrário, a dimensão primeira de que o texto deriva”. Desse modo, se o herói perde a sua forma, se a sua desfiguração o deixa desconfortável no panteão nacional, permite, como compensação, revitalizar o gênero biográfico. Perde o herói, ganha o discurso em permanente construção e que, por isso mesmo, torna-se polissêmico, carregado de contradições e ambiguidades.

Referências BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch.Questões de literatura e de estética. São Paulo: HUCITEC, 1993. BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, José Luiz (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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BRAIT, B. “Mikhail Bakhtin: autor e personagem.”Revista USP, v. 39, n. 1, p. 158-173, 1998. COMPAGNON, Antoine. O trabalho de citação. Belo Horizonte, UFMG, 1996. FREIRE, José Alonso Torres. “Um diálogo explosivo: sátira, paródia e história”. Itinerário – Revista brasileira de literatura. Araraquara, v 22, 2004. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2790. GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2010. HUTCHEON, Linda. UmaTeoria da Paródia. São Paulo:Edições 70, 1989. LIMA, Lilian Victorino Félix de. Dilemas do pós-modernismo na cultura de massa. 2009. 233f.. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista. Marília. SILVA, Odair José Moreira. A manifestação de Cronos em 35mm: o tempo no cinema. 2004.231f.. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo. São Paulo. SOUZA, Márcio. O brasileiro voador: um romance mais-leve-que-o-ar. ed. 2. Rio de Janeiro: Record, 2009. ______. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1982. ______. “Entrevista”. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n.19, Instituto Moreira Salles. 2005.

Notas 2

Entrevista anexa à dissertação de mestrado O desafio biográfico ou como se escrever uma vida: a (des)construção da figura heroica de Santos-Dumont a partir de O brasileiro voador. Disponível em: . Acesso em 10/01/2014. 3 Entrevista anexa à dissertação de mestrado O desafio biográfico ou como se escrever uma vida: a (des)construção da figura heroica de Santos-Dumont a partir de O brasileiro voador. Disponível em: . Acesso em 10/01/2014. 4 Entrevista anexa à dissertação de mestrado O desafio biográfico ou como se escrever uma vida: a (des)construção da figura heroica de Santos-Dumont a partir de O brasileiro voador. Disponível R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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em: . Acesso em 10/01/2014. 5 SOUZA, Márcio. O brasileiro voador: um romance mais-leve-que-o-ar. ed. 2. Rio de Janeiro: Record, 2009. Todas as citações são dessa edição. Deste ponto em diante, será adotada a sigla BV nos excertos da obra, seguida apenas do número de página.

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IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR: UMA FICÇÃO TOPONÍMICA IRACEMA, BY JOSÉ DE ALENCAR: A TOPONIMIC FICTION Suene Honorato (UFT)1 RESUMO: O romance Iracema, de José de Alencar, publicado em 1865, apresenta como narrador um personagem que se diz compilador da tradição oral. Ao escrever o romance, sua proposta é recontar a lenda ouvida na infância, a qual explica o nome do lugar onde nasceu, o estado do Ceará. A etimologia de tal nome permitiu que o escritor somasse a fatos históricos referentes à fundação do primeiro povoado cearense a narrativa fictícia sobre Iracema. Ao criar uma lenda que explica um elemento da realidade, o narrador procura ressignificar fatos 1

Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas e professora de Língua Portuguesa do curso de Educação do Campo da Universidade Federal do Tocantins, CEP 77.900-000, Campus de Tocantinópolis-TO, [email protected] R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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históricos, valorizando-os enquanto constituintes da identidade nacional. A leitura do romance, cotejada com textos críticos do próprio Alencar, mostrará como a máscara assumida por esse personagem-narrador parece condizente com o projeto alencariano de consolidação da língua e literatura no Brasil, que pretendia a criação de novas formas de expressão, de novos tipos literários, em conformidade com a originalidade da natureza brasileira. PALAVRAS-CHAVE: José de Alencar; Iracema; Toponímia. ABSTRACT: The novel Iracema, by José de Alencar, originaly published in 1865, has a narrator who presents himself as a compiler of the oral tradition. In writing the novel, his proposal is to retell the tale heard in childhood, which explains the name of the his birthplace, the state of Ceará. The etymology of the name allowed the writer add historical facts concerning the founding of the first settlement of Ceará to the fictional narrative about Iracema. Creating a legend that explains an element of reality, the narrator seeks to reframe historical facts, regarding them as constituents of national identity. The reading of the novel, compared to Alencar’s own critical texts, show how the mask assumed by that character narrator seems consistent with his project of consolidation of language and literature in Brazil, which aimed at creating new forms of expression, new literary types, in accordance with the originality of Brazilian nature. KEYWORDS: José de Alencar; Iracema; Toponym.

Introdução Com Iracema, José da Alencar logrou inserir no universo linguístico brasileiro um dos epítetos mais conhecidos de nossa literatura. Cavalcanti Proença noticia a popularidade do livro, principalmente no Ceará, onde teria ocorrido, segundo Raquel de Queirós, o seguinte episódio em um programa de rádio: R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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[...] houve a pergunta: “De quem eram os olhos de ressaca?” Passaramse os minutos, timidamente ouvintes ensaiaram respostas, o prazo extinguiu-se e ninguém acertou. O locutor fez outra pergunta – Quem era a virgem dos lábios de mel? – Cito: “Quase o auditório veio abaixo no brado unânime da assistência: Iracema!” (PROENÇA, 1959, p. 112).

Proença registra ser conhecido não só o epíteto atribuído a Iracema, como outras passagens do romance, principalmente referentes aos lugares em que se passa a ação, e ainda algumas que terminaram por ser assimiladas à linguagem cotidiana, caso de “mais rápida que a ema selvagem” (ALENCAR, 1958, p. 238). A penetração popular alcançada pelo livro é certamente um desdobramento do projeto literário alencariano. Em resposta às críticas dirigidas ao romance por Pinheiro Chagas quanto à “mania de tornar o brasileiro uma língua diferente do velho português” (apud ALENCAR, 1958, p. 313), Alencar escreveu um pós-escrito2 à segunda edição de Iracema defendendo que a consolidação de uma língua identitária do Brasil devia se fazer por duas forças complementares: a “revolução irresistível e fatal” (ALENCAR, 1958, p. 314) que se opera na fala do povo e a ação dos escritores sobre esta, que “talham e pulem o grosseiro dialeto do vulgo” (ALENCAR, 1958, p. 313). A linguagem de Iracema, ao ser assimilada na oralidade pelos falantes brasileiros, atesta o intercâmbio entre essas duas forças que a ficção alencariana logrou realizar. Mais significativa é a penetração popular do romance se considerarmos que o argumento ficcional de Iracema está orientado para a criação da lenda que justifica o nome “Ceará”. Na carta ao dr. Jaguaribe, prólogo do romance, Alencar (1958, p. 233-234) afirma que “o livro é cearense. Foi imaginado aí [...]. Escrevi-o para ser lido lá [...]” e que se sentirá satisfeito se “for acolhido pelo bom cearense”. Algumas páginas à frente, o narrador anuncia o tema de seu “relato”: “uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares” (ALENCAR, 1958, p. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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238). Como afirmou Marisa Lajolo (2009, p. 91), em “José de Alencar: um criador de autores e leitores”, nas duas páginas que compõem o prólogo, Alencar se utiliza das “artimanhas que vêm funcionando há mais de um século e que entram em ação cada vez que um novo leitor abre este livrinho ...”. Isso porque, sob a máscara do dr. Jaguaribe – parente de Alencar – desenha-se a imagem do leitor ocidental característico do século XIX, que tem na leitura de uma boa história seu momento de descanso; ao passo que o narrador, por meio dessa carta, se coloca como aquele que escreve o que lhe contaram, procedimento que apaga a individualidade do leitor, transformado em público. Como se sabe, Iracema é uma índia filha da nação tabajara, habitante do interior, que se apaixona pelo português Martim, aliado da tribo inimiga, os pitiguaras, habitantes do litoral. A rivalidade entre as tribos impede que Iracema viva feliz ao lado de Martim em campo inimigo, e por isso decidem se estabelecer em outra localidade. A saudade da pátria lusitana, na nova vida, aflige Martim e o distancia de Iracema. Desolada diante da postura do amado, tão logo nasce o primeiro fruto de seu amor, Iracema morre sob o canto da jandaia, sua amiga inseparável. Assim se conclui o penúltimo capítulo: O camucim que recebeu o corpo de Iracema, embebido de resinas odoríferas, foi enterrado ao pé do coqueiro, à borda do rio. Martim quebrou um ramo de murta, a folha da tristeza, e deitou-o no jazigo de sua esposa. A jandaia pousada no olho da palmeira repetia tristemente: – Iracema! Desde então os guerreiros pitiguaras que passavam perto da cabana e ouviam ressoar a voz plangente da ave amiga, afastavam-se com a alma cheia de tristeza, do coqueiro onde cantava a jandaia. E foi assim que um dia veio a chamar-se Ceará o rio onde crescia o coqueiro, e os campos onde serpeja o rio (ALENCAR, 1958, p. 303 – grifo meu).

O capítulo final traz os desdobramentos do trágico romance entre Iracema e Martim que reafirmam o sentido da lenda. Martim R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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parte com o filho, “o primeiro cearense” (ALENCAR, 1958, p. 303), e volta alguns anos depois acompanhado de um sacerdote, para fundar ali a primeira comunidade cristã. Ao final, a necessidade de se relembrar, por meio do registro da escrita, a história de Iracema se explica: “A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra” (ALENCAR, 1958, p. 304). Daí a importância do narrador que decide conferir à narrativa oral o registro da escrita. A primeira nota do romance diz que “Ceará significa na língua indígena – canto de jandaia. [...] é nome composto de cemo – cantar forte, clamar, e ára – pequena arara ou periquito”, etimologia que Alencar (1958, p. 235) afirma como verdadeira por ser conforme às tradições e às regras da língua tupi. A narrativa origina-se, pois, do pressuposto etimológico, cuja refutação impingiria ao romance a pecha de inverossímil na correlação com os elementos externos que o fundamentam: sendo equívoco tal pressuposto, o canto da jandaia que celebra a memória de Iracema não poderia dar origem ao nome do lugar em que foi enterrada. Por isso, Alencar preocupouse não só em indicar a etimologia em nota, como em responder posteriormente à publicação do romance ao questionamento de suas fontes no texto “O nome Ceará”3: “A origem e significação da palavra Ceará são bem conhecidas e deviam estar fora de contestação” (ALENCAR, 1960, p. 1028). Alencar defende o filólogo Aires do Casal, em cujo estudo se fundamenta, aludindo ao prestígio de que o pesquisador gozava no meio científico, e detalha o procedimento de dedução dos radicais e composição do vocábulo por meio do “sistema de encapsulação” (ALENCAR, 1960, p. 1029) observado na língua tupi, sem omitir e afastar as possíveis contestações. Ressalta ainda a inequívoca presença das araras no Ceará, tanto pelas notícias dos cronistas e pela observação contemporânea a sua época, quanto pelos diversos nomes de lugares que fazem alguma referência ao pássaro. Interessa menos averiguar os erros e acertos na defesa de Alencar, do que a postura que o escritor assume neste e em outros R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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textos em relação ao comprometimento com a “verdade histórica” e com as tradições de seu país, que se alia à sua preocupação mais geral com a formação do caráter identitário da literatura brasileira, num momento que ele chama de “período especial e ambíguo da formação de uma nacionalidade” (ALENCAR, 1959, p. 699).

Indianismo como linha de força do nacionalismo literário Mas qual seria a ambiguidade apontada pelo próprio Alencar no que se refere à formação da identidade nacional? À primeira vista, a vigência do indianismo como tema literário que visava o fortalecimento do caráter identitário encerra uma conhecida contradição: ao pretender conferir à literatura um caráter nacionalista, os escritores românticos se utilizaram de modelos europeus para vestir o “selvagem”, eleito como símbolo nacional. Na opinião de Alfredo Bosi (1992, p. 179), em “Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar”, esse aspecto teria um caráter “pesadamente ideológico”, contribuindo para uma leitura conciliatória da relação colonizador/colonizado. Avaliando as representações do passado colonial brasileiro como uma “dialética de oposição”, em que de um lado estava a afirmação pelos brasileiros da sua nacionalidade e, de outro, a resistência dos portugueses em perder a exploração da colônia, Bosi considera que o índio devesse ter ocupado no imaginário pós-colonial o lugar de rebelde. A ficção alencariana é fortemente contrária à expectativa do crítico, pois considera que nela o índio e o português estão em íntima comunhão. Mais do que isso, o índio se sacrifica pelo colonizador, a exemplo de Peri, em O Guarani, e Iracema, que se anulam em função do amor pelo branco. Para Bosi, Gonçalves Dias teria sido mais bem sucedido nesse sentido, pois vê em sua poesia indianista o anúncio da dimensão de tragédia que o contato com o colonizador representou, enquanto que em Alencar dominaria a nota de atenuação e sublimação do conflito. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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É preciso, no entanto, lembrar que o indianismo brasileiro, como linha de força do nacionalismo literário, tem suas origens no momento em que o Brasil proclamava-se independente de Portugal. Esse marco político indicia o fortalecimento da consciência de diferenciação em relação à metrópole, que já havia sido esboçada pelos árcades da Inconfidência Mineira. Porém, no romantismo, ela assume o caráter nacionalista que não conhecera até então, tomado pela elite local como uma tarefa a se cumprir. A literatura tem grande papel nesse momento pois, como afirma Antonio Candido (2006) em “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, ela ocupou por muito tempo o lugar das ciências sociais, dada a incipiente formação e fraca divisão do trabalho intelectual que aqui vigorou até as raias do modernismo. O poeta Gonçalves de Magalhães, no “Ensaio sobre a história da literatura no Brasil”, publicado na revista Niterói em 1836, formaliza pela primeira vez o problema de se buscar a representação da natureza americana à distância dos modelos europeus. O texto assinala um momento de otimismo acerca da literatura nacional, reforçado, no plano político, pela perspectiva de assunção do Império por D. Pedro II, primeiro representante político nascido no Brasil. Assumindo em 1840, ano da antecipação de sua maioridade, o jovem monarca vai influir na vida cultural brasileira, estimulando o desenvolvimento artístico e participando ativamente do debate sobre a literatura nacional. Embora o índio não apareça no ensaio de Magalhães senão como inspirador da natureza brasileira, será transformado cada vez mais em carro-chefe do nosso nacionalismo literário. Já na publicação de estreia de Gonçalves Dias, Primeiros cantos (1846), o índio figura em alguns poemas como tema, e a partir daí será cada vez mais afirmado; em 1857, quando publica o épico Os timbiras, o indianismo já se havia estabelecido. Magalhães dera a público no ano anterior sua anunciada A confederação dos tamoios, obra patrocinada por D. Pedro II no intuito de inscrever nossa literatura na tradição das grandes epopeias de fundação. Na Europa, o romantismo havia empreendido o resgate de símbolos nacionais dentro de sua própria tradição R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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literária, como ocorreu com a Eneida, de Virgílio (século I a. C.), na Itália, e Os lusíadas (1572), de Luís de Camões, em Portugal. Se no caso italiano o ancestral escolhido por Virgílio foi o herói grego Eneias, que teria fundado Roma depois da ruína da Troia homérica, e no caso português, um personagem histórico (Vasco da Gama) que o poema torna favorecido pelo fado e, portanto, capaz até mesmo de superar a dignidade dos herois gregos; no Brasil, a inexistência de uma tradição literária propiciou a eleição do índio como nosso ancestral, para o que foi necessário vesti-lo com a idealização dos grandes herois a fim de que se tornasse um tema literário. Dessa forma, o elemento diferenciador em relação à tradição europeia não era o heroísmo atribuído aos personagens, mas o fato de o índio e a natureza brasileira se nivelarem aos temas da tradição literária europeia. Aí está, talvez, a ambiguidade que Alencar reconhecera naquele momento: para se distanciar do modelo europeu, era necessário recorrer a ele. Nas obras de Gonçalves Dias, o índio aparecerá em feição despersonalizada. A voz que lhe atribuiu ainda carrega alguma impregnação neoclássica e sua imagem foi enobrecida pelo ideal cavalheiresco. De todo modo, Gonçalves Dias consegue criar uma nova convenção poética, pois aos olhos do leitor habituado à tradição europeia o indianismo termina por ser significativo enquanto elemento surpresa. Antonio Candido (2000) ressalta a importância de reler o indianismo de Gonçalves Dias por esse prisma, pois a exigência de tratamento realista ou precisão etnográfica ao indianismo literário implicaria reduzir seu valor estético. A poeticidade na representação do índio ganha força em I-Juca Pirama, onde Candido (2000, p. 75) assinala a “suspensão da convenção heroica”, pois a narrativa sobre o conflito do personagem marcado para a morte quebra a expectativa de valentia, colocada no limite entre o bem individual (cuidar do pai) e o bem comum (morrer em acordo com os padrões cavalheirescos de honra). Paulo Franchetti (2007), em artigo dedicado ao I-Juca Pirama, coloca em cena outro elemento importante para a compreensão do R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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indianismo: a questão política. Como emblema da oposição do império brasileiro ao reino português, o indianismo cumpria função diferenciadora; porém, era preciso evitar que ele fosse identificado às várias rebeliões populares que ocorreram durante o período da Regência (1831-1840), em que se associavam negros, índios e mestiços. Assim, a estratégia literária adotada foi a de, ao eleger o índio como tema poético por excelência, apagá-lo da história do presente. Note-se que tanto Gonçalves de Magalhães quanto José de Alencar tratam o índio, em textos críticos e literários, como raça extinta. A cena montada para o sacrifício em I-Juca Pirama, embora colocada num passado mítico anterior ao contato com o português, trata da extinção de uma raça, cuja memória será perpetuada pelo canto de seus feitos, sendo o guerreiro que morrerá o último representante de sua tribo. Dessa maneira, o indianismo em Gonçalves Dias responde a várias demandas: retrata a cor local reivindicada pelos românticos; atende à preocupação política do Segundo Império; abre novas possibilidades estéticas para a literatura brasileira; catalisa o anseio de nacionalismo pósIndependência. José de Alencar deu outro tom ao indianismo, transfigurando a despersonalização do índio gonçalviano em individualismo. De tema, passa a personagem nos romances O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Isso implica a elaboração de uma linguagem que parecesse natural na voz do índio. Tanto a Gonçalves Dias quanto a Magalhães, Alencar criticará a ausência de tal naturalidade. A publicação d’A Confederação dos Tamoios foi motivo de uma polêmica literária que Alencar, sob o pseudônimo de Ig., travou nos jornais com os intelectuais da época, incluído o próprio D. Pedro II, que tomou a defesa de Magalhães. Além de considerar artificial a representação do índio e da cor local, Alencar defendeu que a epopeia não era um gênero propício para a efetivação do projeto de consolidação da literatura nacional; a ela, preferiu o romance, embora depois tenha recuado no radicalismo de sua posição e tentando escrever uma epopeia que deixou inconclusa, Os filhos de Tupã. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Na recepção crítica do indianismo como linha de força do nacionalismo literário, há posturas bastante divergentes. É certo que já no modernismo a representação do índio num Macunaíma distancia-se da idealização romântica, embora, por outro lado, tenha dele haurido a abertura das possibilidades da pesquisa linguística e conciliado a ambiguidade da posição romântica pelo princípio antropófago. É essa a feição que Haroldo de Campos (2010) atualiza em “Iracema: uma arqueografia de vanguarda”, sublinhando a liberdade linguística com que Alencar fugiu ao padrão lusitanizante do português, recorrendo à língua tupi como elemento constituinte de sua linguagem literária, por meio de uma “operação tradutora”, que promove o estranhamento da língua dominante; com isso cria a utopia de uma língua adâmica, cuja extravagância evidencia o processo de apagamento a ela imposto pela língua do colonizador. Ressalta-se, assim, uma visada conflituosa da relação entre colonizador/colonizado. Semelhante é o caminho de leitura traçado por Paulo Franchetti (2007), em “Indianismo romântico revisitado: Iracema ou a poética da etimologia”, para quem a operação arqueológica de recuperação da etimologia tupi importa não pelo valor documental (nem sempre verificável), mas pelo caráter inventivo. Em Alencar, a necessidade de apagamento histórico do índio se dá como reinvenção de seus modos de dizer frente à cultura europeia. Daí seu caráter “radical e mesmo violento” (FRANCHETTI, 2007, p. 76). Além disso, Franchetti assinala pontos de contato entre o procedimento linguístico de Alencar e a “palavra-valise” de Lewis Carrol: enquanto o autor inglês busca criar uma nova língua a partir da aglutinação de elementos provenientes de línguas diversas, Alencar empreende a descoberta de uma língua-outra na decifração dos elementos comprimidos na língua tupi. Na contramão da leitura de Bosi, também Lúcia Helena (2006), em A solidão tropical, avalia como nada conciliatória a interação entre o mal-estar da colonização e o resgate da memória do índio na tarefa que Alencar tomou para si. A autora parte da solidão pressuposta R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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pelo gênero romance para chegar à tematização da solidão dentro dos romances alencarianos como potencializadora de questionamentos: Iracema e Martim, por motivos diferentes, sentem sua solidão como inadequação entre interior e exterior; Moacir, fruto da união amorosa entre índio e branco, é marcado pela própria mãe em seu batismo com o índice de uma crise identitária; n’O Guarani, o final em que Peri e Ceci flutuam sobre uma palmeira é uma “figuração do dilúvio de incertezas” que representa o futuro da nação à luz de seu passado histórico. Nesses meandros, Lúcia Helena reconhece a astúcia do narrador alencariano em figurar criticamente as fraturas da composição identitária brasileira. Dessas leituras, se percebe que, quando o critério de avaliação do nacionalismo nas obras de Gonçalves Dias e José de Alencar recai sobre a posição político-ideológica, é possível considerá-los tanto a serviço quanto contrários ao discurso do colonizador. Bosi vê Gonçalves Dias como alguém que, ao contrário de Alencar, vivenciou de perto as revoltas populares no Maranhão, e por isso retrataria a situação índio/colonizador de maneira problematizada, na dimensão trágica do apagamento do primeiro; ao passo que Franchetti, ao analisar as modificações feitas por Gonçalves Dias nas reedições de suas obras, observa a tentativa do poeta de responder ao projeto político do Segundo Império. Quando se trata de Alencar, a leitura de Bosi identifica amenização do conflito, enquanto a de Lúcia Helena revela o tratamento crítico do autor quanto ao estabelecimento da identidade brasileira. Já em relação às potencialidades literárias das obras de ambos os autores, a recepção crítica destaca a criação de novos padrões estéticos que influíram na tradição literária brasileira.

O projeto literário alencariano Iracema é parte de um projeto de escrita, exposto no prefácio a Sonhos d’ouro (1872), denominado “Benção paterna”, que objetivava R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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representar três fases da literatura nacional: a primitiva, em que se incluem as lendas indígenas; a histórica, que trata do contato entre o colonizador e o colonizado; e outra que começa com a independência política e pretende alcançar a independência literária. Nessas três categorias, Alencar inclui toda a sua obra produzida até o momento. E, embora a inserção de Iracema na primeira delas seja equívoca por tratar do segundo momento referido em suas classificações, como nota Franchetti (2007, p. 77-78), percebe-se dessa categorização a preocupação do escritor com o tratamento da “cor local”, que justifica a composição até mesmo de seus romances urbanos, pois neles se conhece “a fisionomia da sociedade fluminense” (ALENCAR, 1959, p. 699). Em Iracema, o comprometimento com a “verdade histórica” assume a feição de um posicionamento eletivo ante os fatos de que dão notícia os cronistas, exposto depois do prólogo. Embora um povoado tenha sido fundado no Ceará em 1603 por Pêro Coelho, o “argumento histórico” do romance é que Martim Soares Moreno deve ser celebrado como seu verdadeiro fundador: “O Ceará deve honrar sua memória como a de um varão prestante e seu verdadeiro fundador, pois que o primeiro povoado à foz do rio Jaguaribe não passou de uma tentativa frustrada” (ALENCAR, 1958, p. 235), tendo sido arruinado em decorrência do desrespeito aos índios, que por isso entraram em guerra com os portugueses e obrigaram Pêro Coelho a se retirar para a Paraíba. Alencar ainda informa sobre a amizade entre Martim, Poti (batizado no cristianismo Antônio Felipe Camarão) e Jacaúna, e a rivalidade destes com Mel Redondo (Irapuã), personagens históricos que compõem seu romance. Em “Como e porque sou romancista” (1873), Alencar conta que em 1848, tendo voltado à terra natal depois de uma estadia em São Paulo, onde frequentou o curso de Direito, voltou a se interessar pela escrita de romances. As reminiscências do Ceará lhe despertaram a vontade de buscar um tema nacional que lhe serviria à composição: R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com o primeiro broto do Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas dos alfarrábios de notícias coloniais, buscava com sofreguidão um tema para o meu romance; ou pelo menos um protagonista, uma cena e uma época (ALENCAR, 1959, p. 143).

Porém, Alencar considerava que a existência do argumento histórico não bastava à confecção de uma obra representativa da nossa nacionalidade, como atestam as “Cartas sobre A confederação dos tamoios”. O poema épico de Magalhães recebeu duras críticas do futuro autor de Iracema em relação à forma de composição e ao tratamento do assunto. A pretensão épica do poema, que busca alçar um fato histórico à grandeza capaz de orgulhar os filhos de sua nação, não teria sido realizada, pois o autor não soubera apresentar poeticamente os heróis e as belezas de sua pátria: Se o poeta que intenta escrever uma epopeia não se sente com forças de levar ao cabo essa obra difícil; se não tem bastante imaginação para fazer reviver aquilo que já não existe, deve antes deixar dormir no esquecimento os fastos de sua pátria, do que expô-los à indiferença do presente (ALENCAR, 1960, p. 891).

A imaginação, manifestada tanto no plano dos fatos narrados quanto no plano da elaboração linguística, reaviva os episódios históricos que só assim devem ser apresentados ao leitor. Em Iracema, embora se trate da composição de uma lenda, e não de uma epopeia, a fantasia criativa do autor soma ao “argumento histórico” elementos que concorrem para singularizá-los, e por isso tornam-se dignos de interesse para um romance que, como vimos, integra um projeto mais amplo de afirmação da literatura nacional. É o procedimento inventivo que, para Alencar, deve estar na base da confecção de uma obra literária que se paute nos elementos caracteristicamente brasileiros. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Iracema e a invenção da heroína indígena4 Iracema é, notadamente, a personagem que mais representa o plano imaginativo no romance: em torno dela se concentram as personagens históricas; em função dela, a narrativa se desenrola e cumpre seu objetivo. Iracema confere à trama o pathos que a engrandece. Por isso, ela é apresentada como heroína cujos valores a cingem de uma aura incorruptível, cuja beleza se sobrepõe à de todas as outras mulheres de sua raça e da raça dos conquistadores. Em relação à noiva que o espera em solo português, diz Martim a Iracema: “Ela não é mais doce do que Iracema, a virgem dos lábios de mel; nem mais formosa!” (ALENCAR, 1958, p. 247). Além disso, Iracema guarda os segredos da bebida de Tupã, espécie de licor alucinatório que os guerreiros indígenas ingerem em situações rituais; esse conhecimento a impede de se entregar aos homens. O Pajé adverte Martim: “Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela morrerá [...]” (ALENCAR, 1958, p. 257). Iracema sabe que, caso ceda ao amor carnal, o destino lhe abaterá a vida; e, se o faz, não é por deixar-se corromper, mas pela grandeza de seu amor, medida pelo contraste com a punição mortal. Nas “Cartas sobre A confederação dos tamoios”, em dois momentos Alencar se dedica ao tratamento da figura feminina, carente de dignidade e beleza. Na terceira delas, diz que “[...] a heroína do poema do Sr. Magalhães é uma mulher como qualquer outra; as virgens índias do seu livro podem sair dele e figurar em um romance árabe, chinês, ou europeu [...]” e que o autor não se deixou inspirar pelas belezas de sua terra para criar um tipo novo que a representasse (ALENCAR, 1960, p. 878). Na oitava carta, volta a insistir na “[...] falta que se nota no poema da criação de uma mulher, e [n]a nenhuma originalidade e invenção que o autor revelou nessa imagem poética, que representa uma das mais belas faces da vida humana” (ALENCAR, 1960, p. 909). Para fundamentar sua crítica, enumera os tipos femininos criados por Homero, Virgílio, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Dante, Shakespeare, Camões, Tasso, Milton, Klopstock, Macpherson, Chateaubriand, além de citar Chriemhild, personagem dos Nibelungen, e as mulheres que figuram na Bíblia. Em todos os casos, percebe não só a singularização dos tipos femininos, como a influência fundamental que elas exercem na trama. Machado de Assis (apud ALENCAR, 1958, p. 227), em “Nota preliminar” ao romance, ressalta o sucesso alcançado por Alencar na criação de Iracema como “figura bela e poética”, característica manifestada tanto física quanto moralmente. Porém, não entende que a personagem dê ensejo a uma narrativa de feição épica, pois por mais que soe a pocema de guerra dos índios “nem por isso o livro deixa de ser exclusivamente votado à história tocante de uma virgem indiana, dos seus amores, e dos seus infortúnios. [...] limita-se a falar ao sentimento, vê-se que não pretende sair fora do coração” (MACHADO apud ALENCAR, 1958, p. 226 – grifo meu). De fato, o enredo de Iracema não se centra nas guerras entre tribos indígenas que, segundo Machado, seriam motivo para se compor um poema épico. Mas é preciso acrescentar que a singularidade da “virgem dos lábios de mel” volta-se para o plano coletivo a que a lenda recontada se dirige. Assim, é essencial à narrativa que Iracema seja apresentada como bela, íntegra de caráter, pura em seus afetos e consciente de seu destino; isto é, que cause estranhamento ao ser cotejada com quaisquer parâmetros reais. A abnegação diante da morte em prol do amor ao português Martim confere ao fruto desse amor uma grandiosidade que marcará a união do índio com o branco. Iracema o nomeia Moacir: “Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento” (ALENCAR, 1958, p. 297) e em nota se acrescenta: “de moacy – dor, e ira – desinência que significa – saído de”. Como já ressaltou Lúcia Helena (2006), em Moacir a união de raças é representada como processo cultural conflituoso que tende à extinção do índio, cuja memória nele e em seus descendentes permanecerá em função do nome que a mãe lhe atribuiu. O velho Batuireté, avô de Poti, assim recebe Martim: “Tupã quis que estes olhos vissem, antes de se R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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apagarem, o gavião branco junto da narceja” (ALENCAR, 1958, p. 283), paralelo que indica, segundo a nota a ele aposta, “a destruição de sua raça pela branca”. Se em Iracema o caráter imaginativo se acentua, este não está, porém, ausente nos personagens históricos. Os índios são, ali, figuras heroicas: possuem bravura, força e respeito às suas tradições. Tanto quanto Iracema, Poti encerra as virtudes mais sublimes de sua raça. Utilizando-se das estratégias que aprendeu com a natureza, por exemplo, Poti se insere sozinho no campo dos inimigos para salvar Martim, que ali havia sido recebido como hóspede na cabana de Araquém, pai de Iracema, mas despertara a ira de Irapuã, guerreiro tabajara, quando este percebeu a inclinação que a virgem indiana devotava ao português. Poti imita o canto da gaivota, grito de guerra da nação pitiguara, e se faz anunciar. A virgem estremeceu por seus irmãos. A fama do bravo Poti, irmão de Jacaúna, subiu das ribeiras do mar ao cimo da Ibiapaba: rara é a cabana onde já não rugiu contra ele o grito da vingança, porque cada golpe do válido tacape deitou um guerreiro tabajara em seu camucim (ALENCAR, 1958, p. 260).

Esse “índio transfigurado” (PROENÇA, 1959, p. 52) demonstra a postura alencariana em relação ao comprometimento com a literatura nacional. Para Cavalcanti Proença (1959, p. 52), “assim era preciso, para que o ancestral escolhido não ficasse a dever aos portugueses, proibidos, proscritos, mas heroicos e admirados em sua glória cavalheiresca”. Além da necessidade de se contrapor aos modelos portugueses dos quais é tributário, Alencar reafirma a concepção de que o passado de sua nação deva ser recontado pela literatura com o fim engrandecê-lo. O comentário sobre a forma como o índio é apresentado n’O Guarani, que também se conforma a Iracema, explicita sua posição: “N’O Guarani o selvagem é um ideal, que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça” (ALENCAR, 1959, p. 149). Trata-se, pois, de uma idealização do passado histórico relatado pelos cronistas que se justifica na elevação do índio para que este seja o elemento dignificante em nossas origens. É importante notar que em Iracema o ideal cavalheiresco do índio não se estende a todos os personagens. Irapuã funciona como contraponto a Poti e Iracema: seu desejo de vingança contra Martim é injustificado, pois o português havia sido trazido por Tupã, e merecia, portanto, todas as honras da hospitalidade. Na qualidade de hóspede de Araquém, Martim não devia sofrer nenhuma punição por ser aliado dos pitiguaras. Isso demonstra o desrespeito de Irapuã aos preceitos indígenas, o que o torna “vil e indigno”, suscetível aos estímulos mais torpes da paixão. Mesmo Martim, se não possui o heroísmo com que Alencar caracteriza a raça indígena5, não se degrada como Irapuã: é valente, forte, defende seus aliados, e ambientou-se entre os índios, sendo capaz de compreender as regras de sua cultura, sua língua e seu modo de falar. Por isso, a acusação contra ele dirigida por Irapuã de ingratidão à hospitalidade faz-se injusta. Se o português rejeita as mulheres da tribo – presente oferecido ao hóspede – em nome do amor a Iracema, conhece o impedimento que a levaria à morte e por isso se resigna a sonhar com a virgem indiana. Porém, Iracema entrega-se a Martim durante o sonho proporcionado pela bebida de Tupã, e só lhe revela o fato quando o português está prestes a deixar os campos tabajaras. Ela se responsabiliza por seu destino, e essa liberdade é reconhecida pelos seus, como demonstra a visita cordial que Caubi, seu irmão, lhe faz depois de ela ter abandonado a cabana de Araquém.

Iracema e a invenção de uma linguagem O trabalho com a linguagem é outra face da fantasia criativa de Alencar em Iracema. Os valores épicos atribuídos aos personagens R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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revestem-se de uma linguagem poética que se processa principalmente pela associação com a natureza, como ocorre na conhecida apresentação de Iracema: “[...] tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como o seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado” (ALENCAR, 1958, p. 238). As comparações com os elementos da natureza não servem apenas à descrição de personagens ou à fala dos mesmos, mas associam-se ao modo de pensar do narrador, investido do poder de representar a tradição oral, que assim conta a passagem do tempo: “O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará [...]” (ALENCAR, 1958, p. 303). Esse procedimento, fundado na matriz etimológica das palavras indígenas, a que Franchetti (2007) denomina “poética da etimologia”, associa o significante ao dado concreto a que se refere, como se supõe ter ocorrido nas primeiras manifestações linguísticas: [...] Alencar constrói a utopia de uma língua inteiramente motivada, concreta, na qual os termos abstratos eram sempre metáforas à espera de decifração. Constrói a utopia de uma língua adâmica, portanto, frente à qual mais vale a capacidade poética de interpretação do sentido do que os documentos linguísticos existentes (FRANCHETTI, 2007, p. 83).

Como ocorre com o nome que motiva a construção do enredo, Alencar busca na etimologia tupi a maior proximidade possível entre significante e significado. A tradução para o português dos componentes que constituem o nome se desdobra em relação a outros elementos. Franchetti (2007, p. 80-81) cita como exemplo desse procedimento a composição do nome de Iracema, que, além de ser anagrama de “América”, é da seguinte maneira explicado em nota por Alencar: “Em guarani significa lábios de mel – de ira, mel e tembe – lábios. Tembe na composição altera-se em ceme, como na palavra ceme iba” (ALENCAR, 1958, p. 237). O nome de Iracema se contrapõe ao nome do chefe tabajara Mel Redondo; comparece R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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também na fala que Iracema dirige ao filho: “Tua mãe também, filho de minha angústia, não beberá em teus lábios o mel de teu sorriso” (ALENCAR, 1958, p. 298), dentre outras referências ao longo do romance. Na quarta das “Cartas sobre A confederação dos tamoios”, Alencar combate a crítica ao uso da língua indígena como fonte literária. Entende que haja um excesso por parte de escritores que apenas buscam preencher o texto com vocabulários oriundos da língua tupi, mas não admite que daí seja derivado um julgamento valorativo, pois os críticos [...] que assim procedem têm uma ideia que não posso admitir; dizem que as nossas raças primitivas eram raças decaídas, que não tinham poesia nem tradições; que as línguas que falavam eram bárbaras e faltas de imagens, que os termos indígenas são mal soantes e pouco poéticos; e concluem daqui que devemos ver a natureza do Brasil com os olhos do europeu, exprimi-la com a frase do homem civilizado, e senti-la como o indivíduo que vive no doce confortable (ALENCAR, 1960, p. 885).

Ressoam aqui, como mostra Cavalcanti Proença (1959, p. 4850), as ideias de Montaigne a respeito dos índios, considerados bárbaros pelo europeu que não conseguia medi-lo por um critério que não fosse o seu próprio. Descontado o “excesso de boa fé” (PROENÇA, 1959, p. 53), a citação nos mostra a necessidade não de “combater a cousa em si” (ALENCAR, 1960, p. 885), mas de fazer do uso do vocabulário indígena uma possibilidade de apresentação da literatura nacional. Ao se apropriar do vocabulário tupi, Alencar lhe atribui a poeticidade da palavra virgem, que precisa se haver com o dado concreto imediato, sem as camadas de pó que o desgaste do uso lhe confere. Com isso, pretende reabilitar a imagem do índio como ancestral, mas não identificar-se com ele: “o nacional resulta da imitação do selvagem, da apropriação de sua mitologia, vocabulário e formas de dizer pelo homem civilizado, por meio da imaginação arqueológica e da pesquisa linguística” (FRANCHETTI, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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2007, p. 77). O caráter de imitação é claramente inventivo, no seio do próprio processo de reconstituição desse vocabulário e na simulação de um narrador despido da máscara de homem civilizado, que o prólogo do romance desvela.

A invenção de uma lenda É, pois, esse mesmo caráter inventivo que, partindo da etimologia do nome Ceará, permite ao narrador recontar a lenda que ouviu nos tempos de criança. Esse distanciamento, explicitado no primeiro capítulo, situa a narrativa em tempos imemoriais, de que dá notícia a tradição oral, e é reafirmado no penúltimo: “E foi assim que um dia veio a chamar-se Ceará o rio onde crescia o coqueiro, e os campos onde serpeja o rio” (ALENCAR, 1958, p. 303). Porém, o “argumento histórico” concentra a narrativa nos primeiros anos do século XVII e apresenta os personagens históricos que nela tomam parte. Iracema não está aí incluída e não integra o elenco de personagens da cultura popular que figuram no Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo (1979). Assim, a máscara do narrador assume ainda este outro aspecto: apresenta-se como uma espécie de compilador da tradição, que cria uma lenda – se isto não for uma contradição em termos – em torno do nome de seu estado natal. Em Iracema, a estrutura da lenda permite que o narrador ofereça uma explicação plausível para um elemento da realidade imediata em que os dados históricos se aliam à invenção, atribuída à tradição oral. Com isso, o narrador se coloca como porta-voz da coletividade e reafirma seu comprometimento com o projeto de consolidação da literatura nacional. No século XIX, o romance era ainda considerado, em comparação à epopeia, um gênero menor. Em A fonte subterrânea, Martins (2005, p. 81) observa a pouca atenção dada ao gênero nos tratados de retórica, que o vinculavam ao caráter pedagógico: “O romance surge, assim, como adorno ou roupagem de virtudes e R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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ensinamentos a serem transmitidos a um leitor que, de outra forma, poderia recusá-los devido à sua insipidez”. Embora não utilize a mesma terminologia que os retóricos, segundo Martins (2005) Alencar teria sido influenciado por suas ideias. Em alguns de seus escritos, nota-se a preocupação em agradar ao público, em proporcionar-lhes momentos amenos, como se lê no prólogo de Iracema: “Percorra suas páginas para desenfastiar o espírito das cousas graves que o trazem ocupado” (ALENCAR, 1958, p. 233), embora anuncie depois que o livro “é, pois, um ensaio ou antes uma mostra. Verá realizadas nele minhas ideias a respeito da literatura nacional” (ALENCAR, 1958, p. 307), com o que assinala seu caráter instrutivo. E parece ainda afeito à ideia que se insinuou em seu espírito desde cedo em relação à composição de uma epopeia nacional. Na carta ao dr. Jaguaribe posposta ao desfecho da narrativa, afirma: “Se o público ledor gostar dessa forma literária, que me parece ter algum atrativo, então se fará um esforço para levar ao cabo o começado poema [Os filhos de Tupã], embora o verso tenha perdido muito de seu primitivo encanto” (ALENCAR, 1958, p. 307). Sabe-se que Alencar não dedicou um estudo sistemático ao romance, como fez em relação a outros gêneros literários, causa que Martins (2005, p. 161-163) atribui menos ao fato de se tratar de um gênero novo e multiforme, do que à necessidade de Alencar em responder as críticas que lhe eram dirigidas. De um ou de outro modo, o romance lhe parecia mais condizente com as necessidades de seu tempo, como afirma em “Benção paterna”, onde aconselha ao livro defender-se das críticas em relação ao pouco peso do volume com o argumento de que era “filho deste século enxacoco e mazorral, que tudo aferventa a vapor, seja poesia, seja arte, ou ciência” (ALENCAR, 1959, p. 694). Além disso, e talvez mais importante, o romancista considerava que a almejada independência literária devia passar pela elaboração de novas formas de expressão: “A forma com que Homero cantou os gregos não serve para cantar os índios; o verso que disse as desgraças de Troia, e os combates mitológicos R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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não pode exprimir as tristes endechas do Guanabara, e as tradições dos selvagens da América” (ALENCAR, 1960, p. 875-876). As duas últimas considerações, se cotejadas com o romance Iracema, parecem mais significativas da postura alencariana. Nele, a possibilidade de se criar uma nova forma está na apropriação da estrutura da lenda como medida de ressignificação dos fatos históricos por meio da linguagem poética. A fusão de gêneros aí identificada se conforma melhor à fluidez romanesca do que aos elementos que estruturam a epopeia, para os quais a observação dos modelos não parecia a Alencar permitir muitas manipulações, como fica demonstrado nas exigências que faz ao poema de Magalhães. Além disso, a popularidade alcançada por seu “poema em prosa” (MACHADO apud ALENCAR, 1958, p. 226) reitera o desprestígio do verso, embora não o da poesia, que muita gente sabe de cor: “Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba” (ALENCAR, 1958, p. 237).

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Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 127-145. CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: ______. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 117-145. ______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 1979. CASTELLO, José Aderaldo. A polêmica sobre “A confederação dos tamoios”. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1953. FRANCHETTI, Paulo. O indianismo romântico revisitado: Iracema ou a poética da etimologia. In: ____. Estudos de literatura brasileira e portuguesa. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 75-86. ______. I-Juca Pirama. In:____. Estudos de literatura brasileira e portuguesa. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 51-74. HELENA, Lúcia. A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. LAJOLO, Marisa. José de Alencar: criador de autores e leitores. Rev. de Letras, Fortaleza, vol. 1/n. 29(2), p. 89-91, 2009. MACHADO de Assis. Nota preliminar. In: ALENCAR, José de. Obra completa. Vol. 3. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958, p. 226-230. MARTINS, Eduardo Vieira. A fonte subterrânea: José de Alencar e a retórica oitocentista. Londrina: Eduel, 2005. PROENÇA, M. Cavalcanti. José de Alencar na literatura brasileira. In: ALENCAR, José de. Obra completa. Vol. 1. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1959, p. 13-115.

Notas 2

Em “O indianismo romântico revisitado: Iracema ou a poética da etimologia”, Paulo Franchetti (2007, p. 75) ressalta a importância de se considerar os textos apostos à narrativa – cartas e notas – como parte do romance: “[...] a novela só ganha pleno sentido histórico e literário, quando lida em conjunto com a carta e com a seção de notas que a segue imediatamente e que também é envolvida pela carta ao dr. Jaguaribe”. Para esta análise, considerarei ainda o texto “Argumento histórico”, a carta posposta à narrativa e o pós-escrito à segunda edição. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Alencar muito se ocupou na defesa às críticas que sua obra frequentemente suscitava. Abstenhome de situá-las, pois as polêmicas literárias de Alencar são por demais extensas e já renderam bom trabalho aos especialistas. Priorizarei aqui os desdobramentos que as considerações do romancista adquirem se comparadas ao romance Iracema, em detrimento das críticas que lhe foram feitas. 4 Cf. palestra realizada por Paulo Franchetti no Espaço Cultural CPFL, intitulada “Iracema, a construção da heroína indígena”, em que o crítico analisa os procedimentos formais utilizados por Alencar na feitura do romance. 5 Algumas diferenças entre Poti e Martim denotam esse paralelo: embora não deseje, Martim em diversos episódios recebe a proteção de Iracema, que por ser mulher Poti considera fraca; Martim se deixa comover pelo lamento da esposa, enquanto Poti entende que o verdadeiro guerreiro não se rende às paixões; apesar de Martim ter assimilado a linguagem e os costumes indígenas, não tem a mesma destreza que Poti ao lidar com a natureza; dentre outras.

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VIAGEM E EXPLORAÇÃO COLONIALISTA NA UTOPIA INGLESA CLÁSSICA VOYAGE AND COLONIALIST EXPLOITATION IN CLASSICAL ENGLISH UTOPIA Helvio Moraes (UNEMAT)1 RESUMO: Os primeiros escritos utópicos ingleses (Utopia de Morus e A Nova Atlântida de Bacon) abordam temas vinculados à ideia da colonização do Novo Mundo, tanto na construção idealizada do mundo outro quanto nos relatos feitos pelos interlocutores do viajante em relação à forma como são tratadas as populações nativas. O viajante da utopia é tomado, antes de tudo, pela sensação de maravilhamento diante do mundo recém descoberto. No entanto, aos poucos, ele vai sendo instruído pelos seus ‘guias’ e ao estupor se substitui a descrição detalhada de como tal mundo pôde ser estabelecido, cuja ordem se revela 1

Docente do programa de pós-graduação em Estudos Literários (PPGEL), da UNEMAT, câmpus de Tangará da Serra. Docente do curso de Letras, UNEMAT, câmpus de Pontes e Lacerda. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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muito mais avançada, social e tecnologicamente, que a do Velho Mundo. Esta seria a forma pela qual o colonizador passaria a ser colonizado. Acredito que se trata de um artifício usado pelo utopista para projetar uma imagem futura e idealizada do homem europeu. A América se configura como espaço onde é possível projetar a imagem de uma ordem político-social redimida dos males contemporâneos do autor. Meu objetivo é apresentar como os três escritos utópicos em questão elaboram tais imagens, assim como problematizam a imagem do outro, o homem americano em seu mundo. PALAVRAS-CHAVE: Utopia inglesa. Humanismo. Literatura de viagem. Colonização. História Literária. ABSTRACT: The first English utopian writings (Utopia, by Thomas Morus, and The New Atlantis, by Francis Bacon) approach themes related to the idea of colonization in the New World, be it in the idealized construction of the other world or in the reports given by the traveler’s interlocutors regarding the form by which the indigenous populations are treated. First of all, the utopian traveler is taken by the feeling of wonder in face of the world recently-discovered. However, he is gradually instructed by his “guides”, and the prior astonishment is replaced by a detailed description of how such an order could be established – an order which proves to be socially and technologically more advanced than that of the Old World. This is the way the colonizer, in the utopian work, comes to be colonized. I believe it is an expedient used by the utopista with the aim of projecting a future and idealized image of the European man. America is conceived as a space where it is possible to project the image of a socio-political order redeemed from the contemporary evils of the author. My purpose is to show how these two utopian writings develop such images and approach the problem of otherness, in this case, the American men and his world. KEY-WORDS: English utopia. Humanism. Travel Literature. Colonization. Literary History R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Introdução Alguns dos primeiros escritos utópicos ingleses (Utopia de Morus e A Nova Atlântida de Bacon) abordam, ainda que indireta e alusivamente, temas vinculados à ideia da colonização do Novo Mundo, tanto no que diz respeito à construção idealizada do mundo outro quanto aos relatos feitos pelos interlocutores do viajante em relação à forma como são tratadas as populações nativas. O viajante da utopia é tomado, antes de tudo, pela sensação de maravilhamento diante do mundo a que chega inesperadamente. No entanto, aos poucos, ele vai sendo instruído pelos seus ‘guias’ e ao estupor se substitui a descrição detalhada de como tal mundo pôde ser estabelecido, cuja ordem se revela muito mais avançada, social e tecnologicamente, que a do Velho Mundo. Este recurso, de que vários utopistas lançam mão, causa um efeito admirável, apresentando-nos o futuro colonizador sendo instruído por aquele que será colonizado. Na verdade, trata-se de um artifício usado pelo utopista para projetar uma imagem futura e idealizada do homem europeu. A América e os outros “mundos” recém descobertos se configuram como espaços onde é possível projetar a imagem de uma ordem políticosocial redimida dos males contemporâneos do autor. Meu objetivo é apresentar como esses escritos utópicos elaboram tais imagens, como problematizam a relação de alteridade e, por fim, que elementos de um discurso colonizador podem ser percebidos em suas páginas.

A centralidade do tema da viagem Como em outros textos utópicos do período, o tema da viagem é central nos três autores que analisamos. Não somente o surgimento das primeiras utopias literárias coincide com o início das grandes descobertas marítimas – sendo este, de fato, o aspecto que mais se destaca ao primeiro contato com tais escritos –, mas os R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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artifícios literários dos quais o utopista lança mão para nos apresentar sua visão de sociedade ideal mantêm um profundo diálogo com o amplo espectro da literatura de viagem, que abarca escritos dos mais diversos gêneros, como a viagem maravilhosa e os relatos de viajantes, seja sob a forma de diários ou epístolas, assumindo desta gama de escritos suas modalidades discursivas. A viagem é o expediente sine qua non para a apresentação do encontro (ou choque) de tradições culturais diferentes. De fato, o tema é considerado como uma constante do gênero, que se expressa direta ou indiretamente, no espaço (a própria viagem marítima sendo o maior exemplo) ou no tempo (o recurso ao sonho), em todas as utopias. Contudo, sua centralidade como fator de incidência sobre os elementos que compõem o núcleo do projeto utópico é colocada em questão por alguns estudiosos. Como nos salienta Minerva (1996, p.40), tal atitude deve-se ao fato de certos historiadores da literatura utópica terem sido atraídos mais pela descrição do lugar outro do que pelos meios empregados para alcançá-lo. Consequentemente, relegam à viagem a função de simples expediente literário, um mero recurso usado pelo autor para explicar de modo verossímil como se deu a descoberta do mundo ideal, sendo, logo em seguida, descartado, a ponto de a maioria das utopias não relatarem como se deu a viagem de retorno. A relação, portanto, entre a narração da viagem e a descrição do mundo utópico recém-descoberto seria antitética e não dialética. Às vicissitudes da travessia seria contraposta a perfeição da cidade ideal, à ação, a descrição e, assim, constituídos os pólos antitéticos do relato utópico, prevaleceria, como ponto legítimo de investigação, aquele relacionado ao desenho do mundo outro; o seu oposto – a travessia –, em nada contribuiria para elucidá-lo, nada nos diria acerca do plano elaborado pelo seu autor. Cremos que esta atenção excessiva ao aspecto descritivo, em detrimento das passagens mais carregadas de elementos romanescos, falha por não levar em consideração certos dados importantes R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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relativos à idéia de viagem. O primeiro seria a relevância da viagem para a mentalidade européia no Renascimento. Há um processo que poderíamos denominar de secularização da viagem, que se desvia paulatinamente da peregrinação medieval e, como resultado do racionalismo humanista, termina nas grandes viagens dos portugueses e espanhois. Conforme nos esclarece Servier (1995, p. 112), por um lado, “se o Ocidente se dirigia sempre adiante, rumo ao oeste, era para encontrar de novo o paraíso terrestre”. Contudo, as viagens na época dos grandes descobrimentos, aos poucos, fizeram desaparecer este mito que, como aponta Jean Delumeau (1988), ainda era considerado um fato no início do século XVI: Há uma mudança profunda que se dá no século XVI, pois os grandes navegadores portugueses, espanhóis, etc., deram a volta ao mundo e não ouviram falar do Paraíso terrestre, nem o viram, e podem dizer que ele já cá não está. [...] A partir do século XVI os mapas já não colocam o Jardim do Éden ao alto. [...] O século XVI marca o momento em que deixa de se aceitar que o Paraíso terrestre, mesmo inacessível, ainda existia.

Inversamente, em não se confirmando a existência de um Éden algures na rota marítima através do Ocidente, “a Europa foi colocada diante do Novo Mundo e produziu-se uma sensação de inacabado que abalou as bases do pensamento medieval e do primeiro renascimento” (RODRIGUES et alii, 2000, p.133) Uma fonte considerável de relatos de navegantes descrevendo a nova geografia, formas novas de organização social e diferentes costumes, acabou por instaurar um processo de revisão crítica de uma Europa já atormentada por crises e distúrbios violentos que antecipavam conjeturas sobre uma iminente queda dos antigos edifícios sociais, cujos alicerces já não se sustentariam por mais tempo. São estes relatos que criam o Novo Mundo e este passa a servir de espelho a esta Europa desgastada. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Desta forma, para De Boni (2006, p. 202), “a dilatação do mundo real como resultado das explorações constituía para a cultura européia um fator de estímulo para a ‘descoberta’ literária de ilhas inexistentes, nas quais projetar a própria ânsia de aperfeiçoamento” O segundo ponto raramente levado em consideração referese à amplitude do conceito de viagem. Não só a partida e a trajetória para se alcançar o lugar outro, mas também toda a experiência ali vivida – e por isso, a narração de como se dá o contato com o outro, assim como a descrição das normas perfeitas do viver associado – devem estar condicionadas à idéia da viagem utópica. Visto nesta perspectiva, mais que mero expediente literário, o recurso à viagem se transforma em princípio. Assim, sua função no interior do projeto utópico não é apenas promocional (enquanto moldura, que diz respeito ao antes e ao depois da utopia), mas também, e principalmente, um elemento estruturante (cf. MINERVA, 1996, p.42). Sem reduzir a importância das razões históricas que levaram à elaboração do projeto utópico, ou, mais particularmente, as de fundo pessoal que induziram o utopista a criar sua utopia, queremos chamar a atenção também para o aspecto estrutural do texto, e demonstrar sua relevância. Na verdade, o texto utópico se privilegia por ser capaz de mostrar de forma bastante clara os pontos de convergência entre estes três paradigmas. Portanto, à imagem de dois pólos antitéticos preferimos opor a idéia de um jogo dialético entre duas visões distintas de mundo: a do viajante, que traz consigo todo o arcabouço cultural de seu lugar de proveniência, e a do outro, que assume a função didática de revelar ao primeiro, de forma pormenorizada, o modo de ser do mundo recém-descoberto. A viagem utópica possui, de fato, um grande valor heurístico (cf. MINERVA, 1996, p 14), e este só pode ser visto dentro de um movimento contínuo de recepção do novo e de constante comparação. O expediente narrativo das etapas intermediárias que preparam o viajante para o contato com a R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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alteridade assemelha-se, de certa forma, a um ritual de iniciação (cf. MINERVA, 1996, p.10), um processo de transformação ao fim do qual temos a imagem de um novo homem, mais sábio e purificado das imperfeições que trazia anteriormente. Embora este homem, na utopia, seja representado pelo viajante, graças a um hábil agenciamento de técnicas narrativas – como o testemunho em primeira pessoa, o caráter informativo do relato, os procedimentos estilísticos que se utilizam de topoi literários para explicar o novo, entre outras – o ‘percurso iniciático’ se potencializa e se estende ao leitor, e, portanto, a todos os homens, de modo que o gradual esclarecimento vivenciado por um é simultaneamente experimentado pelo outro. Desta forma, a função do narrador-viajante é dupla. Primeiramente, ele é o mediador entre dois mundos: é ele quem leva para dentro da utopia a visão de mundo do leitor, encarna os valores de sua época e, ao mesmo tempo, serve como testemunha ocular das novidades do lugar outro. Sua segunda função é a de ator, pois ninguém mais, senão ele (e, às vezes, seus companheiros que, contudo, permanecem em silêncio), passará pelo processo de aprendizado que será transmitido à posteridade.

Morus: o nativo torna-se um utopiano Feitas estas considerações, passemos a discutir como a questão da alteridade e do contato com o mundo outro é colocada pelos narradores de Morus e Bacon. Especificamente, analisaremos em suas utopias algumas passagens que indicam uma disposição, ou fazem menção, a um projeto de exploração colonialista. Podemos antecipar que os dois autores interessam-se por aspectos diversos de tal exploração. Morus volta sua atenção primordialmente para uma problemática de ordem social. Bacon enxerga as possibilidades que se abrem à exploração dos recursos naturais de uma terra vasta e abastada. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Para compreender mos a forma como Morus sente a necessidade do estabelecimento de colônias vinculadas a Utopia, é preciso ter em mente que todo seu projeto parte do conceito de autarquia. O chanceler inglês constrói sua cidade a partir da noção de necessidade, adotando-a como um princípio econômico que tornará possível a rejeição de toda e qualquer acumulação de capital e levará à tentativa de suprir a carência de recursos, o que já se encontra, de certa forma, delineado em Platão, no Livro II d’A República. Segundo Logan e Adams, ao adotar como fundamento de sua cidade a noção de autarquia, Morus sugere que “a melhor república é aquela que engloba todo o necessário à felicidade de seus cidadãos, e nada além disso”. (LOGAN et alii. In MORUS, 1999) A colônia surge como forma de administrar o excesso, seja de contingente populacional, seja da produção agrícola (sendo este último apenas implicitamente indicado). Assim, Cada cidade comporta seis mil famílias, sem contar as que vivem no campo, e, para que esse número não aumente ou diminua, uma lei determina que nenhuma família pode ter menos de dez ou mais de dezesseis adultos. Eles não procuram, evidentemente, controlar o número de crianças das famílias. Para assegurar o bom funcionamento, os membros excedentes são mandados para as famílias menos numerosas. Se houver superpovoamento numa cidade, o excedente populacional será transferido para uma cidade menos povoada. E, se a ilha inteira ficar superpovoada, um certo número de pessoas é escolhido em cada cidade, e a elas caberá fundar uma nova colônia no ponto mais próximo do continente, onde existe uma área ainda não cultivada pelos habitantes locais. (MORUS, 1999, p.93)

Estes habitantes locais poderão ser expulsos de suas terras ou não, dependendo do modo como procedem em relação aos colonizadores. Caso admitam e assimilem as instituições e as leis de Utopia, poderão continuar em suas terras, convivendo com os R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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utopianos. De qualquer forma, as estruturas sociais e políticas da metrópole são impostas sem qualquer possibilidade de diálogo ou apreciação crítica por parte dos povos a serem colonizados: Essas colônias são governadas pelos utopianos, mas permite-se que os nativos venham juntar-se a eles, caso assim o desejem. Quando isso acontece, nativos e colonizadores logo formam uma comunidade única, com um estilo de vida comum, e disso advêm vantagens para ambos os lados – pois, sob o controle e a gerência das leis utopianas, uma terra que se considerava estéril e incapaz de produzir para um único povo acaba por tornar-se produtiva para dois povos ao mesmo tempo. Mas, se os nativos não se conformam às leis de Utopia, são expulsos da região que se pretende colonizar. Se resistem, os utopianos declaram guerra, pois consideram-na perfeitamente justificável sempre que um país nega a outro o direito natural de extrair alimentos de um solo que os proprietários originais deixam em desuso, conservando-o apenas como uma propriedade inútil. (MORUS, 1999, p.93-4).

Estas passagens nos permitem atentar para um aspecto de certos escritos utópicos lido geralmente de maneira equivocada: não se deve buscar na descrição da comunidade utópica a representação das populações nativas do Novo Mundo. Quando muito, o que as caracteriza é um amálgama de certos valores da civilização europeia com elementos dessas culturas nativas. O utopiano é, antes, uma projeção ideal do homem europeu. Indícios do homem americano e da forma pela qual, conforme Morus, ele deve ser tratado, encontramos nessas passagens referentes às populações vizinhas a Utopia. Não surpreende, portanto, que estas devam se adequar, absorver e submeter-se à forma de vida de uma civilização construída conforme a mais absoluta racionalidade. A metrópole tem o “direito natural” de se impor e explorar os domínios territoriais desses povos, porque alcançou as condições plenas para o desenvolvimento do viver associado, e o ato de estendê-las às colônias é justificado como um ato de justiça e magnanimidade, quase um dever2. Como que situada num pólo contrário, temos a R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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representação (e o contraste) do homem europeu e do americano nas Cartas iroquesas de Maubert de Gouvest (1752)3. Portanto, Morus se volta fundamentalmente para o aspecto político da exploração colonial, sua configuração social e a conversão das populações nativas à imagem do homem e do cidadão de Utopia. Bacon, por outro lado, se interessará por outro aspecto do Novo Mundo: as novas e inúmeras possibilidades abertas para a investigação sistemática da natureza.

Bacon: exploração da natureza como empreendimento científico Ao longo das páginas d’A nova Atlântida, principalmente em sua parte final, Bacon nos fornece a imagem de uma Natureza dessacralizada e completamente manipulada pelo homem, em que se percebe a valorização do processo civilizatório, do “artifitium”, da técnica, a inabalável convicção da preeminência da experimentação sobre a contemplação. Para Bacon, a história da civilização é “advancement”, é exercício cívico, coletivo4. A nova Atlântida é, em síntese, a imagem vívida de como seria a vida num mundo onde o empreendimento científico torna-se a estrutura dominante de uma sociedade5. Ela traduz o desejo de Bacon de ver institucionalizada uma sociedade científica, onde a pesquisa é realizada de forma cooperativista, baseada sobre a ciência experimental. Não surpreende, portanto, que a principal instituição da Nova Atlântida seja a Casa de Salomão, instituída “para a descoberta da verdadeira natureza de todas as coisas, e para que maior fosse a glória de Deus na criação delas e maior o benefício dos homens no seu uso”.(BACON, 1976, p.40). A atitude de Bacon em relação ao projeto de expansão do domínio britânico é bastante complexa, conforme nos mostra um recente estudo de Sarah Irving (2006), pois seu humanismo cívico o R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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faz atentar para questões bastante problemáticas na esfera da exploração colonial, como o deslocamento das populações nativas, a corrupção moral advinda da exploração, etc. Porém, no âmbito da questão aqui proposta, podemos perceber que, em consonância com sua noção de “avanço da humanidade”, a exuberância natural das colônias, submetida ao crivo da investigação científica, pode trazer benefícios em igual medida a todas as partes envolvidas nesse processo. Como observa Irving, “para Bacon, as colônias não eram simplesmente novas commonwealths, eram lugares que produziam potencialmente o conhecimento natural, vital para a recriação original e epistêmico império humano sobre o mundo”. (IRVING, 2006). N’A nova Atlântida, tanto o narrador-viajante quanto o Sacerdote, que apresenta em linhas gerais a estrutura e o trabalho desenvolvido na Casa de Salomão, compartilham esta confiança numa ciência redentora. A reação inicial do narrador é muito semelhante àquela que Greenblatt (1996) percebe nos relatos dos primeiros navegadores europeus: uma sensação de maravilhamento, que se expressa antes de qualquer formulação discursiva mais “racional”. Paulatinamente, porém, os marinheiros vão compreendendo o funcionamento de uma comunidade política que se revela tecnologica e socialmente superior à que pertencem, por meio de entrevistas e encontros com figuras importantes de tal comunidade6 Há, portanto, uma preparação para a descoberta final da Casa de Salomão, o grande colégio de cientistas em que, graças à riqueza natural do lugar, grandes avanços científicos são realizados. O discurso do Sacerdote compreende um elenco das maravilhas que o avanço científico pode (ou poderia) proporcionar ao homem. É uma exposição didaticamente planejada de modo a fazer com que o narrador visualize o ‘admirável mundo novo’ construído pela ciência. E, de fato, o narrador pode apenas visualizá-lo: não lhe é dada a oportunidade de conhecê-lo, nem ao menos visitar uma sequer de suas fabulosas casas de máquinas, de perfumes, de som, de preparação de bebidas e alimentos, etc. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Retorna à cena a idéia de maravilhamento, estudada por Greenblatt. A diferença é que, aqui, a maravilha não se descortina frente aos olhos do narrador. Ela é apenas vislumbrada como objeto de futura descoberta, uma vez que as terras do mundo, já amplamente exploradas, aos poucos deixavam de ser objeto de curioso escrutínio para serem racionalmente colonizadas.

Referências ALBANESE .”The New Atlantis and the Uses of Utopia” in ELH, vol. 57, nº 3. (Autumn, 1990), BACON, Francis. Nova Atlântida. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues. Lisboa: Editorial Minerva, 1976. DAVIS, J. C. Utopía y la sociedad ideal – Estudio de la literatura utópica inglesa (1560-1700). Trad. Juan José Utrilla. México: Fondo de Cultura Econômica, 1985 DE BONI, Claudio. “Il viaggio di Bougainville, le riflessioni di Diderot e l’utopia della felicita secondo natura”. In: Morus – Utopia e Renascimento, nº 3. Campinas: Gráfica Central da Unicamp, 2006. DELUMEAU, Jean. “Substituir a Utopia pela Lucidez”. O Expresso. 5 dez. 1998. GREENBLATT, Stephen. Possessões maravilhosas. São Paulo: Edusp, 1996. IRVING, Sarah. “ ‘In a pure soil’: Colonial anxieties in the work of Francis Bacon” In History of European Ideas, vol. 32, nº 3, Set/2006, p. 249-262. LOGAN, George M. & ADAMS, Robert M. In: MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, XXXIV. MINERVA, Nadia. “Viaggi verso utopia, viaggi in utopia. Dinamica del movimento e della stasi”. In BACCOLINI, Raffaela; FORTUNATI, Vita & MINERVA, Nadia (ed.). Viaggi in Utopia. Ravenna: Longo Editore, 1996. PATRIZI, Francesco In MORAES, Helvio. “A Cidade Feliz: a utopia aristocrática de Francesco Patrizi”. Morus – Utopia e Renascimento, nº 1. Campinas: R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Gráfica Central da Unicamp, 2004. ROFRIGUES, Antonio E. M; FALCON, Francisco J. C. Tempos Modernos - Ensaios de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ROSSI, Paolo. “Il mito di Prometeo e gli ideali della nuova scienza”. Rivista di Filosofia, vol. XLVI, n. 3. Torino, Taylor Editore, 1955. SARGENT, Rose-Mary. “Bacon as an Advocate for Cooperative Scientific Research” in PELTONEN, Markku, 1996,p.152) The Cambridge Companion to Bacon. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. SERVIER, Jean. La Utopia. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.

Notas 2

Algo semelhante encontramos no capítulo conclusivo de outro escrito utópico do período, A cidade feliz do filósofo ítalo-croata Francesco Patrizi da Cherso, em que se cria a imagem de uma cidade ideal, acima de todas as cidades do mundo, que a ela se dirigem em busca de auxílio: “Se nossa cidade for tal como a descrevemos, poder-se-á, com grande abundância, estancar a sede, e saciar-se com as águas que do abençoado vórtice sobre ela caem. Esta cidade, de sua grande altura, sobre todas as outras cidades do mundo elevada, e na presença de todas colocada, será por elas venerada, adorada e rogada a dignar-se mergulhar seus dedos nas águas salutares de seu feliz regato e molhar, para refrigério de suas misérias, com uma gota, suas bocas abrasadas e sedentas” (PATRIZI, Francesco. In MORAES, Hélvio. 2004) 3 Para uma leitura dessa outra forma de representação, ver TIN, Emerson. “As Cartas Iroquesas de Jean-Henri Maubert de Gouvest (1752)” In Morus – Utopia e Renascimento, nº 3. Campinas, Gráfica Central da Unicamp, 2006, p. 292-317. 4 “Para Bacon, o saber não é fruto de intuições solitárias, mas o resultado de uma profunda reforma que diz respeito ao modo de pensar e de falar dos homens, e que concerne também as próprias estruturas de seu viver associado.” (ROSSI, 1955, p. 147). 5 Ver SARGENT, Rose-Mary. “Bacon as an Advocate for Cooperative Scientific Research” in PELTONEN, Markku, 1996, p.152) 6 ALBANESE ( 1990, p. 509) se refere a um aspecto d’A nova Atlântida que, segundo a autora, implica numa inversão da lógica do discurso colonialista: o objeto de escrutínio e dominação não é o nativo, mas o europeu. Desde o início, os marinheiros são atentamente observados, como se os bensalemitas quisessem se certificar da sua força, da sua integridade física e da sinceridade de suas declarações quanto a serem pessoas de paz e seguidoras dos preceitos cristãos. Os estrangeiros não são imediatamente admitidos em terra, e quando são autorizados a desembarcar, devem passar pelo regime de quarentena a que já fizemos menção. Ainda mais interessante é o fato de demonstrarem ter consciência do papel de submissão a que são levados, o que é, no mínimo, curioso (e, em grande medida, irônico), se compararmos com a imagem dos ilustres conquistadores do Novo Mundo: “[...] estamos entre um povo cristão, cheio de compaixão e humanidade: que não nos cubra o rosto a vergonha de revelarmos diante deles os nossos vícios ou a nossa indignidade. Mas há mais, pois eles ordenaram-nos, embora sob a forma de grande R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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cortesia, que permanecêssemos enclausurados entre estas paredes durante três dias, quem sabe se para poderem avaliar a nossa conduta e o nosso caráter e, se os considerarem maus, nos expulsarem imediatamente e, se os acharem bons, nos concederem mais tempo? É possível que estes homens que colocaram ao nosso serviço estejam ao mesmo tempo encarregados de nos vigiar (BACON, 1976, p. 17-8). O mesmo grau de ironia é dispensado à forma pela qual o discurso do nativo é aceito sem questionamentos por parte do europeu. A história ocidental é submetida a grandes correções, referências a um proto-cristianismo são feitas e a noção de Velho e Novo mundo é totalmente subvertida, quando o administrador da Casa dos Estrangeiros explica a origem do cristianismo na ilha e a razão de seus habitantes, profundos conhecedores das nações do planeta, permaneceram incógnitos a elas. Na formulação de Davis, “o grande paradoxo consiste no fato de que os novo-atlantes conhecem os assuntos, a cultura e a natureza do resto do mundo, enquanto que o resto do mundo permanece na ignorância deles. Conhecem, sem ser conhecidos” (DAVIS, 1985, p. 112). O tom confiante, pleno de autoridade, do discurso do administrador – afiançado pela evidente superioridade da organização social da ilha em comparação com a Europa – não deixa outra alternativa ao narrador senão a de, no mínimo, emprestar-lhe um ouvido favorável (e ouvi-lo em silêncio). Como dissemos anteriormente, a técnica retórica da inversão é amplamente utilizada aqui. Segundo Albanese ( 1990, p. 509), “desde o momento do primeiro encontro, são [...] os espanhóis quem são escrutinados, contidos e regulados pelos seus anfitriões aparentemente benignos.” Há, contudo, uma pequena divergência entre o tratamento dispensado pelos bensalemitas e o modo como se dá a dominação colonialista: “a opressão do outro, que é, em qualquer lugar, o foco da colonização, é aqui transformada em uma interrogação visual, e transferida para uma população nativa [...] mais suave do que os europeus que a descobriram” ( 1990, p. 509). Embora tais conclusões sejam relevantes, temos alguma reserva quanto a relacionar de forma tão cabal o nativo americano com os bensalemitas, conforme dissemos anteriormente.

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Mestre pela Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL, da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra-MT, Brasil, CEP 78300-000. 2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL - UNEMATTangará da Serra- MT. [email protected] R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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RESUMO: Este texto tem como objetivo analisar a crônica “ Dezesseis palavras que choram”, do jornalista Roberto Pompeu Toledo, publicada na Revista Veja, enfocando a reação provocada pela fala do governador do DF ao supostamente incitar crime de preconceito racial. PALAVRAS-CHAVE: Crônica. Racismo. Política. ABSTRACT: This text aims at analyzing a human story called “Dezesseis palavras que choram”, written by journalist Roberto Pompeu Toledo and published in Revista Veja. The text presents us with the unease provoked by speech of the Governor of the DF allegedly inciting racial hate crime. KEYWORDS: Human story. Prejudice crime. Politic.

Introdução O presente trabalho focaliza a crônica “Dezesseis palavras que choram”, de Roberto Pompeu Toledo, publicada pela Revista Veja, em fevereiro de 2002, treze dias após o então Governador do Distrito Federal convocar a população que participava de uma manifestação/comício (antecipado) na cidade-satélite de Brazlândia a destinar uma salva de vaias a um aposentado negro que se encontrava próxima a uma faixa de protesto produzida por militantes do Partido dos Trabalhadores. Partindo do pressuposto da necessidade de contextualização do texto em análise, uma crônica, em um primeiro momento esboçaremos um breve comentário sobre esse gênero e sua função no Brasil. Em seguida expomos alguns elementos externos, do momento de sua produção, que possam ajudar a configurar o contexto dos fatos, as circunstâncias que motivaram a manifestação de Pompeu de Toledo. Feito isso, passamos a analisar os argumentos apresentados pelo cronista para uma possível defesa do governador. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Crônica O conceito de crônica não é único e consensualmente aceito. Cada cultura define por crônica um tipo específico de texto, embora todas concordem em que, do ponto de vista histórico, segundo Marques de Melo (2003), ela represente efetivamente a narração de certos fatos, seguindo uma ordem cronológica e com finalidade de registro para a posteridade. Apesar de considerar a crônica como um gênero menor em relação aos demais gêneros literários, Antonio Candido (1992) considera o formato adotado no Brasil como um gênero tipicamente brasileiro, originário dos antigos “folhetins”, com um tom mais leve e descompromissado. Afrânio Coutinho (2003), para conceituar este gênero, parte da diferenciação entre ensaio e crônica. Busca um sentido mais antigo para o uso diferenciado destes dois tipos de textos. Para o crítico, o ensaio surge como uma modalidade textual muito mais próxima da manifestação oral ou do pensamento no momento do ato, podendo ser considerado como um “breve discurso, compacto, um compêndio de pensamento, experiência e observação” (COUTINHO, 2003, p. 118). Alerta ainda para o fato de serem os ensaios um tipo de composição em prosa que busca experimentar ou interpretar a realidade a partir de um olhar pessoal do autor. Com o passar dos anos, o ensaio assume novo propósito e passa a ser considerado uma modalidade de estudo, acabado e concludente. Por serem tradicionalmente datadas, as crônicas normalmente tratam de temas que surgem em um determinado momento próximo à sua publicação. Entretanto, cabe ao cronista não apenas noticiar o fato, mas comentar, sendo o comentário de pequeno alcance quanto ao interesse, apenas pelo frescor dos acontecimentos. Entretanto, vale ressaltar, há autores que conseguem romper com este imediatismo e conferem transcendência à crônica pela qualidade principalmente literária. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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No Brasil, a crônica surge em meados do século XIX, destinada a apresentar de maneira suave e palatável fatos da semana ou do mês. À época quase sempre visavam ao público feminino. José de Alencar e Francisco Otaviano de Almeida Rosa foram dois grandes nomes da crônica brasileira da época. Será Bilac o responsável por conferir a algumas de suas crônicas uma feição de ensaio ao concentrar seus comentários sobre determinados fatos, ideias ou acontecimentos. Assim surge, segundo Coutinho (2003), o conceito que temos hoje de crônica, muito mais próxima dos ensaios do passado, permitindo comentários ligeiros ou divagações realizadas com bom gosto literário. Há ainda de se considerar alguns aspectos importantes para a caracterização da crônica. O cronista deve dar preferência à linguagem da atualidade, refletindo a época de sua publicação. O estilo deve ser simples e tender para um tom comunicativo, de conversa. Deve-se rejeitar postura dogmática e fechada para evitar a fuga dos leitores que não comungam das mesmas opiniões e posicionamentos. Afrânio Coutinho estabelece cinco categorias para classificar da crônica brasileira. São elas: a) crônica narrativa – o eixo central é uma história ou episódio; b) crônica metafísica – esboça reflexões sobre os acontecimentos ou homens de maneira mais ou menos filosófica; c) crônica poema-em-prosa – de conteúdo lírico; d) crônica-comentário dos acontecimentos; e) crônica-informação – é a categoria mais próxima do sentido etimológico, assemelha-se a crônica-comentário, mas com caráter menos pessoal.

As circunstâncias Por ser a crônica em questão um produto híbrido, fruto da crítica jornalística motivado por fatos reais, faz-se necessário traçar o contexto da frase polêmica do então governador do Distrito Federal Joaquim Roriz. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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O caso teve sua origem numa quinta-feira, dia 31 de janeiro de 2002, durante um pronunciamento para uma multidão de cerca de 200 pessoas na cidade-satélite de Brazlândia (DF) que reclamavam dos valores cobrados pelo IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano). Durante seu governo, Roriz realizou diversos assentamentos, retirando famílias carentes de favelas e proporcionando a oportunidade de melhores condições de moradia. Ao mesmo tempo em que praticava “ações sociais”, o governador costumava discursar e prometer às famílias isenção do pagamento de impostos e tributos como taxas de água e energia. Diante das promessas e da não isenção de tais taxas e impostos, a população decidiu então promover uma manifestação contra Roriz. Na manifestação do último dia do mês de janeiro de 2002, o governador avistou, próximo a uma faixa de protesto produzida por militantes do PT (Partido dos Trabalhadores), um senhor; por acreditar que se tratava de um opositor político convidou, então, toda a multidão para vaiá-lo, nos seguintes termos: “- ali está um crioulo petista que eu quero que vocês dão uma salva de vaia nele”. Parte do discurso foi gravado em áudio por um estudante universitário que mais tarde cederia a gravação para a Rádio CBN; esta tornou público o caso, atraindo a atenção de toda a imprensa nacional e demais partidos políticos. A polêmica estava armada. Por conta da frase, o procurador-geral da República na época, Geraldo Brindeiro, decidiu entrar com uma ação contra Roriz no Superior Tribunal de Justiça, alegando incitação a crime de racismo. O caso, no entanto, foi arquivado meses depois. Essa não seria a primeira vez que Roriz se via em meio a polêmicas decorrentes de suas falas desbragadas. Já em 1994, , durante a campanha por Valmir Campelo, de cima do palanque e diante de vários eleitores, teria chamado de “vadia” a tucana Maria de Lourdes Abadia que viria, curiosamente, a se tornar candidata a vice pela chapa do próprio Roriz na campanha de 2002. Em 2001, R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Roriz, em discurso no Recanto das Emas, declara que, em uma festa com oito desembargadores, um deles teria dito que não via a hora de ver arquivado um processo por improbidade administrativa, em consequência de doações irregulares de lotes a igrejas. Igualmente em 2001, Roriz chama os senadores Valmir Amaral e Wellington Roberto de “bandidos”. No final do mesmo ano, o então governador ataca publicamente o juiz Carlos Frederico Maroja de Medeiros, afirmando ser ele incompetente. Em 2002, ano do fato objeto da crônica em pauta, além de referir-se a um desconhecido como “crioulo petista” - depois vemse a saber que se tratava de um aposentado, Roriz insinua, em outro pronunciamento para um grupo de aproximadamente 200 religiosos na Conferência Brasileira de Pastores, que o deputado distrital Rodrigo Rollemberg (PSB) era usuário de maconha. No ano seguinte, em 2003, além de chamar o ex-governador Cristovam Buarque de “assassino”, o qualifica como uma pessoa “que não gosta de pobres”. Já no ano de 2010, durante campanha ao governo, Roriz afirma que no governo do PT poderia matar, roubar e até mesmo estuprar. Compara ainda os militantes do PT a satanás. Vale ressaltar que Roriz iniciou sua carreira política no estado de Goiás ao fundar ali o Partido dos Trabalhadores.

Dezesseis palavras A crônica “Dezesseis palavras que choram” do jornalista Pompeu Toledo,se encaixa na modalidade crônica-comentário da classificação de Coutinho: foi motivada, como assinalamos, pela fala de Roriz em um comício, em janeiro de 2002, diante de uma multidão que protestava contra os altos impostos cobrados. Por essa razão,vale ressaltar, de início, que a frase desencadeadora da polêmica e desta crônica não é uma frase perdida em um discurso qualquer, de um artigo de jornal que poucos leem ou um capítulo de uma obra que R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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por acaso alguém descobre. Pelo contrário, uma situação real de produção bastante determinável: é oral, dirigida indiscutivelmente a um destinatário certo, que não é um indivíduo mas um coletivo. E mais: num comício, ou seja, uma multidão reunida com objetivo específico: ouvir alguém que fala. E cuja expectativa sobre o tema ou os temas a serem abordados não se abre em leque, pelo contrário. Ou seja, uma situação de produção linguística totalmente marcada. Entretanto, o fato em si, ao leitor da crônica simplesmente, só pode ser apreendido indiretamente pelo discurso do cronista, supondo-se que ele não compunha o público do referido comício. Entretanto para compreender o seu sentido é dispensável contextualizá-lo, reatualizando as referências apontadas acima, principalmente porque não se pode, aqui, prescindir da configuração de uma imagem, uma certa imagem, não só do político Roriz, mas principalmente do Roriz de fala desbragada. Comecemos pelo título da crônica: “ Dezesseis palavras que choram”. O título de uma obra, mais que dar nome, tem a função de marcar o início do texto, de constituí-lo como mercadoria, segundo Roland Barthes. Como adverte o semiólogo em “Análise estrutural de um conto de Edgar Poe” (1977, p. 41), todo título possui vários sentidos simultâneos, dentre os quais se destacam dois: “1) o que ele enuncia, ligado à contingência daquilo que o segue; 2) o próprio anúncio de que vai seguirse um trecho de literatura (isto é, de fato, uma mercadoria); por outras palavras, o título tem sempre uma dupla função: enunciadora e dêitica”. (DUNGUE; MIYAZAKI, 2012, p.5)

Dentre as várias expectativas abertas pelo título da crônica, destacamos duas: 1- palavras antropomorfizadas, numa relação metonímica em que o sujeito real da fala é substituído pelo instrumento de expressão, manifestam o sentimento sobre alguma coisa por alguma razão, negativa; 2- palavras, antropomorfizadas, expressam sentimentos próprios. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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O lead já adianta ao leitor do que trata a crônica. O receptor já concebe uma imagem da situação e sua leitura é pautada inicialmente por seu conteúdo dado, mesmo que ao longo do texto tensões sejam formadas entre o sentido inicial do lead e o seu desenvolvimento. Confira na íntegra: “Uma frase do governador do Distrito Federal transforma-o em réu de duplo crime: racismo e atentado ao idioma” (TOLEDO, 2002). Ou seja, a escolha dos termos pontua os pontos nevrálgicos: o sujeito (ativo), uma frase; o sujeito passivo ( um político); e a sua qualificação ( governador do DF); as causas: dois atos cuja aproximação numa mesma função sintática leva à estranheza quanto aos universos semânticos distintos. Trocando em miúdos, como se leria essa frase? O autor (a partir de agora nomeado apenas de narrador) inicia seu texto com a expressão “uma frase” dando a entender tratar-se apenas de mais uma frase qualquer proferida, tese reforçada pelo uso do artigo indefinido “uma” em oposição ao definido “a”, que seria mais indicado para enfatizar a frase em questão. Em seguida, é apresentado o personagem principal: um “governador”. Há de se considerar que é “uma frase” que exerce a função de sujeito no enunciado, criando o efeito de que a frase (emitida por Roriz e destacada na crônica) teria querer próprio para condenar Roriz, em oposição a uma situação em que, com base na leitura da mesma, seria o leitor a pronunciar-se a respeito. A nomeação da personagem central como governador convoca à cena a implicação de todo um código de valores e postura anteriormente aceito pelo sujeito: em escala, podemos classificar o governador como a terceira figura mais importante de nossa organização política (presidente em primeiro, seguido por senadores e em terceiro, os governadores). O narrador vai além e situa a escala geograficamente: trata-se do “governador do Distrito Federal”. Não se trata mais de uma figura central da política de um estado qualquer e imaginário. Ele agora representa o Distrito Federal, o centro nervoso da política brasileira. É a capital nacional, espaço de que, no Brasil, emanam as leis e principais decisões que norteiam o país. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Tais implicações, num primeiro momento pelo menos, estariam ausentes, ou atenuadas, se em lugar de “governador do Distrito Federal”, figurasse apenas Joaquim Roriz. Este nome passaria despercebido para grande parte da população brasileira. Mas o cargo que ele ocupa traça outro horizonte de sentido em que o fato-objeto deve ser situado. Nesse cenário, é interessante que o papel de destinador na concepção semiótica greimasiana - aquele que dita os valores que serão postos em movimentação na narrativa – esteja encarnado, por delegação, pelo Partido dos Trabalhadores – PT, que se encarrega de cobrar a infração em vigência pelo contrato assumido por Roriz. Na verdade, no nível das manifestações actorias, o PT é aí um ator sincrético que congrega os papeis de destinador e anti-sujeito (“acérrimo adversário do governador”, informa a crônica). Assim, no lead o narrador, após apresentar o personagem central, modifica função temática deste no texto. De Governador, é transformado agora em “réu de duplo crime”. Ser réu implica estar em processo de julgamento: é nessa situação que entra a atualidade da crônica: Roriz ainda não foi julgado, o leitor pode – e deve – como cidadão ser juiz também. Entre as informações dadas pelo lead e no primeiro parágrafo nota-se uma tensão. No primeiro, o narrador afirma que o governador se transformou em um réu de dois crimes: “racismo e atentado ao idioma”. Já no parágrafo seguinte, ao convidar para a reflexão, o narrador cita apenas o “crime de racismo”, o que seria o mais razoável uma vez que o crime de racismo é realizado através da manifestação verbal. Ou seja, a frase não é simplesmente manifestação, expressão de algo, mas teria aqui uma função essencialmente performativa: ela não expressa o crime, ela realiza o crime: ela é um ato. Mas, apesar disso, também não é esta a questão, a razão da imputação do segundo crime, como se verá. É no primeiro parágrafo ainda que encontramos referências espaciais e temporais que nos ajudam a situar personagens e ações. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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A frase foi dita no dia 31. Apesar do texto não trazer referências a mês e ano, inferimos tratar-se de março de 2002 devido à data de publicação da crônica. Quanto à referência espacial, ela traz ao cenário Brazlândia, uma cidade-satélite próxima a Brasília, cuja economia gira em torno da agricultura familiar, sua população, pois, composta de pessoas simples, normalmente base do eleitorado do PT. Neste primeiro parágrafo, enfrentam-se, de um lado, o governador e, do outro, “PT de Brasília”. Ambos os sujeitos assim nomeados perdem a configuração individualizante para permanecer na genérica de instituições. Uma situação curiosa se a memória leva o leitor ao dado de que um (Roriz) é o fruto do outro (PT). Ao contrário do que se esperaria da leitura imediata da frase – cometimento de crime de racismo -, “ Se as palavras de Roriz merecem ou não condenação será o tema”, assevera Pompeu de Toledo -, o cronista aprofunda o tema indicado: trata-se, não de julgar o crime, mas de julgar as palavras. Ele o faz começando pela utilização de recursos estilísticos para realçar sua importância (ou desimportância) e valor (ou desvalor). A citação é posta em parágrafo à parte e todo em caixa alta (maiúsculas). Não há indicação de aspas, utilizadas normalmente para citações. O texto citado é iniciado diretamente por um travessão que indica, normalmente, a fala de uma personagem. Assim, a polêmica frase salta como se pronunciada/gritada pela primeira vez pelo enunciador. - ALI ESTÁ UM CRIOULO PETISTA QUE EU QUERO QUE VOCÊS DÃO UMA SALVA DE VAIA NELE”. “A frase [...] já seria um assombro”, define o narrador. E traduz “um pandemônio sintático”. E destacando os pontos da ação criminosa – “Do primeiro ‘que’ ao ‘nele’ final, passando pelo ‘dão’ em vez de ‘deem’ e à ‘vaia’ em vez de ‘vaias’, e a mais gritante, traição da e pela linguagem, “salva de vaia” - conclui: “há atentados de toda ordem contra a língua portuguesa”. E evoca a autoridade na figura do “guardião” nacionalmente conhecido na mídia. Aí está R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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reconhecida a vítima, o crime e a gravidade deste: “o professor Paquale a nocaute.” Entretanto, o narrador - ironicamente, gozador – encontra uma linha de defesa contra o primeiro crime, o de racismo, exatamente na linguagem e no termo perpetuar do mesmo. Acima dos graves os erros principalmente sintáticos - indicativos de um novo crime, contra a língua natural, mais grave pela amplitude já que se trata do patrimônio mais genuíno de uma nação, ele aponta uma agora não uma traição mas salvação da/pela linguagem. A salvação vem da história da língua, do termo “criminoso” na língua. E aí o autor exibe a sua cultura, discorrendo sobre a sua etimologia, provavelmente desconhecida de muita gente, letrada ou não. O narrador inicia o quarto parágrafo anunciando que crioulo, na frase proferida por Roriz, não significa necessariamente negro. Ressalte-se no texto de Pompeu o uso de marcas para diferenciar usos de vocábulos em contextos distintos. O autor opõe “negro” (marcado com aspas no texto original) a negro (sem aspas) para indicar tempo e uso diferentes. O primeiro, com aspas, indica o uso recente do termo com grande carga pejorativa; já o segundo, sem aspas, se refere ao sentido lato da palavra. Seguindo o seu raciocínio, vai ele à origem do termo: crioulo, na origem, nada teria a ver com cor da pele, nem com África. Ele proviria da evolução de “cria da terra”, melhor, de “criadouro”. Ao longo dos usos, ocorreriam os fenômenos que a filologia identifica como aférese e lambdacismo: criadouro > criaouro> criaoulo> crioulo. Inicia o cronista seu argumento pelo sentido de “filho da terra”. Se na América, indicaria o nascido no continente, seja ele branco ou negro. Traz à cola a história do termo em países hispano-americanos: indicaria o nascido não na Espanha, mas na nova “terra”. Tanto que o “créole” em país de colonização francesa significa o dialeto feito de mistura do francês com a língua local. Está aí o argumento a favor do governador do Distrito Federal: ao se referir àquela pessoa que ali o hostilizava chamou-o R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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dignamente de “filho da terra”. Assim, o narrador promove um enfraquecimento do campo semântico pejorativo que envolve o vocábulo crioulo e apresenta a primeira correção semântico-sintática para a frase em questão. O governador não teria utilizado a palavra no sentido de negro, mas sim no de filho da terra. Ao promover esse reparo, cria-se o sentido de valorização do indivíduo, além de provocar uma identificação entre sujeito e nação, de indivíduo e identidade. Ao fazer isto, com humor o narrador transfere para toda a nação o sentimento de ofensa. Roriz não ofenderia apenas o aposentado que estava presenciando ao pronunciamento na cidadesatélite de Brasília, mas ofenderia ao filho da terra que metonimicamente equivale a todos os cidadãos brasileiros. Juntando, pois, as correções no início listadas e o sentido “recuperado” via etimologia, qual é a proposta do cronista? - ALI ESTÁ UM FILHO DESTA TERRA, POR SINAL PETISTA, PARA O QUAL PEÇO QUE VOCES DESTINEM UMA SONORA VAIA. Temos a primeira versão corrigida pelo narrador para a frase de Roriz. Agora o leitor não se encontra mais frente à fala do governador, mas sim diante da fala do cronista, fruto de uma leitura a partir daquela. Outro ponto que merece destaque é que o narrador desconsidera propositadamente o fato de a frase original ter sido dita em comício, portanto usando a linguagem oral, e propõe a correção com base nas regras da norma culta do português escrito. Este deslocamento de oral a escrito marca a tentativa de se registrar na história tal fato, uma vez que o registro escrito se mantém muito mais forte e vivo ao longo dos anos, enquanto que a fala se perde e se modifica. Os elementos gráficos empregados no texto original permanecem na nova forma. Note-se, porém, que o adjetivo petista segue na frase, mas crioulo é substituído por uma expressão mais geral e que, como já afirmamos anteriormente, representaria cada um dos brasileiros. Entretanto, o adjetivo já não vem mais R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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diretamente inserido após o substantivo como ocorre na frase do governador (“crioulo petista”); agora aparecem os dois segmentos distanciados e indiretamente relacionados pela expressão “[...], por sinal, petista”. Em outras palavras, trata-se de uma informação complementar que poderia ou não ser importante para todo o contexto. Desta forma, ocorre o enfraquecimento do termo crioulo já que seu sentido pejorativo foi desconsiderado, a ampliação da abrangência da ofensa ao escolher a expressão “filho desta terra” para substituir o vocábulo anterior e a permanência da palavra “petista” no texto. A expressão “por sinal” é ambígua: tanto pode apontar para um lado quanto para outro. Num diálogo, o estranhamento se apresentaria como uma pergunta: “o que se quer dizer?”. Ela só aponta uma relação. Poderíamos, inclusive, entender que há aí uma equivalência: dizer “filho da terra” (ou seja, o nativo) ou “d(esta) terra” ( ou seja, de gente que tira o sustento da agricultura familiar) significa ser petista. Petista é o que provém do extrato social mais humilde. Se se salva o crioulo, o inimigo político, não; a ele se destina a vaia. Uma brincadeira, como o próprio narrador afirma: “ Não pegou?” “[...] soa forçada?” Uma brincadeira, com certeza. Interessante, pela lição sobre a palavra crioulo. Ninguém pode negar o uso corrente da palavra crioulo para indicar uma mestiçagem em que se marca a presença, em qualquer dosagem, do elemento negro. De forma pejorativa ou não. Só o contexto (talvez) poderá dizer. O preconceito não encontraria lugar quando a “crioulidade” fosse tomada simplesmente como traço distintivo exterior: como indicar alguém anônimo numa turba heterogênea em todos os sentidos? O preconceito desapareceria principalmente quando o crioulo fosse capaz de chamar-se a si mesmo de crioulo.3 Neste momento, o narrador encerra a apresentação da primeira linha de defesa e nos mostra uma outra linha. Esta segunda linha está muito mais relacionada a elementos externos da crônica que a primeira. Enquanto a primeira explicação se dá (ou se procurar dar) em função de elementos internos e específicos de linguagem, a R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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segunda se volta para elementos da realidade, quando ao Roriz personagem começa-se a estabelecer uma relação mais forte com o Roriz da realidade. Dentro de seu papel de crônica, de ser híbrido, a crônica informa a saída do anonimato do crioulo: “o governo do Distrito Federal até identificou o destinatário da frase”. Note a utilização da escala semântica para constituição da frase, em discurso indireto livre: “até” revela uma gradação inclusiva, que menos fala das ações tomadas pelo governo do que do esforço na argumentação. O narrador repete as palavras do outro: “seria um certo Marinalvo Nascimento”. Apesar do nome, de seu registro social, ele continua, pelo contrário, no anonimato: afinal é só “um certo” Marinalvo Nascimento4. Apesar de que fosse “cabo eleitoral do deputado distrital Edimar Pirineus, atual secretário do Desenvolvimento Econômico de Roriz”. E, desempenhando o papel de componentes substituíveis paradigmaticamente, outro secretário do governo, da Comunicação, Wellington Moraes, vem ao socorro e entorna mais o caldo que já perdera a credibilidade pelo excesso dos pormenores: “ O governador sempre brinca desse jeito com as pessoas simples.” Está aí confirmado: crioulo, gente desta terra, de Brazlândia, gente simples (e petista ?). Sustentada em tais argumentos, a segunda linha de defesaadotada pelo “reu”- busca reforçar a ideia de brincadeira carinhosa entre pessoas conhecidas. O narrador questiona tal explicação, e o faz socorrendo-se do uso da língua: os opostos “negão” e “brancão” como dificilmente permutáveis na prática social. Afinal, historicamente e ideologicamente em que situação um negro chamaria um branco de “brancão” como expressão de afeto? Da mesma forma que soaria estranho um negro chamar alguém de “brancão”, fora de propósito seria um branco usar uma camiseta com a mensagem de “100% Branco”. O imbroglio se complica ao pretender-se explicar a contradição entre ser correligionário e ser petista. Se o ofendido era R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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correligionário do governador, então, por que teria sido chamado de petista? Propõe-se então a tese de falha no momento da enunciação, Roriz deixara de pronunciar o advérbio de negação “não” antes do adjetivo “petista”. Da mesma forma, ao dizer “salva de vaias” queria ter dito “salva de palmas”: Equívoco talvez explicável porque o ponto visado seria o conteúdo isotópico de “salva” e “palmas” na expressão traída: a manifestação calorosa (bem coerente com o destempero verbal de Roriz), ainda que tal desejo tenha criado um produto estranho como “salva de vaia”. Ou seja, com isso, nessa caminhada argumentativa chega-se ao ponto nevrálgico da frase desencadeadora do processo do PT e da crônica de Pompeu: chegamos ao processo mesmo, falho, falhado da própria enunciação. O que equivale a dizer: do sujeito enunciador. Diante de tal suposição, o narrador apresenta uma terceira versão para a frase revisada, a única possível pela coerência lógica, mas não da realidade dos acontecimentos: - ALI ESTÁ UM FILHO DESTA TERRA, ALGUÉM LONGE DE SER UM PETISTA, PARA O QUAL PEÇO QUE VOCES DESTINEM UMA SALVA DE PALMAS. A segunda correção mantém o caráter universal do sujeito afetado pela ofensa com a permanência da expressão filho desta terra. O adjetivo petista também se faz presente, mas desta vez os sentidos são invertidos pelo narrador, não se trata mais de alguém petista, temos agora alguém “longe de ser petista” e por complemento: este alguém que não é petista merece receber uma salva de palmas. Ao modificar o sujeito ofendido de petista para não-petista, o narrador restaura a isotopia perdida nas duas primeiras versões (a original do governador e a refeita pelo narrador) da frase. A ideia contida na terceira versão é aparentemente diferente daquela exposta na primeira, mas por negação traz a mesma carga ideológica. Ou seja, se não é petista merece palmas, se for petista cabe a demonstração pública, contrária às palmas (a reprovação e, consequentemente, temos a figura das vaias). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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A conclusão do narrador é exemplar: “Roriz deve ser mesmo condenado não por racismo, mas porque não sabe o que diz.” Num movimento espiralado, partindo-se do produto – a frase mal construída , a contra-argumentação da defesa – do crime de racismo – faz um percurso extraordinário pelo absurdo – factual e lógico – que só termina no comprometimento, não pelo crime duplo cometido – contra o outro e contra a língua – mas do próprio sujeito. Ao chegar à formulação correta, decorrente das argumentações havidas, exatamente oposta à inicial, o que se evidencia é a completa desqualificação do sujeito: na expressão, do conteúdo e pragmática. Se não basta o percurso realizado para entender esse fato, o socorro das informações sobre as incidências do mesmo tipo de fenômeno na história política de Roriz têm a sua valia. E tanto uma coisa como outra, quando veiculada pelo discurso de Pompeu e em forma desse gênero – flexível, que acolhe qualquer ingerência estilística, a bel prazer do enunciador que assim se diverte – acabam descolando a história narrada do solo referencial do verídico para só fazer valer o prazer do possível.

Referências Barraco na campanha. Senadores na mídia. Disponível em . Acesso: 23 set. 2010. BARTHES, R. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1997. ______. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1990. BORDINI, Maria da Glória. Na pista do gigolô das palavras. In: VERÍSSIMO, L. F. O gigolô das palavras. Porto Alegre: LPM Editora, 1982. p. 99-106. CANDIDO, Antonio et al. A crônica: o gênero, sua fixação e as transformações no Brasil. Campinas: Unicamp, 1992. p. 13-22. COUTINHO, Afrânio. Ensaio e crônica. In: _____. A literatura no Brasil. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Rio de Janeiro: José Olympio, 1986 (vol. 6). DUNGUE, C.L.; MIYAZAKI, T. Y. Redes isotópicas em Amarelo manga, de Cláudio Assis. 2012, inédito. FONSECA, Roberto. Roriz afirma a evangélicos que Rollemberg “gosta de maconha”. Correio Brasiliense. Disponível em . Acesso: 23 set. 2010. GREIMAS e Courtès, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008. Joaquim Roriz pede vaia a “crioulo petista”, e PT quer processá-lo. Folha Online. Disponível em . Acesso: 23 set. de 2010. MELO, José Marques de. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3. ed. Campos do Jordão: Mantiqueira, 2003. Relatório referente ao Inquérito nº 328 – DF (2002/0011197-2). Supremo Tribunal de Justiça. Disponível em . Acesso em: 04 out. 2010. TOLEDO, Roberto Pompeu de. Dezesseis palavras que choram. Revista Veja. Disponível em . Acesso: 29 set. 2010. Veja o perfil de Joaquim Roriz, governador reeleito no Distrito Federal. Folha Online. Disponível em . Acesso: 23 set. 2010.

Notas 3

Recente quiproquó de mesma natureza envolveu o cantor negro Alexandre Pires, por ter-se fantasiado de gorila, juntamente com amigos negros e não negros, numa brincadeira de que participavam garotas igualmente negras e brancas. Segundo ele, simplesmente se lembrou de King Kong.. 4 De acordo com informações colhidas do Relatório referente ao Inquérito nº 328 – DF (2002/ 0011197-2), o nome do aposentado “ crioulo petista” se chama na realidade Marinaldo Marcelino do Nascimento.

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LA PRODUCCIÓN FICCIONAL DE LOS HABITANTES DEL NORESTE DE MÉXICO: LA SIMBÓLICA DE LAS DOCE VERDADES DEL MUNDO THE FICTIONAL PRODUCTION BY NORTHEASTERN MEXICAN INHABITANTS: THE SYMBOLIC IN LAS DOCE VERDADES DEL MUNDO Gabriel Ignacio Verduzco Argüelles (UANL-Mx)1 María Eugenia Flores Treviño (UANL-Mx)2

1 Estudiante de doctorado. Área de Estudios de Posgrado. Facultad de Filosofía y Letras. Universidad Autónoma de Nuevo León, México. 2 Profesora Investigadora. Área de Estudios de Posgrado. Facultad de Filosofía y Letras, Universidad Autónoma de Nuevo León, México. [email protected]

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RESUMEN: La tradición oral difunde con todo esplendor y crudeza, los valores, temores y complejos más profundos de la sociedad. Los relatos orales, plenos de imágenes, ritos, tradiciones y cargas simbólicas, caracterizan de manera profunda los mitos contenidos en lo más hondo del imaginario popular. De entre estos relatos destacan Las doce verdades del mundo. Las doce verdades son una serie acumulativa de temática religiosa cristiana que, según la tradición popular del estado mexicano de Coahuila, sirve como ritual para atrapar brujas, y su forma literaria se remonta a la estilística y a la mnemotecnia semítica. Se propone como hipótesis que el contexto vital condiciona la producción simbólica en los relatos orales sobre la brujería, y que estos relatos emplean símbolos y estructuras textuales, que los hablantes emplean de modo peculiar en el relato, y que apelan a la conciencia religiosa del oyente.La investigación3 pretende mostrar los símbolos que conforman las llamadas Doce verdades documentadas en 19 testimonios narrativos distintos de las mismas y cómo el contexto en el que aparecen, da razón de dicha construcción textual de las Doce verdades. PALABRAS CLAVE: Símbolo. Brujería. Oralidad. Ficción. ABSTRACT: The oral tradition spreads, with splendour and harshness, the values, fears and the deepest complex of society. The oral stories, full of images, rites, traditions and symbolic charges, deeply characterize the contents of the myths in the deepest of the popular imaginary. Amongst these stories Las doce verdades del mundo can be distinguished. Las doce verdades are a christian religious accumulative series that, according to the popular tradition of the Mexican state of Coahuila, is used a ritual to catch witches, and its literary form goes back to stylistic and mnemonics semitics. It is proposed, as a hypothesis that the vital context is a condition of the symbolic production in oral narratives about witchcraft, and these narratives use symbols and textual structures, that speakers use peculiarly in oral story, and they appeal to the listener’s religious conscience.The investigation pretends to show the symbols that form the so called Las doce verdades documented in 19 different R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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narrative testimonies of the same and how the context in wich they appear, explains the textual construction of Las doce verdades. KEYWORDS: Symbol. Witchcraft. Oral. Fiction.

Introducción En el presente trabajo se estudian los relatos orales sobre brujería en Coahuila, México. Se considera que ésta es una investigación fronteriza, en cuanto que abarca procesos de ficcionalización y construcción estética en la narrativa, realizados en la lengua oral. El principal objetivo de este trabajo es mostrar los símbolos que conforman las llamadas Doce verdades y cómo el contexto en el que aparecen da razón de dicha construcción textual. Para este trabajo se recopilaron 19 versiones de diferentes géneros (canciones, letanías, publicaciones, relatos y otros) de Las doce verdades4, ya que el fenómeno de la variabilidad textual en un conjuro mágico resulta interesante en virtud de la eficacia de dicha invocación, por lo que exigirá un trabajo de crítica textual, que por ahora no es el objetivo principal de este trabajo.5 Las doce verdades son una serie acumulativa de temática religiosa cristiana que, según la tradición popular de la región estudiada, sirve como imprecación y se expresa para atrapar a las brujas. Es también un juego memorístico para aprender las verdades fundamentales cristianas, y su forma literaria se remonta a la estilística y a la mnemotecnia semítica.La recitación de Las doce verdades como conjuro implica un ritual. Según la tradición, quien reza Las doce verdades para capturar una bruja o brujo ha de tejer un nudo en un hilo negro bendito, en un cordón, en un paliacate6, o en algo parecido que se tenga a mano, al tiempo que va enunciando cada verdad, de la número uno, a la doce. Y luego al revés, mientras dice Las doce verdades de la número doce a la uno, va deshaciendo los nudos del cordón. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Los símbolos en la narración oral Lurker (2000, p. 43) explica que los relatos orales asumen la forma de mito o bien de cuento popular o tradicional dependiendo de cómo organiza, narrativamente, la producción simbólica. Esta clase de textos, en mayor o menor medida, queda fuera del ámbito científico, experimentable y replicable, pues los símbolos narrados en estos textos, considerados aisladamente, aparecen incomprensibles y sin sentido. Por su parte, Kirk (1985, p. 262-263) dice que estos relatos hablan de ese mundo secreto, enigmático y maravilloso que se escapa a los métodos de la ciencia. Describen lugares y situaciones donde espacio y tiempo son coordenadas que pierden fuerza y vigencia, donde se impone lo mágico y misterioso y pueden adquirir una triple función: la de entretener, la de revalidar prácticas, instituciones o costumbres, o la de explicar algo. Así, los cuentos ejemplifican una fantasía que implica la satisfacción de los deseos de una sociedad, y sus personajes no tienen nombres propios, sino más bien son personajes genéricos y su trama se remite a un tiempo indeterminado pero histórico, en el pasado no distante y suele resolverse mediante el empleo del ingenio o de trucos de algún personaje (KIRK, 1985, p. 51. 53). Por su parte, los mitos presentan personajes específicos y las relaciones entre ellos son muy concretas, vinculados a una región determinada; no están atados al uso del ingenio para resolver los conflictos; emplean elementos sobrenaturales de forma abundante y natural; y el tiempo siempre es ahistórico, es un momento antes de que comience el mismo tiempo (KIRK, 1985, p. 52). Kluckhohn (1942, p. 57) explica que la conformación simbólica de los mitos funciona como un paliativo, socialmente aceptado, de ansiedades, miedos, enfermedades y problemas importantes, mediante su repetición, transmisión y ritualización. En esta misma sintonía, Cardero (2008, p. 218) llama intersignos a los instrumentos adecuados para trasladar creencias y hacerlas R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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accesibles de ser tratadas, especialmente cuando remiten a las situaciones aterradoras de la vida, como la muerte y lo sobrenatural. Estamos de acuerdo con Kirk (1985, p. 261), quien señala que es posible que los símbolos estructurados en los relatos míticos […] posean un significado en su propia estructura, que inconscientemente puede que represente elementos estructurales de la propia sociedad en la que se originaron o actitudes típicas del comportamiento de los propios creadores de los mitos. Pueden también reflejar ciertas preocupaciones humanas específicas, que incluyen las que las contradicciones entre los instintos, deseos y las inconmovibles realidades de la naturaleza y la sociedad pueden producir.

Así pues, el símbolo sería universal, común a cualquier ser humano, independientemente de su cultura, cosmovisión, época y contexto vital en que se encuentre. El acontecimiento simbólico sobreabunda en significado, nunca se agota por completo. Continuamente, el significado alcanzado remite a otro aspecto que queda pendiente. El símbolo admite siempre una interpretación que, pese al conocimiento empírico limitado y fragmentario, deja una comprensión suficiente para vivir (BEUCHOT, 2004, p. 143). De esta forma, los símbolos no sólo remiten a lo que significan, sino que lo mismo que significa vuelve a conducir y a llevar a otra cosa, muchas veces oculta. Así transgrede los límites del sentido, que son, para cada ser humano, los límites de la cultura y permite remontarlos. Con Beuchot (2004, p. 145) se afirma que es fundamental estudiar, analizar y explicar el contexto en el que nace y se genera el símbolo. El símbolo como tal no se explica, pero la comprensión del contexto que lo acuña, de las condiciones en que aparece y las relaciones a las que apunta, sí son sujetos de análisis y explicación. La comprensión del contexto será fundamental, no solo para captar lo que el símbolo dice, sino para la posibilidad de su interpretación. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Contexto del corpus de la investigación Así como el contexto del Ejad mi Iodea es el memorial fundacional que busca mantener viva la memoria del judaísmo, el contexto del relato de la habitante de la región de Saltillo y “Tequila” (2009), es el del conjuro para atrapar a las brujas. Para Fuentes Aguirre (2004), Las doce verdades sirven para conjurar espantos y, en la novela Telares (2002), son también un conjuro contra el mal. También “Las palabricas retornadas” (1993) sirven como fórmula de expulsión de demonios. Las doce verdades, según las “Alabanzas…”, son recitación de la doctrina para alabanza. John Cuellar (2005) señala que son base firme de la religión, lo que las coloca en el ámbito catequético-doctrinal, al igual que la letra de “La baraja bendita” (1997) y “Las palabras retornadas” (2008). En este ámbito está también Las doce palabras (2002), que es una mezcla de recitación catequética con sentido lúdico, por ser una canción. En este tono, Las doce verdades del mundo de la Casa Cristo Rey tienen un sentido apologético. Para Bryant “Eduardo” Holman (2002) forman parte de los rezos de un ritual para curar a una persona de sus males. Igual uso tienen “Las palabras retornadas”, para curar el “mal de ojo”. “Las palabricas retornadas” (1993) se rezan a un agonizante para que los demonios no se lleven su alma. Las doce verdades (2005) en Zapotitlán se rezan cuando se sepulta a una persona; e Ignacio Valdés (2007) dice que es el difunto quien se encuentra en algún momento con el Diablo, a quien tendrá que vencer mediante este rezo. “Las doce palabras redobladas” (1988) son un rezo para el fin del año a las doce de la noche. Sin embargo, la estructura de las mismas las asemeja a las del acertijo diabólico anterior; y el texto de la canción publicada por Bernal (2010) parece estar en un sentido lúdico. Como existen variantes de este ritual, a continuación se enumeran Las doce verdades del mundo conforme a una posible forma original: R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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I.

Un solo Dios;

II.

Dos Tablas de la Ley;

III. Tres personas divinas; IV. Cuatro evangelios; V.

Cinco llagas;

VI. Seis candeleros; VII. Siete palabras; VIII. Ocho coros; IX. Nueve meses; X.

Diez mandamientos;

XI. Once mil vírgenes; XII. Doce apóstoles.

Los símbolos de Las doce verdades En la exposición que se hace a continuación se revisan las variantes de cada una de las Verdades, pues este fenómeno responde al contexto en que se presenta cada versión. Revisar cada una de ellas permite un acercamiento a la forma doctrinal cristiana que está en el principio de cada una de las Verdades y justifica la elección de una para el listado que se presentó como posible forma original. Se abordan los elementos religiosos y los significados del cordón y de los nudos. No es propósito de este trabajo detallar el simbolismo de cada número.

i) Los simbolismos religiosos para cada número. Con respecto al número uno: Un solo Dios. a) La Casa Santa de Jerusalén. En la tradición bíblica judeocristiana remite al Templo de Jerusalén, que en esta misma R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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tradición es el signo visible de la presencia de YHWH y su gloria (cfr. Ez. 10, 18-22; 1Re. 8, 10-13; Sal. 132, 13-14; 68, 17). En la Edad Media, la expresión designa al Santo Sepulcro y a los Lugares Santos y, por extensión, a Palestina. Esta referencia tiene relación con la confesión judía de “Un solo Dios”, que en la versión cristiana es Dios Padre. b) Un solo Dios. El monoteísmo es la afirmación fundamental del judaísmo. El Templo de Salomón y el Segundo Templo, tras el exilio en Babilonia, simbolizan a Dios y su gloria. Esto empataría este significado con el del inciso a). c) La Virgen pura. Esta expresión doctrinal, en armonía con las otras once que expresa Calvarrasa de Arriba, tiene un sabor catequético fuerte. Si bien la referencia uno-Virgen no es tan fuerte o evidente como la de uno-Dios, el tema de la Virgen María sí es uno de mayor polémica y, por tanto, de mayor necesidad de aprendizaje catequético en el horizonte cristiano católico, y más en el ambiente de la España rural. d) La expresión “a la una más claro el sol que la luna” no tiene referente religioso. Parece ser, por el carácter empírico de la expresión, un referente de tipo agrícola o rural. Con respecto al número dos: Dos tablas de la Ley. a) Las dos tablas de Moisés o de la Ley. Remite al texto de Éxodo 24, 12. 34, 1-5, donde Moisés labra dos tablas de piedra que contienen la Ley de la Alianza que YHWH entrega en el Sinaí a Israel. b) El Antiguo y Nuevo Testamento. En la tradición cristiana, es la división que se hace de los libros considerados inspirados por Dios. La expresión “testamento” significa alianza y esto lleva a la consideración de una primera alianza entre Dios e Israel, que será revocada para hacer una nueva y definitiva alianza entre Dios y la humanidad a través de Jesuscristo. Sin embargo, algunos teólogos contemporáneos prefieren el uso de la terminología Primer y Segundo Testamento (ZENGER, 2000). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Con respecto al número tres: Tres personas divinas. a) Las “tres trinidades”. Dado el contexto catequético cristiano de los enunciados, parece existir un error en la enunciación de esta verdad, ya que la doctrina cristiana habla de tres personas en una trinidad. Sin embargo, dada la connotación memorística de las Doce verdades, podría haber una alusión a “trinidades” de verdades doctrinales populares: el Padre el Hijo y el Espíritu, las tres personas de la Trinidad; Fe, Esperanza y Caridad, las virtudes teologales; Bautismo, Confirmación y Eucaristía, los sacramentos de iniciación; Padrenuestro, Avemaría y Gloria, las oraciones del cristiano; Gozosos, Dolorosos y Gloriosos, los misterios del Rosario7, Jesús, María y José, los dulces nombres de la Sagrada Familia y Pedro, Santiago y Juan, los apóstoles “predilectos” de Jesús, entre las triadas más conocidas. b) Tres divinas personas y/o Santísima Trinidad. Remite a la expresión doctrinal cristiana de la Trinidad, fundamento de la fe cristiana. En el siglo IV, el primer concilio de Constantinopla, en el año 381, declaró solemnemente la definición de la Trinidad como ìwá ïPówá êáv ôñåÖò Qðïóôqóåéò, una sustancia en tres personas (DENZINGER, 2000, pp. 110-111). Las tres divinas personas de la Santísima Trinidad son el Padre, el Hijo y el Espíritu Santo. c) Las tres Marías. En la tradición popular cristiana, son las mujeres que acompañan a Jesús durante su caminar hacia el Calvario. Las Marías son María Magdalena, María la madre de Santiago y de José y la madre de los de Zebedeo o Salomé (Mc. 15, 40; Mt. 27, 56); El evangelio de Juan menciona a su madre (de Jesús) y la hermana de su madre, María, mujer de Cleofás, y María Magdalena (Jn. 19, 25). Lucas solo menciona de forma genérica que las mujeres que habían ido con Jesús desde Galilea estaban allí, en el Calvario (23, 49) y los nombres son, al parecer Juana, mujer de Cusa, Susana y María Magdalena (cfr. Lc. 8, 2). Así pues, las tres Marías son cuatro: la Virgen María, María Magdalena y María la madre de Santiago y de José y María, mujer de Cleofás, salvo que estas dos últimas sean la R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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misma mujer. Hay que destacar también que con este nombre de “Tres Marías” se conoce a las estrellas que conforman el cinturón de Orión: Mintaka, Alnilam y Alnitak. En la mitología egipcia estas estrellas constituían el lugar de reposo del alma de Osiris, el Dios del submundo y un símbolo de creatividad y de la continuidad de la vida. Robert Bauval y Adrian Gilbert (1995) dicen que las pirámides de Gizeh son un reflejo de las estrellas del cinturón de Orión, dada la idea de la pirámide como lugar de tránsito entre la muerte y la vida. Como el testimonio del que procede esta “verdad” menciona varias referencias de tipo agrario, no sería de extrañar que la alusión sea a estas estrellas, y a la constelación en su conjunto. d) Los tres patriarcas: Abraham, Isaac y Jacob. En el judeocristianismo, los patriarcas son aquellos personajes depositarios de las promesas de Dios a Israel para constituirlos como el pueblo de su propiedad. Abraham (Gn. 12, 1-3), Isaac, hijo de Abraham (Gn. 24, 11) y Jacob, hijo de Isaac (Gn. 28, 13-15) son el fundamento de Israel como pueblo y como nación. En buena parte de los libros de la Torá, Dios es presentado como “el Dios de Abraham, de Isaac y de Jacob” (Ex. 3,6), como si ese fuera su nombre propio. Con respecto al número cuatro: Cuatro evangelios. a) Cuatro evangelios. Conforme a la tradición cristiana antigua, como lo consignan Léon-Dufour (1992, pp. 292.329.361) y Carrillo Alday (1992, p. 35) los cuatro evangelios considerados canónicos o inspirados son los atribuidos a Marcos (ca. 65-70), Mateo (ca. 8090), Lucas (ca. 70-90) y Juan (ca. 90-100). b) Cuatro evangelistas. Como ya se refirió en el inciso anterior, los cuatro evangelistas son estos personajes a quienes la tradición cristiana antigua les ha atribuido la autoría de dichos escritos. Papías, hacia el 125, habla de Marcos como el intérprete o ñìåíåõôuò de Pedro (LÉON-DUFOUR, 1992, p. 286) y de quien escucharía la predicación que luego puso por escrito (cfr. He. 12, 12. 1Pe. 5, 13). El mismo Papías (LÉON-DUFOUR, 1992, p. 323) explica que Mateo es el apóstol publicano (cfr. Mt. 10, 3), identificado también R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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como Leví (cfr. Mc. 2, 14). Desde la segunda mitad del siglo II, explica Léon-Dufour (1992, p. 356), el canon de Muratori señala a Lucas, el médico acompañante de Pablo en sus viajes misioneros como autor del tercer evangelio (cfr. Col. 4, 14. He. 16, 10-17). El cuarto evangelio se le atribuye a Juan, uno de los Doce apóstoles desde los últimos decenios del siglo II, y a quien se suele identificar con el “discípulo amado” (cfr. Jn. 13, 23. 21, 24), que si bien, no es el autor material de la última redacción del texto, sí está en la base del mismo (CARRILLO ALDAY, 1992, p. 37). c) Cuatro témporas. En la tradición religiosa anterior a las reformas del Concilio Vaticano II de 1963, las témporas eran días reservados por la Iglesia para el ayuno y abstinencia al principio de cada estación del año (STRAUBINGER, 1958, p. 290). Las témporas fueron una adaptación a las prácticas romanas de ofrecer sacrificios para lograr cosechas abundantes. La Iglesia agregó la idea de la propagación de la vida sobrenatural por medio del sacerdocio y por ello las témporas fueron días de preparación para aquellos que se ordenarían sacerdotes. Las témporas tenían como objetivo el consagrar cada inicio de estación a Dios, pedir por buenas cosechas y agradecer las anteriores. Las témporas se celebraban los miércoles, viernes y sábados siguientes al tercer domingo de adviento, al primer domingo de cuaresma, al domingo de Pentecostés y al 14 de septiembre (STRAUBINGER, 1958, p. 290). d) Las cuatro matriarcas: Sara, Rebeca, Raquel y Lea. Las matriarcas son el complemento femenino de los tres patriarcas que dan origen a Israel. Sara, esposa de Abraham y madre de Isaac (Gn. 17, 15-16), Rebeca, esposa de Isaac y madre de Jacob y de Esaú (Gn. 25, 19-26) y Raquel y Lea, esposas de Jacob y madres de sus 12 hijos, de donde saldrán las tribus de Israel (Gn. 35, 22b-26). Las cuatro matriarcas son también fundamento de Israel como pueblo depositario de las promesas de Dios. Con respecto al número cinco: Cinco llagas. a) Cinco llagas. Esta expresión alude a las heridas del R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Crucificado-Resucitado cuando se muestra a los apóstoles en la noche del primer día de la semana, el domingo de resurrección, mostrando las manos, los pies y el costado con las huellas de los clavos y de la lanzada recibidas en la crucifixión (cfr. Lc. 24, 39-40. Jn. 20, 20. 27). En la Edad Media, en el siglo XII, Bernardo de Claraval aseguró tener una revelación en la que el mismo Jesucristo le habló de una herida en su espalda “honda tres dedos, que se me hizo llevando la Cruz; esta me ha sido de mayor pena y dolor que todas otras; la cual consideran poco todos los hombres por no serles conocida: pero tú tenla en veneración” (LÓPEZ, 1998). El papa Eugenio III a instancias de san Bernardo concedió a quien dijese tres veces el Padrenuestro y Avemaría en honra de la llaga de la espalda de Jesucristo, tres mil años de indulgencia (LÓPEZ, 1998). Otra piadosa leyenda medieval cuenta que santa Brígida de Suecia deseaba saber cuántos azotes recibió Jesús en su Pasión. Entonces Cristo se le apareció y le dictó quince oraciones para rezarlas diariamente durante un año, junto con un Padrenuestro y un Avemaría por cada una. “Al terminar el año, le dijo, habréis venerado cada una de mis llagas” (LÓPEZ, 1998). b) Cinco mil vírgenes. No existe ninguna relación a tradiciones religiosas sobre cinco mil vírgenes. Esta expresión parece ser una corrupción de la expresión “once mil vírgenes”, de la cual sí hay una leyenda europea antigua y de la que se hablará en el apartado con respecto al número once. c) Los cinco libros de la Torá. A partir del año 70, con la destrucción de Jerusalén por Tito, los rabinos y sabios judíos se reunieron en Jamnia para determinar cuáles serían los libros que habrían de considerarse revelados por Dios y que no estuvieran “contaminados” por influencias paganas o del naciente cristianismo. Uno de los criterios fundamentales fue desechar los textos escritos en griego y considerar solo aquellos escritos en hebreo. La Biblia Hebrea quedó constituida en tres partes: La Ley o Torá, Los Profetas o Nebiím y Los Escritos o Ketubim. La Torá se llamó en griego Pentateuco y se conformó por “En el principio” o Génesis, “Estos R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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son los nombres” o Éxodo, “Llamó YHWH a Moisés” o Levítico, “En el desierto” o Números y “Estas son las palabras” o Duteronomio (UBIETA, 1998, p. XII). Con respecto al número seis: Seis candeleros. a) Seis candeleros, candelabros, candelas, candelarias o velas. Al parecer, la referencia remite a la liturgia eucarística del rito latino-romano anterior a la reforma litúrgica de la constitución Sacrosanctum Concilium del Concilio Vaticano II en 1963, en la que se mandaba que en el altar mayor de las iglesias se encendieran seis cirios para la celebración de la misa mayor (STAUBRINGER, 1958, p. 195). El testimonio de Atotonilco añade que los seis candeleros están “en la Iglesia”, reafirmando lo anterior, así como el testimonio de John Cuellar que explicita que “arden en el altar para celebrar la misa mayor”. Por su parte, Ignacio Valdés ubica los seis candeleros en Galilea, Fabiola Ruiz en Roma, y Morote 2 en Belén, muy probablemente en alusión a las llamadas “Iglesias Madre” de la antigua cristiandad, por ser Palestina el lugar de donde salió Jesucristo a su predicación o Roma la sede de Pedro.La variante de Morote 2 sobre las hachas que ardieron en el monte de Galilea, puede ser una alusión al imaginario popular del descenso de Jesús de la cruz en el monte Calvario, como aparece en abundante iconografía, pero sin mayor referente documental. b) Seis mandamientos. No existe ninguna relación a tradiciones religiosas sobre seis mandamientos. Esta expresión parece ser una corrupción de la expresión “diez mandamientos”, de la que sí hay referencias y se hablará de ellas en el apartado con respecto al número diez. c) Los días que pasó Dios Nuestro Señor para crear todo lo que en materia poseemos. Esta “verdad” remite al relato de la creación contenido en el Génesis (1, 1-31), donde, en un esquema de seis días, Dios separa la luz y la oscuridad, las aguas y la tierra, crea las diferentes especies de plantas y de animales y por último al ser humano. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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d) Los seis tratados de la Mishná: Zeraim (semillas), Moed (fiestas), Nashim (mujeres), Nezikín (daños), Kodashím (cuestiones sagradas), Toharot (pureza). Los fariseos reconocían una Torá escrita y una Tora oral. Esta última, paulatinamente, irá adquiriendo un carácter divino y se le considerará dada a Moisés también en el Sinaí. En los siglos posteriores se plasmará por escrito en la Mishná, que junto a su comentario, la Quemará, constituirá la parte mayor del Talmud, compilación de la ley oral de los judíos. Mishná, del hebreo shaná=repetir, es el texto del Talmud, compilado alrededor del siglo II-III d.C. por Rabí Yehudá. Pone por escrito tanto la práctica de la ley, como la doctrina jurídica y moral enseñada por los rabinos. Consta de 6 grandes secciones u órdenes (sedarim). Cada orden con un número variado de tratados (masekot), en total 63, y cada tratado subdividido en capítulos (peraquim), en total 523 (JUNCO, 2008, pp. 132. 265). Con respecto al número siete: Siete palabras. a) Siete palabras. Esta expresión remite a los logia de Jesús en la cruz, que entre los cuatro evangelios canónicos dan un total de siete dichos: 1) “Padre, perdónalos porque no saben lo que hacen” (Lc. 23, 34); 2) “Hoy estarás conmigo en el paraíso” (Lc. 23, 43); 3) “Mujer, ahí tienes a tu hijo. Hijo, ahí tienes a tu madre” (Jn. 19, 26-27); 4) “Dios mío, Dios mío, ¿por qué me has abandonado?” (Mt. 27, 46); 5) “Tengo sed” (Jn. 19, 28); 6) “Todo está consumado” (Jn. 19, 30); 7) Padre, en tus manos encomiendo mi espíritu” (Lc. 23, 46). Son una devoción propia del tiempo de la semana santa, especialmente del Viernes Santo (JACOBO, 1989, p. 156-161), en el que se acostumbraba realizar el “sermón de las Siete Palabras”, haciendo reflexiones y exhortaciones morales a partir de cada uno de estos logia. b) Siete gozos. Los siete gozos de la Virgen es una devoción franciscana parecida al rosario. Se remonta al siglo XV y está en el origen de la corona de siete misterios que muchos franciscanos y franciscanas llevan colgada en el cordón (GÁLVEZ, 2007). Primer gozo: El ángel Gabriel anuncia a María el nacimiento de Jesús (cfr. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Lc 1,30-31.38); Segundo gozo: María visita a su pariente Isabel (cfr. Lc 1,39-42); Tercer gozo: Jesús nace de la Virgen María (cfr. Lc 2,67); Cuarto gozo: Unos magos de Oriente adoran al niño Jesús en Belén (cfr. Mt 2,1.11); Quinto gozo: María y José encuentran al niño Jesús en el Templo (cfr. Lc 2,43.46.48-49); Sexto gozo: Jesús resucita victorioso de la muerte y se aparece a los suyos (cfr. Hc 1,14; 2,1-4); Séptimo gozo: María es elevada al cielo y coronada como reina y primicia de la humanidad redimida (cfr. Ap 11,19; 12,1). c) Siete elementos. En la tradición alquímica los siete elementos están vinculados a los cuerpos celestes: Sol-oro, Luna-plata, Mercurio-mercurio, Venus-cobre, Marte-hierro, Júpiter-estaño, sin olvidar que el siete simboliza totalidad: siete elementos son la totalidad de lo creado, y siete planetas que los reflejan son todo el universo (GHEERBRANT, 2007, p. 943). d) Siete cielos. En la tradición judía talmúdica existen siete cielos, cada uno con su jerarquía, sus estrellas y ángeles; según el Zohar (2002, p. 32) son Vilón, Rakía, Shejakim, Zevul, Ma’ón, Majón y Aravot, que son usados como metáfora para describir estados espirituales. San Pablo hace una referencia velada a esto en 2Co. 12, 2 al hablar de un arrebato al tercer cielo. e) El séptimo día que impuso de descanso después de haber logrado su propósito. Esta “verdad” remite al texto de Génesis 2, 2-3 en el que se narra que al concluir los seis días de la creación, YHWH descansa y santifica el séptimo día. Con base en los estudios bíblicos, los exegetas coinciden en señalar un esquema llamado “sacerdotal” en este relato de la creación, explicando así el sentido sagrado del shabbat en la tradición judía, aunque no se menciona aquí por ese nombre y a que el sábado será impuesto en el Sinaí como señal de la Alianza (cfr. Ex. 31, 12-17) (CLIFFORD, 1990, p. 456). f) Los siete días de la semana que presenta el Ejad no tienen necesariamente un sentido religioso, salvo el esquema creacional escrito en Gn. 1-2, 4a y que pertenecería al llamado documento yahvista –J- (UBIETA, 1998, p. 7). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Con respecto al número ocho: Ocho coros. a) Ocho altares. No existe una referencia religiosa clara a ocho altares. Podría ser, pero de forma muy forzada, una alusión a las siete iglesias, y sus respectivos altares, mencionadas en el libro del Apocalipsis (cfr. Ap. 2, 1-3, 22) y el octavo sería el altar del cielo mencionado ya en el Canon Romano hacia la primera mitad del siglo III (RADECKI, 1995). b) Ocho coros. No hay referencia religiosa precisa a la expresión “ocho coros”. Podría ser una forma corrupta de los “nueve coros” del Pseudo Dionisio, pero Cipriano de Cartago (1986, pp. 626-627) escribe, en su Tratado sobre la muerte que Allí está el coro celestial de los apóstoles, la multitud exultante de los profetas, la innumerable muchedumbre de los mártires, coronados por el glorioso certamen de su pasión; allí las vírgenes triunfantes, que con el vigor de su continencia dominaron la concupiscencia de su carne y de su cuerpo; allí los que han obtenido el premio de su misericordia, los que practicaron el bien, socorriendo a los necesitados con sus bienes, los que, obedeciendo el consejo del Señor, trasladaron su patrimonio terreno a los tesoros celestiales. Deseemos ávidamente, hermanos muy amados, la compañía de todos ellos.

Posteriormente, la llamada letanía lauretana termina con lo que podrían ser estos ocho coros: 1) ángeles; 2) patriarcas; 3) profetas; 4) apóstoles; 5) mártires; 6) confesores; 7) vírgenes y 8) santos. c) Ocho angustias. No hay referencia religiosa precisa a la expresión “ocho angustias”, parece ser una forma corrupta de la tradición piadosa de los “siete dolores de María”. Inspirada en las tradiciones evangélicas de la Pasión, la figura de la Madre Dolorosa sirvió como elemento de piedad y devoción en las celebraciones de la Semana Santa. De ahí, y como correlato de los siete gozos de María, nace la tradición de los siete dolores de María, promovida desde la Edad media por los Servitas y aprobada para la iglesia R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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latina en 1817: 1) La profecía de Simeón (cfr. Lc. 2, 34-35); 2) la huída a Egipto (cfr, Mt. 2, 13-14); 3) La pérdida del niño Jesús en el Templo (cfr. Lc. 2, 48); 4) el via crucis de Jesús (cfr. Mt. 27, 31ss et par.); 5) María al pie de la cruz (cfr. Jn. 19, 25); 6) El descendimiento del cuerpo de Jesús de la cruz (cfr. Mt. 27, 57ss et par.); 7) Jesús es sepultado (cfr. Mt. 27, 60 et par.). (STAUBRINGER, 1958, p. 184). En la tradición japonesa del Bushido existen ocho angustias: 1) vivir, 2) envejecer, 3) enfermarse, 4) morir, 5) la despedida de las personas que se ama; 6) el encuentro con un contrincante malvado o un jefe regañón; 7) la angustia de no poder apropiarse de lo que se quiere, cosas como el poder, el estatus, una buena nota, un amigo o una amiga que no te corresponda y 8) el hostigamiento por las pasiones ardientes y deseos pecaminosos (NAKAMURA, 2009, pp. 4-5), pero no parece ser esta la referencia de la “verdad”. d) Ocho gozos. No hay referencia religiosa precisa a la expresión “ocho gozos”, parece ser una forma corrupta de los “siete gozos” de la corona franciscana. e) La circuncisión de Jesucristo al octavo día de vida. Esta verdad hace referencia al texto del evangelio de Lucas (2, 21) donde se narra que, conforme a la ley judía, todo varón había de ser circuncidado a los ocho días de nacido como signo de pertenencia al pueblo de la Alianza (cfr. Gn. 17. Lv. 12, 3). f) Ocho los días de la circuncisión. Conforme al judaísmo, la alianza que Dios hace con Abraham queda sellada en la carne mediante la circuncisión de él y de todos los varones de su familia y grupo (Gn. 17). Después, la Ley de Moisés mandará que todo varón israelita sea circuncidado a los ocho días de nacido Lv. 12, 3. Con respecto al número nueve: Nueve meses. a) Nueve meses. Si bien esta no es una afirmación religiosa como tal, en virtud de que la gestación humana tiene un periodo de nueve meses, desde el contexto religioso cristiano en que se encuentra es una reafirmación de la naturaleza humana de Cristo, verdadero R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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hombre, consbustancial a la humanidad -Aìïï{óéïí !ìÖí ôxí áPôxí êáôp ôtí íèôñùðyôçôá, êáôp ðqíôá Eìïéïí !ìÖí ÷ùñvò ìáñôwáò-, como lo señaló el Concilio de Calcedonia en 451 (DENZINGER, 2000, pp. 162-163). En México, la tradición popular de origen colonial conocida como “posadas” rememora, durante nueve días las andanzas de José y María antes del nacimiento de Jesús en un establo en Belén. Estos nueve días, bien pueden ser la simple referencia al novenario de Navidad o a los nueve meses de gestación. b) Nueve coros. La jerarquía celeste, conforme al Pseudo Dionisio en el texto ðåñv ôÆò oPñáíwáò 1åñáñ÷wáò, está conformada por tres triadas de coros: 1) serafines, querubines y tronos; 2) virtudes, dominaciones y potestades; 3) ángeles, arcángeles y principados. Estas clasificaciones son propias del judaísmo y de la mitología babilónica. En la Biblia con frecuencia se les menciona a todos ellos (cfr. Gn. 3, 24. 28, 12 Is. 6, 2. Col. 1, 16.). c) Nueve gozos. No hay referencia religiosa precisa a la expresión “nueve gozos”, parece ser una forma corrupta de los “siete gozos” de la corona franciscana. d) Nueve cielos. No hay referencia religiosa precisa a la expresión “nueve cielos”, parece ser una forma corrupta de los “siete cielos” del Zohar. La única referencia directa está en Dante, cuando este habla del Paraíso en la Divina Comedia, como estructurado en las nueve esferas del sistema celestial descrito por Ptolomeo: siete de los planetas, el de las estrellas fijas y el del Primer Motor (DÍAZ PAZOS, 2008). Con respecto al número diez: Diez mandamientos. a)Diez mandamientos. Remite al texto de Éxodo 24, 12. 34, 1-5, donde Moisés labra dos tablas de piedra que contienen la Ley de la Alianza que YHWH entrega en el Sinaí a Israel y que se desglosan en 10 principios a seguir por Israel como núcleo de la Ley. El cristianismo los hace suyos y los matiza en algunas de sus afirmaciones: 1) Amarás a Dios sobre todas las cosas; 2) No tomarás R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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el nombre de Dios en vano; 3) Santificarás las fiestas; 4) Honrarás a tu padre y a tu madre; 5) No matarás; 6) No fornicarás; 7) No robarás; 8) No levantarás falso testimonio ni mentirás; 9) No consentirás pensamientos ni deseos impuros y 10) No codiciarás los bienes ajenos. Con respecto al número once: Once mil vírgenes. a) Once mil vírgenes. Esta verdad remite a la leyenda medieval de santa Úrsula. Úrsula se convirtió al cristianismo prometiendo guardar su virginidad. Como la pretendía el príncipe bretón Ereo decidió realizar una peregrinación a Roma y consagrar su virginidad. En Roma, fue recibida por el papa, que la bendijo y consagró sus votos de virginidad perpetua para dedicarse a la predicación del evangelio. Al regresar a su tierra, fue sorprendida en Colonia por los hunos. Atila se enamoró de ella pero la joven se resistió y, junto a otras vírgenes fue martirizada. En el lugar se erigió una basílica dedicada a las “once mil vírgenes”, entre ellas Úrsula. En la inscripción de dedicación de este edificio se nombra a las otras doncellas: Aurelia, Brítula, Cordola, Cunegonda, Cunera, Pinnosa, Saturnina, Paladia y Odialia. Poncelet (1999) dice que Úrsula y sus once mil acompañantes proviene de los dos nombres Úrsula y Undecimillia, o de Úrsula y Ximillia, o de la abreviatura XI.M.V. (undecim martyres virgines), mal interpretada como undecim millia virginum. También se ha conjeturado, y esto es menos arbitrario, que es la combinación de las once virgenes mencionadas en los antiguos libros litúrgicos con la figura de varios miles (millia) dada por Wandalberto. Como quiera que sea, este número es desde entonces aceptado, así como el origen Británico de las santas, mientras que Úrsula sustituye a Pinnosa tomando el puesto principal entre las vírgenes de Colonia.

Con respecto al mil, este número ha tenido siempre un significado paradisiaco de exuberancia, es referencia a la inmortalidad de la felicidad (GHEERBRANT, 2007, pp. 712-713). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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b) El número de apóstoles después de la traición y muerte de Judas. Esta afirmación hace referencia a los textos bíblicos de Mateo 27, 5, donde Judas se ahorca tras haber traicionado a Jesús y Mateo 28, 16, donde el texto habla de Once discípulos y Hechos 1, 13, que da la lista de los Once apóstoles: Pedro, Juan, Santiago, Andrés, Felipe, Tomás, Bartolomé, Mateo, Santiago de Alfeo, Simón el zelota y Judas Tadeo. c) Once las estrellas en el sueño de José. Conforme al texto de Gn. 37, 9, José, hijo de Jacob sueña su futuro y el de sus hermanos con este simbolismo y con el de las gavillas (Gn. 37, 7) que, de acuerdo con el mismo texto, se cumple maravillosamente en Egipto años después (Gn. 42, 8-9). Con respecto al número doce: Doce apóstoles. a) Doce apóstoles. Conforme al testimonio evangélico, Jesús eligió a doce varones para que estuvieran con él y para enviarlos a predicar, una vez que fueran testigos de sus palabras y acciones. Los nombres de los Doce son: Simón, llamado Pedro, y Andrés, Santiago y Juan hijos de Zebedeo, Felipe y Bartolomé, Tomás y Mateo el publicano, Santiago de Alfeo y Judas de Santiago o Tadeo, Simón el zelota o el cananeo, y Judas Iscariote (cfr. Mt. 10, 1-4. Mc. 3, 14-19. Lc. 6, 1316. Jn. 6, 70.). Tras la resurrección, los Once eligen a Matías para completar el número de Doce apóstoles (cfr. He. 1, 13). b) Doce pastores. La figura del pastor es típica en la tradición bíblica para referir a los guías del pueblo, así lo menciona el texto de Ezequiel (34, 1ss) y la promesa de YHWH a Jeremías (cfr. Jr. 3, 15). Jesús toma para sí el símil del pastor (cfr. Mc. 14, 27), autodenominándose “Buen Pastor” (cfr. Jn. 10, 11ss). Los Doce, como testigos de Jesús, habrán de reproducir su imagen y guiar al pueblo de Dios. En este sentido “doce pastores” y “doce apóstoles” son términos intercambiables. c) Doce meses. Es una afirmación del contexto cotidiano sin connotación religiosa. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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d) Doce palabras. Solamente Calvarrasa menciona como “verdad” doce las Doce palabras, que son estas mismas “doce verdades” que se han venido refiriendo. e) Doce son las tribus: Reubén, Simeón (Leví), Judah, Issachar, Zebulún, Benjamín, Dan, Naftalí, Gad, Asher, Efraim, Manasé. Los doce hijos de Jacob no son los que dan origen a las doce tribus de Israel. Efraín (Efraim) y Manasés (Manasé) son hijos de José y vienen a ocupar el lugar de José y de Leví en el reparto de la tierra de Israel con Josué (Jos. 13-19). Con respecto al número trece. Aunque en el listado de la posible forma original no se incluye este número, seis versiones mencionan o hacen alusión a una verdad trece, que se expone a continuación. a) Trece rayos de sol conduzcan a las brujas y a las hechiceras a los infiernos. El testimonio de Curanderismo es el único que menciona esta “verdad”. La idea de los rayos de sol remite a emanaciones de un centro, bueno y santo, sobre los seres. Significa una influencia fecundante o esterilizante, dependiendo de la persona que los recibe (GHEERBRANT, 2007, p. 870). Así, el centro bueno o santo, el sol o Dios, esterilizaría la maldad de las brujas que reciben sus rayos. b) Los trece rayos de sol que le caigan al demonio y le partan el corazón. De Vicente (2005) y Morote 1 (1993) mencionen esta “verdad”. Al igual que en el inciso anterior, aparece el mismo simbolismo de los rayos de sol, pero aquí es el demonio quien los recibe, no las brujas. Esta expresión remite a la idea del acertijo o al juego de habilidad que supone la recitación de las Doce Verdades o Palabras, donde el trece serviría de conjuro ante la trampa o el engaño del demonio. c Las doce ya las dije, trece no las aprendí, vete al infierno, demonio, que esta alma no es para ti. Esta expresión en Ignacio Valdés (2007) remite, nuevamente, a la idea de un acertijo o un juego de habilidad, donde el trece serviría de trampa o de engaño a quien recita las Doce Verdades una por una. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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d) Trece son los atributos de Dios según el recuento del libro de Éxodo 34, 6-7. Es el listado de atributos que Dios da de sí mismo cuando Moisés pide que le muestre su rostro en la peña del Horeb. Además, trece es el valor numérico de la palabra hebrea ejad, uno. Esto lleva nuevamente a la primera estrofa del poema, la unicidad de Dios.

ii) Los simbolismos del cordón y de los nudos del ritual Como se mencionó con anterioridad, la recitación de las doce verdades del mundo van acompañadas de un ritual que consiste en hacer un nudo en un cordón –o en algo parecido- cada vez que se menciona una verdad y luego se va deshaciendo el nudo cuando se recitan las verdades al revés. De este modo se construye el ritual: verdad, cordón y nudo. Palabras y acciones íntimamente ligadas entre sí, como en los mitos tradicionales de la creación del mundo en todas las culturas. El cordón simboliza ascensión, medio y deseo. El cordón con nudos simboliza ligaduras y virtudes secretas o mágicas (GHEERBRANT, 2007, p. 386). El cordón, por extensión, simboliza la vida. La tradición bíblica mira la vida como una cuerda de tejedor que puede cortarse de pronto (cfr. Is. 38, 12). Así también la mitología griega con la figura de las Moiras, Cloto y Láquesis, que controlan el hilo de la vida de cada ser humano y Átropos lo corta al llegar su fin. En su origen son divinidades relacionadas con la vida del hombre. Sus nombres significan “la que hila”, “la que asigna el destino” y “la inflexible”. Los romanos llamaron a estos seres Parcas. Las tres Parcas eran Nona, que hilaba el hilo de la vida desde su rueca hasta su huso, Décima, que medía el hilo de la vida con su vara y Morta, que cortaba el hilo de la vida, eligiendo la forma en que la persona moría (GARIBAY, 2003, p. 251). En la mitología nórdica hay una figura semejante, las Nornas. Sus nombres son Urd, lo que ha ocurrido o el destino, Verdandi, lo que ocurre ahora y Skuld lo que debería suceder o es necesario que R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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ocurra. Todas ellas están asociadas al destino y que el pasado, el presente, y el futuro están entrelazados de tal modo que no pueden ser separados por las tres Nornas principales. Viven bajo las raíces del árbol del mundo en el centro del cosmos, donde tejen los tapices de los destinos. La vida de cada persona es un hilo en su telar, y la longitud de cada cuerda es la duración de la vida de dicha persona, incluso los dioses tienen sus propios tapices, aunque las Nornas no se los dejan ver (DALY, 2010, p. 74). El cordón simboliza la vida y la persona. Es un símbolo del cordón umbilical. El oficio y arte de tejer y de hilar son tan antiguos como el hombre mismo. No por nada el tejer es un símbolo del destino que se construye y se teje, nunca mejor dicho, con las relaciones y las decisiones. Sin embargo, tejer no solo simboliza predestinar, en un sentido antropológico, o reunir realidades diferentes en el plano cosmológico, sino también significa crear, sacar de la propia sustancia, como lo hace la araña al tejer su tela (GHEERBRANT, 2007, p. 982). Un nudo representa fijación en un estado determinado, pero es un símbolo doble, ya que deshacer el nudo significa liberación. Entre los pueblos árabes los nudos están relacionados con la muerte y se usan para conjurar el mal de ojo. Los nudos en una cuerda están atados entre ellos y ligados a su principio. (GHEERBRANT, 2007, p. 756). Además los nudos simbolizan el atar la voluntad o atar a la persona. Existen prácticas religiosas mágicas, en las que se anuda a un santo al que solo se desanudará cuando otorgue los favores solicitados. Por ejemplo, en el sur de la Ciudad de México, cuando alguien pierde algún objeto, para hallarlo anuda una prenda de color rojo y golpea con el nudo tres veces al tiempo que recita el siguiente verso: San Cucufato, san Cucufato/hasta que no me lo entregues/no te desato. De esta forma, quien reza Las Doce Verdades al tiempo que “teje” los nudos en el cordón, está definiendo el destino de la bruja o brujo que ha decidido atrapar. Desde este sentido es inevitable que funcione el conjuro, pues se atan las propiedades mágicas del R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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brujo o bruja con ello. Pero también “desteje” los nudos cuando reza al revés Las Doce Verdades. Este derecho y revés del rezo y del anudar-desanudares un simbolismo del movimiento de vida-muerte, de todo lo que nace, muere y renace.

Lenguaje oral y ficción Las doce verdades del mundo, en cuanto forma narrativa, muestra en su estructura cómo el lenguaje oral refleja la cosmovisión en que se producen. Siguiendo a Ong (2011, pp. 40-41) en una cultura oral, la restricción de las palabras al sonido determina los modos de expresión y los procesos de pensamiento al grado que, las necesidades mnemotécnicas determinan la sintaxis. Esta dependencia implica que la experiencia sobre el mundo se interioriza y funciona desde la memoria. Así, Ong explica que (2011, p. 42) [...] toda expresión y todo pensamiento es formulaico hasta cierto punto en el sentido de que toda palabra y todo concepto comunicado en una palabra constituye una especie de fórmula, una manera fija de procesar los datos de la experiencia, de determinar el modo como la experiencia, de determinar el modo como la experiencia y la reflexión se organizan intelectualmente, y de actuar como una especie de aparato mnemotécnico. Expresar la experiencia con palabras (lo cual significa transformarla por lo menos en cierta medida, que no falsificarla) puede producir su recuerdo.

Ahora bien, de acuerdo con Cardero (2009) los mitos, leyendas y cuentos son estructuras culturales que tienen el papel de neutralizar la angustia que lo desconocido produce en un grupo humano. Esto se realiza mediante la articulación de los signos y símbolos, establecidos en cada cultura, en los relatos, mitos y leyendas, y reciben el nombre de intersignos. Estos han de ser cuidadosamente diseñados para que puedan desempeñar su función. R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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Mitos, leyendas y cuentos tienen su origen en la cultura oral, pues su relación a lo numinoso y sagrado refleja las preocupaciones fundamentales de la existencia (ONG, 2011, p. 78). Aparece así la primera diferencia entre lo fabuloso8 y legendario, con lo histórico. En opinión de Auerbach (2011, p. 25-26) la diferencia estriba en que En lo legendario se elimina todo lo contrapuesto, resistente, diverso, secundario que se insinúa en los acontecimientos principales y en los motivos directores; todo lo indeciso, inconexo, titubeante que tienda a confundir el curso claro de la acción y el derrotero simple de los actores. La historia que nosotros presenciamos o que conocemos por testigos coetáneos, transcurre en forma mucho menos unitaria, más contradictoria y confusa; tan solo cuando ha producido ya resultados dentro de una zona determinada, podemos con su ayuda ordenarla de algún modo, y cuántas veces ocurre que el pretendido orden conseguido nos parece de nuevo dudoso, cuántas veces nos preguntamos si los resultados aquellos no nos llevaron a ordenar demasiado sencillamente los anteriores acontecimientos. La leyenda ordena sus materiales en forma unívoca y decidida, recortándolos de su conexión con el resto del mundo, de modo que éste no pueda ejercer una influencia perturbadora, y conoce tan sólo hombres definitivamente cortados, determinados por unos pocos motivos simples, y cuya unidad compacta de sentir y de obrar no se puede alterar [...] Es tan difícil escribir historia, que la mayoría de los historiadores se ve obligada a hacer concesiones a la técnica de lo fabuloso.

Este es el papel de la ficción, y en el lenguaje oral es omnipresente. De acuerdo con Martínez Bonati (2001, p. 177), una ficción es a la vez real y ficticia, pues el lenguaje literario asume formas fantásticas que el discurso nunca asume en una comunicación real formal. Las afirmaciones de certeza de un narrador en tercera persona, cuando refieren hechos singulares, no pueden ser puestos en duda de manera seria. Las afirmaciones que hacemos en la vida real sobre hechos cualesquiera pertenecen al ámbito de lo empírico. La posibilidad de que sean falsos o no estrictamente exactas, “es parte de nuestra R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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comprensión de ellas como actos del lenguaje” (MARTÍNEZ BONATI, 2001, p. 180). Por el contrario, prosigue Martínez Bonati (2001, pp. 180-181) la comprensión de afirmaciones pseudoautoriales relativas a hechos del mundo narrado excluye la posibilidad de que sean falsas y les concede verdad y exactitud, pero solo dentro del juego de la ficción y dentro del propio mundo ficticio. “Les concedemos lúdica e irónicamente la naturaleza del lenguaje, y ello tan solo dentro del ámbito de lo fictivo. Son lenguaje ficticio, y por eso pueden ser, como son, afirmaciones empíricas absolutamente indudables” (MARTÍNEZ BONATI, 2001, p. 181). La ficción literaria permite hacer una narración que hubiera podido ser o que pudiera ser, pero no es. Y aquí está el papel del mito y del símbolo narrados ficticia y literariamente, pues la verdad que busca la literatura no es una verdad “epistémica”, sino moral. Y el mito y el ritual tienen una función sanadora o regeneradora (ELIADE, 1981, p. 52). De esta manera, el ritual exige la recitación solemne del mito, pues los rituales evocan el comienzo, el tiempo primordial y mítico. La ficción narrativa, enmarcada en el contexto cultural en que se produce, completa el marco de la realidad desde el cual se asume como verídico lo narrado y los símbolos adquieren toda su fuerza y despliegan por entero su potencialidad que impacta profundamente al ser humano que participa de la narración. De esta forma, si Las doce verdades del mundo son una narración simbólica y ritual que apela a los mitos del cristianismo, en virtud del papel regenerador del mito, conseguirían conjurar el mal que supone la brujería.

Conclusión Las doce verdades del mundo llevan consigo una profunda articulación simbólica, como se ha señalado para cada una de ellas R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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en lo particular, pero pueden ser consideradas, en conjunto, un camino simbólico de iniciación.El camino iniciático comienza, en Dios, fuente de todo cuanto es y existe (I). Las Tablas de la Ley (II) simbolizan la entrada de Dios en la historia para revelarse al hombre, revelación que llega a su plenitud con Cristo, que revela la Trinidad Divina (III) y pone al alcance del hombre la salvación (IV) y con su muerte y resurrección (V) abre los cielos a la humanidad, comunicando siempre su vida por la Eucaristía y los sacramentos (VI) memoriales de su pasión (VII). Así la multiforme gracia de Dios santificará a los hombres (VIII), que habrán de dar a luz a Cristo en sus propias vidas (IX) aceptando la Ley de Dios en sus corazones (X), consagrándose en cuerpo y alma (XI) para construir el Reino de Dios en la tierra por la Iglesia (XII). Aquí se llega al punto central y comienza el “descenso”. Como bautizado y miembro de la Iglesia (XII) hay que esforzarse por consagrar todo el mundo a Dios (XI) y hacer que su Ley reine en todos los hombres (X). Así será posible que se forme Cristo en cada persona por la gracia (IX). Esta configuración con Cristo lleva al creyente a hacer vida la fe en los diferentes ámbitos de la vida, de sus quehaceres y trabajos (VIII), incluso hasta el extremo de dar su vida (VII). La gracia de los sacramentos (VI) mantiene viva la fuerza de la esperanza de que otro mundo es posible, siguiendo las huellas de Jesucristo Crucificado y Resucitado (V), convirtiendo los evangelios (IV) en guía para la vida y conduciendo el mundo y la historia al Padre, por Cristo en el Espíritu (III), y haciendo del amor, centro de la Ley de Dios y su Alianza (II), el núcleo de la Nueva Creación, donde Dios será todo en todos (I). El papel de conjuro le vendría dado a Las doce verdades en virtud de su capacidad de introducir en el misterio divino. Además, el hecho de narrarse al derecho y al revés, junto al rito de los nudos, implica la simbólica de la magia simpática, donde, gracias a la semejanza del objeto mágico, el ritual se apropia de la fuerza de aquello a lo que se asemeja. Y no se puede ignorar el hecho de que la brujería sea considerada, desde la Edad Media, una oposición o R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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remedo de la creación de Dios; una especie de revés deforme. Y ahí estribaría la parte mágica del conjuro.

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Notas 3

Corresponde a la tesis doctoral que se desarrolla en la Universidad Autónoma de Nuevo León con el título de Lenguaje contextos y producción simbólica en la tradición oral sobre brujería en el sureste del estado de Coahuila. 4 1) Un relato en audio obtenido por entrevista de una mujer de 80 años, habitante de Saltillo; 2) El artículo escrito por Armando Fuentes Aguirre, titulado “Las Doce Verdades. ¿Habrá tantas en este mundo mentiroso?”; 3) El texto de las Doce verdades publicado en el libro Alabanzas que se cantan en el santuario de Nuestro Padre Jesús de Atotonilco Guanajuato”; 4) El artículo de internet “Curanderismo” de Bryant “Eduardo” Holman; 5) El artículo de internet “Enciclopedia de los Municipios de México, Estado de Jalisco, Zapotitlán de Vadillo”; 6) El texto de las Doce verdades publicado por Materia John Cuellar; 7) El texto de las Doce verdades publicado por Rocío Adelita de las Pistolas; 8) El texto de la canción popular 237 “Serie Acumulativa” publicada por Sergio Bernal; 9) El texto de la oración “Las Doce Palabras redobladas” publicado por Juliana Panizio; 10) El texto de la canción del pueblo Calvarrasa de Arriba “Las doce palabras”; 11) El texto de Las doce palabras retornadas, publicado por Ignacio Valdés; 12) El texto de las Doce verdades publicado por Fabiola Ruiz en la novela Telares; 13) La letra de la canción “La Baraja Bendita” de los Tigres del Norte; 14) “Las palabras retornadas” del artículo de Enrique de Vicente y Lorenzo Fernández “Curanderos, el poder de la tradición”; 15) “Las palabricas retornadas”, según el primer texto de Pascuala Morote en “Las creencias y supersticiones de Jumilla”; 16) “Las palabricas retornadas”, según el segundo texto de Pascuala Morote en “Las creencias y supersticiones de Jumilla”; 17) Las palabras retornadas, de la Asociación Cultural Sierra de Segura; 18) Las doce verdades del mundo, según el texto de la Casa Cristo Rey; 19) “Ejad mi Iodea” según el texto del rabino León Klenicki. 5 Y, sin embargo, ya se ha hecho la primera fase: la collatio, que consiste en la recopilación de testimonios según Alberto Blecua (1983). R E V I S T A ALERE - P R O G R A M A

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6 Según el Diccionario de mexicanismos (Academia Mexicana de la Lengua, 2013, p. 423), es un “pañuelo de algodón, grande y cuadrado, generalmente de vivos colores estampado con diversas figuras geométricas que se repiten”. 7 A partir del año 2002, Juan Pablo II agregó al rosario los misterios llamados “de luz”. 8 En el sentido latino de fabula, como conversación coloquial que da origen al relato mítico.

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LA FUNCIÓN MITOPOÉTICA DEL ‘ÉL ES DIOS’ DEL ACTO COMUNICATIVO EN LA DANZA CONCHERA EN MÉXICO THE MYTHOPOETIC FUNCTION IN EL ES DIOS OF COMMUNICATIVE ACT IN CONCHERA DANCE IN MEXICO José Luis Valencia González (ENAH-Mx)1 A mi padrino Manuel que partió al mictlán a los 99 años lleno de vida

RESUMEN: La danza conchera es una manifestación cultural que se practica actualmente en varias regiones de México. 1

Doctor en antropología social y profesor de la Escuela Nacional de Antropología e Historia de México.
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