Um Amor Circular: Reflexões sobre o Unheimlich em Freud e Hoffmann

July 16, 2017 | Author: Letícia Aranha Carreira | Category: N/A
Share Embed Donate


Short Description

Download Um Amor Circular: Reflexões sobre o Unheimlich em Freud e Hoffmann...

Description

Um Amor Circular: Reflexões sobre o Unheimlich em Freud e Hoffmann A Circular Love: Reflections about the Unheimlich in Freud and Hoffmann Ana Cristina Falcato1 – Instituto de Filosofia da Linguagem, IFL, Lisboa

Resumo: Com o suporte de uma leitura crítica de Das Unheimliche de Sigmund Freud, que conta com uma tradução em Português intitulada O sentimento de algo ameaçadoramente Estranho, este artigo expõe e explora a fonte de ambiguidade semântica patenteada no termo alemão para, a partir dessa mesma ambiguidade, extrair uma tese polémica mas forte. O radical “heim” – de “casa”, “familiar”, “próximo”, “evidente” – converte-se, em última análise, numa espécie de mutação circular, que evidencia a mobilidade do afecto, da Stimmung em questão, correspondendo à equivocidade da reacção humana a esse afecto, medida, no texto de Freud, pela reacção do leitor ao conto fantástico. O jogo “amoroso”, “erótico”, revela a natureza do impacto nos jogadores, que esconde uma anti-naturalidade e é a chave para a estranheza, que pode reverter os papéis fortes dos termos da relação erótica, mediante uma variação mínima (a mais eficaz) do phármacon, ou seja, do remédio-veneno que, manipulado na dosagem, aparta a unilateralidade do efeito. E é perigoso, por essa mesma razão. Para quem o recebe, certamente; mas sobretudo, para quem o administra. Palavras-chave: Amor, Círculo, Estranheza, Unheimliche. Abstract: Based on a critical reading of Sigmund Freud’s Das Unheimliche, which was translated into Portuguese as The Feeling of something threateningly Strange, this paper exposes and explores the source of semantic ambiguity displayed by the German word Unheimliche in order to derive from it a strong, even if polemical, thesis. The etymological root of heim – meaning “home”, “familiar”, “closeness”, “straightforward” – is converted into a sort of circular mutation, which puts forward the variability of the particular mood [Stimmung] in question – Strangeness – and corresponds to the equivocal human reaction while being in that mood, measured, in Freud’s text, by the reader’s reaction to the fantastic tale. The loving, erotic game shows the nature of its impact upon the players, covering a nonnatural feature which is the key to Strangeness. That Strangeness can revert the usual terms of a loving relationship, through a slight variation – also the most effective – in the dose of the erotic phármacon of thought, its effect ceasing to be predictable. For that same reason the phármacon is dangerous, both for the provider and for the provided, but especially for the first one. Keywords: Circle, Love, Strangeness, Unheimliche.

1

Doutora em Filosofia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa / Bolsista da Fundação para a Ciência e a Tecnologia / e-mail: [email protected]

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

Um Amor Circular: Reflexões sobre o Unheimlich em Freud e Hoffmann -201-

Introdução

E.

T.A.Hoffmann é, sem dúvida, um dos mestres do conto fantástico e um

dos percursores da moderna literatura do horror. Em Der Sandmann, Hoffmann conta a história de um desventurado estudante de medicina, Nathaniel, cujas traumáticas recordações da infância não permitem, apesar da estabilidade do momento presente em que a narrativa decorre, dissipar um núcleo de medo e ameaça primitivos constitutivos da personalidade do jovem adulto. No fundo, Hoffmann narra um episódio de enlouquecimento pela força não paliada da erupção consciente de material recalcado. Freud coloca este conto no centro do seu ensaio “Das Unheimliche”, aplicando assim ao género do conto fantástico algumas das teses centrais da sua teoria psicanalítica, como a noção do complexo de castração mas, sobretudo, aplicando sistematicamente os princípios da sua teoria do recalcamento e extraindo algumas das condições e consequências de um retorno do recalcado à consciência do sujeito. Freud conclui que a insubordinação de um conteúdo mental ou de um episódio vivido ao teste da realidade, quando este é tornado indispensável para aplacar uma “incerteza intelectual”, pode derivar no sentimento de algo ameaçadoramente estranho.

1 Um Estranho à Conversão “Designa-se por ‘Unheimlich’ tudo aquilo que deveria permanecer em segredo, oculto, e que se revelou” F.W.J.Schelling

O texto a que Freud chamou Das Unheimliche data do ano de 1919. Vinte anos depois da publicação de Traumdeutung que, na verdade, apareceu ainda em 1899, embora Freud tenha querido adiar a sua publicação até ao ano seguinte, 1900, para, assim, ser uma das obras que abria o século XX, tal como a própria cimentação da Psicanálise e a separação de Freud relativamente aos trabalhos em co-autoria que escrevera anteriormente. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

FALCATO, Ana Cristina -202-

O texto de que agora nos ocupamos é posterior a Totem und Tabu (1912-13), Trauer und Melancholie (1917), Eine Kinderheitserinnerung des Leonardo da Vinci (1910) ou Der Moses des Michelangelo (1914). Não se pretende indiciar aqui uma pequena cronologia de alguns dos textos mais marcantes e decisivos de Freud ou dos contributos, temporalmente situados, que deram à cimentação da teoria psicanalítica ou mesmo da ciência e da literatura em geral. Só que o caminho de pensamento de um pensador – e de um pensador da envergadura de Sigmund Freud – é sempre uma história acidentada de factos e de alguns factos que são verdadeiros feitos. Em diálogo sistemático com a Ciência, a Arte e a Filosofia do seu tempo – e dos tempos genéticos que as trouxeram até si e as explicam –, Freud fez, pela via psicanalítica (enquanto prática de que se extraíram um conjunto de princípios teóricos e de teses axiais na história do pensamento do século XX), uma nova “Crítica da Razão”, pensada como Crítica da Consciência e numa acepção muito próxima da de Immanuel Kant. Os fantasmas históricos do próprio texto que, qual motor de busca, levanta a âncora do axioma (da segurança), para se arriscar na errância – Unheimlich – do hipotético, são o garante da própria possibilidade de acertar, ou seja, do risco de um continente não completamente cartografável, entre o Conceito e o feedback pouco razoável de quem não se sente em casa: O psicanalista raramente se sente impelido a realizar investigações estéticas (…). Ele trabalha noutros estratos da vida psíquica e pouco se ocupa dos movimentos emotivos – inibidos quanto ao fim, abafados, dependentes da constelação de factos que os acompanham – que constituem a maior parte da matéria da estética. De vez em quando, é levado a interessar-se por um determinado domínio da mesma, que é habitualmente aquilo que é marginalizado, ignorado pela literatura especializada. Um desses domínios é o sentimento de algo ameaçadoramente estranho (FREUD, s.d., p. 209).

Das Unheimliche: inconvertível em substantivo, em substrato de captação conceptiva. Traz o matiz confiável do “heim”, relativo ao lar, à casa, ao familiar, ao seguro, bem como uma matriz espacial do significado; e o “apêndice-prefixo” do “Un”, que extrai o positivo por um gesto de a-posição e, bem assim, de “mistura” ou inclusão de níveis de leitura quase incompatíveis. Porém, co-originários, presentes – potencialmente – numa situação dada, sem margem nenhuma de garantia a um dos pólos.

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

Um Amor Circular: Reflexões sobre o Unheimlich em Freud e Hoffmann -203-

2 Calcanhares de Aquiles O termo alemão Unheimlich não se deixa verter numa tradução única, de algum modo consensual. Um equivalente possível, em português, seria a palavra “Estranho”. Porém, a conformidade dissipa-se, logo que se regista um dado paradoxal do próprio uso corrente do alemão, e que é o motor da análise semântico-genética feita por Freud ao longo do texto: Heimlich tanto pode significar algo que não é familiar, conhecido, como algo que o é: Somos advertidos de que, em geral, a palavra “heimlich” não tem um único significado, mas pertence a duas esferas de ideias que, não sendo opostas entre si, se encontram bastante distantes uma da outra – a do que é familiar, próximo, e a do que está escondido, do que permanece dissimulado (FREUD, s.d., p. 215).

O inventário lexical – extenso e bem matizado – que Freud faz no início do seu texto, recolhendo dados de vários idiomas, bem como exemplos da fala corrente ou extraídos da literatura, patenteia, muito claramente, esse contraste – acompanhado de uma situação temporal, sequencial: a de qualquer coisa que, tendo sido familiar, se torna, súbita e inexplicavelmente, estranha, estrangeira. Segundo Freud, e à luz da afirmação de Schelling – «O estranho é aquilo que, devendo permanecer oculto, se revelou» –, o elemento destoante e “sinistro” deriva a sensação de terror que provoca, não de uma fonte externa ou desconhecida ao processo ou vivência em que se insere mas, pelo contrário, de algo “estranhamente familiar” que, de algum modo, prende o sujeito à situação, por um vínculo afectivo inexplicavelmente forte. A análise multi-temática, feita por Freud ao longo do ensaio, foca o jogo literário e ficcional do exercício estético sobretudo num conto de E.T.A.Hoffmann, Der Sandmann, O Homem da Areia. Mas o ensaio também reconhece dívidas às peças de Shakespeare, ao pensamento de Schelling, a um texto de Otto Rank, um ensaio de Todorov e um outro de Jentsch – naquilo que tem de próximo e de mimesis de um processo vital, que diz respeito à maturação das próprias estruturas psíquicas, onde a ambiguidade inerente a uma dada representação ou à questão do duplo, como um duplo do Ego (o Super-ego), primeiramente ocorre: Apenas aqui posso indicar […] de que modo o sentimento de algo ameaçadoramente estranho produzido pelo retorno do que é semelhante deriva da vida psíquica infantil. No inconsciente, é possível reconhecer o domínio da compulsão à repetição, que provém dos motivos pulsionais. Essa compulsão depende, provavelmente, da

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

FALCATO, Ana Cristina -204-

natureza mais íntima das próprias pulsões, sendo suficientemente intensa para se sobrepor ao princípio do prazer. […] Estamos preparados para aceitar […] que aquilo que evoca essa compulsão interna à repetição seja sentido como ameaçadoramente estranho (FREUD, s.d., p. 226).

Ou seja, é apenas dentro de uma lógica de ilustração, por derivas e complexidades criativas de um processo que é inerente à própria psique e à infância do ser humano – processos esses que a Psicanálise “hierarquizou” e identificou com base numa terminologia técnica –, que Freud recorre à exploração temática da Estética e, no caso do presente texto, à estética do conto fantástico, como motivo explicitador e ponto de vista externo (no fundo, meramente fictício). Como dentro da própria ficção, as fronteiras entre o real e o farsado ou entre o possível (ao abrigo de uma certa lógica) e o fantástico ou delirante se esbatem ante os olhos de quem lê, deixando esse esbatimento como motivo de leitura e como uma espécie de “contrato tácito de fruição estética” da obra, também a aquisição teórica, argumentada, de uma explicação científica para um fenómeno psicológico, joga, no texto de Freud, o jogo da dubiedade de registos e das passagens subtis da teoria psicanalítica para a interpretação literária e para o interior do próprio conto fantástico.

3 Um Homem da Areia A inclusão de uma análise, original e inovadora para a época em que o ensaio de Freud foi escrito (1919), e já de feição totalmente psicanalítica, de um conto assaz conhecido da literatura alemã, Der Sandmann de E.T.A.Hoffmann, conduz a argumentação mais técnica, por parte de Freud, para o interior do próprio conto, um pouco como se o psicanalista se destacasse como um novo narrador. Freud demora-se na sinopse possível de um relato narrativo. O conto de Hoffmann está, ao início, construído sob a forma epistolar; forma essa que é, subitamente, interrompida pela voz exterior e anónima de um narrador, figura que muitos críticos literários atribuem ao próprio autor. O relato trata, efectivamente, de um processo de loucura, mas que fica relativizado, no final, pela ambiguidade proposta entre ficção e realidade.

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

Um Amor Circular: Reflexões sobre o Unheimlich em Freud e Hoffmann -205-

Um jovem, Nathaniel, afastado do seio da família por motivos de estudo, encontra, na sua nova cidade, um vendedor de barómetros, que identifica com o advogado Coppelius, o responsável, quando o personagem era criança, pela morte violenta do seu pai. O vendedor ambulante chama-se Coppola, o que legitima ainda mais a identificação que o jovem faz. A memória de Nathaniel identifica Coppelius (num quadro de imaginação infantil, mas confirmado por adultos, nomeadamente por uma criada da casa de infância de Nathaniel) com a figura aterrorizante de um “homem da areia” – uma fórmula impingida às crianças para obrigá-las a ir para a cama – que visitava o pai do jovem com alguma frequência e sempre à noite. Este quadro assombra e atemoriza o personagem, já na vida adulta, trazendo de volta a experiência infantil traumática da morte do pai, que aconteceu em circunstâncias misteriosas. Nathaniel escreve então ao irmão da sua noiva (Clara) a relatar o episódio, ao que esta responde (devido a um engano de destinatário) que o seu medo em relação a Coppelius (reanimado pela figura do vendedor Coppola) é um produto da sua imaginação infantil, pois o terrível “homem da areia” não era mais do que um alquimista e a morte do seu pai, sem poder ser considerada como o resultado dos poderes malignos de Coppelius, fora consequência exclusiva (e racionalmente esclarecedora, como Clara) de uma explosão provocada pelo tipo de experiências que ele e o pai do jovem levavam a cabo durante a noite. Clara procura, assim, trazer a dimensão inofensiva do princípio da realidade ao relato imaginário do seu noivo. Mas isso não será suficiente e Nathaniel continuará a importunar Clara com os seus pensamentos sinistros. Os noivos terminam por se zangar, depois de Nathaniel apresentar a Clara um poema, em que Coppelius arranca os olhos à rapariga e impede o amor dos dois. Depois de um novo encontro com a família, o estudante regressa à cidade onde estuda e instala-se numa casa cujas janelas dão para a do seu professor, o físico Spalanzani. Na sua nova casa, o estudante recebe, mais uma vez, a visita de Coppola, que agora vende óculos, lentes e lunetas. O discurso do vendedor acaba por, de novo, assustar Nathaniel, com o sinistro da expressão: “Oh, não barómetros, não barómetros! Ter belos olhos, belli occhi!” (HOFFMANN, 2005, p.37). O horror desfaz-se depois de passar o equívoco e o jovem acaba por comprar uma lente, com que passará a espiar a filha de Spalanzani, Olympia, por quem se apaixonará cega e imediatamente, de uma forma totalmente obsessiva. O estudante termina por descobrir que Olympia é apenas um autómato, criado pelo físico e pelo vendedor ambulante, e é acometido por uma nova crise de loucura, no decurso da

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

FALCATO, Ana Cristina -206-

qual tenta matar o professor. Depois do confronto, volta a desmaiar e é recolhido pela família de Clara, onde recupera novamente a sanidade. Após um novo período de reconciliação com a noiva, Nathaniel enlouquece definitivamente quando, no decurso de um passeio pela cidade, os dois sobem à torre da Câmara Municipal e, ao ser chamado à atenção para um fenómeno singular que ocorre na rua, o estudante é assolado por uma nova crise, quando reconhece Coppelius entre a multidão – justamente através da lente ampliadora que comprara a Coppola. Nathaniel tenta matar a noiva (que é salva pelo irmão) e, ouvindo a gargalhada cínica de Coppelius, ao exclamar para os presentes que o querem deter: “Ah! Ah!, esperem, que ele descerá sozinho”. (HOFFMANN, 2005, p.53), vidra os olhos no vendedor e ainda grita também: “Ah! Que belos olhos, belli occhi!” (HOFFMANN, 2005, p.37), antes de se suicidar e cair despedaçado no meio da rua. O homem da areia desaparece entre a multidão.

4 Entre uma Certeza e Outra São os excessos figurativos do retrato, meio onírico, meio fantástico, cru, que produzem o efeito perverso – assinalado por Freud – da mistura de estratos ontológicos. Ou seja, Hoffmann pretende levar o leitor até ao núcleo do próprio delírio do personagem, identificando a percepção deste com a do leitor da ficção, e provocando um efeito de indistinção consentida entre o imaginário do narrador e a realidade do leitor. Freud depreende claramente que o conto não produz uma ficção codificada enquanto tal, fechada no seu próprio registo, mas extrapola as convenções ficcionais e a distância entre a história e a vida, colocando a perspectiva do personagem (Nathaniel), não como um puro delírio, mas como real possível. E isto é, justamente, de acordo com a leitura psicanalítica, o que produz a sensação de “Unheimlich”, de estranheza e desconforto, coisa que, nota Freud, não acontece, por exemplo, com as peças de Shakespeare, em que o motivo do fantástico, do sinistro ou do misterioso fica, à partida, assinalado como campo de manobra da ficção, palco de um teatro unilateral. Em contrapartida, no conto de Hoffmann, o jogo da estranheza é entreaberto pela dubiedade do registo, sendo gradativa a separação dos níveis ontológicos do registo narrativo da situação passiva do leitor, num esquema de duplicado. Como a própria leitura psicanalítica declara, o intuito do escritor é o de provocar em quem lê uma espécie de incerteza, na medida Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

Um Amor Circular: Reflexões sobre o Unheimlich em Freud e Hoffmann -207-

em que, propositadamente, não nos deixa ver claramente se entrámos na mente fantástica e perturbada de Nathaniel ou se estamos perante uma espécie de história policial, com base em factos verídicos, numa experiência vivida. O leitor vê-se, no fundo, “forçado” a pactuar com a aceitação desse mundo relatado, uma realidade sinistra que é condição sine qua non para a experiência da leitura. Porém, no caso do presente conto, e como afirma Freud: […] no decurso da narrativa de Hoffmann esta dúvida desaparece. Verificamos que o escritor quer mesmo deixar-nos ver através dos óculos ou do telescópio do demoníaco oculista, que possivelmente ele próprio procedeu a observações através de um instrumento desse tipo. O desenlace da história torna claro que o oculista Coppola é efectivamente o advogado Coppelius, e consequentemente o homem da areia (FREUD, s.d., p. 220).

O núcleo da resposta pela “estranheza” – Unheimlich –, porém, já se sedimentou no decurso do jogo de sombras da ambiguidade. Ao abrigo de uma dúvida em nome da ficção, o sujeito-leitor recupera os ancoradouros da sua própria experiência psíquica; a experiência estética é o motivo de um retorno ao interior – mesmo e quando é identificada como tal. A sensação de “sinistro” – de “algo ameaçadoramente estranho” – acontece sob a expectativa do desejo camuflado pela consciência, pensa Freud; ou seja, quando algo de sentido e pressentido, secretamente desejado pelo sujeito, se converte, súbita e inexplicavelmente, em realidade (na leitura ou fora dela, como vimos). A realização de um desejo escondido (tal era também a definição do objectivo do sonho, no ano 1900), íntimo e proibido, produz o sentimento de sinistro. Das Unheimliche é aqui visto como um desejo alimentado na fantasia inconsciente e que compareceu na realidade – a tradução de uma fantasia formulada como desejo, embora apartado da consciência; de certa forma, negado. A transposição de graus ou estratos de leitura de uma questão um tanto ou quanto tipificada – a da inquietude “introjectada” pela psique, ante um panorama situacional externo que se revela, por si só, desconfortável, sinistro – é uma espécie de ramificação do próprio núcleo semântico do termo visado: entre um nível mais estritamente psicológico e de reacção subjectiva; ou como modelo espacial, identificado com o próprio papel da descrição no relato narrativo, que aponta a impressão da “estranheza inquietante” como um efeito mais mecânico e “mimético”, subordinado aos cenários externos (hipostasiados pela ficção ou presenciados), que se antecipam ou mesmo rompem com a autonomia psicológica, uma vez que esta segue

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

FALCATO, Ana Cristina -208-

um esquema de “causalidade das ocorrências interiores”, mentais, subtraídas ao motivo espacial, real, que transcende a mera fantasia ou associação de ideias.

5 A Superação da Arte Algo a que o ensaio de Freud dá particular ênfase, sobretudo na parte final, é a distinção relativamente aos âmbitos de possibilidade de aparição do sentimento de algo ameaçadoramente estranho – seja na arte, na ficção ou no domínio da vivência, naquilo que é efectivamente experienciado pelo sujeito, sem recurso a um estímulo estético. Sobretudo a saber em que medida o papel desempenhado pelo recalcamento é significativo e mais conforme a um ou outro paradigma. Assim, pode ler-se no texto:

Poderá ser exacto que o sentimento de algo ameaçadoramente estranho corresponde ao que é íntimo e acolhedor (heimlich - heimisch), que o seu recalcamento ocorreu, proporcionou o retorno desse sentimento e que tudo o que denota esse carácter preenche tal condição. No entanto, o enigma do que é ameaçadoramente estranho não parece resolvido com essa delimitação do assunto. […] Há uma observação que poderá indicar-nos o meio de desfazer estas incertezas. Quase todos os exemplos que contrariam as nossas expectativas foram retirados do domínio da ficção, da literatura. Somos assim advertidos da necessidade de estabelecer uma diferença entre o sentimento de algo ameaçadoramente estranho relativo àquilo que se vive e o mesmo sentimento quando é simplesmente imaginado ou lido (FREUD, s.d., p. 233).

A posição de Freud destaca o matiz diferencial do recalcamento, entre uma e outra experiência. Assim, a experiência vivida à margem do incitamento da ficção, como própria, implica um reduto de condições simplificado e uma incidência menor; o seu motivo axial, o mais comum é, com efeito, o retorno do recalcado, sob a forma de um “familiar” não reconhecido, longínquo. A força de uma situação inesperada é admitida como a condição essencial para a ocorrência desse fenómeno psíquico, que é, no fundo, uma reacção. Em termos “genealógicos”, pensa Freud, existe um estado arquetípico de interacção da mente humana com os fenómenos da realidade em que um dado tipo destes últimos foi tido como real, passou, por assim dizer, no “teste da realidade” e foi reconhecido pela mente humana como genuíno. No presente, tê-los-íamos superado, denegado [Verneint] enquanto

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

Um Amor Circular: Reflexões sobre o Unheimlich em Freud e Hoffmann -209-

conteúdos dúbios entre o fantástico e o real, à custa de um recalcamento operado sobre o seu primeiro matiz. Porém, insiste a teoria: “Não nos sentimos inteiramente seguros das nossas convicções – as antigas ainda permanecem em nós e aguardam confirmação” (FREUD, s.d., p. 234). Sempre que a realidade que agora admitimos como válida (os fenómenos que passaram no teste) apresenta algum sintoma desses elementos que, de uma forma periclitante, oscilam entre a consciência e o inconsciente, advém a sensação de “Unheimlich”. Aquele, diz Freud, que conseguiu, de forma limpa de equívocos e mediante um corte profundo com a antiga forma de representação, libertar-se desses fenómenos que agora a própria clarividência racional rótula de “animistas” está fora da possibilidade de experienciar esse retorno do recalcado, sob a forma de uma ameaça psíquica: “Trata-se apenas, portanto, de um caso de teste de realidade, de uma questão de realidade material” (FREUD, s.d., p. 234). A equação é, porém, inaplicável, diz Freud, ao retorno dos complexos infantis, em que a realidade psíquica tem preponderância sobre a realidade material e não tem, por isso mesmo, termo de comparação “externo”: dispensa o teste de realidade. Desta forma, o contraste com a ficção ganha relevo descritivo. Se o sentimento de algo ameaçadoramente estranho como vivência própria, não mediada, está determinado pela reactivação do recalcado, a experiência da ficção (e muito especialmente a da literatura) merece ser estudada por separado, admite Freud. A determinação deste fenómeno na ficção, para além de uma maior possibilidade de incidência, tem condições que não assistem à vivência pessoal:

Pois o domínio da fantasia tem como pressuposto, para ser eficaz, que o seu conteúdo seja dispensado do teste da realidade. O resultado, que soa paradoxal, é o de que na literatura há muita coisa que não é ameaçadoramente estranha, mas que o seria se ocorresse na vida real, e que na literatura existem muitas possibilidades de obter efeitos ameaçadoramente estranhos, impossíveis de conseguir na vida real (FREUD, s.d., p. 235).

Mesmo quando o efeito “assustador”, decorrente de diferentes tipos de experiência nos dois registos possíveis, é o mesmo, a causa que o motivou, num e noutro estrato ontológico, é distinta. Um escritor de ficção manipula o mundo narrativo que cria, de acordo com a sua própria vontade (e sabe que é seguido pelo leitor); o despertar do recalcado na psique, no domínio da vivência é, de certa forma, imprevisto ou, no mínimo, estabelece um outro tipo de Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

FALCATO, Ana Cristina -210-

associação, rege-se por uma lógica diferente. Para que o sentimento de algo ameaçadoramente estranho ocorra, a este último nível, é requerida a prova da realidade ante um dado conteúdo de representação, pouco plausível ou desconhecido, que retorna inadvertidamente à consciência. Esta prova está excluída do domínio da ficção, porque a própria narrativa ficcional é a prova. O leitor da ficção adequa o seu juízo estético às condições do mundo ficcional criado pelo escritor. Numa hipótese proposta pela ficção, um cenário fantástico não provoca estranheza. E, dada esta erosão da expectativa habitual do desencadear da reacção psíquica, outras vias de insinuação do sentimento de “Unheimlich” podem ser abertas:

O escritor pode ainda intensificar esse sentimento, para além do grau em que é possível que ocorra na vida, bem como multiplicá-lo, permitindo a ocorrência de acontecimentos que, na realidade, não poderiam – ou apenas raramente – ser observados (FREUD, s.d., p. 236).

Porém, esta mobilidade (manipulação) do afecto no troço não-linear da ficção deve-se à mesma diferença de parâmetros que referimos antes. Há algo, no entanto, que aproxima os dois registos: a insinuação do elemento escondido, omitido, proibido, camuflado, recalcado – de tudo aquilo que “devendo permanecer oculto, se revelou”. E o próprio jogo simbólico jogado pelo escritor de ficção tem o motivo inspirador de toda a arte: a vida, em toda a extensão dos seus acordes, até à mais completa deformação.

6 Derivação na Penumbra – se Concluir é Andar às Voltas Um autor brasileiro, Bernardo Carvalho, num artigo intitulado “O Unheimlich em Freud e Schelling”, acentua o contraste entre o uso de um mesmo termo pelos dois pensadores, ou seja, propõe que Freud desloca do sistema original de referência (filosófico) o termo em questão, também utilizado por Schelling, interpretando de acordo com um novo quadro de afinidades o termo “Unheimlich”. O autor do artigo traduz o título do ensaio de Freud com bastante agudeza expressiva – O Estranhamente Familiar. A experiência determinada para que apontaria esse fenómeno psíquico, que se exterioriza como sensação de terror ou de mal-estar, adviria de uma perda de limites ou de

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

Um Amor Circular: Reflexões sobre o Unheimlich em Freud e Hoffmann -211-

configuração da diferença entre a realidade e a imaginação, traduzida por um sintoma indicativo, como já foi mencionado. Suspender-se-ia, nessa vivência psicológica, a diferença fundamental de nível entre o símbolo e o simbolizado, entre a intenção e o intencionado, entre o possível e o impossível – vida física e universo mental. Ora, para um romântico, era justamente essa identificação que possibilitava – pela dissolução dos limites – a mais elevada concretização do espírito humano, a mitologia. O mito cola, de uma forma absolutamente transparente, o mundo da natureza e o mundo do espírito, a representação com o dado empírico. A Psicanálise é um reduto crítico de supressão do mito, oferecendo um universo de significados onde a empatia romântica foi substituída por e introduzida como alegoria. A imanência do que deveria permanecer escondido e se revelou é, na leitura de Freud, identificada ou com o âmbito do sobrenatural ou de uma insinuação muito forte de um domínio proibido numa sequência corrente de representações e comércios variados com a realidade. Os próprios cânones científicos do mundo moderno (em que se inclui a estruturação teórica da Psicanálise), não permitem mais que o sujeito humano se “dissipe” na identificação empática com o todo, por participação anímica ou qualquer outro processo de simbiose. De acordo com uma tese muito forte e conhecida, que por vezes quase “acusa” Freud de um extremo racionalismo, a Psicanálise só é possível num mundo onde o espírito e o real já estejam, de antemão, cindidos; em que a confiança de uma reunião entre ambos já se desmantelou. A premência circular deste amor conflituoso não tem a serenidade e o “cheio” em que apostava Parménides, mas sim a marca da separação nostálgica de que falava Platão. O círculo cindido entre sujeito e mundo não é um círculo quieto ou sequer estável: é, isso sim, um círculo tão volúvel como o das dosagens perigosas do investimento afectivo. Georges Poulet, na sua obra magistral, Les Metamorphoses du Cercle, escreve: “A forma do círculo é a mais constante daquelas graças às quais chegamos a representar-nos o lugar mental ou real onde estamos, e a ver aí aquilo que nos rodeia ou aquilo de que nos rodeamos” (POULET, 1979, p. 27). O autor ainda parte de uma leitura assaz apaixonada pela plenitude da forma, em si invariável, à sombra das mutações históricas do seu significado simbólico mas, no PostScriptum do livro fica bem patenteada uma aposta irredutível num certo movimento de espacialização do interior, que une o que há de mais caro à natureza com o que melhor define Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

FALCATO, Ana Cristina -212-

o espírito, a ligação mais profícua entre o Espaço e o Tempo, mesmo que fossem apenas categorialmente considerados (o que não parece ser o caso no livro de Poulet):

As metamorfoses de que me ocupei não são, então, dou-me conta, mais do que um ensaio para determinar o espaço próprio a cada um, o seu espaço pessoal, se quisermos, com a condição de entendermos por tal um espaço que se estende exclusivamente do interior. Com efeito, se existem algures fenómenos que podemos descrever como “metamorfoses do círculo”, é, provavelmente, nos limites de um espaço rigorosamente subjectivo que têm lugar (POULET, 1979, p. 522).

O olho exterior ao campo visual é, no fundo, a esquizofrenia tolerada pela segurança que esse “ver sem ser visto” proporciona. No fundo, o sujeito que “manipula” escrupulosamente as experiências que quer e vai ter – a partir daquilo que pode ver, que é tudo – encara o desvio ao padrão como uma “ruína da razão” ou “uma partida do destino”, consoante a aposta mais valorizada ou o modelo explicativo por que se opta. Num ou noutro caso, é de uma confusão de âmbitos contíguos – mas vistos como intransponíveis – que se trata, aquando da identificação esporádica, parcial, entre o que deveria permanecer oculto e o que sempre se vê. A identificação entre imaginação e realidade não é aqui total (como na mitologia, na psicose ou mesmo num certo limiar do terror literário, trabalhado), mas é um pico de desajuste entre possibilidades de combinação toleráveis pelo sujeito, cujo móvel é a Estranheza, uma inquietação íntima e, por vezes, surda. Só a um sujeito distinto e diferenciado do mundo anímico que o rodeia, como Subjectum, é que podem ocorrer pontuais aparições desajustadas de um motivo estranho, insinuado a partir de uma dada realidade paralela. “Tudo aquilo que deveria permanecer em segredo, oculto, e que se revelou”: Nathaniel, tal como o leitor, fazem a experiência de uma concessão ao proibido que tem o custo da morte pela loucura ou do seu exorcismo positivo pela sublimação.

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

Um Amor Circular: Reflexões sobre o Unheimlich em Freud e Hoffmann -213-

Referências CARVALHO, Bernardo. O Unheimlich em Freud e Schelling. Artigo extraído a partir da Internet, s.d. FREUD, Sigmund. O Sentimento de algo ameaçadoramente estranho, in: Textos essenciais sobre Literatura, Arte e Psicanálise. Biblioteca Universitária, Publicações Europa-América, s.d. HOFFMANN, E.T.A. Contos Nocturnos, O Homem da Areia. Lisboa, Guimarães Editores, 2005. POULET, Georges. Les Métamorphoses du Cercle. Paris, Flammarion, 1979. RODRIGUEZ, Jefferson Vasques. O Homem da Areia, o Estranho e as estruturas do Fantástico. Artigo extraído a partir da Internet, s.d. ROUGEMONT, Denis de. L’Amour et l’occident. Paris, Plon, 1972. TRÍAS, Eugenio. O Belo e o Sinistro. Lisboa, Fim de Século, 2006.

Recebido em: 17/01/2012 Aceito em: 20/09/2012

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

View more...

Comments

Copyright � 2017 SILO Inc.