Paula Cristina da Silva (Departamento de Sociologia, UFBa)

September 15, 2017 | Author: Malu Bicalho Ribas | Category: N/A
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1 EDUCAÇÃO PLURICULTURAL E ANTI-RACISMO EM SALVADOR (ANOS 80-90) Paula Cristina da Silva (Departamento de ...

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EDUCAÇÃO PLURICULTURAL E ANTI-RACISMO EM SALVADOR (ANOS 80-90)

Paula Cristina da Silva (Departamento de Sociologia, UFBa)

GT 19: Relações Raciais e Etnicidade XX CONGRESSO ANUAL DA ANPOCS Caxambú, 1996

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Educação pluricultural e anti-racismo em Salvador (anos 80-90)1 Introdução Diversos autores já ressaltaram que um aspecto importante da construção da imagem do Brasil como um país onde havia democracia racial era a comparação com os Estados Unidos, tomado como exemplo de país abertamente racista. Desde o final do século XIX, já se dizia que, no Brasil, ao contrário dos EUA, não havia ‘problema racial’, e as maiores evidências disso eram a miscigenação em larga escala e a Diversos autores já ressaltaram que um aspecto importante da construção da imagem do Brasil como um inexistência de mobilizações de caráter racial. Essa comparação foi fundamental para que os brasileiros descrevessem o Brasil, como um país onde não existia racismo, tornando mais difícil a percepção de que era possível existirem outras dimensões do racismo, outras formas de sua expressão e reprodução(Skidmore, 1976). Ao longo do século XX, tanto nas teorias do senso comum, quanto nas teorias científicas, o racismo continuou a ser entendido como sinônimo de segregação racial. A partir dos anos 70, a combinação de alguns fatores tornou posível que se iniciasse um processo de modificação na ideologia racial dominante, que envolveu a discussão sobre outras formas de manifestação e definição do conceito de racismo. Em primeiro lugar, com a redemocratização do país, surgiram os Novos Movimentos Sociais e as formas de mobilização política afro-brasileiras, que poduziram um novo discurso centrado na afirmação da identidade “negra” e na denúncia do racismo à brasileira. Em segundo lugar, a produção de uma vasta literatura, confirmando a existência de desigualdades raciais, e mostrando que a cor é um critério importante na hierarquização da sociedade brasileira, deu uma contribuição importante no sentido de fornecer subsídios que comprovavam as denúncias que, a princípio, partiram dos Movimentos Negros. Em terceiro lugar, o aprofundamento das desigualdades sociais e de renda, resultado da política econômica adotada no período do Milagre, contribuiu para que o caráter excludente da sociedade brasileira fosse mais evidenciado. A combinação desses fatores fêz detonar uma ampla discussão sobre a questão racial no Brasil, que abalou o consenso sobre o caráter democrático das relações raciais e sobre a inexistência de racismo, e promoveu a difusão de ideologias anti-racistas. O silêncio das elites políticas e econômicas, dos intelectuais e da população em geral, diante das várias formas de desigualdades que, historicamente, caracterizam o Brasil, decorrente da crença na inexistência de ‘problema racial’, foi quebrado. Agora, o debate está instaurado e cada nova denúncia, ou cada novo fato, reacende o debate sobre o que se tornou um tema polêmico e que está colocado sobre a mesa para discussão. Esse silêncio e omissão tiveram como resultado a invisibilização dos afro-brasileiros e do racismo, que vem sendo revertida num processo lento e complexo, que envolve a revisão de crenças já bastante arraigadas e toca em pontos cruciais, como a própria constituição da identidade nacional. Diante da revelação 1

Esse texto apresenta resultados parciais da pesquisa Alternativas Educacionais Afro-Baianas (anos80-90), desenvolvida no Programa A Cor da Bahia (Mestrado em Sociologia-UFBa/F.Ford), com o apoio de Jucélia Ribeiro e Mônica Albergaria, bolsistas de Iniciação Científica do projeto.

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dessa face pouco conhecida do Brasil, que se aproxima cada vez menos de um “paraíso racial”, todo o otimismo que estava presente nas mais diversas perspectivas teóricas e que se difundiu no senso comum dos brasileiros, vem dando lugar a interpretações mais críticas. A segurança que advinha da crença no caráter resolvido do ‘problema racial’, vem sendo substituída pela insegurança e incerteza. Em relação à miscigenação, por exemplo, as pesquisas mostraram que são pouco significativas as diferenças existentes entre ‘pretos’ e ‘pardos’, no que diz respeito à forma de inserção na sociedade brasileira, ou seja, que eles estão situados em posições semelhantes na estrutura hierárquica, distantes daquelas ocupadas pelos ‘brancos’. Diante desses dados, e do surgimento de mobilizações de caráter racial, a própria definição do Brasil como um país mestiço/ moreno, onde os grupos raciais não podem ser identificados, teve que ser revista. Isso não significa afirmar, no entanto, que existe um modelo de relações raciais tão polarizado e tão rígido quanto aquele de outros países. O maior reconhecimento da existência de racismo no Brasil coloca no centro do debate a própria definição do conceito: o racismo é um só? ele se manifesta de diferentes formas? ele tem várias dimensões? existem tipos diferentes de racismo? como combatê- los? Estas são questões que não estão totalmente resolvidas e que carecem de maior discussão, dentro e fora do meio acadêmico. Segundo Troyna (1993), não existe apenas um tipo de racismo, e ele não tem (assim como a ‘raça’) uma essência, algo fixo e imutável, que possa ser determinado a priori. Não é possível, portanto, uma caracterização universal e objetiva do racismo, que é um conceito, eminentemente, histórico. Além disso, o racismo, também, não tem apenas uma dimensão individual ou uma dimensão institucional, sendo fruto da relação dinâmica entre estas dimensões, e não se manifesta apenas de maneira segregacionista e direta, podendo estar articulado com outros discursos ideológicos e outras formas de exclusão e dominação. Isso dificulta a sua identificação, seja no plano pessoal ou institucional, e a delimitação de fronteiras em relação às questões de classe, gênero, etc. A revelação dessa maior complexidade do fenômeno do racismo, do seu caráter instável e contraditório, mesmo em sociedades onde existem sistemas mais polarizados, torna possível perceber que as dificuldades colocadas pela ambivalência racial, e outras peculiaridades do Brasil, apenas o colocam numa situação diferente, mas não pior, ou melhor, do que outros países. Não há, portanto, uma relação direta entre ambivalência racial e inexistência de racismoi. O conceito de anti-racismo, também, está em questão, existindo concepções diferentes, a partir das quais surgem propostas de intervenção distintas. Assim como não há um único racismo, também não há um único anti-racismo e, às vezes, o uso indiscriminado desses termos, sem a necessária especificação, causa confusão e pouco contribui para o avanço das reflexões sobre o tema. Segundo Troyna (1993), no início dos anos 80, na Inglaterra, era possível identificar duas grandes perspectivas anti-racistas: uma delas de orientação holista - que ressalta a dimensão estrutural e institucional do racismo - e a outra de orientação individualista - que enfatiza a dimensão individual do racismo, e esta dualidade foi superada pela necessidade dos anti-racistas de se afastarem de definições reducionistas e essencialistas de ‘raça’ e racismo. Na sua defesa do anti-racismo, ele afirma que os críticos, de direita e esquerda, ignoram os avanços que ocorreram nas teorias anti-racistas e continuam insistindo que estas utilizam concepções empobrecidas do racismo. Pelo contrário, a tendência atual tem sido de adoção de perspectivas teóricas multidimensionais, 3

que atentem para a intersecção de variáveis como ‘raça’, classe e gênero, e discutam a complexa relação entre as dimensões micro e macro do racismo. A idéia é que um fenômeno tão complexo como o racismo não pode ser reduzido a uma única dimensão, ou a uma fórmula, e que é uma distorção atribuir aos anti-racistas a defesa de teses essencialistas, como a de que todo branco é racista. No Brasil, Munanga (s/data) aponta a existência de dois anti-racismos diferentes: o diferencialista e o universalista. No primeiro deles, é adotada uma perspectiva etnopluralista, que questiona o caráter assimilador do universalismo, ressalta as diferenças, e adota uma perspectiva comunitarista (ou coletivista), voltada para a recuperação do passado; no segundo, é adotada uma perspectiva “liberal”, “progressista”, baseada na defesa da igualdade de direitos de todos os cidadãos. Nessa perspectiva, acredita-se que a natureza humana tem primazia sobre a diversidade etno-cultural, cultiva-se o individualismo e recusa-se o passado. Ao chamar a atenção que tanto propostas universalistas quanto diferencialistas podem ser defendidas por racistas e anti-racistas, Munanga revela que já não há uma clara distinção entre as reivindicações que são feitas dentro de cada uma dessas perspectivas. Pode ocorrer, inclusive, que racistas e anti-racistas estejam defendendo as mesmas bandeiras, o que cria confusão e tem um efeito desmobilizador em termos políticos. No caso brasileiro, temos uma tradição de discursos racistas universalistas, não tendo ocorrido até o momento o fenômeno da proliferação de discursos racistas diferencialistas, como aqueles da nova direita europeia e norte americana. O discurso anti-racista que tem se difundido, a partir dos anos 70, através do movimento negro recente, é o diferencialista, tendo ocorrido uma ruptura com o discurso assimilacionista que predominava até então. Ele, também, poderia ser definido como antidiscriminatório, na medida em que utiliza uma concepção de racismo não mais associada à segregação mas às discriminações e desigualdades (Guimarães, 1996). Toda essa discussão sobre racismo e anti-racismo tem uma repercussão muito grande no âmbito da educação. Na literatura brasileira sobre raça e relações raciais, que trata especificamente da educação, destacam-se os estudos de caráter macro analítico e quantitativo, que têm mostrado que, ao interior do sistema educacional, são reproduzidas as desigualdades raciais que caracterizam a sociedade brasileira (Rosemberg, 1987; Hasenbalg, 1987; Rosemberg, 1981) ii. Além desta, uma outra linha importante de pesquisas aborda a questão da identidade negra, tendo uma orientação mais qualitativa . Eles destacam que, na política educacional e cultural do Estado brasileiro, observa-se a hegemonia de uma perspectiva eurocêntrica, que tem sido eficaz na reprodução dos valores que postulam a superioridade da cultura européia bem como de seus descendentes, afirmando os estereótipos negativos associados aos negros e mestiços. O complexo de inferioridade, a auto-regulação das expectativas, e a perda da auto-estima são apontados como alguns dos prejuízos que tal sistema de ensino público têm legado à população afrobrasileira em idade escolar (Luz, 1989). Outros estudos vão mostrar que a incorporação do negro no livro didático, quando ocorre, se dá de maneira estereotipada e de modo a reiterar os preconceitos existentes na sociedade (Pinto, 1987 ; Silva, 1995)iii. A partir daí, e das reivindicações dos Movimentos Negros, aumentou a pressão de vários segmentos para que houvesse dentro do sistema educacional brasileiro um reconhecimento e respeito às diferenças étnicas e raciais existentes ao interior da população, e que fosse

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dado um outro tratamento à problemática racial na escola. Esse tipo de proposta, que surgiu no contexto de luta por direitos civis nos Estados Unidos e Inglaterra, ficou conhecida como educação pluricultural (ou multicultural). O termo têm um duplo sentido, ou seja, tem um caráter descritivo e normativo. Isso quer dizer que o fato de uma sociedade ser (“objetivamente”) pluricultural não implica, necessariamente, que esta tenha uma educação pluricultural, que somente existe a partir do momento em que são postas em prática certas opções pedagógicas, que levam em conta a diversidade de pertencimentos e referências culturais dos públicos aos quais se destina. A pedagogia pluricultural sugere, portanto, de modo prescritivo, o rompimento com a ideologia “assimilacionista” do passado, tratando as diferenças de modo positivo e reconhecendo que as sociedades tendem ao pluralismo cultural (Forquin, 1993). O Brasil, por exemplo, é uma sociedade pluricultural que, só recentemente, está discutindo a implementação de uma educação pluricultural. Pelas características do sistema de relações raciais do Brasil, é muito pouco provável que propostas de tipo “separatista” - que defendem o estabelecimento de redes escolares distintas, com currículos totalmente diferenciados - ganhem força e cheguem a ser implementadas. O mais provável é que a discussão gire em torno das propostas “unitaristas” - que propõem levar a todos os alunos um mesmo tipo de currículo, mas cujos conteúdos incorporem as diversas tradições culturais, preservando, portanto, a integração nacional e a coesão social. No entanto, a defesa de uma proposta de educação pluricultural “unitarista”, aberta e que incorpore todos os segmentos que compõem a população estudantil coloca um problema grave, que é o de definir os critérios que teriam que ser adotados para a escolha dos conteúdos de ensino. Que aspectos de cada cultura seriam selecionados para compor o currículo comum, e a partir de que critérios? O conteúdo relativista da definição sociológica de cultura e de educação que está presente na proposta de educação multicultural conduz a um impasse do ponto de vista do currículo, pois, se todas as culturas são importantes, como fazer a “seleção cultural escolar”iv? Diante desse impasse, fica evidente a necessidade de que sejam encontrados alguns pontos consensuais, ou seja, um denominador comum em relação ao que deve ser ensinado, algo que transcenda as diferenças existentes (culturais, religiosas, ‘raciais’, etc.). Isso significa propor um novo universalismo e não retornar ao universalismo genérico do passado, já que não há a negação dos ‘outros’ e sim o reconhecimento de que todos merecem respeito enquanto cidadãos e seres humanos. Essa primeira aproximação do tema permite perceber que este envolve uma complexidade muito grande, com a coexistência de versões diferencialistas e universalistas diferentes, que se traduzem em posições políticas e práticas pedagógicas distintas. A realização de mais estudos sobre o tema permitiria saber se, e em que medida, a implementação de um determinado tipo de proposta pedagógica pluricultural contribuiria para solucionar os problemas educacionais na sociedade brasileira. É preciso verificar, no entanto, que pedagogia pluricultural não é sinônimo de pedagogia anti-racista, existindo diferenças entre elas: a primeira prevê a incorporação ou modificação da maneira como as várias culturas são incorporadas no currículo escolar; a segunda, requer a adoção de medidas mais amplas, como políticas raciais compensatórias das populações que foram, e são, objeto das diversas formas de racismo (Troyna, 1993). Uma proposta pedagógica pluricultural pode ser associada a uma outra anti-racista mas elas não se confundem e não são uma coisa só. Feita essa distinção, cabe pensar que a contribuição das 5

pedagogias pluriculturais pode ocorrer muito mais no sentido de permitir a construção de identidades raciais, não atingindo, por exemplo, o racismo que perpassa as instituições. À luz dessas reflexões, talvez seja possível afirmar que no caso brasileiro, ao longo da década de 80, e até recentemente, a discussão sobre as mudanças a serem realizadas na educação estava muito restrita à dimensão cultural, ou seja, as propostas feitas e mais aceitas poderiam ser definidas como pedagogias pluriculturais. Basicamente, são propostas de implementação de modificações no currículo, no sentido de incluir conteúdos relativos à cultura do negro, do índio e de outros grupos minoritários, alterando a forma estereotipada e preconceituosa com que esses segmentos são tratados na escola, e incluindo temas que façam parte da realidade cotidiana dos alunos. A discussão e a aceitação de propostas pedagógicas anti-racistas é menor, encontrando muitas resistências. A própria difusão do discurso anti-racista diferencialista concorreu para a aceitação generalizada do pluralismo cultural e para uma revisão no modo de interpretar as diferenças. Isso contribuiu para dar maior visibilidade às manifestações da cultura afro-brasileira mas provocou, também, uma intensificação da contínua assimilação à cultura nacional, reforçando a idéia da existência de democracia racial e diminuindo o impacto do discurso anti-racista (Munanga, s/data). De qualquer modo, é necessário que se realizem mais estudos sobre as experiências educativas voltadas para crianças e adolescentes, que tem surgido nas duas últimas décadas, com a preocupação de incorporar a dimensão cultural e racial no currículo e nas práticas pedagógicas, pois estas abrem novas possibilidades para os estudos que pretendem analisar as mudanças que estão em curso na ideologia racial brasileira. Identificar os tipos de propostas pedagógicas que estão sendo implementadas, e as mudanças nas concepções de ‘raça’, racismo e identidade racial que estão ocorrendo a partir delas, são tarefas que estão por ser realizadas. Nesse sentido, é fundamental colocar no centro da análise a maneira como os jovens e adolescentes que estão participando desses projetos interpretam o seu mundo, e a presença da ‘raça’ e do racismo no cotidiano. É possível que estes apresentem repertórios de atitudes raciais contraditórios e inconsistentes, contendo tanto elementos de ideologias raciais igualitárias quanto de ideologias racistas. I- Uma experiência pedagógica pluricultural Embora diversas outras experiências educativas tenham sido desenvolvidas, ao longo da década de 80, em Salvador, a decisão de modificar o currículo das escolas públicas de primeiro e segundo grau, criando uma nova disciplina abordando temas relacionados à população afro-brasileira, foi algo que se destacou e que teve um significado político muito grande. Iniciativas como esta ocorreram, também, em outras grandes cidades brasileirasv, entretanto, foi em Salvador que, pela primeira vez, um orgão estadual responsável pela educação atendeu essa reivindicação antiga dos Movimentos Negros brasileiros. Esse fato teve muita repercussão, dentro fora da Bahia, e uma expectativa muito grande foi criada em torno da implementação dessa medida, que poderia vir a se estender para outros Estados. A análise de todas as etapas do processo de negociações ajuda a entender porque, mesmo se tratando da cidade mais “negra” do Brasil, dez anos depois da publicação do Edital que autorizava a mudança, a maioria das escolas não chegou a incluir a nova disciplina nos currículos.

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No início dos anos 80, a discussão sobre a necessidade de realizar uma reforma curricular foi retomada, em Salvador, por intelectuais vinculados à Universidade e por setores do Movimento Negro. Sabemos que, ao longo da década de 70, entidades culturais, como os blocos-afro, iniciaram uma série de atividades voltadas para a valorização da cultura e dos valores africanos, que tiveram um papel importante na difusão de conhecimento sobre a África. O discurso das entidades que estavam construíndo o Movimento Negro naquele momento pautou-se muito na afirmação da importância, da presença e da força da cultura africana na Bahia. Certamente, esses fatos ajudam a entender porque o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBa, numa iniciativa pioneira, realizou o primeiro curso de “Introdução aos estudos da história e das culturas africanas”, para professores e militantes. Em 1983, encaminhou à Secretaria de Educação um ofício onde solicitava que fosse aceito o pedido de inclusão da disciplina “Introdução aos estudos africanos”, nos currículos das escolas de 1o e 2o graus do Estado da Bahia. A exposição de motivos feita para justificar o pedido incluiu argumentos que procuraram abranger diversos aspectos da questão. Esse documento foi seguido por um outro que, em 1984, foi assinado por várias entidades do movimento negro baiano, que referendavam a solicitação feita pelo CEAO e apresentavam alguns argumentos para justificar a inclusão da referida disciplinavi (Silva, 1988). Criou-se um consenso, portanto, em torno da idéia que era perfeitamente justificável, e até mesmo necessário, incluir no currículo escolar uma disciplina que tratasse da história e cultura africanas. Essa pressão resultou, em 1985, na aprovação da inclusão da disciplina “Introdução aos Estudos Africanos”, na parte diversificada do currículo do 1o grau (8as séries) das escolas oficiais do Estado, pela comissão de currículos e experiências pedagógicas, da Secretaria de Educação do Estado da Bahia. Do ponto de vista legal, a comissão baseiou-se na Lei 5692/71 (modificada no que compete pela Lei 7044/82), que estabelece que os currículos de ensino de 1o e 2o graus terão um núcleo comum, obrigatório em nível nacional, e uma parte diversificada, onde poderão constar disciplinas que atendam às necessidades e peculiaridades de cada local, e às diferenças existentes entre os alunos. No caso destas últimas, é tarefa do Conselho Estadual de Educação elaborar a lista das disciplinas que serão escolhidas pelos estabelecimentos de ensino, existindo, no entanto, a possibilidade de que as escolas solicitem a inclusão da disciplina, mesmo que ela não conste da lista do CEE. Desse modo, ficou provado que, além dos aspectos culturais e pedagógicos já destacados pelo CEAO e entidades do Movimento Negro, havia respaldo legal para que a modificação no currículo fosse autorizada (SEC: 1986). No sentido de implementar a decisão tomada, em 1985, foi criada, pela Secretaria de Educação, a Assessoria de Estudos Africanos, com o objetivo de desenvolver trabalhos de interesse da cultura afro-brasileira, juntamente com a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e o CEAO. A primeira atividade da Assessoria foi coordenar o curso “Introdução aos estudos da História e das culturas africanas”, que ocorreu no período de março a dezembro, oferecido pelo CEAO, em convênio com a SEC/UNEB. O objetivo do curso era habilitar os docentes da rede estadual de ensino para ministrar a disciplina recém-criada, a nível de especialização, tendo uma carga horária de 420 horas. A clientela foi composta por professores da rede estadual indicados pelos diretores de escolas, pela SEC e por entidades do Movimento Negro, num total de 35 pessoas. Esse é um número que pode ser

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considerado pequeno e que, certamente, não seria suficiente para atender a todas as escolas, mas havia a possibilidade de realização de outros cursos, sob a coordenação da UNEB. O processo que resultou na autorização da criação da nova disciplina foi fruto de negociações entre representantes de entidades do Movimento Negro e de instituições oficiais, vinculadas ao Governo Federal (orgãos das Universidades) e ao Governo Estadual (setores da Secretaria de Educação). Embora o prestígio de uma instituição pública de ensino superior tenha sido fundamental para a obtenção de apoio oficial à proposta, a própria participação de entidades do Movimento Negro nas discussões merece destaque, pois demonstra que estas eram reconhecidas como legítimas para representar a comunidade negra local e que tinham organização e visibilidade suficientes para assumir o papel de interlocutores desse segmento. De várias formas, seus representantes interferiram e marcaram suas posições, conseguindo fazer vencedora a proposta de criar uma nova disciplina a ser incluída no currículo, ao invés de acrescentar novos conteúdos às velhas disciplinas. Em defesa da criação de uma nova disciplina, os representantes do Movimento Negro argumentaram que, diante da baixa qualificação dos professores da rede pública, seria um risco colocar em suas mãos a tarefa de tratar dos novos conteúdos que seriam inseridos nas disciplinas, além de que tornaria-se muito mais difícil o acompanhamento do trabalho feito nas salas de aulas. No entanto, o consenso a que eles chegaram em relação a esse ponto não impediu que surgissem divergências, ficando evidente que, embora a reforma curricular fosse uma reivindicação histórica do Movimento Negro, não havia consenso sobre a maneira de realizá-la. A definição dos princípios pedagógicos e a seleção dos conteúdos para compor o programa da nova disciplina foram motivos de divergências, e, a partir daí, outros pontos também foram colocados em discussão. A maior concentração do programa no estudo da África ou do Brasil, o período ou a região da África que deveria ser estudada, e a ênfase que deveria ser dada às disciplinas que constam na parte diversificada do currículo, em relação àquelas que compõem a parte comum, foram alguns dos temas que dividiram as opiniões. A perspectiva que prevaleceu foi aquela que defendia uma concentração do programa no estudo da África - Antropologia, História e Geografia - não dando tanta ênfase aos temas ligados à cultura afro-brasileira. Embora numa fase preliminar do trabalho de pesquisa documental e de realização de entrevistas, é possível apontar alguns fatores que contribuíram para que a inclusão da nova disciplina nos currículos só tivesse ocorrido em poucas escolas públicas estaduais (07). Um aspecto decisivo e crucial para que a proposta de criação da nova disciplina fosse bemsucedida era a formação dos professores. Como o primeiro curso para professores não foi seguido por outros, inexistindo um processo contínuo de formação, a implementação em larga escala da inovação curricular ficou comprometida. Aos poucos, os professores formados na primeira turma e que, de fato, retornaram à sala de aula para ministrar a disciplina, foram afastando-se, seja por aposentadoria ou motivos de outra natureza. Sem pessoas habilitadas não havia sequer a possibilidade de atender à solicitação das escolas que quisessem incluir a nova discipina nos seus currículos. De alguma maneira, essa dificuldade já era esperada, pois sabia-se que manter um fluxo contínuo de formação de professores demanda recursos e investimentos, que não estavam sendo colocados à diposição pelos representantes do governo estadual naquele momento.

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Na verdade, depois da realização do primeiro curso - que foi financiado por uma fundação estrangeira - a SEC, que era o orgão responsável por implementar a mudança, deveria ter colocado em prática um conjunto de medidas, como campanhas de divulgação, sensibilização de professores, funcionários e alunos, etc. mas não há registro de que isso tenha sido feito. De acordo com o depoimento de uma das professoras que compunha a Assessoria de Estudos Africanos, muitos técnicos da SEC e diretores de escolas resistiram e puseram obstáculos à implementação da nova medida e foi com dificuldades que a disciplina passou a fazer parte dos currículos de algumas escolas. Em depoimentos sobre experiências realizadas em outras cidades, é recorrente a referência a essa resistência de diretores e professores, fato que coloca um problema concreto para a implementação de qualquer proposta educativa pluricultural (ou anti-racista). Nas experiências já realizadas no Brasil, a opção das Secretarias de Educação foi de não impor aos estabelecimentos de ensino que adotassem as mudanças propostas, pois tal imposição, provavelmente, só faria aumentar a rejeição e a resistência. Em vez disso, o mais importante seria o trabalho de sensibilização de professores e diretores, assim como de estudantes e pais, para a importância da questão racial na sociedade brasileira e baiana, e de seu vínculo com a educação. A partir daí, é que a proposta de inovação seria realmente discutida e entendida nas escolas, o que aumentaria a probabilidade de que crescesse a demanda por parte dos diretores. No caso da Bahia, foi opcional a inclusão da disciplina pelas escolas mas não há registro de que a SEC tenha feito um trabalho sistemático visando a sensibilização de professores e diretores. Essa omissão da SEC pode ser melhor entendida se considerarmos que o Edital foi publicado no final do mandato de um Governador, quando havia uma série de interesse político-eleitorais em questão, e a implementação da decisão ficou a cargo de outro Governo. Segundo o depoimento de professores que foram habilitados e de diretores das tres escolas, que são citadas nos documentos como aquelas onde começaria a vigorar a inovação no currículo, não houve interesse por parte das pessoas que assumiram os cargos na nova gestão de colocar em prática a modificação curricular. Diante dessa situação, a existência de uma forte mobilização do Movimento Negro, nas ruas e nas escolas, seria fundamental como forma de pressão sobre o Governo Estadual. No entanto, a existência de divergências internas, sobre a forma de conduzir as negociações e a própria reforma - que chegou a provocar o afastamento de algumas entidades e pessoas das negociações - teve desdobramentos políticos na medida em que diminuiu o poder de força dos militantes na condução do processo de implementação do projeto. Isso limitou a atuação das entidades culturais ou do Movimento Negro, especialmente junto a professores e diretores dos estabelecimentos de ensino, que seria fundamental para que se criasse motivação interna para fazer cumprir qualquer modificação - curricular, ou não - estabelecida por lei. O fato que a única escola onde a disciplina ainda faz parte do currículo, atualmente, esteja situada no bairro da Liberdade, nas proximidades da sede do Ilê-Ayiê, sendo uma das que integram o projeto educativo que está sendo desenvolvido por essa entidade, confirma issovii. Outro aspecto a ser considerado é que não foram utilizados critérios para selecionar os professores cujos nomes foram enviados por diretores e técnicos da SEC para fazer o curso oferecido pelo CEAO. De modo que vieram professores com motivações as mais diversas, e poucos estavam realmente comprometidos, do ponto de vista pedagógico, com a proposta. Os professores que tinham outras expectativas, como aumento salarial ou

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progressão na carreira, que não se concretizaram, não tiveram motivação para tomar a iniciativa pessoal de tentar colocar em prática, em sala de aula, o que aprenderam sobre o tema. A partir das reflexões sobre a experiência da Bahia, chega-se à conclusão que o sucesso de propostas pedagógicas pluriculturais que envolvam reforma curricular, depende da adoção de procedimentos adequados para a implementação - incluindo um processo contínuo de avaliação -, e da participação das entidades que representam a sociedade civil, sejam elas do movimento negro ou de outros segmentos. II- Uma experiência pedagógica anti-racista Nos anos 90, observa-se que significativas mudanças ocorreram em Salvador, fato que está relacionado ao surgimento de novas organizações não-governamentais e à ampliação da área de atuação de algumas entidades culturais, que adquiriram maior prestígio, mais recursos econômicos, e se estruturaram a ponto de começar a desenvolver projetos na área social, de maneita autônoma e criativa. No caso das entidades culturais - como blocos afro, candomblés e outros - é notável que estas se instrumentalizaram para assumir a realização de projetos educativos mais ambiciosos, envolvendo a criação de escolas de 1o grau, através de parcerias com entidades governamentais e não-governamentais, a formação e sensibilização de professores e diretores de escolas públicas para trabalhar com temas relacionados à cidadania e à problemática afro-brasileira, a produção de material instrucional de apoio para cursos que abordem esses conteúdos, etc. As mesmas entidades que pressionavam os representantes das instituições oficiais de ensino exigindo mudanças no currículo, estão, juntamente com outras mais recentes, investindo na captação dos recursos necessários para o desenvolvimento de experiências educativas autônomas. Buscando o apoio de empresas privadas, do governo e de organismos internacionais envolvidos com a defesa dos direitos humanos e o desenvolvimento de projetos sociais nos países do terceiro mundo, elas têm tentado mostrar, na prática, que existem soluções possíveis para os graves problemas existentes na educação. Embora enfrentando dificuldades financeiras, os projetos que estão em andamento estão conseguindo atender cada vez um maior número de estudantes, e mereceriam um acompanhamento e uma avaliação que permitisse definir melhor, do ponto de vista pedagógico, as suas contribuições e limitações. A experiência educativa a partir da qual foram produzidos os dados aqui apresentados é exemplar dessas mudanças que estão em curso nos anos 90. Trata-se do curso Profissionalização para a cidadania, que teve início em setembro de 1995, em Salvador, a partir de um convênio entre o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) e o Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia (CEFET-Ba), e em parceria com cinco entidades culturais. Este tem como objetivo geral agrupar as atividades educativas que já vinham sendo feitas pelos blocos afro de Salvador, e levar adiante uma ação mais efetiva em favor da juventude, e da população negra, visando, a médio prazo, definir uma metodologia apropriada para trabalhar com jovens e adolescentes negros. Em termos específicos, o curso está voltado para dar formação técnica e profissionalizante a jovens e adolescentes negros e

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mestiços, associada ao desenvolvimento de uma concepção de cidadania que incorpore as especificidades da população afro brasileira. De maneiras diferentes, todas as entidades culturais parceiras estão desenvolvendo projetos educativos, geralmente nos bairros onde estão localizados. O Grupo Cultural Olodum criou a Escola Criativa, que tem o formato de uma escola de 1o grau mas, além das disciplinas obrigatórias no currículo, oferece cursos de canto, música, teatro, inglês, etc.viii. O Ilê-Ayiê, por sua vez, deu início, em 1995, ao Projeto de Extensão Pedagógica, que é um projeto diversificado, envolvendo vários tipos de atividades, mas tendo como eixo principal o trabalho de sensibilização e formação de professores e diretores de escolas públicas situadas no bairro da Liberdadeix. As duas entidades realizam suas atividades através de parcerias com empresas e outras entidades, como o Centro Projeto Axéx. O Ara-Ketu, Malê Debalê e o Bagunçaço, apesar de não dispor da mesma infra-estrutura, também, vem desenvolvendo atividades diversas dentro das entidadesxi. A clientela do curso é formada por um grupo bastante especial de jovens e adolescentes que são integrantes dessas entidades culturais. Eles são artistas - percussionistas, dançarinos e cantores - que ocupam uma posição de prestígio no contexto local, por participarem de grupos conhecidos, nacional e internacionalmente. Ao mesmo tempo, eles são estudantes com características bastante semelhantes à maioria dos jovens e adolescentes afrobrasileiros, de origem social pobre, que estão concentrados nas escolas públicas dos grandes centros urbanos brasileiros. A proposta do curso é dar competência profissional em áreas técnicas relacionadas às atividades já desenvolvidas dentro das entidades culturais, de modo a preparar os jovens e adolescentes para se inserir no mercado da produção e difusão cultural em condições mais competitivas. É por isso que o curso oferece opções de profissionalização nas áreas de eletricidade, eletrônica e informática, que são recursos fundamentais para a produção de shows e eventos. Como a maior parte dos jovens e adolescentes atua como músicos, cantores ou dançarinos nas entidades culturais, alguns participando, frequentemente, de viagens no Brasil e no exterior, já estão familiarizados ou próximos desse universo da produção cultural. Em termos do currículo, o curso inova porque, além de portugues, matemática e inglês, na parte de formação geral consta uma nova disciplina, chamada “Formação para a cidadania”, onde entram conteúdos relacionados à história da população afro-brasileira, racismo, identidade, e outros temas, como sexualidade. Mais adiante, tratarei de modo mais detalhado dos procedimentos adotados para a definição do programa dessa disciplina e as questões que surgiram no decorrer do curso. A participação não implica em nenhum gasto extra por parte dos estudantes, que recebem vale-transporte e merenda. Além disso, é possível fazer adaptações no calendário, levando em conta a eventual necessidade de afastamento de alunos por motivo de viagem do grupo cultural. Vale frisar que a maioria dos participantes no curso estão matriculados, e frequentando, em paralelo, uma escola da rede oficial de ensino, tendo havido a distribuição dos horários das turmas nos turnos livres dos estudantes. Em termos de infra-estrutura e recursos humanos para a realização do curso, estão sendo utilizadas as instalações do CEFET-Ba, incluindo salas de aula, laboratórios, refeitório, biblioteca, e ainda os professores, com exceção apenas da disciplina Formação para a cidadania. Esse aspecto é importante porque o CEFET é a instituição pública, de segundo grau, voltada para a 11

formação técnica e profissionalizante, mais respeitada do Estado, conhecida pela qualidade do ensino e excelente nível de qualificação dos professores. A procura dos estudantes é muito grande, constituindo-se numa das raras opções, senão a única, para os jovens e adolescentes que querem prosseguir numa carreira técnica ou mesmo ingressar na Universidade, e não podem pagar um colégio particular. Em vista da qualidade do estabelecimento de ensino e da valorização que tem, do ponto de vista local, esperava-se que houvesse por parte dos representantes das entidades culturais, assim com dos jovens e dos pais, uma aceitação e um interesse muito grande pelo curso. Essa expectativa foi confirmada e, de fato, para esses jovens e adolescentes, que estudam em escolas situadas em bairros populares ou periféricos da cidade de Salvador, ter acesso ao espaço de uma escola organizada, limpa, onde as aulas acontecem nos horários marcados, os professores são competentes, os laboratórios funcionam, etc., foi uma experiência muito importante e valorizada. Além do conteúdo adquirido ao longo do curso, a própria integração desse grupo de estudantes, com características raciais, sociais e culturais próprias, a esse novo universo é parte importante da experiência educativa e merece atenção especial. A clientela do curso, inicialmente, era constituída por 120 jovens e adolescentes, entre 14 e 22 anos, selecionados a partir da indicação feita pelas entidades culturais citadas. Em termos de escolaridade, o grupo era composto por estudantes com, no mínimo, 5a série do primeiro grau e, no máximo, segundo grau completo. Como os estudantes distinguiam-se muito em termos etários e de escolaridade, realizou-se, no início do curso, durante dois meses, uma fase de nivelamento, constando no currículo somente as disciplinas de formação geral - Português, Inglês, Matemática e Formação para a cidadania. No entanto, o período inicialmente previsto para o nivelamento mostrou-se insuficiente diante das graves dificuldades em termos de aprendizagem apresentadas, principalmente, pelos estudantes de faixa etária e escolaridade menor, notadamente em matemática e português. A falta de domínio, por exemplo, de operações básicas da Matemática tornava impossível a continuidade da formação técnica em eletricidade e, mais ainda, em eletrônica. Desse dilema resultou que os estudantes foram divididos em dois grupos, um dos quais concluiu o curso antecipadamente, recebendo um Certificado de Frequência de 222 horas de curso, e o outro continua a formação técnica nas áreas já referidas. Atualmente, um total de 67 estudantes está frequentando as aulas no CEFET, constando na parte do currículo voltada para a formação geral apenas a disciplina Formação para a cidadania, e na parte profissionalizante as disciplinas Eletricidade, Eletrônica e Informática-Comunicação. Essa dificuldade quanto ao rendimento dos estudantes já era, de alguma maneira, esperada, tendo em vista a baixa qualidade de ensino e os diversos problemas enfrentados pelas escolas públicas. No entanto, é possível afirmar que a gravidade da situação encontrada ultrapassou todas as expectativas, fato que poderemos comprovar na análise das trajetórias escolares dos estudantes entrevistados. O descompasso que se verificou entre idade, série que está cursando e conteúdos básicos realmente aprendidos foi tão grande que suscitou modificações na proposta original do curso, com redução do número de estudantes atendidos. Essas limitações no domínio de conteúdos básicos, dificultou o trabalho dos professores, especialmente nas disciplinas de caráter profissionalizante, de modo que, mesmo reduzindo a complexidade ao máximo, estes esbarravam no problema da falta de

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base. A partir disso, alguns professores questionaram a utilidade de oferecer um curso com um padrão de qualidade tão alto para alunos que não tinham condição de acompanhá-lo. Esse é um dilema que se coloca, na prática, para todos aqueles que estão tentando promover mudanças na área de educação, pois qualquer tentativa de dar uma boa formação à população negra, de cunho político e profissionalizante, vai esbarrar na falta de formação geral dessa população: falta de leitura, de capacidade de concentração, de raciocínio lógico, e, ainda, de reconhecimento do valor do conhecimento que está sendo construído na escola. Em relação a esse ponto, cabe refletir que a opção feita foi aceitar no curso todos os estudantes cujos nomes foram indicados pelas entidades culturais, evitando adotar qualquer mecanismo de exclusão. A idéia era que, provavelmente, estes jovens e adolescentes já teriam sido excluídos, de várias formas, no seu cotidiano, e que o curso não deveria fazê-los passar por mais uma experiência desse tipo. Ao invés disso, o melhor seria montar uma boa estrutura para o curso, e oferecer condições mínimas para que todos os estudantes pudessem adquirir motivação para continuar e serem bem-sucedidos. No entanto, os problemas provocados pelo baixo rendimento de uma parcela deles fizeram com que fossem adotados critérios de avaliação, que permitissem selecionar aqueles que realmente teriam condição de concluir o curso de acordo com a proposta inicial, ou seja, aptos para o exercício de atividades profissionais nas áreas técnicas já mencionadasxii. Formação para a cidadania A disciplina Formação para a cidadania foi pensada com o objetivo principal de fornecer elementos que permitissem a afirmação da identidade racial dos estudantes, estando concentrada em temas relacionados à população afro-brasileira, mas incluíndo também outros temas importantes na formação dos jovens e adolescentes como cidadãos. O programa, a estrutura da disciplina e a escolha dos professores foi fruto de discussões com representantes das entidades culturais e instituições parceiras, militantes do Movimento Negro e pessoas interessadas na questão da educação. Diferentemente das outras, esta disciplina foi estruturada em módulos, ficando sob a responsabilidade de vários professores, sendo que, entre eles, estavam presentes pessoas que coordenam as atividades pedagógicas de duas das entidades culturais parceiras. Esse fato chama a atenção para outro objetivo, não menos importante, do curso, que é o de incentivar as atividades educativas que já estão sendo desenvolvidas pelas entidades culturais, o que significa obter, também, obter respaldo político para o projeto. Na verdade, a proposta era que as entidades culturais não apenas fornecessem os alunos para compor o curso mas, efetivamente, se envolvessem o máximo possível em todo o processo, acompanhando de perto o andamento dos estudantes indicados por cada uma delas. De modo geral, observa-se que, na parte do programa dedicada ao negro, o estudo da África não ocupou lugar central, sendo dedicado mais tempo ao estudo dos temas afro-brasileiros, incluíndo aí a participação do negro na História do Brasil e da Bahia, as organizações políticas negras, o racismo no Brasil, etc. Quando comparamos o programa dessa disciplina, com o da disciplina Introdução aos estudos africanos, por exemplo, referida anteriormente, constatamos que há um deslocamento temático visível, no sentido de enfatizar mais a discussão da realidade racial do Brasil, e da Bahia. Esse deslocamento talvez esteja relacionado com o aumento sensível da discussão sobre as relações raciais no Brasil, que

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ocorreu no período entre o Centenário da Abolição (1988) e o tricentenário da morte de Zumbi (1995), e pode ser observado, por exemplo, na mudança dos temas escolhidos pelos Blocos Afro como inspiradores das composições e fantasias dos seus desfiles no Carnaval. A observação das aulas de Formação para Cidadania permite destacar outras questões relacionadas à implementação da disciplina. Um primeiro aspecto que deve ser levado em consideração é que os estudantes desse curso já vinham tendo contato, através das entidades culturais, com temas e questões relacionadas à cultura e identidade afro-brasileiras. Em vista disso, era de se esperar que não houvesse rejeição à disciplina, que eles não tivessem tantos problemas de baixa auto-estima e que a afirmação de si mesmos como negros fosse bastante frequente. Embora a heterogeneidade da turma seja muito grande, é possível afirmar que os alunos não demonstraram recusa ou preconceitos em relação a tratar da questão do racismo e outros temas relacionados ao negro, mas, pelo contrário, muita sensibilidade para a presença da dimensão racial no seu cotidiano. Vamos mostrar isso com mais detalhe na análise dos fatos apontados como racistas nas entrevistas. Trajetória escolar Os dados apresentados a seguir resultam de entrevistas feitas com apenas uma parte dos estudantes, escolhidos aleatoriamentexiii. A análise das informações sobre as trajetórias escolares mostra que estas são caracterizadas por um alto índice de repetências e interrupções, sendo raros os casos daqueles que apresentam a relação padrão entre idade e série escolar (quadros 1 e 2). Levando em conta a presença, ou não, de repetência e evasão, foi possível identificar 4 tipos de trajetória escolar: a) b) c) d)

contínuas - sem repetência ou interrupção (2 casos) lentas - somente com repetências (15 casos) descontínuas - somente com interrupções (4 casos) interrompidas - repetência e interrupção associadas; no momento, estão fora da escola (7 casos). Veja dois exemplos de estudantes que estão nessa situação.

J. tem 17 anos e está fazendo a 5a série, pela quarta vez . Já repetiu a 3a série duas vezes e parou de estudar desde 1995. M. tem 18 anos, já repetiu 1 vez a 4a série, 3 vezes a 5a série e 2 vezes a 6a série, e parou de estudar desde 1995. Em relação à repetência, observa-se que a 5a série é aquela onde há maior reprovação, e que é maior o número de casos de estudantes que têm 2 ou 3 repetências na sua vida escolar. O número total de anos de estudo repetidos pelos 23 alunos entrevistados, que tiveram alguma repetência em sua trajetória, seria suficiente para que 7 estudantes fizessem todo o 1o grau (quadro 3). Vários motivos foram apresentados pelos estudantes para as repetências, sendo citados os problemas na aprendizagem de uma disciplina (o mais evidente), ou na estrutura da escola, as atitudes de professores e diretores, e os problemas familiares e pessoais (quadro 4). No entanto, diversos outros foram citados, com uma incidência muito maior, revelando que os estudantes, embora percebendo a interferência de fatores externos, atribuem a si mesmos a maior responsabilidade pela repetência, ou seja, pelo fracasso escolar. Fatores como falta de

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estudo, falta de interesse, frequência baixa, não comparecimento às avaliações, indisciplina e não realização das atividades escolares são apontados como aqueles que explicam o fato dos estudantes serem reprovados no final do ano. É interessante que, apesar de, racionalmente, terem uma visão crítica sobre o comportamento dos estudantes, e reconhecerem a importância do estudo e da escola na vida de todos, eles não conseguem aplicar essas idéias às suas próprias trajetórias escolares. Nas sugestões para mudança dessa situação, em primeiro lugar, eles citam iniciativas dos estudantes, seguidas de iniciativas do governo, das famílias e das escolas (quadro 5). Discurso racial Em relação ao discurso racial, a opção foi por abordar diversos aspectos da questão, de forma direta - com perguntas sobre cor e racismo -, e de forma indireta - com perguntas sobre o trabalho, escola, gosto, etc. A preocupação maior na elaboração das perguntas foi de evitar ao máximo impor ou induzir os estudantes a adotar uma visão racializada do mundo. Além disso, as definições deterministas ou restritivas da ‘raça’ ou do racismo, que privilegiassem, por exemplo, as características físicas, em detrimento de outras, no modo de classificar as pessoas, foram evitadas. Nesse sentido, não ofereci frases prontas para que eles demonstrassem o grau de concordância, nem utilizei fotos ou descrições para que eles selecionassem mas, pelo contrário, procurei identificar os critérios utilizados para descrever pessoas classificadas como ‘negras’, ‘morenas’ e ‘brancas’. Nas perguntas que não tratavam diretamente da cor ou ‘raça’, tentei observar, em que medida, o fator ‘raça’ seria importante nas várias várias dimensões da vida cotidiana e, especificamente, no espaço escolar. Ou seja, não foi feita nenhuma pergunta direta sobre a existência de problema racial na escola mas sim sobre o racismo, em geral, e sobre a escola, em geral. A partir daí, penso que seria possível perceber se a ‘raça’ é vista como um fator importante no universo dos estudantes afro-brasileiros, e em que espaços a dimensão racial das coisas aparece de maneira mais nítida, mais evidente, para os jovens e adolescentes. Entre os 28 entrevistados, 17 não trabalham e 11 trabalham, sendo que destes 9 estão inseridos em atividades desenvolvidas dentro das próprias entidades culturais. Quando perguntados sobre as profissões mais desejadas, a maioria apontou profissões técnicas de nível médio, como técnico em eletricidade ou em informática, o que é compreensível tendo em vista o contato maior que eles estão tendo com essas áreas através do curso realizado no CEFET-Ba (local onde as entrevistas foram realizadas). Em segundo lugar, aparece a profissão de percussionista, atividade com a qual eles já estão envolvidos nos blocos-afro. Em seguida, aparecem as profissões de médico, gerente/empresário e secretário, como as preferidas, seguidas, então, de outras que são citadas apenas uma vez . Quanto às profissões rejeitadas, a mais citada é a de gari, seguida de servente e policial. É interessante que, ao comparar esses resultados com as profissões referidas como as mais comuns entre pessoas negras e brancas, vê-se que as profissões rejeitadas são aquelas associadas de maneira imediata a pessoas negras, enquanto as profissões desejadas estão entre aquelas citadas como mais características dos brancos. O grande número de ocupações citadas mostra que há uma percepção da existência de inserções diferenciadas de negros e brancos no mercado de trabalho, e, diante disso, a opção preferencial é a de ocupar posições mais valorizadas socialmente, recusando as ocupações braçais, sujas e subalternas, tradicionalmente desempenhadas pelos negros. 15

Diante da pergunta sobre o casamento inter-racial foi unânime a aceitação, geralmente seguida da afirmação de que a pessoa não é racista. Houve consenso, portanto, que, do ponto de vista pessoal, não causaria problema casar com uma pessoa de cor diferente, e que a recusa indica a presença de racismo. No entanto, quando perguntados os nomes dos homens e mulheres mais bonitos que conhecem, as pessoas famosas mais citadas foram brancos - principalmente no caso das mulheres - em sua maioria atores e atrizes da TV brasileira. Vale frisar, também, que as mães e os pais foram citados por alguns estudantes, o que, se levado em consideração, diminui a ausência de referência aos padrões estéticos não europeus. Classificação da cor Era possível esperar que, tendo a oportunidade de participar de entidades culturais que gozam de respeito e são conhecidas, nacional e internacionalmente, onde aprendem no diaa-dia a valorizar a cultura e a estética afro-brasileira (‘negra’), fosse comum o uso do termo ‘negro’ para a auto-classificação . Isso foi confirmado e, de fato, o termo ‘negro’ foi o mais usado na auto-classificação da cor pelos entrevistados. No entanto, outros termos também foram usados, como ‘moreno’- o segundo mais utilizado - seguido de ‘preto’, ‘escuro’, ‘mestiço’, ‘cabo-verde’ e ‘claro’ (quadro 6). Na descrição de pessoas consideradas ‘negras’, ‘morenas’ e ‘brancas’, a ênfase maior foi dada às características físicas, como cor da pele e dos olhos, tipo de cabelo, formato dos lábios e do nariz, cor dos dentes e estatura. No entanto, várias outras características foram, também, utilizadas para descrevê-las, relacionadas à situação econômica, posição política (racial) e personalidade, ocorrendo diversas associações entre elas. Algumas descrições associam características físicas a outras da personalidade, ou econômicas, ou políticas. Outras descrições apoiam-se apenas em características políticas ou da personalidade (quadros 7 e 8). A análise das características (exceto físicas) que são associadas a ‘negros’, ‘morenos’ e ‘brancos’, permite observar que há uma tendência a valorizar positivamente os ‘negros’, utilizando qualidades - cheiroso, inteligente, bonito, trabalhador - para descrevê-los, enquanto que vários defeitos são associados aos ‘brancos’ - exibidos, mandão, sem sal. Em alguns depoimentos, os ‘negros’ são, também, descritos como anti-racistas e politizados do ponto de vista racial - com consciência negra, mentalidade de negro -, enquanto que os ‘brancos’ são racistas e preconceituosos. Na descrição dos ‘morenos’, as características físicas foram mais citadas e houve maior dificuldade e indefinição: em alguns depoimentos, afirma-se que os ‘morenos’ são iguais aos ‘negros’, no sentido de viver a mesma situação de discriminação; em outros, afirma-se que os ‘morenos’ (mais claros) são iguais aos ‘brancos’, ou seja, preconceituosos; em outros depoimentos, afirma-se que os ‘morenos’não existem ou que não se sabe como descrevê-los. Na forma de classificar a cor ou descrever os grupos raciais, percebe-se que, embora seja comum a tentativa de evitar os estereótipos negativos associados aos ‘negros’, há apenas uma relativa aceitação do discurso que exalta a polarização entre ‘negros’e ‘brancos’, e recusa o uso do termo ‘moreno’. Este termo continua sendo utilizado, aparecendo em segundo lugar na lista dos mais citados. De qualquer modo, o fato de aparecerem evidências, em alguns depoimentos, de que eles acreditam que pessoas de determinados grupos raciais têm as mesmas características de personalidade, ou adotam as mesmas

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posições no que diz respeito à questão racial (racistas ou anti-racistas), causa alguma preocupação, pois indica que estão sendo transmitidas ou construídas visões essencialistas e reducionistas da ‘raça’e do racismo. Racismo Antes da análise das situações onde, na interpretação dos jovens e adolescentes, ocorreu racismo, convém destacar que, entre as 28 pessoas entrevistadas, apenas 2 disseram nunca ter sido vítimas, e nem conhecerem alguém que tivesse sido vítima de racismo. Isso demonstra que eles têm uma percepção aguçada da presença da dimensão racial no cotidiano, interpretando fatos corriqueiros como tendo um caráter racista. Além disso, quando perguntados sobre como reagiriam se fossem objeto de racismo, a maioria (17 casos) optou pela argumentação e exposição de motivos, apoiada na idéia da existência de direitos, e a minoria optou pela omissão (7 casos) ou agressão física como resposta (4 casos). A análise das situações descritas, mostra que, a maioria delas, não teve grande repercussão, nem caráter espetacular, não tendo atraído a atenção da mídia, ou de advogados. Elas referem-se a restrição de direitos pessoais que, de alguma maneira, eles sabem ou imaginam que têm, não estando referidas à ‘raça negra’, em geral. Ou seja, o racismo é visto como uma forma de restrição dos direitos individuais deles, como jovens e adolescentes afro-brasileiros. Foram identificados 4 tipos de situações apontadas como racistas: a) Restrição da circulação ou permanência em lugares públicos - são casos onde a pessoa foi agredida, verbal, ou fisicamente, ou constrangida, por ser considerada suspeita de ser criminosa. Foram descritas 10 situações desse tipo, sendo que a maior parte (9) ocorreu em lugares públicos, como o transporte coletivo e a rua. Nos ônibus, as situações envolvem cobradores e senhoras, que confundem o adolescente com um marginal, ocorrendo agressões verbais, físicas e até mesmo o impedimento da permanência no local. Na rua, novamente há referência ao temor das mulheres, que agarram as bolsas e pensam que vão ser roubadas. Em dois casos, houve participação direta de autoridade policial, sendo que, em um deles, o jovem foi espancado e torturado, dentro de bar, por dois homens que diziam ser policiais, embora não estivessem fardados; no outro, houve impedimento da permanência em um ponto de ônibus, sob suspeita de uso de drogas (cola). b) Negação dos direitos de consumo de bens e serviços - são casos onde houve recusa de atendimento, impedimento de acesso, detenção ou revista em estabelecimentos comerciais, de lazer, bancos e escolas, por medida de segurança, porque a pessoa foi vista como suspeita de planejar uma atitude marginal. Ocorreram 14 situações desse tipo, que podem ser divididas tomando-se por critério o local: • Shoppings, lojas, bancos - as situações mais comuns foram aquelas que ocorreram nos shoppings (7casos), onde seguranças e vigilantes impediram a entrada ou seguiram os adolescentes, por suspeitar que eles fossem roubar. Ocorreram situações em lojas (2 casos), onde o vendedor demonstrou desconfiança e temor

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por confundir o cliente com um ladrão, e o segurança (loja de departamentos) apelou para a revista, pela mesma razão. Em outra situação, uma mulher foi impedida de entrar no banco pelo segurança, tendo ocorrido, pela primeira vez, referência direta ao pertencimento racial (o segurança respondeu ao argumento da mulher de que não pretendia roubar perguntando: “e preto pra ser ladrão precisa ter cara?”. • Clubes e teatros - nas duas situações descritas, é, novamente, o responsável pela segurança que impede ou dificulta o acesso dos jovens, por associá-los a marginais. Em um caso, uma jovem foi interrogada pelo vigilante de um teatro, quando ela e uma amiga pretendiam entrar para participar de um ensaio, sendo que a amiga não foi perturbada. No outro caso, um jovem foi impedido de entrar em um clube social de prestígio, onde iria tocar num show com Daniela Mercury, pelo segurança, que tentou revistá-lo, coisa que não estava fazendo com as outras pessoas que passavam. • Escolas - duas situações descritas ocorreram em escolas e envolveram a participação de uma professora e duas diretoras. Em um caso, o jovem foi impedido por uma professora de entrar na sala de aula, recebendo, ainda, a pena de suspensão pela diretora; no outro, uma diretora tratou mal alunos negros. c) Negação do acesso ao trabalho - foi descrita uma situação onde um parente do entrevistado fêz um teste na Marinha para Oficial, e, embora tenha passado, foi reprovado pelo Comandante, tendo perdido o lugar para uma pessoa branca. d) Violência verbal, de caráter racial (às vezes, acompanhada, também, da violência física) - comentários em tom jocoso (piadas), e agressivo, que referem-se a supostas características inatas aos afro-brasileiros. Muitas vezes, não envolvem pessoas de posições hierárquicas diferentes, mas estudantes da mesma escola ou amigos do bairro. A maior parte das situações descritas ocorre em escolas (9 casos), sendo que destas quase todas ocorrem dentro da escola onde os estudantes estão fazendo o curso de profissionalização, fato que suscita uma reflexão mais cuidadosa. A exceção é apenas de um caso onde ocorreu xingamento com o uso de termos relacionados à cor, há alguns anos atrás. Além destas, são descritas situações onde são feitos comentários, pronunciados por terceiros ou durante conversas com amigos, na rua, que explicitam a preferência pelo branco ou a rejeição pelo negro, geralmente referido como ‘preto’ (5 casos). É na condição de anonimato que se cria quando circulam na rua ou em outros locais públicos, como lojas e shoppings, que os jovens e adolescentes percebem de modo mais visível ou com mais intensidade que eles são objeto de racismo. Apesar deles fazerem parte de entidades culturais respeitadas na cidade e de, muitos deles, já terem viajado para o exterior participando, como músicos ou dançarinos, de shows e outros eventos, no dia-a-dia, na vida cotidiana, eles são vistos pelos ‘outros’ - polícia, vigilantes, senhoras, professoras, diretoras, outros estudantes, etc. - como jovens e adolescentes negros e pobres comuns, ou seja, como pessoas que podem representar perigo, insegurança e que devem ser vigiadas, afastadas, agredidas e, enfim, tratadas como marginais. Os direitos que têm, enquanto cidadãos e adolescentes, são negados a esses meninos e meninas, que vivem o confronto entre duas realidades muito

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distintas, com as quais eles têm que conviver: a das entidades culturais que eles fazem parte, onde são tratados pelo nome e respeitados pelo que fazem; e a da rua, onde são reduzidos, pelos sinais aparentes de sua origem racial e social, à condição de jovens marginais. No entanto, foram descritas, também, diversas situações que ocorreram no espaço escolar, envolvendo tanto professores e diretores, quanto outros estudantes (11 casos). Nesses casos, apesar de estar dentro da escola na condição legítima de estudantes, ocorreram situações onde, de maneira implícita ou explícita, eles perceberam que sofreram uma agressão, verbal ou física, de caráter racial. Gostaria de refletir, especificamente, sobre os fatos que ocorreram dentro de CEFET-Ba, local onde está sendo realizado o curso formação para a cidadania. As inúmeras referências a situações interpretadas como tendo um caráter racista, que ocorreram dentro do CEFET-Ba, durante um curso que foi criado justamente com o propósito anti-racista de oferecer oportunidades a jovens e adolescentes afrobrasileiros, de origem social pobre, é, no mínimo, muito interessante. Aqui cabe uma reflexão maior porque o fato criado pela implementação de uma experiência educativa desse tipo, gerou uma série de situações de tensão dentro da instituição de ensino que acolheu o projeto, que foram interpretadas pelos estudantes como tendo um caráter racista. O fato de terem aparecido, nas entrevistas, tantas referências (8 casos), somente confirmam algo que já estava sendo reiterado no dia-a-dia pelos jovens e adolescentes, e pelos representantes das entidades culturais que eles fazem parte. Desde o início do curso, houve denúncias junto à coordenação de que, funcionários e estudantes do CEFET-Ba, discriminaram os jovens e adolescentes, através de agressão verbal (‘meninos-de-rua’, ‘gang’, ‘nega descompreendida’, etc.), ocorrendo casos envolvendo, também, agressão física e impedimento de acesso ao espaço da escola ou à participação em uma atividade. Quando as denúncias começaram a ocorrer causaram uma certa surpresa e desconforto, principalmente para os representantes da instituição, e foram atribuídas a uma inadaptação dos estudantes e funcionários a uma nova clientela, que teve acesso à escola no meio do ano letivo, e à falta de maior informação interna sobre a existência e objetivos do curso. A interpretação era que a comunidade da escola reagiu à novidade da presença de tantos jovens e adolescentes que, visivelmente, não tinham o perfil dos estudantes da casa, e à idéia de compartilhar um espaço que eles valorizam tanto, que é o do CEFET-Ba. Vale frisar que existem muitos estudantes e funcionários afro-brasileiros dentro da escola mas eles apresentam signos importantes de distinção em relação aos que chegaram. Em relação aos estudantes, o fato de ser um aluno regular do CEFET-Ba atesta a competência e o conhecimento que foi mostrado no teste de seleção exigido para o ingresso, e que se visibiliza pelo uso de uma camisa de cor diferente daquela usada pelos outros alunos, que fazem cursos preparatórios ou de extensão. Segundo essa interpretação, com o tempo, a tendência era que esse período de adaptação passasse e as tensões desaparecessem. No entanto, continuaram ocorrendo as denúncias e aumentou a pressão dos estudantes e entidades culturais para que alguma atitude fosse tomada. Dessa pressão resultou o envolvimento de outros setores da instituição na discussão sobre o racismo, a

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intolerância, e o reconhecimento de que era necessário desenvolver estratégias que promovessem mudanças de ordem mais geral. Algumas propostas estão sendo discutidas, nesse momento, e envolvem a realização de campanhas de divulgação sobre o tema dentro da escola, a inclusão de conteúdos relacionados à cidadania na disciplinas da área de Ciências Humanas - como Estudos Sociais e Sociologia -, e a adoção de um único tipo de camisa para todos os alunos que frequentam o CEFETBa. O fato que a implementação do curso, tenha gerado uma discussão sobre a questão racial que extrapolou os seus limites, e esteja provocando a adoção de mudanças em outros setores e a ampliação da ação do projeto dentro da instituição que o acolheu, é um dado extremamente importante para a avaliação dessa experiência. Embora a busca de uma relação causal entre a implementação do curso e as mudanças de atitudes individuais dos estudantes seja relevante, na medida em que existe uma dimensão pluricultural nessa experiência, esta não é suficiente pois o racismo não está restrito à dimensão individual, perpassando, também, as instituições. A presença, ou não, de mudanças na instituição, no sentido de assumir um maior compromisso com o desenvolvimento de políticas anti-racistas, deve ser valorizada como um dos indicadores do caráter bem-sucedido, ou não, de uma proposta pedagógica anti-racista. A análise dos vários elementos do discurso racial desses jovens e adolescentes permite apontar que estão ocorrendo mudanças importantes na ideologia racial, no sentido de afirmação da identidade racial e aceitação de discursos anti-racistas: o uso do termo ‘negro’ na auto-classificação da cor; a reivindicação do pertencimento à ‘raça negra’; a aceitação do casamento inter-racial; a identificação da dimensão racial de fatos corriqueiros, como violência e agressão, que fazem parte do cotidiano; a tendência à adoção de uma postura altiva diante desses fatos; a auto-estima elevada, expressa, entre outras coisas, pelo desejo de ocupar posições valorizadas na sociedade, recusando o ‘lugar de negro’. Essa mudança, sem dúvida, está relacionada com a participação nas atividades educativas que as entidades culturais afro-baianas promovem e, mais recentemente, com o curso que está em andamento no CEFET-Ba, e mostra que estas têm efetivamente, conseguido fornecer elementos para que os jovens e adolescentes elaborem outras formas de compreensão de si mesmos e do mundo em que vivem. No entanto, alguns aspectos contraditórios foram identificados nos discursos, como a existência de definições essencialistas de ‘raça’ e racismo, de argumentos anti-racistas diferentes, e a convivência de formas diferentes de classificação da cor. A comparação do discurso racial e da trajetória escolar dos jovens e adolescentes permite constatar que se, por um lado, eles podem ser considerados em situação privilegiada em termos do nível de informações e politização sobre a questão racial, por outro lado, eles enfrentam problemas seríssimos na sua formação básica e, por conta disso, incorporam um sentimento de culpa muito grande. As mudanças na ideologia racial não se refletiram em mudanças na interpretação do fracasso escolar, que continua sendo visto como, principalmente, de responsabilidade do estudante. É preciso atentar que essa combinação de motivação para a participação em atividades educativas e de trabalho dentro das entidades culturais, onde eles sentem-se competentes naquilo que fazem, e desmotivação no universo escolar, onde eles 20

tropeçam e fracassam, pode ter como resultado a cristalização de estereótipos que associam os afro-brasileiros às atividades artísticas, e não às atividades científicas e que exigem um alto grau de abstração. Para reverter esse quadro, é fundamental que sejam ampliadas experiências como a do curso Formação para a cidadania, que invistam na formação básica e profissinalizante dos jovens e adolescentes que estão envolvidos com a dinâmica cultural afro-baiana. Conclusão A realização de um levantamento mais completo de todas as atividades educativas que foram e estão sendo desenvolvidas em Salvador, nas duas últimas décadas, poderá vir a confirmar que, nos anos 80, houve uma maior ênfase em propostas de caráter pluricultural - como a experiência de modificação no currículo das escolas de 1o e 2o grau - enquanto que, nos anos 90, ampliaram-se as propostas de caráter anti-racista como o curso Formação para a cidadania. Colocando no centro do debate a construção e o acesso à cidadania, aos direitos das crianças e dos adolescentes afro-brasileiros e, enfim, dos vários segmentos que compõem a população, estas experiências recentes demostram que tem aumentado a pressão e diminuído a resistência à aceitação de discursos e práticas anti-racistas na educação. Esse fato, certamente, está relacionado com a ampliação da luta pelos Direitos Humanos, que ganhou legitimidade a partir da elaboração da Nova Constituição (1988) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).

Bibliografia FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura. As bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas. 205 pgs. 1993. GUIMARÃES, A.S. O recente antiracismo brasileiro: o que dizem os jornais diários. Dept. de Sociologia. UFBa. 1996. HASENBALG, C.A. Desigualdades Sociais e Oportunidade Educacional. In: Revista de estudos e pesquisa em educação, Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n.63., p. 24-26, nov. 1987.

21

LUZ, M.A. (org.). Identidade negra e educação. Cadernos de Educação Política. Salvador: IANAMÁ. 1989. MUNANGA, K. Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os discursos anti-racistas no Brasil. Dept. de Antropologia, USP. São Paulo. (s/data). PINTO, R. P. A representação do negro em livros didáticos de leitura. Revista de estudos e pesquisa em educação, Fundação Carlos Chagas. n.63, p.88-89, nov. 1987. ROSEMBERG, F. Relações raciais e rendimento escolar. Revista de Estudos e Pesquisa em Educação, Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n. 63, p. 19-23, nov. 1987. _____________. Raça e educação inicial. In: Cadernos de Pesquisa, n.77, p. 25-34, mai. 1991. SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO ESTADO DA BAHIA. Introdução aos Estudos Africanos: documentos. Salvador. 1986. SILVA, A.C. Estudos africanos nos currículos escolares. In: 1978-1988. 10 anos de luta contra o racismo. MNU. São Paulo: Confraria do livro. pp. 48-51. 1988. _____________. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: CEAO/CED, 110p., 1995. SKIDMORE, T.E. Preto no Branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1976. TROYNA, B. Racism and Education. Modern Education Thought. Philadelphia: Open Univ. Press. Philadelphia. 158 pgs. 1993. WINANT, H. Racial Conditions. Minneapolis: Minnesota Press, 199. pgs. 1994.

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ANEXOS Quadro 1: Número de repetências, por alunos, em séries semelhantes e diferentes número de repetências

séries semelhantes

série diferentes

total de

otal de

séries

alunos

0

( 2)

5

5

0 1 5 2 3

6

18

9

1

5

18

6

1

4

1

1

5

1

1

6

1

56

23

3 4 5 6

total Fonte: Pesquisa Alternativas educacionais afro-baianas (anos 80-90)

Quadro 2: Número de interrupções da trajetória escolar, por alunos Séries semelhantes N DE ALUN

Séries diferentes Total 15

8

8

2

2

Fonte: Pesquisa Alternativas educacionais afro-baianas (anos 80-90)

23

Quadro 3: Número de repetências, por série Séries 2 3 4 5 6 7 8 1 TOTAL

Número de repetências 3 11 6 24 8 3 0 1 56

Fonte: Pesquisa Alternativas educacionais afro-baianas (anos80-90)

Quadro 4: Motivos de repetência apresentados pelos alunos Motivos Incid ência RESPONSABILIDADE

DO

PRÓPRIO ALUNO

8

PROBLEMAS DA ESCOLA ( REFORMA, LEGALIDADE E LOCALIZAÇÃO) PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM FAMÍLIA

5 6 1

TRABALHO 1 PROFESSORES/

DIRETORES

PERSEGUIÇÃO)

( 1

TOTAL 22 Fonte: Pesquisa Alternativas educacionais afro-baianas (anos80-90)

24

Quadro 5: Sugestões de mudança s apresentadas pelos alunos Sugestões Incidência Alunos 9 Governo 8 Família (mães) 7 Escola 6 Não Sabe 2 Total 32 Fonte: Pesquisa Alternativas educacionais afro-baianas (anos80-90)

25

Quadro 6 : Termos utilizados na auto-classificação da cor e da raça I COR

INCIDÊNCIA

RAÇA

NCIDÊNCIA

Negro

9

Negra

21

Moreno

6

Mistura Africana

1

Preto

4

Africana

1

Escuro

1

Mestiço

1

Mestiço

1

Cabo verde

1

Clara

1

Total

23

24

Fonte: Pesquisa Alternativas educacionais afro-baianas (anos80-90)

Quadro 7: Características utilizadas na descrição de negros, morenos e brancos Grupos ísicas de Cor

olíticas ísicas/ ísicas/ Persona lide conômic a

ísicas/

ersonali ão Sabe ão de Existe

olíticas

egra

14

3

1

2

3

3

ranca

16

1

2

3

1

2

orena

18

1

1

2

1

2

1

2

otal

48

5

4

7

5

7

1

2

Fonte: Pesquisa Alternativas educacionais afro-baianas (anos80-90)

26

27

Quadro 8: Características utilizadas na descrição de negros, morenos e brancos (exceto físicas) EGRO

ncidência

RANCO

ncidência

ORENO

iscriminado

1

antagens

1

iscriminado 1 Igual ao negro

(mais ) ível Econômico

(mais) 1

baixo)

ível Econômico

2

ncidência

1 ão Existe

alto)

nti- Racista

2

em Sal

gual negro

ao 8

entalidade de negro

2

acista, 3 Preconceituo so

acista, não

ou 1

1

ensam que

1

ão 1 Discriminam

rabalhador ão bons 1

goísta

1

s mais 1 claros são racistas

heiroso

1

utoritário

1

ão sabe 1 descrever

nteligente

1

abe não

onito

falar, 1

abe ouvir OTAL

10

10

14

Fonte: Pesquisa Alternativas educacionais afro-baianas (anos80-90)

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i Segundo Winant (1994), em nenhum outro país a importância da raça é tão incerta, tão disfarçada em suas manifestações cotidianas, tão explicitamente negada e, ao mesmo tempo, tão presente de modo implícito. ii

Um dos estudos de Rosemberg (1987), por exemplo, mostra que para todas as séries do primeiro grau, o alunado negro apresenta índices de exclusão e de repetência superiores ao alunado branco, em São Paulo. Além disso, as cria nças negras são excluídas mais cedo e aquelas que permanecem têm uma trajetória escolar mais acidentada. iii Nessa pesquisa foram analisados 48 livros de leitura para a 4a série do primeiro grau, através da técnica de análise do conteúdo, no período de 1941 a 1975. iv Inicialmente, o conhecimento transmitido na escola tem um caráter universalista e normativo, não existindo uma adaptação desse conhecimento às contingências de cada momento, ou seja, uma fixação no efêmero e na aparência das coisas. Isso ocorre pela necessidade de se garantir que seja assegurado a todos o acesso ao que se considera como sendo essencial para a formação de cidadãos. No entanto, “...toda educação, e em particular toda educação de tipo escolar, supõe sempre na verdade uma seleção no interior da cultura e uma reelaboração dos conteúdos da cultura destinados a serem transmitidos às novas gerações” (Forquin, 1993: 14). v Ver informações do Cadernos de Pesquisa - Raça negra e educação. Fundação Carlos Chagas. N. 63. Novembro de 1987. vi Os argumentos são: o aspecto demográfico - o fato da população de Salvador ser constituída, majoritariamente, por descendentes de africanos; o fato que o Brasil é uma sociedade pluricultural e, por isso, a História das tres raças que compõem a nação brasileira devem ser estudas na escola; os problemas de falta

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de identidade cultural e inferiorização do povo negro e seus descendentes, decorrentes da ausência da História e da Cultura negra nos currículos escolares; a receptividade que os cursos do CEAO oferece; e as relações entre Brasil e África. vii Segundo o depoimento do professor responsável pela disciplina, esta chegou quase a ser excluída do currículo, por pressão da SEC, em vista do baixo rendimento dos estudantes, mas a Direção da escola, na tentativa de evitar que isso ocorresse, buscou encontrar alternativas. A convite da Direção, o professor de História montou uma proposta de programa, que foi aceita, e começou a ensinar a disciplina, para os alunos das 5as séries. O programa adotado foi radicalmente modificado e a disciplina não está mais concentrada na Geografia, História e Antropologia da África, mas no estudo de temas afro-brasileiros. viii A Sociedade Cultural Olodum surgiu nos anos 80 e, em 1991, criou a Escola Criativa com o objetivo de reduzir o racismo e o eurocentrismo na educação. A Escola atendeu 215 alunos, em 1995, e funciona em prédio próprio, localizado no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador. ix Até o momento, 52 professores de várias disciplinas, 03 diretores e 05 supervisores já participaram do curso de formação, que aborda temas como história e organização política da África, religiosidade afrobrasileira, preconceito e discriminação racial no Brasil, e outros temas, de modo a preparar os professores para abordá-los em sala de aula com os alunos. Além disso, o projeto tem uma linha editorial, através da qual publica material que possa servir de apoio ao trabalho dos professores; orienta pedagogicamente o trabalho na Escola Mãe Hilda e da Banda Erê, formada por adolescentes em parceria com o Projeto Axé; e incentiva o interesse dos estudantes pela pesquisa e aprendizagem de temas relacionados à população afro-brasileira, através da realização de concursos e oficinas entre os estudantes das escolas do Bairro da Liberdade. A Escola Mãe Hilda, funciona no próprio barracão do terreiro de candomblé, que fica na sede do Ilê-Ayiê, entidade fundada desde 1974. Atualmente, a Escola tem cerca de 100 alunos, em grande parte evadidos ou expulsos de outras escolas públicas, oferecendo cursos desde alfabetização até a 3a série. x

Fundado, inicialmente, com o objetivo de desenvolver um projeto de educação de rua e de atendimento a crianças e adolescentes, que moram ou vivem nas ruas, o Projeto Axé ampliou suas atividades nesses últimos 6 anos, chegando, hoje, a atender cerca de 1000 pessoas. Do ponto de vista pedagógico, partiu do princípio que para educar é necessário respeitar os direitos da criança - como o direito de liberdade e de opção - e prepará-la para o exercício da cidadania. Buscando desenvolver atividades que fizessem parte do próprio universo cultural e existencial das crianças e adolescentes afro-baianos, o Projeto Axé iniciou um trabalho pioneiro de parceria com 4 entidades culturais de Salvador - tres blocos afro e um grupo de capoeira angola -, colocando em prática a idéia de utilizar, de maneira sistemática, tais manifestações culturais como recursos pedagógicos eficazes. Inicialmente, o Projeto Axé não assumia a responsabilidade de educar do ponto de vista formal, mas apenas encaminhava as crianças atendidas para as escolas públicas da cidade. A tendência recente, no entanto, tem sido de ampliação das atividades desenvolvidas, de modo a incluir a criação de escolas, com toda a estrutura adequada também para a educação formal. É importante destacar duas características da proposta pedagógico-política do Projeto Axé, que são emblemáticas das experiências educativas dos anos 90: primeiro, a proposta pedagógica está apoiada na noção de cidadania, e daí o seu vínculo com a dimensão política (é por aí que entra a problemática racial); segundo, há um forte investimento na formação de recursos humanos (ocorre de maneira permanente, sendo feita uma seleção bastante criteriosa dos novos ‘educadores’ - uma nova profissão desempenhada por professores, estudantes de nível universitário, policiais, etc.). A proposta do Axé foi multiplicada dentro das entidades culturais com as quais foram realizadas parcerias, entidades estas que já desenvolviam projetos educativos, mas não tinham (ainda) uma sistematização da proposta pedagógica para o trabalho com jovens e adolescentes de rua. xi Bagunçaço é uma banda de percussão formada, nos anos 90, por criaças e adolescentes que utilizam instrumentos criados artesanalmente, a partir da reciclagem de embalagens usadas. Foi criada no bairro de Alagados, que já foi uma grande favela, e, atualmente, além de um conjunto de quatro bandas de latas, desenvolve atividades como oficinas de teatro, dança, etc. O Grupo Cultural Malê - que tem sede no bairro de Itapoã - e o Ara Ketu - situado em um bairro do subúrbio (Peri -Peri) - são grupos que surgiram nos anos 80 e, no momento, estão buscando formas de ampliar as suas atividades na área social e educativa. xii É interessante notar que em outra experiência desenvolvida em Salvador, a da Cooperativa Steve Biko, ocorreu algo semelhante: os problemas de rendimento obrigaram à adoção de medidas seletivas. A Cooperativa foi fundada em 1992, por integrantes de entidades políticas do Movimento Negro, com o objetivo

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de preparar jovens afro-brasileiros para o concurso vestibular. É sustentada pela doação de profissionais liberais, professores e outras pessoas que desejem apoiar a proposta, e dela somente participam estudantes, professores e administradores afro-brasileiros, estes dois últimos atuando como voluntários. No programa constam as disciplinas que fazem parte dos programas de quaisquer cursinhos preparatórios para o vestibular e, ainda, uma disciplina nova, que é Cidadania e Consciência Negra (CCN), onde os temas relacionados com a problemática racial, e outros, sãoabordados. xiii

Foram realizadas 28 entrevistas, com 1 hora e meia de duração, utilizando um roteiro prévio, que concentraram-se na trajetória escolar e no discurso racial, incluindo, também, informações sobre as condições de vida, visões sobre o trabalho, lazer e gosto.

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