O IRMÃO ZELA POR TI : REDES SOCIAIS, VIGILÂNCIA E PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO Vanuza Monteiro Campos Postigo 1

May 15, 2016 | Author: Yago Victor Gabriel Borja Guimarães | Category: N/A
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Mídias Sociais, Saberes e Representações Salvador - 13 e 14 de outubro de 2011

“O IRMÃO ZELA POR TI”: REDES SOCIAIS, VIGILÂNCIA E PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO Vanuza Monteiro Campos Postigo1 Resumo: A revolução digital, a difusão da internet e a conectividade crescente dos indivíduos do contemporâneo vêm transformando as formas de existência e interação social. O modo de vida do sujeito da atualidade, conectado cotidianamente em redes de informação atualizadas constante e incessantemente, imprime um novo modo de funcionamento objetivo e subjetivo com a cultura. Estar conectado às redes promove a inclusão do sujeito em um universo mediado e monitorado constantemente por outros usuários da rede e, nesta inédita forma de interação humana, o indivíduo voluntaria-se a participar de uma intervigilância recíproca e desejada. Remetidos aos dispositivos de controle e vigilância panópticos analisados desvendados por Michel Foucault, somos remetidos a uma releitura deste modelo onde o monitoramento do outro deixa de se vincular a uma punição e passa a se remeter ao desejo desse olhar. Palavras-chave: redes sociais, intervigilância, subjetivação.

A Revolução Digital A difusão da internet vem transformando a forma de se estar no mundo, tanto pela informação por ela veiculada quanto através das inovações advindas da interação e da comunicação mediada pelo computador. A conectividade do sujeito e a vivência em um universo virtual cada vez mais naturalizado em nosso dia a dia, enseja um período de grandes transformações - da esfera pública à privada – através do que se pode chamar de uma revolução digital. Em curso nesta transformação radical de nossa existência através da revolução digital, ainda sofremos os efeitos das transformações advindas da chamada Revolução CientíficoTecnológica de 1870. A revolução digital provoca esta radical transformação, quando ainda estamos nos acomodando aos efeitos das transformações advindas da chamada Revolução Científico-Tecnológica de 1870. Neste contexto que se desenvolveram as aplicações da eletricidade, com as usinas, veículos automotores, transatlânticos, telégrafos, gramofones, fotografia, cinema, enfim, um momento no qual convergiram diversas invenções e descobertas revolucionárias em determinado tempo histórico. 1

Psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica (PUC/RJ),Mestre em Psicologia (UFRJ), Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ), Professora na ONG VIVA-RIO.

O historiador Nicolau Sevcenko (2001) argumenta que essas inovações tecnológicas alteraram as estruturas econômica, social e política, assim como a condição de vida do indivíduo e as rotinas de seu cotidiano. Se ainda estamos sofrendo os efeitos do ―loop da montanha russa‖ (2001: 61) - metáfora que utiliza para explicar o que significa estarmos expostos às forças naturais e históricas agenciadas pelas tecnologias modernas - parece que agora entramos em uma montanha russa mais sofisticada do que a anterior e o loop será ainda mais radical com a revolução digital. Em consonância com este pensamento, o sociólogo Manuel Castells (2002) observa esse mesmo ―padrão de descontinuidade‖ nas diversas esferas da cultura a partir do evento histórico da Revolução da Tecnologia da Informação. E, como Sevcenko, compara essa descontinuidade radical com a ordem precedente com o impacto trazido pela revolução industrial. Em se tratando da revolução industrial, o fator de transformação do modo de vida devia-se à energia e em se tratando da revolução digital, a matéria prima é agora a informação. Sobre esta descontinuidade, o historiador Eric Hobsbawn (1994) acrescenta que hoje quase todos os indivíduos crescem e se constituem em uma espécie de ―presente contínuo‖ que não possui ―qualquer relação orgânica com o passado‖ e afirma que ―a destruição do passado — ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas — é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século xx.‖ (1994, p.12). Transpondo essa fala para o universo digital, com seu imediatismo, descartabilidade e com a existência do botão ―atualizar‖ – no qual a cada segundo podemos renovar as informações do site ―esquecendo o passado‖– a informação torna-se mesmo a mais preciosa matéria prima de nossa cultura. Há uma década, em artigo sobre As revoluções tecnológicas e as transformações subjetivas, a psicóloga Ana Maria Nicolaci-da-Costa (2002) já antevia como a expansão das Tecnologias da Informação interpenetrariam em ―todo o tecido social e transformam o planeta na Aldeia Global preconizada por Marshall McLuhan‖. Desde então, a autora atenta para as magníficas ―transformações internas radicais em função da exposição a essas novas tecnologias‖. A propósito da descontinuidade anunciada por Castells com a vida pregressa ao evento da revolução tecnológica, Nicolaci-da-Costa aponta que fatores importantes devem ser analisados nesse novo contexto: ―a geração de novos espaços de vida, as alterações de amplo alcance nos estilos de agir, de viver e de ser dos homens e mulheres que lhes foram contemporâneos e a proliferação de vocábulos que expressam novos interesses, novas

necessidades, novas formas de vida, novos relacionamentos, novos conflitos, etc‖. (2002: 195) A questão das novas subjetivações daí advindas torna-se importante objeto de estudo dentro do espaço virtual e dentro de uma sociedade atravessada por essa nova espacialidade e comunicabilidade. Interessada na interpenetração das redes sociais de relacionamento e pelas comunicações mediadas pelo computador vamos nos debruçar sobre esta temática, particularmente focados na visibilidade desejada e exigida do/pelo sujeito nessas redes – exposição esta que é marca registrada das relações em rede. Aliás, o olhar assume importante função na cultura contemporânea, em uma sociedade onde a imagética e as aparências são elementos fundamentais na lógica do consumo e na lógica da mercadoria. Sobre a imagética, entendemos que vivemos uma sociedade voyeurista, fixada escopofílica e patologicamente na dinâmica do ver/ser visto, desta feita, a questão do olhar assume lugar privilegiado em nossas reflexões. Essa visibilidade e exposição ao olhar alheio está em consonância com o declínio da intimidade e da esfera privada em nossa sociedade, onde o esvaziamento da interioridade é correlato ao incremento de uma ―cultura das sensações e do espetáculo‖ onde tudo se torna um grande ―palco‖ para performances pessoais. Aliás, há décadas que Guy Débord preconizou uma ―sociedade do espetáculo‖, desde os anos 60 que ele visionariamente anunciava o processo espetacularização da imagem e dos objetos na mídia tornando tanto os objetos quanto os sujeitos produtos expostos e ofertados ao consumo. Sem dúvida que esta questão da espetacularização da vida é atravessada pelo declínio da noção da vida privada/intimidade, bem como pela cultura do consumo regida pelo capitalismo. Mas queremos destacar aqui como o sujeito - criador e criatura de sua cultura – hoje é agenciado pelos determinantes sociais e históricos advindos da revolução digital que ensejam uma nova forma de existência e de territorialidade real, virtual e em rede. Nesses novos modos de existência é fundamental compreendermos os novos modos de relacionamento advindos da revolução digital e sua determinação na constituição e funcionamento psíquicos nos sujeitos engendrados na grande rede. A questão do olhar em nossa cultura da imagética e da exterioridade é fundamental para nossa reflexão e a pesquisadora Jennie Molz vem em nosso auxílio para avançarmos nesse tema, com sua contribuição sobre um tipo de olhar próprio ao contemporâneo para correlacionarmos este olhar com a as relações do individuo com a Internet. Em um artigo chamado Watch us Wander, Jennie Molz nos convida a problematizar um olhar que seria próprio ao contemporâneo, um olhar que vagueia, não se fixa e que seria

reflexo da vida social da atualidade, vida esta determinada pela mobilidade e fluidez. Baseando-se na análise de um site de viagens interativo, a autora faz uma argumentação baseada na compreensão da atualidade como uma cultura fluida, caracterizada pelos fluxos e pelo movimento e, a partir disso, nos convida a pensar sobre uma nova forma de vigilância em nossa cultura, realizada através da adesão e participação nos sites interativos da rede

A internet e a mobilidade do olhar que vaga pelos fluidos A idéia da fluidez vem sendo explorada por autores diversos na reflexão sobre a modernidade e a modernidade tardia. Vamos aqui eleger Zygmunt Bauman, que utiliza a idéia de ―fluidez‖ ou de ―liquidez‖ como metáforas que considera adequadas para captar a fase da história da humanidade que vivemos. Bauman alega que aquilo que caracteriza nosso funcionamento social seria uma ―redistribuição e realocação dos ‗poderes de derretimento‘ da modernidade‖ (2001: 09). O derretido é a própria fluidez, moldável e plástico. Jennie Molz inspira-se em Bauman para afirmar estaríamos sendo atravessados e constituídos pelo fluxo e pela liquidez contemporâneos e por esta noção de mobilidade, explicando que ao invés de locais fixos ou de territorialidade, o indivíduo estaria hoje organizando sua existência em termos de mobilidades, daí a importância e originalidade desta pesquisa em nossa reflexão sobre os modos de existência fomentados pela revolução digital. Ao nosso ver, hoje, em nossa cultura, nenhum exemplo de fluidez parece tão emblemático como a virtualidade, velocidade e movimento da Internet, tecnologia fundamental que sustenta não apenas a existência desses sites de viagens, mas subjaz a todas as comunicações mediadas pelo computador. É a na liquidez e derretimento dos bytes nas remissões infinitas à outros links, na atualização, no hipertexto que se renova incessantemente. Inspirados por este viés de pesquisa entendemos que nesta fluidez e fugacidade da Internet, esse olhar que vaguei e não se fixa parece uma ―resposta‖ do sujeito a toda essa efemeridade e velocidade dos fluxos, como um modo de funcionamento compatível com uma ―nova forma‖ de estar no mundo. Ou seja, o sujeito e a sua forma de se relacionar com os objetos do mundo ―respondem‖ e criam simultaneamente uma nova forma de se ―estar‖ no mundo: móvel, conectada virtual e interativa. Essa conectividade já é uma característica que compõe a visão do sujeito contemporâneo, desejoso ou não desta interação. Conforme exposto em trabalho anterior (POSTIGO, 2011a), a existência em rede independe de uma escolha do sujeito de ter um e.mail ou confeccionar um perfil em uma rede social ou profissional. À revelia e sem o

conhecimento do indivíduo, a aprovação em um concurso público ou a publicação de uma foto em matérias ou perfis alheios torna qualquer pessoa figura ―presente‖ na web: o seu nome é publicado nos sites do governo ou da empresa sem o seu conhecimento ou o congresso do qual o sujeito participou posta uma foto dele no evento em uma rede social. Consideramos que existe quase que uma convocação para o sujeito estar conectado e em rede, como um serviço público cujo o atendente encaminha sua demanda a ser suprida no site da empresa ou quando para poder lecionar é exigido ao professor que ele redija e atualize um currículo no formato do Lattes. Estar conectado em rede passa a ser uma condição para circular em espaços sociais diversos. O que vem se tornando uma questão a ser problematizada é o quanto esta interação em rede e a onipresença desse olhar na Internet vem ensejando enseja uma forma de controle e de vigilância da qual as pessoas estão começando a se tornar cônscias e a fazer resistência – ainda que de maneira incipiente - como mostra um movimento na Espanha de sujeitos que defendem o direito da invisibilidade. Está em jogo aqui uma discussão que vem sendo enriquecida com os novos elementos e relações advindas da revolução digital sobre os novos dispositivos disciplinares de vigilância da sociedade de controle tão bem mapeados por Michel Foucault. Por outro lado, a grande maioria dos usuários da rede e das comunicações mediadas pelo computador não internaliza essas práticas como uma vigilância. Na compreensão dessa imperceptível vigilância presente nestes dispositivos, a doutora em Comunicação e Cultura Fernanda Bruno (2008) esclarece a questão em artigo sobre regimes escópicos e atencionais quando fala de uma mistura de controle e prazer que parece constituir a vida nas cidades atuais. Bruno explica que, nas cidades, ―os regimes escópicos e atencionais presentes em dispositivos e práticas de vigilância (...) envolvem não apenas procedimentos de controle, mas, também, circuitos de prazer, atualizando as relações entre vigilância e espetáculo na cultura contemporânea‖. Reencontramos aqui o aspecto espetacular da sociedade atual, assim como o prazer com o olhar que mencionamos anteriormente. Ela prossegue explicando que: A vigilância também herda as cores e os prazeres da cultura do espetáculo que floresce junto com as cidades modernas. Ao mesmo tempo em que a sociedade moderna fez dos indivíduos um foco de visibilidade dos procedimentos disciplinares, ela os incitou e os excitou enquanto espectadores de toda uma cultura visual nascente, intimamente atrelada à vida urbana. Bruno, 2008, p.47

Essa transição do olhar que é temido para o olhar que é desejado – uma vez que o sujeito é engendrado em modos de funcionamento que instaura e legitima este desejo – vai

caracterizar aquilo que, o nosso ver, torna-se um importante elemento na compreensão dos modos de subjetivação relacionados ao universo digital.

Sobre Foucault e a vigilância: do vigiar e punir ao desejo do olhar do outro É vasto e bastante conhecido o pensamento do filósofo Michel Foucault e pretendemos aqui destacar o livro Vigiar e Punir e a maneira como é abordada a associação entre a vigilância e a púnica, que Foucault explica que foram utilizadas como mecanismos de controle, para produzir os corpos dóceis ao capitalismo e obedientes às instituições. A vigilância era assim associada a uma punição, a um castigo. Conforme mencionamos, é fascinante em nossa cultura a transformação da concepção do olhar e da observação, se antes preconizados por Foucault como inseridos nos dispositivos disciplinares da sociedade de controle - relacionados ao vigiar e o subseqüente punir - passam a assumir outra dimensão: a do desejo de ser olhado, vigiado, observado, seguido. Como estamos sustentando, essa transformação é determinante nos processos de construção e sustentação de subjetividade atualmente. A dimensão do desejo do olhar do outro, do controle e da vigília, parece um ponto particularmente importante na ―criação‖ dessa dinâmica de mobilidade, do ser espectador e ator da fluidez. Isso acontece quando o indivíduo comenta uma matéria na página on line de um jornal, quando ele faz o seu blog, com os seguidores que arrebata em seu twitwer e inúmeras outras interações digitais. Esse desejo do olhar remete a várias questões, conforme já mencionamos anteriormente como o declínio da privacidade em nossa cultura, a espetacularização da intimidade, a subjetivação sendo sustentada pela visibilidade ao/do outro – agora multiplicado em rede interativa, constantemente disponível e conectado – que possibilitaria a existência do sujeito. Enfim, é uma questão que abarca diversas e profícuas discussões, mas a intenção e possibilidade desta comunicação é apenas de apontá-las. A propósito deste olhar, chama atenção a displicência, fugacidade do olhar que vagueia, olhar superficial que não se fixa, que dá uma olhada, a ―espiadinha‖ que o apresentador da TV Globo nos convida a fazer no reality show Big Brother, sem compromisso,

sem

expectativas.

Nesta

visada,

superficialidade,

descartabilidade,

exterioridade, esvanecimento, efemeridade, obsolescência, imediatismo e outros elementos se confundem. A olhadela ou olhadinha nada fixa, nada aprofunda. É tanta profusão de objetos de consumos, que o excesso convida à pressa e à fugacidade. Na Internet encontramos sublime exemplo da cultura do excesso, característica de nosso tempo ―hipermoderno‖ como afirma Gilles Lipovetsky, do sempre mais e mais ainda e

paradoxalmente de um grande vazio. É o imperativo da ―lógica da renovação‖ e da ―expansão das necessidades‖ (LIPOVETSKY, 1989:159) em seu fluxo incessante. Aliar esse imperativo da renovação do consumo com a hiperconectividade já ilustra a magnitude e potencialidades dessa combinação. Esse olhar que vagueia e um olhar tão superficial que confunde o que é realidade ou fantasia. Como fala a senhorinha americana entrevistada na porta de um midiático julgamento de infanticídio, envolvendo uma bela e jovem mãe, seu filhinho e uma sensacional cobertura nos EUA: ―é o melhor reality show que já assisti‖. Na superficialidade de nosso olhar, mobilizado por outras chamadas da página do site, lembramos apenas que era uma matéria da Globo.com... Mais uma vez evocando Guy Débord no processo espetacularização da vida, na Internet todos se tornam uma imagem, um texto, um objeto midiático, que torna o sujeito parte de um grande espetáculo, uma vez que - tornado objeto - ele é mais um produto a ser divulgado, consumido e descartado. Em trabalho anterior (POSTIGO, 2011b), defendemos a idéia de que a constituição da subjetividade passa hoje pela alteridade representada nas comunicações mediadas pelo computador, por um espelhamento narcísico construído em rede e nos apropriamos do conceito de fama digital para compreender essa oferta quase que objetal que caracteriza as relações em redes sociais. Na busca desse sentimento de existência advindo da fama digital, ficou famosa a postagem viral no Youtube com um rapaz alcoolizado, José Rossoni, desabafando sua queixa e mágoa: ―ninguém me twita, ninguém me cutuca no Facebook‖ depois que seu amigo Bruno filmou seu lamento no celular e postou on line.2 Voltando à discussão sobre as novas vigilâncias, partindo do pressuposto que as pessoas utilizam informações e tecnologias de comunicação para ordenar, organizar e mediar a vida em movimento, o texto de Molz pretende investigar as relações sociais na intersecção entre mobilidade e tecnologia e quais tipos de relações sociais móveis tornaram-se possível ante às inovações tecnológicas. Através do mapeamento de sites de viagens, a autora do texto traz para a discussão as novas formas de vigilância e coloca em cena as várias modalidades de olhar em nossa cultura: monitorar, assistir, rastrear, seguir, ver: são as formas de interação com o viajante on line. A vigilância - aliada à tecnologia e mobilidade - passa a ser assim uma relação social, como

2

Disponível em 01/08/2011 em http://www.youtube.com/watch?v=2fplGLCZI0s

coloca Molz. Esta vigilância em suas várias formas - ver, monitorar, coletar, registrar e informar - torna-se uma atividade social. Um dos grandes méritos da pesquisa é colocar em evidência que as nossas relações com as instituições do Estado, com as corporações, e até mesmo uns com os outros são comumente mediadas através de regimes de vigilância. E mediadas voluntariamente, como observamos nos sites de relacionamentos, nos blogs e nos microblogs, onde o sujeito se oferta nos meandros de mecanismos de vigilância, controle e exclusão. Essa oferta de si ao monitoramento e rastreamento alheios implica um desejo de visibilidade e existência que assume lugar central na vida contemporânea digital. Comunicação e monitoramento se entrelaçam nessas tecnologias que acenam com a promessa de mobilidade e liberdade. Como ressalta Molz a propósito dos sites interativos de viagens, esta convergência de tecnologia, mobilidade e de vigilância constitui um novo surveillance. E o que se destaca, sublinhamos novamente, é o desejo de vigilância é a intervigilância que perpassa as comunicações mediadas pelo computador que proliferam na internet. É a vigilância digital voluntária, eu me oferto e não mais me escondo do Grande Irmão, afinal hoje vale a máxima ―o irmão zela por ti‖ (mesmo). Zelem por mim, me leiam, me vejam, interajam, assistam-me, façam-me existir. O empoderamento da testemunha e do testemunho É aí que se articula outra importante observação de Molz no que concerne ao papel de ―testemunha‖ que os sujeitos passam assumir nessas relações. Mais do que apenas um olhar, está em jogo o testemunho do outro. O empoderamento do outro passa a ser outro fator importante nessas relações. Esse empoderamento é tematizado por Molz, que sustenta que, a partir destas formas de mobilidade e tecnologias de monitoramento, surge a mudança no paradigma de vigilância a partir de uma estatal, de um regime hierárquico centralizado de vigilância para outro mais policêntrico, em rede, através de formas diferentes de vigilância onipresentes no cotidiano. Molz evoca Foucault e o panóptico3 como um modelo apto para descrever a forma como os Estados modernos utilizavam tecnologias de visibilidade e de sistemas de vigilância para exercer controle sobre as populações. Embora sua formulação esteja referida à relação de poder hierárquica entre as instituições do Estado e indivíduos, vários teóricos estenderam este

3

O panóptico é um modelo arquitetônico de prisão circular concebida por Jeremy Benthan no século XVIII no qual um observador poderia ver todos os presos do sistema. Foucault argumenta que nessa época, a exemplo do panóptico, uma série de dispositivos de disciplinares de vigilância e controle social foram instaurados.

modelo para descrever a vigilância descentralizada que ganha espaço em interações cotidianas e as relações interpessoais. Seguindo esta linha de raciocínio, estaríamos agora sob outro regime de poder, com uma noção de vigilância descentralizada descrita pelos tipos de interações sociais que ocorrem entre os indivíduos, especialmente quando consideramos o papel das tecnologias da informação e comunicação na mediação destas interações. Explorando o desenvolvimento de Foucault sobre as tecnologias do eu, Molz atenta como trata-se aí da interação do sujeito consigo e com os outros e nas tecnologias de dominação individual, sobre como um indivíduo age sobre si mesmo. Na conceituação de tecnologias do eu, Foucault refere-se às diversas técnicas que permitem que os seres humanos a trabalhar em si mesmos através da regulação seus corpos, seus pensamentos e sua conduta. Desta maneira compreende-se como as ―tecnologias do eu‖ tornam-se formas de vigilância interpessoal, com o indivíduo monitorando suas ações e atitudes, bem como as alheias reciprocamente. Nesta sutil mudança, o artigo destaca como as tecnologias da auto se preocupam mais com a auto-realização e o desejo do indivíduo de se tornar mais feliz. Nessa lógica, o sujeito assim seria mais feliz e realizado interagindo com os sites de viagens, sites de relacionamento ou sites de notícias, por exemplo. No monitoramento recíproco aí descrito, nesta intervigilância desejada e consentida, de certa maneira todos passamos a ter uma ―teletela‖ - aquela concebida por George Orwell no livro de ficção 1984 - presente nos espaços nos quais transitamos. Neste livro, escrito em 1949, o autor concebe uma sociedade futura imersa em um regime totalitário onde todos os cidadãos são permanentemente vigiados e reprimidos através de uma tela que monitora todo espaço social. A teletela imposta pelo regime totalitário de 1984 – que podemos hoje comparar à câmeras de monitoramento de elevadores, shoppings, bancos, trânsito e etc. – passa a ser adquirida e instalada pelo próprio indivíduo em seus laptops, desktops, Ipads, celulares. Desta maneira, eu sou o Grande Irmão de descrito por George Orwell, você é o Grande Irmão, cada um de nós passa a ser um grande-pequeno irmão nessa difusão de poder, monitoramento e controle. Analisando toda a dinâmica interrelacional nos sites de viagens, Molz explica que seus relatos e interações constituem uma ―tecnologia web de si, uma forma de escrita do eu como um objeto de reflexão, monitoramento, melhoria, disciplina e, em outras palavras, como um objeto de vigilância‖. É um jogo mútuo – consentido e desejado, volto a frisar - de poder, influência, controle, responsabilidade e vigilância.

Foucault, em Microfísica do poder (1997), trabalhou a noção de tecnologias do eu que enfatiza a importância da escrita como uma forma de produzir e regular a si mesmo, assim como ressaltou a importância de compartilhar tais escritos com outros que examinam, regulam e monitoram esta produção individual do sujeito. Essa questão da narrativa sobre si é outro importante recorte para reflexão e pesquisa no que tange à construção da subjetividade no contemporâneo. Nos grandes pensadores da cultura, por exemplo, impressiona a quantidade de correspondência trocada entre os pares. Sigmund Freud trabalhava em sua clínica de manhã à noite e cotidianamente dispendia outras tantas horas de sua noite trocando cartas com sua família e seus pares (Albert Einstein, Stefan Zweig, Carl Jung, entre outros ). Sem dúvida que o compartilhar, trocar e o próprio processo de narrativa sobre si ou seus desejos dirigidos a um outro sempre foram importantes meios de amparo e afirmação do indivíduo. O que há de inédito agora é o compartilhamento em rede, o imediatismo e a interatividade desta forma de conexão e desta forma de se estar no mundo. Mas o que está sempre subjacente a estas práticas é a intervigilância pessoal, como esses processos apresentam uma nova modalidade de tecnologias de vigilância móvel embutidos nessas infra-estruturas e como a vigilância se encontra implicada em estruturas particulares de poder e conhecimento próprias à nossa cultura. Como Green, apud Molz, observa, as tecnologias de vigilância não são inerentemente boas ou ruins, mas também não são neutras, elas constituem um regime de poder / conhecimento através do qual as relações sociais móveis são ordenadas de acordo com as práticas de assistir, seguir, monitorar e rastrear. Molz acrescenta que elas podem contribuir para ―uma reconfortante sensação de comunidade social e interação, a um senso de autotransformação positiva, ou uma enorme sensação de prestação de contas para os outros.‖(2006, p.380) Compartilhamento, comunidade, é grande a importância e lugar do outro nesses processos de vigilância. O neotribalismo: “compartilho, logo existo” Essa sugestão de uma reconfortante sensação de comunidade social e interação nos remete a Michel Maffesoli (1998) e sua concepção de neotribalismo, onde evoca as ―tribos urbanas‖ que se constituem como redes, afinidades e interesses. Baseando-se em Maffesoli, Zygmunt Bauman (1999) afirma que embora as tribos atuais possuam fraca adesão e facilidade de dissipação, o nosso mundo ainda tribal só admite verdades e decisões tribais. Mais uma vez vemos aí a função da alteridade e a importância do compartilhamento na tribo

contemporânea através da ―busca obsessiva da comunidade‖, conforme diz Bauman. Busca compartilhada e em rede acrescentaríamos nós. A propósito da menção às tribos, outra questão interessante na associação com os sites de viagens e mesmo a comunicação mediada pelo computador e a sua mobilidade é o nomadismo. O nômade exemplifica um aspecto importante da virtualidade, o de poder flanar ou de vagabundear por aí. Os primeiros hominídeos, há mais de três milhões de anos atrás, caçadores e coletadores eram nômades: Australopitecus, depois o Homo habilis, Homo erectus, Homo de neanderthal e enfim o Homo sapiens sapiens. Que tipo de nômades seremos nós agora? Da virtualização, caçando e coletando informações, predadores e consumidores dos outros virtuais? É indiscutível que assistimos também ao surgimento de novas modalidades de relacionamento, atravessadas por compartilhamento, intervigilância e outras temáticas que mencionamos aqui. Conforme aponta Callon e Law, apud Molz, as comunicações móveis estão redefinindo a natureza da presença, afirmando que ―co-presença é uma localização e uma relação‖ (Molz: 2006,386), presença contínua, disponível e vigilante dentro de minha tribo, nômade ou não. Nicolaci-da-Costa (2005) delineia abrangentes impactos subjetivos advindos da relação do individuo com a Internet e ligados à absorção da ―lógica da rede‖ - a lógica de excessos, agilidade, integração, relativização. Dentre as mudanças, a autora descreve o desenvolvimento de novos conceitos (ciberespaço, virtualidade, hipertexto, tempo real etc) a partir dos quais passaram a interpretar a nova realidade, alterações substanciais em suas concepções de espaço, realidade, escrita linear, tempo etc, novos usos de linguagem. A pesquisa trabalhada neste artigo de Nicolaci-da-Costa destaca também o prazer de escrever, de interagir, de pesquisar, de viver on-line relatada pelos usuários da rede. E daí se destaca que: escrita on-line é, de uma forma ou de outra, geralmente usada para falar de si (não importa se o que é dito corresponde à ―realidade‖ ou se é uma construção de personagens) em programas interativos. Quando o usuário está interagindo com diferentes interlocutores, esse falar de si – que, de fato, é um teclar sobre si – leva-o a ter diferentes retornos sobre o que diz. O próprio ato de escrever sobre si, agora acrescido da visão do outro ou de outros, forçosamente torna conscientes para o usuário os aspectos subjetivos sobre os quais ele e seus interlocutores discorrem. (Nicolaci-da-Costa, 2005, p.59)

Entendemos que se, por um lado, a exteriorização, a perda de intimidade ou do sentido do privado provocam um ―esvaziamento‖ subjetivo que comporta o risco da perda do

sentimento de ―continuidade do ser‖; por outro lado, conforme vislumbra Benilton Bezerra Jr., essa diluição da importância da interioridade enseja ―possibilidades interessantes‖ que inauguram ―novas possibilidades de resistência, novas subjetividades, novos modos de existência mais livres e criativos‖ (BEZERRA Jr, 2002: 238). Quais as implicações na transformação da identidade, privacidade, intimidade, limites do eu na era da imagem e nos regime da visibilidade? Filmar, escanear, fotografar, logar, compartilhar... Como ―ser‖ um sujeito em tempos fluidos, fugazes e virtuais? Onde fica a corporalidade, matéria até então indispensável nas relações humanas? Parece que aquilo que é mostrado e compartilhado é mais um texto e menos talvez um corpo. Sujeito nômade que prescinde de um território físico, sujeito flanando virtualmente prescinde também de seu corpo. O que deseja e o que constitui esse ―novo sujeito‖, parte humano e parte tecnologia? O sujeito na web, na grande teia das redes de computadores, é engendrado em uma teia de diversos tecidos e significados. O antropólogo Clifford Geertz defende um conceito de cultura onde o homem é um ser amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu e a cultura seria esta grande teia. Imersos nesse universo simbólico, é determinante a influência dos sistemas e códigos desta cultura que sustenta ―nossas idéias, nossos valores, nossos hábitos‖ como produtos culturais (GEERTZ,1989: 62). Como tecelãos, cabe a nós fazer desse tecido uma arte e não um produto industrial, encontrar a tal da criatividade sugerida por Bezerra Jr. Nesta proposta de uma criatividade, a idéia da necessidade de uma comunidade, de uma tribo, deixa entrever o desejo de um outro, de uma alteridade que parece ganhar espaço no contemporâneo. Esse movimento sugere uma proposta diferente daquela que vem sendo apontada como dominante nas relações do sujeito no campo social das últimas décadas, onde o ―autocentramento do sujeito atingiu limiares impressionantes e espetaculares‖ (BIRMAN, 2001: 166) com a individualidade sendo exaltada como valor e pela tomada do outro como objeto de predação. No loop radical da montanha russa, a evocação e presença do outro como um sujeito parece uma potência bastante criativa nas novas formas de subjetivação em tempos de rede. Nesse loop violento e radical nos quais fomos lançados com a revolução digital quem nos acompanha, nos ampara ou nos protege? ―O irmão zela por ti‖?

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