O conceito de paisagem sígnica aplicado à geografia: mosaico de sentidos perpassados pelo cultural e subjetivo 1

December 2, 2016 | Author: Rodrigo Lencastre Tomé | Category: N/A
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O conceito de paisagem sígnica aplicado à geografia: mosaico de sentidos perpassados pelo cultural e subjetivo1 Gilvan Charles Cerqueira de ARAÚJO2 Sidelmar Alves da Silva KUNZ3 Resumo: “Tornar o mundo nosso mundo” – essa é a máxima para se chegar à compreensão do que são as paisagens sígnicas e sua importância para o homem. Ao valorar, elevar, sublimar e simbolizar o meio em que vive, o ser humano extrapola os limites do concreto e do real. A cultura e a subjetividade estabelecem-se nos artefatos, nos ritos, nos contos e mitos sobre ídolos e locais fantásticos e misteriosos. Nessa imensa e complexa gama de significâncias que, juntas, formam um verdadeiro mosaico de sentidos, signos e símbolos, forma-se a totalidade de identificação do sujeito com o objeto; o indivíduo faz surgir o elo representacional paisagístico de signos entre ele, o mundo e os outros. Aos geógrafos, cabe buscar uma compreensão e aprofundamento dessas relações entre a sociedade e o seu ambiente, por meio do seu aparato teórico e metodológico, desvendando a força e o alcance dos significados presentes nesse devir relacional. Palavras-chave: Paisagem. Signos. Simbolismo Cultural.

1 Agradecemos aos pesquisadores Anarcisa de Freitas Nascimento e Helciclever Barros da Silva Vitoriano do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) pelo olhar crítico que contribuiu, significativamente, para a finalização deste esforço intelectual. 2 Gilvan Charles Cerqueira de ARAÚJO. Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Mestre em Geografia pela Universidade de Brasília (UnB). Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). E-mail: . 3 Sidelmar Alves da Silva KUNZ. Pesquisador do INEP/MEC (Área: Ciências Humanas). Mestre em Geografia pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Supervisão Escolar pela Faculdade do Noroeste de Minas (FINOM). E-mail: .

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The concept of signlike landscape applied in geography: mosaic of meanings intertwined by culture and subjectivity Gilvan Charles Cerqueira de ARAÚJO Sidelmar Alves da Silva KUNZ Abstract: “To make the world our world” – this is the principle to reach the understanding about what signlike landscapes are and their importance for the mankind. When valuing, rising, sublimating and symbolizing their environment, the human being overcomes the limits of the concrete and the real. Culture and subjectivity are established in artifacts, rites, tales and myths about heroes and fantastic and mysterious places. In this immense and complex group of significances that, together, form a true mosaic of meanings, signs and symbols, the totality of identification of the citizen with the object is formed; the individual gives rise to the signlike paisagistic representational link among himself, the world and the others. Seeking understanding and deeper study of these relations between society and its environment through its theoretical and methodological apparatus is up to the geographers, uncovering the strength and scope of the meanings contained in this relational becoming. Keywords: Landscape. Signs. Cultural Symbolism.

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1.  INTRODUÇÃO A Geografia possui um conjunto de conceitos tidos como pilares essenciais de sua estruturação como ciência. Esses conceitos ao longo dos tempos sofreram diferentes tipos de interpretações e foram muitas vezes adaptados ou reformulados epistemologicamente com a finalidade de abarcar a complexidade daquilo que se estava a analisar por meio da Geografia. De uma forma geral, é possível elencar os principais termos teóricos da ciência geográfica, contendo nesse rol: o espaço, entendido como a totalidade geral da realidade objetiva na qual se cristaliza a transformação da materialidade por meio da técnica ao longo do tempo, sendo ultimamente sublinhado em sua condição categorial de supremacia teórica e metodológica; o território, significando a delimitação espacial (dimensão política) principalmente dada por fatores socioculturais, incluindo aí questões de fronteiras, nacionalidade e identificação cultural, todas elas pautadas nas relações do poder no espaço geográfico. Há, também, a região, que se enquadra como importante e necessário recorte para análises mais aprofundadas em diferentes gamas temáticas. A região é possuidora de um caráter teórico fundamental no exercício da diferenciação espacial das características sociais, ambientais, culturais, econômicas e políticas existentes no meio. Podem-se juntar a esse seleto grupo de conceitos-chave da Geografia o local e o lugar. O primeiro está restrito aos parâmetros de averiguação do posicionamento de um determinado ente ou acontecimento a um ponto do plano terrestre ou, numa escala de maior amplitude, do universo como um todo. O lugar é justamente o local diferenciado pela carga afetiva e pelo elo subjetivo dado a ele pelo homem, ou por algum caráter significado que o diferencia do todo ao redor. Os lugares existem porque o ser humano neles habita; eles são a transposição da indiferença do local à valoração simbólica do lar, da casa, da cidade natal, enfim, de um vínculo que vai além das simples diretrizes dimensionais de localização.

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E, por fim, temos a paisagem, compreendida como a justaposição de todos os elementos constituintes do espaço geográfico, moldando, também, o todo espacial representado pela interpretação individual ou coletiva dos seres humanos na diversidade das visões de mundo presente no globo. A paisagem é a exegese da vinculação imagética do homem ao meio. É nela e por ela que os quadros de representação sígnica e simbólica se estabelecem e se legitimam. São infinitas as possibilidades de criação de significados e significantes no plano paisagístico. O imaterial sobressai-se ao material e objetivo; concretiza-se, assim, a ponte entre o que está além das trivialidades naturais, e tudo o que é cultural se vincula e incrusta, enlaçando-se ao ambiente, aos rios, às matas, às construções, às máquinas, às estradas e às cidades. É na totalidade paisagística que a cultura imprime seus traços, marcas e representações com uma miríade incalculável de sentidos: A paisagem retém a atenção, uma vez que é o suporte das representações. Ela é simultaneamente matriz e marca da cultura [...] matriz, visto que a organização e as formas que estruturam a paisagem contribuem para transmitir usos e significações de uma geração à outra; marca, visto que cada grupo contribui para modificar o espaço que utiliza e gravar aí as coisas de sua atividade (GOMES, 1997, p. 102).

A paisagem então nos oferece um rico respaldo teórico e metodológico passível de uso e aprofundamento pela Geografia. E, seguindo essas palavras iniciais, apresentar-se-ão, nas próximas páginas, breves demarcações referenciais acerca dos signos e das representações, bem como exposição de alguns dos traços da importância das significações da paisagem no âmbito da ciência geográfica, para que, assim, seja dado um passo na contribuição desta discussão, tão cara ao escopo prático e epistemológico dos estudos relacionados aos fenômenos espaciais no cerne dos recortes paisagísticos. 2.  SIGNO E REPRESENTAÇÃO: DEMARCANDO REFERENCIAIS DELINEADORES Diante da função deste tópico, que é explicitar os referenciais semióticos que compõem o substrato teórico de reflexão deste estuLing. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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do, expõe-se, primeiramente, que a semiótica conhecida no século XX como a ciência dos signos tem sua gênese no mundo grego da antiguidade clássica (SANTAELLA, 2010). Tal entendimento se sustenta no reconhecimento da semiótica implícita, que diz respeito às investigações atinentes à natureza dos signos, da significação e da comunicação. Esse caráter explícito se edifica na consolidação da arquitetura filosófica de caráter geral e abstrato dessa ciência vista como sinônimo de lógica4 – em sentido lato – e se divide em três ramos: gramática especulativa, lógica crítica e retórica especulativa ou metodêutica. A busca pela compreensão dos fenômenos passa pela descoberta de suas significações, e os signos ou linguagens apresentam-se como produtos da consciência. Nesse tom, signo é toda coisa que torna possível representar algo para alguém. Portanto, existem diversos tipos de signos que podem ser entendidos como entidades (no nível do pensamento) que podem ser processadas na mente. E para cada signo haverá de forma relacional o significante, ou seja, a estrutura, objeto ou ente que portará o seu sentido (significado), que a depender das circunstâncias terá em determinados contextos a sua delimitação sígnica, de sentido, precisa: “Con todo, mientras nos mantenemos dentro del ámbito del uso común, decidimos definir como /signo/ cualquier entidad mínima que parezca tener um significado preciso” (ECO, 1988, p. 31). Numa reflexão sobre esse exercício de processamento das significações, na visão de Santaella (2008; 2010), há uma delineação escalar na formulação dos sentidos (significados) das coisas; são elas: primeiridade é marcada pelo sentimento enquanto forma rudimentar visto como um quase-signo do mundo; a secundidade é o pensamento percebido como mediação interpretativa entre nós e o mundo; por fim, a terceiridade, o signo como representação na qual todas as pessoas, como seres simbólicos no mundo, se situam. Lembrando que, numa leitura peirceana dessa autora, se deve considerar a relação do signo consigo mesmo, com o objeto dinâmico e com seu interpretante. Assim, fica evidente que os signos não são coisas monolíticas, mas um complexo de relações. 4

Sob a ótica peirceana. Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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No engajamento dessas escalas de construção dos signos é que ocorre a sua formatação de acordo com a funcionalidade que este exercerá na sociedade. Para Humberto Eco (1988), essas funcionalidades podem ser sintetizadas em três eixos: os ícones, os símbolos e os índices. Sendo que no primeiro caso há a personificação sígnica de um sentido específico a uma entidade antrópica, ou também quando há uma relação de semelhança entre o significado e outro ente concreto ou abstrato; o símbolo trata da arbitrariedade de designar a um significante um determinado sentido; e, por fim, o índice, que é a ligação de sentido entre um objeto real que precede (a causa) uma determinada situação (consequência). Transportando essa conceituação para o âmbito geográfico é que há a ligação entre os signos e sua potencialidade imagética, na conformação das representações paisagísticas dos diferentes signos no espaço geográfico. Nesse caso, a representação, nesse esforço intelectual, é tida como meio de traduzir ou mediação entre signo e objeto. Nessa linha de pensamento, todas as coisas podem ser compreendidas ou traduzidas mediante algo por meio da utilização de outra coisa capaz de representá-la (PEIRCE, 1982). Por isso, a representação configura-se como tradução mental e, para sua compreensão, faz-se necessário ter associações mentais representativas daquilo que é dado como representação, o que implica ter consciência de que se trata de uma representação, seja ela icônica, simbólica ou de índice, todas elas de natureza sígnica e passíveis de projeção paisagística e imagética no espaço geográfico. De forma sintética, em relação às representações, o geógrafo Gil Filho (2003) apresenta a seguinte colocação: Muito mais que uma observação ou opinião sobre o mundo, o ato de representar é a expressão de uma internalização da visão de mundo articulada que gera modelos para organização da realidade [...]. O espaço de representação refere-se a uma instância da experiência originária na contextualização do sujeito. Sendo assim, trata-se de um espaço simbólico que perpassa o espaço visível e nos projeta no mundo. Desta maneira, articula-se ao espaço da prática social e de sua materialidade imediata (GIL FILHO, 2003, p. 3).

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E, em última instância, a confluência das imagens e paisagens e dos signos (simbólicos, icônicos em forma de índice) que compõem essa totalidade representacional adquire uma dimensão de maior impacto e abrangência na sociedade, como é o caso da formação das diferentes visões de mundo, em sua maior parte inclinadas a alguma tendência ideológica que molda modos de se pensar e agir individual e coletivamente. No caso restrito do presente texto, explora-se o caráter representacional do potencial sígnico das paisagens enquanto alternativa teórica e metodológica para a ciência geográfica, de modo a relevar as nuanças que compõem esse processo. 3.  A PAISAGEM CULTURAL: UM CONCEITO GEOGRÁFICO AGREGADOR A paisagem é um dos conceitos-chave da geografia; sua importância teórica e metodológica está além do próprio aporte e abrangência do conceito em si. A gama de utilização dessa paisagem, que pode ser considerada uma categoria geográfica por natureza, é extensa e diversa. Por se tratar de algo tão vasto e complexo (a paisagem), é necessário, em contrapartida, um procedimento analítico bem construído capaz de abstrair do conceito sua potencialidade epistemológica e histórica no que diz respeito ao próprio pensamento geográfico e sua evolução. Nesse sentido, há a origem etimológica do termo “paisagem”, que tem seus precursores em verbetes europeus dos países baixos, Germânia e, também, em palavras anglo-saxãs: A paisagem abrange as características visíveis de uma área de terra, incluindo elementos físicos tal como landforms, elementos da flora e da fauna, elementos abstratos e elementos humanos. A primeira paisagem registrada, aproximadamente em 1598, foi emprestada como um termo desses pintores holandeses, landschap que, em holandês, mais cedo significava simplesmente região, área de terra. Em dicionários e enciclopédias, essa palavra significa um quadro representando uma vista de uma paisagem interior natural: a arte de retratar esse cenário; porção de um ter-

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98 ritório, apreendido pelo olhar de um só lugar; uma área particular de atividade (WANNER, 2010, p. 69).

Ao longo dos anos, essas diferenciações etimológicas da paisagem passaram a ter um âmbito de aplicabilidade que os extrapolaram, de maneira a valorizar ora o quadro visível da percepção, ora a totalidade sígnica de um recorte espacial. No que concerne à Geografia, a importância do conceito de paisagem vai permear praticamente a totalidade do desenvolvimento de suas teorias desde o seu nascimento. E dando à paisagem um papel de destaque na formação da ciência geográfica pelo fato de esta se tratar muitas vezes de ser designada e autoconclamada teoria geral do mundo, Moreira (2008) exalta a particularidade de a geografia lidar com a intrínseca e por si complexa relação entre a imagem, a fala e a resultante simbólica destes, expostos nas formas presentes na paisagem. Para Moreira (2008, p. 109), a “[...] paisagem é ponto de partida e de chegada à produção da representação em geografia. Isso significa valorizar a imagem e a fala na representação geográfica”. O que o geógrafo Ruy Moreira expõe é uma organização procedimental dos conceitos geográficos e sua área core de importância, utilização e plausibilidade. Segundo o autor, são estes: espaço, paisagem e território; as categorias – o termo conceito-chave também é utilizado – da geografia formando o eixo epistemológico. Nesse caso, o autor “categoriza” o território e a paisagem ao mesmo nível teórico do espaço geográfico, que é uma posição particular, não sendo de todo modo aceita ou utilizada como vertente dominante nas correntes do pensamento geográfico. E, por meio desses conceitos-chave, é possível, então, encarar um fenômeno espacial e localizá-lo, distribuí-lo, medi-lo, delimitá-lo e verificar a escala de sua manifestação. Esse primeiro exercício metodológico é que fornece a base de partida da percepção e sensibilidade para a intelecção e entendimento dos fenômenos geográficos. Ao considerarmos como base para a análise esses três conceitos-chave, teremos a aplicação dos princípios lógicos na organização dos fenômenos espaciais, configurando as características constitutivas de um dado território e formando, por fim, os limites Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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da paisagem; e o espaço é o eixo estruturante dos outros dois, sendo que na paisagem é que ocorre a síntese de significações e interpretação da tríade conceitual já mencionada. Por isso, a geografia é considerada pelo autor como uma ciência que trata da representação do mundo pelo homem, por meio de diferentes linguagens, termos, símbolos, formas, ideias e objetos. Sauer (2004) apresenta os parâmetros para uma interpretação da paisagem. O autor explana sobre as diferenças, similaridades e importância desse conceito para a geografia em suas diversas aplicações. Nessa obra, enaltece-se, primeiro, o papel do senso comum como agente primário de exploração do meio e o estabelecimento de suas subdivisões. Posteriormente, valoriza-se o papel da Geografia como ciência que mais aprofundou os estudos relacionados à significação, à delimitação e à exploração do mundo. Em face desse posicionamento, questiona-se: qual seria, então, a definição de paisagem para a Geografia? Carl Sauer (2004, p. 23) dilata amplamente a definição de paisagem para esse corpo científico como a definição do conceito de unidade geográfica a fim de caracterizar “[...] a associação peculiarmente geográfica dos fatos”, ou, de forma geral, define-se como “[...] área composta por uma associação distinta de formas, ao mesmo tempo físicas e culturais”. Tomando por base essa definição inicial proposta por Sauer (2004), parte-se para uma distinção que ocorre em outros autores que trabalham com a paisagem. Trata-se da relação entre o físico e o humano, ou seja, os aspectos naturais e culturais presentes no ambiente. Apesar de aparentemente estático e sem participação na subjetivação sígnica efetiva pelo ser humano, os aspectos físicos do meio são imprescindíveis na valorização das peculiaridades da paisagem, visto que nenhum objeto geográfico, local ou forma é exatamente igual a outro existente. Nessa interpretação, Sauer (2004, p. 24) pontua que “[...] toda paisagem tem uma individualidade, bem com uma relação com outras paisagens e isso também é verdadeiro com relação às formas que compõem a paisagem”. E seguindo esse posicionamento de Sauer (2004), Lobato Corrêa (1997) defende de maneira categórica a diferenciação entre Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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as formas de manifestação da valoração subjetiva entre artefatos, localidades e estórias, que propicia uma gama infinita de interpretações das diversas representações simbólicas e culturais individuais e coletivas. Ao se dedicar a esse pensamento, Corrêa (1997) expande ainda mais as ambições epistemológicas da geografia cultural do geógrafo americano. Ainda segundo o autor, é atribuído à paisagem o “[...] papel de integrar a geografia, articulando o saber sobre a natureza com o saber sobre o homem” (CORRÊA, 1997, p. 289). Esses referenciais alicerçam a noção de paisagem cultural entendida como: [...] conjunto de formas materiais dispostas e articuladas entre si no espaço como os campos, as cercas vivas, os caminhos, a casa, a igreja, entre outras, com seus estilos e cores, resultante da ação transformadora do homem sobre a natureza (CORRÊA, 1997, p. 289).

Os aspectos qualitativos, estruturalmente funcionais das formas e o posterior engendramento de uma morfologia culturalmente detectável pelos geógrafos humanistas, que se debruçam no estudo sobre as diferentes paisagens cultuais, evidenciam claramente a aplicabilidade sem precedentes das representações sociais que formam as paisagens culturais. Esses estudos trazem como consequência direta e imediata o papel mais que relevado da geografia cultural no cenário topoanalítico como um todo. Essa é a morfologia da paisagem proposta por Sauer (2003) e seguida, aperfeiçoada, criticada e perdurada por vários geógrafos em todo o mundo. Esse ponto de partida e de chegada da paisagem foi e ainda é amplamente explorado pela corrente humanística e cultural da geografia. É justamente nessa ala do pensamento geográfico que os maiores avanços da análise dos signos das paisagens estão sendo estudados, com auxílio de metodologias como a semiótica, fenomenologia, psicologia etc. Por esse enquadramento dentro da corrente cultural é que Cosgrove (1984) nos faz a seguinte consideração sobre o conceito de paisagem no âmbito geográfico do seu uso e entendimento:

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101 O tratamento das paisagens pela geografia humanista demonstra que os problemas colocados pela paisagem e por seus significados apontam para o coração da teoria social e histórica: problemas da ação individual e coletiva, do conhecimento objetivo e subjetivo, da explicação idealista e materialista. Se os estudos geográficos tradicionais da paisagem enfatizam a visão do estrangeiro (outsider) e se concentram na morfologia das formas externas, o humanismo geográfico recente procura reverter isto pelo estabelecimento da identidade e experiência do nativo (insider). Mas, em nenhum caso a estrutura da pintura foi partida e a paisagem inserida no processo histórico. A razão disso é que a paisagem é em si mesma um modo de ver, apropriado pela geografia com suas acepções ideológicas fundamentalmente inalteradas. Para compreender como isso aconteceu nós precisamos traçar a história dos modos de ver a paisagem e de controlar o mundo (COSGROVE, 1984, p. 38, tradução nossa).

E, apesar da contribuição desse autor, não podemos deixar de considerar que foi na paisagem que Monbeig (1958) explorou e advogou em favor do aprofundamento conceitual e metodológico acerca desse conceito dentro do pensamento geográfico, como via para o entendimento dos fenômenos espaciais. O que fica evidente é que apesar do fortalecimento do conceito hoje na geografia cultural, a base até mesmo semântica (datada dos séculos XIV e XV) da paisagem vai muito além do seu uso cotidiano ou científico contemporâneo. Nos marcos teóricos do pensamento desse autor, a paisagem é o campo de estudos do geógrafo, uma vez que é possível a todos: [...] ‘ver’ a paisagem, observar-lhe a composição, apreender-lhe a beleza e mesmo compará-la a outras paisagens; uma só pessoa, porém, o geógrafo, a ‘explica’, lhe compreende o sentido e a realidade naquilo que apresenta de mais vivo e mais concreto (MONBEIG, 1958, p. 13).

Se a todos é possível ver a paisagem, então, ao geógrafo cabe buscá-la nos elementos sígnicos destas últimas, sejam elas materiais ou imateriais. É necessário perscrutar os significados desses signos, para, assim, engendrar uma compreensão da manifestação e

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relação desses diferentes significados isolada ou conjuntamente no espaço geográfico e nas representações imagéticas das paisagens. Partindo do início na aferição perceptiva até os níveis de intelecção e reflexão das construções subjetivas presentes nos simbolismos incrustados nas representações espaciais, eis o patamar de importância da paisagem e seus signos como ponto conceitual de convergência em análises culturais da paisagem na geografia. 4.  A IMAGEM E A PAISAGEM: DO PLANO OBJETIVO À PROFUNDIDADE SUBJETIVA Quando fazemos uma análise cultural e humanisticamente geográfica do espaço geográfico, precisamos delimitar nosso campo de estudo. É nesse intento que muitos autores trabalham com aprofundamento epistemológico da significação do espaço de representação; podemos observar a adoção da Imagem como o primeiro passo para alcançarmos nosso objetivo de elencar as características e elementos que nos permitirão desenvolver a ligação e demarcar a fronteira entre o sujeito – individual ou coletivo – do espaço. A imagem nada mais é que a cristalização do movimento inerente da realidade para que possamos enxergar sua dinâmica num breve instante de paralisação. Esse exercício de paralisação é muito utilizado em trabalhos históricos de comunidades que possuem ligações passadas com o espaço e somente partindo do recorte das imagens é que conseguimos resgatar sua memória topográfica. Após o recorte do espaço por meio da imagem, eis que chegamos à Paisagem. A paisagem é a própria representação da dialética do espaço confrontando suas imagens intrincadas pelos seus fluxos de movimentação. É na paisagem que encontramos toda a riqueza de criação da significação do espaço e suas representações, sejam elas sociais, culturais, religiosas etc. (MACIEL, 2001). Nela, a visibilidade da materialidade cristalizada pela imagem expõe todas as características de seu processo de construção e perpetuação temporal como uma totalidade complexa e sempre inacabada de significação. Se a valorização da subjetividade propicia ao geógrafo colocar a inLing. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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terpretação do meio pelo sujeito em primeiro plano, a constituição dessa interpretação é sintetizada na forma das diferentes paisagens passíveis de serem estudadas. A geografia humanista apreende a paisagem em sua totalidade e o homem assume posição privilegiada devido à visão antropocêntrica5 assumida por essa perspectiva. Dessa forma, a cultura é lida para além dos aspectos materiais, estruturando-se na percepção ou na subjetividade. Significando um avanço, já que todos os indivíduos passam a ser portadores de cultura (MELO, 2005). No entanto, esse plano interpretativo denominado paisagem é constituído tanto por características culturais como naturais, que juntas formam a complexidade e a variedade imagéticas desse conceito no âmago da Geografia. A totalidade representacional da subjetividade presente no espaço geográfico e sintetizado nas paisagens abrange as técnicas, os artefatos, os ritos e os mitos. De uma forma direta, podem-se classificar como pertencentes à paisagem todas as características de identidade cultural humana, sejam elas de natureza imaterial ou concreta. Dessa maneira, temos, então, segundo Maciel (2001, p. 3), que a paisagem [...] é, em essência uma forma da Terra cujos processos de modelagem são físicos e culturais a um só tempo, possuindo uma identidade calcada em uma constituição reconhecível, limites e relações com outros lugares num contexto maior.

A interpretação dos elementos constituintes só é possível graças à existência de uma linguagem com um duplo papel, tanto como fomentadora instrumental para sua descrição, quanto agindo no processo de significação das formas ali existentes, dando-lhes um patamar que vai além do explicitamente visível, proporcionando camadas sígnicas muitas vezes espessas histórica, geográfica e socialmente (COSGROVE, 2004). “[...] o homem seria a medida de todas as coisas, uma vez que toda explicação só seria satisfatória se estivesse fundada nas explicações e nos valores humanos” (MELO, 2005, p. 9149).

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De acordo com Maciel (2001), esse engendramento de significação imagética da paisagem só é possível pelo poder discursivo implicado em sua interpretação, abrangendo esferas do imaginário e do real de forma mútua. Mais do que uma linguagem adequada para a apresentação da interpretação exercida por aqueles que forem analisar esse quadro representativo, também é de suma importância ressaltar o papel primordial exercido pela totalidade de ações, reflexões e situações que formam esse certame. Dessas premissas relacionadas ao discurso e aos seus instrumentos fomentadores que surge a demanda de ir buscar nas esferas imaginativa, perceptiva, histórica, simbólica e social os elementos que vão constituir toda a complexidade presente em uma paisagem cultural. Numa visão ampla de paisagem, Maciel (2001, p. 11) compreende-a como: [...] um trabalho discursivo de ordenamento da imagem do mundo a partir do ambiente próximo, concreto e apreensível pelos sentidos humanos, mediante estruturas mentais correntes no universo cultural de cada época e de cada povo. [...] É a unicidade de nossa existência no mundo da materialidade física transformando-se em manifestações simbólicas que não se reduzem umas às outras. [...] possuiria tanto uma dimensão palpável quanto um componente de imaginação, todavia inextricavelmente correlacionados.

Tais unidades de análise das imagens voltadas para as características culturais presentes na paisagem darão um suporte aos pesquisadores que se dedicarem ao trabalho de estudar as manifestações simbólicas e representações sociais no âmbito do espaço geográfico, ou seja, na geografia cultural e humanística, explorando o imaginário social e procurando interpretar o que no mundo concreto e objetivo for de caráter subjetivo e imaterial (COSGROVE, 2004). 5.  O MOSAICO SÍGNICO DAS PAISAGENS Atualmente, os estudos relacionados à paisagem e seus significados extrapolaram o campo da geografia. Outras especialidades Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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de saberes estão avançando no sentido de procurar novas reflexões e conclusões acerca da produção de sentido paisagístico. Um bom exemplo são os extensos trabalhos direcionados pela semiótica, psicologia e semiologia à paisagem e suas implicações na relação de identificação do homem com o meio. Essa multiplicidade de estudos relacionados à paisagem e às imagens e representações vão ao encontro das colocações de Moreira (2008, p. 43), ao dizer que “[...] cada civilização cria e difunde sua paisagem depois de um longo curso de ensaio e ambientalização”. Ou seja, é possível afirmarmos que toda e qualquer ciência que trata dos fenômenos sociais tem o potencial para lidar com essas significações paisagísticas e imagéticas da sociedade. Mas dentro do escopo de estudos geográficos, a paisagem encontra uma possiblidade de análise que prime a relação entre o ser humano e o meio, assim como o fora a Geografia desde o seu momento de afirmação enquanto ciência no século XIX; em outras palavras, a descrição dos elementos componentes da conexão entre o homem e o espaço habitado, na formatação das múltiplas e diversas paisagens ao redor do globo, cada qual com uma imensurável gama de significações. Nessa linha interpretativa, Wanner (2010) explora amplamente o conceito de paisagem e seu potencial teórico aplicado às artes e aos seus desdobramentos culturais, midiáticos, técnicos, estéticos, fenomenológicos, informacionais e, também, sobre a história da evolução, reprodução e difusão do conhecimento humano. E, nessa plêiade de facetas, a vertente geográfica encontra-se como oportunidade de sobressalto para o estudo paisagístico, por buscar o elo material e imaterial entre o homem e o meio. Portanto, para Wanner (2010, p. 69), o mosaico sígnico apresentado pela paisagem, abrange “[...] as características visíveis de uma área de terra, incluindo elementos físicos tal como landforms, elementos da flora e da fauna, elementos abstratos e elementos humanos”. O invisível, o imaterial e o simbólico formam o substrato cultural da paisagem. Os significados trazidos à tona por esses componentes sígnicos, criados e reproduzidos pelo homem no meio, dão os aspectos de cenário às paisagens. A seguir, é apresentado exerLing. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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cício linguístico de descrição dos diversos signos existentes em um recorte paisagístico, no qual há diferentes e múltiplas expressões imagéticas, cada qual com o seu significado (e significante), formando, assim, a totalidade sígnica de uma determinada paisagem analisada ou observada, como pode ser observado na descrição abaixo de Ítalo Calvino (1990) e uma de suas cidades invisíveis: Ao chegar a Fílide, tem-se o prazer de observar quantas pontes diferentes entre si atravessam os canais: pontes arqueadas, cobertas, sobre pilares, sobre barcos, suspensas, com os parapeitos perfurados; quantas variedades de janelas apresentam-se diante das ruas: bífores, mouriscas, lanceoladas, ogivais, com meias-luas e florões sobrepostos; quantas espécies de pavimento cobrem o chão: de pedregulhos, de lajotas, de saibro, de pastilhas brancas e azuis. Em todos os pontos, a cidade oferece surpresas para os olhos: um cesto de alcaparras que surge na muralha da fortaleza, as estátuas de três rainhas numa mísula, uma cúpula em forma de cebola com três pequenas cebolas introduzidas em sua extremidade. “Feliz é aquele que todos os dias tem Fílide ao alcance dos olhos e nunca acaba de ver as coisas que ela contém”, exclama-se, triste por ter de deixar a cidade depois de tê-la olhado apenas de relance. Sucede, no entanto, de permanecer em Fílide e passar ali o resto dos dias. [...]. Os passos seguem não o que se encontra fora do alcance dos olhos mas dentro, sepultado e cancelado: se entre dois pórticos um continua a parecer mais alegre é porque trinta anos atrás ali passava uma moça de largas mangas bordadas, ou então é apenas porque a uma certa hora do dia recebe uma luz como a daquele pórtico de cuja localização não se recorda mais. Milhões de olhos erguem-se diante de janelas pontes alcaparras e é como se examinassem uma página em branco. Muitas são as cidades como Fílide que evitam os olhares, exceto quando pegas de surpresa (CALVINO, 1990, p. 38-39).

Nessa descrição, é feito o exercício da passagem de uma linguagem – a da visão, da contemplação do olhar – para outra, que é a escrita, tentando, com isso, exprimir pelas palavras o que se expõe diante dos olhos através das formas geográficas, materiais (casas, instrumentos, monumentos etc.) ou imateriais (um costume, um rito, sons etc.). Dessa maneira, seguindo esse exemplo do escritor italiano, Gomes (1997, p. 5) assevera que: Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

107 Não se pode compreender as geografias que se constroem sob nossos olhos se negligenciamos a qualidade estética dos ambientes e as possibilidades de realização que eles oferecem àqueles que os habitam ou que os frequentam.

Alinhado a esse pensamento, Wanner (2010) entende que não é por acaso que o sentido do verbete “paisagem” esteja ligado semanticamente ao quadro, plano de visão, à abrangência de vislumbramento do mundo pelo homem, cabendo, no caso da geografia cultural, procurar meios de traduzir as imagens das paisagens para outras formas de expressão, para que a própria compreensão dos fenômenos culturais presentes no espaço possam se tornar passíveis de discussão, debate e compreensão. Feitas essas remissões ao plano lírico e imaginativo, buscar-se-ão, em outros autores da geografia, referências da tentativa de tradução dos signos da paisagem que se apresenta aos olhos do observador. Humboldt (1952) é um dos melhores exemplos clássicos anteriores à geografia regional francesa no sentido de como as paisagens possibilitam uma análise do olhar geográfico sobre os fenômenos espaciais (sociais ou naturais), os quais engendram a totalidade sígnica do mundo. Como se pode verificar no exemplo seguinte: Uma circunstância, imprevista e de grande interesse, aumenta a severa impressão que produzem as solidões selvagens das Cordilheiras. É precisamente nestas regiões que subsistem ainda os admiráveis restos da grande via reconstruída pelos Incas, dessa obra gigantesca que estabelecia comunicação entre todas as províncias do império, em uma extensão de mais de 400 léguas. Em diversas paragens, e quase sempre com intervalos iguais veem-se habitações talhadas regularmente em pedra, espécie de caravançarás, chamados Tambos ou Inca Pilca, da palavra Pircca, que provavelmente significa muralha. [...] Encontramos restos ainda magníficos das antigas vias peruanas, na que conduz de loja ao rio das Amazonas, perto dos Banhos dos Incas, sobre o páramo de Chulucanas, pouco distante de Guancabamba, e em redor de Ingatambo, junto a Panahuaca (HUMBOLDT, 1952, p. 210-211).

A partir da leitura, percebe-se que figura com bastante intensidade a prerrogativa máxima da geografia moderna manifestada Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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nas linhas do geógrafo alemão, ou seja, a procura pela conexão entre o mundo e o homem, numa relação de mútua afetação de existência, para aquele que habita e naquele (espaço, meio, paisagem, lugar, território) que é habitado, ou, melhor, significado, pela cultura ou culturas ali incrustradas. Em exploração ao campo existencial de importância das paisagens para o ser humano, ressalta-se que, por mais que não se ofereça de imediato a compreensão e análise, os signos e símbolos presentes nos espaços afetivos de cada indivíduo ou sociedade são passíveis de análise e descobrimentos. De acordo com Wanner (2010, p. 89), “[...] o mundo vivido em que passamos a maior parte da nossa vida diária está repleto de signos, não estando isolado do mundo sociocultural, que, por sua vez, possui e está permeado de intersubjetividade”. Desse modo, o espaço de existência diz respeito àquele construído e definido pela cultura. Essa premissa dos sentidos, e principalmente do olhar, como experiência primeira para a afetação do ser humano na relação de significados com o meio que vive, é o principal ponto a ser explorado e aprofundado pela corrente cultural da geografia: “Se a geografia cultural se dedica à experiência que os homens têm do mundo, da natureza e da sociedade, ela deve partir daquilo que os seus sentidos lhes revelam” (GOMES, 1997, p. 99). E assim se coloca o principal pilar de sustentação para um estudo que prime pelas significações das imagens e representações presentes nas diferentes paisagens existentes. Temos, portanto, o olhar, as imagens e, na conjunção sintética dessas duas primeiras, as paisagens sígnicas. Mas o que dá o tom da diversidade das representações imagéticas presentes nas paisagens é o fato subjetivo do olhar de quem observa o recorte perspectivo do mundo, o quadro paisagístico propriamente dito (MACIEL, 2001). E nesse ponto é que encontramos uma das maiores riquezas da análise das paisagens culturais, ou seja, o componente criativo e imaginativo, individual ou coletivo, presente na produção dos diversos significados impressos no espaço geográfico. Seguindo esse entendimento dos olhares, das imagens e das paisagens é que Sim-

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mel (2009, p. 12-13) nos apresenta esta importante colocação sobre essa discussão: O nosso olhar pode jungir os elementos paisagísticos ora neste ora naquele agrupamento, deslocá-los entre si de múltiplas maneiras, deixar variar o centro e os limites. Mas a imagem humana determina tudo isto a partir de si, realizou pelas suas próprias forças a síntese à volta do seu centro e, deste modo, delimita-se a si mesma, sem ambiguidade. Por isso, na sua configuração natural, aproxima-se já de qualquer modo da obra de arte, e esta pode ser a razão por que é sempre mais fácil, para o olhar menos exercitado, confundir a fotografia de uma pessoa com a reprodução do seu retrato do que uma fotografia da paisagem com a reprodução de uma pintura paisagística. A reconfiguração da aparência humana na obra de arte é inquestionável; só que ela resulta, por assim dizer, imediatamente do dado desta aparência, ao passo que frente ao quadro paisagístico existe ainda uma fase intermediária: a modelação dos elementos naturais na “paisagem” em sentido habitual, para a qual tiveram de concorrer já categorias estéticas, e que, por isso, ao situar-se no caminho para a obra de arte, representa a sua forma antecipada. As normas da sua realização podem, pois, compreender-se a partir da obra artística, que é a consequência pura, tornada autónoma, destas normas (SIMMEL, 2009, p. 12-13).

O que autor expõe é justamente o reencontro da paisagem com o seu próprio núcleo semântico de nascituro, que é a relação entre a imagem e a arte em sua essência de manifestação de significados únicos no espaço geográfico, para a formação das paisagens e seus diversos signos. Os cenários da vida humana, as paisagens sígnicas, os quadros da natureza, as vilas-tipo, os modos de existência ou os gêneros de vida compõem, cada qual com a designação que lhe foi dada, verdadeiras chaves de análise para os elementos culturais presentes no espaço geográfico. Estes são os parâmetros analíticos presentes ao se fazer um aprofundamento existencial e cultural dos significados imagéticos da paisagem. O homem estabelece as bases de uso, ocupação e exploração de uma determinada área. Nesse processo, a técnica viabiliza a transformação do meio, produzindo-o e reproduzindo-o ao longo do tempo. As ações simbólicas inserem-se na infiltração da Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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significância a tudo o que subsiste de material e imaterial nesse percurso, fornecendo a origem às camadas multiculturais, históricas, territoriais e representacionais das paisagens sígnicas. 6.  CONSIDERAÇÕES FINAIS A paisagem é, por fim, a profundidade subjetiva dada à imagem representativa efetuada primariamente pela percepção afetiva e, posteriormente, aprofundada por diferentes camadas de representações e significados advindos dos indivíduos e sociedades que habitam determinadas porções do espaço geográfico. A subjetividade amplia em um campo imensurável de significações todos os elementos imateriais e concretos presentes no meio. O ser humano cria, recria e atribui ao mundo em que vive suas representações, seus simbolismos e signos, enfim, fazendo do mundo o seu mundo. O mundo habitado e vivido pelo ser humano é superposto por uma verdadeira estratigrafia sígnica sintetizada nas paisagens. Desse modo, cada paisagem terá as caraterísticas imbricadas de seu tempo, das técnicas e simbolizações e valorizações subjetivas da sociedade que ali se desenvolveu ou ainda está presente. A gama de possibilidades criadoras de referencial simbólico nas paisagens é proporcional às diversas comunidades e formas de vida existentes. A geografia cultural e humanista deve ter o alcance a patamares de amplitude de aplicabilidade tão extenso e complexo quanto mais amplas forem a diversidade de manifestações simbólicas dos indivíduos e as sociedades espalhados em todo planeta. É por meio dos conceitos e categorias pertinentes à Geografia que podemos elaborar um caminho de análise, explicação e compreensão das paisagens sígnicas e culturais. O aprimoramento e a busca por aprofundamentos conceituais e metodológicos aos geógrafos que se dedicam às representações sígnicas, e também no que se refere às outras áreas dos estudos geográficos, são o principal meio de expandir cada vez mais o âmbito de valorização da subjetividade no que diz respeito à imensa diversidade e amplitude das paisagens culturais. Se se quer elevar o potencial de aprofundamento a respeito da relação estabelecida Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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entre o ser humano e o meio que o circunda, então, o estudo dessas paisagens sígnicas se torna, de imediato, uma via plausível de ser trilhada pelos geógrafos. REFERÊNCIAS CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CORRÊA, Roberto Lobato. Carl Sauer e a geografia cultural. In:______. Trajetórias Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. COSGROVE, Denis. Social formation and symbolic landscape. Londres: Croom Helm, 1984. ______. A geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z. (Org.). Paisagem, Tempo e Cultura. 2. ed. Rio de Janeiro: UERJ, 2004. p. 92-123. ECO, Humberto. Signo. Tradução de Francisco Serra Cantarell. Barcelona: Labor, 1988. GIL FILHO, Silvio Fausto. Espaço de representação: uma categoria chave para a análise cultural em geografia. In: I Encontro Sul-Brasileiro de Geografia; I Encontro Sul-Brasileiro de Geografia Mudanças Políticas e a Superação da Crise. Curitiba: AGB, 2003. GOMES, Paulo Cesar da Costa. Geografia fin-de-siècle: o discurso sobre a ordem espacial do mundo e o fim das ilusões In: CASTRO, I. E; GOMES, P. C. C; CORRÊA, R. L. (Orgs.). Explorações Geográficas: percursos no fim do século. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. HOLZDER, Werther. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar, Território e meio ambiente. In: Revista TERRITÓRIO, ano 11, n. 3, jul./dez. 1997. HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da natureza. Tradução de Assis de Carvalho. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, 1952. v. 2. MACIEL, Caio Augusto Amorin. Morfologia da paisagem e imaginário Geográfico: uma encruzilhada onto-gnoseológica. Geographia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 1-12., 2001. MELO, Vera Lúcia Mayrinck de Oliveira. A paisagem sob a perspectiva das novas abordagens geográficas. In: Anais X EGAL. USP: São Paulo, 2005. Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 91-112, jul./dez. 2014

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