LUGARES DE MEMÓRIA: O MONUMENTO DO MASSACRE DE ELDORADO DOS CARAJÁS

August 9, 2016 | Author: Cacilda Garrido Palma | Category: N/A
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FÓRUM > Vol. 0 , No. 0 ( 2007 ) - Cadernos de Trabalho – Edição Especial ARTIGO Publicado em 09/10/2012

LUGARES DE MEMÓRIA: O MONUMENTO DO MASSACRE DE ELDORADO DOS CARAJÁS CAMBRAIA, MARIA SÍLVIA

RESUMO Em 1996, no município de Eldorado dos Carajás (Pará), ocorreu um confronto entre a polícia militar e 1.500 sem-terra que estavam acampados na região, resultando na morte de 19 camponeses. A violência do massacre e o elevado número de falecidos motivaram a criação do memorial “As Castanheiras de Eldorado dos Carajás” em 1999, com o objetivo de impor questionamentos a todo o Brasil e quebrar o silêncio em torno do evento. Assim, o presente artigo apresenta a contextualização histórica do monumento e a descrição da metodologia utilizada por Dan Baron Cohen para o desenvolvimento do processo coletivo de criação do memorial. Ao final, é realizada uma análise do marco em questão frente ao conceito de monumento e às concepções de memória percebidas em diversos momentos da história.

ABSTRACT PALAVRAS CHAVE: monumento, massacre de eldorado dos carajás, memória. KEYWORDS: -

INTRODUÇÃO Este trabalho pretende realizar um exame do memorial “As Castanheiras de Eldorado dos Carajás”, com base nos objetivos simbólicos dos monumentos. Inicialmente, serão apresentadas a descrição e contextualização do marco em questão. Em seguida, será realizada a análise do memorial frente ao conceito de monumento e às concepções de memória percebidas em diversos momentos da história, como apresentadas por SELIGMANN-SILVA (2001) em seu texto “A escritura da memória: mostrar palavras e narrar imagens”. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA O problema fundiário do Brasil remonta à criação das capitanias hereditárias e do sistema de sesmarias, em que a Coroa Portuguesa distribuía grandes glebas a quem se dispusesse a cultivá-las em troca de um sexto da produção. Assim, o início da colonização do Brasil é marcado pela concentração de terras e pelo latifúndio. Os conflitos pela terra nesta época não envolviam trabalhadores rurais, pois praticamente todas as pessoas envolvidas nas questões do campo eram proprietários e grileiros ou escravos. Apenas no final dos anos 50 e início dos anos 60, com a industrialização do País, a questão fundiária começou a ser debatida pela sociedade, que se urbanizava rapidamente, e começaram a surgir conflitos pela terra originados pelos próprios camponeses. Atualmente, a questão da reforma agrária continua importante, marcada pela burocracia e demora dos processos de assentamento, pelo crescimento da atuação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra – MST, pela dificuldade de inserção dos camponeses sem-terra no ambiente social e econômico do país e pela persistência da concentração acentuada da posse de terras. O MASSACRE O massacre ocorreu em um confronto, em 17 de abril de 1996, no município de Eldorado dos Carajás, quando 1.500 sem-terra que estavam acampados na região decidiram fazer uma marcha em protesto contra a demora da desapropriação de terras, obstruindo a rodovia PA-150, que liga a capital do estado ao sul do Pará. A Polícia Militar foi encarregada de desobstruir a estrada pelo governador Almir Gabriel e pelo secretário de segurança do estado, Paulo Sette

estrada pelo governador Almir Gabriel e pelo secretário de segurança do estado, Paulo Sette Câmara, que declarou, depois do ocorrido, que autorizara "usar a força necessária, inclusive atirar". Os policiais chegaram, com suas tarjas de identificação removidas, utilizando bombas de gás lacrimogêneo. Quando os sem-terra revidaram atirando paus e pedras, a PM abriu fogo contra os manifestantes.

Ação da polícia militar resultou na morte de 19 camponeses – 1996 (Foto: Reprodução/TV Floresta)

A agressividade policial aumentou à medida que os sem-terra fugiam. O adolescente Oziel Pereira, líder dos sem-terra apesar da pouca idade (17 anos), foi arrancado da casa onde se escondia e, algemado, foi surrado e morto por um grupo de policiais, conforme relato de um sobrevivente. O advogado do MST que reconheceu Oziel no Instituto Médico Legal Renato Chaves, em Marabá, declarou que “ele tinha dois buracos de bala nos olhos e outro na testa (...) e via-se uma massa de carne disforme no lugar onde havia sido seu rosto”. Após duas horas de confronto, havia 19 sem-terra mortos e 69 feridos e mutilados. Uma perícia realizada pelo legista Nelson Massini, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, revelou que dez vítimas morreram com balas na cabeça, em tiros de precisão a curta distância na nuca, nos olhos e na cabeça, demonstrando modo similar a execuções sumárias. Outros sem-terra tiveram seus corpos retalhados a golpes de foice e estavam estraçalhados, com esmagamento de crânio, costas abertas, braços quebrados, mutilações. De acordo com o legista, as vítimas já estavam dominadas, sem condições para se defender ou reagir, desarmadas, quando foram atacadas com "golpes cortantes".

Massacre de Eldorado dos Carajás – 1996. Fotos: Sebastião Salgado.

Corpos de sem-terra mortos – 1996

O MONUMENTO Em 1999, um líder local do MST abordou Dan Cohen com a intenção de realizar um monumento que imporia questionamentos a todo o Brasil e quebraria o silêncio em torno do massacre. Dan Baron Cohen nasceu em Londres, em 1957. Formou-se em Literatura Inglesa e possui pósgraduação em Teatro Político pela Universidade de Oxford. Vivendo há seis anos no Brasil, colabora com as comunidades sem terra, indígena, sindical e universitária na formação de educadores comunitários e arteducadores. Atualmente é presidente da Associação Internacional de Drama- Educação (IDEA) e participa do GT de Cultura do Fórum Social Mundial. O ponto de partida de seus projetos é liberar o conhecimento de todos seus obstáculos, do medo, da falta de auto-estima e do preconceito. O processo começa com um pedido para que grupos de seis a oito pessoas tragam um objeto de sua intimidade, que demonstre aquilo que lhes é mais importante. Enquanto o restante do grupo pergunta sobre os objetos trazidos, lentamente as pessoas começam a contar suas histórias, apresentar fragmentos de suas vidas, falando sobre o mundo e seu lugar nele. Desta forma, as pessoas do grupo se revelam umas às outras, criando intimidade e construindo um método para compartilhar e ouvir ativamente. Então elas são levadas a escolher, por consenso, um objeto de importância para todo o grupo. Desta forma, um grande número de pessoas consegue chegar a uma proposta coletiva e construir uma comunidade de empatia e

pessoas consegue chegar a uma proposta coletiva e construir uma comunidade de empatia e solidariedade. Dan pediu que os colonos do Assentamento 17 de Abril, criado após o massacre, identificassem objetos que articulassem a história pessoal, regional e nacional, em que as pessoas conseguissem ver a si mesmas e ao massacre. As sugestões iniciais incluíam uma estátua de um punho cerrado segurando uma foice. Rapidamente, a árvore da castanheira começou a ser recorrente nas propostas. Típica da região do Pará, nas bordas na Floresta Amazônica, a castanheira é cultivada pelas suas castanhas e dizimada pelos fazendeiros para abertura de pastos. Da mesma forma, os pequenos colonos não têm acesso à terra devido aos interesses econômicos dos grandes proprietários. Como parte do processo de criação de uma proposta coletiva para o monumento, foi convocada uma grande reunião da comunidade, um “tribunal”. Um a um, e pela primeira vez todos juntos, os sobreviventes do massacre contaram as suas histórias sobre o ocorrido. As pessoas mostraram as cicatrizes, os lugares onde as balas ainda estavam alojadas em seus corpos e, assim, ficou definido o conceito do monumento, como uma paisagem de castanheiras queimadas e mutiladas, violadas e cheias de cicatrizes. Eventualmente 19 árvores mortas, uma para cada vítima, foram encontradas e dispostas formando o contorno do mapa do Brasil. Assim, em abril de 1999, na curva do S, local do massacre, mais de oitocentos sobreviventes construíram , sob a coordenação do educadorDan Baron, um monumento em homenagem aos 19 sem-terra mortos. O trabalho foi denominado de “AS CASTANHEIRAS DE ELDORADO DO CARAJÁS”. No centro do monumento, abaixo dos troncos das árvores, foi colocado um altar, intitulado pelos militantes de Altar de Protesto, uma espécie de tronco de castanheira cercado por 69 pedras pintadas de vermelho. No altar está cravada uma placa, com o nome dos 19 mortos no dia 17 de abril de 1996, como forma de homenagem.

Monumento “As Castanheiras de Eldorado dos Carajás” Foto: Mª Silvia Cambraia (2007)

Monumento “As Castanheiras de Eldorado dos Carajás” Foto: Mª Silvia Cambraia (2007)

Após sete anos de sua construção o Memorial dos Sem-Terra, foi revitalizado. Durante o período de revitalização foram fincadas 19 cruzes próximo ao local do monumento, à beira da PA-150 (cruzes da libertação). Essas cruzes foram colocadas permanentemente ao lado do altar para que todos possam lembrar e refletir profundamente sobre o Massacre de Eldorado do Carajás. E, desde então, 17 de abril tornou-se o Dia Internacional de Lutas Camponesas.

Ritual praticado por militantes do MST em ocasiões especiais, que se posicionam em círculo e revivem a dolorosa sina dos 19 sem-terra mortos em 17 de Abril de 1996 (2006).

“Cruzes da Libertação” Foto: Mª Silvia Cambraia (2007)

MONUMENTOS E MEMÓRIA Monumentos são marcos referenciais, construídos intencionalmente com o objetivo de provocar a

Monumentos são marcos referenciais, construídos intencionalmente com o objetivo de provocar a lembrança e resgatar a memória a respeito de eventos e pessoas. Diferenciam-se dos monumentos históricos porque estes últimos adquirem sua significância com o passar do tempo, ou seja, sua origem não está ligada ao objetivo de lembrar, mas o tempo lhes confere esta função. Seligmann-Silva (2001) comenta que a concepção clássica de memória foi marcada por Simônides de Ceos, cujas anedotas apresentam a descrição de eventos relacionados à arte de lembrar e mostram como a memória está envolvida com o louvor aos grandes feitos (fama), o culto aos mortos e o desejo de escolher o que lembrar e o que esquecer. Além disto, “no item culto aos mortos (...) a manutenção do nome dos mortos – muitas vezes sob a forma de sua inscrição em epitáfios e lápides – constitui o núcleo antropológico da memória enquanto vis, ou seja, como força vital e construtora da identidade, que é oposta à memória como ars (procedimento mecânico de arquivamento e recuperação de informações)” (Seligmann-Silva, 2001). Portanto, era usual elaborar listas de nomes, como as descrições genealógicas apresentadas na Bíblia. O período clássico também apresenta a doutrina dos loci (locais), que afirma uma concepção visual/espacial da memória, aproximada da noção de escritura. De acordo com Seligmann-Silva (2001), “a teoria de memória e da reminiscência de Aristóteles esteve na base das concepções de memória de toda Idade Média até a modernidade”. Entre outros conceitos, o pensador define os tipos de imagens que devem ser escolhidos para evocar a memória, ou seja, os símbolos visuais impressionantes, que fogem à norma, e as coisas extraordinariamente feias ou belas, pois elementos com estas características são marcantes e podem ficar muito tempo na lembrança. Durante a Idade Média, este procedimento foi levado ao extremo através da atração pelo grotesco e da arquitetura simbólica existente no período. Em sua recapitulação sobre a tradição da arte da memória, o autor também mostra que, com o surgimento do livro impresso, a arte da memória decaiu enquanto força vital e construtora da identidade (vis). No século XVIII, surgiu a concepção historicista, que venera o passado e quer conservar tudo, seguida pela visão antihistoricista, visando liberar o homem para a ação, na segunda metade do século XIX. A partir da 2ª Guerra Mundial, sentiu-se a necessidade de valorizar as identidades oprimidas e impedidas de se manifestar, levando ao surgimento de movimentos de luto pelas perdas da guerra, de auto-afirmação de minorias e de lutas contra governos totalitários e autoritários. Assim, a concepção contemporânea de memória retoma os conceitos clássicos de culto aos mortos, escritura verbal e visual e o procedimento de fazer listas de nomes. Seligmann-Silva (2001) cita o artista Jochen Gerz como exemplo, pois suas obras valorizam a apresentação em contraposição à representação, especialmente por meio de dispositivos fotográficos e escrituras, opondo-se à instituição museológica tradicional e produzindo uma arte eminentemente política, já que, para Gerz, o anti-monumento existe apenas devido às discussões que decorrem dele. CONCLUSÕES O Memorial ao Massacre de Eldorado dos Carajás constitui-se em um monumento, pois foi erigido com a finalidade de provocar a lembrança e manter viva a dolorosa memória de seu evento catalisador. Além disto, o marco em estudo baseia-se em diversos procedimentos e objetivos originários da tradição da arte da memória ao longo da história, desde o período clássico até o contemporâneo. Como preconizado pela concepção clássica de memória, o Memorial de Eldorado dos Carajás realiza culto aos mortos ligados ao massacre e retoma o procedimento de realizar listas de nomes, já que possui referência nominal clara às 19 vítimas da chacina. Desta forma, este monumento possui um conceito diferente de outros que se referem a estatísticas de mortalidade, como o “Cemitério Simbólico” [1]criado pela ONG Rio pela Paz na Praça do Papa (Belo Horizonte, MG), para lembrar as 1.800 pessoas assassinadas em Minas

Praça do Papa (Belo Horizonte, MG), para lembrar as 1.800 pessoas assassinadas em Minas Gerais no primeiro semestre de 2007, ou a manifestação “Lenços Brancos na Esplanada”[2],realizada pela mesma ONG, em que foram montados 15.000 lenços brancos em varais em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, chamando atenção para o igual número de brasileiros que foram mortos por homicídio no Brasil somente em 2007. O Memorial ao Massacre de Eldorado dos Carajás apresenta o princípio dos loci (locais), que afirma uma concepção visual/espacial da memória, expressado por meio da colocação dos troncos de castanheira no formato do mapa do Brasil e do altar rodeado por pedras vermelhas ao centro. Além disto, o recurso de utilizar troncos de árvores queimados e mutilados no monumento em questão remete a Aristóteles e à visão extremística da época medieval, pois apresentam uma imagem chocante e, portanto, acentuam a memória. O historiador Eric Nepomuceno, que analisou as quase 20 mil páginas do inquérito policial sobre o massacre e entrevistou 32 pessoas para escrever o livro "O Massacre – Eldorado dos Carajás: Uma história de impunidade", diz que “depois do dia 17 de abril, as mortes continuaram (...). Mas eu tenho certeza de que seria muito pior se não fosse a repercussão que isso teve na época. O perigo é isso cair no esquecimento”. Assim, o monumento “As Castanheiras de Eldorado dos Carajás” é mais do que uma forma de culto aos mortos. Da mesma maneira que os antimonumentos de Jochen Gerz, que jogam luz à questão do holocausto, o memorial ao massacre dos sem-terra possui o objetivo claro de manter viva a memória dos horrores ocorridos naquele local e provocar discussões a respeito dos acontecimentos, suas causas e consequências. Aliado às manifestações anuais perpetradas em diversos locais do país no dia 17 de abril, sua finalidade é inibir a história se repita. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGÊNCIA BRASIL. Lenços brancos na Esplanada lembram vítimas de violência. Disponível em: . Acessado em: 15/06/07. AINGER, Katharine. Beyond the barricade. . Acessado em: 15/07/07. BAILEY, Dominic. Living with Brazil’s landless. . Acessado em: 15/07/07.

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BARRETO, Felipe Corazza. Livro detalha o massacre de Eldorado dos Carajás. Disponível em: . Acessado em: 15/07/07. BERGAMO, Monica; CAMAROTTI, Gerson. Sangue em Eldorado. Disponível . Acessado em: 15/07/07.

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BRELAZ, Walmir. Na Castanheira de Eldorado. Disponível em: . Acessado em: 15/07/07. CHAVES, Rogério. Alfabetização Cultural: A luta íntima por uma nova humanidade. Disponível em: . Acessado em: 15/07/07. JORNAL ESTADO DE MINAS. Denúncia Silenciosa. Caderno Gerais, p.22, 30/06/07. MST. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Violência.
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