LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU. Um país da CPLP. Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

October 23, 2017 | Author: Luciana Covalski Terra | Category: N/A
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LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU Um país da CPLP

Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

ISSN 0103-9415

PAPIA LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU Um país da CPLP

Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló Número 20, 2010

PAPIA Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares Número 20, 2010

ORGANIZADOR (editor) Hildo Honório do Couto (Brasília)

CO-ORGANIZADORES (co-editors) John Holm (Coimbra) Matthias Perl (Mainz) Heliana Mello (Belo Horizonte)

QUADRO DE CONSULTORES Angela Bartens (Helsinque) Alan Baxter (Macau) Nicolás Castillo-Matthieu (Bogotá) J. Clancy Clements (Bloomington) Marta Dijkhoff (Curaçao) Germán de Grande (Valladolid) Pierre Guisan (Rio de Janeiro) Tjerk Hagemeier (Lisboa) Alexandr Jaruškin (São Petersburgo) Alain Kihm (Paris) Dante Lucchesi (Salvador) Philippe Maurer (Küsnacht, Suíça) John M. Lipski (Albuquerque) Chérif Mbodj (Dakar) Dan Munteanu (Las Palmas) Anthony J. Naro (Rio de Janeiro) Mariana Ploae-Hanganu (Bucareste) Jean-Louis Rougé (Praia, Cabo Verde) Armin Schwegler (Irvine) Petra Thiele (Berlim) Klaus Zimmermann (Berlim)

SUMÁRIO

Apresentação....................................................................................

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Nota Editorial...................................................................................

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Prefário............................................................................................

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0.Introdução ...................................................................................

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I. A Situação Linguística .................................................................

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II. A Língua Portuguesa ...................................................................

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III. A Literatura ...............................................................................

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IV. Literatura em Português I: Prosa ................................................

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V. Literatura em Português II: Poesia ...............................................

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VI. Litetura em Crioulo I: Narrativas Orais .....................................

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VII. Literatura em Crioulo II: Poesia ...............................................

133

VIII. Os Provérbios .........................................................................

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IX. As Advinhas................................................................................

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X. A Antronponímia .........................................................................

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XI. Outras Manifestações da Cultura Guineense .............................

205

XII. A Comunidade de Fala Guineense ............................................

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XIII. Palavras Finais ........................................................................

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Bibliografia ......................................................................................

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Apêndice..........................................................................................

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Apresentação

Rara é a ocasião em que uma publicçaão de nível universitário atinge 20 anos de publicação como a revista PAPIA. Quer pela escassez de recursos, quer pela inconstância dos seus organizadores, quase todas as revistas universitárias têm uma existência efêmera. Não é este o caso. O professor Hildo Honório do Couto, professor de linguística da UnB, dedicou 20 anos da sua vida acadêmica a manter nível elevadíssimo numa revista que é orgulho para toda a comunidade intelectual da Península Ibérica. PAPIA, durante 20 anos, deu-nos como editor, uma satisfação interior grande, pois prova que, mesmo sem ser um êxito comercial (a luta por recursos foi grande), foi um êxito cultural a que estamos associados como uma editora cult. Tem sido essa a nossa filosofia: “não deu prejuízo, já ganhamos”. Muitos acham errado, pois não se baseia nos princípios capitalistas e mercenários. Mas, amparar um intelectual do nível do professor Hildo, afinal um grande amigo, apaixonado pelo que faz, incentivador, persistente, modesto (até demais) foi para nós uma honra e um incentivo para que continuemos a dar as mãos por uma cultura que, ao entranhar-se em assuntos que não pertencem a um nicho muito popular, cada vez tem menos pessoas que os olhem pelo seu significado mais profundo e pela sua importância social e linguística. Este número monográfico de PAPIA, por conter um apanhado geral da cultura da Guiné-Bissau, merece uma ampla divulgação nos países lusófonos, não apenas no país de que trata. Portugal, como centro irradiador da lusofonia, deveria dar uma grande acolhida a Líteratura, língua e cultura da Guiné-Bissau - um país da CPLP, que o professor Hildo escreveu em coautoria com Filomena Embaló. Prova de que o nosso trabalho fincou raízes é o fato de a revista ter sido assumida pelos estudiosos de contato de línguas e crioulística da Uni-

versidade de São Paulo. Ficamos felizes que a revista tenha continuidade. Por isso afirmamos que eles podem contar com nossa colaboração no que nos for possível. Victor Alegria Thesaurus Editora.

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NOTA EDITORIAL Aqui temos o número 20 de nossa revista. São duas décadas de existência ininterrupta. Para os padrões brasileiros, é um feito notável, pois grande parte das revistas científicas (e não científicas) desaparecem por volta do número 5. Nossa intenção era coroar esses 20 anos com um número monográfico, inteiramente dedicado ao sofrido povo do pequeno país Guiné-Bissau. O número constaria de poemas crioulos. No entanto, por razões que não dependem de nossa vontade, esse desiderato não pôde ser alcançado. Por esse motivo, decidimos manter a intenção inicial, publicando como número 20 o que seria um suplemento a ele, sob o título de Literatura, língua e cultura na Guiné-Bissau - um país da CPLP, assinado por Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló. Com isso, o objetivo inicial de homenagear a Guiné-Bissau fica mantido. O primeiro é linguista, estudioso da língua guineense há muitos anos. A segunda é guineense de coração (nasceu em Angola), escritora e estudiosa da literatura do país de adoção. Pode ser que alguém ache que não se deveria publicar literatura em português em PAPIA. No entanto, trata-se da literatura guineense, tão pouco conhecida ainda. Esperamos que nossos colegas crioulistas nos compreendam. Este é o último número organizado por Hildo do Couto. A partir do próximo, a organização estará a cargo de Gabriel Antunes Araújo, da Universidade de São Paulo. Já a partir de 2008, ele fora eleito presidente da ABECS - Associação Brasileira de Estudos Crioulos e Similares, entidade ligada à revista, criada em Brasília por ocasião do Primeiro Encontro de Estudos Crioulos e Similares. No momento em que estamos redigindo estas linhas, acaba de se realizar o VI Encontro da ABECS em Salvador. Enfim, agora que a revista entrou no período de maioridade, entra em nova fase, nas mãos de gente jovem e idealista. A ideia de contato de línguas, contexto maior em que se insere a crioulística, certamente vai ter guarida nos números vindouros, que desejamos que sejam muitos. No pintcha

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PREFÁCIO

A confecção deste livro apresenta duas etapas. Na primeira, Hildo Couto elaborou um esboço geral da obra. Mas, como ele é linguista, não especialista de literatura, convidou a estudiosa da literatura guineense Filomena Embaló para colaborar na empreitada. Ela aceitou o desafio e nos pusemos a colaborar assiduamente e com afinco pela internet até chegar ao presente formato. É bem verdade que já existe um livro publicado no Brasil sobre a literatura guineense (Augel 2007). No entanto, seu objetivo é mais teórico e interpretativo, o que, aliás, é altamente meritório. Ele se atém à literatura em prosa e verso em português e à poesia crioula. O nosso é mais abrangente. Ele inclui não apenas esses aspectos, mas procura dar uma visão de conjunto da língua e da cultura da Guiné-Bissau. É claro que aqui e ali tentamos fazer interpretações também. Até onde sabemos, é a primeira obra que reúne e abrange, de uma forma mais ampla, diferentes aspetos da cultura guineense, com a preocupação de fornecer o maior número de informações, sem, no entanto, se pretender exaustiva. Uma limitação que a obra apresenta é justamente não ter sido possível abordar todas as manifestações culturais próprias e específicas das diferentes etnias, tais como as cerimônias de iniciação, cerimônias fúnebres e crenças religiosas, por necessitar de um trabalho de terreno e de recolha mais detalhado e a longo prazo, o que não nos foi possível fazer. Apesar dessas limitações, acreditamos que o livro possa ser de interesse, pois ele apresenta e discute perfunctoriamente pelo menos a literatura em português (poesia e prosa), de que dá um apanhado geral, e a literatura em crioulo, que compreende a poesia e as narrativas orais. Fala também dos provérbios e das adivinhas, duas facetas muito importantes da cultura guineense, além da antroponímia, que apresenta padrões de denominação muito interessantes. Sob a rubrica de “Outras manifestações da cultura guineense”, o livro discute sucintamente as revistas em quadrinho, o teatro, o cinema, a música, a questão das manjuandades (sociedades lúdicas de coetâneos), os gãs (parecidos com clãs), o tchur (cerimônias fúnebres), os rumores (boa-

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tos) e a questão religiosa do irã. Além disso, temos a parte mais linguística. Primeiro, a situação linguística do país (capítulos I e XII), com suas mais de dezesseis línguas, além do crioulo e o português. Segundo, falamos sobre a questão da língua portuguesa no país. Nossa intenção não foi publicar algo melhor do que o que já existe, mas completá-lo, entrando em áreas que ainda não tinham sido apresentadas ao público de língua portuguesa. Pelas informações que presta sobre a cultura da Guiné-Bissau, devido às dificuldades encontradas para recolher dados nesta área, cremos que trazemos informações úteis a quem pretenda conhecer o maravilhoso mundo da literatura, da língua e da cultura desse pequeno e sofrido país pertencente à CPLP. Como se sabe, há muito pouca produção existente nesse domínio. Nossa intenção foi remediar, pelo menos em parte, essa escassez. O livro foi escrito tendo em vista as pessoas que têm interesse pela Guiné-Bissau e pela África em Geral, não para aquelas que põem o dernier cri da crítica literária em primeiro lugar. Ele é bem mais modesto. Visamos a apresentar um conspecto da literatura, da língua e da cultura guineenses ao leitor de língua portuguesa. Se as pessoas que se interessam por essas áreas, e/ou pela Guiné-Bissau em geral, virem alguma coisa de interesse no livro, dar-nos-emos por satisfeitos, nosso objetivo foi atingido. O leitor e a leitora notarão que, nas poucas tentativas de interpretação que fizemos, há uma certa tendência a encarar os fatos em estudo da perspectiva da crítica literária ecológica, mais conhecida como ecocrítica (ecocriticism). Isso se deve à formação de um dos autores, estudioso das relações entre língua e meio ambiente, mediante a disciplina ecolinguística (Couto 2007), cujo último capítulo se intitula justamente “Ecocrítica”. Sobre a ecocrítica em geral, baseamo-nos em Garrard (2006) e Glotfelty & Fromm (1996). Temos consciência de que o viés ecológico nem sempre é bem-vindo no meio acadêmico. No entanto, estamos convictos de sua validade. Gostaríamos de agradecer a algumas pessoas que nos ajudaram de alguma forma. Algumas enviaram publicações de difícil acesso. Outras fizeram comentários a tópicos pontuais, evitando assim que o livro contenha muitas falhas. A seguir, apresentamos uma lista dessas pessoas, desculpando-nos por eventuais esquecimentos. Nenhuma delas tem qualquer responsabilidade pelo conteúdo do livro.

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Alfeu Sparemberger (Pelotas) Cláudia Gomes (Brasília) Incanha Intumbo (Coimbra) João Ferreira (Brasília) Luigi Scantamburlo (Guiné-Bissau) Moema Parente Augel (Bielefeld) Odete Semedo (Bissau/Belo Horizonte) Rui Jorge Semedo (Bissau/São Carlos) Teresa Montenegro (Bissau, Guiné-Bissau) Waldir Araújo (Lisboa) Wilson Trajano Filho (Brasília).

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0. INTRODUÇÃO

Uma boa maneira de preparar o terreno para a discussão sobre a cultura, as línguas e as literaturas da Guiné-Bissau é apresentando um esboço histórico do país. Para dar apenas uma justificativa, a periodização sugerida para a história da sua produção literária é a de sua história política. Além do mais, a despeito de ser uma das primeiras regiões da África, e do mundo, a que os portugueses chegaram na arrancada marítima que recebeu o nome de Grandes Navegações, a antiga Costa da Guiné, a Guiné Portuguesa ou a atual Guiné-Bissau é um dos países menos conhecidos entre todos que resultaram dessa aventura. Esse desconhecimento existe em todos os níveis, não só no linguístico-cultural, mas também no nível político. Ouvese falar muito mais em Angola, Moçambique e Cabo Verde do que em Guiné-Bissau. Intelectuais e escritores como José Craveirinha, Mia Couto, Luandino Vieira, José Eduardo Agualusa, Baltazar Lopes e Germano Almeida são frequentemente lembrados no Brasil. No entanto, muito pouca gente já ouviu falar em Tony Tcheka, Abdulai Sila, Pascoal D’Artagnan Aurigemma, Carlos Lopes e Odete Semedo. Assim sendo, dedicamos essa introdução basicamente a um perfil histórico do atual país Guiné-Bissau. Antes, porém, gostaríamos de fornecer alguns dados importantes para se compreender o país como tal. A Guiné-Bissau é um pequeno país situado na costa ocidental africana que se classifica entre os mais pobres do mundo. Emergindo de uma luta armada de libertação nacional, que durou 11 anos e que pôs fim a um longo período colonial, os desafios para a nova nação eram enormes. Com efeito, a incipiente economia colonial, com uma base exclusivamente agrícola, assentava num sistema de monopólio comercial dominado por empresas portuguesas. Os pequenos produtores locais eram obrigados a produzir e a vender a essas empresas determinados produtos agrícolas destinados à exportação. Nenhuma evolução tecnológica fora introduzida no meio rural, continuando as populações a produzir segundo as suas tradições ancestrais. Na área industrial, apenas uma unidade fabril foi deixada pelos portugueses: uma fábrica de cerveja destinada a abastecer o exército colonial que combatia o movimento de libertação.

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Se as capacidades do movimento de libertação permitiram gerir com certo sucesso as regiões libertadas do país durante a luta armada, o mesmo já não aconteceu com a gestão do país totalmente independente. Os novos dirigentes encontraram os cofres do Estado vazios, uma administração abandonada pela maior parte dos seus agentes, em sua maioria caboverdianos que deixaram o país no momento da independência, uma falta de quadros preparados em todos os domínios e em todos os níveis e uma população que contava com cerca de 99% de analfabetos. Nessas condições, cometeram-se erros na decisão das estratégias de desenvolvimento: nacionalização das empresas comerciais portuguesas, quando o Estado não tinha capacidades financeiras nem humanas para geri-las; realização de empreendimentos industriais sobredimensionados com tecnologia avançada e muitas vezes sem responder às necessidades básicas da população, sem dispor de mão de obra preparada para fazê-los funcionar e meios para adquirir as matérias primas. Por outro lado as infraestruturas rodoviárias favoreceram as ligações entre os centros urbanos em detrimento das ligações com os centros de produção agrícola, isolando-os do resto do país com consequências graves para o escoamento da produção, que, não sendo vendida, acabava por apodrecer. Pouca atenção foi dada ao incentivo à produção agrícola, com a falta de fornecimento de bens de produção, sementes melhoradas e introdução de novas técnicas. Essa falta de incentivo e as dificuldades de escoamento dos produtos provocaram uma diminuição da produção agrícola, reduzindo-a a uma produção de subsistência. Num contexto de baixo nível de produção, o aprovisionamento dos cofres públicos não podendo ser feito pelo sistema fiscal, o Estado recorria à emissão de moeda para o pagamento das suas despesas, principalmente os salários dos seus funcionários, o que tinha como consequência a desvalorização da moeda. Uma das causas apontadas para o golpe de estado de 1980 foi essa política econômica considerada desastrosa. No entanto as políticas econômicas e financeiras levadas a cabo depois disso também não surtiram os efeitos esperados por também elas não terem sido realistas. O Programa de Ajustamento Estrutural dos primeiros anos da década de oitenta agravou ainda mais a precariedade econômica do país. Articulando-se à volta da abertura da economia ao mercado mundial, da liberalização interna e da austeridade, a aplicação do programa pressupunha um tecido socioeconômico capaz de absorver os instrumentos da sua política. Vale dizer, a existência de um mercado nacional organizado e de concorrência perfeita,

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cujas leis deveriam proporcionar os grandes equilíbrios macroeconômicos. Não era o caso da Guiné-Bissau, que possuía uma classe empresarial muito embrionária (composta por alguns comerciantes que tinham conseguido se instalar na época colonial e que conseguiram sobreviver ao período do centralismo econômico); falta de poupança interna; uma base de produção reduzida; desconhecimento dos mecanismos do mercado internacional; um déficit estrutural da balança comercial; um setor informal urbano crescente, caracterizado em épocas de crise de abastecimento por trocas diretas de produtos; uma prática de antecipação precoce dos agentes econômicos às desvalorizações da moeda, provocando subidas especulativas dos preços quer dos produtos nacionais quer importados, para citar os mais importantes. Foi assim que, em 1997, a Guiné-Bissau aderiu à União Econômica e Monetária da África Ocidental (UEMOA), adotando a moeda franco CFA, numa tentativa de conseguir uma maior integração regional, de sair do seu isolamento econômico-financeiro e de criar novas bases para o alavancamento de sua economia. Mas a crise político-militar que surgiu em 1998, opondo o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas ao Presidente da República terminou em guerra civil, quando este último decidiu, por iniciativa própria e sem a autorização da Assembléia Nacional Popular (como prevê a Constituição) pedir a intervenção das forças armadas do Senegal e da Guiné-Conacri. Os 11 meses de guerra civil que se seguiram pioraram ainda mais a difícil situação do país e inauguraram um período de total instabilidade política que dura até os nossos dias, instabilidade essa que teve enormes consequências para o setor econômico que, na ausência de investimentos devido à falta de confiança por parte dos investidores e parceiros, não consegue desenvolverse. Do ponto de vista do regime político, a Guiné-Bissau viveu, desde a independência até 1991, data em que foi aprovado o multipartidarismo, num sistema de partido único com o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), o partido libertador. Em 1994 foi esse mesmo partido que ganhou as primeiras eleições multipartidárias e que presidiu os destinos da nação até a destituição, em 1999, do Presidente Nino Vieira, o que pôs fim à guerra civil. Foi então que se pôde falar em alternância no poder, com a vitória do Partido da Renovação Social (PRS) nas eleições gerais de 2000. Mas em 2003 o presidente eleito, Kumba Yala, foi destituído por um novo golpe de estado militar. Seguiu-se um período de transição com a nomeação de um presidente da república interino. As eleições legislativas, realizadas

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em 2004, levaram novamente o PAIGC ao poder e as eleições que tiveram lugar em 2005, trouxeram de volta ao poder o antigo presidente Nino Vieira, que ganhou o escrutínio como candidato independente. Crises políticas, permanentes mudanças de governo, alegadas tentativas de golpes de estado, uma crescente desestruturação das instituições estatais e uma constante ingerência das forças armadas na vida política do país caracterizaram os quatro anos que se seguiram até aos assassinatos em 2009, com algumas horas de intervalo, do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas (Tagme na Waie) e do Presidente da República (Nino Vieira). Quanto às liberdades individuais, o sistema de segurança implantado no país, logo depois da independência, foi um sistema autoritário, fato que prevaleceu mesmo depois da instituição do multipartidarismo. Há que ter em conta que a repressão e a violência sempre estiveram presentes na história do país: a repressão colonial, a violência da luta de libertação e a repressão pósindependência contra os adversários do partido no poder. Tudo isso fez com que se tenha criado uma cultura de violência praticada pelos partidos e pelas forças armadas e a consequente instalação de um sistema de impunidade que aniquilou totalmente o poder judicial. O enfraquecimento das instituições do Estado, o marasmo econômico em que a Guiné-Bissau mergulhou e a porosidade das suas fronteiras pela falta de meios de controle tornaram o país num alvo atraente para o narcotráfico internacional, que o elegeu como uma das suas placas giratórias do comércio entre as Américas e a Europa. Enquanto isso a população, cada vez mais empobrecida, vai lutando dia a dia para a sua sobrevivência. O acesso às condições básicas de saúde não lhe são garantidas, devido à falta de meios e condições para o exercício da medicina nos hospitais públicos. O ensino, que vive permanentes períodos de greve do corpo docente por falta de pagamento dos salários, confronta-se também com o problema da baixa de qualidade. Perante tal situação há numa rejeição ao resignado djitu ka ten (não há outra solução) ou do otimista, mas não menos resignado, i ka ten problema (não tem problema), tão denunciado pelo falecido intelectual Jorge Ampa (1950-1993) que dizia que o grande problema da Guiné-Bissau é i ka ten problema. A sociedade civil tem dado provas de dinamismo e de iniciativas positivas, quer em termos de realizações de projetos de natureza socioeconômica, quer no nível político, servindo de elemento catalisador num combate permanente em favor do desenvolvimento, democracia e paz, o que demonstra que o país é viável.

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Depois desta breve apresentação do país, situemos os fatos no seu contexto histórico desde os primórdios da aventura marítima portuguesa que resultou no que passou a ser chamado de As Grandes Navegações e que tiveram como objetivo se desvencilharem de intermediários no comércio com o Oriente. O primeiro fato histórico importante foi a tomada da ilha de Ceuta em 1415 por Nuno Álvares Pereira. Localizada à entrada do mar Mediterrâneo, sua conquista significou a morte do reino muçulmano de Granada e a defesa da costa ocidental da África. Sua posse era garantia contra ataques dos mouros, os quais tinham que passar por ali nas suas investidas em direção à Europa. Além do mais, significava também o primeiro passo na tentativa de chegar à Índia pelo Ocidente. A conquista dessa ilha era tão importante que dela participou o próprio infante D. Henrique, o navegador. Conquistada Ceuta e transposto o cabo Não, do qual se dizia que “quem o passar voltará ou não”, os portugueses chegaram logo em seguida a outro temido limiar, o cabo Bojador. Desse cabo diz Gomes Eanes de Zurara: “despois deste cabo nom ha hi gente nem povoraçom algua”. Em 1434 ele foi finalmente transposto por Gil Eanes. Segundo Zurara, Eanes voltou à região com Afonso Gonçalves Baldaia, avançando até o rio do Ouro. Tinham a incumbência do infante D. Henrique de aprisionar mouros para “línguas”, “interpretadores”, “cholonas” ou turgimãos, como viriam a ser chamados mais tarde. No entanto, não o conseguiram desta vez. Só mais tarde, em outras das sucessivas incursões à região, conseguiram aprisionar os primeiros mouros. O aprisionamento continuou com o avanço em direção ao sul, chegando à terra dos negros, logo em seguida chamada de Costa da Guiné. Várias caravelas foram enviadas pelo infante com ordens de avançar cada vez mais em direção ao sul, e sempre aprisionando nativos. Nuno Tristão descobriu o cabo Branco em 1441 e Arguim em 1443, onde construiu uma fortaleza. Nela se celebrou missa pela primeira vez. Gonçalo de Sintra foi à Guiné que, segundo ele é o mesmo que “terra dos negros”, já levando consigo “huu moço azenegue por torgimam, o qual já de nossa linguagem sabya grande parte”. Ainda segundo Zurara, Dias Dinis também chegou “aa terra dos negros, que som chamados guinéus”, aprisionando vários deles. Em 1444 chegou ao cabo Verde, onde atualmente se localiza Dakar, não o próximo arquipélago homônimo. Em 1445 mais três caravelas foram ao rio do Ouro. Mas, o mais importante para o que aqui nos interessa é o fato de o escudeiro João Fernandes que, “de sua voontade lhe prouve ficar em aquella terra, soomente polla veer,

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e trazer novas ao Iffante, quando quer que se acertasse de tornar”. Ele ficou entre os mouros sete meses e fez amizade com eles. E “... quando se partira daquelles com que nos passados sete meses conversara, muytos delles chorarom” (Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos feitos da Guiné, 1455). Essa estada de João Fernandes entre os africanos (azenegues?) é de suma importância histórica. Com efeito, trata-se da primeira vez que um português convive pacificamente com os mouros (até aqui não se distinguia bem entre africanos negros e mouros). Esse homem é o primeiro que se lançou, na costa ocidental africana, entre os nativos, e com eles conviveu. Se não pode ser considerado como o primeiro lançado, como o termo passou a ser entendido entre historiadores e crioulistas, ele é com certeza um precursor deste tipo de aventureiro que logo em seguida se tornaria a personagem principal no processo de colonização da África em geral. Em incursões posteriores, outras caravelas entram em contato com wolofs (jalofos, geloffas), sèrères (serreos), mandingas, beafadas, bijagós, fulas etc. Diogo Gomes, por exemplo, fez amizade com Niumi Mansa (Nome Mains), depois com Abubakar (Bucker), pedindo a ele que lhe mostrasse o caminho para Cantor. Mandou mensagens para Uli Mansa e Ani Mansa. No caminho de volta estabeleceu contato com o chefe Batimansa, do baixo Gâmbia, que lhe deu três negros. No entanto, o fato mais importante é que Nomi Mansa adotou o Deus cristão e quis que Diogo Gomes o batizasse bem como a seus nobres. Adota o nome Henrique, por causa da admiração que passou a ter pelo infante. Seus nobres passaram a se chamar Jacó, Nuno etc. Pelo menos é o que asseveram os cronistas. Se João Fernandes pode ser considerado o precursor dos lançados, do contato de Diogo Gomes com Nomimansa e seu povo bem como dos línguas (chalonas, turgimãos) nativos que os portugueses já traziam consigo de Portugal (aprisionados anteriormente), surgiriam os grumetes. Estes seriam mais tarde os nativos aculturados pelo contato com os europeus, exercendo o papel de seus ajudantes. É bem verdade que os lançados eram traficantes clandestinos, ilegais. Consequentemente, eram-no também os grumetes. No entanto, isto só se configurou mais tarde, quando os portugueses tentaram explorar a região mais intensamente. Ainda no século XV os portugueses estabeleceram feitorias no rio São Domingos e no rio Grande. Os espanhóis começaram a aparecer na região e se iniciaram as disputas sobre o direito de se estabelecer nela e de praticar o comércio. Com a ajuda do papa, assinou-se um acordo em 1494, chamado

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Tratado das Tordesilhas, que pôs fim aos desentendimentos entre as duas nações. No entanto, começaram a aparecer também os franceses e os ingleses. Assim, a fim de assegurar o monopólio português sobre o comércio nas terras descobertas por navegantes portugueses, edificou-se uma fortaleza em Cachéu em 1588. Logo chegaram também os holandeses à região da costa ocidental africana e o exclusivo do comércio português é desrespeitado abertamente. Com a Compagnie van Verre (1595), a Companhia das Índias Orientais (1602), da Holanda, e a Company of Merchants of London (1600), da Inglaterra, tem-se o fim do predomínio português na região. A presença dessas três nações explorando o tráfico de escravos e de mercadorias é que vai reforçar a presença dos lançados, pois elas em geral mantinham seus contatos com os nativos através deles. Com isso, a ilegalidade, a clandestinidade, o contrabando passaram a ser a norma. Portugal não conseguiu manter sob controle oficial todas as terras descobertas pelos seus primeiros navegadores. O texto de André Álvares de Almada abaixo transcrito é bastante significativo, uma vez que mostra que os portugueses que se estabeleciam na costa da Guiné tinham que se arranjar sem a ajuda da metrópole: ...mas haverá como cinco anos que estão os nossos em aldeia separada dos negros, e tão fortes que, antes querendo eles, podem fazer muito dano aos negros. E estão ao longo do rio entre a aldeia dos negros e ele, e ali fizeram uma força sem a ajuda de S. Magestade, e a fortificaram com alguma artilharia que para isso buscaram... [sublinhado nosso] (André Álvares d’Almada, 1594, Tratato breve dos rios da Guiné).

As primeiras organizações administrativas na Guiné eram as praças (povoações fortificadas e armadas) e os presídios (praças de pequenas dimensões e escassos meios defensivos). Nessa época, havia duas praças: Cachéu e Bissau. Quanto a Farim, Ziguinchor, Geba e Lugar do Rio Nuno, eram presídios. Vejamos uma pequena cronologia dos principais acontecimentos do século XVII até a atualidade: - 1607: o régulo de Guinália cede aos portugueses a ilha de Bolama para eles se defenderem dos bijagós. - 1640: abandonam-se as feitorias do rio São Domingos e do rio Grande. Funda-se a povoação de Farim.

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- 1641: D. João IV constrói uma fortaleza em Cachéu e passa a escolher os capitães-mores (administradores). O primeiro foi Gonçalo de Gamboa de Aiala. - 1675: Cria-se a Companhia de Cachéu, para explorar o comércio; ela não exerce ação notável. - 1687: Funda-se a Companhia de Bissau. - 1690: Funda-se a segunda Companhia de Cachéu, que toma conta da administração e do comércio local. - 1766: Transferência da capital para Bissau. - 1792: Ingleses e franceses tentam ocupar a ilha de Bolama. - 1832: Passa a haver uma subprefeitura em Bissau e uma provedoria em Cachéu. - 1863-1866: secas em Cabo Verde provocam a emigração de Caboverdianos para a Guiné, que vão desenvolver, ao longo do rio Farim, pontas destinadas à produção da cana de açúcar para o fabrico de aguardente e de açúcar. Essa população caboverdiana, isolada nas plantações afastadas dos centros populacionais vai viver à margem da comunidade europeia instalada na Guiné. - 1879: separação administrativa de Cabo Verde e Guiné; Bolama passa a ser capital. Há também aparecimento da imprensa, enquanto que nas demais colônias ela foi instalada entre 1842 e 1857. Entre 1943 e 1879, a Guiné e Cabo Verde tinham o mesmo Boletim Oficial que era editado na Praia, em Cabo Verde. - 1884-1885: Conferência de Berlim, em que 14 potências européias e Estados Unidos dividiram a África. - 1886: Portugal cede a região da Casamansa (sul do Senegal) para a França e esta cede a Portugal a região de Cacine (norte da Guiné francesa) - 1913-1915: Teixeira Pinto consegue uma “pacificação”, para evitar ataques dos nativos. -1919: declínio das pontas e da produção da cana de açúcar e seus derivados, devido a uma legislação que regulava o fabrico de aguardente, de modo a privilegiar a introdução e expansão de aguardentes e conhaques da metrópole. Os descendentes dos primeiros caboverdianos veem-se assim obrigados a procurar outras formas de rendimento, passando a ocupar cargos públicos de pequena e média categoria ou de empregados e caixeiros de empresas comerciais. Entre 1920 e 1940, mais de 70% dos funcionários públicos eram caboverdianos ou seus descendentes, nascidos na Guiné.

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- 1936: até aqui, os portugueses tinham que pagar uma taxa (daxa) ao régulo de Bissau. - 1940: transferência da capital de Bolama para Bissau. -1949: criação, por iniciativa de cinco pessoas privadas, dos “cursosexplicações” que vieram a ser o embrião do futuro liceu de Bissau que, mais tarde, deu lugar ao Colégio-Liceu, ao qual se deslocavam professores de Portugal para examinar os alunos. - 1954: início do Movimento pela Independência da Guiné e Cabo Verde (MINGC). - 1956: fundação do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), em 19 setembro, em Bissau. Reunindo Guineenses e Caboverdianos, o partido, baseando-se nas ligações históricas entre os dois povos, defendia o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde. Foi graças a essa conjugação de forças que o PAIGC conseguiu conquistar as independências dos dois países. - 1958: Abertura do primeiro Liceu oficial em Bissau, Liceu Honório Barreto. - 1959: insurgência dos estivadores do porto de Pindjiguiti (Bissau). 50 trabalhadores desarmados são fuzilados. O PAIGC, que até então tentava pela via da negociação a conquista da independência. Diante da resposta negativa das autoridades coloniais às reivindicações dos estivadores, decide organizar-se para passar à ação armada. - 1962: início da luta armada, em 23 de novembro. - 1964: realização do Congresso de Cassacá, o primeiro do PAIGC, organizado em Cassacá, região libertada da Guiné, de 13 a 17 de fevereiro. Inicialmente convocado como uma simples reunião para pôr termo a desmandos de certos responsáveis militares da frente Sul, revelou-se um encontro de suma importância em que foram tomadas decisões determinantes para o prosseguimento da luta armada: criação das FARP, Forças Armadas Revolucionárias do Povo (um verdadeiro exército estruturado); criação dos órgãos embrionários do futuro estado (que passaram a gerir os setores da saúde, educação, economia, finanças e justiça); criação dos Armazéns do Povo (que se ocuparam da distribuição dos produtos de primeira necessidades) e, no nível do Partido, criação do Bureau Político e, no seio deste, do Comitê Executivo da Luta . - 1973: Amílcar Cabral é assassinado em 20 de janeiro em Conakry, por militantes guineenses do PAICG. As causas deste assassinato e o seu

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autor intelectual nunca foram determinados. Embora a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado de Portugal) tenha sido apontada por certas fontes como sendo a autora intelectual do assassinato, o certo é que havia no seio do PAIGC um mal estar entre guineenses e caboverdianos por causa da questão da unidade Guiné-Cabo Verde, o que pode ter tornado possível a utilização dos guineenses descontentes para a realização do assassinato. Com o assassinato de Cabral, ruiu a primeira pedra do edifício da Unidade Guiné-Cabo Verde. – 1973: Proclamação do Estado da Guiné-Bissau em 24 de setembro, pela Assembléia Nacional Popular, reunida pela primeira vez em Madina do Boé, região libertada. Luís Cabral assume a presidência do Conselho de Estado. - 1974: Portugal reconhece em 10 de setembro a independência, no ano da Revolução dos Cravos (25 de abril). Partida das autoridades administrativas portuguesas e com ela a maior parte dos quadros da função pública, caboverdianos na sua maioria. Instalação do governo guineense na capital, Bissau. - 1980: João Bernardo Vieira (Nino Vieira) lidera um golpe militar, localmente designado por “Movimento Reajustador”, e assume a presidência do então criado Conselho da Revolução. Entre as causas apontadas: a “descoberta” de valas comuns com ossadas de fuzilados durante os primeiros anos de independência; o anteprojeto da constituição que apresentava diferenças com a de Cabo Verde, entre elas a conservação da pena de morte na Guiné-Bissau, quando em Cabo Verde ela não existia; a aguda crise econômica que o país atravessava, considerada como consequência da política econômica seguida depois da independência. - 1981: Em Cabo Verde, em reação ao golpe na Guiné-Bissau, é criado o PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde), consumando assim o fim da unidade Guiné-Cabo Verde. - 1984: o Primeiro Ministro, Victor Saúde Maria é acusado de preparar um golpe de estado e é afastado do poder. - 1985: Grande crise política. Várias pessoas foram julgadas e fuziladas, entre as quais Paulo Correia, Primeiro Vice-Presidente do Conselho de Estado e Ministro da Justiça, militares e líderes contrários ao governo de Nino Vieira acusados de tentativa de golpe de estado. - 1987: Início do Programa de Reajustamento Estrutural, distanciando-se do modelo centralizado de inspiração socialista iniciado nas guerras

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de independência. Abertura da primeira editora pública (Nimba) de duração efêmera. - 1991: Introdução do multipartidarismo, abertura política (pelo menos nominal), revalorização dos regulados (poder tradicional). - 1994: Eleições multipartidárias. Nino Vieira é “reeleito”. É criada a primeira editora privada do país, pelo escritor Adulai Sila. - 1997: A Guiné-Bissau adere à União Econômica e Monetária da África Ocidental (UEMOA), adotando a moeda franco CFA. - 1998: Revolta de alguns militares, comandada por Ansumane Mané. Nino Vieira pede socorro ao Senegal e à Guiné-Conacri, que enviam tropas. O país entra em guerra civil que dura 11 meses. Os senegaleses passam a cometer as maiores barbaridades contra os guineenses, muitas delas retratadas na literatura produzida daí para frente. Milhares de pessoas morrem. Bissau, que já tinha uma infraestrutura precária, é praticamente destruída. Os soldados senegaleses se instalaram no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), um dos melhores da África, e chegaram a usar folhas de livros para fazer fogo. Grande parte da população de Bissau foge para o interior e para o exterior. - 1999: Forma-se um Governo de União Nacional. Deposição do presidente eleito. É o fim do longo poder absoluto de Nino Vieira e da liderança exclusiva do PAIGC. Nino vai para o exterior (Portugal). Malam Bacai Sanhá, Presidente da Assembléia Nacional Popular assume a presidência interinamente. - 1999-2000: Realização de eleições legislativas e presidenciais, saindo vencedor das primeiras o PRS (Partido da Renovação Social) e tendo o seu lider, Kumba Yala, sido eleito presidente da República. - 2000: o chefe da Junta Militar, Ansumane Mane, é assassinado. - 2003: Koumba Yalá é destituído do poder pelo chefe de estado maior, Veríssimo Seabra, acusado de corrupção, uso arbitrário do poder e promoção de dissensões étnicas no seio das forças armadas. Henrique Rosa assume a presidência interinamente. - 2004: Novas eleições legislativas, voltando ao poder o PAIGC (março). Carlos Gomes Júnior, presidente do PAIGC é nomeado Primeiro Ministro. O general Veríssimo Seabra, chefe do Estado Maior das Forças Armadas, é assassinado por um grupo de militares que tinham participado de uma missão de paz das ONU na Libéria, acusado de corrupção e promoções arbitrárias no seio das forças armadas. Tagme Na Waie foi escolhido para as

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chefias das forças armadas (outubro). - 2005: novas eleições presidenciais. Nino Vieira retorna ao país e é “reeleito.” Esse senhor, lídimo representante de tudo de ruim que atormenta a Guiné-Bissau, continua no poder. Criação do Forum de Convergência para o Desenvolvimento que reúne a grande maioria da oposição parlamentar. Deposição do governo de Carlos Gomes Júnior pelo presidente Nino Vieira, pretextando a existência de “instabilidade política”. Nomeação de um governo de iniciativa presidencial. - 2006: Assassinato do Comodoro Lamine Sanha, que foi próximo de Ansumane Mané. - 2007: Instituição do Pacto de Estabilidade Política pelos principais partidos: PAIGC, PRS e PUSD e nomeação de um governo de consenso nacional. - 2008: O Chefe de Estado Maior da Marinha, almirante Bubo Nachut, é acusado de tentativa de golpe de estado e de utilizar as forças armadas e uma parte do território para o tráfico internacional de droga. Em prisão domiciliar, foge para a Gâmbia. Cai o governo do Pacto de Estabilidade, três meses antes das eleições legislativas que levam novamente ao poder, em novembro, o PAIGC. Carlos Gomes Júnior é de novo Primeiro Ministro. - 2009: em primeiro de março, o general Tagmé Na Waie, Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, morre em um atentado à bomba ao quartel-general. No dia seguinte, algumas horas depois, o próprio Nino Vieira é assassinado por militares. Raimundo Pereira, presidente da Assembléia Nacional Popular, assume interinamente a presidência da República. O capitão de fragata, Zamora Induta, é nomeado, a título provisório e à revelia das disposições da Constituição, Chefe de Estado Maior das Forças Armadas. A 26 de Julho, Malam Bacai Sanhá, candidato do PAIGC, ganha as eleições presidenciais antecipadas, organizadas na sequência do assassinato de Nino Vieira. Zamora Induta é confirmado nas suas funções de Chefe de Estado maior das Forças Armadas. Essa longa cronologia pode parecer enfadonha, mas ela é necessária para se entender o que existe na Guiné-Bissau. Um observador superficial poderia chegar à conclusão de que o país é ingovernável, que os guineenses (e os africanos em geral) não conseguem viver em uma democracia e, por fim, que eles não estão preparados para viver no mundo capitalista e globalizado atual. Eles só conseguiriam viver sob o regime tribal, na forma de regulados.

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Trata-se de uma conclusão falaciosa. Na verdade, a situação tem que ser encarada de uma outra perspectiva. Se os africanos tivessem tido uma continuidade em sua história, sem a invasão dos europeus, certamente teriam encontrado o próprio caminho. Teria havido muitas guerras, como as houve na Europa (cf. as Guerras Napoleônicas, a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, Guerra dos Bálcãs etc.), mas haveria uma solução africana para os problemas africanos. A invasão dos europeus impôs uma ruptura nessa história, que fez com que a contradição colonizadores-colonizados se sobrepusesse às contradições internas a esses povos, que tiveram que se unir para fazer face à dominação colonial. Uma vez adquiridas as independências e retomados os receptivos processos históricos, é normal que as contradições internas ressurgissem, somando-se aos problemas africanos normais os trazidos pelos invasores. Por outro lado, catapultados para um modelo político-econômico totalmente diferente das suas realidades, por ser um produto de um processo evolutivo que não foi o seu, as sociedades africanas têm dificuldades em assimilar o modelo da democracia ocidental, baseado na divisão dos poderes institucionais e numa democracia participativa. Isso significa que os invasores europeus não levaram soluções para os africanos, mas problemas: desestruturação dos sistemas político-socio-econômicos, discriminação, escravidão, enfim, conflitos. A busca de solução para a resolução desses conflitos tem-se revelado difícil, com o surgimento de diferentes focos de conflito por todo o continente africano. No entanto é aos africanos que compete a busca dessas soluções pela escolha de modelos políticos e econômicos consentâneos com as suas realidades, com base num verdadeiro desenvolvimento do fator humano, condição indispensável para um desenvolvimento sustentado. No caso específico dos guineenses, pelo menos para os conflitos linguísticos, eles encontraram uma solução. Diante do dilema de se usar uma língua africana (que, aliás, são muitas) ou o português, eles criaram uma terceira via, o crioulo, que é justamente uma solução de compromisso entre as duas realidades. Agora falta encontrarem solução também para os conflitos políticos. O que veremos nos capítulos seguintes reflete, direta ou indiretamente, tudo isso.

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I. A SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA

A Guiné-Bissau é um pequeno país de apenas 36.125km2, com uma população de cerca de um milhão e quinhentos mil habitantes1. Ela está situada no noroeste africano, entre o Senegal (ao norte), a República da Guiné, comumente designada por Guiné-Conacri (a leste e ao sul) e o Oceano Atlântico a oeste. É o que restou da colonização portuguesa na costa ocidental africana desde meados do século XV. No final do século XIX, as fronteiras foram definitivamente delimitadas. Em 1884-1885, a Conferência de Berlim estabeleceu que fatia do bolo africano ficaria com qual potência colonizadora. Em 1886, o Acordo Franco-Português estabeleceu definitivamente as fronteiras da Guiné-Bissau, pelo qual a chamada região da Casamansa passou para o domínio da França e a região de Cacine para o de Portugal. No pequeno território da atual Guiné-Bissau, são faladas cerca de 20 línguas, muitas delas pertencentes a famílias diferentes, outras tão aparentadas que poderiam ser classificadas como dialetos de uma mesma língua, como veremos logo abaixo. Estas línguas coabitam com o crioulo, língua veicular e de unidade nacional, e com o português, língua oficial, ambas resultantes da colonização portuguesa. As principais línguas étnicas são as seguintes, com porcentagem aproximada do número de falantes:

fula balanta mandinga manjaco papel felupe beafada

16% 14% 7% 5% 3% 1% 0,7%

1. A obtenção de dados estatísticos populacionais precisos é bastante dificultada por dois fatos: o recenseamento, que no tempo colonial era associado ao pagamento dos impostos, foi sempre mal aceito pela população que em períodos de recenseamento evitam-no refugiando-se nos países vizinhos. Por outro lado, as emigrações sazonais para os países vizinhos também têm repercussões na coleta da informação.

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bijagó mancanha nalu

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0,5% 0,3% 0,1%

É difícil encontrarem-se dados oficiais sobre a distribuição étnica depois de 1991. Não sabemos se houve uma decisão deliberada de não se determinarem as percentagens dos grupos étnicos, talvez para evitar a utilização do fator étnico com fins políticos e/ou eleitorais. Pelo menos a um dado momento essa questão foi levantada. De qualquer forma, essas estatísticas são de final da década de 70. Uma outra estatística, com base no recenseamento feito em 1991, apresenta o seguinte quadro:

fulas balantas mandingas manjacos papéis brames beafadas outros

25% 24% 14% 9% 9% 4% 3% 12%

Segundo dados extraídos do Ethnologue2, em 2002 a situação seria, para uma população total então estimada em 1 200 000 habitantes: fula balanta mandinga manjaco papel felupe beafada bijagó mancanha nalu



20,4% 30,5% 12,9% 14,1% 10,4% 1,8% 3,4% 2,3% 3,4% 0,6%

(245 130 falantes) (367 000 falantes) (154 200 falantes) (170 230 falantes) (125 550 falantes) (22 000 falantes) (41 420 falantes) (27 575 falantes) (40855 falantes) (8 50 falantes)

2. Gordon, Raymond G., Jr. (ed.), 2005. Ethnologue: Languages of the World, Fifteenth edition. Dallas, Tex.: SIL International. Online version: http://www.ethnologue.com/.

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No presente contexto, vale a pena dar uma olhada também na distribuição das religiões pela população a fim de entender a cultura guineense (ver Onofre dos Santos, Um sorriso para a democracia na Guiné-Bissau, Lisboa: PAC, 1996). Rosa (1993) apresenta um quadro ligeiramente diferente, para uma população de aproximadamente 1.500.000 habitantes. Onofre (1993) muçulmanos 46% animistas 36% católicos 13% outros cristãos 2% outros 3%

Rosa (1993) muçulmanos animistas cristãos

30% 45% 25%

Segundo os dados extraídos da página oficial do governo da GuinéBissau3 a distribuição das religiões pela população apresenta-se atualmente como segue: mulçumanos animistas cristãos

50% 40% 10%

As dez línguas recém-mencionadas não são as únicas que se fazem presentes na Guiné-Bissau. Com um número pouco significativo de falantes, poderíamos acrescentar ainda o bayote, o banhum, o badyara (pajadinca), o cobiana, o nalu, o cunante (sem porcentagem de falantes), o cassanga (já praticamente desaparecido), o wolof, o francês, o inglês etc. O francês se faz presente devido às intensas relações que os guineenses mantêm com os vizinhos Senegal e Guiné-Conacri, nos quais ele é a língua oficial. Com efeito, esses países são também multilíngues, sendo que no Senegal o wolof é a língua de união nacional e o francês a língua do Estado. Voltando à Guiné-Bissau, o crioulo é falado por uns 75% a 80% da população. Para complicar o quadro, a língua oficial é o português, conhecido por cerca de 13% da população. A despeito disso, é a língua da escola, dos meios de comunicação, da documentação oficial, do governo em atos oficiais e assim por diante. 3. http://www.republica-da-guine-bissau.org

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É preciso ressaltar que muitas variedades linguísticas tidas como “línguas” diferentes não passam de “nomes” diferentes para dialetos de uma mesma língua. Por exemplo, Mane (2001) defende a tese de que manjaco, mancanha e pepel podem ser considerados como três dialetos de uma mesma língua, com base no fato de que a fonologia dos três é idêntica, exceto algumas variantes alofônicas, o que para a sociolinguística variacionista, e para a fonologia, não seria nenhum problema. Porém, os linguistas já admitem que a distinção entre língua e dialeto é meramente política. De salientar que estas línguas não estão ainda codificadas e, por conseguinte, não são ensinadas e muito menos ainda constituem línguas de ensino. Como essas línguas convivem em um pequeno território, necessariamente há um contato relativamente intenso entre seus falantes. Diante desse contato e dos resquícios da colonização portuguesa, ou seja, o crioulo e o português, resulta uma espécie de continuum que vai desde variedades do português lusitano, passando por variedades de crioulo aportuguesado e crioulo tradicional, basiletal, até as línguas nativas, étnicas, como se pode ver no quadro a seguir.

português lusitano qQ português acrioulado qQ­ crioulo aportuguesado qQ­ crioulo tradicional qQ­ crioulo nativizado qQ­ línguas nativas Como a língua portuguesa será objeto de outro capítulo, gostaríamos de examinar aqui mais detalhadamente a situação do crioulo no país. É claro que ele se alterou muito desde sua formação nos séculos XV, XVI e XVII até hoje. Infelizmente, porém, os colonizadores não nos deixaram registros dele em forma de texto. De sua fase de formação não temos nada a não ser uma que outra observação indireta dos cronistas da época. Mes-

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mo os raríssimos casos de menção ao que pode ter sido o crioulo não são dignos de confiança, dado o preconceito que os portugueses nutriam em relação a ele (consideravam-no uma deformação do português, “português errado”, “mal falado”). No que tange a descrições da língua, a primeira de que dispomos é a do cônego Marcelino Marques de Barros, de final do século XIX e começo do XX (Barros 1897-1902). Ele apresentou uma descrição minuciosa, embora caótica, do crioulo, com uma grande quantidade de exemplos. Esse mesmo autor já transcrevera um texto em 1883, intitulado “Lobo co garça”, o mais antigo por nós conhecido. É um texto bastante curto, mas mostra que o crioulo da época apresentava várias diferenças relativamente ao atual, até onde podemos confiar em sua transcrição lusocêntrica e no seu amadorismo em questões linguísticas. No entanto, no momento não dispomos de opção melhor. Uma forma claramente arcaica, registrada por Barros em 1883, e hoje em vias de desaparecimento pode ser vista em (1)-(3), em que a forma atual vem após a barra oblíqua. Como se vê, houve uma síncope da oclusiva sonora intervocálica, com a consequente semivocalização da segunda vogal. (1) (a) n disábu / n disau ‘eu o deixei’ (b) ndé ku bu na bai? / ndé k’u na bai? ‘aonde você vai?’ (c) kabu / kau ‘lugar Em Bissau, a forma com o /b/ intervocálico é opcional. É portanto uma forma viva no crioulo mais conservador, sobretudo na Casamansa. No entanto, ela ocorre também em outras regiões da Guiné em pessoas mais velhas ou nos falantes do kriol fundu. No kriol lebi (mesoleto e acroleto) está enfraquecido e desapareceu no sotaque de muitos falantes. Barros menciona diversas outras formas menos comuns no crioulo atual. Elas são muito frequentes em contos tradicionais, como é caso do prefixo de plural ba- para grupos de pessoas aparentadas, como em (2). (2) (a) ba-Maneles ‘os Manuéis’ (b) ba-quissas [cussas?] ‘coisas, as coisas’ (c) ba-djobê ‘os que olham, os curiosos’ (d) ba-noba ‘novidade’, donde banoberu.

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Como informa Incanha Inthumbo (comuniucação pessoal), a forma ‘ba-quissas” reduplicada (em ‘ba-quissas ba-quissas”) corresponde ao etcetera. Isolado, poderia ser traduzido “as outras coisas”, “os outros fulanos”. Em síntese, ba- é um marcador de plural de origem africana. É usado antes dos nomes próprios para designar o fulano e os seus amigos ou familiares (ba-Ntoni, por exemplo) e antes de nomes comuns para expressar o indefenido (ba-kadernus, ba-kusas). É comum ouvir-se ba-kins, como em baquins ku bai luta? ‘quais são os que foram à luta?’ Diante da quase inexistência de registros de fases anteriores do crioulo, para se ter alguma ideia de suas formas antigas, é necessário estudar variantes mais conservadoras da língua atual, no caso, a variante da Casamansa. Observando as formas do crioulo tradicional, podemos fazer um pouco de reconstrução linguística e, com isso, recuperar um pouco de formas antigas. Assim, no nível fonético-fonológico notamos, em primeiro lugar, que o “lh” de “filho” e “velho” evoluiu para “dj”, dando fidju e bedju. O som “x” de “chiqueiro” e “chuva” virou “tx”, como em txikeru e txuba. Como se pode ver em bedju e txuba, o “v” se transformou em “b”, fato que ocorre também em algumas palavras do português rural (sobaco, barrer, trabissero). O “z” português vira “s”, como em sagaya (< azagaia) e fasi [‘fasi] (< fazer). Essas características tendem a desaparecer no crioulo aportuguesado, e no crioulo atual em geral. No caso da estrutura silábica, há uma tendência à simplificação na direção da sílaba ótima CV, já exemplificada na própria palavra que designa a língua, ou seja, kiriol que convive com a variente kriol e até kriolu, como já ocorre hoje. São comuns palavras como sukuru (escuro) e garandi (grande), entre outras. No nível sintático o crioulo antigo apresentava (e o basiletal atual ainda apresenta) uma série de especificidades. A reflexividade, por exemplo, era indicada pela construção nha cabeça (minha cabeça) como se pode ver em (3). Há uma forma tônica do pronome (entre parênteses) e uma átona, como em francês. (3) (a) ami, N mata ña kabesa ‘eu me matei’ (b) abó, bu mata bu kabesa ‘tu te mataste’ (c) el, i mata si kabesa ‘ele se matou’ (d) a nós, nó mata nó kabesa ‘nós nos matamos’

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(e) a bós, bó mata bó kabesa ‘vós vos matastes’ (f) elis, é mata sé kabesa ‘eles se mataram’ Um fato que deve ter chamado a atenção é que a forma simples do verbo crioulo foi traduzida pelo nosso pretérito. Como veremos no capítulo sobre as narrativas orais, isso tem a ver com o momento de referência da narrativa. Para nós é o momento da própria narração. Para o crioulo (e muitas línguas étnicas africanas), a referência é o momento do próprio evento, para o qual se usa o verbo em sua forma simples. Como para nós o momento do evento é passado em relação ao momento da narração, a forma simples do verbo crioulo deve ser traduzida naturalmente pelo nosso pretérito. Uma outra característica de um crioulo mais arcaizante são os ideofones, ou seja, formas que só ocorrem com determinado tipo de palavra, geralmente para intensificação. Em (4) temos alguns exemplos (os ideofones estão grifados). No crioulo aportuguesado, já se diz também muito sukuru, muitu limpu etc. (4) (a) branku fandan ‘muito branco’ (b) pretu nok ‘muito preto’ (c) limpu pus ‘muito limpo’ (d) sukuru tip ‘muito escuro’ (e) burmedju uac ‘muito vermelho’ O crioulo apresenta também variação regional, bem mais fácil de ser descrita do que a diacrônica. No caso do crioulo português da costa ocidental africana, as variantes que se notam em primeiro lugar são a caboverdiana e a guineense. Alguns autores consideram-nas como pertencentes à mesma língua, dada a grande semelhança e, até certo ponto, a intercompreensão que há entre ambas. Mas, além da questão guineense-caboverdiano, temos as duas variantes do crioulo continental faladas na Guiné-Bissau e na Casamansa, como demonstrou Rougé (1986). Vejamos alguns exemplos desse autor.

Casamansa kebe meste sebe

Bissau kibi ‘caber’ misti ‘é mister, querer’ sibi ‘saber’

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morde kore ferbe tese

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murdi ‘morder’ kuri ‘correr’ firbi ‘ferver’ tisi ‘trazer’

Também Barros (1897-1902) fornece alguns exemplos. Ei-los:

Cachéu des kriatuda purmedu kaá genti (guenti)

Bissau/Bolama deus ‘Deus’ kriatura ‘criatura’ purmeru (primeiro) kabá (acabar) djenti (gente)

Por fim, Wilson (1962: VII) afirmou que “no interior da Guiné existem três dialetos principais do crioulo. São eles o de Bissau e Bolama, atualmente muito desenvolvido, o de Cachéu e São Domingos (e Ziguinchor [Casamansa]), falado principalmente ao longo da fronteira norte até a costa, e o de Bafatá e Geba”, mais para o interior. Além da variação diacrônica e da diatópica, o crioulo guineense varia também diastraticamente, o que em geral se chama de variação social, uma vez que tem a ver com o nível socioeconômico e/ou cultural dos falantes. Isso a comunidade de fala guineense é um continuum, que vai desde as línguas nativas até o português lusitano, passando pelo crioulo nativizado, o crioulo aportuguesado e o português acrioulado, que é o português guineense propriamente dito. Só as extremidades do continuum são inteiramente estranhas uma à outra. Mas, como o todo faz parte de uma comunidade de fala em que a interação entre falantes de diversas línguas sempre se dá de algum modo, temos que reconhecer estágios intermediários entre as duas. Três desses estágios são variedades do crioulo (aportuguesado, tradicional, nativizado). Os extremos são, de um lado, o português; do outro, as línguas étnicas africanas. O crioulo aportuguesado contém muitos empréstimos lexicais do português e, às vezes, até expressões inteiras nessa língua. Vejamos o exemplo (5). A tradução nem é necessária, uma vez que qualquer falante de português pode entendê-lo.

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(5) Olá ña parentis. Alê-nu li. A nos i prujetu Guiné-Bissau CONTRIBUTO. A partir di aos no kumsa un novu faze na forma di komunika ku bôs ke sta na tera, pabia konsiensializason, sensibilizason i muito importanti na formason dun novu mentalidadi ke no misti pa tudo gineensi. Purke, ora ke no forma homin novu pa no tera, homin sin qui vísius d’antigamenti, homin konsienti de si papel na sociedadi, nô pudi pensa realmenti na grandi disenvolvimento ki tudu gintes ta papia pa Giné, ma ki i difícil konsegui sin ki formason di mentalidadi.

O crioulo tradicional, chamado localmente de “kriol fundu”, por seu turno, seria incompreensível aos não iniciados. Vejamos um provérbio (ditu), tirado da mesma fonte: (6) Kin ku misti pis, i ta ba modja rabada na iagu Todos os morfemas provêm do português. No entanto, sem uma tradução ou explicação, nenhum falante dessa língua entenderia o provérbio. A etimologia de cada lexema é a seguinte: kin < quem; ku < que; misti < é mister (= quer); pis < peixe; i < ele (“i” não significa “é”, como pode parecer em alguns textos); ta < tá ( O1 (dibinha, dibinha!) i i O2 O3 (cabás intchi os) i i O4 O5 (confirmação do acerto ou não) i i

congraçamento, confraternização, risadas (comunhão) o gráfico, pode-se ver o papel de cada participante no fluxo interlocucional. Em um primeiro momento, o emissor ou falante (F) propõe a adivinha, e o receptor ou ouvinte (O) a recebe. Nesse momento, o ouvinte passa a exercer o papel de F, só que F de nível 2, ou seja, F2, ao passo que quem tinha sido falante no primeiro nível, passa a ser ouvinte, de nível 2, ou seja, O2. E assim sucessivamente, até o desfecho final do jogo ou do diálogo. Uma outra vantagem da representação gráfica supra é que deixa bem claro que a adivinha é um ato de interação comunicativa, embora um ato de interação comunicativa sui generis. Não se trata de uma sequência de per-

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guntas e respostas, no sentido da fala teleológica, mas de um falar por falar, não importando o conteúdo do que se fala, uma vez que se trata de fala comunial. O que interessa é que a adivinha se sobressai entre as manifestações da literatura oral guineense (e africana em geral) pelo fato de, como elas, ter por objetivo reafirmar laços de solidariedade comunial, mas, diferentemente delas, por envolver o interlocutor ativamente. Talvez seja por isso que são justamente as crianças que gostam mais do jogo da adivinhação, isto é, por ser ele claramente de natureza lúdica.

Observações finais É importante observar que a base de tudo é a terra, no sentido de globo terrestre, como ecossistema maior, visão contemplada pela adivinha (8). Nesse ecossistema global, temos que procurar ecossistemas menores, como o guineense, por exemplo. É o espaço, o território (que serve como habitat para as diversas espécies de animais) que permite a convivência entre membros de cada uma delas. Nesse meio ambiente, todos os seres vivos têm direito à vida. Não existe a priori superioridade de nenhum deles sobre os demais. A visão ecológica do mundo é holística e de longo prazo. Pelo holismo, fica claro que não é legítimo mantermos o antropocentrismo. Afinal, nós dependemos de muitas outras espécies vivas, tanto plantas como animais. Sem elas nós próprios podemos desaparecer. Pela visão de longo prazo, somos levados a ver que devemos preservar o máximo de espécies vivas possíveis, não agredir a natureza. Do contrário, estaremos criando buracos no casco do barco em que singramos o mar da vida. A existência de relações desarmônicas é inevitável. No entanto, devemos procurar sempre a harmonia com a natureza, mesmo porque não temos outra alternativa. Os resultados virão de qualquer modo, quer queiramos quer não. Não é correto afirmar que é preciso proteger a natureza, atitude que, em si mesma, já revela antropocentrismo. Ela não precisa de nossa proteção, uma vez seguirá seu curso conosco ou sem nós. A verdade é que não devemos destruir no meio ambiente aquilo que é fonte de nossa subsistência, embora o estejamos fazendo em uma atitude suicida. Enfim, a natureza irá sempre em frente. Pelo menos por enquanto, está em nossas mãos a decisão de seguir com ela (permanecer nela). Do contrário, desaparecemos como espécie.

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As adivinhas crioulo-guineenses mostram esse inter-relacionamento entre seres e meio ambiente de modo exemplar. O que é mais, um relacionamento muito mais harmonioso do que o que a civilização capitalista ocidental tem com ele. A perturbação foi levada ao ecossistema guineense, em particular, e ao africano, em geral, justamente pela expansão desse sistema capitalista. O que havia antes de sua chegada era uma perfeita harmonia entre organismos e meio ambiente. Justamente por isso o jogo de adivinhas tende a desaparecer da ecologia guineense, no bojo da globalização, juntamente com tudo que representa a cultura legitimamente africana. O problema é que para os africanos sobram apenas migalhas, quando não pura e simplesmente miséria e lixo. De qualquer forma, a vida continua. Como o africano em geral é um seguidor da filosofia do carpe diem (Alleyne 1989) valoriza muito atividades lúdicas. A brincadeira da adivinhação é uma delas. Tudo isso porque a vida continua.

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X. A ANTROPONÍMIA

Certa feita, uma professora do Centro de Estudos Brasileiros de Bissau notou que era comum os alunos não responderem à chamada com o esperado “presente”, mesmo estando presentes. Quando ela perguntava por que não respondiam, diziam que não tinham sido chamados. Na verdade, ela os chamara pelo nome oficial, aquele que consta nos documentos. O problema é que eles eram conhecidos na comunidade só pelo que, entre nós, é denominado apelido. Isso mostra que os nomes que valem efetivamente nas tabancas (bairros tipicamente africanos, aldeias etc.) são esses apelidos, não os nomes oficiais, geralmente portugueses. Existe uma espécie de clássico da antroponímia da Guiné-Bissau, ou seja, Carreira; Quintino (1964), que será citado mais abaixo. Couto (2000) já tratou de questões antroponímicas guineenses, sobretudo a hipocorística, embora de uma perspectiva eminentemente formal. A finalidade era examinar a estrutura fonológica dos hipocorísticos que, como veremos, são basicamente dissílabos e, em geral, com sílaba simples do tipo CV (consoante + vogal), lembrando a linguagem infantil. Aliás, isso parece ser uma tendência geral nas línguas do mundo. No português, por exemplo, poderíamos dar exemplos como os seguintes, entre inúmeros outros: Cacá < Carlos, Caco < Carlos, Dudu < Edu < Eduardo, Isa Djoca), Dino = Ricardino Jacinto Dumas Teixeira, Caíto = João Carlos Freitas de Barros (via Carlito), Sidó = Sidónio Pais Para alguns apelidos/hipocorísticos de nosso corpus, não dispomos do nome completo correspondente. No entanto, o princípio de formação deles é aproximadamente o mesmo dos imediatamente anteriores. Tchiku ( Pedinho. Partindo daí, teríamos uma evolução normal, ou seja, tomando-se a sílaba tônica e reduplicadando-a. Quanto a Kin, ocorreu também sob as variantes Kinkin e Kinzinhu. Alguns apelidos/hipocorísticos são curiosos, uma vez que têm a ver com partes de algum componente do nome completo. No entanto, é difícil estabelecer uma regra fonética de derivação, como nos demais casos mostrados até aqui e no que vem logo depois.

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Petras = Pedro Mendes, José Bacar = José Carlos Cocamáro, Maio Coopé = Mário Silva, Mário Djibol = Mário Silva Suculuma Barbosa, Nú Barreto = Manuel Barreto da Costa Como se vê, Petras parecer ser derivado mais da forma latina de que provém Pedro, ou seja, “petra” (pedra). José Bacar toma o primeiro nome, José, na íntegra, seguido de apenas a primeira sílaba do segundo. Maio Coopé parte do primeiro componente do nome completo, enfraquecendo a consoante medial, mediante uma semivocalização. Quanto a “Coopé” é abreviação de “Cooperante”, tanto que ele é conhecido também domo Maio Cooperante. Mário Djibol também resulta da adjunção de um nome arbitrário (Djibol) ao primeiro componente (Mário). Em Nú Barreto temos um processo semelhante ao de Maio Coopé, ou seja, alteração no primeiro componente do nome completo. A diferença está em que o segundo componente do apelido (Barreto) aparece como existe no português padrão, não alterado. Alguns apelidos são formados de partes de mais de um dos componentes do nome completo, em geral a primeira sílaba. No entanto, pode-se formá-los combinando outras partes desses componentes. A seguir, temos alguns exemplos. Aldença = Alberto Dença, Budja = Bubacar Djaló, Cabar = Carlos Barroso, Cadogo = Carlos Domingos Gomes, Carbar = Carlos Alberto Teixeira de Barros, Nifeco = Nicolau Ferreira da Costa, SKA = Samper Katomuar Isso não é gratuito. Os guineenses apreciam bastante esse tipo de abreviação. Na verdade, esses nomes lembram as siglas que, em outros contextos, sobretudo no âmbito administrativo e comercial, ocorrem em grande quantidade. CICER = Companhia Nacional de Cervejas e Refrigerantes INDE = Instituto Nacional para o Desenvolvimento da Educação INEP = Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Jovale = João Mota + Valdir Medina + Leopoldo Amado (grupo literário de 1979) Ku Si Mon = Fafali Koudawao + Abdulai Silá + Teresa Montenegro (nome de editora)

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SOCOTRAM = Sociedade Comercial de Transformação da Madeira UNAE = União Nacional de Artistas e Escritores da Guiné-Bissau As siglas são tão comuns no país que Jean-Michel Massa incluiu várias dezenas delas em seu Dictionnaire bilingue portugais-français Guinée-Bissau vol. I (Rennes: GDR 817 - EDPAL / UHB, 1996). Quando conversamos com os guineenses, temos a impressão de que eles consideram essas abreviações como verdadeiras palavras, o que daria uma certa razão a Massa. Voltando aos apelidos propriamente ditos, existem também aqueles que parecem hipocorísticos na forma fonológica, mas que não são tirados do nome próprio, portanto, não são hipocorísticos propriamente ditos. Kote = Norberto Tavares Carvalho, Huco = João José Silva Monteiro (var.: Huco Monteiro), Itchiana = Maria Marques Ribeiro, Pantcho = Rui Borges, Didinho = Fernando Casimiro, Beto = Carlos Vaz, Tundu = Adriano Fonseca, Sandor = Armando Salvaterra, Tchuda = Herculano Costa, Ticha = António Aly Silva, Samaty = Diamantino Barbosa Monteiro, Lilison = Januário Tomás Sousa Cordeiro, Yachine = Bacar Banora, Cancan = António Oscar Barbosa Como já foi avançado acima, existem ainda os nomi di torosa, entre outros. Entre os alinhados por Jorge Ampa (1991), contam-se os seguintes (infelizmente, não temos nomes de manjuandade): Manomi = vítima de uma difamação (< mau nome), Kumpridu = pessoa muito alta e magra (< comprido), Nkurbadu = corcunda (
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