Imagens: tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral

May 27, 2017 | Author: Lavínia Garrau Lencastre | Category: N/A
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Imagens: tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral

Maria Aparecida Junqueira Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Resumo:

Abstract:

Este trabalho reflete sobre a construção poética de Ana Luísa Amaral. A partir da análise de poemas do livro A Génese do Amor, procura apreender como a poesia dessa poeta se (des) tece na tradição poética ocidental. Por meio de imagens que capturam o real em metamorfose, por meio de um sujeito poético que se revela e esconde em situações e/ou marcas de linguagem, por meio da tensão que se estabelece ao espacializar em imagens tempos que se contradizem, nota-se o seu interrogar poético em sintonia com o seu tempo histórico.

This work is concerned about Ana Luísa Amaral´s poetry, and its unique constructive form. This study looks for its modus operandi, among those ones of the occidental poetic tradition. Her poetry seems to be in touch with the contemporaneous period for three reasons: a) it captures the real by means of metamorphosis; b) it reveals the lyrical subject through some events, and signs of language; c) it gives rise to the tension by means of a kind of contradictory temporal spacialization.

Palavras-chave:

Keyword:

Ana Luísa Amaral - Poesia contemporânea Tradição lirica.

Luísa Amaral - Contemporaneous poetry - Lyrical tradition.

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E Deus criou o homem à sua imagem à imagem de Deus ele o criou Macho e fêmea ele os criou Haroldo de Campos, Bere’shith - A Cena da Origem

Talvez assim tivesse algum sentido a gênese do amor Ana Luísa Amaral, A génese do amor

São tantas vozes de amor! Ouço silenciosa, inquieta, vendo imagens imaginárias de um tempo longínquo. Amor derramado entre poetas e musas – imagem a escorrer pelo presente. Uma Cena se busca, a da Origem, mas a Gênese é a do Amor. Ana Luísa Amaral, poeta, professora da Universidade do Porto, delineia, em A génese do amor, seu livro de 2005 e o décimo de sua produção poética, topografias adensadas pelo som, ritmo, imagem. Mostra uma relação amorosa com a poesia, com a escrita, derramando o amor tema, quase indizível, em construções poéticas que espacializam tempos e entreabrem diálogos com a tradição literária. Mira a poeta a produção de um grande poema – a gênese do amor - isomórfico a originais camonianos, dantescos e petrarquianos. Um poema, no entanto, autônomo, original, feito de fragmentos – fragmentos amorosos. Mas o que é topografia ou o que são topografias? Pergunta-se para melhor se aproximar do que a poeta mira ou tem em mira. Insiste Ana Luísa Amaral, com poema feito prólogo, intitulado “Topografias em quase dicionário”, para introduzir dados prévios elucidativos sobre a gênese. Um programa, um modo de olhar, um mapa sedutor, a indiciar a palavra como corpo. Poema que topografa, num percurso exploratório sensível, a tópica do Amor, assediando-a de modo programático em seus modos mais inçados do poético. São balizamentos a demarcar a rota do Amor para chegar – talvez – a “algum sentido”, a uma cosmologia, a uma transmutação da escrita amorosa no corpo da poesia. “Topografias em quase dicionário” (AMARAL, 2005, p. 9) funciona estrategicamente como um paradigma operacional a iluminar os dezoito poemas e o epílogo, não por coincidência denominado “A gênese do amor”. Título do livro e do epílogo, A gênese do amor repropõe ressonâncias de um cantar o canto da tradição: criação e escritura. Como “gênese”, sugere problematizar a origem, traz em si o signo do começo e recomeço, palimpsesto de cantares desde o Primeiro Livro – Gênesis -, cuja história relata olhares e ofertas. “Reaprender o mundo / em prisma novo” (p. 9), anuncia o poema cartográfico e indicia seu fazer poético sobre um mundo passado, sinalizado pelo tempo

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presente “em prisma novo”, tempo de agora, que se sabe contaminado por vozes, imagens e paisagens. A escritura põe em cena, já no poema prólogo, duas vozes articuladas em fontes gráficas diferentes. Encenam-se vozes, diálogo ambíguo entre o Eu e o Outro. São índices de construção desta gênese do amor, faces que se metaforizam em musas e poetas a percorrer todos os poemas. Uma reversibilidade especular entre sonho e pensamento, desejo e permanência, engenhosamente construída no encontro dos olhares: “e em teus olhos verei / amada alma, // o centro dos meus olhos:” (p. 31). O Eu e o Outro, a musa e o poeta, que de dois faz no amor, a poesia um: “Imprime a fogo / em verso, / no que queiras, / o que além de infinito –“ (p. 53). Neste poema bastidor “Topografias em quase dicionário”, nota-se também, participando do mesmo método de construção, a junção de traços da tradição e da modernidade: “Sereia” e “Cisne” tematizam a poesia como canto e silêncio. É do alto do poema, também da primeira estrofe que os versos enfatizam um tipo de harmonia: “pequena bátega de sol a resolver-se / em cisne, / sereia harmonizando o universo” (p. 9). Enquanto da sereia o cantar sedutor pode fazer sucumbir, do cisne, o silêncio faz ressoar uma poesia que retorna ao nada para expressar o seu oposto. Ambiguizam-se sereia e cisne em dupla alternativa: “Pode mesmo ir buscar o cisne / ao verso acima / e colocá-lo aqui, sobre este verso, / agora, / ou desorganizar um terço / da sereia e transformá-la / em ilha resumida / de uma paz qualquer” (p. 10). Sereia transformada em ilha, de sujeito a objeto, sem deixar, contudo, de indiciar tempos transmudados no cantar poético. Outra estrofe ainda demarca no mapa o itinerário: “Mas tudo o que se sabe / repete-se em trajecto de sereia, / enigma de sereia / transmutada em cisne” (p. 11). O sujeito lírico sabe dos ecos: “Tudo o resto: inventado / há mais de três mil anos,” (p. 13); versos que ecoam no próprio poema: “Tudo o resto: invenção / mais que plasmada, / multiplicados séculos / por cem” (p. 14). A tradição é um tempo-espaço aberto que pede ao poeta faro criativo para transformar o passado, nutrir-se dele, a fim de gerar o ato criador. São ecos não redundantes, mas ressonantes que o eu lírico apreende e transmuta, incorporando um tempo noutro, no qual faz disseminar a sua voz: “Não interessa onde / estou” (p. 10), que o poema repete em eco, buscando um dicionário novo: “Onde se escondem as palavras / todas? / Sei que preciso de uma forma nova, / que precisava de palavra nova / para a moldura, ou cor” (p. 13). O mapa de palavras, legado da tradição, é rota permanente que o eu lírico reconhece e com ele recomeça, também num duplo registro – sereia e cisne -, a delinear imagens de amor transmutadas da lírica ocidental.

Sensível, portanto, à sua atualidade, a poeta mostra, nesse poema prólogo, seu roteiro poético pessoal, inscrevendo no corpo da poesia a rota do Amor. Sensualmente, o eu lírico, em diálogo com o Outro, par amoroso, caligrafa linhas, esboçando sua topografia: “Os teus dedos traçaram / ligeiríssima rota no meu corpo / e a curva topográfica / sem tempo / aí ficou, como sorriso, ou foz / de um rio sem nome” (p. 9). A rota cantada é coisificada no “quase dicionário”: “Traços rimados, círculos / em fogo, fragmentos com que inundam / as palavras já escritas” (p. 13). O sujeito lírico, consciente do processo, explicita o seu método: (...) Colo nelas o selo deste mar e sonho que são estas as palavras. Nesta manhã de sol, olho-as assim, sabendo-as de algum tempo, quase templos sagrados em que pinto o dia a cores, que nem herdadas de mil gerações (AMARAL, 2005, p. 14)

Apreendida a rota, experimentada também por meio do olhar - “Era essa aprendizagem / de um olhar / que me faltava agora” (p. 13) -, o eu poético traça, em metalinguagem amorosa, sua própria rota nesse corpo textual, inscrevendo seus dedos, deixando suas marcas. São refinados diálogos poéticos entre poetas e musas: Dante e Beatriz, Camões e Natércia, Natércia e Catarina, sem esquecer Laura de Petrarca. Assim, o sujeito lírico aponta para o que ficou resplandecente no corpo da poesia “mais de quatro mil anos” (p. 14). A poeta, por sua vez, confere a rota, despreza a rigidez da forma impressa em rimas e métricas, e inscreve no poema a mobilidade do diálogo ou réplica, traduzindo, em versos próprios, voz e ritmo de poetas e musas, conforme a tradição e à luz de seu tempo. Misturam-se vozes de poeta e musa, dificultando identificar o eu e o outro da fala. Mas o que isso importa, se a ênfase dada é para indagar o que é o amor? Ademais, para desvelar, nas variações de poetas e musas, a linguagem da poesia construída em paisagens sonoras e visuais a mostrar o seu fazer, a revelar a sua gênese, a intensificar o coro de vozes de poetas que entendem a poesia como palavra lapidada? Pedra de toque, ao toque dos dedos da poeta, “Camões fala a Petrarca” intitula-se o poema que abre a seção “a gênese do amor”. São ressaltadas as semelhanças e diferenças, traduzidas pela temática do amor e pelos contextos sócio-culturais. Isto é, Petrarca se faz presente na lírica camoniana seja por meio das imagens, seja das tópicas, mas também se divergem, visto que em Camões sobressai uma intelectualização do sentimento, sutilmente marcada

pelas grandes contradições. Nos versos a seguir, Camões afirma: De ti tardei a tradição e o tempo Só não herdei a voz Essa me é feita de paragens outras, de cabos que passei, mas que são meus De ti herdei talvez artes de amar, mas numa língua outra: ofícios mais difíceis de viver (AMARAL, 2005, p. 19).

É a poesia enquanto guardiã da história, do amor e da vida que se quer exaltar. Na voz de Camões, o sujeito poético recupera uma raiz do amor tecida em arte de sentimento e engenho. Nos primeiros três poemas que enfatizam Camões e Natércia, observamos, no primeiro, intitulado “Camões fala a Natércia”, um amor sublime e passado, que os versos “Devagar, minha amada, / fomos ficando amigos” (p. 21) evidenciam, mas cuja chama de amor o sujeito lírico ainda revela ao manifestar: “No teu olhar brilha ainda / um perfume, mas tão longe, / como num paço velho / onde declamam éclogas, / ou ecos de canções” (p. 21). Sintetizam, ainda, um amor de posse os versos: “E sei que te matei / por amor dentro, / pela vaga memória dos teus olhos, / desde que, de repente, // os meus também / ficaram só antigos” (p. 22). A réplica, no segundo poema nomeado “Natércia fala a Camões”, abre espaço para a voz da Musa calada há séculos, que expõe seu desejo em tensas antíteses, como nos versos: “Corre, embora, por mim, / brando e suave, / meu rio que ainda amo / em mil tormentas” (p. 23). Natércia não só expõe o seu desejo, mas também mostra ao outro, seu par, seu desconhecimento do objeto amado ao hipotetizar: “Se soubesses do fio / com que teço de luz / o desamparo / saberias também / que me quisesses / o quanto eu desejara” (p. 23). Responde, assim, em eco, ao eu lírico do poema anterior. Além disso, nos versos “Eu morro e tu és vivo, / meu brando e cedo amor, / eu morro de cansaço / de te querer” (p. 24), reafirma, na sintaxe e na semântica, o par contraditório que compõe o poema, e expressa: “E por isso te peço / que não chegues, / te ouso pedir / que inundes os meus sonhos” (p. 24). É na rota dos dedos que o encontro se dá, no terceiro poema intitulado “Diálogo entre Natércia e Camões”. O sinal de travessão indica a voz que

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assume a fala, e o poema se faz de sonho lânguido: “- Partilhemos a taça / onde transborda / a água mais perfeita / da cisterna melhor // E como se os meus dedos / navegassem, / em brilho leve, / sobre os teus cabelos, / eleva-me à doçura / de algum céu” (p. 25), ao que o outro responde: “ - Como se o Tejo / se rompesse em ondas / ou o sulcasse uma ternura / de astros, / assim te amei, / me foste branda musa” (p.25). Enquanto ainda recorda, o amante, o passado, a musa responde-lhe no instante do diálogo: “ – Dou-te o presente, / meu amado // Chega” (p. 26); ao que consente o amado, respondendo: “ – Agora me navegas / como sempre, / rompe-me agora / o verso mais ardente / a memória / de ti” (p. 26). E em síntese amorosa, embora travessões demarquem, a cada vez, a fala: “ – Com tais presentes / me fez Deus / senhora / Com tal presente / me tens tu agora” (pp. 26-27); a que o amante responde: “ – E não sei se sou eu / a tua casa, / se és tu quem mora / em água eterna / em mim” (p. 27), as vozes ecoam uníssono desejo no canto, no pensamento, no sentimento. Partilham os amantes “do mel / e do destino” (p. 25) em taça em que o amor transborda. Ana Luísa Amaral, em A génese do amor, vai-nos envolvendo na questão de sempre – o que é o amor. Busca, em seu laborar, outra “forma” para responder tal questão em transformação renovada, a fim de descrever a trajetória, marcar o agora de seu tempo e, com rota nova, refazer este “círculo de fogo”, que a todos nos atinge. Procura a poeta apreender o amor em palavra feita quase-signo e tentar dizer sentimento quase indizível. Outro poema “Diálogo entre Camões e Natércia” (p. 33) pode ser tomado como continuidade dos “diálogos” anteriores que realizam o desejo de Natércia, tão bem registrado nestes versos de “Natércia fala a Camões”: “E por isso te peço / que não chegues, / te ouso pedir / que inundes os meus sonhos” (p. 24). O encontro, anunciado no poema “Diálogo entre Natércia e Camões” (p. 25), é reafirmado no poema “Diálogo entre Camões e Natércia”, cujos primeiros versos constroem-se em antíteses: “ – Chega, sem me chegares, / vem, sem partires, / meu brando amor / que, ao desejar, / sonhara // E não fales de mim: / fala comigo” (p. 33). Insiste Natércia, mais adiante no mesmo poema: “Seduz-me novamente, / traz-me versos / em que queira sentir / que em ti navego“ (p. 34). Os últimos versos deste poema se juntam em diálogo especular, retomando o método de construção dos poemas anteriores de A génese do amor, colocando-se ora como eco dessa tradição lírica, ora deixando ecoar em si a tradição. A chegada, o encontro, dão-se em sonho, eterno presente cantado, que se realiza no ardor da espera e no êxtase do encontro. Amada e Amado cruzam-se em vozes, como nos versos:

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(...) Corre, brando e sereno, amor, amado, que eu saberei saber quando me queres - Corre por mim, e chega onde chegares - Se soubesses do fio - Se soubesses de dentro do amor - Essa vaga memória dos teus olhos - Seria só olhar. E chegaria (AMARAL, 2005, p. 35).

A profusão de travessões, entretanto, diminui no poema intitulado “Terceiro diálogo entre Natércia e Camões” (p. 37). Fala e desejo vão se esvaindo e transformando-se em eco. Não se perde, no entanto, a exaltação do amor, uma vez que o par amoroso se une em única voz, como se nota em construções espelhadas na voz dos amantes: “ – Quando o meu pensamento, / minha amada, / era o teu pensamento, / em atino e temperança / de bem querer // Ou fui eu que sonhei / esse momento “ (p. 37), ao que a Amada responde: – Quando o teu pensamento, amado meu, era o meu pensamento, e ardia em brilho, como sarça ardendo Ou fui eu que ao sonhar esse momento (...) E o que via de ti, amor, amado, era a mim própria, paralela em amor, como num espelho por onde o teu olhar (...) e eu nele assim cativa, meu amor - E eu nele assim, cativo (AMARAL, 2005 pp. 37-8).

Olhar sedutor atrai a ambos, Amada e Amado, tornando-os cativos. Convém observar, ainda, que neste poema é explícita a intelectualização do amor, reafirmada pela palavra “pensamento”, que assim aparece pela primeira vez. Se podemos dizer que fala e desejo se esvaiem, é porque dão lugar a essa razão que potencializa o poema em imagens seja dos

amantes que se espelham, seja das próprias palavras em espelhamento, seja das vozes em reversibilidade. Isto não significa dizer ausência de sentimento, há na construção dos versos uma tênue fronteira entre sensibilidade e razão que condensa a tópica do amor em refinadas construções que revelam a pele da palavra, feita assim para se poder sentir a rota dos dedos quase mágicos dos poetas no corpo da poesia. Talvez, seja por isso que, rumando para o final, quatro outros poemas, intitulados: “Camões fala outra vez a Natércia” (p. 47), “Natércia responde a Camões” (p. 49), “Fala Camões mais uma vez” (p. 51) e “Fala Natércia, no final” (p. 53)”, vão operar falas e respostas, distanciando-se dos diálogos, cruzamentos diretos das falas e, portanto, “tocar de corpos” (p. 53), para debaterem-se com a impossibilidade do amor, cabendo à voz feminina cravar a sua última fala em perguntas: “De nada foi então / esse sossego, / esse tocar de corpos / brando e leve? // O que um dia me foi / devo esquecê-lo, / ou fingir que era Inverno / nessa noite?” (p. 53). Cabe, ainda, ao feminino expressar a consciência do ser e do fingir nesta trajetória, cuja permanência só é possível se se “Grava em palavra” (p. 53), se se “imprime a fogo / em verso,” (p. 53). Esvai-se a fala, ademais, os dois últimos poemas, afora o epílogo, denominados “Última Meditação de Camões (I) e (II) (p. 55 e 57), são réplicas de si mesmos, nos quais o sujeito lírico se vê analisando o próprio poetar. Neste sentido, declara Camões na Meditação (I): “Não gravarei / nem escreverei a fogo / o que quero lembrar, / porque preciso (...) Assim eu sou agora, / assim me sinto // E não engenho mais // Pela palavra, / que me seja a lembrança / o meu desejo“ (pp. 55-56). A Meditaçao (II), de modo concentrado e conciso, revela equivalência entre palavra e musa: “Nasceste-me sem musa” (p. 57) afirma Camões para reafirmar logo a seguir nos versos: “Foste, palavra minha, / o mantimento / que trouxe de jornada, / e alimentaste a gênese de tudo” (p. 57). Camões finaliza o poema, dirigindo-se à palavra, equação precisa e condensada de seu poetar, como dão a conhecer os versos: “Dá-me outra vez, / em papel brando, / o mundo: // Eu: queimando por versos / um segundo, / tu, por um som, / ardendo eternidade” (p. 58). Ana Luísa Amaral capta o método poético camoniano e o singulariza no seu poetar. O último poema “A Gênese do Amor” (p. 59), ao retomar o título do livro, não dispõe um fim, mas um recomeço, já proposto pelo desejo e meditação de Camões: “Dá-me outra vez, / em papel brando, / o mundo:” (p. 58). Esforço de definição na indefinição, o poema, mais uma vez, busca expressar o inapreensível, o enexprimível. O sujeito poético, na tentativa de apreender sentidos para A génese do amor e simultaneamente reter o momento genesíaco, coloca-o em equivalência nos versos: “Talvez um intervalo cósmico / a povoar, sem querer a vida: / talvez

quasar que a inundou de luz,” (p. 59). Entretanto, declara logo a seguir: “Quasar é pouco, porque a palavra rasa / o que a pele descobriu. E a pele / também não chega: / pequeno meteoro em implosão” (p. 60). Quasar, palavra, pele, inexprimem o todo, o que vai dentro do “sentirpensar”, do “pensarsentir”. Insiste, ainda, o eu poético em traduzir esta gênese em outros versos, mais ambíguos porém: “Estátua em lume, talvez, / (...) e uma visão, talvez,” (p. 60). O que sobra, portanto, é sempre um recomeçar incerto, indeterminado. Os quasares remetem ao espaço infinito de muita luz, ao recomeço, tal como a palavra poética, quase-signo, e a pele sensível, rota infinda. Enfim, possibilidades que se renovam sempre na matéria densa da poesia. Os poemas que compõem prólogo e epílogo, além de se espelharem como nos versos: “Talvez só este / abismo. / Interrompo no mapa / o precipício?” (pp. 14-15), e em “Talvez um intervalo cósmico / (...) talvez quasar (...) / Estátua em lume, talvez” (pp. 5960), tratam “precipício” e “exaltação da musa” em suspenso, a fim de que nesse poetar vozes de musas e poetas se encontrem para uma encenação nova do amor. Encenação que se faz descobrindo a escrita em palimpsesto na tradição, mostrando-a como escritura poética em permanente transformação e carregada de sutileza e afeição. Essa escrita apresenta-se como espaço híbrido, múltiplo, um entre-lugar que acolhe em verso a vida, suas “paisagens de dentro” (p. 11), e “a reteve, suspensa, / pelo espaço – “ (p. 59), declara o sujeito lírico com extremo amor ao verso. A génese do amor de Ana Luísa Amaral tensiona, assim, o entreter de tempos passados no presente, porque se desfaz a estabilidade de tempos fixos. Busca-se, outra vez, de forma amorosa e lúdica, apreender o “amor” como um “cantar em processo”, cujos tempos se metamorfoseiam em espaços. Espacialidade poética que parece confirmar o que diz Blanchot: “nunca existe como uma coisa, mas sempre ‘se escapa e se dissemina’” (B L A N C H O T, 1984, p.34), não se separa da temporização. Recorda também o léxico de Derrida: intervalização, distanciamento, ou melhor, nas próprias palavras do autor: “esse intervalo constituindo-se, dividindo-se dinamicamente, é aquilo a que podemos chamar espaçamento, devir-espaço do tempo ou devir-tempo do espaço (temporização)” (D E R R I D A , 1991, p. 45). Em A génese do amor, o espaço se apresenta aberto a significações, com um arranjo particular, no qual a linguagem se reinventa poética, revelando relações com o campo do imaginário, evidenciando um tempo-espaço revivido, rememorado da paisagem literária. Essa “matéria insensata” (p. 46) dá origem a imagens - “no traço dos teus dedos” (p. 15) -, que iluminam a topografia do amor, rota no corpo da poesia. A poeta recolhe fragmentos de discursos amo-

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rosos de outros, dentre eles: Camões, Dante, Petrarca, e inventa os seus para singularizar sua “rota” e desenhar sua imagem de A génese do amor. Para encerrar essas reflexões, lembro-me de Roland Barthes e de seu Fragmentos de um discurso amoroso. Escolho entre suas figuras, duas: AMAR O AMOR e AMOR INEXPRIMÍVEL. Para tratar de AMAR O AMOR, Barthes apresenta o seguinte argumento: ANULAÇÃO. Lufada de linguagem durante a qual o sujeito chega a anular o objeto amado sob o volume do amor em si: por uma perversão propriamente amorosa, é o amor que o sujeito ama, não o objeto. (B A R T H E S , 1984, p. 23)

O poema “Diálogo entre Natércia e Laura” (p. 45) pode exemplificar o argumento barthesiano quando Natércia afirma: “ – De ti herdei / a feroz tradição / de ser cantada, // de não ser voz, / mas antes coisa amada / não amadora / a transformar-se em coisa”. A segunda figura AMOR INEXPRIMÍVEL, o argumento não é outro senão Escrever, que Barthes assim expressa: ESCREVER. Enganos profundos, debates e impasses que provocam o desejo de “exprimir” o sentimento amoroso numa criação (especialmente da escritura). (B A R T H E S , 1984, p. 91)

Os versos do poema “Diálogo entre Camões e Natércia” (p. 33) bem traduzem o argumento barthesiano: “E se além de mil almas / eu tivera, / teceria por ti / perfeitas rimas”. Não tenho dúvida de que a escritura de Ana Luísa Amaral cede lugar ao desejo, e A génese do amor exprime amorosamente sua criação. Ainda, de que a poeta sabe, como os poetas e musas da tradição, que para escrever o amor é preciso “engenho” e “brando pensar”; e mais, sabe que a linguagem é, como diz Barthes: “ao mesmo tempo demais e demasiadamente pouca, excessiva e pobre. (...) que a escritura não compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente aí onde você não está – é o começo da escrita”. (B A R T H E S , 1984, p. 93) Desconfio que por isso escreve o eu poético de A génese do amor: “Não interessa onde estou, / não me faz falta um mapa / de viagem” (p. 9). Ao poeta faz falta o poetar: suspender o “precipício”, dar realidade ao inexprimível, inventar imagens, deixar falar o amor.

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R E F E R ÊN C I A S AMARAL, Ana Luísa. A génese do amor. 2. ed. Porto: Campo das Letras, 2007. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortência dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio d’Agua, 1984. DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.

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