GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA DEFESA DA CIDADANIA

October 3, 2016 | Author: Marcela Fontes Fialho | Category: N/A
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1 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA DEFESA DA CIDADANIA CIDADANIA, VERSO E REVERSO...

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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA DEFESA DA CIDADANIA

CIDADANIA, VERSO E REVERSO

CIDADANIA, VERSO E REVERSO

VÁRIOS AUTORES

SÃO PAULO IMPRENSA OFICIAL 1997/1998

AGRADECIMENTOS

Aos conferencistas, Diretoria, funcionários e estudantes da Faculdade de Direito da USP e público participante, pela dedicação e interesse demonstrados durante todo o simpósio. Aos realizadores deste livro, digitadores, produtores, gráficos e demais colaboradores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cidadania, Verso e Reverso/ Julio Lerner coordenador - São Paulo Imprensa Oficial do Estado, 1997/1998

Abaixo do título: Vários autores

1. CIDADANIA I. LERNER, JULIO

2. DIREITOS HUMANOS

ÍNDICE Apresentação: Governador Mario Covas...........................................................................................................6 Prefácio: Julio Lerner.........................................................................................................................................7 A voz dos estudantes: Andrea Mustafa..............................................................................................................8 1. O verso e o reverso da cidadania na cria ção de um plano de Direitos Humanos ....................................... 9 Belisário dos Santos Jr. ..........................................................................................................................10 José Gregori..........................................................................................................................................17 Paulo de Mesquita Neto .........................................................................................................................20 Renato Janine Ribeiro ............................................................................................................................29 Maria Ignês Rocha de Souza Bierrenbach................................................................................................33 2. Força, medo, liberdade: censura e auto-censura no Brasil do século XX.................................................36 Maria Luiza Tucci Carneiro....................................................................................................................37 Cremilda Medina ...................................................................................................................................45 3. Pequenos assassinatos: a violência incorporada à vida cotidiana............................................................52 Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer .............................................................................................................53 Rubens de Camargo Ferreira Adorno ......................................................................................................60 Carlos Amadeu Botelho Byington...........................................................................................................72 Vilma Pinheiro Gawryszewski................................................................................................................77 4. A mercantilização da saúde: quem ganha, quem perde..........................................................................83 Henrique Carlos Gonçalves ....................................................................................................................84 Maria Inês Fornazaro.............................................................................................................................90

Rosana Chiavassa ..................................................................................................................................95 5. A violência no trânsito: da indisciplina à loucura................................................................................104 Flávia Piovesan ...................................................................................................................................105 Maria Helena Prado de Mello Jorge ......................................................................................................109 Samir Rasslan......................................................................................................................................118 6. Educação para a cidadania: solução ou sonho impossível? ..................................................................123 Roberto Romano .................................................................................................................................124 Roberto Macedo..................................................................................................................................135 Aida Maria Monteiro Silva ...................................................................................................................140 PROGRAMA ESTADUAL DE DIREITOS HUMANOS.......................................................................146 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS...............................................................171

CIDADANIA, VERSO E REVERSO Em suma, não possuo, para expressar minha vida, senão minha morte César Vallejo

Ainda marcam a memória de todos tragédias que sequer os célebres versos do conhecido poeta peruano conseguem exprimir. E embora em hipótese alguma o arbítrio possa ser justificado, é lugar-comum limitar a violação dos direitos humanos aos regimes autoritários. As ocorrências aí são tão tristemente eloqüentes, que o fato leva muitos a esquecer que esses direitos, que estão incorporados ao cotidiano das pessoas, são, com freqüência, continuamente desrespeitados. Os direitos humanos têm sido enfatizados - e, de certa forma, reduzidos - como aqueles que dizem respeito à preservação da integridade física e mental do ser humano. Hoje, porém, esse conceito chega mais longe, abrangendo tudo aquilo que atinge a dignidade do cidadão: suas crenças, condições de vida, opções individuais e muito mais. Neste ano comemoram-se os cinqüenta anos da aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Nada mais oportuno do que celebrá- los com ações concretas voltadas à sua reafirmação e fortalecimento. Todos sabemos que um dos maiores problemas de qualquer norma está em fazer com que, ultrapassando o texto legal, ela seja incorporada pela consciência da sociedade, fazendo com que não apenas o sujeito do direito, mas todos os agentes sociais passem a respeitá- la e a protegê-la. A publicação de Cidadania, Verso e Reverso é feita exatamente nesse sentido. Ao reproduzir os encontros promovidos pela Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania, em parceria com a Sociedade Civil, este volume transforma-se em um importante referencial para a questão dos direitos humanos entre nós. Mas ele é ainda mais: é a demonstração clara de que evo luímos da sua clássica interpretação como o direito de se ter direito para um novo patamar, em que são concebidos como o exercício prático de direitos vivenciados no dia-a-dia. O Governo de São Paulo, que em 1997, após um longo debate, estabeleceu o Programa Estadual de Direitos Humanos - o primeiro do País - entende que é seu dever trazer a público toda essa discussão.

Mário Covas Governador do Estado de São Paulo

O DIA-A-DIA É BOA RIMA PARA CIDADANIA Júlio Lerner Coordenador do Simpósio e editor desta publicação.

Fique tranqüilo (a) o (a) leitor (a): não vou cometer aqui nenhum verso... O que me interessa agora é falar daquele outro, que deu nome à série de encontros acontecidos nas Arcadas e que agora é título deste livro. "Cidadania, Verso e Reverso" é um trabalho independente e também resultado de uma postura marcada pela coerência de várias atividades desenvolvidas pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania deste 1995. Para a elaboração do Programa Estadual de Direitos Humanos foram montados diversos encontros, palestras, debates, simpósios e diálogos, sempre marcados pela absoluta liberdade de expressão, quer nas diferentes regiões do interior ou na capital do Estado. Os mais amplos e representativos setores puderam se manifestar, fornecendo valiosos subsídios para a criação do Programa. Entre os muitos encontros, alguns foram realizados nas dependências da Faculdade de Direito da USP, abertos aos estudantes e ao público em geral. Três deles transformaram-se depois em livros: "A violência no esporte", que discutiu em profundidade a cidadania ameaçada pela selvageria que irrompia nos estádios, "O Preconceito", um mergulho que buscou entender algumas das formas mais freqüentes de inaceitáveis discriminações e agora este querido "filhote". "Cidadania, Verso e Reverso" nos fornece um excelente material de reflexão e é uma verdadeira conquista: seus colaboradores, tão diferentes entre si, atingem individualmente e em conjunto um elevado patamar. A cidadania é a mais avançada conquista dos direitos humanos e se realiza na vida cotidiana. Fecha-se o velho ciclo, quando as gloriosas forças desarmadas reivindicavam os favores e as "benesses" do poder. Sofridamente, mas de modo irreversível, a sociedade brasileira começa a entender que "democracia", "justiça", "cidadania" não são presentes concedidos de cima para baixo ao sabor do paternalismo e da demagogia, mas um trabalho permanente e engajado da sociedade . Somos nós e apenas nós que construímos a cidadania. Agradeço a todos os participantes pelo modo generoso com que se dedicaram ao simpósio e agora ao livro. Aos estudantes do XI de Agosto, um abraço amigo: numa escola tradicionalmente crítica, agitada, conseguimos produzir em parceria, ao longo de três anos seguidos, conversas e publicações de boa qualidade.

Continuemos assim.

A CIDADANIA NO LARGO Andrea Mustafa Presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto

"Cidadão é o indivíduo que tem consciência de seus direitos e deveres e participa ativamente de todas as questões da sociedade. Tudo o que acontece no mundo, acontece comigo. Então eu preciso participar das decisões que interferem na minha vida. Um cidadão com um sentimento ético forte e consciência da cidadania não deixa passar nada, não abre mão desse poder de participação (...). A idéia de cidadania ativa é ser alguém que cobra, propõe e pressiona o tempo todo. O cidadão precisa ter consciência de seu poder." Estas são as palavras de Betinho, o maior símbolo brasileiro da construção da verdadeira cidadania, a ativa. O conceito de cidadania vem sendo largamente difundido, por políticos, pela sociedade civil organizada, pelos meios acadêmicos, etc. Porém, a prática é inversamente proporcional a sua difusão. Talvez, dois sejam os motivos para essa triste realidade: o primeiro, a discrepância entre as diversas maneiras de se pensar o exercício da cidadania; o segundo, a desunião entre os diversos setores que, afinal, buscam o mesmo ideal. A dificuldade de se fazer germinar a semente da plena cidadania advém da não inserção desta na mentalidade cultural da sociedade brasileira. Daí, faz-se premente a convergência das diversas forças que emergem da sociedade para que o resultado seja efetivo, ou seja, incutido no cotidiano das pessoas. Para tanto, o Centro Acadêmico "XI de Agôsto", entidade que representa os estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), seguindo sua tradição, quase centenária, compromissada com a construção da cidadania e com a defesa das liberdades fundamentais, em nova parceria com a Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo, realizou em 1997 o grande evento "Cidadania: Verso e Reverso" . Tal evento buscou, acima de tudo, sair da elocubração teórica acerca da cidadania e definir passos claros na construção efetiva da mesma. Acreditamos que essa nova iniciativa tenha estimulado ainda mais o movimento de engajamento entre entidades e o Poder Público com o intuito de tornar concreta a prática da cidadania. A tarefa é árdua, mas não nos esqueçamos da sabedoria chinesa que nos ensina: "Uma viagem de dez mil léguas começa com o primeiro passo".

1 O verso e o reverso da cidadania na criação de um plano de Direitos Humanos

O VERSO E O REVERSO DA CIDADANIA NA CRIAÇÃO DE UM PLANO DE DIREITOS HUMANOS Belisário dos Santos Jr. Advogado em São Paulo, membro da Comissão Justiça e Paz e de vários organismos de defesa e promoção dos direitos humanos e Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Governo do Estado de São Paulo.

1. INTRODUÇÃO O tema indica que se fale de cidadania e do Programa Estadual de Direitos Humanos, mas que se adote uma postura de tratar do direito e do avesso do tema, dos acertos e problemas dos direitos humanos, de direitos e deveres da cidadania, mostrando, enfim, os dois lados que existem de uma questão, um que sempre aparece e outro que nunca aflora. A Constituição brasileira de 1988 aponta para o conceito de cidadania como conjunto de direitos, mas igualmente de deveres. Interpretando a Constituição criativamente, teríamos cidadania como coragem de participar dos esforços em criar a sociedade livre, justa e solidária de que trata a Constituição (artigo 3º, I). Três idéias são básicas para a construção desse novo conceito de cidadania: uma nova visão dos direitos humanos, o estabelecimento de uma ética da solidariedade e a necessidade de parcerias criativas entre Estado e sociedade no exercício do dever de convivência.

2 . UMA NOVA VISÃO DOS DIREITOS HUMANOS. A partir de seu caráter histórico, de sua dimensão internacional, incorporam-se os conceitos de universalidade e indivisibilidade enunciados definitivamente na Conferência Mundial de Viena, em 1993. Os direitos humanos são, portanto, indivisíveis. Isto significa que eles devem ser cumpridos globalmente. Os direitos humanos fundamentais são universais. Nem só dos brancos, nem só dos ricos. Isto pode implicar em afetar profundamente o poder dos ricos e privilegiados, sempre que tal riqueza ou privilégio seja o impedimento a uma vida decente de outras pessoas. Não há uma relação estabelecida e final de tais direitos, já que seu caráter é progressivo, correspondendo a cada momento ao estágio cultural da huma nidade, como se vê das sucessivas "gerações". O direito a uma vida livre e digna de uns deve ser efetivado sem impedir tal direito a outros. Os direitos humanos independem de registro escrito no acervo legislativo de uma nação. Seu reconhecimento pode ocorrer mesmo à revelia das leis e da Constituição. Têm, outrossim, caráter internacional. Em outras palavras, a preocupação com a vigência dos direitos humanos é universal e o seu descumprimento em alguma parte atinge mesmo aqueles que ali não vivem e não estão submetidos à mesma autoridade.

3 . RECONHECIMENTO DA NECESSIDADE DE ESTABELECIMENTO DE UMA ÉTICA DA SOLIDARIEDADE. O período da ditadura viveu a clara tentativa do Estado de empurrar a cidadania para a lógica do individualismo e do isolamento dos indivíduos em categorias estanques: "estudante estuda", "trabalhador trabalha", "professor ensina", etc. A condição de patriota era atribuída oficialmente a uns poucos, quando não apenas a uma categoria de servidores: os militares. Os outros eram todos suspeitos de práticas chamadas subversivas, quando não declarados como inimigos internos, dentro da tática de reconhecer um estado de guerra interno, na aplicação da doutrina da segurança nacional. Mas, a oposição foi toda construída em moldes multissetoriais, suprapartidários, intercorporativos. O terceiro setor, esse conjunto de forças morais não detentor de poder oficial, construiu palanques extremamente amplos, forjando laços de solidariedade que determinaram sua atuação até o restabelecimento do estado de direito. O revigoramento das instituições democráticas se fez, de início, sob essa ótica. No entanto, após a volta ao convívio com os direitos civis e políticos mais elementares, verificou-se que essa aparente recuperação foi acompanhada por duas circunstâncias que a limitavam. De um lado, a conservação de vícios do sistema representativo originários da ditadura, como o superdimensionamento da representação de regiões de menor população, de mais precária cultura política, mais dependentes do governo federal, ou a elevação de estados a territórios e a criação artificial de novas unidades federativas. De outro lado, o novo protagonismo desempenhado pelo poder econômico, influindo decisivamente no processo eleitoral, manipulando a media e prestigiando a crescente corporativização do Parlamento. Tudo isto aponta para a necessidade de estabelecimento de uma nova cultura política, assentada em princípios éticos. Os novos padrões éticos se retiram de uma nova visão dos direitos humanos. Esta nova visão pode ser construída a partir de instrumentos internacionais, como a Resolução 32/130 da ONU, tomada pela Assembléia Geral, em 1977. Ali se estabelece o que se deve ter em conta ao se falar em direitos humanos: - os direitos humanos e as liberdades fundamentais constituem um todo único indivisível; - é impossível a realização dos direitos civis políticos sem o usufruto dos direitos econômicos, sociais e culturais; - os direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana e dos povos são inalienáveis ; - os problemas afetos aos direitos humanos devem ser tratados globalmente; - no marco da sociedade internacional, deve ser dada prioridade absoluta para a busca de soluções a violações massivas e flagrantes de direitos dos povos e pessoas, vítimas de situações que lesam sua dignidade; - é essencial para a consolidação dos direitos e liberdades fundamentais a ratificação pelos Estados dos instrumentos internacionais a respeito do tema.

4 . ESTABELECIMENTO DE PARCERIAS ENTRE ESTADO E SOCIEDADE O início dos anos 70 foi saudado no Brasil por uma frase presidencial que demonstrava a distância entre Estado e sociedade: " O país é rico, o povo é que é pobre". O Estado ocupado por militares opunha-se à sociedade, civil por excelência. Na transição, na euforia da recuperação de alguns direitos, manteve-se em parte a desconfiança da cidadania em relação ao governo e aos governantes.

Essa desconfiança foi agravada no início da redemocratização, já pela multiplicação de escândalos causados pelos novos detentores do poder, em mau uso de recursos públicos, como pela volta à cena política, pelo voto popular, de figuras claramente identificadas com a ditadura militar. Aqui caberia uma reflexão, poupada pela falta de espaço, sobre a falta de relação, principalmente nas camadas populares, entre voto e melhoria de condições de vida. A Constituição de 1988 estabeleceu a importância da democracia participativa, reforçando a clássica figura da representação popular (C.F., artigo 1º, parágrafo único). E a participação popular foi estabelecida sob duas óticas: no controle do poder político e na administração da coisa pública. Se, no controle do poder político, há uma grande gama de alternativas, como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular legislativa, em relação à participação popular na administração existe um campo inexplorado. Nesta época de crise, em que prioridades devem ser estabelecidas, o Governo do Estado de São Paulo, entre outras providências, criou mecanismos da participação direta, como previstos na Constituição, estabelecendo canais livres e desburocratizados de atuação da cidadania. Ao mesmo tempo, reconhecendo a insegurança da cidadania na burocracia tradicional de solução dos conflitos, o Estado iniciou passos claros em direção à cidadania, transpondo a barreira de desconfiança criada pela inércia do aparato estatal. O Governo do Estado fez discussão participativa de seu orçamento pela TV Cultura, em 1995. E a Secretaria da Justiça vem promovendo desde 1996 a discussão ampla de sua ação na área fundiária, elaborando o orçamento participativo do ITESP(Instituto de Terras). Foram implementados, por intermédio da Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania, outros vários mecanismos tradutores dessa filosofia, de participação e modernização do serviço publico como: os Centros de Integração da Cidadania; as Jornadas de Cidadania e Educação Comunitária; os Fóruns da Cidadania; as Ouvidorias; o Programa de Qualidade; os Programas de Proteção do Consumidor, de Educação para a Cidadania, de Municipalização da Defesa da Cidadania, de Desburocratização de Condutas e de Proteção ao Usuário do Serviço Público. Seus objetivos podem ser assim sintetizados: -Reduzir o Estado. Privilegiar os espaços normais da iniciativa privada, por meio de parcerias(com universidades, com associações, com empresas, com entidades de classe, com ONGs, etc.); -Incentivar atividades multissetoriais, diminuindo a superposição de órgãos (Poder Judiciário, outras Secretarias, M.P.);

-Reaproximar o Estado da cidadania, estabelecer formas alternativas de solução de conflitos, reduzir os espaços de violência (conferir : Fórum da Cidadania - sessão de cortiços - reunião de mecanismos de Estado e entidades civis interessadas no tema, em busca de soluções concretas; Centros de Integração da Cidadania - reunião em espaço físico permanente de mecanismos do Estado ligados à área de solução de conflitos [Judiciário, M.P., Assistência Judiciária, Procon, Secretaria da Criança], os destinados à outorga de documentos de cidadania [carteira de trabalho, de identidade, certidão de nascimento], à questão do emprego, com grande participação da sociedade local; Jornadas de Cidadania - o mecanismo do CIC deslocado por um período de tempo para outras áreas periféricas; -Educar para o exercício da cidadania(direitos e deveres);

-Incentivar a solidariedade. Um programa fundamental não só para a promoção dos direitos humanos como para o exercício da democracia participativa é o Programa Estadual de Direitos Humanos.

5. O PROGRAMA ESTADUAL DE DIREITOS HUMANOS – PEDH O Programa Estadual de Direitos Humanos tem por parâmetro o Programa Nacional de Direitos Humanos. Ambos obedecem à deliberação da comunidade internacional reunida em Viena, na já citada Confe rência Mundial de Direitos Humanos. Estabelecendo como premissas a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, ali se decidiu recomendar aos países que realizassem programas de direitos humanos. O Brasil assim procedeu, anunciando seu programa em 13 de maio de 1996. O Estado de São Paulo, neste Governo Mário Covas, acompanhou a iniciativa e, a partir de 14 de setembro de 1997, é o primeiro Estado brasileiro a ter um Programa Estadual de Direitos Humanos. O Programa de São Paulo foi construído a partir de um consenso com a sociedade civil. Houve parceria entre o Governo do Estado, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa e o Núcleo de Estudos da Violência da Universid ade de São Paulo. O Programa Estadual cumpriu as seguintes etapas: Fórum das Minorias ( todos os segmentos da população especialmente afetados por violações em seus direitos foram ouvidos) - fevereiro a junho de 1996; Reuniões especiais (formadores de opinião, juristas, jornalistas); 1º semestre de 1996; Seminários regionais (realizados oito seminários regionais em todo o Estado de São Paulo) setembro de 1996 a maio de 1997; Reuniões intersecretariais ( reuniões com os diversos secretários e com o Governador) maio e junho de 1997; I Conferência Estadual de Direitos Humanos (o processo culminou com ampla discussão das propostas) junho de 1997; Redação final do projeto julho/agosto de 1997; Assinatura do Programa - 14.09.97; Criação de comissão Especial de acompanhamento do Programa - setembro de 1997. As principais características do Programa Estadual são estas: -ampla participação da sociedade civil em sua elaboração (ma is de 600 ONGs); -participação do Ministério Público e do Poder Judiciário na elaboração e em parcerias constantes de várias proposições;

-abrangência dos direitos civis e políticos, mas também dos direitos econômicos, sociais e culturais; -fixação de 303 pontos concretos de consenso, através de medidas ( já em execução em grande parte ) cujo cumprimento melhorará a condição de vida da cidadania de São Paulo. -monitoramento de sua execução por órgão composto por governo e sociedade civil, com observação da Assembléia Legislativa, Ministério Público e Poder Judiciário.

6. O REVERSO DO PEDH Algumas dimensões do Programa e de sua elaboração merecem especial menção, ao mostrar faces nem sempre desveladas da questão dos direitos dos homens e das mulheres. 6.1. A DIMENSÃO DO COTIDIANO Um Programa de Direitos Humanos visa fundamentalmente estabelecer uma alteração cultural, constituindo um instrumento de transição entre o convívio de uma sociedade com as violações sistemáticas aos direitos dos cidadãos e o momento seguinte, de exigência de respeito e incentivo à promoção desses direitos. Daí a preocupação natural com a face mais eficiente desse processo transformador : a educação para os direitos da cidadania. São inúmeros os pontos em que aflora essa preocupação, de resultados perceptíveis apenas a médio, senão a longo prazo: introdução de noções de direitos humanos nos currículos, pela abordagem de temas transversais, capacitação de professores e outros agentes multiplicadores, aperfeiçoamento da formação de agentes policiais, etc. No entanto, há problemas muito simples e que muitas vezes não são notados, mas cuja solução afeta a muitas pessoas. Assim, se posicionam alguns pontos do Programa: pela modificação da altura dos degraus dos ônibus para facilitar acesso de pessoas idosas; pela remoção de barreiras físicas à locomoção de portadores de deficiência; pela garantia de atendimento prioritário aos idosos e portadores de deficiência nos serviços públicos; pelo desenvolvimento de programas de atendimento e assistência a doenças que atingem determinado grupo étnico, como a anemia falciforme; pelo atendimento especial a familiares de vítimas de crimes dolosos contra a vida, pela erradicação do trabalho infantil, pela indenização administrativa às vítimas de crimes cometidos por agentes do Estado, etc. Ao incluir tais pontos, o PEDH relembra que a melhoria de condições de vida a ser provocada pela promoção dos direitos humanos deve também ser percebida de imediato no cotidiano. 6.2. A DIMENSÃO DA GENEROSIDADE A consideração de que o Estado é, em geral, o grande violador dos direitos e a sociedade a grande vítima esteve sempre presente nesse processo de aperfeiçoamento do Programa. É claro que o currículo e o passado dos homens que negociavam pelo Governo e, notadamente, do Governador, criaram um facilitador nessa relação. Mas, houve momentos de muita generosidade que devem ser anotados. Minorias religiosas vieram à Secretaria da Justiça (Fórum das Minorias) para debater problemas de discriminação, mas fundamentalmente para oferecer seus esforços e seus espaços de reflexão para discussão de temas

de direitos humanos. A população de rua teatralizou sua vida cotidiana, produzindo uma das mais densas manifestações daquele Fórum das Minorias. De outra parte, quase um terço das 303 propostas colocadas no Programa exige intensa participação da sociedade civil. Ou seja, a sociedade colocou missões para si mesma no Programa, entendendo que sem os esforços de convivência cooperativa com o Estado, não sairão do papel as metas do P.E.D.H. 6.3. A DIMENSÃO DA URGÊNCIA Há demandas que representam reivindicações históricas, marcando lutas de muitos anos, quando não de séculos, por tais direitos. O reconhecimento da propriedade das terras ocupadas por remanescentes de quilombos é uma delas. Proposta no Programa (ponto nº 228), a titulação está quase a ponto de ser implementada, após ampla participação da comunidade negra, de setores do Estado, do Governo Federal e da sociedade civil organizada. A questão da melhoria das condições de vida em regiões pobres do Estado (Vale do Ribeira e Pontal do Paranapanema) é ponto (nº 31) em que ações integradas são especificadas. Em relações a essas regiões sustenta-se o direito ao desenvolvimento. O acesso à terra (por programas de regularização fundiária ou de assentamento) se conecta ao direito ao desenvolvimento. Visto pela ótica da cidadania (via sempre de dupla mão, direitos e deveres), o acesso à terra se caracteriza pelo direito de homens e mulheres proverem seu próprio sustento e pela obrigação de serem produtivos, para seu grupo familiar e para a sociedade. Acesso à terra, por esse ângulo, significa interação dos direitos individuais à liberdade, à vida, aos direitos sociais ligados à noção de dignidade e, por último, aos direitos coletivos, como o respeito ao meio ambiente sadio, somado à obrigação de acrescentar o conceito de sustentabilidade à noção tradicional de desenvolvimento econômico. A educação para a cidadania é pedra angular da alteração cultural que se pretende. Inúmeros pontos determinam imediata implantação de programas na área do ensino formal, no treinamento de professores, policiais civis e militares, agentes penitenciários e lideranças comunitárias( nº 1 a 13, entre outros). A urgência costura outros inúmeros pontos que, não obstante possam não apresentar resultados imediatos, devem ter sua construção iniciada imediatamente, como a questão da eficiência da Justiça, da redução da jornada de trabalho, entre outras. 6.4. A DIMENSÃO DA RESPONSABILIDADE O último ponto do PEDH (nº 303) cria a obrigação para o próprio Governo que sugeriu sua inclusão, de divulgar periodicamente as iniciativas para cumprimento do Programa Estadual de Direitos Humanos.

7 . CONCLUSÃO - EM BUSCA DA SOLIDARIEDADE PERDIDA Em suma, o PEDH foi elaborado para conciliar o novo discurso pelos direitos humanos, fundado nos princípios da indivisibilidade e da universalidade, com a necessária prática que deve informar o respeito e a promoção dos direitos humanos neste final, ou melhor dizendo, neste início de novo milênio.

O Estado afirma sua responsabilidade de implantar programas de governo condizente com o patamar de civilização atual, mas cria canais de viabilização da democracia participativa. Estado e sociedade estabelecem o dever de mútua convivência, como o determina a Declaração Americana de Direitos e Deveres dos Cidadãos e vão além, ao decidir somar esforços na construção de todos os pontos. Há participações que estão anunciadas, atores sociais citados especialmente, mas sempre haverá espaço para entidades, universidades, ONGs e indivíduos outros aportarem sua colaboração. A luta pela cidadania, é uma luta contra preconceitos, uma luta contra o individualismo exacerbado, em favor da solidariedade ativa. O PEDH é um dos anúncios dessa solidariedade. A solidariedade seria assim a nova possibilidade, talvez a última esperança ético-política . Essa solidariedade que transformou a vida de países restabelecendo a democracia, certamente mudará a vida de cada um dos cidadãos desta América Latina, estabelecendo para todos a felicidade como direito e possibilidade próxima.

OS DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA José Gregori Secretário Nacional dos Direitos Humanos

O avanço da civilização no mundo tem ocorrido historicamente através da afirmação de direitos. O que hoje chamamos de direitos humanos são, resumidamente, uma série de conquistas, resultado de processos históricos, através dos quais grupos e nações lutaram para adquirir direitos e fazê-los valer. A história do século XX pode servir como exemplo para esta caminhada da humanidade em busca da afirmação de direitos. Por mais tempo que se dedique ao estudo deste século e das turbulências que o acometeram, nada seria mais leviano do que afirmar que foi um século de paz e de estabilidade. Sabe-se que foi um século marcado por grandes guerras e por perdas lamentáveis de um sem- número de vidas humanas. Após as grandes catástrofes da primeira metade do Século, no momento em que a humanidade percebia o quanto se havia regredido no campo da preservação dos direitos do homem, surge a Organização das Nações Unidas e, com ela, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento que simboliza o compromisso das Nações com a dignidade humana e com o respeito ao indivíduo. Naquele momento, a grande comoção internacional pôde dar a alguns a sensação de que iniciava-se ali uma nova era, na qual os direitos humanos passariam a balizar o comportamento humano, servindo aos interesses da humanidade. Mais tarde, nas décadas de 60 e 70, a Guerra Fria e os regimes autoritários foram os responsáveis por nova onda de graves violações de direitos humanos. Não se poderia pensar em realizar uma Conferência Internacional sobre Direitos Humanos no Brasil de 1968. Neste final de século, devido a um novo período de razoável estabilidade internacional, é preciso constatar que os padrões de direitos humanos estão se afirmando em todos os cantos do planeta. Não há, pelo menos como perspectiva de curto prazo, razão para acreditarmos em novos conflitos internacionais capazes de atentar contra os direitos humanos de maneira sistemática. Além disso, um dos fenômenos mais instigantes destes tempos é, a meu ver, a verdadeira vigília que se faz em favor dos direitos humanos. Todos aqueles que crêem nos direitos humanos como um bom parâmetro para o respeito à dignidade da pessoa humana, dão-se as mãos e exigem respeito aos direitos humanos. Este alastramento dos direitos humanos, respaldado pelas revoluções tecnológicas e pela comunicação global, nos obriga, invariavelmente, a olhar para o Novo Século com certa euforia. Não por achar que será um século de ouro, no qual não haverá mais violações aos direitos humanos, mas por entender que a causa ganha novos defensores a cada momento, que se juntam a esta grande vigília mundial e que passam a cobrar dos Estados atitudes coerentes com o respeito à dignidade humana. A II Conferência Mundial de Direitos Humanos, das Nações Unidas, foi um verdadeiro marco para os avanços já conquistados internacionalmente no campo dos direitos humanos. No ano de 1993, Viena recebia representantes de 171 países e de centenas de organizações nãogovernamentais. A Declaração de Viena afirmou quatro conceitos importantes que caracterizam os direitos humanos nos dias de hoje. O primeiro deles é a reafirmação da universalidade dos direitos humanos, conceito que já havia sido definido na Declaração Universal, mas que sofrera, desde então, críticas incisivas. O conceito da universalidade dos direitos humanos significa, na prática, que já não se pode justificar a

inobservânia dos direitos humanos com base em argumentos como o do relativismo cultural ou o de que os direitos humanos sejam valores ocidentais. A Declaração de Viena simboliza a aceitação universal de que os princípios de direitos humanos visam à proteção do ser humano e, portanto, ultrapassam o conceito de soberania. O segundo é o da indivisibilidade dos direitos humanos. Ou seja, não se falará mais em categorias de direitos, ou, como se convencionou chamar, gerações de direitos. Os direitos civis, os direitos políticos, os culturais e os sociais, todos fazem parte do conjunto dos direitos humanos, que são expressão cumulativa das conquistas da humanidade e, inversamente, da obrigação dos Estados de garantir a sua observância. O terceiro e o quarto conceitos são os da interdependência e o da inter-relação dos direitos humanos. Não é possível garantir os direitos civis sem que haja a garantia dos direitos sociais. Não se pode achar que a garantia dos direitos sociais ou dos direitos políticos será suficiente para garantir a existência digna do ser humano. Há que se ter clara a idéia de que os direitos humanos, apesar de separados por artigos, em Declarações, Convenções e Pactos, devem transmitir sempre a noção do conjunto de condições para a sobrevivência e para a dignidade do homem. No Brasil, país dos mais violentos e com graves problemas no campo da preservação dos direitos humanos, estou convencido de que já se está caminhando, a passos largos, rumo a um novo patamar de respeito a estes direitos. Por vários motivos. Em primeiro lugar pela elaboração de um Programa Nacional de Direitos Humanos. O Brasil foi o terceiro país a acatar recomendação da Declaração de Viena para que os países-membros elaborassem um Programa de medidas visando à proteção mais efetiva dos direitos humanos em seus países. Lançado em maio de 1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos tem como objetivo central combater a banalização da violência e proteger a existência humana. A sociedade civil organizada participou ativamente do processo de elaboração do Programa, através da realização de seis seminários, nos quais aproximadamente 334 pessoas, pertencentes a 210 organizações de direitos humanos, elencaram medidas de curto, médio e longo prazos que seriam capazes de melhorar sensivelmente a questão dos direitos humanos no Brasil. Portanto, o que está expresso no PNDH, as suas cento e trinta recomendações, não é a vontade do Governo Federal, mas alguma coisa que está difusa, como sentimento, na sociedade brasileira. Já é possível apontar algumas medidas concretas que representaram mudanças significativas para o Brasil nessa área. Dentre elas, alguns importantes avanços em termos de legislação, como a sanção da Lei nº 9.455, que define os crimes de tortura e da Lei 9.474, que define mecanismos para a implementação no Estatuto dos Refugiados de 1951. Para a proteção do cidadão, merece destaque a implantação do Sistema Nacional de Armas - SINARM, que cria controle mais rigoroso sobre o porte de armas e o incentivo ao Programa de Proteção a Testemunhas, desenvolvido por organização nãogovernamental de Pernambuco, o GAJOP. Além disso, o apoio do Governo Federal aos Balcões de Cidadania, desenvolvidos em parceria com organizações não-governamentais e que pretende estimular o exercício da cidadania através de orientação jurídica e informações básicas sobre a emissão de documentos, o Sistema de Informação sobre a Infância e Adolescência - SIPIA, que pretende reunir as informações sobre a sociedade civil, suas organizações e programas voltados para a infância e adolescência, o apoio ao Programa de Acessibilidade, desenvolvido pela Coordenadoria de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - CORDE e que busca facilitar a vida diária dessas pessoas e, ainda, o trabalho desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Interministerial para a

Valorização da População Negra, que tem se destacado pela capacidade de aglutinar as aspirações da população negra e promover políticas públicas afirmativas. Além destes avanços pontuais, diria que outro grande passo em direção a institucionalização e à prática dos direitos humanos no Brasil foi a criação de uma Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, que é encarregada de exercer a coordenação nacional da política para a proteção e promoção dos direitos humanos no país. Esta coordenação se dá pela articulação com os órgãos da administração pública encarregados da execução das políticas estabelecidas nas metas do PNDH, pela conscientização acerca dos problemas mais graves e pela cooperação técnica e financeira, direta ou indireta, aos Estados, Municípios, organizações não-governamentais, universidades, igrejas, sindicatos, representações de classe e empresas comprometidas com os objetivos do Programa, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Decreto nº 914, de 6 de setembro de 1993, que estabelece as diretrizes e políticas para a promoção e integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Neste momento discute-se em profundidade a questão da segurança pública no Brasil. Não há como garantir direitos humanos fundamentais se não se pode proporcionar ao cidadão comum um sistema de segurança pública de qualidade. Foi enviada ao Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional que busca alterar esta situação, conferindo aos Estados da Federação maior liberdade para organizarem suas políticas de segurança pública. Portanto, é preciso constatar que os direitos humanos constituem-se hoje uma das políticas públicas do Governo, juntamente com a de saúde, a de educação, a política econômica e outras. O fato do Governo Federal ter empunhado essa bandeira é muito significativo, principalmente num país em que a tradição dos direitos humanos era mais propriamente das sociedades, da nação, do povo em geral, do que do governo. A primeira coisa a fazer, depois que se corporificou esse sentimento pelos direitos humanos num programa e que foi criada uma Secretaria para cuidar dos direitos humanos, é conseguirmos que se amplie o nível de conscientização a respeito da importância desses direitos, quer dizer, o trabalho pedagógico no sentido de, cada vez mais, as pessoas saberem que existem direitos humanos, acreditar neles e procurarem pautar as suas vidas dentro do repertório de deveres e possibilidades que corporificam modernamente esses direitos. Na função de Secretário Nacional dos Direitos Humanos, diria que nosso dever para com a causa é bastante claro: é o de garantir o exercício dos direitos humanos a toda a sociedade, a cada indivíduo, facilitando o seu acesso à informação, disponibilizando os instrumentos necessários a esse exercício, apoiando aqueles que já realizam estas tarefas com êxito, cuidando para que os abusos sejam coibidos, enfim, ampliando as perspectivas de cidadania para todos, indistintamente. Dessa maneira estaremos conseguindo consolidar estas importantes conquistas da humanidade e, possivelmente, caso tenhamos a capacidade de captar as demandas da sociedade, caminhando rumo a novas conquistas.

O PROGRAMA ESTADUAL DE DIREITOS HUMANOS: UMA OPORTUNIDADE PARA CONTROLAR A VIOLÊNCIA E PROMOVER A CIDADANIA Paulo de Mesquita Neto Doutor em Ciência Política pela Universidade de Columbia, New York, e Pesquisador Senior do Núcleo de Estudos da Violência. Foi relator do projeto do Programa Estadual de Direitos Humanos em São Paulo e relatorgeral executivo do projeto do Programa Nacional de Direitos Humanos.

O Programa Estadual de Direitos Humanos, lançado pelo Governador Mário Covas em 14 de setembro de 1997, é um sinal claro do compromisso do governo estadual e das organizações de direitos humanos de trabalhar em parceria para controlar a violência, proteger e promover a cidadania e implementar o Programa Nacional de Direitos Humanos no Estado de São Paulo.1 São Paulo é o primeiro estado do Brasil a elaborar um Programa Estadual de Direitos Humanos ("PEDH" ou "Programa Estadual"), com uma lista de 303 propostas de ações que o governo e a sociedade se comprometeram a desenvolver com o objetivo de aumentar o grau de respeito aos direitos humanos e consolidar o estado de direito e a democracia. A implementação do PEDH em São Paulo é acompanhada atentamente pelo governo federal e por outros estados e pode incentivar outros estados a elaborar programas para proteção e promoção dos direitos humanos. Este texto examina brevemente os antecedentes, as propostas, os objetivos e implementação do Programa Estadual de Direitos Humanos e analisa o significado do PEDH. Esta análise sugere que o lançamento do Programa Estadual criou uma oportunidade excepcional para o desenvolvimento de ações conjuntas do governo estadual e da sociedade voltadas para o controle da violência estatal e social e para a eliminação das graves violações de direitos humanos que infelizmente ainda são freqüentes e muitas vezes permanecem impunes. O sucesso do Programa dependerá em grande parte do interesse e da capacidade do governo estadual e da sociedade de aproveitar esta oportunidade e trabalhar em parceria para desenvolver ações inovadoras e bem sucedidas na defesa dos direitos humanos. ANTECEDENTES Durante as décadas de 1970 e 1980, o movimento em favor dos direitos humanos ganhou força no Estado de São Paulo. Na década de 1970, este movimento se dedicou principalmente à proteção dos direitos civis e políticos dos membros de partidos e movimentos de oposição ao regime autoritário estabelecido no Brasil em 1964, que estavam sujeitos permanentemente à repressão política.2 Na década de 1980, com a transição para a democracia, a repressão política praticamente desapareceu em São Paulo . Mas a violência estatal, particularmente a violência policial, e a violência social, particularmente a violência urbana, não desapareceram. Ao contrário, aumentaram. Sempre presente na história brasileira, a violência policial foi intensificada durante o regime autoritário de 1964-85 e se tornou mais arraigada e mais difícil de controlar do que a violência política. A urbanização do estado e o crescimento das cidades médias e grandes, de forma acelerada e desordenada, provocaram a urbanização da violência e o crescimento da violência urbana,

especialmente na região metropolitana de São Paulo. Este crescimento da violência urbana, por sua vez, serviu muitas vezes para justificar a tolerância das elites em relação à violência policial. Depois da transição para a democracia, adaptando-se à nova realidade política e social, o movimento em favor dos direitos humanos passou a dirigir sua atenção para os problemas da violência policial e da violência urbana, sem perder de vista, entretanto, a violência rural que passou a atingir as lideranças de sindicatos rurais e militantes dos movimentos pela reforma agrária que ganharam força na década de 1980 e de 1990. As organizações de direitos humanos passaram a se dedicar à proteção dos direitos civis, políticos e sociais de todos os cidadãos, especialmente dos membros de grupos de baixa renda e baixa escolaridade, e de grupos minoritários, que são as principais vítimas da violência estatal e da violência social. Em 1989, São Paulo promulgou sua Constituição Estadual que, segundo diretrizes estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, estabeleceu as bases institucionais para consolidadação do estado de direito e da democracia e definiu um amplo conjunto de direitos que o estado tem a obrigação de proteger e promover para todos os cidadãos. Além disso, a Constituição Estadual instituiu o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, integrado por representantes da sociedade civil, para assistir o governo estadual na formulação e implementação de um política estadual de proteção e promoção dos direitos humanos. A partir de 1994, a introdução do Plano Real pelo governo federal provocou uma redução drástica da inflação, de aproximadamente 2500% ao ano em 1993 para 20% em 1995, 10% em 1996 e 5% em 1997. A queda da inflação produziu uma redistribuição de renda em benefício da população de baixa renda, atenuando a crise econômica, social e política que o país atravessava desde o impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello em 1992. O lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos ("PNDH" ou "Programa Nacional") em maio de 1996 e a criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos em abril de 1997 sinalizaram o compromisso do governo federal com a proteção dos direitos humanos e com a transformação da sociedade brasileira numa sociedade mais igualitária e mais justa. A Secretaria Nacional de Direitos Humanos se tornou rapidadamente um núcleo de acompanhamento e apoio a ações e programas de defesa dos direitos humanos no Congresso Nacional e nos estados da federação. Entre outras medidas importantes propostas pelo Programa Nacional, foram aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso leis transferindo da Justiça Militar para a Justiça Comum o julgamento de policiais militares acusados de crimes dolosos contra a vida (lei federal 9.299/96), tipificando o crime de tortura ( le i federal 9.455/97) e criminalizando o porte ilegal de armas (lei federal 9.437/97).3 Apesar de avanços inegáveis na direção do controle da violência e da promoção da cidadania desde a transição do autoritarismo para a democracia, e dos esforços do governo federal na defesa dos direitos humanos, os governos estaduais nem sempre adotaram políticas compatíveis com a defesa dos direitos humanos. Em São Paulo, Franco Montoro foi eleito governador em 1982 e governou o estado com um programa que incluía a proteção e promoção dos direitos humanos, particularmente o controle da violência policial, das execuções extra-judiciais e da tortura de pessoas condenadas ou acusadas pela prática de crimes e de pessoas consideradas "suspeitas" pela polícia. Como governador, Montoro se preocupou com o monitoramento da violência estatal e da violência social, através da produção e divulgação de estatísticas sobre a violência policial e criminalidade no estado. Orestes Quércia e Luis Antônio Fleury, entretanto, eleitos governadores de São Paulo em 1986 e 1990 respectivamente, não deram continuidade à política de direitos humanos iniciada por Montoro. Ao contrário, foram tolerantes em relação à violência policial, considerando-a inevitável e

um instrumento necessário para controlar a escalada da criminalidade e da violência na década de 1980 e de 1990. O resultado foi desastroso do ponto de vista dos direitos humanos, com o aumento tanto da violência policial quanto da violência social, medidos pelo número de civis mortos pela polícia e pelo número de homicídios registrados no estado. O número de civis mortos pela polícia subiu de 328 em 1983 para 1470 em 1992, ao passo que a taxa de mortalidade por homicídio passou de 13,80 homicídios por 100.000 habitantes em 1980 para 30,87 em 1990 e 29,33 em 1994.4 Em 1989, durante o governo Quércia, dezoito presos morreram por asfixia quando cinqüenta presos foram trancafiados por policiais em uma cela de 1,45 por 3,75 metros, sem ventilação no 42º Distrito Policial em Parada de Lucas.5 Em 1992, durante o governo Fleury, 111 presos morreram durante operação policial para reprimir uma rebelião na Casa de Detenção do Carandirú.6 O massacre do Carandirú provocou uma mobilização imediata contra a violência policial. Esta reação produziu mudanças na política de tolerância do governo estadual em relação à violência policial e fez o número de civis mortos por policiais na Grande São Paulo cair de 1.190 em 1992 para 243 em 1993 e 333 em 1994.7 Em 1994, São Paulo elegeu Mário Covas, do PSDB, para governador do estado. Covas retomou a política de defesa dos direitos humanos iniciadas por Montoro e interrompida por Quércia e Fleury. Em 1995, o Governo do Estado criou a Ouvidoria da Polícia e o Programa de Acompanhamento de Policiais Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco (PROAR).8 Em 1996, o governo introduziu o Programa Integrado de Segurança Comunitária (PISC), nas zonas sul e leste, onde as taxas de mortalidade por homicídio são mais altas do que nas demais regiões da cidade. No mesmo ano, o Ministério Público do Estado de São Paulo, por decisão do procurador- geral Luiz Antônio Marrey, passou a exercer o controle externo da atividade de polícia judiciária, previsto na Constituição Federal (artigo 129, inciso VII). Em 1997, o governo estadual iniciou um processo de integração dos sistemas de comunicação e informação da polícia civil e da policia militar e, no dia 10 de dezembro, o programa de policiamento comunitário na capital e no interior do estado. Além disso, de 1995 a 1997, o governo estadual contratou 10.000 novos policiais, entregou 4.000 novas viaturas, aumentou o piso salarial em 150%, criou programa habitacional e concedeu seguro de vida para os policiais.9 Durante o governo Covas, o número de civis mortos por policiais na Grande São Paulo caiu de 333 em 1994 para 331 em 1995, 183 em 1996 e 137 de janeiro a agosto de 1997.10 Apesar da queda , o número de civis mortos pela polícia é ainda extremamente alto, comparativamente aos civis mortos pela polícia em países democráticos. Em Nova York, para efeito de comparação, o número de civis mortos por policiais caiu de 41 em 1990 para 27 em 1991, 24 em 1992 e 25 em 1993.11 O número de homicídios registrados no estado não chegou a diminuir de forma tão consistente, mas a taxa de crescimento do número de homicídios diminuiu. Na Grande São Paulo, onde está concentrada a maioria dos homicídios, o número de homicídios dolosos passou de 4.908 em 1992 para 5.828 em 1993 (aumento de 19,1%), 6.697 em 1994 (aumento de 14,0%) e 7.358 em 1995 (aumento de 9,9%).12 Como o número de civis mortos por policiais, o número de homicídios é extremamente alto comparativamente ao número registrado em países democráticos. Em Nova York, o número de homicídios caiu de 2.245 em 1990 para 1.927 em 1993, 984 em 1996 e 767 em 1997.13

Diante deste quadro de violência social, agravado pela violência policial, incentivado pelo Programa Nacional de Direitos Humanos lançado em 1996, o Governo do Estado tomou a iniciativa de lançar o Programa Estadual de Direitos Humanos em 1997, articulando uma série de ações e propostas voltadas para o controle da violência e a promoção da cidadania no estado. ELABORAÇÃO A elaboração do Programa Estadual de Direitos Humanos foi coordenada pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, dirigida por Belisário dos Santos Jr., e pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, dirigido por Maria Inês Bierrenbach, com assessoria da Universidade de São Paulo, através do Núcleo de Estudos da Violência, coordenado por Paulo Sérgio Pinheiro e Sérgio Adorno. No primeiro semestre de 1996, por iniciativa da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania e do Condepe foi realizado o 1º Fórum Estadual de Minorias, do qual participaram 365 pessoas, representantes de 167 entidades , para colher subsídios e propostas para o Programa Estadual. No segundo semestre de 1996 e no primeiro semestre de 1997, foram realizados encontros setoriais e oito seminários regionais, sob a coordenação do Núcleo de Estudos da Violência, para apresentação e discussão de propostas para o Programa Estadual. Foram realizados seminários regionais em: Campinas, 8 de outubro de 1996, com a colaboração da Universidade Estadual de Campinas; Santos, 27 de fevereiro de 1997, com a colaboração da Casa da Cultura da Mulher Negra; Sorocaba, 10 de março de 1997, com a colaboração da Universidade de Sorocaba e da Prefeitura Municipal de Sorocaba; São José do Campos, de 17 de março de 1997, com a colaboração da Prefeitura Municipal de São José dos Campos; Ribeirão Preto, 4 de abril de 1997, com a colaboração do Ministério Público do Estado de São Paulo/ Ribeirão Preto e da Câmara Municipal de Ribeirão Preto; São José do Rio Preto, 12 de abril de 1997, com a colaboração da Ordem dos Advogados do Brasil/São José do Rio Preto; Bauru, 14 de abril de 1997, com a colaboração da Ordem dos Advogados do Brasil/Bauru; e Presidente Prudente, 14 de maio de 1997, com a colaboração da Universidade Estadual Paulista e da Prefeitura Municipal de Presidente Prudente. No total, participaram dos seminários regionais 775 pessoas, representando 294 entid ades do governo e da sociedade civil, de todas as regiões do estado. Em 6 de junho de 1997, o governador Mário Covas convocou reunião extraordinária do secretariado para tratar do Programa Estadual de Direitos Humanos, na qual foi apresentada versão preliminar do projeto do Programa, elaborada pelo Núcleo de Estudos da Violência, a partir de contribuições do Fórum das Minorias, dos encontros setoriais e dos seminários regionais. O mesmo projeto foi apresentado e debatido e revisado em dezesseis grupos de trabalho e uma sessão plenária na 1ª Conferência Estadual de Direitos Humanos, na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, dias 16 e 17 de junho de 1997. Organizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, com apoio da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, do Condepe e Núcleo de Estudos da Violência, a Conferência contou com a participação de 309 pessoas, representantes de 142 entidades.14 Com base em sugestões de secretários de estado e da Conferênc ia Estadual de Direitos Humanos, o Núcleo de Estudos da Violência elaborou a versão final do projeto do Programa Estadual de Direitos Humanos, que foi apresentada à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania e ao Condepe e serviu de base para o Programa Estadual lançado pelo governador Mário Covas no dia 14 de setembro de 1997. PROPOSTA E OBJETIVOS

O Programa Estadual de Direitos Humanos, cujo formato foi inspirado no formato do Programa Nacional, inclui um prefácio do governador Mário Covas, um texto introdutório e um conjunto de 303 propostas de ações para o governo e a sociedade, divididas em 4 grande seções e 23 sub-seções, listadas abaixo:

1. Construção da democracia e promoção dos direitos humanos 1.1 Educação para a Democracia e os Direitos Humanos 1.2 Participação Política

2. Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais 2.1 Direito ao desenvolvimento humano 2.2 Emprego e geração de renda 2.3 Política agrária e fundiária 2.3 Educação 2.4 Comunicação 2.5 Cultura e Ciência 2.7 Saúde 2.6 Bem-Estar, Educação e Transporte 2.9 Consumo e meio ambiente 3. Direitos Civis e Políticos 3.1 Acesso à Justiça e Luta Contra a Impunidade 3.2 Segurança do Cidadão e Medidas contra a Violência 3.3 Sistema Prisional e Ressocialização 3.3 Promoção da Cidadania e Medidas contra a Discriminação 3.5 Crianças e Adolescentes 3.6 Mulheres 3.7 População Negra 3.8 Povos Indígenas 3.9 Refugiados, Migrantes Brasileiros e Estrangeiros

3.10 Terceira Idade 3.11 Pessoas Portadoras de Deficiência 3.12 Homossexuais e Transexuais 4. Implementação e Monitoramento de Políticas de Direitos Humanos

Como o Programa Nacional, o Programa Estadual de Direitos Humanos se apoia nos princípios da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, definindo um amplo conjunto de propostas voltadas para proteção dos direitos civis, políticos e sociais de todas as pessoas, independentemente de origem, idade, sexo, etnia, cor, condição econômica e social, orientação ou identidade sexual, credo religioso e convicção política. Entretanto, o Programa Nacional é referência e ponto de partida para a elaboração de programas estaduais de direitos humanos e não modelo pronto e acabado para ser copiado pelos estados da federação. O Programa Estadual tem características próprias, que o distinguem do Programa Nacional. Por um lado, tratando-se de um programa estadual e não federal, o PEDH não tem, como o PNDH, uma seção dedicada a ações internacionais para proteção dos direitos humanos. Mas o PEDH tem uma proposta de mobilização em favor do reconhecimento pelo Brasil da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos ( proposta 122). Por outro lado, o PEDH tem uma ampla seção, com 83 propostas, dedicadas aos direitos econô micos, sociais, culturais e ambientais (propostas 17 a 99), abordando temas como desenvolvimento humano, emprego e geração de renda, política agrária e fundiária, saúde, educação, consumo e meio ambiente. O PEDH tem também uma sub-seção dedicada aos direitos dos homossexuais e transexuais ( proposta 286 a 290). Da mesma forma como o Programa Nacional, o Programa Estadual não é um programa inflexível, imutável. É um programa de referência para a mobilização em favor dos direitos humanos, que pode e deve ser constantemente avaliado e, se necessário, revisto, adaptado a novas situações e problemas. Pode também servir de base para elaboração de outros programas estaduais e mesmo de programas municipais de defesa dos direitos humanos. Nesse sentido, um dos principais objetivos do Programa Estadual, assim como do Programa Nacional, objetivo este que unifica todas as suas propostas, é a criação e o fortalecimento de parcerias entre o estado e a sociedade civil para formulação e implementação de políticas, programa s e ações de defesa dos direitos humanos. Por isso, já na fase de elaboração do Programa Estadual, como agora na fase de implementação, o Governo do Estado procurou a colaboração de todas as secretarias do Poder Executivo, do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, do Ministério Público, das prefeituras e das câmaras de vereadores dos municípios, das universidades, das associações profissionais e das organizações de defesa dos direitos humanos. Desde a sua elaboração, portanto, o Programa Estadual criou uma oportunidade nova para a formação de parcerias entre o estado e a sociedade, que transcendem os partidos políticos, e oferecem uma base sólida e duradoura para implementação do PEDH e para o controle da violência e a promoção da cidadania no Estado de São Paulo. Resta saber até que ponto as organizações do estado e da sociedade civil interessadas na defesa dos direitos humanos serão capazes de aproveitar esta oportunidade e efetivamente contribuir para o controle da violência e para a promoção da cidadania no estado, tornando o PEDH uma referência não apenas para São Paulo mas para os outros estados da federação e para o governo federal.

IMPLEMENTAÇÃO No lançamento do Programa Estadual, de acordo com a proposta de número 291 do Programa, o governador Mário Covas instituiu a Comissão Especial de Acompanhamento do Programa Estadual de Direitos Humanos, com representantes do governo e da sociedade civil, para coordenar e monitorar a sua implementação. Esta Comissão Especial teve seus integrantes nomeados dia 21 de outubro e se reuniu pela primeira vez no dia 27 de outubro, sob a presidência do secretário-adjunto da Justiça e da Defesa da Cidadania, Edson Luis Vismona. A Comissão Especial tem dez membros titulares e dez membros suplentes, sendo quatro titulares e quatro suplentes de livre indicação do governador, dois titulares e dois suplentes representantes do Condepe, dois titulares e dois suplentes representantes dos demais conselhos de cidadania, um titular e um suplente do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, um titular e um suplente da Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania. Além destes, a Comissão Especial têm a participação, como observadores, de representantes da Comissão dos Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, do Poder Judiciário e do Ministério Público do Estado de São Paulo. A Comissão Especial, organizada em oito subcomissões, tem como principais objetivos: definir prioridades, juntamente com as secretarias de estado e organizações da sociedade civil, coordenar e incentivar a implementação das propostas do Programa Estadual pelas secretarias de estado e por organizações da sociedade civil; monitorar a implementação do Programa Estadual, através de informações fornecidas pelas secretarias de estado e por organizações da sociedade civil; e elaborar relatórios anuais sobre a implementação do Programa Estadual, a partir de informações fornecidas pelas secretarias de estado e por organizações da sociedade civil. Em particular, cabe à Comissão Especial a implementação das demais propostas do Programa Estadual referentes à execução e monitoramento das políticas de direitos humanos, entre as quais se destacam as seguintes propostas: ?

acompanhar e apoiar as prefeituras municipais no cumprimento das obrigações mínimas de proteção e promoção dos direitos humanos;

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estabelecer acordos entre o governo estadual, governos municipais e organizações da sociedade civil, para a formação e capacitação de agentes da cidadania;

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assegurar a ampla divulgação e distribuição do Programa Estadual;

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apoiar a criação e funcionamento de conselhos municipais de defesa dos direitos humanos e de defesa da cidadania;

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incentivar a elaboração de programas municipais de direitos humanos;

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apoiar a criação e funcionamento de comissões de direitos humanos nas câmaras municipais;

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incentivar a formação de parcerias entre o estado e sociedade na formulação, implementação, monitoramento e avaliação de políticas e programas de direitos humanos. CONCLUSÃO

Esta análise sugere que o Estado de São Paulo, apesar de ser um dos estados mais desenvolvidos do país, não está imune a graves violações de direitos humanos. Mesmo depois da transição para a democracia, a violência estatal e a violência social persistem como problemas graves no estado, ameaçando o processo de consolidação da democracia e do estado de direitos. O Programa Estadual de Direitos Humanos, entretanto, é uma resposta arrojada e um passo importante para resolver estes problemas. O PEDH reflete e fortalece um longo processo de organização e de mobilização da sociedade civil e do estado na defesa dos direitos humanos, além do compromisso do governo estadual e das organizações de direitos humanos de lutar para controlar a escalada da violência e promover a cidadania. No Estado de São Paulo, ao contrário do que acontece em muitos outros estados da federação, organizações estatais, em particular as polícias civil e militar, e organizações da sociedade civil, em particular as organizações de direitos humanos, estão cada vez mais preocupadas com a escalada da violência e estão reconhecendo a necessidade de colaboração na resolução de problemas que afetam, ainda que de maneira diferente, tanto o estado quanto a sociedade. Estado e sociedade estão cada vez mais reconhecendo que o controle da criminalidade e da violência e a proteção e promoção dos direitos humanos não são objetivos antagônicos ou contraditórios mas complementares. O Programa Estadual de Direitos Humanos, neste contexto, é uma parte importante da estratégia do governo estadual e das organizações de direitos humanos, em sintonia com o Programa Nacional de Direitos Humanos, de compatibilizar programas de controle da criminalidade e da violência com programas de promoção da cidadania. Da mesma forma como no processo de elaboração, o processo de implementação do PEDH dependerá de parcerias entre o estado e a sociedade civil. A criação e rápida instalação da Comissão Especial de Acompanhamento do PEDH, com representantes do estado e sociedade civil, é um sinal promissor para o futuro destas parcerias e do Programa Estadual. Os desafios são grandes, mas nunca houve na história brasileira uma oportunidade tão favorável quanto a que se apresenta agora em São Paulo para o Poder Executivo, o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, o Ministério Público e as organizações da sociedade civil, com apoio do Poder Executivo Federal, através da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, colaborarem para mostrar de fato como políticas e programas governamentais podem contribuir para controlar a criminalidade e a violência e ao mesmo tempo promover a cidadania e os direitos humanos. 1. O Programa Estadual de Direitos Humanos foi instituido através do Decreto 42.209/97. Ver o texto do Programa Estadual em São Paulo, Governo do Estado, Programa Estadual de Direitos Humanos (São Paulo: Imprensa Oficial, 1997). O Programa Nacional de Direitos Humanos foi lançado pelo presidente Ferna ndo Henrique Cardoso no dia 13 de maio de 1996. Ver Programa Nacional em Brasil, Presidência da República, Governo Fernando Henrique Cardoso, Programa Nacional de Direitos Humanos (Brasília: Presidência da República, Secretaria da Comunicação Social e Ministério da Justiça, 1996) ou nas páginas do Ministério da Justiça e da Rede Telemática de Direitos Humanos e Cultura na Internet (www.mj.gov.br e www.dhnet.org.br.) 2. Sobre a repressão política durante o regime autoritário, ver Arquidiocese de São Paulo, Brasil "Tortura Nunca Mais" (Petrópolis: Vozes, 1985). 3. Sobre a origem e o primeiro ano do Programa Nacional de Direitos Humanos, ver Paulo de Mesquita Neto, "Programa Nacional de Direitos Humanos: Continuidade ou Mudança no Tratamento dos Direitos Humanos no Brasil?", em Revista CEJ 1, e Paulo Sérgio Pinheiro e Paulo Mesquita Neto, 'Programa Naiconal de Direitos Humanos; avaliação do primeiro ano e perspectivas em Estudos Avançados 30.

4. Número de civis mortos pela polícia fornecidos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, reproduzidos em Paul Chevigny, "The Edge of the Knive.: Police Violence in the Americas" (New York; The New Press, 1995), incluindo apenas civis mortos por policiais militares. Ver também Núcleo de Estudos da Violência e Comissão Teotônio Vilela, "Direitos Humanos no Brasil" (São Paulo: NEV - USP e CTV, 1993), capítulo 2, "As violações dos direitos fundamentais no Brasil". As taxas de mortalidade por homicídios calculadas pelo autor, a partir de dados de mortalidade do Sistema de Informação sobre Mortalidade/Ministério da Saúde e de dados populacionais da Fundação Seade. 5. Ver artigo de Cristina Neme e Beatriz Stella Affonso, reproduzido em Núcleo de Estudos da Violência e Comissão Teotônio Vilela, "Direitos Humanos no Brasil" (São Paulo: NEV- USP E CTV, 1993) 6. Ver relatório de Joanna Wescheler, da Humann Rights Watch, reproduzido em Núcleo de Estudos da Violência e Comissão Teotônio Vilela, "Direitos Humanos no Brasil" (São Paulo: NEVUSP E CTV, 1993). 7. Número de civis mortos pela polícia fornecidos pela Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, incluindo apenas os civis mortos por policiais militares. Não foram fornecidos dados para o Estado de São Paulo. 8. Ver São Paulo, Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, Relatório Anual de Prestação de Contas 1996 (São Paulo: Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo. 1997). 9. Ver José Vicente da Silva Filho, "Polícia Brasileira: a oportunidade da Crise". Manuscrito (São Paulo: Instituto Fernand Braudel de Ecomonia Mundial, 1997) 10. Número de civis mortos pela polícia fornecido pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, incluindo apenas civis mortos por policiais militares. Não foram fornecidos dados para o Estado de São Paulo. 11. Dados de Paul Chevigny, "The Edge of the Knive: Police Violence in the Americas" (New York Press, 1995) 12. Dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Não foram fornecidos dados para o Estado de São Paulo. 13. Dados da Folha de São Paulo, 2 de março de 1997, página 3-2, e The New York Times, 4 de janeiro de 1998, página 17 14. Ver Núcleo de Estudos da Violência , "1ª Conferência Estadual de Direitos Humanos - Relatório Preliminar", Manuscrito (São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 1997)

POR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA: O PROBLEMA DOS DIREITOS HUMANOS Renato Janine Ribeiro Professor de Filosofia Política e Ética - Faculdade de Filosofia – USP

Parecerá talvez inoportuno, numa sessão que tem um duplo papel - o de promover a discussão sobre os direitos humanos, assumindo assim um perfil intelectual, e o de estimular o seu cumprimento, voltando-se desta forma para a ação -, suscitar algumas dúvidas sobre os riscos que teriam eles de contrapor-se à boa constituição do regime democrático. Isto, em primeiro lugar, porque para funcionar bem a ação, que é um dos fins legítimos de nosso encontro hoje, convém não suscitar demasiadas dúvidas sobre o bom fundamento da problemática dos direitos humanos, e porque, em segundo lugar, do viés da teoria, estamos nos acostumando à idéia de que estes constituiriam importante barômetro para aferir o caráter mais, ou menos, democrático de um Estado, de uma sociedade. Mas é justamente por aí que me parece fundamental introduzir o agulhão crítico. Podemos, assim, partir da história, que nos mostra que o conceito de democracia data dos gregos, e tem por sentido básico o de poder do povo. Em face desse poder, mostra-nos Benjamin Constant em conferência de 1819, entitulada "Da liberdade dos antigos, comparada à dos modernos"1, não vigorava nenhum poder do indivíduo enquanto tal, nenhuma liberdade de qualquer parte separada: o todo era tudo, as partes pouco seriam. Com o declínio de Atenas, entra também a forma democrática em decadência, somente ressurgindo, pode-se dizer, em alguns momentos nas cidades-Estado italianas das primeiras Renascenças - e, ainda assim, no bojo de conflitos entre três formas de poder, a saber, a República patrícia, a democracia popular e a monarquia que termina por colher os despojos desse enfrentamento entre o poder do povo e o poder dos melhores, dos optimata, dos aristoi. Ou, de novo, em Genebra, cidade, porém, que está mais para a República aristocrática do que para a democracia do povo miúdo, e que, além disso, passada a teocracia de Calvino, só deve sua fama positiva a algumas passagens da obra de Rousseau, que a própria Cidade, contudo, depois repudiaria. Isto para assinalar que, quando em fins do século XVIII a democracia começa a voltar à ordem do dia, trata-se de regime que havia muito se tornara mais literatura do que prática efetiva. E no entanto gozou ele, nos dias da Revolução Francesa, e já um pouco antes disso nos escritos de Rousseau e Mably, de fama e apreço. É nesse quadro, de revival da democracia, e ao mesmo tempo de balanço, em 1819, de seu primeiro fracasso, que Constant medita. E ele entende que, se ela falhou, foi porque o conceito de liberdade mudou, dos gregos para nossos dias, e que desconhecê- lo foi o erro decisivo dos modernos - entenda-se, embora ele não o diga com todas as letras, dos democratas. Precisamos perceber que a liberdade moderna já não está propriamente no direito da coletividade a um poder irrestrito - em suma, o que aparecia no termo democracia, "poder do povo" - mas no direito de cada indivíduo a uma ampla esfera de direitos em que não interfere o Estado. É certo que Constant não é entusiasta da democracia, e que além disso escreve num momento de seu quase completo recesso, procurando sobretudo garantir um conjunto de liberdades que correspondam àquelas em cuja defesa ele e Mme. de Stal lutaram, contra o regime napoleônico, e que a seu ver continuam válidas, sob a Restauração. Sabemos que ele é liberal, mais que democrata. Mas devemos prestar atenção à sua tese: ela nos diz, para usarmos termos mais atuais, que a liberdade típica dos modernos, aquela a que jamais renunciaremos porque descreve a essência de nosso ser- no-mundo, consiste no que chamaremos os direitos humanos, mais do que em nossa parte, que acaba sendo ínfima, imperceptível, infinitesimal, na construção do espaço político comum e mais ou menos igualitário, que é o da democracia.

Nem Constant nem a maior parte dos teóricos, porém, disso concluirão que a democracia e os direitos humanos se oponham de forma radical e irredutível. O argumento aqui presente indica, contudo, que obedecem a lógicas distintas. Com efeito, se enfatizarmos o poder popular, poucos serão os direitos que contra ele continuarão em vigor. Em especial, há todo um medo do sufrágio universal, que atravessa o século XIX, e que consiste basicamente no receio, que exprimem os patriciados, de que, ao adquirir esse direito básico ao voto, o povo - isto é, a grande massa feita mais de pobres que de ricos - termine por expropriar esses últimos. O caráter democrático da sociedade é, assim, negado, a fim de que se preserve um direito (humano) constituído como essencial, o direito de propriedade. Assim, se inversamente enfatizarmos os direitos humanos, sempre vislumbrados ex parte individui, o poder do povo para decidir ficará contido e limitado. Mas é evidente, também, que se esses dois valores obedecem a lógicas distintas e mesmo potencialmente opostas, é possível a convergência, ainda que tensa - mas de uma tensão dialética, produtiva -, entre eles. E assim sucederá se entendermos que o conceito antigo de democracia se enriquece quando a ele se somam, modernamente, os direitos humanos. Temos, assim, o poder do povo qualificado - matizado, nuançado - pelos direitos de cada um. Penso ser por aí que devam orientar-se nossa ação e nossa reflexão. Disso, eu gostaria de desenvolver dois pontos. O primeiro é mais propriamente teórico. Entendo que, se desejamos ter uma democracia, devemos evitar o que me parece um erro conceitual de pesadas conseqüências práticas, e que consiste em incluir entre os direitos humanos, sem nenhuma saliência própria, os direitos que dizem respeito à constituição mesma de um poder democrático. Não cabe reduzir o primado, de direito, que tem a construção coletiva do espaço de todos, sobre os direitos de cada um. Em outras palavras, há uma impropriedade conceitual quando simplesmente se menciona, em meio à enumeração de tantos outros direitos humanos - à vida, à propriedade, à justiça -, um direito ao voto, e por aí à participação na coisa pública. O que sustento é que esse direito ao voto, que somente se pode entender como simbolizando um direito bem mais amplo a participar da construção do espaço comum de decisões, e que por isso mesmo cabe compreender como sendo quase tanto um dever quanto é um direito, excede o rol dos direitos humanos, para se colocar como constitutivo em relação a eles. Sem democracia, não há relação de direitos humanos que seja conseqüente. Podemos até imaginar que, num regime aristocrático ou monárquico que fosse, ao modo de Montesquieu, um Estado de direito, os juízes aplicassem com extraordinário rigor e cuidado o espírito e a letra da lei em favor de cada um. É conceitualmente imaginável, pois, o Estado de direito sem a democracia, o cumprimento dos direitos humanos sem o poder do povo. Mas é, na prática, raríssimo ou inexistente esse regime, e eu acrescentaria: é impossível por princípio. Porque somente o poder do povo pode fundar os direitos humanos. A tese que assim proponho retoma, em certa medida, a lição dos clássicos. Os direitos humanos se agregam à democracia, mas não chegam a incluí- la no seu rol. Ela assume, em relação a eles, papel de fundadora. Somente ela pode dizê- los - e, falando aqui, num espaço que é de uma Faculdade de Direito, todos hão de compreender melhor que eu o papel da jurisdição que convém atribuir à forma democrática. Somente o demos pode, em última instância, constituir os direitos humanos. Isto remeterá a uma segunda conclusão que deixo, por ora, em suspenso, porque antes preciso e quero esclarecer por que dizia que, simplesmente arrolando os direitos propriamente democráticos entre os direitos humanos em geral, há de se chegar a conseqüências indesejadas. Aqui temos, com efeito, o grande risco dos direitos humanos: à medida que se constituíram ex parte individui - e não ex parte populi, porque justamente, em boa medida, desagregaram a unidade, esta ao intuir de Constant antiga e inapropriada aos tempos modernos, do povo -, eles tenderam a exprimir a idéia, ou a suposição, de que os direitos não estão associados a deveres. Não quero, com isso, ingressar na tópica, altamente conservadora, de que recentemente se teria insistido demais nos direitos e de menos nos deveres, e de que seria este o erro da Constituição de 1988.

Quero, apenas, notar que a fusão direito/dever caracteriza, intrinsecamente, um direito em particular, que é o de constituir o Estado democrático. No que respeita aos demais direitos, como o à vida, à propriedade, à justiça, o dever que cada qual tem é conseqüência do seu direito, é seu reverso: se quero ter a propriedade preservada, ou que se aplique justiça a mim, é desejável, por princípio, que respeite a propriedade ou os direitos alheios. Mas mesmo isso não é tão intangível, já que não é praxe confiscar os bens do ladrão ou grileiro, aplicar a pura violência a quem infringe os direitos do outro, matar quem tenta assassinar. Por isso, a reciprocidade direitos/deveres é, no que tange aos direitos humanos em geral, de ordem apenas ideal. Já no que se refere ao direito propriamente democrático, o de constituir o espaço político de todos, a relação direito/dever é intrínseca, é de base. "O poder é de todos" significa não apenas que cada um de nós tem o direito de participar dele, mas, também, que todos temos o dever de fazê- lo. Isso pode ser demonstrado, pelo menos, por uma redução ao absurdo. Imaginemos que, sendo facultada a participação política - e isso não se restringe à questão de ser o voto obrigatório ou não, já que o sufrágio apenas simboliza processo bem mais amplo e profundo de atuação na coisa pública -, a grande maioria dela se abstivesse. Imaginemos, mesmo, que todos se abstivessem. Que restaria, neste segundo caso, do Estado e mesmo da vida social, ou, no primeiro caso, da forma democrática? A democracia assim retoma um traço que o pensamento político associa mais à república que ao poder do povo: o do dever. Com efeito, foi mais o pensamento republicano que insistiu na primazia do coletivo, do bem comum, da res publica, sobre o bem privado, o interesse particular. Mas penso, se queremos dar o merecido peso à idéia de fundamento ou fundação, que devemos incorporar ao pensamento democrático esse princípio republicano. Explicando- me melhor: fundar os direitos humanos significa procurar qual é a base teórica que os legitima. Esta somente pode ser o direito natural revelado, ou então o direito instituído por um princípio bastante forte, que a meu ver será o do povo no poder, proclamando valores básicos que são os da igualdade, liberdade e fraternidade. Mas, além disso, fundar os direitos humanos significa algo de forte e imediato resultado prático. O problema, argumento, não é apenas de teoria, é também de prática. Fundar, aqui, significa assegurar o cumprimento. E o que poderá garantir o seu cumprimento, se não a ancoragem, no próprio modo como se constitui um regime político, de valores como os da igualdade, liberdade e solidariedade? *** Disto se poderá entender a segunda conseqüência que se pode extrair das teses ora sustentadas. Ela é - se o poder do povo aparece como o que constitui e institui os direitos humanos, ou melhor, se os direitos humanos são instituídos a partir da constituição do povo a si próprio como detentor da soberania, do poder político - que uma cultura democrática não se esgota na definição de um regime estritamente de poder, no interior do qual vigorariam os direitos de voto democráticos. Dizendo-o mais claramente: é pouco, e pouco sustentável, uma democracia que se confinasse na forma de governo. A democracia é, necessariamente, uma cultura, e por isso mesmo se expande do que se refere ao Estado para o que diz respeito à sociedade como um todo. Um Estado democrático é pouco, e até mesmo contraditório tanto em teoria quanto na prática, se não pertencer a uma sociedade democrática. A questão, portanto, não está em assegurar o caráter democrático do Estado, se com isso não garantirmos o caráter democrático da sociedade. Não podemos mais, e este talvez seja um diferencial decisivo em relação aos antigos, ter uma sociedade discriminadora ao mesmo tempo que um Estado de formas democráticas. Modernamente se torna absurdo o quadro de uma ágora dos homens livres contra o pano de fundo da escravidão, por um lado, da carência de direitos das mulheres e dos estrangeiros a Atenas, por outro. Se Atenas suscita em nós a admiração de ter sido a primeira sociedade intensamente democrática, uma espécie de paradigma contra o qual não paramos de nos medir, e isso a nosso desapreço, não deixa de ser verdade que ela também desperta, em nós, a estranheza ante essas exclusões. Não se trata, é claro, de julgar anacronicamente o Estado ateniense. Mas de assinalar que, hoje, não há democracia sem

formas de sociabilidade, ou socialidade, que valorizem a liberdade, a igualdade, a fraternidade. Sem este caldo de cultura, a democracia não vigirá como regime. Afirmar, assim, que a democracia somente se consolida quando as relações de afeto, as relações de moradia e as relações de trabalho, para falarmos das principais, passam a se impregnar de valores democráticos, e por isso mesmo deixam de pertencer à mera esfera privada, na qual o demos não teria o direito de interferir, para constituírem o cerne de uma nova e reciclada vida pública, não é apenas expandir a esfera dos direitos. É alertar para uma dificuldade extraordinária, com que se depara quem quer que se interesse pelas temáticas, tensas porém correlatas, da democracia e dos direitos humanos. É que, em nossa sociedade, a impregnação dos valores democráticos está apenas esboçada. Pesquisas de opinião pública afirmam, a direita proclama, programas de rádio pontificam que haveria forte contradição entre o respeito aos direitos humanos e a segurança pública; que somente cessará a violência difusa e privada assegurando-se imunidade aos que pratiquem a violência pública, ilimitada, contra os suspeitos. Sabemos, nós que aqui estamos, do absurdo teórico e prático que esses postulados representam. Mas até agora não temos sido capazes de fazê- los reverter. Assim, a tese que sustento e que de forma alguma é consoladora, ao contrário, exigirá não poucos esforços, é que a reforma do Estado na direção dos direitos humanos exigirá também a reforma da sociedade no rumo dos mesmos direitos e dos valores democráticos. A tarefa não é pequena. Mas de seu êxito depende tudo, até mesmo a sensação de que viver vale a pena.

1. Trad. em português na revista Filosofia política, n. 2 (1985), pp. 9-26.

VERSO E REVERSO: O PROGRAMA DE DIREITOS HUMANOS Maria Ignês Rocha de Souza Bierrenbach Ex-Presidente do Condepe (SP) - Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - São Paulo

Os Programas Nacional e Estadual de Direitos Humanos - PEDH - se inscrevem no cenário mais amplo da realidade nacional e sua estrutura econômica-política e social, na perspectiva do longo e árduo processo de redemocratização do país. Baseiam-se em um conjunto de princípios que os perpassam, objetivando a construção de uma sociedade mais justa, mais solidária, mais humana, que deve orientar a aplicação de todas as medidas de um conjunto orgânico de proposições. Abrangem direitos constitucionalmente consagrados, assim como ratificados pelo Brasil nas convenções internacionais, e, portanto, com força de lei no território nacional. Entretanto, as ideologias, as contradições e as relações de poder da sociedade são forças vivas e atuantes e se reproduzem no interior dos Programas, dando- lhes sua conformação. Os Programas de Direitos Humanos são emblemáticos numa sociedade que dá seus primeiros passos para uma mudança de mentalidade essencial para o resgate da cidadania em nosso país. Numa relação etiológica, pretendem ser o instrumento da disseminação da cultura de defesa de direitos por todo o país e combate à violência e à impunidade. Em outras palavras, pretendem eliminar a aplicação do direito como privilégio e resgatar a universalidade das leis, assegurando direitos individuais, mas também os coletivos num Estado democrático de Direito. Entretanto, se tivéssemos que qualificá- los em uma única palavra, diríamos, são essencialmente democráticos, tanto na sua forma como no seu conteúdo e, portanto, imbuidos de componentes positivos e, paradoxalmente, de componentes negativos inerentes à sua propria natureza. Na presente análise vamos buscar salientar os componentes positivos, pois se constituem a força de propulsão dos programas, sem esquecer os componentes negativos, cujo conhecimento é a melhor forma de desmobilizá- los e ajudar a superar os inúmeros obstáculos a serem enfrentados. DILEMAS E DESAFIOS O Programa Estadual, assim como seu congênere nacional, nasceu sob os auspícios do resgate dos Direitos Humanos na nossa sociedade e contribuiu para que a defesa de direitos, por vezes mal interpretada e considerada uma preocupação de grupos restritos, se ampliasse e se tornasse parte integrante da agenda política nacional. Isto não quer dizer que o problema esteja resolvido, que não haja resistências ou rejeição de setores da sociedade, mas cabe destacar que, na atual conjuntura, os direitos humanos não podem ser ignorados ou considerados uma atividade de somenos importancia ou de segunda classe. Além disso, comprometem o Estado na proteção e promoção dos Direitos Humanos, trazendo-os para o patamar das políticas públicas, tal como a Educação, a Saúde, a Habitação,

dimensões com as quais interage, propondo medidas nas suas interfaces e reconhecendo o seu alcance econômico-social e suas limitações no combate à violência estrutural. O Programa paulista avança em relação ao nacional, que dá prioridade aos direitos civís, particularmente à vida, à integridade física e à justiça, sem negar a indissociabilidade dos direitos. O programa estadual propõe medidas de geração de renda, emprego e aborda a questão das reformas agrária e fundiária, adotando a concepção abrangente de direitos e se distanciando da acepção tradicional, restrita aos direitos civís e políticos, onde ocorrem as tradicionais violações de direitos. O Programa Estadual de Direitos Humanos- PEDH , já em seu lançamento, podemos afirmar, é uma conquista da sociedade, porque não foi concebido centralizadamente e nem imposto de cima para baixo, mas é produto de um amplo processo de participação e debates. Embora não seja um produto pronto e acabado, é expressão da clara e explicita vontade política do governo em correlação à manifestação dos anseios da população e das necessidades dos segmentos excluídos e será um quadro de referência do compromisso das partes envolvidas. É o registro do resultado de uma mudança de diretriz nas elaborações das próprias organizações não governamentais, que de certa forma evoluiram de uma posição denuncista, mais condizente com a época de autoritarismo, para uma posição propositiva, de quem assume sua parcela de responsabilidade na construção democrática do país. O PEDH, se por um lado já cumpriu uma importante etapa de mobilização e conscientização social, por outro lado será um norte a ser alcançado num contexto de avanços e recuos, pois a violência não desaparecerá num toque de mágica, mas as conquistas se darão no contexto de lutas e contradições da sociedade. Na atual conjuntura, as graves e recorrentes violações de direito , a recente violência policial da chamada "Favela Naval" de Diadema (revista arbitrária da população) e da "Fazenda da Juta", (desocupação judicial de um conjunto habitacional), com mortes e outros crimes, ao serem noticiados pelos meios de comunicacão, repercutindo na sociedade, paradoxalmente, contribuiram para a conscientização da população para o problema e engendraram a aprovação de várias medidas legislativas (a exemplo da lei disciplinando o crime de tortura), caracterizando-se avanços setoriais no campo de direitos humanos. Em outras palavras, a mídia e a indignação da opinião pública diante dos atos de barbárie e violência têm sido fundamentais para alavancar as propugnadas medidas de defesa de direitos em nossa sociedade. O PEDH é, ainda, produto de uma parceria dos setores organizados da sociedade civil em articulação com setores governamentais e, neste sentido, é inovador, sobretudo ao examinar-se um passado recente onde estas interrelações simplesmente não existiam, ou eram eivadas de desconfiança mútuas, gerando um dis tanciamento programado e um fosso intransponível. Atualmente, são reconhecidas como essenciais as atividades do chamado terceiro setor, as organizações não governamentais, numa perspectiva de autonomia e auto-gestão da sociedade, sem pretender substituir o Estado e sem prescindir do seu papel para orientar as questões de equidade e justiça social. Em sua dimensão política, o Programa de Direitos Humanos, é uma articulação dos setores comprometidos da sociedade, visando consolidar e ampliar o leque de adesões, pactos e negociações em torno de ações concretas e efetivas a curto e a médio prazos.

Trata-se de um programa governamental, embora muitas medidas sejam apresentadas em forma de projetos de lei, tendo as Assembléias Legislativas e a Câmara Federal presenças fundamentais na aprovação do arcabouço jurídico que vai influir nas decisões do Poder Judiciário. Torna-se evidenciada a necessária cooperação entre as três instâncias de poder, numa perspectiva integrada de articulação e ação na promoção e proteção de direitos na nossa sociedade. Entretanto, há de se ter em conta que os referidos poderes, em geral, são estanques, não se comunicam entre si, e cada um deles não se constitui num bloco monolítico de pensamento, mas se fragmenta em "n" linhas de interesses, dificultando a abordagem conjunta, que tanto tem colaborado para obstaculizar as ações de defesa de direitos. Entretanto, não se trata de um programa partidário, sujeito às implicações de caráter populista ou politiqueiro que comprometeria indelevelmente seus princípios fundamentais de universabilidade e indivisibilidade dos direitos. A dimensão educacional do Programa está inscrita nas relevantes medidas de "Educação para os Direitos Humanos", numa perspectiva interdisciplinar. Num contexto de impunidade e da cultura de violência, o Programa de Direitos Humanos tem, também, essa atividade didática-pedagógica, no sentido de esclarecer os conceitos e dirimir os preconceitos e as discriminações que impregnam nossa sociedade, contribuindo para a aceitação das diferenças, a democratização das relações interpessoais e o arejamento das instituições. Nesse cenário, todos são protagonistas e não há atores secundários, o que talvez explique os altos números e a qualidade da participação da população no processo de construção do PEDH e exija a presença no seu monitoramento e se constitui a força e a fragilidade do programa.

2 Força, medo, liberdade: censura e auto-censura no Brasil do século XX.

FORÇA, MEDO, LIBERDADE: ALGUMAS COISAS NÃO COMBINAM ENTRE SI... Maria Luiza Tucci Carneiro* Professora do Departamento de História da USP

A proposta deste ensaio é refletir sobre a liberdade, um dos fenômenos mais inquietantes da história do homem. Sentir-se em liberdade é, antes de mais nada, um estado de espírito e este é inconfundível. Possuímos uma inquietante satisfação em saber que temos direito à liberdade. No entanto, esta liberdade possível - e que não deve ser confundida com a utópica - está intrinsicamente ligada ao papel do Estado e à força que este tem de interferir (e gerenciar) os direitos do cidadão. Força, medo, liberdade: ao analisarmos estas palavras, em conjunto, perceberemos que elas nos soam estranhas. Liberdade não combina com força; mas força tem muito a ver com medo. Liberdade - do latim libertate - implica na liberdade que cada um tem de decidir ou agir segundo a sua própria determinação. É difícil pensarmos que agimos nos limites de uma sociedade organizada e que, em princípio, impõe regras: regras de conduta, de moral, de linguagem. Portanto, liberdade é o "que se pode praticar dentro dos limites impostos por normas definidas" ou seja: é o reverso do proibido. E, segundo normas sociais, proibido é tudo que é anormal, imoral, ilegítimo, anômalo. No nosso cotidiano convivemos com múltiplos tipos de liberdade: liberdade de imprensa, liberdade civil, liberdade de ensino, liberdade de linguagem, liberdade vigiada e liberdade de pensamento, direitos fundamentais do homem. Portanto, é difícil pensarmos em censura sem apontarmos para o verso, que é a sua condição de ser : a ausência de liberdade. Daí "liberdade" implicar sempre num direito, numa condição. Se por um lado liberdade nos remete ao verbo "poder" - poder falar, poder escrever, poder opinar, poder pensar, censura diz respeito ao poder de força que alguém (indivíduo, empresa ou instituição) tem de impedir, de deliberar, de agir e de mandar. Portanto, censurar implica no poder que "o outro" tem de condenar, julgar, reprovar, admoestar com energia (com força), repreender. Só se consegue censurar às custas de alguma coisa ; daí a sensação de "perda", de mutilação. Neste sentido, podemos considerar medo e censura como poderosos instrumentos de controle social e que, cada qual ao seu modo, emanam energia; o que, até certo ponto, explica a persistência do medo e da censura nos sistemas ditatoriais. O medo faz calar ; tem energia para isto. Instado pelo pânico (de propagação rápida) o medo sufoca, gerando o silêncio. Daí a necessidade que as ditaduras têm de impôr medo - medo à tortura, à polícia, da morte, da fome, da peste, do desemprego, da difamação - para, através deste, sufocar as tradições de luta, as vo zes de contestação. Mas, para manter a ordem, os homens que gerenciam o poder necessitam de apontar culpados, os inimigos-objetivos, segundo conceito defendido por Hannah Arendt: judeus, comunistas, homossexuais, anarquistas, terroristas, intelectuais, negros, japoneses, ciganos, etc. Alguns elementos são expressivos das atitudes (ação) dos regimes autoritários que, diante da heterogeneidade política, cultural e racial, buscam o singular ou seja, a homogeneidade em todos os níveis, de forma a facilitar a dominação, o controle. Com este intuíto, organizam o discurso oficial oferecendo interpretações do mundo e procurando criar "novos significados" . E, para interferir ao nível do imaginário político, o Estado autoritário - para superar a crise da legitimidade - tem que gerenciar o universo simbólico dos grupos subalternos mantendo-os alienados e apresentando-os, sempre que necessário, como "culpados". Assim, ao tentar controlar e modelar as massas, os ordenadores apelam para uma série de estigmas que fortalecem o potencial negativo dos grupos excluídos por tradição. E, mesmo nos casos onde não haja tradição, inventa-se, de acôrdo com Eric Hobsbawm em seu estudo "A invenção das tradições" (1)

No caso do Brasil, referindo- me aqui ao período do Estado Novo sob o comando de Getúlio Vargas, o imaginário político foi manipulado com base em um discurso ordenador que apresentava o comunismo como inimigo a ser combatido. Acionando metáforas, analogias e tradições, o governo apresentou-se como intérprete dos sentimentos da pátria e do povo brasileiro erguendo um "dique definitivo à tenebrosa torrente que nos arrastava para o precipício da guerra civil e da convulsão nacional"(2) . Esta "tenebrosa torrente", apresentada à opinião pública no dia 30 de setembro de 1936, tinha a forma de um terrível monstro que, escondido nos subterrâneos da sociedade, planejava um violento golpe articulado com forças internacionais. "Batizado de Plano Cohen", a imagem deste monstro - "inventado" pelo Ministério da Guerra - alimentou, por muitas décadas, dois mitos políticos: o do complô internacional comunista atrelado ao mito da conspiração judaica internacional, este inspirado nos "Protocolos dos Sábios de Sião", traduzido e comentado pelo antisemita Gustavo Barroso(3). Esta montagem tinha como propósito a construção da imagem negativa dos comunistas junto à opinião pública enquanto subversivos da ordem, homens violentos, de má fé e traidores da Nação. E esta foi a imagem que persistiu no imaginário coletivo até o final dos anos 70, conforme pode-se constatar junto aos dossiês do DEOPS/SP e nos artigos publicados pela grande imprensa controlada pelo regime militar pós-64. No contexto do Brasil estadonovista, a polícia política (DOPS) assumiu um importante papel junto a dinâmica instituida pelo processo de domesticação das massas. Um dos seus principais objetivos - parte integrante do projeto político do Estado - era bloquear a heterogeneidade de pensamento, procurando silenciar as idéias sustentadas pelos grupos apontados como "potencialmente" perigosos. Com a finalidade de atuar nesta direção, a polícia procurou aperfeiçoar seu "saber técnico" contratando especialistas americanos e estreitando seu relacionamento com o FBI e a GESTAPO. Alianças selando pactos de cooperação foram articuladas entre as várias polícias, passando por Itália, Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha. Aponta-se o suspeito para, em seguida, considerá- lo como inimigo-objetivo, real ou imaginário. Transformado pelo discurso oficial em "elemento perigoso", o indesejável deve ser eliminado a fim de evitar o contágio. Alimenta-se a idéia de "purificação da sociedade", de forma a se justificar a ação da polícia e dos censores. Articula-se o mito do complô secreto adequado ao Estado que necessita de argumentos para se legitimar. Multiplicam-se os serviços secretos e a polícia ganha um novo status, mediante atribuições que lhe são delegadas pelo Estado autoritário, dito Moderno. Este foi o processo que caracterizou o governo de Getúlio Vargas que, enquanto Estado Moderno, estruturou-se de forma a garantir "a passagem de um país agrícola para um país industrializado e independente economicamente". No entanto, por trás desta concepção desenvolvimentista, escondia-se um espírito muito mais maquiavélico: o do contrôle sistemático das massas, articulado através de um plano orgânico e racional, de cunho nacionalista. O Estado Novo, além de recuperar práticas autoritárias da forma de exercer o poder, incorporou outras, mais modernas e capazes de atestar a popularidade do ditador e os trunfos alcançados por seu governo. Vargas, embuído de seu projeto político de Nação, procurou neutralizar o avanço das forças operárias, seduzindo-as através de uma intensa propaganda nacionalista. Sem muita opção, pactuou com as massas trabalhadoras barganhando a legitimação de seu governo através da outorga de uma avançada legislação trabalhista e previdenciária. Segundo Angela Gomes, autora de "A invenção do trabalhismo", Vargas encerrou, após 1941, o período de repressão ao operariado passando para a fase de "cooptação"das massas(4). Com o fechamento de todos os partidos políticos em 1937, Getúlio Vargas condenou a prática das atividades políticas à clandestinidade, transformando a ditadura num afiado instrumento capaz de conter o avanço das resistências e exterminar as críticas. Ao longo dos anos, o conceito de

crime político se alterou. Foi, portanto, através do medo, da violência fís ica e símbólica, que o Estado autoritário decapitou os movimentos de esquerda estabelecendo - na visão dos ditadores - a Nova Ordem. Este exemplo talvez explique a relação quase automática que fazemos ao tentarmos compreender o sentido da palavra "decapitar", prática comum nos regimes absolutistas que usavam a guilhotina para " cortar a cabeça", degolar empregando uma lâmina. Impera a força simbólica da imagem da tesoura identificada com o sentido que se pretende dar a censura: o do "corte", da "guilhotina que cala", "da lâmina que silencia", do "instrumento que golpeia.", da "guilhotina que cala o intelectual" amordaçando a cultura. E, se todo golpe implica em trauma, podemos considerar que toda censura implica em "traumatismos culturais". Daí as ditaduras serem anti- intelectuais, pois os intelectuais são criadores de ideías; da mesma forma como os jornalistas são criadores de informação. Ao cercear a propagação da informação, a censura "desinforma", facilitando o domínio e o contrôle das massas seduzidas (e amedrontadas) pelas versões construídas pela História Oficial. Ao analisarmos as práticas totalitárias verificamos que um dos principais objetivos é de transformar as classes em massas, o individual em coletivo. Neste contexto, o medo emerge como princíp io de ação, lembrando aqui um dos conceitos empregados por Hanah Arendt, ou seja: "o medo que o povo tem pelo governante e o medo que o governante tem do povo".(5) Sonegando informação, os regimes autoritários (varguista e militar) conseguiram - em diferentes períodos da História do Brasil contemporâneo - reduzir os riscos de crítica e as possibilidades de conflitos. Mas, por sua vez, contribuiram para aumentar o clima de tensão e de medo. O Estado autoritário tem consciência de que a imaginação amedrontada anula, como afirmou Arendt, " as interpretações sofístico-dialéticas da política"(6). Homogeneizando o pensamento, diminuem-se os riscos de contestação, seguindo à risca o padrão de construção e do consenso. Daí a censura não ser aleatória. Ela segue uma lógica e persegue um objetivo: o de dominar pela força do silêncio imposto, definindo os limites entre o lícito e o ilícito. A censura tem o poder de alimentar a ficção, levando o povo a viver o irreal, por falta de opção, de alternativa. Oportuna é a expressão "imprensa alternativa" que, no Brasil, expressa a trajetória de vida de múltiplos jornais efêmeros, sufocados pelo poder. Na história da ditadura militar, estes jornais pareciam "vozes surdas" que, nos porões da sociedade, sussurravam mensagens de luta, alimentando os movimentos de resistência. A História do Brasil, infelizmente e desde os seus primórdios, conta com a prática da censura cujos reflexos concentraram-se em dois períodos, bastante críticos, de autoritarismo: do Estado Novo (1935-1945) e da ditadura militar (1964-1985), que primou por uma década de maior perversão (1968-1978). Hoje, diante da abertura parcial de alguns arquivos ditos confidenciais (DOPS e Itamaraty, por exemplo) temos a possibilidade de recuperar parte desta memória que nos comprova que o Brasil nunca soube lidar com a democracia. O Estado Novo ao mesmo tempo que simboliza a apoteóse de um lento processo de construção do pensamento autoritário no Brasil gestado desde décadas anteriores, também expressa a interrupção do processo de democratização que, em 1930, tentou se fortalecer enquanto projeto político e que acabou sendo abafado pela vertente autoritária que persistiu até 1946. E esta vertente, segundo José Nilo Tavares em seu artigo "Getúlio Vargas e o Estado Novo", foi recuperada, aperfeiçoada e levada até as últimas consequências com o golpe militar de 64, que reeditou a Ideologia da Ordem traduzida na Doutrina de Segurança Nacional(7). Os documentos de censura aos livros e aos intelectuais identificados junto aos arquivos policiais, do DIP e dos arquivos particulares dos jornais da grande imprensa e da imprensa alternativa nos comprovam que, por cerca de um século, o controle da cultura foi uma questão do

Estado republicano. A censura, a imposição do medo, o cerceamento das liberdades individuais e a ação de uma polícia política sempre fizeram parte dos projetos políticos articulados pelo poder autoritário. O ato de saneamento ideológico proposto pelos regimes autoritários processou-se em diferentes categorias ou seja: ao nível da censura exógena (articulada pelo Estado) e ao nível da auto-censura, definida por Bernardo Kuscinsky como a "supressão intencional da informação", ou ainda como a "fraude intelectual com autoria". Ambas impedem o exercício da liberdade deixando cicatrizes. Ambas têm intenção de mentir, suprimindo a informação e iludindo o leitor que se vê, indefeso, diante de diferentes modalidades de mentira(8). Infelizmente, a auto-censura não deixa testemunhos, pois diz respeito apenas ao jornalista, ao escritor ou ao intelectual (como queiram) que estrutura seu pensamento filtrando o que considera que pode ou não vir a público, agindo por medo ou por coação. Portanto, o processo se dá a nível pessoal, mesmo que induzido pelos princípios da empresa, de uma seita ou instituição. Assim, a censura é sempre repressiva, mesmo que seja por prevenção(9), visto que ela sempre impede o exercício da liberdade. Com base nestas reflexões, gostaría de apontar alguns exemplos que testemunham a prática da censura no Brasil em diferentes momentos. E, podemos considerar que a radicalização por parte dos regimes saneadores de idéias influenciaram a gestação de uma literatura e de uma imprensa alternativas - sediciosas, segundo Darnton - que se viram obrigadas a circular nos subterrâneos da sociedade brasileira. E, a partir do momento em que as leis oficializaram a proibição, a cultura se fez amordaçada. Do lado repressor, instituiu-se o quê os cidadãos poderiam escrever e ler , alimentando as atitudes de delação consideradas por muitos como um "ato de fé", ou seja, de estar servindo a Deus (como constatamos junto à Inquisição Ibérica) ou à Nação, prática comum às sociedade governadas por regimes autoritários ou totalitários. Tanto os homens do poder (os repressores), como os revolucionários, sempre tiveram consciência da força da palavra, pois é através do discurso oral ou escrito que as ideías circulam seduzindo, reelaborando valores e gerando novas atitudes. O que os censores sempre tentaram impedir é que as massas passassem do "estado de sedução" para o "estado de revolução aberta"(10). Isto explica a grande quantidade de documentos encontrados junto aos arquivos da Polícia Política que, sob múltiplas nuances, testemunham de um lado, a prática de atos repressivos por parte do Estado (daí censura exógena) e, de outro, a persistência de movimentos de resistência que, pactuando entre sí, conseguiram divulgar suas idéias, expressão das utopias e desencantos com a República em crise(11). Constatamos que, durante o período de atuação da Polícia Política (1924-1983), a proibição e a apreensão de obras ditas subversivas foram uma constante. Tanto a análise dos documentos policiais como das obras confiscadas (livros, jornais da imprensa alternativa, panfletos, boletins, brochuras, etc) remete-nos a múltiplos elementos simbólicos que, como componentes de retóricas diferenciadas, alimentaram o imaginário político do século XX. Ambos os lados - tanto o ordenador/repressor como o revolucio nário/sedicioso -geraram rituais, alimentando mitos. Ao tentarmos reconstituir alguns marcos significativos da história da censura no Brasil, cabe lembrarmos que em 1808 deu-se o estabelecimento compulsório da Imprensa Régia no Rio de Janeiro. No entanto, este ato que deveria simbolizar uma "abertura", apenas reiterou o caráter restritivo das publicações, levando a imprensa brasileira a nascer e a viver sob o signo da censura. Em 28 de agosto de 1821 foi proclamada a liberdade de imprensa no Brasil, liberando o acesso aos livros dos autores da Ilustração, cujas ideías passaram a circular pelos jornais ampliando o público leitor e consumidor destas obras. Preparava-se a sociedade para a chegada da modernidade; gestava-

se, através da configuração de um novo pensamento, a construção de um Estado liberal. Nada, no entanto, impediu a persistência da censura e, nem mesmo, dos "subversivos" que, com a instalação do regime republicano, passaram a tecer suas críticas. O Estado, por sua vez, acionou suas forças e, sob a fachada de falsos slogans - Liberdade, Fraternidade e Igualdade - promulgou seu primeiro ato censor em 1924, oficializado na Lei Adolfo Gordo. Um segundo golpe à liberdade de expressão foi dado em dezembro de 1933 quando Francisco Antunes Maciel, Ministro da Justiça, publicou as regras do controle no Diário da Assembléia Nacional. Proibiam-se: "...as críticas ao governo em termos acrimoniosos; expressões e referências pejorativas aos seus membros, notícias que pudessem prejudicar a ordem pública, agressões pessoais a quem quer que fosse, críticas aos governos estrangeiros e seus representantes, informações que pudessem traduzir alarmes ou apreensões e, finalmente, boatos de tendenciosidade manifesta''(12). A Constituição de 1934, em seu artigo 113, item 9, deixou evidente em suas ressalvas que não seria tolerada a propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política e social. Aumentou o clima de tensão, medo e desconfiança, intensificado após a Intentona Comunista de 1935, mediante a decretação de Estado de Sítio e censura à imprensa, esta admitida constitucionalmente em 1937 e oficializada na figura do DIP- Departamento de Imprensa e Propaganda, em 1939. O DIP atuava de forma a buscar a uniformização da informação complementada pela Ação da Polícia Política que, numa postura vigilante, saía à caça dos hereges. Os seguidores do credo vermelho e, em especial aqueles identificados como judeus, russos, espanhóis e lituanos, tornaramse os alvos centrais da atenção daqueles que eram os braços de repressão do regime. Multiplicaramse as ordens e as práticas repressoras documentadas nos milhares de prontuários nominais que fazem parte dos arquivos da Polícia Política, ainda hoje sob censura. O DOPS, que atuou no Brasil desde 1924, além de ser o braço repressor do Estado, deve ser também considerado como um agente ativo da censura. Preocupado em sustar a propagação de idéias revolucionárias, a polícia política adotou medidas administrativas sistemáticas, assim como endossou o discurso ordenador e saneador articulado pelo regime oficial. Através da lógica da suspeição manteve-se vigilante, procurando sempre que possível, apreender a literatura "perigosa" e processar seus mentores intelectuais . Romper o cerceamento censório tornou-se uma das metas dos intelectuais revolucionários que, através de suas idéias e livros, tentavam enfraquecer o projeto de hegemonia cultural e dominação política defendida pelo Estado autoritário. O Estado Novo entrou em agonia mas, nem porisso, a censura desapareceu. Ao contrário, após o golpe militar de 64 ressurgiu das cinzas, revigorada pelo Decreto 1077 que legalizou a censura prévia no governo Médici. Uma das metas do regime militar foi sufocar as vozes descontentes e de apagar as referências culturais, consciente de que é muito mais fácil manipular um povo sem referências do que tentar conter suas críticas. Nas entrelinhas - alimentada pelo medo e pela repressão - persistiu a auto-censura abordada por Bernardo Kuscinky como "um pacto não escrito entre o jornalista e a hierarquia militar". Em 1968, o AI 5 encarregou-se de lapidar as informações, intensificando o controle das idéias e dos intelectuais apontados como "possíveis mentores da subversão" (até que se provasse em contrário). Todo e qualquer cidadão tornou-se um suspeito em potencial, assim como as múltiplas formas possíveis de manifestação cultural e política. Conferências, palestras, lançamento de livros, shows de música popular brasileira, peças teatrais, aulas nas universidades, programas de rádio e televisão, a grande e a pequena imprensa, enfim, o Brasil ficou sob a mira dos militares. Os

documentos que hoje integram, aleatóriamente, os dossiês do DEOPS/SP, são testemunhos da intensidade do olhar vigilante do regime atento a qualquer sussurro. A título de ilustração gostaria de citar aqui um pedido de busca (confidencial) solicitado pelo II Exército em 18 de outubro de 1976. Dentre tantos outros subtítulos (temas), nos chamam a atenção os itens c.9, c.10 e c.11, intitulados "Panorama da MPB - Hoje"; "Política Cultural" e "TVCultura e Controle". Assinalados com pontos pretos (destaques para os investigadores), os nomes emergem articulados numa sequência lógica de explicações necessárias para compor o perfil de cada suspeito. No "Panorama da MPB-Hoje" encontram-se arrolados os nomes de Paulinho da Viola, José Miguel Wisnik, dentre outros, acompanhados da explicação "sobre os quais nada consta".(13) No tema "Política Cultural" temos Fernando Henrique Cardoso, que já possuia Prontuário aberto sob o nº 1371, sob " censura prévia"; Carlos Lemos (também prontuariado), dentre outros. Em "TV e Controle" identificamos o seguinte registro sobre Dias Gomes (Dossiê 1841/7), então autor de novelas da TV Globo: que este havia visitado a Rússia em 1953 a convite da VOKS (Sociedade de Relações Culturais com o Estrangeiro) e que, via transmissão russa para o Brasil, havia difundido as seguintes declarações: "Em Moscou respira-se paz, bebe-se paz, tudo é paz"(14). Considerado como comunista, registrou-se sua prisão em 1969 sendo, em 16 de setembro de 1975, flagrado por "fazer-se passar por ex-comunista". Ao lado de Antonio Abujamra e Homero Sanches (sobre os quais "nada consta até o presente momento") vem Júlio Lerner (Dossiê nº 3670/7), cujo "currículo" foi amplamente considerado pelas autoridades. A expressão "ex" pontua a informação: ex-professor de Psicologia e Filosofia do Colégio Rio Branco, de onde foi ex-cluído (1966) por atividades subversivas. Sem interromper sua carreira de "subversivo", Lerner continuou sob vigilância. Registro: "Atua atualmente no programa tele-jornalismo na TV Globo-São Paulo, após ser despedido da TV Cultura, Canal 2, por atividades subversivas". Complementando o ato de vigilância do Exército, o DEOPS/SP registrou que Lerner, além de estudante subversivo que atuava nas arcadas da Faculdade de Direito era, também, descendente de judeus e que mantinha relações com comunistas"; portanto um "elemento perigoso em potencial".(15) Aí esta um sugestivo exemplo de surrealismo perpetrado pelos chamados serviços de informação . O " dossiê " de Lerner é significativo: afirma que ele passou a atuar no setor de telejornalismo da TV Globo, após ter sido despedido da TV Cultura de São Paulo, por atividades subversivas. Ocorre, porém, que Julio Lerner nunca trabalhou na TV Globo, bem como não foi despedido da TV Cultura. Atente-se para o fato de que esse relatório secreto das forças de segurança - apenas um dos vários que compõem a pasta do jornalista - foi produzido em 1975. O público e a imprensa podiam ver seu trabalho todas as noites no ar pela TV Cultura. Toda a cidade sabia, mas a percepção dos órgãos de informação era diferente... (o conhecido profissional - diretor de programas, produtor e repórter - permaneceu na estação até 1991, quando desligou-se da emissora...). Intelectuais e literatura marxistas continuaram a merecer a atenção dos incansáveis censores oficiais. Livros ditos "de esquerda" garantiram, durante décadas, o seu lugar de honra dentre as obras mais cassadas e confiscadas como "provas do crime de subversão". Paralelamente ao controle da bibliografia sugerida e lida nas universidades, o regime tentava fiscalizar os jornais da grande

imprensa e suprimir aqueles que eram considerados como sendo da "imprensa nanica", ambas submetidas a uma censura prévia draconiana. Longo e tenso foi o período de repressão militar que, em nenhum momento, desprezou o controle da informação. O Jornal O Estado de S. Paulo esteve sob censura prévia desde o início de agosto de 1972 até 3 de janeiro de 1975. Os últimos jornais a terem a censura levantada foram Movimento, O São Paulo e a Tribuna da Imprensa, no dia 8 de junho de 1978. O regime temia os homens de vasta cultura; professores e estudantes de Ciências Humanas e Ciências Políticas incomodavam. Através da censura prévia e da imposição da auto-censura (sustentada às custas da legalização do terror pelos orgãos de repressão), procurava-se abafar qualquer tipo de informação que trouxesse a público temas de crítica social, prisões, torturas, mortes, etc. Hoje, os atestados de óbito dispersos entre os milhares de dossiês do DEOPS, são testemunho de que muitos silenciaram. As dezenas de páginas em branco publicadas pelo Jornal da Tarde, nos anos 70,são provas de que- apesar do controle- a resistência conseguiu romper o silêncio sem fazer uso da palavra. Receitas de doces e salgados substituiram, sutilmente, os textos de denúncias. Por estes e outros tantos exemplos, o Estado republicano, censor por excelência, foi responsável pela mutilação da cultura nacional interferindo, negativamente, na construção do conceito de cidadania. Assim, o Estado tem aqui a sua responsabilidade enquanto gerenciador e legitimador da brutalidade, promotor do medo e da auto-censura. E não podemos deixar de mencionar que tanto a censura prévia como a auto-censura deixaram cicatrizes, hoje manifestas na mentalidade e no comportamento das novas gerações de jornalistas que aqui estão.

* Autora de O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração (Ed. Brasiliense); O olhar europeu: o negro na iconografia brasileira do século XIX, em co-autoria com Bóris Kossoy (EDUSP) e Livros Proibidos,Idéias Malditas.O DEOPS e as minorias silenciadas (Estação Liberdade), entre outros . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (1). HOBSBAUWN, E. e RANGER, T. A Invenção das tradições. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, pp. 271-316 (2). SCHWARTZMAN, S. (Org.) Estado Novo, um auto-retrato (Arquivo Gustavo Capanema). Brasília: UNB, 1983, p.42. (3). Protocolos dos Sábios de Sião. Tradução com comentários de Gustavo Barroso. São Paulo: Editora Minerva, 1936 (Reedição comemorativa do centenário de Gustavo Barroso. Porto Alegre: Editora Revisão, 1989; CARNEIRO, M.L.T. A trajetória de um mito no Brasil In: NOVINSKY, A. e KUPERMAN, D. (Org.) Ibéria Judaica: Roteiros da Memória. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura/ São Paulo: EDUSP, 1996, pp.487-514. (4). GOMES, A. A invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: IUPERJ; São Paulo: Vértice, 1988. (5). ARENDT, H. Ideologia e terror: uma nova forma de governo In: O sistema totalitário. Lisboa: Don Quixote, 1978, pp. 572-573. (6). TAVARES, J.N. "Getúlio Vargas e o Estado Novo" In: O Feixe e o Prisma: uma revisão do Estado Novo. Vo l. 1. Rio de Janeiro:Zahar Ed., 1991, p. 78. (7). Idem, p. 549. (8). KUSCINSKY, B. A herança da auto-censura In: Minorias Silenciadas. Coletânea de artigos organizada por M.Luiza Tucci Carneiro. São Paulo:USP, 1997 (no prelo).

(9). Ver os conceitos de censura preventiva e punitiva em RÉVAH, I.S. La Censure Inquisitoriale Portugaise au XVIéme Sicle. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1960, Vol. 1. (10). Entrevista com Robert Darnton In: Acervo. Revista do Arquivo Nacional. Leituras e Leitores. Vol. 8, nºs 1-2. Rio de Janeiro, 1996, p. 17. (11). CARNEIRO, M.L.T. Livros Proibidos, Idéias Malditas: o DEOPS e as minorias silenciadas. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1997. (12). COSTELA, A. O controle da Informação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 102 (13). Pedido de Busca,nº 373. II Exército, 18 out. 1976, fl. 04. (14). Idem. (15). Idem; "Informação sobre Julio Lerner por Benedito Juarez Gonçalves. São Paulo, 10 de agosto de 1972" in: Pront. nº 39.812. DEOPS/SP.

INFORMAÇÃO SOB AMEAÇA: JORNALISMO E REPRESSÃO. Cremilda Medina Professora da ECA - USP. Jornalista.

Um cenário dado à interpretação é o da censura explícita, institucionalizada e verticalmente exercida pelo Estado autoritário; em outro cenário, você está sujeito a atos repressivos inerentes a qualquer exercício de poder que impõe às práticas cotidianas constantes cerceamentos; e um terceiro cenário para se tentar compreender - o da rede intimista da autocensura, exacerbada na cultura do medo dos sistemas ditatoriais ou nas heranças autoritárias. De qualquer forma estas situações se conjugam numa complexidade que escapa às explicações fáceis. Como ocorrem as ameaças ao direito à informação? Não se pretende aqui dar uma resposta definitiva à pergunta que inquieta as democracias contemporâneas, como sempre perturbou as comunidades humanas de qualquer tempo histórico, qualquer cultura ou civilização. Se a informação da atualidade ou a grande narrativa da contemporaneidade, constitui o alimento indispensável à cidadania, tomada esta no sentido lato em que o ser humano assume o leme do presente , então os complexos problemas da sonegação de informações constituem uma das essências dos conflitos sociais. Por tal monta de significados, qualquer reflexão corre o risco de reduzir o nível de contradições. Por esse motivo, a opção por um testemunho de uma situação jornalística em um dado momento: escolho alguns ângulos de uma observação participante e do espaço de produção cultural no jornal O Estado de S.Paulo, de 1975 a 1985. O ano de 1975 é emblemático, na medida em que na segunda quinzena de janeiro os censores saíram da empresa jornalística onde se instalaram a 13 de dezembro de 1968. No dia 19 de janeiro, o editorial sob o título Voltamos prenunciava uma nova época: "Tudo isso significa, em outros termos, que a censura direta a O Estado de S. Paulo - recusando- nos , nós, a concordar com a indireta ou mesmo com a assim chamada autocensura - foi levantada. Por isso, volta , hoje, esta coluna a exprimir nossa opinião e assim continuará enquanto formos os exclusivos juízes dela, e pudermos externá- la sem fugir aos cânones da ética profissional, como a entendemos durante 95 anos de vida independente." O editorial deixa explícita sua concepção de jornalismo nos limites da liberal-democracia. A caminhada em defesa desse regime pauta coerentemente a opinião do jornal desde sua origem como Província de São Paulo, no século XIX. Tanto que, nos arquivos da empresa, o primeiro docume nto que abre as pastas do tema censura, datado de 17 de outubro de 1875, dá conta de uma violenta oposição à proibição de um espetáculo em São Paulo. A peça Os Lasaristas, de Gil Ennes, foi censurada por ferir a moral e os bons costumes. O editorial ataca: "A sociedade brasileira corre perigo: o cesarismo e o ultramontanismo se conciliaram : a vontade do príncipe e a vontade do papa são as duas leis supremas que , pelo curso dos acontecimentos, teremos de obedecer: só de joelhos diante de César e de bruços diante do Santo Padre poderemos pensar: o Index do Sacro Collegio em Roma e a ordem da polícia no Brazil ahi estão vigilantes para condennar todas as producções do espirito humano, desde que não guardem a mais perfeita harmonia com os preceitos do Syllabus : de um lado a censura ecclesiastica em nome de Deus e da salvação d'alma, e d'outro lado - a censura policial em nome da ordem e moral publica: aquella apoiada nas leis da Egreja e esta no art.5 da Carta, nos arts. 277, 278,279 e 280 e nos pareceres de uma cousa que ao governo aprouve chamar - Conservatorio Dramatico."

Exatamente um século depois do episódio de censura registrado acima, entrava eu no mesmo jornal (fim de outubro de 1975), traumatizada, no primeiro semestre, pela repressão na Universidade de São Paulo, de onde saí em maio, e destroçada pela morte de Vladimir Herzog, nesse mesmo outubro de 1975, companheiro de trabalho da TV Cultura, de onde também saí nessa caça às bruxas. Quisera ter a habilidade estilística do extenso parágrafo do editorial antes transcrito, de outubro de 1875, para, através do recurso dos dois pontos e segue o fluxo de idéias, poder construir a narrativa de um ano de ousadias, medo, indignação e sofrimentos. Pois feito ave sem asas, caminhava pelo centro de São Paulo, descolada do mundo de intensidade profissional que conhecia desde 1960, quando encontrei Leônidas Casanova, um jornalista, professor de Educação na Universidade de São Paulo e músico exímio do repertório mais ancestral da MPB. Foi ele que, por sua sensibilidade de poeta, logo percebeu meus escombros e provocou um reânimo: uma semana depois, o diretor da redação de O Estado de S. Paulo, Oliveiros Ferreira, me convidava a trabalhar no jornal. Ao juntar os cacos e pensar as feridas com novos ventos, pós-censura, talvez minhas esperanças se sintonizassem com o título otimista do editorial de janeiro de 75: Voltamos. Ou, estamos à tona outra vez. Doce ilusão. Em dez anos de trincheira, oito deles como editora, à frente da Editoria de Artes e Espetáculos (o que ho je seria chamado impropriamente de Cultura, como se cultura fosse apenas a produção artística e filosófica), o cotidiano me mostraria os constantes e complexos cerceamentos da informação. Nem mesmo aquela CENSURA, visível para todos produtores e usuários - deu trégua. Se não, escolha-se o ano de 1977 e acompanhe-se o grande embate entre o Estado autoritário e a sociedade sob repressão. A posição numa editoria (ou seção, como se dizia à época) que amplificava a produção e as vozes dos criadores, com ênfase, é claro, para os brasileiros, não é de se desprezar, embora certos preconceitos vigentes em todas as épocas quanto a poetas, loucos e filósofos. E não é de se desprezar porque os artistas, permanentemente em estado de rebeldia, tanto servem de alvo de malhação do aparato repressivo, quanto se prestam a bucha de canhão para quem quer enfrentar o autoritarismo explícito. Por isso não é por acaso que o texto que inaugura o acervo do Estado no tema censura, no século XIX, diz respeito a uma peça de teatro , assim como não é por acaso que o ano de 1977 está impregnado das marcas dos artistas, filósofos, intelectuais, todos assumindo o máximo de ousadia numa luta sem trégua contra a censura. Já no início deste ano, uma mobilização considerável, pela qualidade e pela frequência, caracterizava um movimento da sociedade civil que iria ser o tom dos primeiros anos da década de 80. O manifesto dos intelectuais contra a censura ganhou tal dimensão política que foi um carrochefe de oposição à ditadura nos principais jornais do País. Os signatários (aproximadamente 1.046 intelectuais) eram capitaneados por nomes consagrados em todas as artes - literatura, teatro, música, artes plásticas, fotografia, cinema. Elencavam-se então as inúmeras obras censuradas, a repressão aos artistas, os tolhimentos à informação jornalística e à ficção nos meios de comunicação social, da telenovela aos noticiários de rádio. "A reescalada da censura no fim de 76 provocou uma mobilização de escritores e intelectuais, principalmente a partir de 20 de novembro, quando foi proibido o livro Zero, de Ignácio de Loyola Brandão." Assim o Aqui São Paulo abria uma cobertura a 3 de fevereiro de 1977 sobre o manifesto. Nesta cobertura, a escritora Lygia Fagundes Telles, uma das líderes do movimento, assumia com coragem o papel social do artista: "O escritor o artista, em suma - é a testemunha do seu tempo, da sua sociedade com tudo que ela tem de coisas boas e ruins. Principalmente ruins. Ele não pode cancelar uma realidade (pelo menos, para ele), sob o pretexto que essa realidade é inoportuna. Ou desagradável". Logo a seguir estourou uma bomba inimaginável a essa altura em que as fo rças repressivas e a ditadura militar já viviam perturbações de curso diante da mobilização crescente da sociedade brasileira.Em maio de 1977, o ministro da Justiça, Armando Falcão, baixou uma portaria que

implantava a censura nos correios. Quase um século depois da abertura dos portos, fechavam-se aqueles por onde passavam não mercadorias, mas a produção cultural. A portaria publicada no Diário Oficial de 27 de maio se inspirava no art. 2 do decreto- lei nº 1077, de 26 de janeiro de 1970, segundo o qual "caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior (diz o art. 1º: Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes, quaisquer que sejam os meios de comunicação)". Não foi longe a implantação de centros de "triagem" no setor de impressos dos correios do Rio, São Paulo, Santos, Campinas, Porto Alegre, Recife, Belém e Manaus. E não vingou a portaria de Armando Falcão, porque foi tal a grita dos intelectuais brasileiros, desmascarando a pretensa seriedade da medida, que o custo político ultrapassava a fronteira nacional. Sob o título A Censura atinge agora também a cultura universal, assinei um extenso trabalho jornalístico, publicado a 5 de junho de 77, na editoria de Artes de O Estado de S. Paulo, que vocalizava a repugnância dos mais respeitáveis nomes da cultura brasileira. Espanto, consciência de absurdo e arbitrariedade sintetizam a repercussão interna da portaria. Antônio Cândido, Cândido Procópio (naquele momento presidindo o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, Cebrap), Otávio Ianni, Sérgio Buarque de Hollanda, alguns dos entrevistados, ousaram, como é de costume, um depoimento contundente. E mesmo a voz oficial da Universidade de São Paulo, o reitor Orlando Paiva, não se conteve na crítica contundente à portaria do ministro que prejudicava o necessário circuito internacional da Ciência. Outra reitora, de perfil muito conhecido na resistência brasileira à ditadura militar, Nadir Kfouri, ao falar como professora de uma instituição também aguerrida, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, não teve meias palavras: "Em princípio, a Censura parte do pressuposto da menoridade de um povo. É um entrave ao seu desenvolvimento cultural - científico, artístico, filosófico, político etc." Otávio Ianni pegou por outro lado: "Todo o Estado autoritário é , por definição , anti- intelectua lista". Ao começar a censura nos portos intelectuais, inviabilizando a importação de livros e outros periódicos, estocando textos à espera de liberação das malhas burocráticas, livreiros, professores, universidades e criadores persistiram na inconformidade com mobilização constante e ressonância diária na imprensa. No fim de julho já a portaria afrouxava : não estariam mais sujeitas à censura prévia as publicações estrangeiras importadas por empresas regularmente estabelecidas e as de caráter estritamente filosófico, científico, técnico e didático. No início de julho, o diretor-geral do Departamento de Polícia Federal, coronel Moacyr Coelho, admitia que o órgão que dirigia não tinha condições de executar a portaria do ministro da Justiça. Os motivos são curiosos: escassez de censores capazes de ler em línguas estrangeiras. Seria necessário abrir concursos e admitir, nos correios nacionais, uma mão de obra qualificada. E enquanto o diretor-geral negava lista de títulos censurados, três dias depois, um espetáculo musical promovido pela revista Versus no Palácio das Convenções do Parque Anhembi era proibido poucos instantes antes de entrarem em cena artistas como Chico Buarque de Hollanda,Milton Nascimento, Edu Lobo, MPB-4 e Bibi Ferreira, sob a direção de Ferna ndo Peixoto. O alvo preferencial da censura institucional é, como afirmou Otávio Ianni, os criadores. No entanto, as práticas de autoritarismo nem sempre contam com a massa crítica sofisticada para fazer a triagem. Daí o primarismo de certos atos repressivos. Sérgio Buarque de Hollanda se referiu a um deles na sua experiência como redator-chefe da Associated Press (AP), em 1936. Nessa época, também havia um censor dentro da redação, bem como um quadro de palavras proibidas. "O câmbio andava mal e essa palavra foi cortada das notícias. Chegou então um telegrama que falava em acordo comercial franco-espanhol e o censor cortou a notícia. Interrogado sobre a causa, respondeu muito seguro: Falar em câmbio não está proibido? Pensa que não sei que franco é uma

moeda francesa?" O historiador não acreditava que uma censura eficaz se estabelecesse nos correios, conforme a malfadada portaria de Armando Falcão. O fato é que de 1975 a 1985, período em que permaneci no Estado, não houve trégua, nem nos anos de rescaldo da censura explícita nem nos anos da anistia e da intensa mobilização social que precede 84, o ano dos comícios das diretas-já. Ainda em julho de 77, com toda a vocalização de artistas e intelectuais, Morte e Vida Severina, filme de Zelito Viana, foi censurado para o exterior, porque mostrava "imagens desprimorosas do Brasil". Imagine-se vinte anos depois, se este critério fosse aplicado aos trágicos episódios de Diadema e Cidade de Deus, em que as imagens do massacre da polícia militar de São Paulo e do Rio de Janeiro foram exibidas na televisão. Aquela censura parece ter desaparecido. Acabou a censura? Aí que a situação se complica. Enquanto inimigo comum da liberal democracia, dos artistas, cientistas e filósofos, das instituições democráticas, o aparato repressivo do Estado autoritário é unanimemente condenado. No caso do Jornalismo, a ação das forças autoritárias sobre a coleta de informações e sua divulgação assume um formato muito claro e inequívoco, configurado na Censura, exercida em graus variá veis para cada sistema político. Mas não é só este cenário macropolítico que dificulta ou impede o livre trânsito das notícias. Toda a narrativa, construída a partir do acontecimento contemporâneo, representa um delicado tecido em que as tensões das microestruturas de poder, as estruturas intermediárias de decisão procuram de alguma forma impor seus interesses, suas competências e ideologias e, sobretudo, sua visão de mundo. O dramático é que o vírus da censura que se expande ou no autoritarismo explícito ou na subjetivação da cultura do medo inspira as pequenas e médias censuras das práticas cotidianas. Numa redação jornalística, as tensões e contradições desta malha de poderes vêm à tona constantemente, quer se viva em período de fechamento instituciona l, quer se viva em período de conflito democrático.Arriscaria dizer que, do fim da década de 60 ao fim da década de 70, em um clima de risco perante a repressão, risco esse que significa perda de vida ou prisão e tortura, a ousadia solidária diante do mons tro ultrapassava com mais facilidade as pequenas e médias censuras do que no atual período em que se vive na selva democrática. Tão logo afrouxa o autoritarismo central, recrudescem os autoritarismos intermediários, os autoritarismos bem localizados no grupo de trabalho e, o que é mais sutil, a repressão íntima, frequentemente chamada de autocensura ou, no meu entendimento, afirmação do conservadorismo nas rotinas profissionais que não dão margem à rebeldia. Ora, nos ambientes de produção jornalística observa-se constantemente o exercício do poder repassado. Repassado por quem? Nem sempre se sabe, porque os intermediários das decisões (chefias, editores, superiores imediatos) cultivam um direito implícito de mando em nome do empresário ou de outras fontes de poder do âmbito macro. Vou voltar ao ambiente da editoria de Artes de O Estado nos anos posteriores à censura explícita. A compreensão de Otávio Ianni - "o Estado autoritário é, por excelência, anti- intelectualista" - vale também para os pequenos e médios estados de poder. Cotidianamente enfrentei uma lista de intelectuais censurados (não vale a pena mencionar aqui alguns deles), sob a justificativa, a casa não quer que publique nada desse sujeito, ou, de forma muito sintética, o homem não quer. Quem é essa instituição doméstica, a casa? E quem é o homem? Muito curiosa a respeito, meti- me a investigar a fundo as censuras dos poderes intermediários, cada vez que a briga valia a pena (como numa redação se vive em estado belicoso, quase sempre ia à luta). Para minha surpresa, ao chegar ao centro da casa, diante do homem - no caso, Júlio de Mesquita Neto -, verificava, espantada, que não existia a ordem vertical e que, numa simples e desarmada argumentação (faz lembrar a teoria da ação comunicativa de Habermas), desfazia-se o cerceamento à informação. Foram muitas as situações em que se confirmava que o tal mando repassado a intermediários era, na voz popular, mais realista do que o rei.

O desgaste desses embates censórios, cultivados ou no puro autoritarismo de cada editoria, ou alimentados pela falta de ousadia, o medo ancestral da subversão das rotinas, dos pressupostos, do conservadorismo, corrói a prática jornalística e, o que é pior, representa um cenário muito sutil de desgastes acumulados diariamente. O jovem aprendiz, quando ingressa numa redação ainda com o frescor da infância, que o diga. Em pouco tempo, ao enfrentar esta guerra de adestramento a comandos muitas vezes tão surrealistas quanto o censor que, em 1936, proibiu a notícia do acordo franco-espanhol, porque notícias de câmbio eram subversivas e franco era um signo de câmbio, logo- logo, o frágil jornalista estagiário ou se entrega ou faz carreira e chega ao poder, repetindo o modelo, ou se transforma em um cínico infeliz. Ao que tudo indica, nos períodos de descompressão dos mecanismos de censura explícitos, como a portaria de Armando Falcão, recrudesce a rede de cerceamentos que se espalha pela redação e por todos os grupos de poder da chamada sociedade civil. Neste contexto se tornam requisitados os profissionais de comunicação que junto às cada vez mais diversificadas organizações sociais, institucionais ou empresariais, enfrentam a briga de se tornarem repassadores da informação triada pelos comandos dos grupos ou então assumirem o ideal quixotesco de produzirem uma efetiva comunicação social por acreditarem na horizontalidade dialógica. Há uma interpretação reducionista que só detecta as pressões de poder na imprensa e não flagra o cenário de qualquer grupo organizado como um ambiente tão carregado dessas tensões quanto o de uma redação jornalística. Numa situação de censura e repressão às greves dos operários do ABC em 1979, se visualiza claramente o inimigo e a batalha une claramente os oprimidos contra o opressor. Mas em um jornal de sind icato hoje em dia, fica muito mais complexo e delicado detectar que a informação que está sendo produzida reflete a voz do poder sindical e nem sempre representa a voz coletiva dos sindicalizados. Ou seja, comparecem mecanismos cerceadores inerentes a um micro-conflito de poder e os jornalistas que realizam um determinado veículo sindical, enfrentam um autoritarismo que inviabiliza, na grande parte das situações, o projeto de comunicação. No entanto, como se pode constatar em cenários ditatoriais, a mobilização social e a vocalização de demandas coletivas não esmorece na história humana. Aquela concepção contemporânea das teorias do caos e, em particular a do cientista e filósofo Ilya Prigogine, a do caos dinâmico, inspira a compreensão dos fenômenos socia is. Aparentemente, não há saída diante das pressões e atos repressivos, seria alguma coisa do tipo estamos todos indo para o brejo. No entanto, as sensibilidades que não desistem nem desertam, de repente se reencantam com a reorganização do caos. Os atos emancipatórios que emergem de uma situação repressiva calam fundo na desesperança dos silenciados. Dizia, pois, que os desejos coletivos de alguma forma furam os esquemas censórios ou repressivos ou ainda discriminatórios. Portadores dessas aspirações recorrentes, cuja linguagem é a dos mitos, os artistas estão sempre na primeira fila e isso eu aprendi em dez anos de cumplicidade com eles no meu discreto canto da redação de O Estado de S. Paulo. Aprendi pela via da conscientização, da racionalidade informativa de seus depoimentos e de seus atos corajosos contra o regime autoritário, mas para além de aprender, sempre me sensibilizou e ressensibilizou a ousadia do artista de ir lá no lugar que ninguém vê - a alma do povo - recolher o gesto generoso sem censura, nem autocensura. Mais do que nas entrevistas, depoimentos e histórias de vida que fiz questão de colher nesses dez anos, imprimiu- se na minha própria alma a chama que emana de suas obras, uma profunda conexão dos textos e subtextos humanos. Essa potencialidade sempre me deu forças para resistir ainda que as situações de poder sejam total ou parcialmente adversas. Não abdico de encarar aquela frente íntima das repressões que se encena nos escaninhos de cada um, totalmente invisível aos olhos da sociologia da cultura de massa. Há uma luta de poder interna em cada produtor cultural que não tem garantia democrática nem que se viva numa democracia minimamente institucionalizada.

No projeto pedagógico que venho desenvolvendo na Universidade de São Paulo, no retorno ao ensino de Jornalismo a partir de 1986, estudo uma experiência continuada, já agora nas turmas do décimo primeiro ano. Esta pesquisa indica os perigos de uma racionalidade esquemáticoburocrática de um jovem pouco motivado para ousar. Este estudante de terceiro, quarto ano de Jornalismo, muitas vezes precocemente contratado por uma empresa, se entrega às rotinas profissionais, torna-se um dócil executor de pautas a fim de segurar o emprego e abandona os estudos, os laboratórios, o projeto de renovação das práticas viciadas. A hegemonia das racionalizações fáceis, regras que se consumam em manuais autoritários, configura um processo perverso de atrofia dos impulsos da rebeldia, aqueles que geram renovação e consistência na produção jornalística. Faz parte desse projeto pedagógico que sonha estimular as intuições criadoras, expor os alunos de Jornalismo à arte. O gesto da arte, uma oficina de leituras culturais através de obras de literatura, cinema, artes plásticas, música e demais expressões narrativas, ressensibiliza rapidamente os jovens para uma compreensão mais aberta e sutil do mundo contemporâneo. Ao realizarem um livro-reportagem por semestre (projeto São Paulo de Perfil, hoje no vigésimo primeiro exemplar), os autores experimentam o diálogo possível com a sociedade e gradualmente revertem a inércia dos pré-conceitos que povoam as mentalidades e se reforçam nas rotinas técnicas e nas reduções ideológicas. É espantoso que, uma vez int roduzidos a laboratórios sem tais condicionamentos, num primeiro momento os jovens não sabem lidar com a liberdade de criação nem percebem como um tema tem múltiplas possibilidades de especulação, inúmeras contradições a perseguir. O desafio do novo e do complexo está soterrado pelo reflexo condicionado. Na década de 70, nos tempos da censura e da repressão dos governos militares, meu projeto pedagógico incidia na eficiência racional para se poder veicular informações mais contundentes na cobertura jornalística. Ainda na Escola de Comunicações e Artes (antes da saída em 1975), os alunos eram iniciados a uma teoria da interpretação para desenvolverem o que se chamava de Jornalismo Interpretativo. A razão argumentativa constituía o principal eixo de aprendizado e a reportagem investigativa, a sua expressão. Para meu espanto, os censores e informantes qualificados tinham consciência plena da estratégia em questão. Como coordenava um laboratório (com a parceria de outro professor, Paulo Roberto Leandro) que resultava em um serviço de agência universitária de notícias, os conflitos com a repressão acompanhavam a periodicidade do boletim da AUN. Semanalmente havia incidentes de censura. Lembro de dois que ilustram bem o caso. Um dia, a direção da ECA me chamou para apresentar um comunicado do DEOPS sobre minhas aulas. Segundo denúncias que provinham da sala de aula, eu estaria ensinando como burlar o sistema, através da reportagem. Publicamos, Paulo Roberto Leandro e eu, um trabalho cujo título, A Arte de Tecer o Presente (1972), sintetiza a oficina de Jornalismo Interpretativo que tanto norteava o projeto pedagógico quanto o jornalístico, a Agência Universitária de Notícias. Tecer o presente significava desenvolver uma narrativa jornalística que levantasse o maior número possível de vozes (polifonia) e o maior número possível de significados (polissemia). Isto era subversivo. Nessa época, outro episódio contundente se deu por ocasião da primeira tese sobre o BNH, defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. A AUN cobriu o assunto. articulando entrevista com autor e tudo que um assunto dessa importância exige de aprofundamento. A reportagem foi reproduzida na grande imprensa e imediatamente fui chamada à direção da ECA para me confrontar com um telegrama da Presidência, considerando o trabalho da Agência Universitária atentatório à segurança nacional, pois veiculava críticas ao Banco Nacional de Habitação. Uns anos mais tarde, o Jornal do Brasil conseguia reunir, na edição de 18 de junho de 1978, as regras gerais da censura e lá estava aquela que tinha sido ferida pela agência de notícias da ECA: "Campanha de descrédito da Política Habitacional, Mercado de Capitais e outros assuntos de vital importância para o governo".

Nem todo o arsenal de uma racionalidade complexa e rigorosa conseguia, como diziam os censores, driblar o sistema... Fazendo agora uma transposição de mais de um quarto de século, não me parece que o autoritarismo das autocensuras ou as inércias das rotinas profissionais sejam uma questão exclusiva da racionalidade. Pelo contrário, as racionalizações técnicas e tecnológicas são coercitivas, atrofiam a sensibilidade para ousar, para criar uma narrativa mais dialógica e humanizante. O campo de experimentação que se abre na arte de tecer o presente diz respeito também ao encarceramento da emoção no trabalho jornalístico. Censura interna é aquela que fecha os poros, impede que se estenda o gesto solidário, afetuoso, perante os contemporâneos. Meus alunos levam um choque quando se propõe uma viage m de emancipação da frieza com que se reveste um jornalista para sair à rua - quando sai - e agir tecnicamente na coleta e controle das informações. Poderá um narrador da contemporaneidade desejar colher a poesia do momento? Quando isso acontece, certamente explode pela via da intuição e a razão argumentativa vem por acréscimo. Afinal quando a sensibilidade do poeta não foi alvo das macro e micro-repressões? Se é tão duro enfrentar a censura institucionalizada em um Estado, se é duro conviver, no cotidiano, com o autoritarismo nas chefias, imagine-se o embate interno entre a consciência treinada para a rotina e as verdades absolutas e as inquietudes que alimentam o vulcão das incertezas. Sobretudo difícil de decifrar é esse constante conflito em que os cerceamentos impedem o impulso tão solidário quanto libertário.

NOTA DE AGRADECIMENTO Quero registrar meu agradecimento a O Estado de S. Paulo, em particular ao diretor Júlio César Mesquita, pelo acesso ao arquivo do jornal para a pesquisa que sustenta este testemunho. Tanto a chefia do arquivo quanto a jornalista Fátima Feliciano, bem como a secretaria da direção foram muito amáveis nas incursões à memória dos eventos aqui mobilizados.

3 Pequenos assassinatos: a violência incorporada à vida cotidiana.

DESCRENÇA NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer Antropóloga, advogada, professora da Escola de Sociologia e Política - SP

Sem saber inicialmente por que, logo que tive a honra de ser convidada a participar desta mesa e que tomei conhecimento de seu nome - "Pequenos assassinatos: a violência incorporada à vida cotidiana," lembrei- me de uma experiência pessoal, vivida há pouco mais de quatro anos, durante uma manhã de sábado, aqui na cidade de São Paulo. Foi um acontecimento trivial, provavelmente semelhante a outros que muitos moradores urbanos e motorizados já viveram, e que até poderia ter resultado no assassinato de alguém, mas que, felizmente, não resultou. Tratava-se de uma desilusão numa instituição pública de resolução de conflitos e da conseqüente descrença em uma cidadania realizável nos pequenos desafios da convivência cotidiana. ********* Naquela época, eu lecionava Sociologia na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e, como se tratasse de um sábado de manhã, com a estrita antecedência para chegar alguns minutos antes do início da aula, deixei meu apartamento e me encaminhei para o portão da garagem coletiva em que guardava o carro. Em frente ao portão amarelo, com letras garrafais indicando ENTRADA E SAÍDA DE VEÍCULOS DIA E NOITE - PROIBIDO ESTACIONAR, ao lado de uma faixa também ama rela, pintada na sarjeta, um carro sem motorista e ninguém dentro estava estacionado. Comecei a olhar para todos os cantos à procura de quem fizera aquilo, mas a rua estava deserta e meus minutos e paciência começavam a se esvair. Pensei em simplesmente tomar um táxi e ir embora, mas eu ainda teria tantas outras coisas a fazer de carro depois das aulas que, num rápido cálculo, concluí que gastaria mais dinheiro com táxis do que ganharia trabalhando. Pensei nos alunos, no andamento do curso, vacilei por uns segundos, mas resolvi investir toda a minha crescente indignação numa possível "solução-cidadã" para o problema. Corri para um orelhão, bem ao lado do estacionamento, com a intenção de ligar para a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), já sonhando com um guincho que rebocasse aquele carro a tempo de eu dar a segunda das minhas quatro aulas. Nem pensei em telefonar do meu apartamento porque o dono do carro poderia aparecer a qualquer momento e eu, de modo algum, queria perdê- lo de vista. Caso ele chegasse antes do guarda e do guincho, eu me sentia no direito de, pelo menos, dar-lhe uma lição de moral. O orelhão estava quebrado. Por sorte, naquele momento, uma das lojas da rua estava abrindo e recorri ao seu dono, velho conhecido que, de pronto, propôs que eu tentasse reunir uns homens para que, segurando os pára-choques dianteiro e traseiro do carro, mudassem sua posição, aos solavancos, até que ele ficasse atravessado na rua, liberando o portão embora paralisando o trânsito. Achei um absurdo! Eu agiria como o próprio dono daquele carro, pois resolveria o meu problema e criaria dificuldades para muitas outras pessoas. Eu não tinha o número da CET na minha agenda pessoal, mas em "telefones úteis", na contracapa da lista telefônica, encontrei o número para comunicação de acidentes e ocorrências de trânsito. Disquei para o que prometia ser, simultaneamente, uma tripla solução: para o meu problema, para o dos outros proprietários cujos carros também estavam impedidos de sair do estacionamento e para a falta de responsabilidade daquele pseudocidadão que, de algum modo,

poderia ser (re)educado através, quem sabe, de uma boa multa. Enquanto eu aguardava, sem que ninguém atendesse do outro lado da linha, eu ia olhando para os dois lados da rua e recordando, vagamente, algumas velhas aulas a que eu assistira quando aluna de graduação em Ciências Sociais e em Direito. Ninguém aparecia nem para atender ao telefone nem para tirar aquele carro dali. Disquei o número uma segunda vez, uma terceira, uma quarta... Conc eitos precisos das aulas de Teoria Geral do Estado, de Direito Processual, Constitucional, Administrativo, Civil, Penal, de Ciência Política, Sociologia e Antropologia pipocavam na minha cabeça. O relógio indicava que eu deveria ligar para a faculdade e avisar que chegaria atrasada. Liguei e voltei a insistir no número da CET. Após sei lá quantas tentativas, dez, quinze, alguém atendeu, mas meu regozijo logo foi destruído por uma voz mecânica que disse um momento, por favor, à qual se seguiu uma musiquinha igualmente mecânica que parecia não ter fim. Pelo menos este serviço telefônico não era tarifado, ou melhor, não era pago diretamente por mim, mas indiretamente pelos nossos impostos. As lojas da rua já começavam a abrir, mais pessoas a circular, outros carros a parar e nada de aparecer o dono daquele maldito carro, ou melhor, o maldito dono daquele carro. A tal musiquinha finalmente parou depois de minutos que pareceram horas e uma voz menos mecânica falou alguma coisa como: CET, fulano de tal às suas ordens. Reclamei da espera e expus o problema. Quase desisti quando essa voz comunicou- me que me transferiria para outro ramal. Mais musiquinha, mais movimento na rua, o carro lá parado em frente ao portão e eu ali, com uma irritação crescente. Quando outra voz interrompeu a musiquinha, tive de lhe contar toda a história de novo. Forneci os dados que me foram pedidos e desliguei com a promessa, nada específica, de que providências seriam tomadas. Calculei que esperaria por, no máximo, mais vinte ou trinta minutos, depois do que, se nada acontecesse, eu teria de tomar outra providência. Mas qual? Meia hora se passou e liguei de novo para a CET. Toda a história das vozes e musiquinhas se repetiu até que consegui falar com o responsável pelo serviço de guincho e patrulhamento. Fiquei sabendo que o único guincho que atuava na região havia sido deslocado para atender a outra ocorrência e não tinha hora para retornar. Supliquei que ao menos um guarda fosse deslocado para lavrar uma multa, mas não deram certeza de que isto poderia ser feito. Insisti em fornecer os dados do veículo e do local para que, mesmo por telefone, lavrassem a multa. Acataram o meu pedido, ouviram os dados, mas desliguei com a nítida impressão de que "a voz" sequer os anotara. Sem vacilar, fui até o carro parado diante do portão e esvaziei seus dois pneus traseiros além de, com uma chave, fazer um generoso risco na lataria. A esta altura, outros usuários do estacionamento já estavam iniciando o processo de irritação pelo qual eu passara. Paradoxalmente satisfeita e culpada, fui à procura de um táxi e cheguei a São Bernardo para as duas últimas aulas. Envergonhada e com as idéias em rodopio, discuti o caso com os alunos, numa aula sobre direitos humanos e violência urbana. Mais de quatro anos depois, estou eu, novamente, às voltas com estas lembranças e as reflexões a que elas me levaram e ainda levam. ********* O leitor pode estar se perguntando que pontes fazer entre este relato e uma reflexão sobre "Pequenos assassinatos: a violência incorporada à vida cotidiana." Creio que pelo menos sobre três pontos podemos nos deter, tentando uma articulação entre eles. Em primeiro lugar, talvez caiba refletir sobre o quanto as experiências ma is imediatas e cotidianas da cidadania, para a maior parte dos habitantes de uma cidade como São Paulo, passam

pelo seletivo e geralmente frustrado acesso aos serviços públicos, especialmente aos serviços oferecidos pelas instâncias mediadoras de conflitos, aplicadoras de normas e garantidoras de seu cumprimento. Para a maioria dos mais de 10 milhões de cidadãos que vivem em São Paulo, gozar de seus direitos civis e políticos e desempenhar seus deveres para com o Estado é sinônimo de um conjunto de tarefas desgastantes e insatisfatórias, às vezes ininteligíveis, que acabam produzindo descrença nesses mesmos direitos e deveres, no próprio Estado e, consequentemente, no exercício da cidadania. Estas questões estão presentes no relato sobre a minha experiência frustrada de tentar uma "solução-cidadã" para um conflito ocorrido no espaço público, com o agravante de que eu não represento a maior parte dos habitantes da cidade de São Paulo. Mesmo considerando que minhas condições sócio-econômicas de profissional qualificada de classe média já me colocariam, a princípio, em vantagem no acesso seletivo aos serviços públicos, pois sei localizá- los com presteza e sei insistir no atendimento de minhas solicitações, ainda assim eu não consegui acioná- los satisfatoriamente. Ao sentir- me lesada no meu direito fundamental de ir e vir (de carro, como todo bom cidadão paulistano de classe média), o que eu consegui? De início, constatei a ineficácia dos serviços públicos que eu acionava: o orelhão quebrado, o ramal telefônico da CET sobrecarregado, um único guincho ocupado em outra chamada e guardas de trânsito também em número insuficiente para atender à demanda. Conclusão: estímulos abstratos para se gozar de direitos e desempenhar deveres, como um rol de "telefones úteis" na contracapa da lista telefônica, esbarraram, como geralmente ocorre, na limitada e insuficiente capacidade desses mesmos serviços em atender à demanda existente, a qual eles próprios ajudam a aumentar. Aliás, tais serviços não foram dimensionados para atendê- la, assim como não o é o número de leitos em hospitais públicos e de vagas nas redes municipais e estaduais de ensino. Vivemos a realidade de um Estado cujos serviços são subdimensionados para uma demanda crescente de usuários que, espero, tornem-se cada vez mais exigentes, pois esse subdimensionamento retrata uma sociedade desigual, hierarquizada, repressora e que precisa mudar para sobreviver. Esse subdimensionamento não foi nem é ocasional, como também não foi nem é planejado a frio, mas ele fez e continua fazendo parte de um projeto que as elites construíram para o País, ao longo de séculos e que se perpetua, baseado num modelo que patrimonializa o Estado, inviabilizando, por isto, a socialização dos serviços públicos. Mas este é tema para outro longo debate, cabendo, neste momento, pontuar o quanto a prática da cidadania não se limita nem se esgota na demanda e no consumo crescentes de bens e de serviços públicos, constituindo-se também, e principalmente, na efetiva participação dos cidadãos no exercício do poder que delibera sobre tais serviços. Se ficarmos apenas no terreno das reivindicações, o Estado permanecerá como doador e não como servidor da cidadania. Porém, como a maioria da população paulistana e brasileira mal experimenta o gozo de direitos e o desempenho de deveres nas áreas essenciais da vida social (saúde, educação, moradia, transporte, etc), quase nenhuma brecha se abre para a discussão da construção de um poder do qual se participe e o qual se tenha nas mãos. Se fosse possível, além de participar da maratona de ser cidadão usuário de serviços públicos, também combinar esforços para exercer a cidadania em sua dimensão de participação política, quem sabe frustrações e insatisfações seriam mais bem aproveitadas, pois o problema não é tê-las, mas o que fazer com elas. Com esta reflexão, creio que entramos no segundo ponto em que podemos nos deter para interligar meu relato ao tema dos "Pequenos assassinatos: a violência incorporada à vida cotidiana."

O vivido e as múltiplas emoções que o alimentam e que dele decorrem, inclusive desejos e frustrações, são de tal intensidade e dinamismo que é preciso muito mais do que leis para elaborálos e para transformá- los em pensado. Mas, se regras e instituições são ineficazes nesse vivido de cada um, torna-se ainda mais difícil proceder a um mínimo de elaboração. Ao terminar o contato telefônico com a CET apenas com a promessa de que o infrator que me prejudicara seria multado, mas sem ter obtido qualquer solução concreta para o problema imediato de meu carro estar bloqueado, eu que, insisto, não represento a maioria da população da cidade em termos de formação escolar, universitária e sócio-econômica, sendo inclusive profissional do Direito, o que fiz? Parti para o lamentável "fazer justiça com as próprias mãos", riscando a lataria e esvaziando dois pneus do carro do infrator para sentir que devolvia- lhe os danos que me fizera sofrer. Escolaridade e outras variáveis sócio-econômicas parecem, portanto, não determinar um "comportamento-cidadão" quando não se sente que, sequer, se é reconhecido enquanto tal. No caso que relatei, a história não terminou de forma trágica como em milhares de outros em que os resultados são o que talvez possamos denominar pequenos assassinatos. Muitos dos homicídios que chegam a um dos cinco Tribunais do Júri da cidade de São Paulo são histórias de réus que desconheciam suas vítimas, com elas se tendo indisposto por razões aparentemente banais, chegando a tentar ou efetivamente a matá- las sem saberem exatamente porquê1. Esta perda da confiança nas vias institucionais de resolução de conflitos, levando à autoconfiança de que só nos resta, com afetos e preconceitos, policiar, processar, julgar e sentenciar conflitos em que somos parte, é sintoma de que a guerra de todos contra todos está presente em nossas cidades e que algo tem de ser feito se não quisermos vê- la generalizada. Mas o que fazer? Se pensarmos o Estado de Direito como um conjunto de saídas institucionais para questões que tenderiam, não fosse ele, a conflitos implacáveis, destrutivos da própria sociedade, estamos num momento decisivo para lutar por sua implantação e, portanto, pela construção de uma cidadania embasada na crença de que as vias institucionais devem servir para alguma coisa. Os movimentos de defesa dos direitos humanos e da cidadania surgem, neste contexto, com propostas importantes e, a respeito disto, cabem algumas observações que nos levam ao terceiro ponto de nossa reflexão. Antes de mais nada, temos de reconhecer que, apesar de estes movimentos virem investindo muito, nos últimos anos, em campanhas de esclarecimento do que são os direitos humanos, ainda é majoritária a opinião de que eles se referem a problemas pertinentes à matéria policial. Em parte, talvez isto se explique por ter sido o início da luta pelos direitos humanos no Brasil diretamente vinculado à defesa da integridade física de presos políticos. Mas logo esta luta ganhou a defesa dos direitos de participação política (anistia, liberdade sindical) e de interesses gerais de periferias urbanas e rurais, fazendo-se presentes em reivindicações pela ampliação do consumo de serviços públicos, pela participação no planejamento econômico e pela reforma agrária2. Nem por isto, todavia, a luta pela garantia dos direitos humanos deixou de ser associada à garantia dos direitos dos bandidos, sendo prova disto a freqüente pergunta que acompanha a maioria dos debates públicos sobre direitos humanos: e os direitos das vítimas? Por que se tornou tão difícil demonstrar que direitos humanos são instrumentos forjados para defender cidadãos do exercício abusivo dos poderes político e econômico e não para defender uma pessoa de outra? Por que não emplaca a afirmação de que direitos humanos referem-se a conflitos

entre indivíduos, de um lado, e organizações de poder, de outro, de modo que vítimas são todos aqueles cuja dignidade é permanentemente violada por tais organizações? Estas questões se ligam ao tema que estamos tratando, pois cabe pensar se o fracasso dos discursos dos movimentos de defesa dos direitos humanos e o sucesso dos "discursos Gil Gomes", que proliferam nos programas não só de rádio, mas de TV, jornais e palanques não resultam, justamente, desse vivido frustrante e que indigna, diariamente, atingindo, especialmente, aqueles que economicamente pouco têm mas que, nem por isto roubam ou matam. Aliás, a grande maioria da população miserável e pobre da cidade3 e, provavelmente do país, constitui-se não apenas de trabalhadores inseridos nos mercados formal e informal como também de desempregados não delinqüentes, conjunto este que está longe de ser uma massa caótica de pessoas perdidas e desarticuladas. São muitos os estudos antropológicos e sociológicos que revelam o alto grau de organização social de populações faveladas e encortiçadas e mesmo de grupos de mendigos4. Novamente, o que os "discursos Gil Gomes" alardeiam é a organização criminosa destes grupos em função do narcotráfico e de outros delitos. Mas o que não se alardeia é o quanto populações deste tipo, através de redes de vizinhança e parentesco, organizam a socialização de crianças, o lazer, trocas de informação sobre ofertas de trabalho, acolhida de migrantes recém-chegados, cursos de alfabetização, cuidados de idosos, doentes, etc. Aliás, graças a esta capacidade de organizar a vida sob as condições mais inóspitas, é que os serviços públicos ainda não implodiram de vez, pois não haveria creches, parques, centros de triagem de migrantes, escolas e postos de saúde suficientes para atender à tamanha demanda. E, além de suprirem serviços públicos, estas redes de sociabilidade também normatizam formas de resolução de conflitos que, por sua vez, salvam o Judiciário de um colapso. Este campo de reflexão é, talvez, dos mais férteis, atualmente, seja para pesquisadores das ciências humanas, seja para militantes dos direitos humanos e para todos os empenhados na constituição de políticas públicas eficientes. ********* Acreditar que formas alternativas de ordenar o mundo e de tornar a vida inteligível e "sensível", formas que não passam pelo crivo institucional, constituam modos toscos de produzir cultura que deveriam ser superados pelo progresso, seria retroceder aos paradigmas positivista e evolucionista da virada do século XIX para o XX, segundo os quais razão, ciência e sociedade capitalista urbano- industrial garantiriam o bem-estar da humanidade. Também o direito liberal prometeu muito e, como esta sociedade urbano- industrial, ele efetuou avanços indiscutíveis em diversas áreas, mas, assim como ela (e por fazer parte dela), ele também excluiu, estigmatizou, marginalizou e desprezou o que não lhe convinha ou o que não lhe era possível conter. O grande desafio reside em descobrir um caminho para efetivar os dispositivos legais que asseguram o direito da cidadania e, simultaneamente, levar adiante lutas que transcendam e até se confrontem com a institucionalização legal desse exercício. Trata-se do dilema de como enfrent ar amplas e intensas negociações em torno das garantias legais, sabendo-se que isto suscitará impasses que não serão absorvidos pelos próprios mecanismos jurídicos existentes. Na militância em direitos humanos, por exemplo, isto significa dizer que, por um lado, participa-se de projetos maiores que buscam reformas institucionais profundas e, por outro, deve-se utilizar o instrumental jurídico disponível, garantindo a devida aplicação dos direitos e deveres legalmente previstos.

O conceito de direitos humanos, bem como sua prática, explora formas não ortodoxas de luta e de resistência e implica novas demandas e pressões que, no entanto, dirigem-se a velhos canais de representação. É preciso repensar tudo isto, urgentemente, inclusive para reconhecer que direitos humanos não podem nem devem dar conta de tudo, mas precisam garantir, a cada pessoa, no mínimo, a esperança de conquistar e realizar, cotidianamente, uma cidadania densa.

1. Estou em fase inicial de minha pesquisa de campo de doutorado, a qual consiste no acompanhamento de sessões dos júris da Capital, entrevistas com jurados, réus, promotores e juizes. Os dados de que disponho, embora incipientes, já apontam para um mudança nos tipos de homicídio que atualmente estão chegando a júri. Antes, muitos envolviam parentes, afins, vizinhos e conhecidos. Hoje, parecem predominar réus e vítima sem qualquer relacionamento anterior significativo. Uma hipótese é a de que o homicídio passou a ser um "crime meio" para outros, como o tráfico de drogas, atingindo pessoas que estão tenuamente ligadas na periferia de uma densa rede de interesses. Mas também é possível pensar que há pequenos assassinatos de pessoas que, simplesmente, perderam a crença em qualquer referencial institucional ou social, ou ainda que perderam os seus referenciais de origem ao migrarem dos mais variados lugares para São Paulo, não conseguindo substituí- los por outras formas organizadas de resolução de conflitos e, consequentemente, diante destes, partem para uma Lei de Talião pervertida, pois sequer se vinga olho por olho ou dente por dente, mas botijão de gás por morte, infração de trânsito por morte ou qualquer dano, geralmente patrimonial, por morte, ( em 1996, na zonal sul do município de São Paulo, 48,3% dos homicídios foram causados por brigas e 11,7% se relacionavam, de algum modo, com o narcotráfico- Fontes: Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Policia Civil do Estado de São Paulo). 2. Ver LOPES, José Reinaldo de Lima - "Direito , justiça e utopia" in FARIA, José Ed uardo (org.) A crise do direito numa sociedade em mudança . Brasília: Editora da UnB, 1988 (pg. 67-78) 3. Entre 1979 e 1983, havia, na Grande São Paulo, 43% de famílias pobres e 19% de famílias miseráveis. Em 1986, estes percentuais baixaram para, respectivamente, 26% e 7%, mas entre 1990 e 1995 a proporção de pobres e miseráveis voltou a patamares próximos aos do início dos anos 80. Em 1991, eram 3.392 os moradores de rua espalhados por 329 pontos da cidade de São Paulo, especialmente concentrados nos bairros da Liberdade, Bela Vista e Sé (70%); 90% do total eram do sexo masculino, 65% tinham menos de 40 anos e 46% trabalhavam até um ano antes de irem morar na rua. Em 1996, eles já somavam 5.334, dos quais 78% concentravam-se nos bairros da Lapa e da Sé, 59% eram homens adultos, 15% mulheres adultas e 70% com idades variando entre 18 e 44 anos. Quanto à criminalidade violenta (referentes a homicídios dolosos, estupros, lesões corporais, roubos e latrocínios tentados e/ou consumados) temos, na Grande São Paulo, para cada 100 mil habitantes, os seguintes índices: em 1981 - 685.6, em 1984 - 992.1 e em 1987 - 747,0. Ainda na Grande São Paulo, a taxa de homicídios, depois de crescer 97% entre 1980 e 1985, seguiu crescendo, porém em ritmo menos acentuado: subiu 40% entre 1985 e 1989 e 31% entre 1990 e 1995. (Fontes: Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, NEV/USP - Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, ISER/RJ - Instituto Superior de Estudos da Religião, Polícia Civil do Estado de São Paulo e CEDEC - Centro de Estudos de Cultura Contemporânea). 4. Entre outros estudos, verificar:

ADORNO, Sérgio - abril/junho - A gestão filantrópica da pobreza urbana, in São Paulo em perspectiva, 4(8): 8-17(abril, junho, 1991). BRANDT, Vinícius (coord.) - 1989 - Trabalhar e viver. São Paulo: Comissão Justiça e Paz/Brasiliense. NEVES, D. P. - (jan/fev) 1983 - Mendigo: o trabalhador que não deu certo, in Ciência hoje, 1(4): 28-36. ROSA, Cleisa M. Maffei - 1995 - População de rua. Brasil e Canadá. São Paulo: Hucitec (191199). SOARES, Marina Albuquerque de Macedo - (jul/set) 1996 - Convivendo com meninos de rua em São Paulo: violência e viração, in Revista brasileira de ciências criminais, (4)15: 340-351. SPÓSITO, Marília - 1994 - A sociabilidade juvenil e a rua: novos conflitos e ação coletiva na cidade, in Revista Tempo social, revista de sociologia da USP, 5(1-2): 161-178. STOFFELS, M. G. - 1997 - Os mendigos na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. VIEIRA, M. C. (e outros) - 1994 - População de rua, quem é, como vive, como é vista. São Paulo: Hucitec.

OS IMPODERÁVEIS CIRCUITOS DOS VULNERÁVEIS CIDADÃOS: TRAJETÓRIAS DE CRIANÇAS E JOVENS DAS CLASSES POPULARES. Rubens de Camargo Ferreira Adorno Professor Associado do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública – USP

A violência e a referência a drogas como o "crack" apresentam-se hoje, de maneira reflexiva, presentes no cotidiano da população. A divulgação e o tratamento dado ao problema através da media, rádio, jornais, noticiários de televisão, os tornam parte do cenário cotidiano. Risco real e risco virtual se misturam a partir da aproximação de uma criança à janela do carro. A presença de qualquer jovem de feições pobres ao lado de cidadãos motorizados passa a representar uma ameaça, seja essa real, seja aquela que passa a fazer parte do imaginário da população. "Crianças abandonadas", "jovens de rua", "infratores", "meninos de rua" passaram a ser os qualificativos atribuídos a essas crianças e jovens, entrevistos como ameaçadores ou como "abandonados" , fora da família e soltos pela cidade e por isso "não cidadãos" O termo "meninos de rua" passou a se consagrar e ser conhecido nas décadas mais recentes, expressando a história da ação de um conjunto de atores da sociedade brasileira que lutaram contra a discriminação e a discriminalização de crianças e jovens - através do plano político institucional, voltando-se para os poderes legislativos e judiciários e inscrevendo conquistas no plano institucional da sociedade, como foi a história do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Considerados até então (e ainda no cotidiano) como menores "infratores" de rua ou "soltos" na rua, ou "crianças abandonadas", são ainda alvo e argumento para o apelo ao assistencialismo e a repressão, esta última aumentando à medida em que diminuem os recursos e os grupos que desenvolvem trabalhos abordando as situações de rua de forma direta. Na história recente registrou-se o desenvolvimento de atividades e programas voluntários, de organizações não governamentais, ou mantidas por instituições oficiais, que através de oficinas, espaços, "circos-escola" e jogos vem buscando manter outras perspectivas de vínculo e de comunicação, partindo da utilização do espaço "rua". Esse quadro possibilitou olhar não apenas para os "meninos de rua" como um "problema social", mas como uma expressão social urbana contemporânea que suscita ao mesmo tempo a discussão sobre a cidade, as formas de vida e de conduta, que tanto podem ser pensadas no plano local - a cidade de São Paulo, como nas suas vias de contato com outras cidades contemporâneas, em que a presença dos jovens pobres ficam contidas em "guetos" específicos, identificados como imigrantes, não pertencentes às sociedades nacionais como em cidades européias, ou como comunidades étnicas, como nos Estados Unidos. Nos trabalhos de pesquisa que desenvolvemos, passamos a utilizar a expressão "crianças e jovens em trânsito para as ruas" para falar de um conjunto de situações que descrevem o cotidiano desses cidadãos que tiveram sua trajetória a partir da periferia das cidades brasileiras, sendo em sua maior parte filhos de famílias de baixa renda, pobres, e não necessariamente miseráveis. Famílias que ganham a vida em serviços domésticos ou da construção civil, ou a partir de estratégias de sobrevivência, do trabalho informal. Longe de terem seus problemas de moradia, saúde, educação,

previdência social atendidos por políticas sociais do Estado, por si mesmas, usando terrenos coletivos, onde passaram a construir cômodos para resolver seus problemas de moradia. E, quando impossibilitados ou excluídos da força de trabalho, passam a obter pequenos e precários benefícios, remendos que asseguram, no limiar, a cesta básica de sobrevivência. São crianças e jovens vulneráveis cidadãos não filhos da miséria, mas da condição de vida, cidadania e trabalho dos pobres, das famílias assalariadas e hoje de trabalhadores informais de baixa renda. Ao falar de "crianças e jovens em trânsito e em direção à rua", procura-se situar um conjunto de experiências de vida, de "estilo de vida", marcados e construídos por adesão a um espaço, que por ser amplo, exposto, desprotegido e alvo de assédios, requer a construção de estratégias, de mecanismos de manipulação e de defesa que acabam por formar um tipo de sociabilidade que se produz e reproduz tendo como referência o grupo, "a turma", o "bando", que se opõe à casa, à família, como forma de organização de vida, que tem sido negativa para esses jovens, não apenas pela experiência social da pobreza. Por oposição à casa, a rua representa um conjunto de territórios que rompe com a dimensão do tempo, violentando limites, entre possível e impossível. "Zoar" nesse espaço significa transitar, ir de um espaço para outro, obter as coisas que o mundo da casa não permite. Essa condição procura expor, mascarar ou negar a reprodução da condição de vida do bairro, da família, que é relatada como um local do qual se procura sair. Nessa interpretação do fenômeno social da criança/jovem em direção à rua, vamos ver aspectos como a construção de um modo de vida: a sobrevivência a partir da exposição às ruas, o contato com as redes que manipulam drogas, armas e subsidiam as formas de vida violentas, ao lado também da violência e da deterioração física da cidade, e no corpo dos que aí habitam a marca de uma intensa energia e resistência a esse mundo muito rápido, ágil, fugaz, que tem um outro tempo: o de zoar, o de "dançar" ou não "dançar" de repente, o de viajar, ou o de ficar horas sentado/ deitado em um banco com um cobertor e um saquinho de cola, até há um ano atrás de esmalte, conversando bobagens, dormindo, viajando de olhos fechados ou juntando-se de repente para dar um giro, para apanhar alguma coisa, conseguir algum bagulho, algum trocado e traçar alguma coisa. Todos se conhecem como uma grande "horda", "clã", os contatos podem ser mais próximos com alguns da "turma" mais próxima. Conhecem-se a todos e principalmente participam de um mesmo código de mensagens, em que avisos como presença de um outro tipo de polícia, traficante, ou então "sujou", ir parar outro lugar, agir, são comunicados. Cabe destacar que o crescimento hoje do "crack" dentro desse circuíto no cordão central da cidade de São Paulo, vem causando um estreitamento da vivência das ruas na cidade. Nesse texto narramos alguns trechos de observações e entrevistas que fizemos na região central da cidade de São Paulo1, intercalando texto e trechos de diários de campo que descrevem mais diretamente as situações compartilhadas. ....estávamos conversando com Lúcia na Praça da Sé, quando uma mãe se aproximou trazendo uma fotografia e perguntando se conhecíamos aquela menina... A mãe parecia ansiosa e desesperada. Lúcia disse, aqui não vi... pode ser que ela tenha ido é pro Anhangabau, porque não conhecia ela aqui na Sé... saindo a mãe Lúcia me diz: todo dia alguma criança vem aqui para a Sé, pergunto porque e ela me responde: - A Praça da Sé ficou famosa, a gente aparece em foto, na televisão e quando a criança desgosta da casa, ela vem perguntando, achando mais alguém e chega aqui, pode vir de longe, de Cangaíba, de Ferraz

de Vasconcelos ou até do Paraná, mas ela acaba chegando aqui... e se a criança sai de casa é por que alguma coisa tem lá que ela não gosta... Essa afirmação Lúcia deixa no ar, procuro perguntar "o que" e ela não fala algo mais conclusivo, só acrescenta que na sua situação está alí porque gosta, se quisesse voltar para casa podia, porque tem casa e família e não tem nenhum problema em voltar, mas prefere ali. Uma vez imersas na experiência da rua, essas crianças iniciam-se em círculos de sociabilidade e de socialização, em que o uso de drogas irá se colocando como ritual de iniciação e aceitação nos grupos e círculos dos meninos com a vida exposta na rua, forma de ficar mais esperto, ter mais coragem para enfrentar situações mais complexas, como roubo. Os grupos ou "turmas" ou os colegas "manos" podem formar grupos "soltos" nas ruas e avenidas ou, na estrutura do "mocó", ou do "barraco". Além de ser um local para dormir, morar é também uma forma de organização em que os mais velhos comandam os mais novos ou recém chegados. Nesse caso, em que há participação de jovens e inclusive adultos jovens, possuem um líder, que age como "responsável" pelos meninos a ele pertencentes. Baby, Guimarães e Luís tem idades diferentes. Baby tem 12 anos, Guimarães por volta de dezoito e Luís , nove. Ocupam diferentes posições na hierarquia da turma, fazem parte da "massa" dos meninos da República, um deles lidera também um grupo no Anhangabau, o último ainda frequenta a Praça da Sé. Baby saiu de casa por motivo recorrente na história desses meninos: sofria maus tratos da madrasta . Está na rua há uns 6 anos. Nada comenta sobre a família. Nas ruas do centro de São Paulo diz que tem muita diversão, seu bairro não oferece o mesmo. A rua oferece algo que a casa limita. A "turma" representa algo que a família deixou de representar. Apesar das diferenças , esses três tem em comum o fato de ocuparem o espaço da rua que , por oposição à casa, representa uma oportunidade de liberdade, de fazer o que quiser, de transitar livremente e de consumir coisas que em casa não seria possível. Representa ainda a oportunidade de estar "antenado" num mundo globalizado. Jogam, nos fliperamas do centro de São Paulo, os mesmo jogos que os jovens de outras partes do mundo, em todo lugar jogam como nós, eles fazem questão de referir. Comem um "Big Mac", com muito molho, eles falam, tem dia que comi tanto, fala Luis, que fiquei dois dias meio zoado, com dor de barriga... e tem ainda a turma.... Dentro da turma novos valores são incorporados. Lançando mão de estratégias de sobrevivência, criam um novo código de ética, no qual a fidelidade é essencial: "cagüetar" um colega de turma é o maior crime que um menino de rua pode cometer... Outro elemento dessa ética do grupo é zoar juntos, cultuar a proeza de um e ser imitado ou competir na proeza do grupo: faz parte da aventura das ruas... Aventura e excitação, essa é uma das outras entidades chaves de suas vidas, estar energizados e excitados... Há uma busca permanente de "esportes radicais", como os roubos difíceis, o correr entre gente e carros nas avenidas e o que presenciei nas Escadarias do Viaduto Maria Paula, uma espécie de "surf no concreto", em que os meninos desciam as escadarias em cima de tábuas... Como parte desse estilo há também a abordagem direta. A agressividade preside as conversas e as discussões, em que tudo é "barbarizado" e banalizado, como brincar de matar e morrer. Mas há um enredo que lembra filmes seriados de violência, de qualquer lugar.... "O crack" vem quase nesse ritmo, a droga é a fissura, daí viver a cada instante mais na fissura, uma pipada atrás da outra.

Me recordo um pouco do texto clássico de Simmel, sobre a cidade e vida mental : a experiência da velocidade, do ritmo, da diversidade... e de como esse "flanar radical", pintado das cores da poluição, experimentam arrebentar esses nervos urbanos. (Paulo Malvazi, Diário de Campo, 11/1/96). Durante o período de realização do trabalho de campo ocorreram mudanças não apenas no "perfil" da vida de crianças e adolescentes em ruas e praças da cidade de São Paulo, mas também em relação à ocupação dos espaços. Outros fatos contribuíram também para trazer a questão dos "meninos de rua" para um cenário mais amplo, a própria atenção para a "escalada" do consumo de "crack" em São Paulo, a repercussão nacional e internacional do julgamento dos assassinatos de meninos de rua da Candelária, no Rio de Janeiro, e o calendário eleitoral . A estratégia de "limpeza urbana", como o uso de caminhões-pipa e jorros de água eram observados, essa "limpeza" concorreria também para a dispersão de "meninos de rua" que deixariam de se aglutinar em praças específicas. Dessa forma, acompanhando o fluxo dos jovens que ocupavam as ruas da Zona Central da cidade de São Paulo, percorreu-se o caminho da praça da Sé à Praça da República. Em 1994, as primeiras abordagens no espaço da rua, foram na Praça da Sé. A atuação então observada dos "educadores de rua", nessa época, era a de realizar um trabalho diretamente na rua com os meninos nesse local. De certa forma, intermediavam a relação com a polícia. A praça durante o ano de 1994 era freqüentada por um número bastante grande de meninos, que tinham o hábito de colocar esmalte de unhas em um saquinho plástico e aspirar. Esse produto era vendido pelos camelôs existentes na própria praça. Os educadores orientavam os guris para evitarem portar o saquinho de esmalte de forma ostensiva na presença dos policiais. Era então possível sentar nos bancos e conversar. Esses meninos dormiam na praça, mas tinham vínculo com a região de origem : quase em sua maioria eram oriundos de bairros da Região de São Miguel e Guaianases, do extremo leste da cidade de São Paulo. Predominavam ainda nessa época "meninos" nas faixas etárias entre 7 e 14 anos, em idade escolar, evadidos da escola. A praça representava um polo de atração e nela era possível realizar muita coisa. A partir do segundo semestre do ano de 1995, verificaram-se mudanças nesse espaço do centro da cidade de São Paulo, anteriormente ocupado pelos "meninos": ali estavam adultos, moradores de rua. Os "meninos" menores eram poucos, encontrando-se jovens entre 16 , 17, 18 anos e mais. A cola de sapateiro era agora aspirada, pois proibira-se a venda de esmalte pelos "camelôs" aos meninos; essa só era vendida para adultos. Estes compravam as latas de cola e as repassavam aos distribuidores, que colocavam a cola em saquinhos plásticos, contendo doses para serem vendidas nos "mocós". No segundo semestre de 1995 essas práticas não existiam mais, e nas conversas, que eram mais rápidas, fugazes, entrecortadas, ouvia-se falar da "cola" ou do "crack". Além de uma presença maior de adultos jovens e adultos que paravam na praça, observava-se um movimento mais intenso, a "correria" atrás das drogas, segundo a própria expressão dos meninos. A mudança ou a extensão que o movimento da "correria" atrás das drogas ocuparia nas "conexões" entre a sociabilidade dos meninos e as perguntas e o interesse que era demonstrado pelos pesquisadores, era de fato uma situação nova. Essa questão foi mencionada em praticamente todas as entrevistas com os "atores" de instituições e ONGs, que referiram que apesar de já ter sido

introduzido há mais tempo, o consumo de "crack", teria uma escalada também a partir do segundo semestre de 1995. A introdução do "crack" e a própria característica da comercialização e efeito dessa droga dificultariam ainda mais essa relação. Além disso a informação e o sentido geral atribuído a esse fenômeno era de relacioná- lo a um aumento da violência, ou da introdução de regras, e comportamentos mais agressivos entre os traficantes e consumidores. Essas questões aliadas a problemas relatados de falta de "verbas" para manutenção de trabalhos por parte de não governamentais, levariam a um recuo das ações, mais especificamente dos "educadores de rua". A "transição" efetuada pela "hegemonia" do crack no circuito de crianças e jovens de rua, no centro velho da cidade de São Paulo, registraria também mudanças geográficas. Na Praça da Sé, já em início de 1996, era muito difícil encontrar algum "menino de rua". Esses passariam a ser vistos cada vez mais estirados em calçadas no meio do passeio, na região da Praça da República, espaço esse relacionado através da imprensa, como um território do tráfico de "crack". Mais tarde, soube-se que as mudanças de locais ocorreriam também em função dos constantes "arrastões" realizados pela polícia, além do lançamento de água por caminhões - pipa que realizavam a "limpeza" das praças. Nota-se que apesar dos "arrastões" policiais, dezenas de vezes observou-se diretamente os meninos pipando "crack" em alamedas da Praça da República, ao lado de transeuntes e as vezes até próximos a guardas de polícia. A introdução e a hegemonia do "crack" marcaria uma profunda diferença entre os "tipicamente meninos de rua" em São Paulo e em outras cidades brasileiras. Nos registros, Eliana, de 11 anos, fala que é baixinha porque fuma crack. A "correria" atrás da droga é a atividade que a leva a fazer qualquer coisa: Eliana diz que um cara, que estava na praça e tinha cara de maluco, ofereceu 2 reais para ela "ir até ali fazer umas coisas com ele", acrescenta, "prefiro pedir , com 2 reais não dá pra comprar pedra" . Registros como esse mostram a "fugacidade", ou as "possibilidades" de as coisas acontecerem nesse universo da rua, em cada esquina, onde cada abordagem pode ser um convite, um acontecimento, que em seguida já é esquecido por uma situação nova. A "memória" temporal é algo entrecortado pela seleção de "quadros" ou de "situações", às vezes narradas sem ligação entre elas. Essa forma de exposição aos acontecimentos, que podem ser efetivados ou podem ser uma possibilidade, um desafio, uma aventura, fez pensar em uma analogia entre a "rua", "a praça" e os jogos de um "Fliperama", ou um "vídeo-game", em que entra-se em alta velocidade; objetos e situações vão passando, repetindo-se ou não, e o importante no jogo é desviarse ou entrar nelas e sair para outra, mesmo tendo perdido uns pontos ou danificado alguns "componentes" do veículo-objeto - jogador que circula naquela tela. Real e virtual se misturam, o uso de drogas possibilita a velocidade e a sensação do "vídeogame", acerta-se ou esconde-se do alvo. O aparecimento do "crack" pelo que se registrou, intensificou a "correria". O "crack", segundo os depoimentos entrecortados dos meninos, "bate", é "pancada" e dá uma "nóia". A "nóia" é a "fissura" para "pipar" um novo cachimbo. Acirra-se com isso a relação de dependência dos meninos em relação aos distribuidores. A distribuição do "crack" na Praça da República foi descrita como sendo feita por jovens do sexo feminino com idade superior ao dos consumidores, essas são apelidadas de "malas", que por sua vez são "controladas" pela "diretoria" que segundo as falas registradas também teria a participação de mulheres. As meninas de menor idade e que não fazem "avião", são por sua vez apelidadas de "fubangas"..

A Praça da República, na cidade de São Paulo, configura-se como um território e as "pipadas" são feitas em suas alamedas. A "pedra" passou a vir com um "cachimbo" em embalagem plastificada: dois finos cilindros de metal e uma peça em que se coloca a pedra para queimar. A abordagem era difícil e exigiu o uso de dis tintas estratégias, como foi citado no item referente aos problemas relacionados com o trabalho de campo. Em geral o horário em que se conseguiu melhor aproximação, quando ainda se abordava diretamente sem o uso de intermediários, era o compreendido entre 12:30 e 14:00 horas, quando os meninos acordavam e davam um pequeno intervalo, antes de reiniciar as pipadas de "crack". Nesse momento era possível conversar, enquanto eles tomavam café ou chocolate e comiam. Esse "café da manhã" era sempre conseguido em lanchonetes ou cafés nas imediações, e com direito à repetição. O "crack", como foi observado, é obtido na própria Praça. Nos arredores da República e entre São João e Luz, soube-se da freqüência a hotéis, que além de serem utilizados para "programas" das prostitutas da região, alugam quartos para se "pipar", a R$ 5,00. Para conseguir "crack" , meninos da República relataram eventualmente utilizar o mercado dos "michês" que tradicionalmente ocupam as alamedas centrais da Praça. Com o que se recebe, em geral, compra-se várias "pedras". Entretanto, para a compra da pedra , as formas mais convencionais de conseguir dinheiro são o furto, o roubo e a mendicância. A abordagem feita a motoristas de automóvel - preferencialmente mulheres - é outra forma relatada. Os meninos contaram que dependendo da "nóia" ou "fissura" para conseguir uma pedra, desenvolvem várias técnicas de abordagem, dependendo da "cara" ou da aparência da pessoa decidem o que é melhor: a situação de ameaça ou de colocar-se como vítima e pedir dinheiro. Durante o campo pode-se observar situações de abordagem e às vezes foi notado que o mero exercício de aproximação de um menino causava situação de medo, em determinados transeuntes. "Sentei-me junto a um grupo de meninos. Os meninos não respondiam às perguntas que lhes eram feitas. Preferi então só ouvir a conversa deles. Eles estavam esperando os policiais saírem daquele pedaço para pegarem seus "apetrechos". Dois meninos que estão sentados do meu lado comentam que seus cachimbos tem resto de "crack". Pergunto-lhes então sobre a droga e o seu "barato". Dizem que é algo do outro mundo. Outro diz que se liberarem a "maconha", ele só vai fumar a erva porque assim nenhum policial vai encher. Pergunto como eles conseguem o cachimbo. Respondem dizendo que eles mesmo o fazem. Utilizam-se de um cano de alumínio e alguma coisa que tenha um formato adequado, como uma tampa de esmalte... Começo a conversar com um garoto chamado Tiago. Disse que não mora na rua o tempo todo. Fica uns dias na rua e outros na casa de uma mulher a qual se referiu como "sogra". Disse que tem duas mulheres. Na casa com elas pode fumar "maconha". Muda de assunto muitas vezes e parece estar na "nóia" para fumar uma pedra. Ele acha que os cientistas que estudam a droga deveriam experimentá-la para entender" (Paulo Malvazi, Diário de Campo, 5/1/96). Existe para os meninos, e não somente os que passam a viver e transitar na zona central da cidade, uma "hierarquia" a partir do efeito das drogas. A "maconha" é considerada a mais leve, um maior efeito é dado pela cocaína aspirada e depois para a injetada (essas duas formas de consumo são pouco comuns entre meninos de rua, mas são consumidas em alguns "mocós" pelos jovens dos bairros), por último está o "crack", considerada a droga que "bate mais forte" , "vai mais fundo". A droga injetável não foi registrada, entre meninos de rua, durante a situação da pesquisa. Sobre esse uso de droga houve a referência: "eu não vou ficar furando o meu corpo" e "pode dar doença AIDS".

Há características específicas do "crack" enquanto droga usada por crianças e jovens : primeiro o porte, o fácil acesso e o consumo imediato. O "crack" possui uma reação intensificada e é um desafio. "... é interessante notar um outro aspecto: apesar de num primeiro momento considerar que o universo na rua e da rua é coletivo e, constatar que a "turma" oferece proteção na hora de furtos, por exemplo. Posteriormente pode -se constatar que a rua é extremamente individualista, onde cada um deve lutar diariamente para não ser explorado pelos mais velhos, pelos traficantes, pela polícia. O que parece permitir que o individualismo se torne mais arraigado ainda é o "crack". Tem-se a sensação que o "crack" encerra a pessoa num universo tão particular e que o desespero para conseguir a próxima pedra é tão grande que se torna inviável qualquer outra relação que não esteja ligada à pedra. É exatamente por causa desta "pedra" que diversas vezes foi impossível estabelecer um diálogo. A pessoa estava tão submersa na sua "nóia" ( como eles mesmos falam) que não havia meio de começar uma conversa". (Fernanda Fernandes, registros em Diário de Campo). O uso de droga tem desde o caráter de consumo em momentos de lazer, como também para dar coragem e agilidade em ações que demandam uma percepção aguçada. São situações de grande stress emocional: por exemplo, em entrevistas que foram realizadas recentemente, em jovens que cumpriam medida de internação na FEBEM, obteve-se a referência: a "fuga é nossa adrenalina", a fuga é como uma droga, é uma situação extrema. O consumo de droga marca, além dessa "adrenalina", uma forma de identidade, um símbolo de identificação, o fato de pertencer àquele grupo, de fazer parte daquele espaço, que uns ocupam durante o dia e à noite; outros ali vão algumas vezes por semana, ou alguns dias, transitando entre a casa, o bairro da periferia, as avenidas e a praça no centro da cidade e ali encontram conhecidos, "manos", irmãos reais ou não. "...nas diversas vezes que fomos à República, presenciei o dia-a-dia dos meninos e a estreita relação de suas vidas com a dinâmica do "crack" - tráfico, consumo fissurado, incessante... Sempre acabamos vendo isso como algo que atrapalha nosso entendimento da vida daqueles que estamos observando. Agora, ao pensar sobre isso, percebo que talvez estivesse errado até agora. Se o consumo de droga é algo tão presente e constante na vida dos meninos, talvez todo ritual que cerca o consumo mostra -nos mais do que atrapalha o entendimento. Como Geertz, que entendeu a briga de galos balinesa2 como um texto em que os balineses contam "uma estória sobre eles que eles contam a si mesmos", assim tentarei entender o consumo de "crack" por parte dos meninos que vivem nas ruas de São Paulo" (Paulo Malvazi. Diário de Campo 22/5/96). As mudanças na dinâmica do consumo/comercialização do "crack" foram um fato mais recorrente nos registros de trabalho de campo apresentados. Essa "ação" em torno, em função da droga, tem um peso e uma polarização, em grande parte da vivência, incluem-se como aspecto importante na formação das redes de sociabilidade existentes no mundo das crianças e jovens que transitam em torno das ruas: nessa rede estão as demais situações de risco que configuram a situação de "vida ameaçada" e interferem na qualidade da vida no cenário urbano. As mudanças no consumo e nas relações entre consumidores e traficantes, a introdução do "crack", que tem características próprias, trouxeram conseqüências para o "mapa" dos riscos ou a "vulnerabilidade" das crianças e jovens em trânsito para as ruas. Se do ponto de vista do "mapeamento" dos riscos e das situações de vulnerabilidade (consumo de drogas, comportamentos presentes no exercício da sexualidade e o uso da violência) aparecem como uma "tríade" de processos associados à sociabilidade dos grupos de crianças e de

adolescentes em trânsito para as ruas, as mudanças em um desses "processos" altera a dinâmica e a relação entre esses. As referências a esses "temas" estão porém implícitas nas histórias e nas cenas presenciadas, como parte do mundo, presentes no cotidiano e se tornam uma parte das relações de sociabilidade, "naturalizadas" . Pode-se verificar isso com histórias de vida e registros feitos em diários de campo: "Luis contou-nos que um irmão dele foi morto a tiros... os policiais vão embora, Luis pega um teclado de computador ( existente em seu mocó) e brinca de investigador de polícia: pergunta-me como matei, se foi a facadas, quantas foram, em que partes do corpo, etc... (Paulo Malvazi, Diário de Campo 18/10/95). "... aqui na Praça da Sé não dá mais pra ficar, eu durmo lá na São Bento, porque lá tem um mundo de gente e se fizerem alguma coisa a gente grita e chama a atenção... aqui desde que eles jogaram álcool e queimaram um menino enquanto ele estava dormindo não dá pra passar a noite.... depois que queimaram o menino dormindo parece que tudo sumiu da praça. ..." (Diário de Campo 5/1/0/95). Pode-se observar que o advento do "crack" é descrito como o advento de uma situação na qual a relação entre traficantes e meninos de rua adquiriu um significado simbólico como na história contada acima a respeito da Praça da Sé. E contribuiu para aprofundar a situação de "exclusão social", bloqueando canais, dificultando o tipo de abordagem realizado pelo "educador de rua", aproximando circuítos e estimulando as práticas da violência. A questão da violência e as crianças e jovens que aparecem nas cenas da rua, que foram tratados como aspecto estrutural das instituições e do cotidiano, devem também ser vistos a partir da emergência de novas formas de sociabilidade, ou do uso de um estado de excitação e de violência sem sentido. Para entretanto situar a questão da violência e de outros aspectos, tais como a própria relação com os trabalhos de apoio, prevenção ou recuperação e sua relação com as crianças e jovens em trânsito para as ruas, torna-se necessário destacar a existência de diferentes circuítos, diferentes situações. O trânsito para a rua seria mais uma expressão do "risco pessoal e social"3 de grande parcela dos adolescentes no Brasil. Essa apreensão do "risco" pessoal e social traduz-se não apenas na possibilidade de habitar na rua, mas de usá- la como espaço de sobrevivência e experiência existencial em oposição ao que foi dado socialmente. Ao transitar pelas ruas essa experiência vivencial expõe-se à violação, à violência, a abusos, ao envolvimento com drogas e o "extermínio", quer por parte da polícia, quer por parte dos grupos do próprio crime organizado e narcotráfico, quer por parte dos denominados grupos de extermínio. Estamos diante de dois circuitos e de duas formas de relação entre a sociabilidade de crianças e jovens, que evidenciam diferentes modos de exposição à violência, e a exclusão social . O circuíto constituído pela presença do que genericamente se chamou de "meninos de rua" ou de "crianças em situação de rua"4, tem como referência espacial e parte de suas identidades, enquanto grupo, o uso de ruas, avenidas e equipamentos urbanos nos quais há grande circulação, movimento e diversidade de situações nos quais possam se expor, esmolar, relacionar-se, brincar, consumir.

Um outro cenário representado pelo que aqui denomina-se "de bairro", caracteriza-se por uma referência territorial mais específica - espaços em bairros periféricos, favelas, "mocós" encravados em descontinuidades urbanas, terrenos e casas abandonadas, em que se situam grupos, "gangs", formas de organização para obter coisas roubadas, furtadas, etc... Em relação a esse segundo grupo pode-se caracterizar ainda a situação de jovens que continuam mantendo vínculo e morando com a família e que passam a penetrar em circuitos e situações que os expõem mais diretamente à violência e à entrada no circuito da exclusão pela participação no circuito das ações criminais. Esses jovens organizam-se em grupos, "gangs" de bairro ou "mocós" em vários locais da cidade. Em determinados territórios, em bairros da periferia, estabelecem um círculo de competitividade e conflito pelo domínio de áreas de atuação ou simplesmente de adesão a uma turma. Essa competição se dá não apenas pela divisão e a negociação do roubo e do tráfico, mas por questões de honra, o uso de armas de fogo resulta em grande número de mortes. Essa é a chamada "malandragem ", uma vida de disputas e vinganças. O surgimento das "bocadas", que funcionam 24 horas na periferia passou a ser um outro elemento dessa história, jovens passam a consumir produtos como o "crack", utilizando-se de todo tipo de expediente para conseguir dinheiro para comprá- lo. Neste segundo grupo há que se situar a dinâmica das diferentes formas de sociabilidade: os bailes, o pagode, o Rap, os Funks no Rio; e que, como expressão cultural, os ligam fortemente a uma identidade, a um vínculo de pertencimento e de oposição à sociedade. Essas manifestações canalizam a raiva, o protesto como o identificado nessa pesquisa pela entrevista com grupos de rappers da zona leste paulistana. Nessas aqui chamadas formas de sociabilidade, o consumo de alcool e outras drogas estará presente, mas não é a condição suficiente para a "entrada" em circuitos "mais pesados", ou não significam conduzir à violência por si mesmos. As formas de sociabilidade e os circuitos culturais são os determinantes mais importantes nesses aspectos. Como traço comum e identitário a esses grupos está a situação de pertencimento a camadas sociais de baixa renda. Essa identidade pode-se manifestar pelo pertencimento a um espaço da cidade: morar na "periferia", ou em um "barraco". A questão "étnica" também se manifesta, principalmente na fala dos participantes de posses de rap, e de outros interlocutores dos jovens que se consideram discriminados e que se identificam como "pretos, pobres e da periferia"5 A presença da atividade do narcotráfico e sua pulverização pela cidade de São Paulo, somadas às "gangs" que praticam furtos e roubos aparece como uma das formas de inclusão de crianças e jovens. Buscando concluir, a partir das pinceladas desse cenário descrito em rápidos "flashes" e observações, chamamos a atenção para essa dimensão do cenário contemporâneo e da condição da "cidadania local" dentro dele. Ao lado das questões acima colocadas deve-se destacar as questões estruturais do mundo contemporâneo, a "globalização" e seus desdobramentos econômicos, políticos e culturais, ressaltando a crise do Estado provedor, o aumento das atividade "desregulamentadas" ilegais do ponto de vista jurídico institucional, mas existentes e atuantes de fato, como o tráfico internacional de drogas e de armas, o aumento da reflexividade social 6. Ainda ressalta-se as mudanças na esfera das relações de trabalho e o aumento da "informalização" e do trabalho não regulamentado.

Essas mudanças devem ser consideradas também a partir de sua influência em relação ao espaço da criança e do jovem, e a transição para a idade adulta, com destaque especial a famílias de baixa renda ou famílias pobres. Como aspecto local destaca-se o limite de instituições como a escola e outras entidades estatais que promovam o indivíduo jovem-cidadão. A questão histórica das “gangues” de jovens e sua busca aparecem como outro contraponto. A esses fatos deve-se acrescentar o papel de gênero e sua relação com a violência nas formas de sociabilidade do mundo masculino, em que a honra, a disputa são resolvidos através de formas violentas. O uso da força física e outras forças de coação, da agilidade do corpo como estratégia de defesa, ocupam nesse espaço e nas formas de sociabilidade um papel mediador que atribuímos à palavra, como expressão do direito e da vida social. O papel de gênero e as relações estabelecidas entre os gêneros passam também por formas de mediação em que a força física e a agilidade combinam-se com formas tradicionais hierárquicas. A introdução do "crack", que ocupou um cenário central nas referências e cenas observadas em campo, vem sendo divulgado pela media. A questão do uso do "crack" deve ser entendida como uma das "atividades" que se inseriram no circuito da rua e no circuito do bairro, devendo ter o cuidado de não tratá- lo com o enquadramento da "drogadição" tradicional, ou da dependência de drogas no sentido individual. Como referimos acima, o uso do "crack" tornou-se um elemento "identitário" da vivência no espaço da rua, significados como o de "detonar", "arrebentar", assimilados do efeito arrebatador dessa droga, são assimilados como a característica do que possa ser o estar vivendo nas ruas, ou em uma situação liminar. Cabe enfim indagar o sentido das transformações contemporâneas e do significado da cidadania. Se a sociedade contemporânea é tomada como um campo mais largo, mais complexo para a experiência e a realização dos indivíduos, que podem inclusive identificar-se, trocar experiências, identidades e informações em escala global, os efeitos continuam a se fazer sentir de forma diferente nas distintas camadas sociais. Assim, os circuitos das crianças e jovens pobres apresentam a grande vulnerabilidade frente à violência, ao extermínio e seguem se incluindo nos espaços da cidade como imponderáveis e vulneráveis cidadãos. Apresentamos por fim alguns livros e artigos com os quais se dialogou nos trabalhos de pesquisa realizadas e que servem também de referência para o tema.

1. "Crianças e Jovens em Trânsito para a rua: um problema de saúde Pública", financiada pela FAPESP, e realizada com a participação de Paulo Malvasi, Luis Antonio Barata e Fernanda Fernandes, alunos do Curso de Ciências Sociais da USP e bolsistas de Iniciação Científica da FAPESP e do CNPq. 2. Referência feita a um capítulo do livro de Geertz, C.(1980 ) A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar. 3. Ressalta-se que a expressão "risco", foi utilizada para definir no Estatuto da Criança e do Adolescente a condição de vulnerabilidade das crianças e jovens em situação de exposição à rua. 4. A pesquisa realizada pela Secretaria da Criança, da Família e do Bem Estar Social apresenta, em sua definição operacional, definições descritivas a respeito desse "conjunto", considerando aspectos como modo de vestir e de usar as ruas. 5. Interessante destacar que a oposição "étnica" é o elemento central dos conflitos e das situações de discriminação manifestada pelos jovens em países, guardadas as diferentes situações de exclusão,

como os Estados Unidos, em relação aos negros e latinos; e na França, em relação a população imigrante, particularmente do norte da África. 6. O termo reflexividade é utilizado por GIDDENS para interpretar, entre outras questões, o aumento do fluxo e da capacidade de assimilar e se utilizar da informação, do conhecimento científico e de outras fontes de conhecimento

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A VIOLÊNCIA E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA DEMOCRACIA Carlos Amadeu Botelho Byington Médico psiquiatra, analista e supervisor pedagógico

Boa noite a todos. Agradeço o convite do Julio Lerner, coordenador desta série de encontros e do Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, Dr. Belisário dos Santos Jr., aqui presente. O que tenho a lhes dizer sobre a violência se baseia na Psicologia e se estende à Sociologia, à política e à cultura. Devido à complexidade do tema e a limitação do tempo, abordarei somente alguns tópicos sobre o seu encaminhamento e seus respectivos pontos de estrangulamento. Sua abordagem produt iva depende da sensibilização dos dirigentes do país e dos meios de comunicação, para nos conscientizarmos de aspectos fundamentais e encaminharmos soluções criativas. Infelizmente, a mentalidade da maioria das pessoas para lidar com os problemas da violência ainda favorece a tradicional solução patriarcal repressiva. Na realidade, essa é uma receita para conter a violência, incompatível com a democracia, que pode dar algum resultado a curto prazo, mas não lida com a raiz do problema e, a médio prazo, costuma gerar ainda mais violência. O encaminhamento da questão, pela sua abrangência, necessita transcender o raciocínio repressivo do padrão patriarcal e adotar o padrão de alteridade, que emprega o método dialético para relacionar suas variáveis dentro da sociedade como um todo. A violência é um distúrbio da agressividade. A agressividade em si não é necessariamente má nem anormal. Pelo contrário! A agressividade é uma função estruturante da vida, da maior importância. Ela é ativada pela frustração. Enquanto a afetividade diz sim, a agressividade diz não. Sem a capacidade de dizer não, é impossível sobreviver. A afetividade e a agressividade regulam o nosso posicionamento ético diante do bem e do mal. Ambas fazem parte do relacionamento humano e são indispensáveis para viver. A afetividade acolhe o que nos faz bem e a agressividade repudia o que nos frustra e nos faz mal. Quem não afasta o mal, é logo dominado por ele. Como diz um velho ditado popular pernambucano: "Quem tem pena do Diabo, acaba sentado no lugar dele". Como qualquer outra função da vida, a agressividade pode ser expressa de maneira criativa ou destrutiva. A frustração gera irritação e agressividade. Se essa agressividade vai ser expressa de forma criativa ou destrutiva, depende de cada pessoa e da situação em que ela se encontra. A cultura, nesse caso, tem grande importância, pois ela pode oferecer meios para adotarmos soluções criativas diante de nossas frustrações. Nós acompanhamos o relato da Ana Lúcia sobre a sua frustração com o problema do carro que parou na porta da sua garagem. Se o disque-guincho por ela acionado fosse um serviço eficiente, ela teria operacionalizado criativamente a sua frustração e não teria recorrido à violência e esvaziado os pneus do infrator, como ela própria reconhece que acabou acontecendo. A psicologia comportamental demonstra essa tese com facilidade. Colocamos alguns ratinhos numa caixa. Se, quando sentirem fome puderem descobrir que acionando uma alavanca têm acesso à comida, sua frustração poderá ser canalizada criativamente e eles aprenderão a se alimentar. Se no entanto, a privação do alimento não puder ser satisfeita pela criatividade, eles canalizarão sua agressividade contra si próprios ou uns contra os outros. A frustração também poderá ser desencadeada pela diminuição do seu tempo de sono, por ruídos excessivos e até pela diminuição do espaço em que vivem. Se ela não puder ser canalizada criativamente, ela terá sempre o mesmo resultado destrutivo. Voltada contra o sujeito, ela gera depressão. Voltada contra os

outros, ela os ataca. Em ambos os casos, a frustração gera a agressividade, que se não encontrar uma válvula criativa, desembocará na violência, na destrutividade. Pelo fato de nosso cérebro ter cem bilhões de neurônios, nós somos a espécie mais criativa do planeta. Foi esse cérebro, maior que o de todas as outras espécies, que nos permitiu dominá- las e desenvolver a cultura e a tecnologia de que hoje dispomos. Se pensarmos que toda esta criatividade estava latente e que há vinte mil anos freqüentemente morríamos de fome, porque vivíamos em bandos coletores e não sabíamos nem plantar um pé de feijão, podemos imaginar que nossa capacidade criativa é ainda muito maior do que a que temos hoje. No entanto, é imprescindível percebermos que esse progresso foi acumulado não no cérebro, mas na cultura. Por mais culto que tenha sido um pai, o cérebro do filho nasce sempre tão ignorante quanto o homem das cavernas. É a repassagem pela cultura, de geração em geração, que multiplica o progresso tecnológico. É o binômio cérebro-cultura que articula o progresso ou o retrocesso das civilizações. Somos a espécie mais criativa e, exatamente, por isso, também a mais destrutiva. Nenhuma espécie causou tanto dano ao planeta, como a nossa. O problema com essa criatividade é que ela aplaca nossa frustração hoje, mas, ao mesmo tempo estabelece um nível de satisfação capaz de gerar a frustração de amanhã. É a descoberta maravilhosa da televisão que nos causa uma grande frustração quando ela não funciona. O mesmo acontece com a Democracia. A descoberta maravilhosa da representatividade popular se torna uma grande frustração, quando o povo não tem como reclamar e quando o faz, suas reclamações não são atendidas de forma eficiente. Surge então a justiça com as próprias mãos, uma das grandes fontes de criminalidade. Se adotarmos a tese que a frustração gera a agressividade e que a agressividade, sem ter uma saída construtiva, tende a gerar destrutividade e violência, compreendemos o aumento intenso da violência entre nós. O aumento da violência nas sociedades modernas deve ser estudado no contexto de cada país e de cada cidade. Farei considerações relativas principalmente à cidade de São Paulo, no contexto atual da sociedade brasileira. As frustrações de um operário na cidade de São Paulo são de um nível extraordinário. O tempo de transporte para um trabalho mal remunerado, freqüentemente consome de quatro a seis horas por dia, em condições estressantes. A moradia precária e até mesmo favelada em que reside parte considerável da população é sabidamente problemática. Nela, as pessoas têm segurança limitada, e a juventude vive próxima à criminalidade, ao tráfico de drogas e à prostituição. O ensino público é sabidamente deficiente. Os hospitais freqüentemente estão à beira da calamidade e as forças de segurança não só tem grande limitação, como freqüentemente abrigam criminosos. A assistência jurídica à população é deficiente e o funcionamento do Judiciário é kafkiano. Se a pessoa é presa por causa justa ou injusta numa delegacia ou penitenciária, a experiência do inferno lhe está reservada. Sobre esse alicerce tão defeituoso que causa diariamente enorme carga de frustração, paira o fantasma do desemprego, aumentado pela transformação econômica que atravessamos. Uma pessoa ou uma população, no regime democrático, relaciona intimamente os valores cultivados e o atendimento às suas frustrações. Nosso povo vive um abismo, não só de concentração de renda, como de contradição social. Supostamente, temos a liberdade da mídia para encaminhar e corrigir nossas limitações sociais. No entanto, a ojeriza à ditadura recente e a falta de cultura socialdemocrática, confundem liberdade e permissividade e alimentam a ignorância do que é a responsabilidade social na democracia. Devido a uma deformidade cultural, a livre comunicação ainda não está engajada com a transformação social tanto quanto poderia estar. A luta política das esquerdas tradicionais justificou regimes totalitários baseados na teoria da luta de classes e hoje encontra enorme dificuldade para patrocinar o engajamento social na democracia. Boa parte das esquerdas ainda não se deu conta que o mundo mudou e que a polaridade esquerda x direita não é

mais a antiga polaridade entre estatização e economia de mercado e transformou-se hoje na polaridade da economia de mercado subordinada ao bem estar social e a economia de mercado selvagem, subordinada exclusivamente ao faturamento e ao lucro. O resultado é a falta de engajamento social com agressividade criativa para atender às frustrações oriundas dos grandes problemas sociais que nos afligem. Sem um compromisso assumido com o encaminhamento criativo das frustrações sociais, a mídia se compromete no mais das vezes com o consumo do que for, inclusive o da miséria e do sofrimento. Grandes inteligências do país, unidas a lideranças significativas, resgataram a estabilidade relativa da economia, que hoje desfrutamos com otimismo. Sabemos, porém, que as reformas necessárias para manter essa relativa estabilidade encontram uma grande onda de inércia e de interesses contrários, que as retardam. Ao mesmo tempo, o custo dessa estabilização, acompanhada de globalização, tem sido a recessão em muitos setores, o sucateamento de parte da indústria nacional e um aumento do desemprego, fonte de desespero e de criminalidade, que reverte sobre toda a sociedade e denuncia suas contradições. Fica cada vez mais patente a imensa defasagem entre a democracia política e a democracia social. Começa a saltar aos olhos de nosso povo, a real diferença entre a excelência dos doutorados em economia, obtidos nas universidades do primeiro mundo, e a falta de conhecimento de como acolher e enfrentar o sofrimento de uma sociedade em transição no Terceiro Mundo. Aprenderam a lição da cabeça, mas não do coração. É freqüente vermos a situação clínica de um paciente se deteriorar pela falta de humanidade do seu médico, apesar dele estar dando o remédio certo. A sociedade foi reiteradamente avisada que o combate à inflação teria um alto custo social. Enxugar empresas e, freqüentemente, retalhá- las, é um dos remédios que trazem o desespero social. Mas, por isso mesmo, o acolhimento social a esse sofrimento precisa aumentar proporcionalmente. Ao invés disso, assistimos ao egoísmo de muitas lideranças usando esse sofrimento somente para desvalorizar os que tiveram a coragem e a capacidade de enfrentar o descontrole econômico. Por outro lado, o discurso daqueles que corajosamente transformaram a economia, diante do sofrimento diário da população é muitas vezes pautado por uma extraordinária falta de empatia, falta daquele sentimento que a tradição budista e cristã chama há dois mil anos de compaixão (com + paixão). Pensando nos termos surrealistas da realidade popular, é como se uma família sofresse um acidente de carro na via Dutra e esperasse por socorro. O motorista, pai de família, jaz na estrada com fratura exposta nas duas pernas. Ao lado, um filho morto e a esposa em coma. Uma filha grita agarrada à mãe e outra desmaia com muitas escoriações. Nesse momento, chega um diretor do DNER e lhe diz: "Tenha calma, meu amigo. O senhor será atendido assim que esta rodovia for reformada. O projeto do plano rodoviário já foi para Brasília. O único problema é que a Câmara dos Deputados colocou 115 emendas para favorecer alguns protegidos. Mas, nós temos certeza que, com nossas alianças políticas, derrubaremos todas essas emendas no Senado. O senhor fique tranqüilo, pois terá um atendimento muito mais eficiente do que jamais seria possível antes do Plano Real". O regime democrático, a liberdade de imprensa e a relativa estabilidade econômica, recentemente conquistados, começaram a abrir nossa sociedade para a convivência diária com seus grandes problemas sociais. O grito de dor da sociedade, ferida diariamente pela violência, começou a atravessar a surdez que separa o privilégio e a miséria. Poderosos e humildes se reúnem nas lágrimas dos cemitérios e se estendem as mãos na esperança de uma transformação social que os ouça e os atenda. Nesta vivência de necessidade premente de maior humanização do país, torna-se clamoroso o despreparo das instituições para empreendê- las. A responsabilização exclusiva das polícias, por si só, mostra o despreparo das classes dirigentes para canalizar inteligentemente a energia agressiva comunitária, que escoa destrutivamente na violência. Começam os esforços para uma distribuição melhor da renda, mas resta esquecida uma preocupação com a distribuição de serviços, que poderia dar um atendimento social imediato para grande alívio das terríveis

frustrações diárias da população. Não se compreende porque os serviços de atendimento ao público, como vagas em ambulatórios e hospitais, empregos, vagas em escolas, informações sobre enchentes, trânsito, acidentes, aprisionamentos e roubos, não tenham a mesma excelência da comunicação dos grandes bancos com seus clientes. Não se compreende porque o gigantesco crescimento da telefonia e concessões de telecomunicações sejam desvinculadas do compromisso de atendimento e informação social nos serviços básicos de atendimento à população. Nessa transição, nossa sociedade busca evitar a desumanidade do capitalismo selvagem neoliberal e se esforça para implantar a democracia social. Essa tarefa contudo é gigantesca e requer lideranças e criatividade em torno desse ideal. Não há dúvida que essa vontade nacional começa a despertar, mas que continua ainda muito longe de conscientizar todo o seu potencial criativo. Nesse sentido, o papel trágico da violência é uma força conscientizadora decisiva. O egoísmo e o apego à passividade às vezes são tão grandes que somente a tragédia tem a força para comovê- los. O papel da mídia nessa transformação social encontra-se extraordinariamente aquém do que poderia ser e exemplifica o que há de pior no neoliberalismo. Boa parte da imprensa transforma em bandeira denunciar o errado, sem um compromisso proporcional em sugerir o certo e lutar para implantá- lo. Este desequilíbrio entre informação e educação freqüentemente transforma os "paparazzi" em heróis e a imprensa marrom na grande representante da liberdade de imprensa. Desta maneira, o mal não só é denunciado desvinculado da sua possibilidade de correção, como é exagerado e transformado em produto de consumo. Esta perversão de parte considerável da mídia, ao invés de contribuir para educar a sociedade para a democracia social, deforma o leitor / espectador e o condiciona a engolir passivamente seu próprio esgoto mal canalizado. Forma-se, assim, uma relação cultural sadomasoquista, na qual o leitor / espectador é violentamente agredido com a notícia "para o seu próprio bem " e deve agradecer ao destino não ter frustrações ainda piores do que as que já tem. A pá de cal na ferida social é dada pela conotação de impunidade e corrupção que naturalmente acompanha o erro veiculado, sem compromisso com a correção e o acerto. Existe outro câncer na mídia que a escraviza ao neoliberalismo e corrói ainda mais seu papel na construção da democracia social. Trata-se da relação entre a mídia e a propaganda, ou seja, entre a mídia e a economia de mercado. A propaganda ética que ajuda a construir a sociedade dentro da economia de mercado é aquela que busca aumentar as vendas de um produto ao esclarecer o cidadão sobre as vantagens reais de natureza e preço vantajoso das mercadorias. Esta propaganda honesta infelizmente existe em minoria. No mais das vezes, vemos a propaganda receber somas fabulosas que financiam meios mágicos para enfeitiçar o consumidor e vender um produto, sem o compromisso maior com o valor do seu preço e do seu conteúdo. Usam-se personalidades de destaque na comunidade e situações criativas para se vender literalmente qualquer coisa. Neste caso a liberdade é confundida com licenciosidade. O consumo é enaltecido a tal ponto que bens materiais comuns, desde pastas de dente até soutiens, cuecas e sapatos, são identificados com os valores espirituais mais profundos da vida como a paz e a realização plena do potencial humano. Isto cria uma expectativa de consumo na população que dificulta extraordinariamente a formação de valores culturais profundos e a construção de um ideal que justifique o convívio diário com a frustração. Trata-se da pedagogia da promessa do conforto material acima de qualquer outro valor humano. Nesse caso, a sociedade investe fortunas, não na democracia social, mas exa tamente naquilo que almeja evitar que é a economia de mercado desumanizada e desumanizante. Trata-se da melhor maneira de alienar seres humanos e convertê-los em animais, fazendo-os magicamente acreditar que o simples consumo os fará felizes. Muitas vezes, este tipo de propaganda passa de exagerada à claramente enganosa. Esta deformação chega ao auge, quando abrange a propaganda de produtos que reconhecidamente fazem mal à população, com recomendação contrária explícita do Ministério da Saúde. Nesses casos, vemos claramente a economia de mercado selvagem dominar a economia de mercado ética, com a cumplicidade da sociedade, das leis e da mídia, sempre em nome da liberdade e da democracia.

Essa propaganda facciosa anestesia a consciência social, alienando-a e viciando-a com o consumo e, o que é pior, com a incapacidade de lutar pelo processo humanizador da democracia. Esta união vampiresca e reacionária entre a mídia, os meios de produção e a propaganda facciosa adquire ainda maior virulência, quando contamina o processo eleitoral. Ao corrompê- lo com a desfaçatez em nome da revitalização do processo democrático, esta união torpe atinge e adoece o próprio coração da transformação social. Ao invés da mídia e da propaganda veicularem as frustrações da sociedade e testarem o conhecimento e a capacidade dos candidatos em função do cargo eletivo pleiteado, elas propiciam um circo, um engodo para iludir e fascinar o eleitorado. Novamente, fortunas são gastas e até especialistas em campanhas eleitorais são importados para enfeitar magicamente os pretendentes. Em lugar de testadas para apresentar sua competência, as candidaturas são maquiadas para esconder suas limitações. E no final da campanha, ao invés dos confrontos serem feitos por especialistas dos problemas brasileiros que testem os candidatos e seus projetos de governo na frente do telespectador, jornalistas políticos propiciam o confronto dos candidatos entre si, como uma rinha de galos, onde os mais agressivos e caras-de-pau naturalmente se sobressaem. O efeito dessas campanhas de propaganda eleitoral pode enfeitiçar e arregimentar eleitores, mas seu resultado final é desastroso. Não é à toa que a classe política é a classe mais desprestigiada da nossa jovem democracia. Se o próprio processo de revitalização do regime, de acolhimento das frustrações sociais e do encaminhamento criativo das suas soluções é desvirtuado, com tanta ignorância e despudor pela mídia, pela propaganda e pelas fontes de produção que as financiam e se tudo isto é abençoado pela legislação eleitoral, como é possível para a sociedade acreditar na humanização progressiva da democracia? O ser humano é muito destrutivo, mas também muito criativo. Infelizmente, as situações de perigo e de crise são as que mais nos acordam do egoísmo e da inércia e estimulam nossa criatividade. Lutar contra o aviltamento da sociedade democrática pela economia de mercado sem ética e pela falta de cultura do nosso povo e de seus dirigentes requer assumirmos explicitamente o ideal pela humanização social. Será isto uma utopia? Claro que sim, mas quando foi que a humanidade caminhou para a luz sem um ideal? A questão é extraordinariamente complexa, mas por um lado, muito clara. No regime democrático, a repressão não nos livrará da violência. Pelo contrário, se adotada, ela arrisca destruir a própria democracia. A violência hoje nos aterroriza e às nossas famílias. Não temos escolha. Ou nos solidarizamos criativamente para a humanização social ou continuaremos solidários somente nas lágrimas dos cemitérios. Agradeço a sua atenção e, como estaremos saindo à noite neste Largo de São Francisco, desejo a todos que cheguem em casa sãos e salvos.

VIOLÊNCIA: UMA VISÃO DE SÁUDE PÚBLICA Vilma Pinheiro Gawryszewski Médica Sanitarista

1. REFLEXÕES SOBRE O TEMA DA VIOLÊNCIA A violência crescente nos centros urbanos é um problema que a cada dia aflige mais a população, podendo acarretar variadas perdas: financeiras, de dias de trabalho, da saúde e, às vezes, até da própria vida. A violência física, aquela que afeta a saúde das pessoas, é a mais temida. Notase, por outro lado, uma aceitação das condições de vida, fazendo com que a população estabeleça, pragmaticamente, prioridades nos diversos tipos de violência que possa vir a sofrer. Não é raro encontrarem-se pessoas que ao contar algum ato violento que sofreram, tal como um roubo, finalizem dizendo que tiveram sorte pois não sofreram violência física. A media reflete esta preocupação da sociedade: a violência ocupa bastante espaço nos jornais, telejornais, programas de rádio, etc. Mesmo nas conversas interpessoais é tema de alta incidência. Estes fatos, ao mesmo tempo que incrementam e estimulam o medo da sociedade, banalizam os atos violentos, tornando-os parte do cotidiano. Atualmente, devido à importância social que vem adquirindo, cresce o número de artigos e livros publicados que tratam da violência, refletindo a crescente necessidade de entender o fenômeno, procurando as razões de sua ocorrência. Profissionais de várias áreas têm escrito sobre o tema, entre eles psicanalistas, jornalistas, médicos e sociólogos, com diferentes visões do problema. Este artigo procura refletir sobre o problema do ponto de vista da área da Saúde, mais especificamente na área da Saúde Pública. Seria importante conceituar a violência, explicitar que objeto é este de que estamos falando, no entanto esta é uma tarefa muito difícil, pois trata-se de um fenômeno multifacetado, com determinantes variadas. No senso comum, a violência é confundida com delinqüência, como os diversos tipos de delitos: roubos, homicídios, espancamentos etc. No entanto cabe lembrar que a violência vai muito além, podendo assumir outras formas, menos explícitas, como a discriminação racial, ou discriminação a pacientes portadores de doenças infectocontagiosas (a AIDS é um exemplo disto). É preciso lembrar também que a fome de uma parcela grande da população brasileira e que a propaganda consumista num país onde a maioria da população vive miseravelmente, são também formas de violência. Esta é a chamada violência estrutural, aquela que expressa a violência do comportamento, aplicando-se tanto às estruturas organizadas e institucionais da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de grupos, tornando-os mais vulneráveis ao sofrimento e à morte. Este tipo de violência reflete os esquemas de dominação de classes. Costuma ser considerada natural, por isso é silenciosa e difusa na sociedade, "é a violência legitimada, expressada na desigualdade social, fome, desemprego, abandono das crianças, discriminações" (1) (2) . Em razão desta complexidade apontada, este trabalho, que se realiza na área da Saúde Pública, limita- se a estudar os danos à saúde decorrentes das ações violentas. Estes danos podem se dar no terreno emocional (como o estresse) ou social, ou ainda físico. Apenas estes últimos são passíveis de quantificação, com os instrumentos que atualmente se dispõem. Cabe ressaltar que este limite não é preciso, pois mesmo os danos físicos, em grande número de vezes, são acompanhados de alterações sócio-emocionais individuais ou coletivas. É provável que a

vida de uma criança e de sua família mude de alguma forma, após ela sofrer, por exemplo, um atropelamento. Sabe-se que as vítimas de seqüestros (e suas famílias) passam a viver sobressaltadas durante longos períodos após o evento, alterando seu modo de vida. São poucos os estudos, mesmo no nível internacional, que procuram determinar estes danos sociais. Na Irlanda do Norte, alguns trabalhos foram realizados tentando verificar se a violência política tinha impacto sobre a saúde e o bem estar psicológico da população. Cairns & Wilson(3) destacam que os indivíduos que residiam em áreas de maior violência apresentavam mais sintomas físicos que aqueles que residiam em áreas de mais baixa violência. O presente trabalho trata da violência que mata, entendendo ser esta sua forma mais grave. É a negação do direito à vida, sendo, portanto, a negação da totalidade dos direitos. Propõe-se a conhecer alguns aspectos importantes de ocorrência das mortes por homicídios no Município de São Paulo para, em última análise, oferecer subsídios a políticas de prevenção que venham a ser feitas nesse setor. 2. ALGUNS DADOS QUANTITATIVOS DA VIOLÊNCIA Optou-se por oferecer os dados das mortes por causas externas (que são as mortes pelas violências e também acidentes) e das mortes por homicídios sob a forma de coeficientes (número de óbitos dividido pela população, multiplicado por 100.000). Serão realizadas dois tipos de análise: a evolução temporal, a partir de dados de série histórica que vai de 1960 à 1995 e um panorama dos dados de 1995. Os dados de mortalidade utilizados para estas análises foram retirados da série histórica construída por Mello Jorge, iniciada a partir de 1960(4)(5), informações do Ministério da Saúde(8), de Gawryszewski(9) e do Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade do Município de São Paulo, o PRO-AIM, órgão da Prefeitura do Município. Todos estes dados são retirados das informações constantes dos Atestados de Óbito, que se constituem no instrumento básico dos estudos de mortalidade. Uma grande preocupação expressada hoje na sociedade é o crescimento da violência. Para a Saúde Pública este é um problema também de grande importância, pois os dados revelam valores crescentes no tempo. A comparação do ano de 1995 com anos anteriores, através da série histórica construída pela Professora Mello Jorge(5)(6) para um período de 30 anos apresentada no gráfico abaixo, mostra que enquanto o crescimento do coeficiente de mortalidade por causa externas (que inclui além das violências, os acidentes) foi da ordem de 96,3%, o crescimento do coeficiente de mortalidade somente por homicídios chegou ao alarmante percentual de 745,8%. Uma outra interessante informação que esta curva possibilita observar é que este crescimento (dos homicídios) deu-se principalmente a partir de 1980, pois o aumento ocorrido para o total das causas externas verificado entre 1965 e 1970 (incremento de 50 % nestes coeficientes), deveu-se principalmente às mortes por acidentes de trânsito, após o que a curva se mantém estabilizada até 1980, mantendo-se em crescimento a partir de então às custas da mortalidade por homicídios principalmente.

Coeficiente de mortalidade pôr Homicidios Mun. S. Paulo, 1960, 65, 70, 75, 80, 91 e 95. 60

Homic. 50 40 30 20 10 0 60

65

70

75

80

85

91

95

Em relação aos dados brutos, os números contabilizados no ano de 1995 revelam a ocorrência de 1.754 óbitos por acidentes de trânsito, 511 suicídios, 4.992 homicídios, 1.396 "demais acidentes" (afogamentos, quedas e outros), restando 886 mortes em que se ignorava se foram acidentais ou intencionais. A Classificação Internacional de Doenças faz permanecer neste último agrupamento as mortes em que não se consegue determinar se intencionais ou acidentais, mesmo depois de investigações policiais com este objetivo. Chama a atenção o grupo dos homicídios, que representa mais que a metade (52,3%) do total de mortes, revelando uma séria e preocupante face da realidade para os que vivem nesta cidade. Desse total de 4.992 homicídios, sendo 4.595 de homens (92,0%) e 387 de mulheres (7,8%). Os coeficientes atingiram as cifras de 49,9/100.000 habitantes, sendo 95,4/100.000 homens e 7,5/100.000 mulheres. A razão encontrada entre os coeficientes do sexo masculino e feminino é de 12,7. Esta sobremortalidade masculina é verificada para o total das causas externas (as violências e os acidentes), mas não de forma tão acentuada. Este fe nômeno é também verificado em outros países: de modo geral, os homens são mais expostos e morrem mais devido às mortes violentas. Em relação à análise das proporções e coeficientes, segundo sexo e idade, apresentadas na tabela abaixo, observa-se que estes coincidem em importância na mesma faixa etária: entre os adultos jovens do sexo masculino, na faixa de 15 a 39 anos, estão 85,2% das mortes por homicídios e 76,9% do total dos homicídios. Dentre esta faixa mais ampla, destacam-se tres grupos: dos 20 aos 24 anos, cujos coeficientes atingem 257,5/100.000; 25 aos 29 anos, 210,5/100.000 e 15 aos 20 anos, 166,5/100.000. Isto faz com que as idades que se encontram entre 15 a 29 anos sejam as que concentram, mais do que qualquer outra, o maior número de homicídios e os maiores coeficientes, determinando assim perdas precoces de vidas. Distribuição das mortes por homicídios, segundo sexo e faixa etária (nº, % e coeficientes/100.000 habitantes). Município de São Paulo, 1991.

SEXO Idade (anos) 0a4 5a9 10 a 14 15 a 19 20 a 24 25 a 29 30 a 34 35 a 39 40 a 44 45 a 49 50 a 54 55 A 59 60 a 64 65 a 69 70 a 74 75 e + IGN Total

Nº 7 2 45 733 1042 942 636 486 253 176 77 56 26 15 3 3 93 4595

Masculino % 0,2 0,0 1,0 16,3 23,1 20,9 14,1 10,8 5,6 3,9 1,7 1,2 0,6 0,3 0,1 0,1 100,0

Coef. 1,5 0,4 9,7 166,5 257,5 210,5 145,5 124,0 76,4 65,2 38,4 34,0 20,7 14,9 4,5 4,7 95,4

Nº 7 5 7 48 68 59 62 44 21 19 11 5 5 4 3 5 14 387

TOTAL Feminino % Coef. 1,9 1,5 1,3 1,1 1,9 1,5 12,9 10,8 18,2 15,7 15,8 12,8 16,6 13,2 11,8 10,2 5,6 5,7 5,1 6,3 2,9 4,7 1,3 2,6 1,3 3,1 0,8 2,2 1,3 5,2 1,1 3,6 100,0 7,5

IGN Nº 1 1 1 3

Nº 15 7 52 781 1111 1001 698 530 275 196 88 61 31 18 8 7 113 4992

% 0,3 0,1 1,1 16,0 22,8 20,5 14,3 10,9 5,6 4,0 1,8 1,3 0,6 0,4 0,2 0,1 100,0

Coef. 1,6 0,7 5,6 88,4 132,4 110,3 77,0 64,5 39,2 34,2 20,3 17,1 10,9 7,6 4,9 4,0 49,9

Nota: Percentuais calculados sobre o total de casos com informação conhecida. O sexo feminino apresenta os coeficientes e as proporções com características idênticas às do masculino: vão crescendo até atingir um pico nos 20 aos 24 anos e depois tendem a decrescer com o avançar da idade. Os valores dos coeficientes para as mulheres são menores que os dos homens. A faixa de taxas mais altas encontra-se entre os 15 e os 34 anos. Os países considerados mais desenvolvidos, de um modo geral, têm a sua estrutura de mortes violentas composta principalmente pelos componentes não intencionais (os acidentes de trânsito e quedas), exatamente o contrário do observado para o Município de São Paulo. Entre os componentes intencionais (suicídios e homicídios), os suicídios lideram esta mortalidade(10). Os coeficientes de mortalidade oriundos de homicídios para estes países são muito baixos. Tomando alguns exemplos, basta citar o Japão, cujo coeficiente no ano de 1992 foi de 0,6 e Portugal, no mesmo ano, de 1,5, enquanto o do Município de São Paulo chegou quase a 50. Já os países pertencentes às regiões das Américas têm comportamento um pouco diverso: a Argentina apresentou coeficiente da ordem de 5,0, que é um valor baixo, mas 8,3 vezes maior que o do Japão; os E.U.A., 9,9 e o México 17,5 (todas as medidas por 100.000 habitantes). Entre os países da América Latina, os que apresentam as maiores taxas de mortalidade por homicídios são a Colômbia e El Salvador, com coeficientes, de 49,0 e 40,4/100.000 habitantes, respectivamente (United Nations, 1992 )(11). Estes países apresentam problemas de ordem política e econômica que podem explicar em parte esta alta incidência. O sexo feminino apresenta os coeficientes e as proporções do mesmo modo que os encontrados para o sexo masculino: vão crescendo até atingir um pico nos 20 aos 24 anos e depois tendem a decrescer com o avançar da idade. Os valores dos coeficientes para as mulheres são menores que os dos homens. A faixa de taxas mais altas encontra-se entre 15 e 34 anos.

Analisando alguns dados elaborados pelo PRO-AIM e publicados no Jornal Folha de São Paulo(12) sobre a distribuição dessas mortes (por homicídios) para o ano de 1996, segundo o local de residência das vítimas, percebe-se que os locais (subdistritos) que apresentam coeficientes de mortalidade por homicídios mais altos correspondem à periferia da cidade, com concentração de população de menores condições sócio-econômicas, exceção feita somente aos subdistritos do Morumbi (7º lugar) e do Jabaquara (1º lugar), que figuram entre os 30 locais que apresentam maiores coeficientes e que apresentam uma maior diversidade na sua composição populacional, com áreas ricas e pobres. As taxas mostram-se muito diversas: os moradores do Jardim Ângela tem coeficientes de 85,4/100.000 enquanto os do Jardim Paulista tem coeficientes de 5,6/100.000. O risco de morrer assassinado para o residente do primeiro subdistrito citado é cerca de 14 vezes maior que para o residente no segundo subdistrito. Desigualdades no modo de viver e morrer das pessoas. 3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES É possível verificar, a partir da análise dos dados de mortalidade por homicídios segundo o atributo das pessoas, que é o indivíduo do sexo masculino, jovem e pobre, aquele que tem maior risco de morrer por assassinato. Uma sociedade injusta, nas oportunidades e nos direitos dos cidadãos, gera desigualdades que concorrem para maior violência. As camadas mais pobres da população são as que mais sofrem com a violência, isto é claro. Mas pensar que a pobreza é a geradora da violência, simplifica muito esta questão. Para Zaluar(13), "muito mais do que a pobreza, este quadro se deveria aos efeitos combinados das novas formas de organização familiar, dos novos padrões de consumo, do novoethos do trabalho, do hedonismo, do sistema escolar, das políticas públicas para o menor e para o usuário de drogas, da crise institucional e, principalmente, da presença de uma organização criminosa que se fortaleceu ao longo das décadas de 70 e 80". Espera-se que este trabalho possa contribuir, de alguma forma, para a reversão deste quadro. São incalculáveis os prejuízos desta situação na qualidade de vida da população residente no Município de São Paulo, sendo preciso, urgentemente, estabelecer algumas medidas que possibilitem esta reversão. Tais ações devem ser concretas, viáveis e discutidas com a sociedade . A área de Saúde Pública sabe que se pode planejar eficientemente uma campanha de vacinação com as melhores intenções de erradicar ou controlar determinada doença, mas é fundamental que a população esteja de acordo com esta ação, pois é ela quem vai levar seus filhos à vacinação. No campo da Saúde Pública, na área de prevenção (que já experimentou muitos sucessos na erradicação e controle de agravos, relacionados principalmente às moléstias infecciosas) é preciso voltar-se para a compreensão das causas, dos determinantes da violência, para que se possa planejar ações preventivas também para esta área, pois a violência não se reduz ao dano físico, individual, mas faz parte de um processo. Já existem fatores de risco apontados pela Organização Panamericana da Saúde (OPAS) que devem ser objetos de prevenção: armas de fogo, abuso de álcool e de outras substâncias, etc. "A mensagem mais importante que se pode dar a partir do setor saúde é que, na sua maioria, os eventos violentos e os traumatismos não são acidentais, não são fatalidades, não são falta de sorte: eles podem ser enfrentados, prevenidos e evitados (Minayio, 1994)".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: (1) MINAYIO, M.C.S. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cad. Saúde Pública, 10 (supl. 1): 7-18, 1994. (2) SOUZA, E.R. Homicídios no Brasil: o grande vilão da saúde pública na década de 80. Cad. Saúde Pública, 10 (supl. 1): 45-60, 1994. (3) CAIRNS, E. & WILSON, R. Nothern Ireland: political violence and self-reported physical symptoms in a comunity sample. J. Psychosom. Res., 35: 707-11, 1991. (4) MELLO JORGE, M.H.P. Mortalidade por causas violentas no Município de São Paulo. São Paulo, 1979. [Tese de Doutoramento - Faculdade de Saúde Pública da USP] (5) MELLO JORGE, M. H. P. Investigação sobre a mortalidade por acidentes e violências na infância São Paulo, 1985. São Paulo, 1988. [Tese de Livre Docência - Faculdade de Saúde Pública da USP] (6) MELLO JORGE, M.H.P. Mortalidade por causas violentas no Município de São Paulo, Brasil. IV - A situação em 1980. Rev. Saúde Pública, 16:19-41, 1982. (7) MELLO JORGE, M.H.P. Situação atual das estatísticas oficiais relativas à mortalidade por causas externas. Rev. Saúde Pública, 24:217-23, 1990. (8) MINISTÉRIO DA SAÚDE. Estatísticas de mortalidade. Brasil, 1985. Brasília,1988. (9) GAWRYSZEWSKI, V. P. A mortalidade por causas externas no Município de São Paulo, 1991. Dissertação de Mestrado (10) BOURBEAU, R. Analise comparative de la mortalité violente dans les pays développes et dans quelques pays en développement durant la période 1985-1989. World Health Stat. Q., 46: 4-32, 1993. (11) UNITED NATIONS. Demographic Yearbook-1991. New York, 1992.1 (12) Folha de São Paulo, domingo 7 de setembro de 1997. (13) ZALUAR, A.; NORONHA, J.C.; ALBUQUERQUE, C. Violência: pobreza ou fraqueza institucional? Cad. Saúde Pública, 10 (supl.1) : 213-7, 1994.

4 A mercantilização da saúde: quem ganha, quem perde.

A LÓGICA DO LUCRO INSERIDA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE. O CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA Henrique Carlos Gonçalves Médico, Conselheiro, Primeiro-Secretário do Conselho Regional de Medicina – SP

A relação médico-paciente se iniciou quando o primeiro homem, dotado de alguma experiência, quiçá pessoal, tentou ajudar seu semelhante em situação de doença ou dano físico. Nesta relação, um se comportou como médico e, o outro, como paciente. No decurso dos séculos, a humanidade vem tentando aperfeiçoar este relacionamento, visando torná- lo cada vez mais útil à sociedade. Milênios antes de Cristo, Hipócrates, preocupado com a importância desta relação, já estabelecia normas éticas e técnicas que deveriam reger a interação médico-paciente. Ao estilo da época, estabeleceu regras a serem obedecidas pelos médicos, seus direitos, suas obrigações e até penalidades àqueles que não obedecessem o ordenamento. Em seus escritos, não se olvidou Hipócrates da forma com que deveria ser retribuída a boa prática médica. A relevância destas regras chega aos dias de hoje, tanto que muitas faculdades de Medicina, no ato de formatura de suas turmas, ainda tem como hábito inserir o Juramento de Hipócrates no cerimonial. A própria sociedade moderna, mesmo sem saber muito bem quem eram Apolo - médico, Fídias, Higéias, Panacéias e os outros deuses gregos, entende ter naquele diploma ético garantias para seu relacionamento com a classe médica. A verdade é que, apesar do decurso dos séculos, o relacionamento do médico com seu paciente sempre se manteve sob uma regência ética e moral, que deveria superar todos os demais aspectos. A figura do médico e de seu ofício sempre estiveram muito mais voltados ao Humanismo que a qualquer outra filosofia de vida e de relacionamento humano. O trabalho do médico era retribuído com honra (honor) e não com pagamento, salário ou outro tipo de recompensa. Este tipo de distinção pretendia afastar dos atos médicos o comércio, a venda e a compra, o lucro e a especulação. Nas últimas décadas o progresso tecnológico avançou nas áreas de atuação médica de forma inimaginável. O profissional surpreendido por tal ingerência viu seu ofício ser invadido por máquinas e equipamentos dotados de alta complexidade mas, principalmente, envolvendo altos custos de aquisição, manutenção e operacionalização. O exercício da medicina passou a ter uma dependência direta desta parafernália e, via de conseqüência, do capital que a permeia.

A vida humana, sua preservação, sua integridade, sua defesa, primeiros e últimos objetivos da medicina, passaram a depender, cada vez mais, de capital e de investimentos. O bem insubstituível, inalienável, irreparável e, segundo muitos, indisponível, passou a ser visto por alguns como cifras, cálculos atuariais, margens de lucro, percentagens e outros índices econômicofinanceiros. Desta feita, nas últimas décadas o Brasil passou a conviver com dois fenômenos mundiais interagindo na relação médico-paciente e a intermediação mercantil. No que tange à tecnologia, os custos da atenção à saúde se elevaram a tais níveis que passaram a discriminar o ser humano: os que têm recursos para se beneficiar da arte médica e os que não têm. No que se refere à mercantilização, o dano foi maior. A relação entre o médico e o paciente passou a ter a intermediação nefasta do mercador, do mercante, do comerciante, do capitalista, do intermediário. Neste momento, a saúde passou a ser tratada como mercadoria, objeto de uma relação receita-despesa, fruto de retribuição de capital, objeto de propaganda, "marketing" e especulação. Se de um lado as empresas, os seguros saúde, as medicinas de grupo, as pseudo-cooperativas médicas e o próprio Estado assumiram o controle da distribuição de atenção à saúde, à sociedade. A classe médica, pelas peculiaridades do ofício, permanece com o ônus da responsabilidade e com o desgaste pelos desacertos e práticas de políticas equivocadas, adotadas pelos governantes. Em que pese o crescente clamor popular contra as medicinas de grupo e os seguros saúde, nunca ouvimos a media criticar o erro do Seguro Saúde, a criação do S.O.S. Medicina de Grupo, o Disque Omissão do Estado. O certo é que, pela astúcia do mercador, pela fragilização da classe médica e pela falta de esclarecimento da sociedade em geral, o cidadão se casa com o mercante da medicina de grupo e espera ter como esposa o médico. Este, por sua vez, se submete ao mercenário e pensa estar a serviço do cidadão. Com o fracasso do modelo mercantilista norte-americano e de alguns países da Europa, a sociedade organizada tem se apercebido do equívoco e, em muitos países, a relação médicopaciente tem se estabelecido de forma direta, evitando a presença nefasta dos intermediários e da conseqüente mercantilização da relação médico-paciente. No outro polo, estudos bastante atualizados e com razoável rigor científico têm demonstrado que a relação custo-benefício da parafernália tecnológica está muito abaixo do que se pensa. A naturalidade do ser humano assegura resultados surpreendentes numa relação médico-paciente saudável; resultados que superam, de longe, aqueles obtidos na relação paciente- máquina-médico. No contexto de tal discurso, obviamente, não estamos querendo pregar um retrocesso tecnológico, uma volta ao passado da arte médica. Não há que se defender, também, um exercício sacerdotal da medicina, incompatível com os dias atuais. Na verdade, o que precisamos resgatar são os valores absolutos e ponderados das relações da sociedade com a classe médica, com os bens envolvidos neste mister, com os princípios éticos e morais que o permeiam e com as responsabilidades de cada conjunto social neste processo.

A classe médica não tem autonomia e nem potencial para superar este dilema sozinha; a sociedade não pode prescindir dos médicos para readequar o relacionamento. No final da década de 60, convivemos com dois fenômenos importantes que explicam o atual "status quo": a proliferação de Escolas Médicas e a privatização do atendimento médicohospitalar, principalmente através de empresas com fins lucrativos e de pseudo- filantrópicas. Sem qualquer critério, assistimos à inauguração de dezenas de Faculdades de Medicina, sem estrutura mínima para formação de profissionais competentes e em franca dissintonia com as reais necessidades do país. Parece que a idéia era inflacionar o mercado de profissionais, independente da qualidade, visando, em última instância, "proletarizar" a mão de obra e enfraquecer a autonomia da categoria. A falta de planejamento não foi nefasta apenas ao mercado de trabalho do médico; a imprevidência desatendeu, também, às reais necessidades sociais, no que tange à qualidade e às especificidades. No processo de privatização, o objetivo era centralizar os recursos no Governo Federal, extinguir o poder decisório regional e privilegiar a iniciativa privada, desincumbindo o Estado da "enfadonha" obrigação. Os resultados catastróficos da temerária aventura começaram a surgir no final da década de 70 quando as fraudes contra a Previdência passaram a ocupar as manchetes dos jornais, as empresas que se beneficiam dos recursos públicos passaram a se desligar das relações com o Estado e a elitizar sua clientela. No outro polo, a sociedade começou a receber formandos mal preparados que, concorrendo num mercado desorganizado, não só rebaixavam a qualidade do atendimento, como pervertiam os princípios éticos e tradicionais da categoria. O clamor social se fez sentir de imediato, afinal, era a vida do cidadão que estava em risco, a integridade física e mental que periclitavam. No final dos anos 80, a sociedade civil organizada tentou reverter o quadro, traçando prioridades e esculpindo na Constituição de 88 os deveres do Estado com relação à atenção à saúde. O Direito à Saúde, o Dever do Estado, os princípios da Universalidade, da Integralidade, da Regionalização, da Municipalização e do Controle Social foram estabelecidos na Carta Magna e regulamentados em leis infraconstitucionais. O ano de 1988 marcou-se também pela aprovação do atual Código de Ética Médica. Parecia que caminhávamos para um consenso e pacto social que corrigiriam o erro de percurso das décadas anteriores. Eis que, no entanto, na década de 90, "os ventos neoliberias" voltam a soprar na sociedade brasileira de forma irreversível e sem barreiras. Os governantes voltam a pregar as privatizações e, dentre elas, a da atenção à saúde. A máquina econômico- financeira do chamado Estado "enxuto" prega a eliminação da atenção à Saúde como obrigação estatal e a devolução de tal função aos privados.

Enquanto nos países realmente modernos, os governos se desincumbem de outras funções para se dedicar às questões sociais, tais como Educação e Saúde, nosso Governo, modernóide, caminha em sentido oposto, abandonando, a priori, exatamente estas funções. O fracasso da década de 60 e 70 não serviu de lição. Ora, parece antigo e tacanho, corporativo e mesquinho, o antagonismo que a classe médica, em sua maioria, tem pela introdução da lógica do lucro em seu relacionamento com o paciente e com a sociedade. Uma análise mais profunda, no entanto, mostra a perversão de tal lógica e o efeito daninho que sua adoção vem trazendo para a humanidade. O Lucro nada mais é que a relação da Receita com a Despesa de uma empresa, uma relação custo-benefício a nível privado, aquilo que se ganha com a especulação. Não há nada mais sórdido, mais desumano que se lucrar "sensu strictus" e "sensu latus" com a doença de uma pessoa ou com a saúde, conceituada de forma ampla. Quando os Seguros Saúde, as Medicinas de Grupo e outras mercantilizações atuantes na área médica fazem seus cálculos atuariais, relações de receita - despesa, custo-benefício empresarial e outros raciocínios semelhantes, estão, sem sombra de dúvida, introduzindo a lógica do lucro na atenção à saúde pública. Estão colocando preço na vida e na sobrevida, estão quantificando, monetariamente, a saúde, o bem estar físico e mental do ser humano. A atenção à saúde passa a assumir a qualidade de mercadoria em mercado livre, passível de todas as regras e falta de regras que regulam a mercantilização. O cidadão deixou de ter um médico de confiança, passou a ter uma empresa como sua parceira e um profissional subordinado àquela, como responsável por sua vida, por sua integridade física e mental. A relação sublimada desde os tempos de Hipócrates passou a ser paciente - lucro - empresa salário - médico. A empresa detém o poder de estabelecer as regras segundo suas conveniências e necessidades, o médico e o paciente passaram a ser subordinados de um oligopólio, onde a razão está com o Capital e seus valores, onde a ética se submete ao lucro e a moral às leis de mercado. Hoje, quando nossos legisladores reformulam as leis vigentes, ainda incapazes de assegurar as garantias necessárias à segurança da sociedade em suas ralações com as empresas que mercantilizam a saúde, favorecendo, definitivamente, os objetivos empresariais e, quando propõem regras, objetivando a abertura do que chamam de mercado ao Capital Estrangeiro, estão promovendo a internaciona lização da mercantilização da atenção à saúde da sociedade. O que vem acontecendo a nível doméstico e, disfarçadamente, já com a participação de alguns grupos internacionais, poderá se generalizar e o Capital Internacional, a curto prazo, estará dominando os sistemas públicos e privados de atenção à saúde pública, submetendo a sociedade às suas regras de lucro. O atual Código de Ética Médica, a exemplo dos diplomas anteriores, promulgados no Brasil, tem se oposto à mercantilização da Medicina e, conseqüentemente, da Saúde Pública. Sob a influência da 9ª Conferência Nacional de Saúde e da abertura democrática que culminou com a Constituição de 1988, o atual Código emana princípios de respeito à cidadania, à autonomia do homem, à inviolabilidade da vida e o direito à saúde.

Sua elaboração, guiada pelos princípios democráticos, obedeceu a mais ampla consulta e participação da classe médica e da sociedade civil organizada e, nesta concepção, reflete um pensamento muito mais da coletividade que, exclusivamente, da corporação médica. No que se refere à comercialização no exercício da medicina e, conseqüentemente, na comercialização da saúde, o legislador ético de 1988 chegou a ser redundante no detalhamento das proibições contra tal prática. Citações de alguns princípios inseridos naquele diploma ético demonstram a dimensão da posição da categoria médica, artífice daquele ordenamento, quanto à mercantilização da saúde. CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA. RESOLUÇÃO CFM Nº 1246/88. CAPÍTULO I - Princípios Fundamentais ART. 1 A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza. ART. 3 - A fim de que possa exercer a Medicina com honra e dignidade, o médico deve ter boas condições de trabalho e ser remunerado de forma justa. ART. 8 - O médico não pode , em qualquer circunstância ou sob qualquer pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, devendo evitar que quaisquer restrições ou imposições possam prejudicar a eficácia e correção de seu trabalho. ART. 9 - A Medicina não pode, em qualquer circunstância ou de qualquer forma, ser exercida como comércio. ART. 10 - O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa. ART. 15 - Deve o médico ser solidário com os movimentos de defesa da dignidade profissional, seja por remuneração condigna, seja por condições de trabalho compatíveis com o exercício ético-profissional da Medicina e seu aprimoramento técnico. ART. 16 - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou instituição pública ou privada poderá limitar a escolha por parte do médico dos meios a serem postos em prática para o estabelecimento do diagnóstico e para a execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente. ART. 57 - Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento a seu alcance em favor do paciente. ART. 65 - Aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou política. CAPÍTULO VIII - Remuneração Profissional É vedado ao médico: ART. 86 - Receber remuneração pela prestação de serviços profissionais a preços vis ou extorsivos, inclusive através de convênios.

Art. 87 - Remunerar ou receber comissão ou vantagens por paciente encaminhado ou recebido, ou por serviços não efetivamente prestados. ART. 88 - Permitir a inclusão de nomes de profissionais que não participaram do ato médico, para efeitos de cobrança de honorários. ART. 89 - Deixar de se conduzir com moderação na fixação de seus honorários, devendo considerar as limitações econômicas do paciente, as circunstâncias do atendimento e a prática local. ART. 90 - Deixar de ajustar previamente com o paciente o custo provável dos procedimentos propostos, quando solicitado. ART. 91 - Firmar qualquer contrato de assistência médica que subordine os honorários ao resultado do tratamento ou à cura do paciente. ART. 92 - Explorar o trabalho médico como proprietário, sócio ou dirigente de empresas ou instituições prestadoras de serviços médicos, bem como auferir lucro sobre o trabalho de outro médico, isoladamente ou em equipe. ART. 93 - Agenciar, aliciar ou desviar, por qualquer meio, para clínica particular ou instituições de qualquer natureza, paciente que tenha atendido em virtude de sua função em instituições públicas. ART. 94 - Utilizar-se de instituições públicas para execução de procedimentos médicos em pacientes de sua clínica privada, como forma de obter vantagens pessoais. ART. 95 - Cobrar honorários de paciente assistido em instituição que se destina à prestação de serviços públicos; ou receber remuneração de paciente como complemento de salário ou de honorários. Art. 96 - Reduzir, quando em função de direção ou chefia, a remuneração devida ao médico, utilizando-se de descontos a título de taxa de administração ou quaisquer outros artifícios. Art. 97 - Reter, a qualquer pretexto, remuneração de médicos e outros profissionais. Art. 98 - Exercer a profissão, interação ou dependência de farmácia, laboratório farmacêutico, ótica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação ou comercialização de produtos de prescrição médica de qualquer natureza, exceto quando se tratar de exercício da Medicina do Trabalho. Art. 99 - Exercer simultaneamente a medicina e a farmácia, bem como obter vantagem com a comercialização de medicamentos, órteses ou próteses, cuja compra decorra de influência direta em virtude da sua atividade profissional. Art. 100 - Deixar de apresentar, separadamente, seus honorários quando atendimento ao paciente participarem outros profissionais. Art. 101 - Oferecer seus serviços profissionais como prêmio em concurso de qualquer natureza.

QUEM GANHA?... QUEM PERDE?... Maria Inês Fornazaro Diretora Executiva do Procon (SP)

A necessidade de regulamentar a atividade das empresas prestadoras de serviços privados de saúde não é assunto novo. Há muitos anos o setor vem sendo objeto de debates acalorados, entre entidades de defesa do consumidor, representantes de classe dos profissionais de saúde, usuários de planos portadores de patologias e fornecedores, sem que o equilíbrio entre as partes fosse privilegiado. De um lado, um setor que arrecada mais de seis bilhões de reais por ano (dado da SEAE - MF) e, de outro, a sociedade que cada vez mais vem reclamando por um atendimento eficiente e democrático do setor de saúde. E é exatamente a sociedade o elemento que diferencia o momento atual dos anteriores. Isso ocorre na medida em que ela exige que os poderes constituídos, principalmente o Legislativo e o Executivo assumam seu papeis de reguladores e imponham limites a uma atividade que é essencial para os cidadãos e que, fundamentalmente, seja resguardada a dignidade e a natureza humana. Óbvio também é que, se o setor público de saúde, dentro de suas possibilidades, garantisse atendimento ao cidadão, a problemática relação entre consumidores e empresas de saúde privada não teria alcançado tamanha proporção. Hoje mais de 40 milhões de brasileiros estão vinculados a sistemas de saúde privados e diariamente vêm sendo desrespeitados em seu direito de cidadãos consumidores, acabando por recorrer ao sistema público quando realmente precisam de atendimento. Ocorre, então, uma situação no mínimo curiosa: o cidadão contrata um plano de saúde privado para não ficar à mercê da rede pública de saúde, mas para ter atendimento (em muitos casos os mais complexos e caros), acaba tendo que recorrer a essa mesma rede da qual tentou fugir. O que se assiste, então, é a uma pura e simples mercantilização da saúde da mesma forma como já ocorreu com a educação, onde o sistema público é, num primeiro momento, acessório e tende a receber um atendimento adequado apenas quem pode pagar e caro. Após a edição do Plano Cruzado, que alterou profundamente as relações comerciais, questões que não foram resolvidas naquele momento tornaram-se crônicas e além de causar sérios prejuízos aos consumidores, causam também aborrecimentos de ordem pessoal. Mesmo as indenizações por danos morais e materiais compensam? Assim, convênios médicos (aqui conceituados de modo abrangente, incluindo todos os tipos de prestadores de serviços privados de saúde) foram tomando lugar de destaque no volume de atendimento do Procon, especialmente no caso dos idosos e dos portadores de doenças crônicas ou congênitas. À medida que os contratos passavam a ser questionados pelos órgãos de defesa do consumidor e também por ações na Justiça, assumiam novas formas ou então os planos contratados eram eliminados e em seu lugar outros surgiam. O consumidor era obrigado a mudar de plano pois, caso contrário, ficava sem assistência prevista num curto espaço de tempo. Atualmente os contratos têm inúmeras semelhanças. As exclusões permitem que a empresa prestadora atenda ou não o consumidor de acordo com sua conveniência. A cláusula que exime de atendimento portadores de doenças infecto-contagiosas, admite desde doenças mais simples ou corriqueiras como gripe, sarampo, tuberculose e chega à meningite e à AIDS.

As empresas também foram adquirindo novos contornos, passaram de entidades filantrópicas, associações a cooperativas de médicos e us uários a seguradoras, sempre procurando fugir das possíveis regulamentações. Mesmo levando-se em conta a grande diversidade de contratos, todos têm em comum a mesma filosofia de excluir as chamadas doenças crônicas, préexistentes e, em especial, as infecto-contagiosas. Aproveitando a mudança econômica promovida pelo Plano Real, diversas empresas de saúde privada aproveitaram e majoraram as suas mensalidades de tal maneira que até hoje os consumidores vêm sofrendo as consequências desse comportamento. Basta verificar o salto no número de atendimentos registrados no Procon. Dados Estatísticos de Atendimento de Convênios Médicos da Fundação Procon

1.989 1.990 1.991 1.992 1.993 1.994 1.995 1.996 1.997 (até nov)

5.047 4.858 1.960 4.526 8.946 19.997 9.668 29.828 12.082

De forma genérica constata-se que os principais problemas reclamados são: reajustes indevidos ou acima de patamares inflacionários (sabidamente baixos após a vigência do Plano Real), não cumprimento ou cancelamento do contrato (existem casos em que o usuário, geralmente idoso passsa a ser "convidado" a sair do mesmo, ou seja, tem o seu contrato cancelado), negativa em fornecer guias para internação ou exames. Desde 1995 os convênios médicos ocupam os primeiros lugares no ranking de reclamações. Paralelamente, as empresas do setor privado de assistência à saúde vêm liderando também o cadastro divulgado anualmente de reclamações fundamentadas. Para se ter uma idéia, em 1996, de um universo de mais de duas mil empresas reclamadas nos mais diversos segmentos fornecedores de produtos e serviços, cinco empresas de planos de saúde estavam entre os dez mais reclamados, superando setores problemáticos como o automotivo, imobiliário, bancário, de mobiliário, entre outros. Não podemos deixar de mencionar o fato de que o consumidor que procura o órgão para reclamar de planos de saúde o faz, na grande maioria das vezes, quando já tentou realizar acordos com a empresa e é com grande aflição que procura resolver a questão. O usuário ou algum parente coberto pelo plano de saúde se encontra doente, ou no caso de ser algum problema de reajuste, em pânico diante da perspectiva de perder o seu convênio particular de saúde. Trata-se, portanto, de um consumidor que não pode esperar por muito tempo que a sua situação seja resolvida. Casos envolvendo problemas como esses são constantes e tornam o problema crônico do ponto de vista individual e coletivo. Contrariando dispositivos constitucionais, bem como o próprio Código de Defesa do Consumidor, verifica-se que a segurança que o consumidor procura ao contratar um convênio médico simplesmente não existe. Quando realmente precisa fazer uso do convênio percebe que foi ludibriado. Utilizando termos técnicos ou obscuros, as empresas elaboram seus contratos se

eximindo cada vez mais do maior número de itens e limitando a atuação do profissional de saúde, além de excluírem enfermidades sob as mais diversas alegações. A situação está tomando um vulto tal que quando indagam o Procon a respeito das precauções que o consumidor deve tomar ao contratar um plano de saúde, fica difícil uma resposta. Embora deva orientar , não se pode garantir uma margem segura de atendimento e não se consegue antecipar sucesso na relação consumidor-plano de saúde. Hoje, médicos por meio de suas entidades de classe colocam-se ao lado dos consumidores e lutam pelo livre exercício da profissão. Limites nos dias de internação hospitalar ou UTI, restrições na indicação, quantidade ou tipos de exames contrariam a própria ética desses profissio nais. Condições impostas pelas empresas fornecedoras intermediárias da relação prejudicam o tratamento das patologias, colocando a vida e a saúde do consumidor em risco. Não são raras as notícias de usuários de planos de saúde que vêm a sofrer danos irreparáveis ou a falecer em virtude da negativa ou da redução de prazo de período de atendimento em UTIs ou problemas semelhantes. Ameaças de rescisão unilateral são constantemente utilizadas como elemento de pressão, forçando o consumidor a recuar em suas pretensões e ações. Para o cidadão que atingiu faixas de idade mais avançadas a situação toma um vulto ainda maior, agravada pelos problemas de ordem social (motivados por dificuldades financeiras) inerentes à maioria dos aposentados. O principal acontecimento relativo ao setor é a proposição de aprovar projeto de lei que regulamenta a atividade dos prestadores de serviços de saúde, visando o equilíbrio entre consumidores e fornecedores. Além de urgente, isto deve ocorrer visando harmonizar esta relação e não sedimentar a grave situação pela qual passam os conveniados que, para fazer valer seus direitos, são freqüentemente obrigados a recorrer a órgãos de defesa do consumidor e ao Poder Judiciário. Se depender do projeto que tramita no Congresso Nacional, prejuízos incalculáveis poderão ser impostos a milhões de consumidores, ignorando árduas conquistas, e com custo altíssimo (vidas). Muitas propostas e até exigências têm sido feitas pelos órgãos de defesa do consumidor, por entidades de classe e grupos de usuários dos planos de saúde. Ao contrário do que o projeto ora em debate prevê, a Fundação Procon não considera apropriado que o segmento seja controlado pela Susep - Superintendência de Seguros Privados, cuja atividade visa principalmente o controle de preços e a fiscalização da situação financeira de empresas seguradoras. É imprescindível a participação do Ministério da Sáude no controle do segmento, especialmente para fiscalizar o atendimento à saúde do consumidor, até porque a grande maioria do mercado hoje se compõe de consumidores vinculados à medicina em grupo e não às seguradoras. A criação de planos de referência de assistência à saúde mínima não satisfaz as necessidades dos consumidores, restringindo direitos básicos. Acrescente-se a possibilidade de oferecer planos com coberturas inferiores ou superiores ao mínimo, o que implica em não alterar a atual situação. A existência de planos de saúde mínimos poderá criar uma distorção gravíssima num setor como o em pauta: o cidadão que não pode pagar muito (ou seja, que não tem condições financeiras para arcar com um plano de saúde com coberturas amplas) não poderá, sob o risco de perder a vida (ou a de seus familiares), ficar doente de enfermidades que necessitem de tratamentos mais complexos. Criase então, após quase sete anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor e conseqüentes avanços no que se refere à valorização da cidadania, a figura paradoxal e humilhante do cidadão de segunda classe: paga menos para ter direito a menos saúde.

No nosso entender, não deve existir qualquer limitação contratual quanto ao período de internação, inclusive em UTI, cabendo exclusivamente ao médico diagnosticar o tempo necessário para o restabelecimento da saúde do paciente. Lembramos que existe uma tendência, motivada por avanços da tecnologia ligada à medicina, que apontam cada vez mais para uma redução no tempo de internação em grande parte dos tratamentos e intervenções cirúrgicas. Deve ser assegurado ao profissional de saúde o livre exercício de suas atividades, bem como o acesso aos meios tecnológicos e científicos disponíveis. Os casos de urgências/emergências não devem ter prazos de carência. Uma lei que pretenda defender os interesses da sociedade não pode permitir a exclusão do tratamento de doenças crônicas, preexistentes e congênitas, motivo de grande número de reclamações registradas no Procon. O Poder Judiciário tem reconhecido a abusividade das cláusulas contratuais que restrinjam o atendimento a essas doenças, bem como o tempo de internação. O contrário implicará num retrocesso inadmissível. A legitimidade para exclusão de procedimentos clínicos e cirúrgicos para fins estéticos é também relativa, considerando que cirurgias reparadoras são muitas vezes necessárias do ponto de vista clínico/psicológico, cabendo ao médico responsável determinar a finalidade da intervenção. Diferenciação de contratos por faixa etária com autorização de reajuste de mensalidades em percentuais diferentes são inadmissíveis. Não se pode deixar o cidadão idoso à mercê de um mercado mercantilista no momento em que pode necessitar utilizar esses serviços de saúde. É importante que exista uma obrigatoriedade de constar nos contratos de forma transparente e objetiva o índice de reajuste das mensalidades/prêmios, sendo inaceitável qualquer formulação que permita decisão unilateral e arbitrária sobre preços. O Governo Federal, por meio dos Ministérios da Justiça e da Fazenda, precisa coibir efetivamente os abusos quanto à questão preços/reajuste de mensalidades, o que infelizmente não vem ocorrendo atualmente. É também inconcebível aceitar a criação de uma lei que considere, como meramente indicativo, o credenciamento de hospitais, casas de saúde, clínicas, laboratórios, médicos e entidades correlatas e assemelhadas, eliminando o compromisso assumido com os consumidores no momento da aquisição do serviço. O equilíbrio entre as partes determina que ocorram restrições às empresas quanto a credenciamentos e descredenciamentos, uma vez que a rede de atendimento é um fator importante e decisivo para a aquisição de um convênio médico. Eventuais descredenciamentos devem ser seguidos de substituição por serviços do mesmo padrão. Tratamentos em curso devem ser concluídos pelo profissional ou empresa que os iniciou. Serviços de saúde não podem ser tratados como um bem qualquer. Alterações arbitrárias podem colocar em risco a saúde e a vida do consumidor. Uma legislação que regulamente o setor de saúde deve, sem dúvida, prever a cobertura de todas as doenças previstas no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde. O atraso de pagamento não poderá implicar em cumprimento de nova carência após a quitação do débito. A carência só pode ser aceita, e mesmo assim com ressalvas, quando da contratação do plano. O desempregado também poderá ser contemplado na nova lei permitindo um período de latência, se impossibilitado de efetuar o pagamento, e após a continuação integral do contrato sem novas carências, quando novamente empregado. As considerações acima refletem as necessidades da população usuária desses serviços e merecem avaliação e reparo para se alcançar na lei direitos já conquistados pelos consumidores usuários de convênios médicos, respeitando-se os preceitos estabelecidos no Código de Defesa do

consumidor, com o respaldo do Poder Judiciário e apoio das entidades de defesa da cidadania e dos consumidores. A urgência e rapidez que a solução dessa pendência requer não pode prescindir de uma ampla discussão com os segmentos interessados, vislumbrando o interesse maior da sociedade e o respeito aos direitos fundamentais do cidadão, princípio da democracia. Não se pode ignorar o poderoso poder econômico, e seu conseqüente lobby no Congresso, que envolve a questão, mas também não se podem desprezar os anseios de toda a população usuária desses serviços, já exausta de sofrer (inclusive fisicamente) desmandos, e que não mais se conforma e se cala diante de injustiças. Até o presente momento, toda a sociedade civil tem se manifestado pública e constantemente contrária ao muitos itens do projeto ora em pauta, com exceção da maioria das empresas de planos de saúde. Isso nos leva a questionar quem será o vencedor dessa disputa.

UMA HISTÓRIA DE LUTA, CONQUISTA E ... RETROCESSO Rosana Chiavassa Advogada

A medicina privada - e neste rol incluem-se os planos de saúde, as seguradoras, as cooperativas, as associações e tantas outras que atuem com a finalidade de prestação de assistência médica, seja qual for a sua natureza jurídica - tem sido um dos negócios mais rentáveis desta Nação, movimentando um capital de aproximadamente 1,5 bilhão de reais por semestre na nossa economia, referente ao lucro líqüido destas empresas. O referido empreendimento comercial atingiu tal patamar, distanciando-se tão significativamente do faturamento de outras áreas da economia, por dois fatores determinantes: por ser o atendimento à saúde indispensável e pela postura assumida do Estado frente à saúde, tanto em termos de regulamentação desta atividade, quando exercida pelos entes privados, quanto pela deficiente rede pública de saúde que se apresenta nas últimas décadas. Inobstante todo o desenvolvimento e concorrência do setor, as pessoas que optaram pela medicina privada continuam sem a assistência médica devida, que ao contrair catapora não são assistidas, afinal o plano de saúde não cobre doenças contagiosas. A saúde é um bem indivisível, e a catapora, assim como qualquer outra moléstia atendida por estas empresas, ameaça a sua integridade. Então, apresenta-se a questão que há anos vem sendo colocada no Judiciário: são lícitas as exclusões que restringem o atendimento à saúde, objeto da contratação? O que se tem observado é que o fato de a saúde ser um bem protegido constitucionalmente e prioridade do Estado nada significa para estas empresas, que levadas pela ânsia do lucro, vão às últimas conseqüências, atentando contra toda a ordem social e jurídica vigentes. A falta de seriedade é uma constante em todas estas empresas, que ocasionalmente prestam alguma assistência, preocupando-se somente em investir em propagandas e em como realizar mais restrições contratuais, para que os lucros sejam potencializados mais e mais... E as pessoas, mesmo sabendo de todos estes abusos, em busca de alguma segurança já que a oferecida pelo Estado é nenhuma -, migram mais e mais para a rede privada. Com isto, tem-se observado um aumento explosivo deste contingente: de 2 milhões em 1975 para 36 milhões em 1996, e provavelmente para 50 milhões - um terço da população brasileira - na virada do século1. Conforme se depreende dos fatos, para a Medicina Privada atingir praticamente um terço da população, já se verifica qual não é a deficiência e a fragilidade do Sistema Público de Saúde! De qualquer forma, as empresas de saúde estão provendo de alguma forma a assistência médica para milhões de pessoas, mesmo com todos os notórios abusos cometidos por elas. Desta forma, o caminho para a melhora deste novo sistema implantado seria a regulamentação, de forma a sanear todas estas "irregularidades". No entanto, o Estado, como se não bastasse já o tão deficiente sistema atual de saúde, simplesmente abandonou deliberadamente as pessoas à mercê das empresas de saúde, que invariavelmente cometem as mais diversas arbitrariedades...

Esta completa omissão perdurou, historicamente, até o advento do Código do Consumidor, que embora não fosse uma lei específica a respeito do assunto, já era alguma forma de se proteger aquela parcela da população de todas estas injustiças (afinal são contratos de adesão e trata-se de relação de consumo). Esta Lei (8.078/90), que demorou tanto a chegar, fez renascer na alma de cada brasileiro a cidadania, há tantos anos perdida, e a situação começou a modificar-se. Assim, quando estavam diante de uma conduta proibida pelo CDC, pagavam as despesas recusadas, em alguns casos de forma dramática, com venda de bens, etc., e buscavam o Judiciário, para discutir de quem era a obrigação. Enquanto isso, aqueles que não possuíam patrimônio para levar a questão posteriormente ao Judiciário, arcavam com suas próprias vidas.... Em 1993, mais precisamente no dia 03 de maio, iniciou-se a maior batalha já vista no Poder Judiciário a do consumidor x planos de saúde. A tutela jurisdicional, até então somente pela via ordinária, passou a ser buscada de uma maneira mais rápida e, principalmente eficaz, e a cada 'não' que os consumidores ouviam do plano de saúde, ao dar entrada em um Hospital Credenciado - sob a iminência de perderem suas vidas ingressavam com uma Medida Cautelar Inominada, cujo objeto era obrigar a empresa em questão a arcar com o tratamento médico outrora recusado. A partir de então o Judiciário se viu lotado de inúmeras Medidas Cautelares Inominadas, concedendo quase todas as liminares a favor dos Consumidores, obrigando a Medicina Privada a atender aos seus conveniados, para depois, no curso do processo, discutir a recusa do atendimento que objetivou a lide. Nos pouquíssimos casos em que os Juizes não concederam as liminares, pois entendiam ausente o fumus boni iuris, inobstante não desse para repelir de plano (ainda mais tendo-se em vista o CDC), o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reformava a decisão e concedia a liminar, em sua maioria avassaladora das vezes. Desta forma, os consumidores se viram assistidos pelo Poder Judiciário, e portanto, tutelados pelo Estado, em algum de seus poderes. Vale a pena destacar, uma das mais brilhantes decisões do E.T.J.E.S.P., proferida em 22 de junho de 94, pela Sétima Câmara, tendo como Relator o ilustre Des. Benini Cabral e como demais integrantes os ilustres Des. Godofredo Mauro, Sousa Lima e Leite Cintra. "... Em termos gerais, da questão posta nos autos, os seguros de saúde, no Brasil, são enormemente caros; a população de baixa e média renda sequer tem acesso a eles. As taxas são altas, o atendimento é contudo precário, repleto de exigências. E há a considerar que o homem médio brasileiro somente em casos mais graves procura o médico ou o hospital. O lucro das seguradoras é grande. Haja vista o que gastam em propaganda. Se dessem, pelo menos, dez por cento (10%) de tal despesa anual para cobertura total das moléstias infectocontagiosas, câncer e AIDS, seria um esforço mínimo. E o que fazem? Rotulam de moléstias de grandes riscos e sonegam coberturas, ou tergiversam em cláusulas nas mais leoninas ou dúbias.

Na verdade, os lucros são grandes e as prestações de serviços, na cobertura securitária, são diminutas. ... A possibilidade de exclusão da cobertura de qualquer doença, como dito pela agravante, citando o Código Civil, artigos 1432,1434 e 1460, merece ser investigada. Vieram fatos novos, após o estatuto substantivo, e o monumental Código Civil também envelheceu.Estamos em novos tempos e com novas moléstias. Cabe, perfeitamente, a discussão, na ação principal, sob enfoque moderno da lei. ..." Essa decisão teve efeito cascata e pipocou em todos os Foros do Brasil, tornando-se uma referência e um marco, o das conquistas dos consumidores frente às empresas de saúde... Com o tempo, brilhantes sentenças de mérito foram sendo prolatadas. Inicialmente, o Consumidor, ainda tímido e desconhecedor da amplitude de seus direitos, somente levava a Juízo a questão da recusa ao tratamento dos aidéticos, sob a alcunha de portadores de moléstias infecto-contagiosas. E segundo a mesma linha de raciocínio que declarava absurda a recusa ao atendimento tanto da Aids quanto de suas conseqüências, as demandas passaram a versar sobre toda e qualquer restrição acerca do atendimento à saúde, ou seja, sobre o abuso em excluir transplantes e o tratamento do câncer, discriminar por idade os associados, limitar os dias de internação... Nos dias de hoje, todas as ilimitadas hipóteses excludentes e abusivas, que atentem contra o bem da saúde, são objeto de demanda contra a máfia da Medicina Privada. As empresas de saúde, não raramente, para conferir licitude às cláusulas leoninas continentes no contrato, amparavam-se na natureza jurídica do contrato ou, vale dizer, associação... Raramente esta estratégia funcionava e dificilmente era acatada por nossos tribunais. Vale ressaltar as mais importantes, seguidas da apreciação do Judiciário: 1) as seguradoras estão subordinadas à SUSEP e ao Código Civil, sendo lícitas, de acordo com um contrato de seguro, tais exclusões. "Serpa Lopes, com grande percepção da realidade, ao examinar a aleatoriedade do contrato de seguros chega à conclusão de que, ao menos do ponto de vista econômico ou técnico, a álea já não atinge a seguradora. São estas as suas palavras: 'Ante o moderno aspecto da técnica do contrato de seguros, baseado como vimos, na idéia de empresa, no mutualismo, na formação do capital por meio da multiplicidade de seguros, cálculos atuariais de vida provável, se se mantém aleatório em relação ao segurado, que sempre perde, quando mais não seja o valor do prêmio pago, já aquele caráter parece afastado da empresa seguradora, modernamente dotada de recursos técnicos suficientes para evitar quaisquer prejuízos e dar à sua responsabilidade um aspecto de segurança, onde já não mais influi o azar.'(ob. Cit., vol. IV/400) Pegando a idéia de Serpa Lopes, onde fica o risco para a seguradora se, além da segurança econômica estrutural de que é dotada, impõe ao segurado cláusulas restritivas em tal quantidade que a probabilidade da ocorrência do evento ensejador da cobertura securitária (doença, mal à saúde)

fica reduzida de forma impressionante? Por acaso aquelas cláusulas não dão à seguradora a certeza da obtenção de um lucro fácil? DE TUDO ISSO, PODE-SE AFIRMAR, SEM RECEIO, QUE OS RISCOS ASSUMIDOS PELA RÉ SÃO DE TAL FORMA REDUZIDOS QUE FICA DIFÍCIL IMAGINAR A PROBABILIDADE DE NÃO OBTER LUCROS ACENTUADOS COM A AVENÇA. PODE-SE MESMO DIZER, COM O PERDÃO DO TROCADILHO, QUE SE TRATA DE UM NEGÓCIO EXTREMAMENTE SEGURO." (Apelação Cível n. 280.409-1/4) e, "As exclusões apontadas pela Ré são tantas que pouco adiantará o seguro. Os planos de saúde constituem uma modalidade de seguro dirigido a proteger o beneficiário dos imprevistos futuros. E dentre os imprevistos excluídos constam justamente aqueles mais caros ou que demandam maior extensão de tempo para a recuperação. Evidente a abusividade constante do contrato. A ABUSIVIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL E O DESCOMPASSO DE DIREITOS E OBRIGAÇÕES ENTRE OS CONTRATANTES, DIREITOS E OBRIGAÇÕES TÍPICOS DAQUELE TIPO DE CONTRATO, É A UNILATERALIDADE EXCESSIVA, É O DESEQUILÍBRIO CONTRÁRIO À ESSÊNCIA, AO OBJETIVO CONTRATUAL, AOS INTERESSES BÁSICOS PRESENTES NAQUELE TIPO DE RELAÇÃO."( Apelação Cível n.º 9.096-4/7 - Relator Des. Barbosa Pereira - 4ª Câmara Cível - j.13.06.96) 2) o princípio de que o contrato faz lei entre as partes (Pacta Sunt Servanda) é o vigente: "a Lei 8.078/90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor, vigorava quando as partes firmaram o mencionado Contrato de Serviços,(...)". E o seu art. 51 dispõe que são nulas, entre outras, as cláusulas contratuais que criam vantagem exagerada, presumindo-se assim aquela que restringe direitos ou obrigações inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual. (§1º, II). De fato, ao limitar a cinco dias a internação em UTI, conferindo exclusivamente à ré a possibilidade de prorrogação desse prazo, sem sequer fixar- lhe um critério para isso, a disposição contratual guerreada mostra-se de um lado, como exagerada vantagem para a demandada prestadora de serviços, e, de outro ângulo, é verdadeira restrição de direito que decorre naturalmente de um ajuste como o apresentado nos autos. E isso estabeleceu uma desvantagem exagerada para o autor, impondo-se a nulidade da cláusula também com apoio no art. 51 IV, desse Código, dispositivo em que se baseou a sentença. Destaco que a autonomia da vontade em que se funda a liberdade de contratar, embora já tivesse sido mitigada por leis anteriores, tem que ser examinada a partir da Lei 8.078/90, em face de outros princípios adotados por esse diploma legal, entre os quais avultam o do controle judicial das cláusulas contratuais gerais e o do direito dos consumidores, princípios estes que não aparecem 'como restrições externas, mas como limites imanentes no exercício de tais liberdades.' (Alberto do

Amaral Júnior, Proteção e Defesa do Consumidor no Contrato de Compra e Venda, S. Paulo, 1993, RT, p. 108). JÁ A DOUTRINA NACIONAL VINHA AFIRMANDO COM RAZÃO QUE 'COM EFEITO, O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE PARTE DO PRESSUPOSTO DE QUE OS CONTRATANTES SE ENCONTRAM EM PÉ DE IGUALDADE, E QUE, PORTANTO, SÃO LIVRES DE ACEITAR OU REJEITAR OS TERMOS DO CONTRATO. MAS, ISSO NEM SEMPRE É VERDADEIRO. POIS A IGUALDADE QUE REINA NO CONTRATO É PURAMENTE TEÓRICA (CF. RIPERT), E, VIA DE REGRA, ENQUANTO O CONTRATANTE MAIS FRACO NÃO PODE FUGIR À NECESSIDADE DE CONTRATAR, O CONTRATANTE MAIS FORTE LEVA UMA SENSÍVEL VANTAGEM NO NEGÓCIO, POIS É ELE QUEM DITA AS CONDIÇÕES DO AJUSTE. (...) QUEM, RECONHECENDO AS DEFICIÊNCIAS DAS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE PÚBLICA, PROCURA CONVÊNIOS OU SEGUROS SAÚDE, NÃO TEM AMPLA LIBERDADE DE CONTRATAR, PORQUE ESTES LIMITAM MUITO A LIBERDADE DE ESCOLHA DO INDIVÍDUO UMA VEZ QUE SE TRATA DE CONTRATOS DE MASSA, COMO A ELES SE REFERE ALBERTO DO AMARAL JÚNIOR, REPORTANDO-SE A ENZO ROPPO (ob. e ed. cits., p. 115)" (Apelação Cível n. 232.777-2/0 - Rel. Gildo dos Santos, m.v.). 3) as associações não podem submeter-se à ingerência do Estado já que toda a matéria contida no Estatuto foi deliberada por todos os seus membros: "A agravada ingressou contra a agravante com medida cautelar inominada, fls. 21/65, noticiando participar de plano de saúde promovido pela referida agravante, ao qual aderiu em agosto em 1979; após regular atendimento ao seu problema de saúde, viu marcada recusa por alegada excludente no que diz com transplante de medula óssea, fls. 82. (...) Inconformada a agravante que não pode ser vista como empresa de prestação de serviços ou seguros, de vez que está organizada como associação beneficente e filantrópica, sem fins lucrativos e declarada como de utilidade pública; todos os recursos que consegue auferir são revertidos em benefício de seus associados. Defende a inaplicabilidade da jurisprudência formada recentemente para os casos de prestadores de serviços médicos ou seguradoras do ramo, nem cabendo invocar o Código Brasileiro de defesa do Consumidor. (...) Nem se pode afastar que o caso é de verdadeiro contrato de adesão e que será sempre interpretado de forma mais favorável ao aderente, especialmente quanto o ponto controvertido diz com exclusão". Especificamente a respeito de tal aspecto, esta 5ª Câmara de Direito Privado já teve oportunidade de se manifestar, como acontece no julgamento do recurso do Agravo de Instrumento nº 282.305.1/4, ocorrido em 18.04.96, no qual o douto relator Jorge Tannus, da seguinte forma:

"O assunto tratado nos autos é, como se sabe, intensamente polêmico, porquanto se de um lado é invocada a teoria pura do contrato que implica prevalência do brocarco pacta sunt servanda, em que a manifestação da vontade se presume deferida com pleno conhecimento das circunstâncias contratuais por ambos os contratantes, de outra parte colacionam os interessados na assistência a natureza dos serviços objetivados pela contratação. (...) Toda a teoria do direito, por mais liberal que seja, encaminha -se no sentido de suprir a hipossuficiência das partes, quer sejam contratantes ou litigantes, dispondo preceitos legais como o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil que o juiz deverá aplicar a lei tendo em vista os fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum". O julgamento de um contrato de prestação de seguro ou de serviços médicos, celebrado entre um particular e uma organização, como a agravante, não pode ignorar tais postulados, nem o conjunto de normas derivadas da Constituição Federal que, embora genéricas, devem temperar a interpretação de situações tais como o Código do Consumidor, que não admite, entre outros artifícios, a propaganda enganosa, que caracteriza, aliás, a oferta ao público de planos de saúde como o dos autos. Ao inscrever-se o contratante num desses planos é convencido sempre de que terá assistência plena e de que seus problemas de saúde serão imensamente atenuados com a celebração do contrato. (...) PODER-SE-IA DIZER QUE OS ARGUMENTOS ACIMA NÃO SE MOSTRAM ESTRITAMENTE JURÍDICOS E FOGEM À ANÁLISE DOS TERMOS DO CONTRATO HAVIDO ENTRE PARTES. ACONTECE, TODAVIA, QUE O DIREITO, NA SUA APLICAÇÃO, TEM FINALIDADE SOCIAL A SER ATENDIDA E RESPEITADA." (Agte: Associação Auxiliadora das Classes Laborio sas, Agda: Ana Célia Waisbich) E ainda vale invocar acórdão que discorre brilhantemente sobre a finalidade do contrato, que deve ser observada: "Em primeiro lugar, a cláusula limitativa dos dias de internação está em FLAGRANTE CONTRADIÇÃO COM A FINALIDADE DO CONTRATO, que tem por objeto a prestação de assistência médico-hospitalar ao contratante e seus beneficiários. Aderindo ao plano, esperava o contratante que sempre que necessitasse de serviços médicohospitalares, tais como internações, consultas e exames diversos, contaria com a cobertura da ré. Era para isso que efetuava um pagamento mensal. Ora, se numa situação de emergência, como ocorreu no caso em apreço, necessitou o contratante de internação hospitalar, o que se pode dizer da cláusula limitativa dos dias de internação, a não ser que importa em negação do próprio contrato? Afinal, o contratante sempre foi pontual no pagamento de sua contribuição mensal para quê?"(apelação Cível n. 280.409-1/4) De tudo isto percebe-se que a tese dos consumidores foi amplamente acatada pelos nossos Tribunais, constatando-se que o prometido, por estas empresas, e a realidade estavam em pólos diametralmente opostos.

Desta forma, tem-se que o verdadeiro regulamentador da matéria dos planos de saúde, que decidia o que era e o que não era ilegal e abusivo era o Poder Judiciário, que em 99,9% das vezes posicionou-se ao lado do consumidor, declarando que estes contratos lesavam deliberadamente a parte aderente em todas as restrições que impunham em relação ao objeto do contrato que é imediatamente a prestação de assistência médica e mediatamente a manutenção integral da saúde. Em observância à Constituição Federal, que elenca a saúde entre os direitos e garantias fundamentais, portanto bem indivisível e indisponível, que o Judiciário se posicionou contra a retaliação da saúde, ou seja, contra aqueles contratos que se negavam a atender ao sarampo, ao câncer, à Aids, à realização de transplantes, implantes, e uma infindável lista de exclusões e restrições, como por exemplo, o limite de dias de internação. Qual a lógica observada pelos planos de saúde, que explicava a exclusão de tais atendimentos, se o objeto do contrato era impossível de ser dividido? Não se defende que estas empresas deixem de se mobilizar diante de outro bem que não o capital, mas sim que não onerem ilegalmente o cidadão para que possam multiplicar ainda mais os seus ganhos. A figura contratual dos contratos de adesão contribuiu imensamente para a celeridade dos negócios jurídicos que são estabelecidos em larga escala. Seria praticamente impossível, se ao invés de uma adesão, ocorresse a discussão de cada cláusula do contrato entre as partes. Não se pode, no entanto, impor ao conveniado todas estas restrições e imposições a título desta "celeridade e evolução". É claro que esta figura trouxe à economia benefícios indiscutíveis, mas tem que se pensar em uma proteção efetiva da parte aderente. Se os contratos celebrados entre estas empresas e o consumidor não fossem de adesão não teriam tantas disputas judiciais, e é exatamente a impossibilidade de discussão e opção a causa de tudo. Preocupados com estes abusos sistematicamente cometidos por estas empresas, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, em 1987, baixou uma resolução que as obrigava a atender todos os associados, sem qualquer restrição, uma vez que além de tudo, impediam o livre exercício da Medicina, dever legal de todo o médico. Como um ato-reflexo, impetraram mandado de segurança a fim de suspender os efeitos de referida resolução, argüindo sua ilegalidade, mas assim decidiu a Magistratura de Primeira instância: "(...) As impetrantes invocam o princípio da liberdade de contratar, esquecendo -se do princípio clássico de que "la liberté oprime, c'est la loi que libére", e que tal liberdade tem limites. (...) As limitações impostas nos contratos de adesão são ilegais, pois ferem o livre exercício dos direitos dos médicos... e acabam por tornar inviável a contraprestação prevista no seguro saúde, em que moléstias cobertas por uma cláusula, na realidade não são atendidas pelas restrições impostas em outras cláusulas, não permitindo, por vezes, que o médico ofereça um diagnóstico seguro e correto. (...)

A cobertura aos riscos de assistência médica e hospitalar prevista no D.L. n.º 73/66 não pode ser comparada ao seguro de um automóvel ou de um imóvel. Nestes casos é lícito, no contrato de seguro, excluir-se a cobertura de certos componentes desses bens, que, por serem patrimoniais são disponíveis. NÃO é possível, entretanto, ao se segurar a saúde de uma pessoa, excluir seus pulmões ou sua cabeça, evidentemente coisas fora do comércio e indisponíveis. Volto a repisar que tais empresas deverão estipular prestações compatíveis com o objetivo a que se propõem, nos limites da lei, para que o seguro saúde não se transforme num logro para a população. NÃO está o impetrado legislando sobre Direito Civil, ao disciplinar os contratos de prestação de serviços fixando critérios para suas estipulações. Está simplesmente zelando para que o exercício da profissão liberal de médico não seja cerceado por cláusulas ilegais de contratos de adesão, que não podem ser qualificados de atos jurídicos perfeitos se contém nulidades constantes de cláusulas violadoras de preceitos cogentes e de interesse público. A questão é de alta relevância social por envolver a saúde da população. (...) A liberdade de iniciativa tem por limites o exercício da profissão e os direitos dos pacientes. Sob o pretexto da liberdade de contratar não se pode ferir a ética profissional, limitar ilegalmente o atendimento aos pacientes, nem estabelecer num contrato de adesão, geralmente desconhecido dos associados, renúncias a prerrogativas básicas...". Esta decisão teria sido o prenúncio da efetiva proteção dos direitos do consumidor, e desde então não foram muito diferentes todas as outras em que se argüía a ilegalidade de tais aspectos contratuais. Muitas vezes, a fim de amparar a tese da licitude da exclusão de certos tratamentos e doenças, comparavam o contrato ao de um seguro de carro, em que a pessoa escolhia com quais riscos iria arcar... mas restou demonstrado quão descabida era tal analogia já que se tratava de um bem indivisível e indisponível enquanto que o carro ... dispensa maiores considerações sobre a sua irrelevância ante o bem da saúde. "Não obstante a cláusula lastreadora do pedido, analisa-se o que seja lícito ou ilícito em relação à garantia do convênio; como razão da exclusão aduziu-se que o Código do Consumidor admite a inserção de cláusulas limitadoras ( Lei 8.078/90, art. 54 §4º). Subsistem dois aspectos: o direito absoluto à saúde (que é objeto do contrato) e o direito do convênio limitar os riscos do seguro. Em precedente símile, o ilustre advogado Galeno Lacerda proferiu o seguinte parecer: "O contrato de seguro saúde cria um direito absoluto. Estamos em presença, assim, de uma categoria nova de 'direitos sobre direitos'. Nessa espécie prevalece a natureza mais importante. Ou como esclarece Ferrara, 'il diritto dominato assume la natura del diritto dominante' (ob.cit. p. 414). Por isso, se, no caso concreto, a seguradora, sem razão, negar cobertura à segurada, estará atentando contra direitos absolutos à saúde e à vida do paciente". (cf. Seguro de Saúde in RT 717/117)"(Apelação Cível n. 267.570-2/6, Relator Munhoz Soares).

Desta forma, os avanços foram mais do que significativos, no sentido de proteger efetivamente os direitos daqueles que aderiam a um plano de saúde, já que as teses defendidas arduamente pelos Planos de Saúde foram completamente rechaçadas pelo Poder Judiciário. Neste contexto, a Lei Covas foi aprovada, e esta teria sido a consolidação de todas as conquistas obtidas perante o Poder Judiciário no decorrer de todos estes anos, não fosse esta ter esbarrado nos interesses destas empresas... Por força de liminar, esta lei teve os seus efeitos suspensos.Desta vez argumentaram que a competencia para legislar sobre saúde não era estadual , mas federal. Enquanto isso, em Brasília, mediante fortes pressões dos lobbys dos planos de saúde, o projeto de lei sobre os planos de saúde passa em uma das Casas do Congresso. Finalmente, poder-se-ia pensar então que todos os problemas estariam resolvidos, já que a tão esperada lei específica sobre o assunto fora aprovada. Contrariando todas as expectativas, retrocedendo a todas as conquistas obtidas ao longo destes cinco anos, em Primeira e Segunda instâncias, a lei está praticamente aprovada. E todos aqueles que acompanharam toda esta disputa judicial ficaram estarrecidos com o que iria definir sobre a vida de mais de 15 milhões de pessoas... Fica uma pergunta no ar: o porquê da vontade política em aprovar tão rapidamente esta lei e de forma tão benéfica a essas empresas. Uma lei, que em termos de vantagem para os conveniados é em número de zero, uma lei que devolve às empresas o arbítrio e o Poder de Decisão sobre todas as restrições contratuais. Uma lei, que teve como única finalidade calar o Poder Judiciário, e o Código de Defesa do Consumidor... que será aplicado no que "couber", no que não contrariar as suas disposições. Inobstante todas as conquistas por parte do consumidor obtidas junto ao Poder Judiciário, o poderio econômico destas empresas ainda vinga neste País de tantos escândalos...

1. Fonte: Jornal O Estado de São Paulo, Caderno de Economia, em 17/06/1996.

5 A violência no trânsito: da indisciplina à loucura.

TRÂNSITO E CIDADANIA: DA BARBÁRIE À UTOPIA DA CIVILIDADE Flávia Piovesan Procuradora do Estado de São Paulo, coordenadora do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado, professora de Direitos Humanos e de Direito Constitucional da PUC/SP, doutora em Direito Constitucional.

1. INTRODUÇÃO: TRÂNSITO E CIDADANIA Qual a relação entre trânsito e cidadania? Esta indagação pode parecer, em um primeiro momento, esvaziada de qualquer sentido, já que a cidadania e os direitos humanos identificam-se em geral com problemáticas voltadas à violência, à discriminação, à impunidade, à desigualdade, dentre outras questões. Contudo, as relações existentes no trânsito e em sua dinâmica simbolizam de forma concreta como a cidadania se desenvolve diariamente, como as pessoas atuam no âmbito do espaço público, o grau de respeito aos direitos, o grau de cumprimento aos deveres, a agressividade no trânsito, o padrão de indisciplina, os tantos acidentes e as tantas mortes. Em suma, as relações vividas no trânsito refletem o modo pelo qual os indivíduos internalizam (ou não) as regras de respeito à segurança, à vida, à liberdade individual e coletiva. Neste contexto, a soma de performances individuais apontam à resultante do coletivo, que, por sua vez, espelha o grau de civilidade ou bárbarie alcançado. Lamentavelmente, no Brasil as mortes por acidentes de trânsito alcançam um índice dramático e alarmante, estando dentre os primeiros fatores que levam ao resultado morte. A preocupação com esta realidade fêz com que tanto o Plano Nacional de Direitos Humanos, como o Plano Estadual, apresentassem em caráter de urgência metas governamentais concernentes à matéria. Com efeito, no Plano Nacional de Direitos Humanos, dentre as propostas de ações governamentais relativas à segurança das pessoas, destacam-se "apoiar, com pedido de urgência, o projeto de lei n.73 que estabelece o novo Código de Trânsito" e "promover programas de caráter preventivo que contribuam para diminuir a incidência de acidentes de trânsito". O Plano Estadual de Direitos Humanos, no seu ponto 88, também estabelece a meta de "criar programa estadual e apoiar a criação de programas municipais de educação para segurança no trânsito e de prevenção de acidentes de trânsito". O fato de ambos os Planos de Direitos Humanos concentrarem medidas acerca do trânsito, por si só, significa a estreita relação entre trânsito e direitos humanos, na medida em que se faz emergencial disciplinar o modo de compartilhar o espaço público, com regras dispondo expressamente os direitos e os deveres dos diversos protagonistas que circulam pelas vias públicas. Em 22 de janeiro de 1998, finalmente, entrou em vigor a Lei n. 9.503/97, que institui o novo Código de Trânsito Brasileiro. Com a nova lei, objetiva-se inaugurar um novo período, marcado por maior civilidade nas relações de trânsito. Objetiva-se, fundamentalmente, romper com a bárbarie decorrente da antiga "lei da selva", pela qual cada um impunha pela força suas próprias regras, com trágicas consequências. O novo Código traz os prenúncios de uma nova fase, caracterizada pela firmeza e pelo rigor de novas regras que, buscando disciplinar a responsabilidade e o papel de cada

um na dinâmica das relações de trânsito, tentam esboçar em última análise o "Estado de Direito no trânsito", fundado no respeito aos valores da vida e da segurança. 2. O NOVO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO: DA BARBÁRIE AO ESTADO DE DIREITO Diante da bárbarie no trânsito, propõe o novo Código uma relação renovada entre os partícipes das vias públicas, estabelecendo os direitos e deveres concernentes aos condutores de veículos (motorizados e não motorizados), aos pedestres e às entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito. A principiologia e os valores básicos que inspiram a nova lei são a proteção do direito à vida, à segurança e à saúde das pessoas. A idéia central é a de que se todos cumprirem com responsabilidade o seu papel, o benefício será da coletividade, que passará a usufruir da paz e da tranquilidade no trânsito. O novo Código passa assim a disciplinar o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional. Para os fins da nova lei, considera-se trânsito "a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga" (artigo 1º, parágrafo 1º). Afirma a nova lei que "o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito" (art. 1º, parágrafo 2º). Tais entidades em suas ações darão prioridade à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde e do meio ambiente. O novo Código, ao longo de seus 341 artigos, introduz: a) normas referentes ao sistema nacional de trânsito; b) normas gerais de circulação e de conduta aos usuários das vias terrestres; c) normas referentes aos pedestres e aos condutores de veículos não motorizados; d) normas ao cidadão; e) normas voltadas à educação para o trânsito; f) normas referentes à sinalização de trânsito; g) normas acerca da condução de escolares; h) infrações; i) crimes de trânsito, dentre outras matérias. No que tange às infrações, o Código de Trânsito Brasileiro estabelece infrações de natureza gravíssima, grave, média e leve e à cada infração atribui um determinado número de pontos e multa, aplicando em alguns casos inclusive a suspensão temporária ou o recolhimento da carteira de habilitação. Dentre as infrações gravíssimas previstas pelo novo Código destacam-se: a) dirigir sob a influência do álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica (punição: multa e suspensão do direito de dirigir, recolhimento da carteira de habilitação e retenção do veículo); b) transportar criança em veículo automotor sem observância das normas de segurança estabelecidas pelo Código (punição: multa e retenção do veículo); c) dirigir ameaçando pedestres que estejam atravessando a via pública ou os demais veículos (punição: multa, suspensão do direito de dirigir e recolhimento da carteira); d) disputar corrida por espírito de emulação (punição: multa, suspensão do direito de dirigir e apreensão e remoção do veículo);

e) deixar o condutor envolvido em acidente com vítima de prestar ou providenciar socorro à vítima, podendo fazê- lo (punição: multa, suspensão do direito de dirigir e recolhimento do documento de habilitação). f) deixar de dar preferência de passagem a pedestre (que se encontre na faixa a ele destinada) e a veículo não motorizado (punição: multa). Quanto às infrações de natureza média, destacam-se, a título de exemplo, atirar do veículo ou abandonar na via objetos ou substâncias e dirigir o veículo com o braço de lado de fora, ambas condutas puníveis através de multa. Além das infrações, o novo Código também prescreve os chamados "crimes de trânsito". Dentre estes, cabe menção aos seguintes: a) praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor (pena de detenção de dois a quatro anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor); b) deixar o condutor de veículo de prestar imediato socorro à vítima (pena de detenção de seis meses a um ano ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave); c) conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem (pena de detenção de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor); d) participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada (pena de detenção de seis meses a dois anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor). Constata-se que nestes casos o condutor do veículo está expondo a dano potencial a incolumidade, a vida, a segurança e a integridade das demais pessoas. Por isso, a conduta é prevista não apenas como mera infração, mas como crime, ou seja, infração de natureza penal, punida com pena privativa de liberdade. Com relação aos pedestres, o Código estabelece um elenco de deveres e direitos. Por exemplo, o pedestre deverá atravessar as ruas usando sempre faixas ou passagens a ele destinadas e ao utilizar as faixa s delimitadas tem sempre prioridade de passagem, ainda que o semáforo abra para os veículos antes do término da travessia. Estes exemplos extraídos do novo Código têm tão somente a finalidade de demonstrar os rigores1 e o extremo cuidado do novo diploma legal em disciplinar o modo pelo qual condutores de veículos, pedestres e demais atores do trânsito hão de partilhar as vias públicas, a fim de que da barbárie, do descaso, da indisciplina e da loucura se transite a uma era marcada pela responsabilidade, pela disciplina e pelo respeito aos valores da vida, da segurança e da saúde individual e sobretudo coletiva. 3. CONCLUSÕES: A UTOPIA PRODUZ EFEITOS "Ela está no horizonte. Me aproximo dois passos; ela se distancia outros dois.

Caminho dez passos e o horizonte se afasta mais dez. Por mais que caminhe, nunca poderei alcançá-la. Para que serve a utopia? Para isso serve: para caminhar" (Eduardo Galeano) Segundo informações do Departamento Nacional de Trânsito, o número de acidentes de trânsito diminuiu 40% na primeira semana de vigência do novo Código de Trânsito. O diretor do Departamento Nacional de Trânsito afirmou que essa redução de 40% nos acidentes de trânsito se deve "à conscientização do motorista e do pedestre" e acrescenta que "a arrecadação em multas caiu 25%, o que prova que não está havendo repressão, mas sim um trabalho educativo".2 Como realça a afirmação, constata-se o primeiro impacto do novo Código Nacional de Trânsito. A utopia começa a produzir efeitos concretos, com marcante tônica pedagógica.

Retornando à questão inicial lançada por este artigo, vislumbra-se de forma intensa a relação entre trânsito e cidadania, quando da barbárie se caminha à civilidade, no desafio de compartilhar do espaço público, a partir de uma lógica democratiza nte e respeitadora dos direitos humanos. A cidadania significa o amplo e pleno exercício dos direitos fundamentais, incluindo os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Implica sempre no exercício de direitos conjugado com a observância de deveres, o que compõe uma gramática marcarda pela coresponsabilidade social. A idéia de co-responsabilidade social inaugura uma nova era no processo de construção da cidadania. Nela os indivíduos convertem-se em sujeitos ativos com participação vital ao sucesso da vivência democrática. Se por longos anos, no período do autoritarismo, a sociedade civil assumiu fundamentalmente a gramática da denúncia, transita-se hoje para a gramática propositiva, com a certeza de que a cidadania depende não apenas da atuação governamental, mas do comprometimento de cada indivíduo na realização do projeto democrático. A cidadania passa a operar por meio desta lógica renovada, que reflete o próprio amadurecimento do processo de construção e reconstrução da cidadania. Neste contexto, a inédita experiência da implementação das novas regras de trânsito revela que a cidadania se mede pela capacidade de realizar concretamente direitos e deveres, transformando a violência e a barbárie na utopia da civilidade. Se o novo Código traz uma utopia, esta já produz os primeiros efeitos, confirmando o dizer do poeta quando indaga "Para que serve a utopia? Para isso serve: para caminhar". 1. Não obstante os avanços introduzidos pelo novo Código de Trânsito Brasileiro, há alguns exageros que merecem futuro reparo, como, por exemplo, a exigência de instalação de cinto de segurança de três pontos ou mesmo de um terceiro cinto no banco traseiro de automóveis cujas características impedem ou encarecem essa adaptação e a aplicação de multa às pessoas que mantiverem o braço esquerdo na janela do veículo. 2. In: Folha de São Paulo, 30 de janeiro de 1998, Caderno 3, p. 5.

ACIDENTES DE TRÂNSITO: UM PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA, UMA QUESTÃO DE CIDADANIA. Maria Helena Prado de Mello Jorge Professora Associada do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública (USP)

Minhas primeiras palavras são de agradecimento pelo convite que me foi formulado para participar desta Mesa. Esse agradecimento eu o faço em meu próprio nome e no da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, instituição à qual pertenço. Quero, em primeiro lugar, cumprimentar a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania pela organização deste evento e pela felicidade e oportunidade da escolha do tema sobre a violência no trânsito. Digo felicidade porque é a primeira vez que se fala neste assunto sob o enfoque de cidadania - e eu posso dizer isso de cátedra, na medida em que milito nesta área há não poucos anos. Digo oportunidade, pela sua realização em época coincidente à promulgação do novo Código Nacional de Trânsito. Considerando então esses como os dois pilares fundamentais sobre os quais se assenta, hoje, o problema dos acidentes de trânsito, será sob essas vertentes que o tema vai ser analisado. Historicamente, é possível verificar que o automóvel, inventado e posto a funcionar no fim do século passado, produziu, logo depois, há praticamente cem anos, portanto, sua primeira vítima na América (GUMBY, 1992). No Brasil, os registros históricos mostram que o primeiro acidente de veículo a motor ocorreu na Estrada Velha da Tijuca e foi produzido por Olavo Bilac, ao dirigir o carro de José do Patrocínio (MELLO JORGE, 1979). Em um retrato de São Paulo, nos anos 20, escreveu Zélia Gattai: "... naqueles tempos a vida era tranqüila. Poderia ainda ser mais, não fosse a invasão, cada vez maior, de automóveis importados que infringiam as regras de trânsito, muitas vezes, chegando ao abuso de alcançar mais de 20 Km/h, velocidade permitida somente nas estradas" (GATTAI, 1984). Mudanças intensas vêm ocorrendo desde então: aumento das aglomerações urbanas e intenso desenvolvimento tecnológico na fabricação de veículos automotores. O uso desses veículos, assumido como indispensável para o transporte e para o lazer, fez com que o automóvel se tornasse artigo de consumo e símbolo de status social. Com a vertiginosa motorização verificada nas últimas décadas, a sociedade passou a se defrontar, então, com os inquietantes problemas ligados ao aumento dos acidentes ocasionados pelo uso desses veículos: os delitos de trânsito convertem-se em fenômenos de massa, os acidentes matam e lesam os indivíduos, comportando-se como uma verdadeira epidemia, sendo responsáveis, também, por um número não desprezível de seqüelas e incapacidades. Ocorrendo em uma população fundamentalmente jovem - a maioria dos acidentes de trânsito incide na faixa etária dos 15 aos 39 anos de idade- vem eles "roubando" anos de vida da população brasileira. E isso custa à nação. Do ponto de vista do impacto econômico dos acidentes de trânsito, trata-se de algo bastante expressivo: tratamento de feridos, cuidados com seqüelas, gastos com indenizações e seguros, recuperação continuada e repetida de equipamentos públicos e particulares são alguns dos custos diretos mais importantes. A Confederação Nacional dos Transportes (CNT2000, TRANSDADOS, 1997) estimou esses valores, para o Brasil, em 1995, em perdas superiores a um bilhão de dólares. Por outro lado, a interrupção da vida no seu momento dos mais produtivos e o

tempo que a população lesada deixa de freqüentar a escola ou o trabalho, que fazem parte dos chamados custos indiretos, têm, em sua mensuração, tarefa quase impossível de ser realizada. A situação é de tal forma grave que especialistas no assunto já chegaram a denominá-la de "genocídio" ou "massacre motorizado"(BEUX, 1986). Muito se tem escrito sobre os acidentes de trânsito/delitos de trânsito nos diferentes campos da ciência. Do ponto de vista médico, aliás, a história do trauma praticamente se confunde com a história da humanidade. Do ponto de vista jurídico, constituiu-se, inclusive, em tema de recente trabalho em concurso de Professor Titular da Faculdade de Direito de São Paulo (GRECCO FILHO, 1993). Do ponto de vista da Saúde Pública, embora se saiba que, de nenhuma forma, esse setor participa da gênese desse mal, é sobre ele que vai recair o maior ônus da ocorrência dos acidentes de trânsito. A própria Organização Panamericana de Saúde referiu-se, recentemente, ao fato de que o setor saúde constitue-se na encruzilhada para onde confluem todos os corolários da violência, pela pressão que exercem suas vítimas sobre os serviços de urgência, de atenção especializada, da reabilitação física, psicológica e de assistência social (OPS, 1993). Nesse sentido, é importante o estabelecimento do panorama da realidade brasileira nas últimas décadas para conhecer o problema - seu alcance, sua distribuição, a fim de ter elementos para combater e prevenir esses acidentes. Do ponto de vista do número de mortes, no Brasil, a situação vem se agravando: em 1977 foram pouco mais de 17.000 óbitos (17.795) que, em 1980, passaram a 19.851, em 1985 atingiram 24.298; em 1990, 28.470 e, em 1995, 32.356 mortes (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1979/1997). Aqui, eu me permito fazer duas correções no discurso do Presidente da República, " O Brasil cansou-se da impunidade no trânsito", proferido ao sancionar, dia 23 de setembro de 1997, o novo Código Nacional de Trânsito. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 24.09.97): 1º) apesar de considerar "eloqüente" o número de mortes no país, referiu-se ele a 27.000; 2º) o Presidente completa: "se computarmos também aqueles que morreram nos hospitais, são 40.000 mortes". As correções a serem feitas dizem respeito ao fato de que os que morreram nos hospitais já estão computados na estatística oficial do Ministério da Saúde, órgão responsável pela coleta e análise dos dados de mortalidade no país, que revela, para 1995, praticamente, 33 mil mortes, e não 27 mil, nem 40 mil como afirmou o Presidente. Isto porque, segundo definição internacional (OMS, 1975 e OMS, 1995), considera-se morte por acidente de trânsito toda aquela que se verifica, a juízo médico, em decorrência de um acidente de trânsito, qualquer que seja o tempo decorrido entre o acidente e a morte (grifo nosso). Os números absolutos de mortes por acidentes de trânsito, entretanto, se de um lado "chocam" pelo impacto, de outra parte, de nada servem quando se almeja estudar e analisar as localidades no tempo ou compará-las umas com as outras. Os números passam a ser então referidos ou sobre a população potencialmente em risco ou em relação aos veículos em circulação. Assim, os dados brasileiros permitem constatar que, relativamente à população, as chamadas taxas ou coeficientes de mortalidade foram: em 1977-16,1; 1985-18,5; 1995-20,9 para cada 100.000 habitantes, o que correspondeu a aumento de praticamente 30% nas últimos dezessete anos (figura 1).

Figura 1 - Taxa de mortalidade por acidentes de trânsito (por cem mil habitantes). Brasil, 1977 a 1995. 25 20 15 10 5 0 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95

Por outro lado, quando a referência é o número de veículos em circulação, dados do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN, 1997) mostram uma situação de melhoria, na medida em que o número de mortes para cada 10.000 veículos no país apresenta-se em queda desde 1961. De 1978 a 1996, as taxas cairam de 22,5 para 9,8 por dez mil veículos(declínio de 56,4%) (figura 2). Figura 2 - Taxas de mortalidade por 10 mil veículos, Brasil, 1961 a 1996.

60

53,57

50 40

35,95 34,37

30 22,54 17,03 18,21

20

11,26 10,06

9,88

9,99

9,59

9,78

1991

1993

1994

1995

1996

10 0 1961

1965

1971

1978

1981

1986

1992

Os valores dessas taxas, entretanto, são bastante variáveis conforme a região do país considerada. Assim, quanto aos coeficientes de mortalid ade (medidos por 100.000 habitantes), a figura 3 mostra que, em 1994, as taxas mais elevadas foram apresentadas por Boa Vista, Florianópolis, Curitiba, Vitória, Campo Grande, Distrito Federal, Goiânia, Aracaju e Macapá e as mais baixas correspondem a áreas como Salvador, Rio de Janeiro, Cuiabá, Belém, São Luis e Teresina.

Figura 3 - Taxas de mortalidade por acidentes de trânsito (por 100.000 hab.) segundo as Capitais brasileiras. Brasil, 1977 a 1994.

39,3 31,2

R. Janeiro

30,2 30

João Pessoa

29,8 28,5

Goiania

26,7 26,6

Belém

26,6 24,8

D. Federal

24,5 23,9

São Paulo

22,9 21,7

Florianópolis

21,3 21,2

Porto Velho

20,5 20,2

Salvador 17,2 17,1

Recife

17 14,7

Aracaju 11,9

16,1

BRASIL

0

10

20

30

40

50

44,5 42,6 42,1 41,7

Boa Vista Curitiba 39,1 39 38,7 38,1 37,8

Campo Grande Goiania Macapá 33,2 33,2

Rio Branco 29,9 26,2 26,2 25,6 24,3 24,2

Manaus Recife Porto Alegre 21,9 21

São Paulo 19 18,7

Teresina 15,9 12,4

Belém 9,3 7,5

Rio de Janeiro 6

18,9

Brasil 0

10

20

30

40

50

Com referência ao número de mortes em relação à frota, os Estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e o Distrito Federal foram os que apresentaram os menores valores. No Maranhão, Sergipe, Amapá, Bahia, por outro lado, o risco é, praticamente, cinco vezes o verificado no Sul/Sudeste (figura 4). Uma hipótese possível para o entendimento dessa situação pode estar, talvez, baseada no fato de que, os Estados do Norte e Nordeste têm história de "ligação" com as máquinas bastante mais recente. Além disso, veículos cada vez mais potentes, com capacidade de desenvolver altas ve locidades, circulam em ruas, estradas e pistas que , provavelmente, não acompanharam esse avanço tecnológico. Figura 4 - Taxas de mortalidade (por 10 mil veículos), Unidades da Federação, Brasil, 1996.

Maranhão

34,03 30,75

Amapa

26,29 25,21 23,64 23,45 22,58 21,96 21,01 20,96

Para Roraima Tocantins Acre

16,29 15,7 13,99 13,26 13,1 12,91 12,63 12,23 11,78 10,45 10,11 9,97 9,59 9,48

M. Grosso do Sul Paraiba Alagoas Rondonia Pernambuco Rio Grande do Sul São Paulo

7,15 6,55 6,04

Minas Gerais

0

10

20

30

40

As mortes no trânsito ocorrem preferencialmente no sexo masculino, sendo que a sobremortalidade no homem é, aproximadamente três vezes a feminina. Esse padrão é encontrado em todos os países do mundo e é explicado em razão de que o homem, até em função da movimentação para o trabalho, está mais exposto ao risco de acidentar-se e morrer (figura 5). Figura 5 - Taxa de mortalidade por acidentes de trânsito (por cem mil habitantes) segundo sexo. Brasil, 1977 a 1993. 50

40

30

20

10

0

1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992

Fem.

Masc.

Segundo a idade, já foi destacado que os acidentes de trânsito atingem mais os jovens, havendo uma mortalidade diferencial bastante significativa: em 1995, 64% das mortes por acidentes de trânsito, no país, verificaram-se em pessoas com menos de 40 anos, sendo que a faixa etária com maior número de mortes foi a de 20 a 29 anos (figura 6). Ainda que os dados variem conforme a composição etária da população, todos os estudos apontam no sentido de um maior acometimento dessas idades; no entanto, vários deles demonstram que o risco de morrer é mais elevado nos indivíduos mais idosos, sobressaindo-se aqui, principalmente, os atropelamentos. Figura 6 - Mortes por acidentes de trânsito segundo idades (%) Brasil, 1995.

25 20 15 10 5 0 0.09

10.19

20.29

30.39

40.49

50.59

60.69

70.79

80 e +

Aliás, quanto aos tipos de acidentes de trânsito, esse é, na realidade, o mais comum. Em São Paulo tem sido possível demonstrar que em cerca de 60% das mortes por acidentes de trânsito, a vítima é o pedestre, o percentual se eleva a 75%, quando se estudam somente os óbitos dos menores de 15 anos (MELLO JORGE, 1988). O conhecimento dessa situação é algo extremamente importante na medida em que, quando se pensa em termos de prevenção das mortes no trânsito através do uso de equipamentos de segurança- tipo cinto, capacete, air-bag - é preciso ter em mente o montante de casos a que as mesmas se destinam prevenir. A mensuração relativa ao número de mortos e de feridos segundo o tipo de acidente, deve funcionar como uma orientadora para a definição de políticas de prevenção desses eventos, em razão de que as medidas voltadas para a diminuição dos atropelamentos são diversas daquelas decorrentes, por exemplo, das colisões de veículos (MELLO JORGE e col, 1997). O conhecimento relativo ao "momento" e ao "local" em que os acidentes ocorrem são também norteadores dos programas a serem postos em prática. Assim, as colisões verificadas a partir da zero hora do sábado, e por todo o fim de semana, podem indicar, muitas vezes, a associação do uso de substâncias psicoativas com a velocidade. O álcool é reconhecido, hoje, como importante problema de saúde pública. Entretanto, quando se fala em acidentes de trânsito é preciso pensar que não é necessário ser alcoólatra, mas que, a ingestão de uma certa quantidade de álcool já é capaz de alterar as reações individuais, podendo provocar comportamentos inadequados e trazer conseqüências sérias. Pesquisas realizadas no Brasil e no exterior mostram a incontestável magnitude e o incremento substancial recente de bebidas alcoólicas, principalmente nas idades ma is jovens. Em 1522 vítimas de morte por causas violentas na cidade de São Paulo, no ano de 1994, encontrou-se dosagem alcoólica positiva em 52% dos acidentes no trânsito (CARLINI-COTRIM-et al 1997). Quanto aos "locais", impõe-se um mapeamento dos chamados "pontos negros", pois é nesses que o policiamento deve ser mais intenso e contínuo. As vias utilizadas para os populares "rachas"

devem também ser objeto da maior atenção policial. Aliás, especificamente quanto a este aspecto, afirma o Prof. Celso Bastos que "quem dirige embriagado ou participa de rachas deve ser considerado inimigo público" (O Estado de São Paulo, 30.08.97). Quanto ao número de feridos no trânsito, os dados não são completos: os levantamentos feitos pela polícia- estudos através de Boletins de Ocorrência- mostram a situação apenas no "momento" em que o evento ocorreu; as análises rotineiras feitas com dados hospitalares não abrangem os atendimentos em Pronto Socorro e é sabido que é nesses locais que grande parte dos feridos é atendida. Dados do SAMU-Resgate, em São Paulo, evidenciam que, quanto ao período de sobrevida das vítimas fatais de acidentes e violências, 70% morreram nas primeiras 24 horas e, dessas, mais da metade havia sofrido acidente de trânsito (WHITAKER, 1995). Por outro lado, relativamente às seqüelas e incapacidade em vítimas de acidentes e violências, constata-se que o maior número verificou-se em decorrência dos acidentes de trânsito (FARIAS, 1995). É importante salientar ainda um sem número de acidentes em que não ho uve vítimas, mas onde os prejuízos materiais, embora sejam os menos importantes no plano ético (GRECCO FILHO, 1993), não deixam de gravar a sociedade brasileira de custos adicionais, em sua já fraca economia. A outra ótica sob a qual os acidentes de trâns ito devem ser analisados é a relativa à legislação. Acaba de ser sancionado o novo Código Nacional de Trânsito, que chega depois de mais de quatro anos de tramitação e, no dizer de alguns, com algumas normas já ultrapassadas, outras de legalidade discutível. Vários artigos, entretanto, dentre os seus 340, constituem-se em novidades. Alguns, como educação e padrões mais severos no exame de habilitação, postulados pelos estudiosos há não pouco tempo, ao lado de multas mais elevadas e punições mais enérgicas para os infratores, surgem cercados de certa aura, parecendo detentores de um poder mágico, capaz de resolver todo o problema dos acidentes de trânsito. De alguma forma, ele parece vir, como veio a Constituição de 88: um todo poderoso, um salvador da pátria. E, de repente, pouco muda! É preciso, portanto, não depositar, somente na nova legislação, a esperança de menos violência nas ruas e nas estradas: as leis existem e precisam ser cumpridas. Entretanto, fiscalização e policiamento ostensivo devem passar a fazer parte integrante das medidas para combater a violência e preveni- la, embora essa violência não se caracterize somente como um problema de segurança pública. É preciso também deixar de enxergar os acidentes como um problema específico da área de engenharia de trânsito ou do campo da medicina. A visualização dos acidentes de trânsito com base em fatores ligados ao usuário, ao veículo e à via pública remete, aprioristicamente, à idéia fundamental de que esse agravo não possui, nem de longe, a característica da "acidentalidade" que seu nome sugere (CARVALHO NETO, 1996). A conotação de "eventual", "fortuito", "obra do acaso" deve, assim, ser substituída pela concepção de que os acidentes de trânsito constituem-se em uma "condição súbita" , que ocasiona danos à saúde, gerada por uma combinação de motivos potencialmente preveníveis e atuantes em um momento determinado "(OPS, 1993). A epidemiologia, ciência que estuda esses danos, deve contribuir para formar o quadro sobre os acidentes: quem é vulnerável, em que grau e por que motivos, quais os fatores de risco associados, em que medida cada acidente ocorreu por falha humana, por falha da máquina ou por falha da estrada. Reduzir os acidentes de trânsito e seus efeitos é, agora, uma questão de cidadania. É preciso agregar aos aspectos de medicina, legislação, segurança, educação, entre outros, uma "dimensão" de responsabilidade cidadã à qual se referiu o próprio Presidente da República.

O panorama já está estabelecido. Resta- nos procurar os parceiros adequados e tentar, mais uma vez. ... E se nada acontecer, restará a sensação de impotência ante o novo crescimento dos números. Vamos fazer votos para que isso não ocorra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

BEUX, A. O homem e o massacre motorizado. Delitos de trânsito. Porto Alegre, 1986.

2.

CARVALHO NETO, J.A. Aspectos epidemiológicos dos acidentes de trânsito em Brasília, D.F. no período 1980-1994. Brasília, 1996 (Dissertação do Mestrado apresentada ao Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia).

3.

CARLINI-COTRIM, B. et. al. Blood alcohol content (BAC) and deaths for external causes in São Paulo, Brasil. In: II Reunião do Comitê "Alcohol Polices in Developing Societies" Cidade do México, 1997.

4.

CNT - CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRANSPORTES- CNT 2000- Transdados, Brasília, 1997.

5.

DENATRAN, "O Estado de S.Paulo, 02.07.97 p.C-1 Mortes no trânsito voltam a crescer no país".

6.

FARIAS, G.M. Deficiências, incapacidades e desvantagens decorrentes de causas externas: análise em pacientes internados no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, 1991. S.Paulo, 1995 (Tese de Doutorado apresentada à Escola de Enfermagem da USP).

7.

GATTAI, Z. ANARQUISTAS GRAÇAS A DEUS. RIO DE JANEIRO, RECORD, 6(EDIÇÃO, 1984.

8.

GRECCO FILHO, V. A culpa e sua prova nos delitos de trânsito. S. Paulo, Saraiva, 1993.

9.

GUMBY, A. Seven years before of first U.S. traffic death, toll already has reached nearly 2.8 million. JAMA, v. 268, no3, p. 306, 1992.

10.

MELLO JORGE, M.H. Mortalidade por causas externas no Município de São Paulo. S. Paulo, 1979 (Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Saúde Pública da USP).

11.

MELLO JORGE, M.H. Investigação sobre a mortalidade por acidentes na infância. S. Paulo, 1988 (Tese de Livre Docência apresentada à Faculdade de Saúde Pública da USP).

12.

MELLO JORGE e col. Análise da mortalidade. IN: MELLO JORGE, M.H. Acidentes e violências no Brasil. Revista de Saúde Pública, 1997 (Supl.) no prelo.

13.

MINISTÉRIO DA SAÚDE Estatísticas de Mortalidade Brasil, 1977/1994. Brasília, CENEPI/FNS, 1979/1997.

14.

ESTADO DE SÃO PAULO, 30.08.97 p.C-1.

15.

O ESTADO DE SÃO PAULO, 24.09.97 p. B-10. O Brasil cansou-se da impunidade no trânsito (Discurso pronunciado pelo Presidente da República).

16.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE Classificação Internacional de Doenças, Lesões e Causas de Morte, 9a Revisão, S.Paulo, CBCD, 1980.

17.

16-A. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde. 10a Revisão. São Paulo, CBCD/EDUSP, 1993.

18.

ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD -OPS-, 1993 Resolução XIX: Violencia y Salud. Washington D.C., 1993. (mimeo). WHITAKER, Y.K. Gravidade do trauma avaliado na fase pré-hospitalar - análise das vítimas de causas externas atendidas pelo SAMU -, Resgate. S.P., 1991 (Tese apresentada à Escola Paulista de Medicina).

19.

A DOENÇA TRAUMA Samir Rasslan Professor Titular de Cirurgia de Emergência e Diretor do Serviço de Emergência do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo

O trauma, mais do que uma grave doença, tem sido considerado um sério problema médico, social e comunitário. Sem dúvida, constitui-se hoje em um dos mais significativos problemas de toda área da saúde. A doença trauma é a principal causa de morte na faixa etária até 45 anos, sendo a terceira causa geral de morte após as doenças cardíacas e o câncer. Enquanto a morte por afecção cardíaca ou câncer tira em média 10 a 15 anos a mais de vida do cidadão, a decorrente do trauma amputa 30 a 40 anos de uma vida altamente produtiva. O trauma pode ser rotulado como a doença negligenciada do mundo moderno, tanto que os investimentos feitos visando o seu cont role, prevenção e tratamento são inversamente proporcionais à rápida progressão da violência e dos mais diferentes tipos de traumatismos. A era industrial, a alta tecnologia, o aumento da velocidade de veículos, as condições sócioeconômicas, pobreza, miséria e a própria natureza humana são fatores que contribuiram para o crescimento progressivo dos traumas, bem como dificultam a adoção de medidas preventivas de forma objetiva. Na história natural do mundo, a violência tem sido um mecanismo de defesa, e indivíduos, povos e nações se digladiaram na luta pela sobrevivência. Na realidade, o trauma é um reflexo da história da humanidade. Embora os aspectos relacionados à epidemiologia do trauma - seu significado e importância - tenha ganho maior destaque nos últimos anos e em especial em nosso meio, eles não são valorizados pela própria comunidade médica. Na verdade, o trauma é uma doença que comumente é ignorada como problema de saúde da comunidade. O ensino do trauma não só nos cursos de graduação das escolas médicas, mas na formação do residente, é extremamente deficiente. Raras são as escolas que têm uma disciplina voltada exclusivamente para o ensino e estudo da doença trauma. A orientação precária, um mercado de trabalho não estimulante, os riscos, condições e estilo de vida decorrentes da atividade dedicada ao atendimento de vítimas de trauma, têm sido algumas das razões para justificar o pouco interesse do médico pelo assunto. Entre os inúmeros tópicos de importância, na doença trauma faremos considerações sobre alguns deles : a) Ocorrem anualmente nos Estados Unidos milhões de traumatismos que têm como produto final mais de três milhões de vítimas hospitalizadas, aproximadamente 10 a 15% daquelas que recebem atendimento médico. Cerca de 300.000 tornam-se inválidos permanentes e 150.000 pessoas morrem por ano vítimas de trauma.

No Brasil os números não são muito diferentes, uma vez que morrem por ano 90.000 indivíduos, dos quais a maior parte por acidentes automobilísticos e admite-se que outros tantos serão portadores de invalidez definitiva. De acordo com estes dados morrem 10 brasileiros por hora vítimas de trauma, sendo que 1 a 2 falecem a cada 20 minutos, vítimas de acidentes de tráfego. b) O custo anual do problema trauma para a sociedade americana é quase a dívida externa do Brasil, correspondendo a mais de 100 bilhões de dólares, sendo que as vítimas de trauma ocupam mais leitos hospitalares que doentes cardíacos e portadores de câncer. De toda verba destinada ao atendimento do traumatizado, 1/3 corresponde à assistência médico- hospitalar e aos custos relacionados à terapêutica e programas de reabilitação. Os outros dois terços dizem respeito aos custos determinados pela invalidez temporária ou definitiva que o trauma provoca (MACKENZIE et al, J. Trauma, 30: 1096, 1990; SHACKFORD - Surg. Clin North Am, 75: 305, 1995). c) A prevenção, embora envolva menos a participação do médico e mais de áreas da segurança pública, educação, transporte, entre outros, pode ser primária, secundária ou terciária. A prevenção dita primária visa a eliminação dos fatores implicados ou determinantes do trauma. A secundária, procura reduzir a gravidade das lesões decorrentes do traumatismo, enquanto a terciária, está relacionada ao atendimento médico e adoção de medidas terapêuticas visando melhores resultados (Quadro 1). Quadro 1 - Prevenção do Trauma Prevenção Primária

Secundária

Terciária

Objetivo Eliminação do trauma acidenta

Atuação Sinalização de vias públicas Educação do pedestre Adequação das vias públicas Redução da gravidade das lesões Uso de capacete, cinto de segurança, “air-bag”, controle de segurança e proteção dos veículos e motoristas Atendimento médico pré e Redução da morbi- mortalidade hospitalar pôr uma assistência adequada Treinamento da equipe

O médico pode participar de muitas iniciativas visando a prevenção tanto primária quanto secundária do trauma. Os acidentes normalmente não ocorrem por acaso ou são produtos da fatalidade. Existe sempre um fator de risco sobre o qual é possível atuar, modificando assim a ocorrência de eventos traumáticos. Inúmeras estratégias neste sentido têm sido propostas, como evitar a criação, reduzir o número, evitar ou modificar a forma de atuação dos fatores ou agentes de risco. Nos acidentes envolvendo veículos automotores, o risco é determinado pelo homem (imprudência, negligência, álcool, drogas), máquina (veículos em más condições de conservação) ou rodovia (precária, mal sinalizada). Na grande maioria das vezes o homem é o fator principal. A prevenção é o mais importante parâmetro no controle do trauma e três medidas representam estratégias de grande valor : educação, adoção de leis e atuação na área tecnológica. As duas primeiras visam mudar o comportamento das pessoas através da orientação, regras administrativas ou penalidades. A terceira medida, de ordem tecnológica, atua sobre os agentes ou fatores envolvidos no acidente. Basicamente todas visam a proteção da eventual vítima do trauma.

O novo Código Brasileiro de Trânsito poderá eventua lmente reduzir o número de acidentes, mas a profilaxia das "batidas", "trombadas" e atropelamentos envolve a obediência de normas e leis e, portanto, a educação tanto do motorista quanto do pedestre. As medidas preventivas têm por objetivo evitar ou diminuir os efeitos do trauma e devem ser elaboradas em função de estudos e análise crítica dos fatores causais. d) As grandes metrópoles vivem hoje uma verdadeira guerra, em função da violência interpessoal. Os hospitais estão lotados de vítimas de ferimentos por arma branca e projéteis de arma de fogo. As cidades representam verdadeiros campos de batalha, a tal ponto que no mesmo período morreram mais americanos em Nova York do que na Guerra do Golfo. A prevenção deste tipo de trauma é mais complexa. e) O traumatizado é o mais grave doente do serviço de emergência, o mais oneroso para o hospital e requer para o seu atendimento uma equipe multidisciplinar. f) O objetivo do atendimento é a reanimação da vítima de trauma, assegurando um tratamento rápido e definitivo das múltiplas lesões, permitindo a recuperação total com reintegração à sua função na sociedade. g) O tempo é fator primordial na recuperação do traumatizado. O intervalo de tempo decorrido entre o trauma e tratamento definitivo está intimamente relacionado com os resultados, como comprovam os números observados desde a primeira Grande Guerra até a Guerra do Vietnã, em função da redução da mortalidade, graças a um transporte seguro e mais rápido. h) A implantação de um sistema de resgate e de atendimento pré-hospitalar mais efetivo tem mudado o perfil da população de traumatizados que chegam aos serviços de emergência. Hoje os serviços recebem doentes cada vez mais graves e que no passado morriam no local do acidente ou no transporte. Outro aspecto clássico é que o traumatizado deve ser levado para o hospital certo, no tempo certo. A vítima deve ser encaminhada não para o local mais próximo, mas para o serviço que tenha condições para atender as suas necessidades terapêuticas. O tempo para o atendimento pré-hospitalar deve ser o mais curto possível, suficiente apenas para a estabilização do doente e sua remoção para o hospital terciário onde recebe o tratamento definitivo. Nesta fase, o objetivo é o emprego de medidas vitais, como manter a via aérea permeável, ventilação adequada, oxigenioterapia, compressão de foco hemorrágico, reposição volêmica e imobilização do doente. i) A mortalidade no trauma tem uma distribuição trimodal. As mortes podem ser imediatas, mediatas ou precoces e tardias. As imediatas, que representam 50%, ocorrem segundos ou minutos após o trauma no local do acidente ou durante o transporte, devidas a lesões graves, complexas e incompatíveis com a vida. Lesões que acometem o sistema nervoso central, medula, grandes vasos, etc. As mortes mediatas ou precoces que constituem o segundo pico, ocorrem algumas horas após o acidente, na sala de reanimação, durante a intervenção operatória ou no pós-operatório imediato. Correspondem a 30% do total e devidas a trauma craniano ou hemorragias volumosas por lesões de órgãos sólidos ou grandes vasos.

O terceiro pico é o das mortes tardias, dias ou semanas após o trauma, representa 20%, sendo determinado por infecção, complicações pós-operatórias, sepse e/ou falência de múltiplos órgãos e sistemas. A primeira hora é considerada a hora de ouro para o atendimento do traumatizado, uma vez que os doentes que recebem cuidados adequados neste período têm maior taxa de sobrevida quando comparados àqueles tratados tardiamente. j) As mortes no trauma podem ser divididas em evitáveis, potencialmente evitáveis e inevitáveis. Necrópsias de indivíduos traumatizados, particularmente portadores de lesões do sistema nervoso central mostram em número expressivo de casos lesões abdominais responsáveis pela causa morte, passíveis de tratamento e que não foram diagnosticadas. Muitas das mortes evitáveis ou potencialmente evitáveis são devidas a demora no resgate e atendimento e também pelo encaminhamento destas vítimas para hospitais cuja atenção não está voltada para o tratamento desta população de doentes. Trabalhos analisando as mortes de traumatizados, atendidos em hospitais gerais e em centros especializados, verificaram a ocorrência de maior número de mortes evitáveis e potencialmente evitáveis nos primeiros, o que mostra a necessidade de uma conscientização e treinamento da equipe que dá o primeiro atendimento. k) O desenvolvimento de "sistemas" integrados de atendimento ao traumatizado reduziram significativamente as taxas de mortalidade nas primeiras horas após o acidente. Um sistema de trauma deve abranger uma região geográfica (cidade, distrito, etc) e proporcionar transporte rápido da vítima para hospitais específicos, dependendo da gravidade das lesões, os quais são denominados "centros de trauma". A integração do sistema de atendimento pré-hospitalar com o hospital capaz de proporcionar tratamento definitivo, demonstrou ser eficaz na redução das mortes consideradas preveníveis de 20 a 30% para 2 a 5%. Ainda fazem parte dos "sistemas" de trauma os hospitais especializados em reabilitação. Atualmente está bem estabelecida a relação entre a duração da hipotensão e do choque e a intensidade da imunossupressão pós-traumática. A mortalidade tardia pode ser reduzida proporcionando-se atendimento inicial adequado, visando corrigir rapidamente os distúrbios cárdiocirculatórios e com a instituição de medidas de suporte de terapia intensiva e suporte nutricional. No Brasil não existem centros de trauma, mas alguns hospitais gerais que têm um serviço de emergência que atende vítimas de trauma. Em São Paulo há uma regionalização do atendimento, sendo as vítimas de maior gravidade encaminhadas para hospitais ditos terciários ou de referência, teoricamente melhor equipados e com equipes multidisciplinares preparadas e conscientizadas para o problema trauma. l) O que se espera do médico que atende vítimas de trauma é que ele esteja qualificado para uma avaliação inicial adequada, estabilização e preparo do traumatizado para receber os cuidados definitivos. Esta habilitação pode ser conseguida através de um programa de treinamento em serviços de emergência, após a residência em cirurgia geral e complementada por curso específico, de normatização do atendimento do traumatizado, criado pelo Colégio Americano de Cirurgiões no início da década de 80. Este curso ATLS - suporte avançado de vida no trauma - tem por objetivo preparar médicos, orientando-os na sistematização do atendimento inicial, obedecendo as prioridades, visando o tratamento das lesões que põem em risco a vida. Este curso deve ser um dos requisitos básicos para todos os médicos, em particular os cirurgiões que trabalham em serviço de emergência.

Quando se avalia o controle de qualidade e a eficácia do atendimento do traumatizado, ele não está apoiado somente na redução da taxa de mortalidade, mas também na diminuição da morbidade, particularmente dos erros e iatrogenias, e o retorno da vítima a uma vida produtiva. Assim, é fundamental o ensino e treinamento de equipes especializadas, monitorando através de reuniões, protocolos, banco de dados e uma auditoria permanente - os resultados e a qualidade do tratamento. m) Na recuperação da vítima de trauma, o transporte rápido, a reanimação adequada e uma equipe multidisciplinar treinada são fundamentais. O prognóstico depende do número, tipo e gravidade das lesões. Inúmeros fatores contribuem para a falha ou insucesso na recuperação do traumatizado, entre eles : - intervalo trauma-reanimação, longo - lesão incompatível com a vida - complicações na vigência da reanimação - tratamento inadequado Considerações Finais 1. O trauma é uma doença heterogênea e multidisciplinar. 2. Constitui a principal causa de morte na população jovem e a terceira causa geral de morte. 3. A prevenção é o mais importante parâmetro no controle do trauma. 4. As mortes podem ser imediatas (50%), mediatas ou precoces (30%) e tardias (20%). 5. Uma porcentagem significativa de mortes são evitáveis ou potencialmente evitáveis. 6. O traumatizado deve ser tratado em uma instituição adequada e preparada para este tipo de atendimento, o que implica em uma equipe multidisciplinar treinada.

6 Educação para a cidadania: solução ou sonho impossível?

UMA QUESTÃO DE COSTUMES Roberto Romano Professor Titular de Filosofia Política e Ética - UNICAMP

Quando falamos de educação para a cidadania, nos referimos imediatamente ao estudo. Trata-se de uma questão de costumes. E costumes são a matéria da ética. Quem deseja estudar, deve assumir uma ética da frugalidade severa, com um regime grave, sem ornamentos inúteis, sem pressa, sem escutar professores que adulam os alunos e seus pais. A ética recusa a lisonja, o regime a ser seguido requer disciplina e trabalho árduo. Esta advertência nos vem de Platão. A herança grega afirma que ensino e regime alimentar identificam-se. Uma comida engordurada, abundante e imprópria, abafa os talentos da inteligência. A pedagogia correta de corpos e almas resume-se no ditado grego: "educação ou alimento". Regime, na antiguidade e hoje, diz-se da dieta e do governo. Há no pensamento platônico um nexo entre ambos, mediado pela educação. A prática lisonjeira entre mestres e discípulos também ocorre, escreve o filósofo, entre governantes e governados na política licenciosa, um grave problema da democracia. Permitam- me recordar algumas passagens platônicas, porque elas inserem-se diretamente no tema "educação e cidadania". No livro VIII da República, nas alturas das páginas 562, Platão descreve os costumes e o ensino na polis democrática. Afirma ter sido a cobiça de dinheiro e a negligência de outros elementos políticos e educativos a desgraça do governo anterior, o mando oligárquico. Agora, pergunta Sócrates, "porventura não é a voracidade daquilo que a democracia assinala como o bem supremo a causa da sua dissolução? De qual bem falamos ? Da liberdade". É o desejo deste bem e a negligência do resto que faz mudar tal forma de governo, abrindo caminho para os tiranos. No trato democrático não se misturam com prudência agua e vinho, dando-se uma bebida muito forte ao povo. Este, enternecido e embriagado de licença, diz que "servil" é quem obedece os magistrados. Neste regime, são engrandecidos e benditos os "governantes que parecem governados, e os governados que parecem governantes". Temos um nome para este parecer e não ser: demagogia. Permitam- me um ligeiro anacronismo. Ouvi no horário eleitoral "gratuito" um candidato a deputado berrando: "vocês são os patrões, nós os empregados". Conhecemos os costumes destes "empregados" quando passam os pleitos, sentimos sua arrogância, e corremos, como o fez Maquiavel, rumo à biblioteca, para ler Platão. A licença demagógica invade todos os recantos da polis. Platão diz que tal atitude chega às casas particulares e atinge os animais domésticos. Nesta democracia, "o pai habitua-se a ter medo dos filhos, desejando ser igual a eles, o filho a ser igual ao pai, sem ter respeito ou receio dos pais, a fim de ser livre". Em tal regime, "o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em atos; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários". Num regime semelhante, a liberdade é tão ampla, "que as cadelas, conforme o provérbio, são como as donas e também os cavalos e burros andam pelas ruas, acostumados à uma liberdade completa e altiva, chocando-se sempre contra quem vier em sentido contrário, a menos que saia do caminho; e tudo o mais é assim repleto de liberdade". Termina o arrazoado platônico: "A resultante de todos esses males é tornar a alma dos cidadãos tão melindrosa que, se alguém lhes ordena um mínimo de responsabilidade, eles se agastam e não a suportam; acabam por não se importar nada com leis escritas ou não escritas (...) a fim de que de modo algum tenham quem seja senhor deles". Eis, afirma o filósofo, "o belo e soberbo começo de onde nasce a tirania (...) O excesso costuma ser respondido pela mudança

radical, no sentido oposto, quer nas estações do ano, quer nas plantas, quer nos corpos, e não menos nos Estados"1 Não há muito do que rir nesse retrato da democracia ateniense, feito por Platão. A lisonja, base das relações inter-pessoais também possibilita, no Brasil, a imitação recíproca de governantes e governados, uns vendo os outros enquanto modelos de esperteza . Demagogia, falta de respeito pelas leis, tudo isto integra nossa vida política e educacional. Docentes há que afirmam "aprender com os alunos", deles recebendo "lições de sabedoria". Na "boa" sociedade, mulheres enricadas julgam-se livres quando exibem suas celulites durante o carnaval, nas televisões, servindo como escravas da vista e do erotismo alheios, além de proporcionarem lucro aos anunciantes de cerveja, etc. Mas não só de "colunáveis" vive a polis licenciosa. Ela também suporta burros que atropelam os passantes. Se fizermos uma pequena alteração no texto platônico, onde lemos "burros", podemos enxergar espécimes da atualidade brasileira, justificando aquela imagem . O trânsito nacional está repleto de asnos no volante.Todos imaginam que não devem nem precisam obedecer as leis. A violência é maior se o idiota (no sentido grego, o que só enxerga a si mesmo) está dentro de um automóvel importado ou caro. Os anúncios criminosos são explícitos, como o que declara: "Se você enxergar este logotipo, passe para a direita". Trata-se de um incitamento irresponsável à velocidade, empurrando aço contra a carne humana. E ficam impunes os trefegos canalhas da propaganda, e ficam impunes os por eles persuadidos. Na Unicamp, foi preciso colocar barras de ferro nas calçadas porque professores, funcionários, alunos, sobre elas estacionavam seus automóveis , impedindo mesmo a entrada para a Biblioteca Central da universidade. O número de atropelamentos no campus é assustador. No diálogo Gorgias, Platão indica que a artimanha lisonjeira (e a propaganda é apenas um de seus casos) oculta-se sob uma arte efetiva. Assim, sob a medicina, surge a cozinha "que faz cara de saber quais são, para o corpo, os melhores alimentos.Se, por acaso, diante de um juri de crianças, for estabelecida a competição entre um cozinheiro e um médico, para saber quem dos dois, médico ou cozinheiro, tem competência sobre os alimentos úteis ou nocivos: o médico deveria, desde o começo, deixar-se morrer de fome!"2 . O bajulador assume aparências de fala amiga, o discurso veraz exige disciplina, sobretudo na amizade. Quem lisonjeia, deixa os amigos na hora negra, toda pessoa franca enfrenta o próprio amigo, para seu bem, nunca o abandonando. A lisonja acostuma o corpo e a alma do estudante aos prazeres, o transforma em ser ineducável para a cidade. Certos indivíduos resistem, desde o nascimento, à educação para a cidadania. Como grãos duros , diz o filósofo, eles não amolecem na panela do ensino (Leis, 853 d, 880 e). Do mesmo modo que não se deixa "cozinhar" pela educação, um homem assim não se submete às leis, nelas ele não se funde. Educar para a vida cidadã, escreve Platão, é como tingir almas. No livro IV da República , no processo de educação dos magistrados, lemos que "educar" uma pessoa é dar- lhe a melhor tintura das leis (República, 420d a 430a).Quem foi assim tingido possui uma opinião indelével sobre o que deve temer e sobre o que deve fazer, pois tal tintura resiste aos sabões tão ativos para descolorir, como o são os prazeres, a dor, o medo e a paixão. Esta imagem aparece também na Carta VII, um dos textos capitais para a epistemologia e a política platônicas. Ali, vemos que a cultura de quem não é filósofo compara-se ao colorido superficial dado pelo banho de sol. A imagem mais usada por Platão é a do alimento, no processo educativo e ético. No Protágoras (35lb) diz-se que como a força física vem da natureza, e de uma boa nutrição do corpo, assim também a coragem vem da natureza e de uma boa nutrição da alma. Em multiplas obras de Platão o termo "alimentar" é tomado neste sentido (Alcibíades Iº, Critias, Protágoras, Banquete, Fedro, Teeteto, Timeu, Leis, Carta VII). Na maioria das vezes, "alimentar" une-se à educação,

paideia. Este último termo designa, nos estados mais eminentes da educação, uma via para atingir o conhecimento do Bem. Mas quase sempre paideia e alimentação são usados como sinônimos.3 Poderíamos seguir longe, na busca dos entrelaçamentos , dentro da obra platônica, entre educação e cidadania. Falei acima da lisonja. Por que surge a tirania, a partir da licença democrática? Sua causa é o idiotismo, a filáucia, o amor de si mesmo, que geram o discurso enganoso e dissimulado e nos prendem nas armadilhas de oligarcas e tiranos. A filáucia, em Platão e na filosofia ocidental inteira, é o contrário de amizade efetiva. O texto nuclear neste plano, encontra-se no livro de Platão denominado As Leis (Livro V, 73l d). É sintomático que, naquele texto, no trecho sobre o amor de si, o sujeito acometido deste idiotismo seja comparado ao "amante, cego no relativo ao ser amado, sendo péssimo juiz das coisas justas, boas, nobres". A paixão impede o conhecimento e a prática do bem. A pior paixão, nós a temos quando amamos a nós mesmos acima de tudo. A frase platônica, referida à filáucia, impressiona: "Há um grande mal, o maior de todos, que o maior número de homens têm, e que lhes é congenital. Com ele, cada um é cheio de auto-indulgência, e ninguém dele pode escapar. Este mal chama-se amor próprio. Acrescentemos que esta ternura do homem para consigo mesmo pertence à sua natureza e que ela causa nossos erros, pelo afeto que temos para conosco (...) O grande homem não acaricia nem a si mesmo, nem as coisas que são de sua propriedade, mas o que é justo".4 Os leitores de Rousseau sabem a importância desta noção, o amor próprio, sobretudo quando este último irrompe na experiência política. O amor- próprio cond uz à tirania plena. Como na cidade licenciosa cada um é amigo cego de si mesmo, todos exigem adesão irrestrita à sua própria egoidade. Como este projeto não pode se realizar, alguns dentre os homens, cuja arte de enganar é mais eficaz, e cujo amor de si é maior, tornam-se governantes, logo assumindo o papel de tirano.Segundo Xenofonte o tirano não pode suportar a amizade. Ele teme e odeia os cidadãos livres que usam a rude franqueza na linguagem. Os membros da polis também o temem, em contrapartida. O governo tirânico é exercício de autoerotismo e temor generalizado. "Uma das singularidades do tirano é procurar suprimir não só os seus inimigos, mas também destruir os que, por terem sido seus iguais ou cumplices, a ele se dirigem com franqueza, o que é sinal de uma amizade verdadeira (República, VIII, 567b). O tirano é cercado apenas por homens que, não sendo nem amigos nem inimigos, contentam-se em parecer o que lhe apraz que eles sejam, testemunhando, deste modo, sua ausência de caráter e uma ambição temível para seu próprio patrão".5 O tirano não possui amigos. Ele é o grande solitário, apesar dos muitos parasitas que o cercam, louvando-o com hipocrisia. A oposição,na cultura grega, entre amigo e adulador, ajuda a compreender a perversidade das relações humanas sob o regime tirânico. A verdadeira amizade tem seu principio e base na adesão racional e penosa de quem busca reger a cidade segundo a justiça. Uma cidade bem administrada, pensa Platão, é regida pela philia entre seus membros. A metáfora corporal é assumida pelo filósofo. Na cidade justa ocorre algo análogo ao que se passa "quando ferimos um dedo, pois toda a comunidade, do corpo à alma (...) sente o fato, e toda ao mesmo tempo sofre em conjunto com uma de suas partes.Assim , dizemos que ao homem lhe doi o dedo. E, sobre qualquer outro órgão humano, o raciocínio é o mesmo, relativamente a um sofrimento causado pela dor, e ao bem-estar derivado do prazer". Numa cidade livre e justa, ao mesmo tempo, "se a um dos cidadãos acontecer seja o que for, de bom ou mau, a cidade proclamará sua essa sensação e toda ela se regozijará ou se afligirá juntamente com ele"6 Vimos Platão chamar, nas Leis, o amor próprio como o "maior mal" que possa ocorrer na vida humana. Na República esta peste manifesta-se na cidade cujo caminho é tirania: ela é dilacerada, tornando-se múltipla em vez de una. O maior bem reside na vida unitária, como se enunciou acima para as dores e alegrias do ser singular e do coletivo. O pior malefício vem da individualidade posta acima do socia l, o maior bem ocorre com a união proporcionada pela

amizade. Somos derrotados pela tirania alheia, porque nos dobramos diante de nossa própria tirania. Porque só gostamos de ouvir elogios, proibimos nossos amigos verdadeiros de nos mostrar a verdade, somos todos semelhantes ao rei sem roupas da fábula moderna. Seria preciso uma criança, sem treino na dissimulação e na lisonja, para indicar o ridículo de nosso estado. Mas como somos reis despidos, todos nós exigimos elogios às nossas magníficas roupas. Pior: como ninguém enxerga a própria nudez, rimos com a falta de vestimenta alheia.Platão reserva o riso e a comédia para escravos. Hobbes considera o riso execrável, justo por isto: ele seria a demonstração de que somos lobos cruéis, ou hienas, nada mais. Na polis que se dirige para a tirania, cuidamos de nossos negócios, o resto não importa ou é motivo de caçoada. Nela, a nossa "liberdade" pessoal e nossos bens, materiais e anímicos, são tudo. O resto não conta. Quando leio a descrição platônica da cidade democrática, lembro- me do liberalismo ou do chamado "neo" liberalismo, com seus "executivos financeiros", jovens e belos, destruindo investimentos produtivos e produzindo apenas dividendos nas bolsas, com uma deliberada ignorância do coletivo. Os anos de individualismo desenfreado abrem caminho para o coletivismo brutal. Os anos loucos, ao redor de l920, produziram gente que dançava e bebia sobre o desemprego e o desespero de milhões. Logo após, tivemos as mais espantosas tiranias que o ser humano já conheceu. Vivemos os anos setenta e oitenta sob o signo do mercado absoluto, onde indivíduos espertos valem mais do que empreenderores e operários. Na ciranda financeira ocorreu uma glamorização que, adulando jovens executivos apresentou seu modo de vida como paradigma a ser mimetizado. Não espanta se os frutos começam a surgir, nos movimentos neo-fascistas que se tornam governo, impondo uma nova forma de controle social, abolindo a liberdade dos pobres, dos estrangeiros, dos homosexuais, em primeiro lugar. Depois, seguir-se-á a perda da liberdade coletiva. Repetindo Platão, citado acima: "O excesso costuma ser respondido por uma mudança radical, no sentido oposto, quer nas estações do ano, quer nas plantas, quer nos corpos, e não menos nos Estados". Liberdade em excesso conduz à servidão em excesso, "para o indivíduo ou para a cidade". 7 Com Platão, encontramos algumas razões da imitação perversa entre estudantes e professores, a qual insere-se numa perversão mais ampla, política, onde a lisonja desempenha papel nuclear na passagem da democracia para a tirania, com a perda do sentimento de ser cidadão. O tirano mais perigoso está em nosso próprio ego, desejoso de se impor ao todo, dilacerando-o. Plutarco, num dos mais importantes tratados políticos do Ocidente, mostra que a lisonja impede o princípio fundamental da sabedoria, o "conhece-te a ti mesmo" délfico.8 Esta cegueira, individual e coletiva, marca uma ética escrava. Colaborando com ela, através da lisonja e da demagogia, professores e homens públicos preparam reinos de medo e de mentiras, baseados na propaganda e na inimizade entre cidadãos. A amizade, deste modo, é princípio político que tece uma ética da liberdade sem licença, cuja disciplina deve ser ensinada, e ministrada com o primeiro alimento. Produzir indivíduos absolutamente livres é loucura que só pode levar à ruina social e à desgraça destes pobres idiotas. Sem amizade, a vida se transforma em inferno, onde o perigo reside nos outros, para falar como Jean-Paul Sartre. Se todos temos a possibilidade de nos transformar em tiranos, o governante que resulta de nossa idiotia coletiva se caracteriza pelo aspecto mais detestável de todos nós: sobreviver às custas dos outros.Este traço, que nega a amizade na política, foi discutido durante séculos no pensamento filosófico, de Platão aos nossos tempos. Se consultarmos um autor eminente, Elias Canetti, nele encontraremos uma reflexão acuradíssima sobre o problema. Lembro que amizade e inimizade foram tema de constrangimento estatal sobre povos inteiros, no século vinte dominado pelo nazismo e pelo estalinismo.No lado nazista, basta recordar as depurações étnicas geradas pela loucura "científica", a qual decidiu quem poderia ser "amigo" do povo Alemão e de seu Líder. No plano jurídico, tais sandices tiveram seu profeta em Carl Schmitt, sobretudo no texto grávido de horrores

cujo título é "O conceito de Guerra e de Inimigo" (l938). Alí se diz que no período da guerra total (Schmitt é o inventor do têrmo "totalitário"), "mesmo setores extra- militares (economia, propaganda, energías psiquicas e morais dos combatentes) são envolvidos nas hostilidades. A superação do dado puramente militar comporta não só uma ampliação quantitativa, mas um reforço qualitativo, acentuando a hostilidade. (...) O conceito de amigo e de inimigo tornam-se por si mesmos novamente políticos e se liberam (...) da esfera dos argumentos privados e psicológicos" 9 Conhecemos os resultados desta teoria sobre o amigo e o inimigo: a guerra total abatendo-se sobre civís e sacrificando, com predileção assassina, seis milhões de judeus, mais os ciganos, e outros povos "inferiores". No lado estalinista, do próprio Stalin até Ceaucescu, passando pela "pequena e heróica Albânia", para atingir os porões aterrorizantes da Stasi alemã, há muito o que dizer sobre a distinção entre os "que são amigos ou inimigos do Povo". O tirano da hora, o infalível Partido, declarava quem era amigável ou hostil ao proletariado. Em l939 a loucura chegou ao ponto do estalinismo proclamar Hitler amigo da massa operária mund ial. "Estratégia" do gênio onisciente que dominava no Kremlin, ou cinismo de potência, o resultado foi uma enorme pilha de cadáveres na Polônia e alhures. Hitler ou Stalin, com seus êmulos menores e piores, são possibilidades sempre abertas quando não se reflete, em termos éticos, sobre a questão da igualdade cidadã, à luz das noções de amizade. Um concidadão jamais brota da natureza : ele é formado num longo processo educativo, para aprender a relativizar seus desejos e seus impulsos tirânicos. Uma pessoa que não foi educada para a cidadania, quando assume postos de governo, não pensa no coletivo, mas apenas na sua própria egoidade. Ela se torna um sobrevivente à custa de todos os demais. Para este tipo de governante, é pouco significativo que milhões morram ou sejam massacrados. o que lhes importa é sua manutenção nos cargos de mando. Imanuel Kant, nos seus escritos pedagógicos, repete as lições de Platão, de Erasmo de Roterdam, de J-J.Rousseau : se uma criança de berço chora, dizem estes autores, é preciso acudí- la, para saber se experimenta alguma dor ou incômodo. Se no dia seguinte o choro se repetir, e não for encontrado motivo para ele, deve-se deixar que o infante berre a vontade. Deixar-se dominar pelo seu berro é educá- lo para a tirania de sua vontade. Se ele não encontrar obstáculos ao seu anseio de mando, e não perceber que outros existem no mundo, ele acarinhará cada vez mais o próprio ego, às expensas dos demais. Todo sujeito humano, pensa Kant, precisa encontrar limites à sua vontade, para se tornar realmente um sujeito livre, e não arbitrário e despótico. Quem se acostumou com o arbítrio do próprio eu, não imaginará ser estranho que outros sejam submetidos ao querer despótico de um professor, de um governante, ou de...um Deus. A liberdade, arremata Kant, ergue-se sobre o respeito sublime pela nossa própria pessoa, e pela pessoa de nosso igual. Erasmo de Roterdam dizia, no seu tratado sobre a educação do principe, que os cavalos seriam um ótimo exercício contra as tendências tirânicas do futuro go vernante: as alimárias, desconhecendo a lisonja, jogam para fora da sela quem, principe ou plebeu, não obedece as regras da equitação. São translúcidas e impiedosas as páginas dedicadas por Elias Canetti à analise do amor de si, da amizade e do poderoso como sobrevivente. Lemos em Massa e Poder: "na sobrevivência, cada qual é inimigo do outro; comparado com este triunfo elementar, qualquer outra dor não tem muita importância (...) o sobrevivente deve estar sozinho diante de um ou de vários mortos. Ele se vê só, sentindo-se só, e, quando se fala do poder que o momento da sobrevivência lhe confere, jamais devemos esquecer que ele deriva da sua unicidade (os grifos são de Canetti) e somente dela". Todos ficamos satisfeitos quando nosso corpo e alma sobrevivem aos demais. Um monte de cadáveres estimula nosso sentido de sobrevivência isolada. Testemunhamos uma pedagogia assassina e genocida da imagem, na imprensa que exibe corpos de assassinados. Os que sobreviveram se comovem na pele, mas no íntimo, o mais frequente é o regozijo, inconfessável, pelo massacre dos outros. As cenas dos caixões do Carandiru ou da Candelária, excitam os que vivem. Quando ocorreu em São Paulo o incêndio do Edifício Andraus, repetido pela destruição do Edifício Joelma,

a massa humana que rodeava as construções excitava-se, como num jogo erótico, todas as vezes que um infeliz se precipitava no ar, esfacelando-se nas calçadas. Não faz muito tempo, o programa "Aqui e Agora" filmou e exibiu o suicídio de uma jovem no centro de São Paulo, as cenas fariam o Marquês de Sade parecer um casto e respeitoso defensor dos direitos humanos. Laurent Dispot, escritor francês preocupado com os nexos entre a mídia televisiva, o terrorismo. a educação cidadã, dizia que o máximo da violência ocorrerá qua ndo um refém fôr executado, pelos sequestradores, diante das câmaras, ao vivo. Não estamos longe deste evento, aumentando a audiência da televisão que tiver esta ventura. "A satisfação de sobreviver" afirma Canetti, "uma espécie de volúpia, pode transformar-se numa paixão perigosa e insaciável. Ela cresce de acordo com as ocasiões. Quanto maior for o monte de mortos diante dos quais alguém ergue-se com vida, quanto mais frequentemente se viver estes momentos, tanto mais intensa e mais imprescindível torna-se esta necessidade de sobrevivência". Se todos os entes humanos partilham essa loucura, o poderoso a eleva ao máximo. Todos os governantes, de um modo ou de outro, "fingem estar encabeçando a marcha de seus subordinados para a morte. Na verdade os enviam na frente para eles próprios poderem salvar a própria vida. O ardil é sempre o mesmo. O condutor quer sobreviver, ele se fortalece nisto. Quando tem inimigos aos quais possa sobreviver, muito bem; quando não os tem, continua tendo seus próprios amigos. De qualquer forma, ele utiliza ambos, alternadamente ou de uma só vez. Os inimigos são utilizados abertamente, afinal, é para isto que eles são inimigos. Os amigos só podem ser utilizados às escondidas". Uma pergunta que raramente é respondida, quando se trata da sobrevivência política, é relativa ao que ocorre depois de nossa morte física. Os poderosos querem sobreviver na lembrança dos homens, mas não raro esquecem que os me ios utilizados para este mister farão deles imagens aterrorizantes do medo, do pavor, da morte. Ou da covardia. Quando vivos, os aduladores dão- lhes uma espécie de "imortalidade" forçada. É o que se passou com o Fuhrer, com o Pai dos Povos soviético, com o Grande Timoneiro chinês, com o Pai dos Pobres brasileiro. Este último foi conduzido, pelos bajuladores, à "imortal" Academia de Letras. Mas quando seus corpos desaparecem, a verdade bíblica a seu respeito surge impiedosa : "Tu és pó, e ao pó restornarás". É preciso, no ensino da cidadania, mostrar que a imortalidade, caso não seja religiosa e aí cada crença possui uma doutrina própria e se refira à vida civil laica, secular, só pode ser atingida através da elevação da alma, e não de sua venda no leilão econômico, político, ideológico. Um país que não valoriza, na formação de seus jovens, os dotes do espírito, os dons intelectuais, está fadado à morte, à insignificância. Elias Canetti termina o seu capítulo sobre a sobrevivência e as armadilhas da amizade, discutindo o trabalho intelectual, filósofico e literário. O escritor, e Canetti toma Stendhal como exemplo, escreve no presente para poucos, sabendo que muitos o lerão no futuro. Ele continuará existindo quando os outros estarão mortos. Mas o escritor não mata ou manda matar os seus rivais, como o faz o governante tirânico. Ele opta pela companhia dos que são autores de obras lidas ainda hoje, "daqueles que falam conosco, dos quais nos nutrimos". Deste modo, no mundo da escrita artística e especulativa, "matar para sobreviver nada significa (...) porque não se trata de sobreviver agora mas, sim, de entrar na liça apenas dentro de cem anos, quando já não se estará mais vivo pessoalmente e, por conseguinte, não se poderá matar. Serão as obras que se enfrentarão, e será tarde para acrescentar alguma coisa. A rivalidade propriamente dita, a que realmente importa, começa quando os rivais já não estão presentes. o combate que será travado por suas obras nem sequer poderá ser presenciado por eles. Mas esta obra precisa existir, e para que exista deve conter a maior e mais pura medida de vida. Não apenas se desdenhou a possibilidade de matar; fez-se com que entrassem para a imortalidade todos os circunstantes. Para aquela imortalidade onde tudo se torna efetivo, tanto o menor quanto o maior".

É fantastica essa oposição entre a sobrevivência do grande escritor e a sobrevida gozada pelo poderoso. Ensinamos, nas nossas escolas e famílias, em demasia, as artes de sobreviver no mercado econômico ou político. Esquecemos de expôr o caminho da sobrevivência verdadeira. Maquiavel afirmava entrar em seu escritório, à noite, depois de uma vida diurna prosaica e sem maiores méritos, para conversar com Platão. É semelhante reino da cultura, o qual Hegel nomeava a corrente dos grandes pensadores que definem o espírito do mundo com seus "heróis do pensamento", é este o plano visado por Canetti, ao descrever a sobrevivência almejada pelo homem de bem, o cidadão na sua plenitude. "Trata-se", diz Canetti, " do oposto daqueles donos do poder que arrastam consigo para a morte tudo o que os cerca (...) Eles matam em vida, matam na morte, um séquito de mortos os acompanha para o além". Contra as manobras para a sobrevida do político demagogico ou tirano, temos a sobrevivência do escritor. "Quem abrir um volume de Stendhal torna a econtrá- lo juntamente com tudo o que o rodeava, e o encontra aqui nesta vida. Assim, os mortos se oferecem aos vivos como o mais nobre de todos os alimentos. Sua imortalidade acaba sendo proveitosa para os vivos, nesta reversão da oferenda aos mortos, todos acabam sendo beneficiados. A sobrevivência perdeu seus aspectos negativos e o reino da inimizade chega ao fim"10 Os senhores podem perceber, agora, porque evoquei longamente o ensino, a lisonja, a amizade, a demagogia, o excesso que conduz ao regime tirânico, como intróito para a questão do vínculo entre educação e cidadania. A escola brasileira, do primário à universidade, desde seu início, colocou-se entre duas éticas opostas, a do sobrevivente político, continuada pela ética do sobrevivente dos negócios, e a ética do trabalho espiritual, com uma dimensão diversa do tempo. Mas este prisma não é privilégio brasileiro.Torna-se muito instrutivo ler os textos do Prof. Jacques Le Goff sobre o nexo entre universidade e poderes na época de sua gênese. Em meu livro intitulado Lux in Tenebris procurei acompanhar as notas do historiador , mostrando que a universidade, do Renascimento em diante, assumiu a ética da formação dos técnicos e dos manipuladores do poder. Com o reitor Gerson, a Universidade de Paris chegou a elogiar o tirano, "desde que os habitantes do reino durmam sossegados, sem perder suas galinhas". Le Goff mostra que os campi tornaram-se "polícias", servindo para reprimir os engenhos inventivos que semearam a Europa na Renascença e na modernidade. Basta, para indicar o quanto os campi estiveram longe da gênese democrática e do saber moderno, enumerar os pensadores decisivos para o engendramento de nossa cultura mais elevada, notando que eles pensaram fora e contra a universidade. De Bacon até Sartre, passando por Descartes, Espinosa, Pascal e tantos outros, com raras exceções acadêmicas, como Kant e Hegel, o essencial da cultura deu-se extra muros, longe das reitorias e dos conciliábulos burocráticos da universidade. Qualquer estudioso da filosofia enrubesce ao ler a carta de Espinosa ao Eleitor Palatino, rejeitando uma cátedra em Heidelberg, porque recusava aceitar um limite para sua liberdade de pensamento. Quantos intelectuais, hoje, possuem esta coragem ética e cidadã? Mesmo Kant, professor apegado às salas de aula, criticou com virulência a universidade de seu tempo, submissa à Igreja ou ao Estado e contrária ao saber.A sua obra imortal, O Conflito das Faculdades que lhe valeu muita dor de cabeça, junto com A Religião nos Limites da Simples Razão, é um libelo contra as faculdades que servem para manter a sobrevivência dos poderosos. As ditas faculdades, sabemos, eram a de Teologia, Direito, Medicina. Excluindo a Teologia, hoje um pouco desprestigiada junto aos governos, as outras continuam a tradição de produzir especialistas em domínio legal, enganando a massa com normas jurídicas não raro sofísticas, com base na força física inconfessada. As faculdades de medicina continuam produzindo milhares de pessoas interessadas no lucro a ser extraído do Estado e dos particulares. Como o governo é mau pagador, quem termina enriquecendo os discípulos de Hipócrates são os particulares.

Há muito que refletir sobre a união entre o ensino "especializado" nestas Faculdades, e a caixa registradora.Sempre que ouvimos a pergunta, nos consultórios médicos: "com recibo ou sem", devemos nos interrogar a respeito do ensino ético dado a estas pessoas, e acerca de nossa responsabilidade social. Num país onde 50% dos impostos são sonegados, torna-se urgente discutir os métodos e as bases axiológicas que produziram indivíduos que traficam com a saúde. Por outro lado, os que se dedicam ao público, como os professores secundários e médicos do serviço oficial, ou abreviam sua estadia nos ambulatórios e salas de aula, na busca de sobreviver com os famosos "extras", ou são tratados pelos governantes como profissionais de última categoria. Com isto, se degrada não apenas os serviços, mas o ensino sobre o valor da vida humana e da cidadania. Na oposição entre os dois alvos a submissão aos poderosos ou o trabalho para a cultura reside a força que dirige a sociedade para o plano imortal, que servirá para alimentar (gostaria, se me permitem, lembrar as notas platônicas sobre a comida, as quais abordei no seu vínculo com o ensino, no começo) as pessoas que viverão daqui a mil anos, ou ajudará a produtividade que traz dinheiro e honras para os poderosos . Hoje, nas escolas, enfrentamos duas pressões. A primeira, cada vez mais tênue, é a da grande cultura científica e técnica que produziu Platão, Leonardo da Vinci, Leibniz, Espinosa, Descartes, Diderot, as Luzes. A outra vem dos que vivem para a inimizade e para a destruição do que é uno na sociedade e na política. Com isto, em nossas escolas agonizantes (não sou trágico, apenas expresso o que existe), some a idéia de unidade do saber e da prática cidadã. Com isso, enfrentamos outro problema: a educação técnico-científica das massas. Desde o Renascimento produziu-se o sonho de uma difusão universal do saber, podendo-se mesmo falar num "milenarismo" científico-pedagógico. Bacon, Comenius, Erasmo, estes nomes são conhecidos pelos historiadores da educação. Um trabalho importante, nesta linha, é o livro de Charles Webster, The Great Instauration, Science, Medicine and Reform, l626- l660.11 Nele esgotam-se as análises das sugestões da frase profética lida no livro de Daniel (l2,4): "Plurimi pertransibunt et multiplex erit scientia". Vale a pena lembrar o trecho inteiro: "Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão , uns para a vida eterna, outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios resplandecerão, como o fulgor do firmamento, os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrêlas sempre e eternamente. Tu, porém, Daniel, encerra as palavras e sela o livro, até ao tempo do fim; muitos o esquadrinharão, e o saber se multiplicará" (trad. João Ferreira de Almeida). Este grito de guerra, ligando saber e vida nova, dominou a Europa científica e pedagógica, no mesmo instante em que as escolas, inclusive as universidades, serviam aos poderosos da hora, a Igreja oficial e o Príncipe. Desse brilho profético e pedagógico surgiram as Luzes, no século l8, movimento dividido entre adeptos de um saber acessível a poucos e os propagandistas de um saber ampliado ao maior número possível de pessoas. Infelizmente, no Brasil, como não pudemos recolher toda a herança das Luzes, apagadas pela repressão militar e policial na Colônia, costumamos denegrir este movimento, ligando-o unicamente à famosa burguesia. Parece- me muito estrito e estreito este juízo, sobretudo porque a ausência dos saberes foi suprida pela ignorância fabricada nos governos e nas sacristias. Perdoem- me os defensores da pedagogia jesuítica e dos supostos benefícios trazidos pelos inacianos ao Brasil. Mesmo aceitando sua contribuição para atenuar a barbárie dos colonizadores - e isto é matéria disputada em plano histórico - a política global de nosso colonizador dirigiu- se para afastar nosso povo do entusiasmo gerado no Renascimento e na modernidade européia. E isto afastou de nós a prática cidadã. O resultado está aí : massas analfabetas conduzidas, na política, através de novelas e de noticiosos demagógicos. Quem, entre nós, é cristão, tem muito o que pensar sobre o peso eclesiástico nesta idiotia generalizada da massa brasileira. A crença nos milagres, que a Igreja sempre procurou administrar com prudência, aqui adquiriu foros de realidade permanente. Basta

lembrarmos os anos do milagre ditatoriais, sob o mago Delfim, o plano Cruzado, a salvação collorida, a adesão a-crítica e desesperada aos "planos". A fórmula é tudo, menos raciocinada: "tem que dar certo". Esta é mais uma "épode", como diriam os gregos, um encantamento repetitivo que hipnotiza a massa e muitos intelectuais, retirando- lhes a capacidade de pensar. O pêndulo entre adesão misóloga e desencanto absoluto corrói a cidadania brasileira. Todo governante responsável, antes de impôr esperanças messiânicas ao povo, deve refletir muito sobre esta corrosão que opera em longo prazo, destruindo a fé pública, conditio sine qua non de qualquer Estado democrático. Há quem ache graça nas manifestações de cinismo no povo, do tipo: "ele rouba, mas faz.". Isto não prenuncia uma gente livre e franca. E a franqueza é atributo essencial da liberdade. Os que hoje utilizam o poder com regras casuísticas, deseducam o povo, no desejo de ganhar eleições. Esta atitude corrompe todas as fibras da república. Os poucos privilegiados pela situação econômica brasileira, estruturalmente injusta, com seus carros Audi ou BMW, suas canetas Montblanc, seus telefones celulares, o famoso "kit imbecil", não sabem que engenhocas "modernas" não substituem a lealdade e a franqueza amiga, fundamento essencial da cidadania. A classe média brasileira, sobretudo a que se alimenta dos despojos internacionais da produção efetiva, é flutuante e aduladora. Como todo segmento sem capital próprio e sem as mãos como único recurso de vida, ela vive, como diria um hegeliano, "em outro", ou, como poderíamos dizer, "de outro", como vampiro pós-moderno. Se a classe média é presa da idiotia, de outro lado não podemos esquecer as tentativas fracassadas para produzir e comunicar saberes urgentes ao povo. Num artigo sobre o pensamento de Diderot, Roland Mortier relata os projetos feitos por este último de produzir uma "filosofia popular". Um texto anônimo, atribuído a Dumarsais, lembra Mortier, intitulado Essai sur les Préjugés, enfureceu Frederico II, um dos poderosos sobreviventes mais adeptos de mentir ao povo dentre os que já existiram no planeta. Todos conhecem a pergunta, formulada por Frederico, sobre se é lícito mentir ao povo. A resposta do militar e burocrata moderno é óbvia, ela já existia antes dos textos chegarem à Academia Prussiana. Frederico lê Platão seletivamente. Dele, reteve apenas que só ao magistrado é lícito mentir ao povo. O resto e o entorno foi jogado às traças. O autor do Essai sur les Préjugés mostra que não existe política sem verdades ditas à população. O intelectual deve a verdade aos seus semelhantes, aos concidadãos, ao gênero humano. "Ele é desumano e sórdido quando recusa partilhar com eles o tesouro que descobriu". Cabe ao Estado, mantido pelos cidadãos, expandir o conhecimento descoberto pelos cientistas. Assim, a "experiência e o hábito chegam a facilitar ao homem do povo, ao mais grosseiro artesão, operações muito complicadas.Temos, pois, o direito de duvidar que o hábito e a experiência lhe facilitem do mesmo modo os conhecimentos mais simples dos deveres e da moral e os preceitos da razão, dos quais evidentemente depende sua felicidade?".Note-se a insistência no termo "hábito", tanto para a vida científica quanto para a vida moral. Não por acaso este é o termo que, em nossas linguas modernas, ut ilizamos para traduzir a palavra grega "ethos". Sem estes hábitos, o homem do povo fica preso as paixões dos poderosos, ou se entrega às próprias paixões. Neste ponto, nosso autor anônimo apresenta uma dúvida que até hoje, ou talvez, sobretudo hoje, atravessa nossa prática educativa. Os livros úteis, diz ele, parecem não terem sido escritos nem para os grandes, nem para os pobres. "Uns e outros quase não costumam ler. Os grandes, diga-se, acreditam-se interessados com a perpetuação dos abusos, e o povo miúdo não raciocina". Deste modo, conclui o autor, "todo escritor deve ter em mente a parte média de uma nação".12 Todo o esforço das Luzes foi o sonho de tornar acessível o saber ao maior número. Até hoje suas sugestões estão aí, recusadas que foram pelo clero conservador e seus êmulos, e assumidas pelos liberais democráticos e socialistas, herdeiros da utopia científico-pedagógica renascentista. Roland Mortier reflete, na obra citada, sobre o fracasso do "projeto" diderotiano de uma filosofia popular. Ele mostra que duas ordens de fatores definiram este fracasso. Primeiro, a separação feita

sobretudo pelos ideologues, herdeiros da Enciclopédia, mas limitados nas suas pretensões pelo governo tirânico de Napoleão I entre técnica e pesquisa teórica. Esta redução extraiu a profundidade nas suas exposições "científicas". Outra causa é a que já foi indicada: imaginando-se uma elite separada e acima do povo, sobretudo na época da Contra-revolução termidoriana, o grupo dos acadêmicos separou-se das camadas populares. Se tiveram brigas com o grande tirano, não é menos verdade que tinham medo da união com o povo miúdo. O reinado das massas, com Robespierre e a máquina inventada pelo Dr. Guillotin, ainda estava fresco na memória. Depois desse momento, houve a corrida dos socialistas utópicos, todos se imaginando pastores científicos da multidão proletária, com direitos à infalibilidade na condução dos negócios sociais. Neste clima, o comtismo, com seu "poder espiritual", projetou um ensino técnico redutor da cidadania. É conhecido o mote positivista sobre o operário que é cidadão apenas no interior da fábrica. O marxismo, pensamento científico nos moldes do século passado, não escapou da separação entre elites pensantes e massa dirigida. Nas experiências ocorridas de fato, e não nos escritores vencidos, ele aprofundou o abismo entre pesquisa e população. Enquanto tudo isso ocorria, a universidade seguiu seu passo de tartaruga, imprecando as massas por sua ignorância, e aderindo sem vergonha aos vencedores da hora. O fisiologismo universitário seria matéria de uma longa pesquisa histórica e sócio-psicológica. Até hoje enfrentamos um problema fundamental: como assumir o desafio da necessária formação técnica e cidadã das massas, conditio sine qua non de sobrevivência coletiva no século 2l ? Uma pergunta continua de pé: qual a base ética das nossas escolas, do ensino elementar à universidade, para produzir o ensino profissionalizante, se nelas o que se visa é a produção de elites, elites estas, diga-se, cada vez mais degradadas e proletarizadas? Estes desafios se emaranham na reflexão sobre o ensino da cidadania. Não tenho resposta para tais pontos. E considero mentiroso quem diz ter soluções rápidas e seguras para semelhantes aporias. Penso que uma saída é o empenho junto aos partidos democráticos, pelo menos em setores deles, para que se transformem em educadores coletivos, com ajuda dos mestres, visando, em prazo longo, mudar a atitude das massas diante dos donos do poder. Para isto, a receita é a mesma recomendada por Platão: disciplina e escolha criteriosa dos objetos a serem estudados. Outro ponto desta receita é fugir da lisonja e da demagogia. Outra recomendação ética é a fornecida por Elias Canetti: deixar de fornecer apoio para a sobrevivência dos tiranos que "roubam mas fazem". Se nos desinteressarmos e não enfrentarmos o problema da formação técnica e cívica das massas, ficaremos sozinhos nos campi, nas igrejas, nos partidos. Sem assumir questões como a do ensino tecnico-científico, vinculado à cidadania e aos direitos humanos, ficaremos reduzidos à situação dos estabelecimentos italianos de ensino, em l803, quando Roma estava ocupada pelas tropas francêsas. Perguntado sobre a atitude dos governantes estrangeiros face às escolas públicas, um professor respondeu: "Elas são toleradas, como os bordéis"13 Se optarmos pelo "realismo", e pela busca de sobrevivência política ou economica individual, certamente não impediremos que nossas escolas se transformem em prostíbulos do espírito. Elas estarão em consonância com o que ocorre, às vezes, no Congresso Nacional. Mas para mudar, rumo ao melhor, o Parlamento, urge redefinir nossa prática cotidiana no universo escolar, na sociedade, nos partidos políticos. O que fizeram de nós, retomemos Sartre, pode ser modificado. Mas para isto é preciso disciplina, rigor cívico, espírito democrático. Esperemos que estes elementos aumentem em nosso convívio, se quisermos escapar, no milênio próximo, à pura e simples barbárie.

1. República, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Gulbenkian, 1980. 2. Gorgias, 464 c-e; Trad. francesa de Robin, L. Pleiade, T. I

3. Para todos estes pontos, cf. Pierre Louis, Les Metaphores de Platon, Rennes, Imprimeries Reunies, 1945. 4. Cf. Leis, V, 731 e. Trad. francesa Robin, L. Pleiade, página 784; trad. Loeb, página 338-339. 5. Cf. Fraisse, Jean-Claude, Philia, la Notion d' Amitié dans la Philosophie Antique, Paris, Vrin, 1984, página 169. 6. República, 462 a-e, trad. Gulbenkian, páginas 23l-233. 7. Cf. República, Ed.Loeb,Oxford, página 3l2; Ed. portuguesa Fundação Gulbenkian, página 399). 8. Cf. "De Discernendo Amico ab Adulatore" , ed. Loeb, Moralia,V.1, trad. Babbit, F.C., l986, página 267. Tradução brasileira Isis Borges B. da Fonseca. in Como Tirar Proveito de seus Inimigos. SP. Martins Fontes, 1997. 9. Cf. Le Categorie del 'Político', l972, Bologna, Il Mulino, páginas l93 e seguintes. 10. Massa e Poder. Ed. Universidade de Brasilia. 1986.Páginas 251-309. 11. London, Duckworth, l97511. London, Duckworth, l975 12. Cf. Roland Mortier, "Diderot et le Projet d'une 'Philosophie Populaire'. In Revue Internationale de Philosophie, "Diderot et l'Encyclopédie - l784- l984-, nº l48- l49, fasc. l-2, l984, páginas l82-l95. 13. Cf. Hegel, G.W.F. "Prefácio" à Filosofia do Direito, trad. francêsa de R, Derathé, Paris, Vrin, l975, página 53.

EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA: O CASO DO ENSINO SUPERIOR. Roberto Macedo Ecomonista e Professor da FEA – USP

Creio que fui convidado para participar deste debate e deste livro porque há pouco tempo escrevi um pequeno artigo sobre educação e cidadania no Estadão. Não tenho nesse assunto nenhuma sofisticação filosófica como a do Roberto Romano, mas alguns pontos que ele mencionou coincidem muito bem com aquilo que me preocupa. Começo pela percepção de que no Brasil, no meio de tanta coisa ruim, há algumas coisas boas acontecendo, em particular a ênfase na educação básica, particularmente no ensino fundamental. Até aqui a visão, talvez por pressão das elites, era muito voltada para o ensino superior. Agora, finalmente, parece que se acordou para o fato de que o importante é o ensino básico, começando do fundamental, se bem que ainda padeçamos de velhos vícios. Por exemplo, nessa última LDB-Lei de Diretrizes e Bases da Educação, envereda-se inicialmente pelo nominalismo. Antigamente estávamos acostumados com ensino de primeiro grau, que agora vai se chamar fundamental. Então, ficam trocando os nomes das coisas, sem nenhuma substância. Agora, o ensino de segundo grau vai virar ensino médio. No meu tempo era primário e secundário. Vira e mexe, trocam-se os nomes, mas a substância não muda nada. Agora, parece que ela mudou e é uma boa notícia, essa da prioridade do ensino básico. Mesmo com a prioridade, estou preocupado com o seguinte: nosso sistema de ensino é muito deficiente, particularmente com relação à educação para a cidadania. O que quero saber é se o aluno vai continuar só decorando coisas de Geografia, História, Matemática, Português e tudo o mais, e, depois, vai sair por aí jogando lixo na rua, atravessando o sinal de trânsito, brigando por qualquer coisa e por aí afora. E não é questão só de gente pobre, não. Às vezes você vê gente de Mercedes Benz jogando latas pelas janelas. Tenho conversado com pedagogos e reclamo: porque não tratam dessas coisas na escola? Eles dizem: a família é que tem que ensinar. Mas a família não basta, seria necessário prover isso também na escola. Ainda não vi questões como essas no meio dessa discussão sobre a prioridade do ensino básico. Agora, vamos prosseguir um pouco e depois entrar em coisas mais específicas. Nessa área da educação para a cidadania, outra coisa que me preocupa - e aí uso um conceito típico de economista - é a dificuldade, no Brasil, de termos a chamada racionalidade coletiva. O brasileiro se orgulha de ser muito espertinho individualmente. Somos todos muito inteligentes, ou usando uma linguagem mais popular, todo mundo se considera um bom jogador, um craque. Mas, na hora em que se tenta compor todos como um time, pensando no coletivo, não funcionamos bem. Tomar uma decisão com racionalidade coletiva, em particular quando se sacrifica o interesse próprio em prol do bem comum, é uma coisa extremamente difícil. Já passei pelo Governo Federal e era responsável por negociações de projetos de lei no Congresso, quando tinham conteúdo econômico. A gente chegava lá, e eu, na minha ingenuidade, achava que meu discurso, tão cheio de racionalidades, seria suficiente para convencer os parlamentares. Por exemplo, defendia a redução do déficit público, dizendo que seria bom para todos nós, pois baixaria a taxa de juros, cresceria o investimento, o emprego, a produção, etc. Os políticos achavam isso interessante, mas aí você recomendava A e eles faziam B. Por que? Porque os interesses eram outros, dominados pela racionalidade individual. Na hora de votar um teto salarial, o deputado às vezes está pensando nos dois contra-cheques que recebe, pois é aposentado e recebe como congressista. Se você somar os dois, bate no teto. Então, ele não vota a favor de um teto salarial. Depois ele tem uma parentalha que é funcionária ou aposentada, e algumas dessas pessoas ele indicou para os cargos que ocupam. Aí, ele não pensa no coletivo, vota como indivíduo ou como família, pensando como o teto afetará essas pessoas.

E não é só deputado ou senador, não. Quando você quer fazer uma coisa de interesse público, há pressão de empresários, de funcionários, tem de tudo, os mais variados grupos de interesse. A gente não consegue uma resultante desses interesses que tenha racionalidade coletiva, pois não temos uma força política dominante, capaz de impor-se como maioria. Por isso, estamos perdendo muito tempo. Assim, todo mundo pensa no interesse individual, quase ninguém no coletivo, e o país vai sofrendo com isso, porque não consegue tomar as decisões que poderiam tirá- lo do atoleiro em que se encontra.. É uma coisa que realmente me preocupa. Agora, como é que você resolve isso? Você vai apanhando, você sofre muito mais, porque não consegue sacrificar seu interesse em prol do bem comum, então todos vão sofrer mais tempo. Aí engana-se todo mundo. As finanças públicas vão demorar mais tempo para melhorar e o país vai demorar mais tempo para voltar a crescer. Gerações inteiras serão sacrificadas, particularmente as mais jovens, hoje com poucas oportunidades de bons empregos. Aliás, no momento estou escrevendo um livro sobre essa questão, uma orientação para os jovens, a respeito de como se posicionar com relação ao mercado de trabalho, que muda rapidamente e está fraco de oportunidades. O livro termina com uma proposta de reforma do ensino superior, deixando-se a escolha da profissão e da faculdade para depois do ingresso na universidade, e com adoção de currículos mais flexíveis nas várias especializações.1 A mensagem do livro é a de que os jovens estudantes podem ser comparados a surfistas. Para ter sucesso você precisa ser um bom surfista, ter uma boa prancha ou diploma, mas se não tiver uma onda para carregar, para lhe dar oportunidades, não irá a lugar algum. As ondas são as oportunidades e elas às vezes existem na sua praia ocupacional de engenheiro, economista ou advogado. Mas, se aí não tem onda, você deve procurar outra praia, como muitos estão fazendo. E deve-se também lutar pela grande onda, que seria conseguir impor racionalidade coletiva, tomando-se as decisões políticas necessárias para o país passar por um novo ciclo de desenvolvimento, que beneficiasse particularmente essas gerações que vieram depois das nossas, e que hoje estão numa posição muito sacrificada. Na nossa área de economia, existe na USP uma geração chamada de "o grupo dos Ph.Ds.". Vários viraram professores, empresários, profissionais de renome, ministros, secretários e outras posições de destaque. Foi uma geração formada no final dos anos 60, quando o Brasil estava crescendo muito rapidamente e havia muitas oportunidades e muitos recursos, inclusive para Mestrado e Doutorado no exterior. Então, nessa época havia muitas oportunidades, não só para esse grupo como para a sociedade em geral. Mas, agora, tudo secou. Essa geração se beneficiou muito, mas os seus filhos estão encontrando muitas dificuldades. O Prof. José Pastore, sociólogo que vocês devem conhecer, já começa a constatar uma mobilidade social para baixo. Vai ser muito difícil para os filhos da geração dos anos 60 e 70, que foram beneficiados com aquele período de forte crescimento econômico, alcançar o mesmo "status" dos pais, porque não há hoje uma grande onda que leve todo mundo para a frente, o que é resultado dessa dificuldade de tomar decisões coletivas que nós temos no Brasil. Essa dificuldade é parte da ausência de uma educação para a cidadania, que vai desde lidar com lixo até questões como essa do ajuste das finanças públicas que continua sendo procrastinado, impedindo a retomada do desenvolvimento econômico do país. Agora vou passar a um outro tema, mas dentro desse mesmo assunto. Para este debate, nós estamos numa faculdade de Direito, a do Largo de São Francisco, dita de uma universidade, a USP. Ou seja, num curso superior, numa escola de elite. Eu pergunto o seguinte: está correto isso? Você formar um advogado numa faculdade de Direito, isolado dos demais alunos da USP? Esses advogados vão ser privados de uma convivência muito importante, inclusive para conhecer outras coisas e outras pessoas, ao serem impedidos de conviver com seus "colegas" de universidade que buscam profissões diferentes. Essa integração dos estudantes de diversas áreas deveria ser parte da educação para a cidadania. O que acontece no Brasil é que jovens com 15 ou 16 anos são levados a

escolher uma carreira muito precocemente. Nessa idade, a pessoa não conhece nem a si mesmo, nem conhece as carreiras que pode escolher. Isso é uma violência, tomar um jovem nessa idade e dizer escolha isso, escolha aquilo, vá para o vestibular, tangindo o pessoal que nem boi em boiada. Mas não fica só nisso. Se ele chegar lá, vai encontrar uma estrutura curricular rígida, numa faculdade onde ficará isolado dos demais. Isso para mim não é universidade. No máximo, uma federação de faculdades, como a USP. Nos Estados Unidos, onde estudei na pós-graduação, todo mundo estudava junto, particularmente na graduação. Nesta, o estudante cumpre um currículo básico e, depois, se concentra numa área e aí obtém um diploma. Mas durante o curso convive com pessoas de outras áreas, passa por disciplinas comuns a várias áreas de concentração, e isso é uma coisa muito mais interessante, além de ser uma melhor educação para a cidadania. Aqui você forma gente em compartimentos estanques. Acho, aliás, que o caso mais trágico é o dos médicos, porque nós economistas, advogados, e outros, somos forçados, pela própria natureza da atividade, a conviver com outros profissionais e o mercado nos coloca diante de diferentes ocupações. Os médicos não. No primeiro ano, eles põem um avental branco, isolam-se dos demais em escolas com hospitais e tudo o mais e, a partir daí, acham que são donos da verdade em tudo que se liga com a área deles. Tome-se, por exemplo, o tema da saúde. Ele deveria ser tratado por profissionais de várias outras áreas, administradores, sociólogos, economistas, advogados, etc. Na administração, por exemplo, os médicos não deixam um outro profissional ser o administrador de um hospital. Eles deveriam ficar no consultório, na cirurgia, e deixar a administração para quem entende disso. Já levei acidentados, inclusive parentes meus, num ambulatório qualquer e, ao invés de atender as pessoas, primeiro os atendentes querem fazer ficha. Não há a preocupação de fazer uma espécie de uma linha de montagem que torne o processo mais eficiente e o hospital menos custoso. Por exemplo, um médico pode ter quatro ou cinco salas de consultório com o trabalho preparatório feito por enfermeiras ou assistentes médicas. A consulta acabaria sendo mais barata, pois se poderia atender mais pessoas em menos tempo. Já passei pela experiência de ter uma filha nos Estados Unidos. Lá você é tratado como se fosse numa linha de montagem. Você entra no hospital, recebe uma identificação e começa o processo. No caso de parturientes, eles põem um "kit" próprio na maca e ela vai sendo "processada". No fim, sai lá na frente com o bebê e, em dois ou três dias, já foi embora. Pode parecer estranho, mas é eficiente. Mas, voltando ao ponto: tem sentido esse isolamento em faculdades? Isso não é universidade. Até criei um nome novo. Isso não é um curso universitário; são cursos "faculdários", porque você faz os cursos em faculdades isoladas e se priva de convívio mais amplo, o que é muito ruim para formar a pessoa como cidadão, porque ele não tem noções de outras áreas, acha que é o dono de seu pedaço, e vai se isolando. Por outro lado, esse isolamento está cada vez mais incoerente com a forma pela qual se organiza o mercado de trabalho. Realizei uma pesquisa que mostra que as empresas não estão distinguindo muito as pessoas pelo diploma. Elas querem saber se elas resolvem problemas e, para a mesma ocupação, elas contratam, freqüentemente, gente de diferentes profissões. Aliás, uma coisa muito ignorada pelo jovem quando vai escolher profissões, inclusive assessorado por gente que dá orientação vocacional e tudo, é que o mercado se rege por ocupações, e não necessariamente por profissões. Assim, pedi a um grupo de empresas que indicassem, para várias ocupações, de secretárias a diretores, passando por encarregados de compras, chefes de vendas, supervisores de recursos humanos, e tudo o mais, quais os profissionais de curso superior que estavam contratando. E o leque encontrado foi muito grande, para a mesma ocupação. Isso mostra que não tem sentido ficar se especializando precocemente nisso ou naquilo, pois o mercado ignora essa especialização precipitada.

Por outro lado, as ocupações estão mudando e as nossas faculdades são sempre as mesmas. De vez em quando elas criam um curso novo, mas o mercado está em permanente expansão. Outro dia minha filha escreveu um artigo no Estadão, na parte de informática. Ela assinou o artigo como "web designer". Ela fez Arquitetura, foi para computação gráfica e faz "home pages" na Internet. É uma ocupação aberta a engenheiros, analistas de sistema, arquitetos, gente que faz Publicidade e Propaganda, e de outras áreas. Não tem sentido criar amanhã uma faculdade para "web designer". Mas, numa autêntica universidade, o estudante poderia compor o currículo mais adequado para trabalhar nessa ocupação, sem se prender a essa ou àquela faculdade. Tome-se um outro exemplo, o Itamaraty. Outro dia, uma jovem me perguntou - eu estava falando numa escola de segundo grau - que curso deveria fazer para chegar ao Itamaraty? Seria ideal que ela entrasse numa universidade, juntasse História, Línguas, Relações Internacionais e outras áreas. Daria menos trabalho para o Instituto Rio Branco, pois chegaria lá com um currículo mais adequado. Mas, não. Ela vai fazer Direito, vai aprender um monte de coisas que não têm o menor sentido para a carreira que deseja, e, depois, vai ter que fazer um cursinho para fazer o tal vestibular do Itamaraty. Agora, vejam o paradoxo: o Ministério da Educação, manda todo mundo estudar num nicho, nesta ou naquela faculdade, mas na hora de o Governo Federal selecionar gente para alguns de seus melhores cargos, como o de Auditor Fiscal do Tesouro Nacional, ele diz que vale qualquer diploma de curso superior. Mas, apesar de contraditório, isso é um avanço. Ou seja, o próprio governo percebeu que quer as pessoas mais competentes, independentemente do diploma. Agora, sabe o que acontece? Num dos últimos concursos de Auditor Fiscal do Tesouro Nacional, a maioria dos aprovados não foi de advogados, economistas, contadores e administradores, que antigamente dominavam esse concurso. 40% dos aprovados são engenheiros. Por que? Um engenheiro bem formado tem bom raciocínio lógico- matemático, é treinado para aprender e para resolver problemas. Então, num concurso que tenha Direito, ele toma uma apostila dessa área, "racha", chega lá e tira notas mais altas que muitos advogados. Essa é, então, a situação atual. O mercado não mais distingue os profissionais como fazia antigamente, mas as escolas continuam forçando uma profissionalização prematura. O que o mercado quer hoje? Qual é a situação da graduação, da pós- graduação atuais? Na graduação há muita especialização do aluno. Mas, há pouca amplitude de conhecimentos, ou seja, pouca capacidade de generalização. Como no caso dos médicos. Eles se isolam dos demais, só sabem Medicina e acham que entendem do resto. Então, o que estou propondo é que se reduza a especialização da graduação, dando- lhe maior amplitude de conhecimentos, e permitindo que o aluno faça a escolha de especialização mais tarde, já no terceiro ou quarto ano da universidade. Já a pós-graduação também é distorcida, porque ela toma o estudante, já com muita especialização, e dá mais, continuando precária a sua amplitude de conhecimentos. Agora, o que tem isso a ver com cidadania? Se se trabalhasse de outra forma, formaríamos melhores cidadãos. A especialização seria reduzida, e áreas como Medicina poderiam ficar para a pós-graduação, com o que teríamos profissionais mais capazes de se adaptarem às múltiplas ocupações do mercado de trabalho. Além disso, os estudantes teriam um convívio com seus colegas de outra áreas, compondo melhor a sua educação para a cidadania e para a sua própria cultura pessoal. O médico, por exemplo, ficaria alguns anos estudando com futuros engenheiros, advogados, etc., com perspectivas de tornar-se menos auto-suficiente. Já a pós- graduação seria tipicamente profissionalizante. Com isso, a educação seria melhor ajustada às exigências do mercado de trabalho e da cidadania. Tudo isso pode parecer meio distante, mas acho que tem muita relação com o que o Roberto Romano escreveu no seu artigo, porque se trata essencialmente de rever a maneira como as pessoas

são educadas. Ele cita Platão, dizendo que educar para a cidadania é como tingir almas. No caso do ensino superior, a tintura seria muito melhor porque, se conseguíssemos integrar seus alunos, formaríamos melhores cidadãos. As pessoas teriam um convívio muito maior, conheceriam mais aspectos de outras disciplinas, formariam um currículo mais heterogêneo e não teríamos coisas como essas de médicos querendo administrar hospital, nem de economistas falando tão mal de coisas que não entendem muito bem.

1. O título do livro é Seu Diploma, sua Prancha - Como Escolher a Profissão e Surfar no Mercado de Trabalho. São Paulo: Editora Saraiva, 1998 (no prelo).

SOLUÇÃO OU SONHO IMPOSSÍVEL? Aida Maria Monteiro Silva Professora da Universidade Federal de Pernambuco e membro da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos.

Ao analisarmos a questão da Educação para a Cidadania na tentativa de esclarecer se é uma solução ou um sonho impossível, entendemos ser necessário situarmos a compreensão que temos de educação, de cidadania, de direitos humanos, de democracia e de que contexto social estamos falando. Isto se justifica porque, nos últimos anos, enfocar a temática da cidadania em programas governamentais, não-governamentais e em propostas de diferentes partidos políticos virou um certo modismo e muitas vezes estas são apresentadas de maneira bastante ambígüa. Daí a necessidade de uma qualificação mais precisa desses termos. Sabemos que o Brasil é um dos países que mais tem avançado em termos dos ideais da democracia política. É portador de leis e signatário dos principais acordos e pactos internacionais de proteção dos Direitos Humanos, além de ser regido por uma Constituição (1988), que ampliou os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, ficando conhecida como a Constituição Cidadã. Além disso, conta com leis complementares relevantes como: a Lei de Diretrizes e Bases LDB, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e o Plano Nacional de Direitos Humanos que destacam a educação como um dos principais instrumentos de formação da cidadania. No entanto, a despeito do avanço da democracia no campo político, a sociedade brasileira convive com permanentes contradições - as diferentes formas de desrespeito e violações dos direitos humanos e a negação da cidadania pelo próprio Estado Brasileiro. Entre os desrespeitos, destacamos a não-garantia do acesso a todos os indivíduos ao Ensino Fundamental, público, gratuito, independentemente de idade, e este é um direito já assegurado constitucionalmente há várias décadas. Embora não possamos desconsiderar que tenha havido uma ampliação da escola pública, no final do Século XX, resultado de diferentes lutas sociais que vêm se desenvolvendo ao longo da história, o Ensino Fundamental ainda se apresenta como um direito apenas formal para uma parcela da população brasileira. A evidência desse fato está na persistência de elevadas taxas de analfabetismo. Aliada à questão da não- universalização do Ensino Fundamental, a sociedade brasileira convive com uma escola que apresenta baixo índice de produtividade. Segundo pesquisa realizada pela Ação Educativa de São Paulo e dados do Censo de 1991, no Brasil, 20% da população é analfabeta absoluta, ou seja, não sabe ler ou escrever. Na cidade de São Paulo, em uma amostra de mil pessoas entre 15 e 54 anos, 7,4% são analfabetos funcionais, sendo estes entendidos como pessoas que têm de 2 a 3 anos em média de escolaridade e não conseguem compreender textos básicos utilizados no cotidiano da cidade, como anúncios de emprego, por exemplo (Folha de S. Paulo - 8/9/97). A este quadro de baixo desempenho do Estado Brasileiro no campo educacional, associamse as precárias condições de vida as quais está submetida a maioria da população. As elevadas taxas de desemprego, de mortalidade infantil, de doenças endêmicas, da falta de moradia, saneamento básico e altos índices de violência urbana são evidências da exclusão dos direitos sociais básicos e da negação da cidadania dessa população.

Conforme dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento-1994), "o Brasil apresenta um desempenho medíocre em termos de desenvolvimento humano, principalmente se comparado à sua evolução econômica. E considerando os indicadores de saúde e educação, o Brasil teve um desempenho inferior à média mundial entre 1960 e 1992. Nos 32 anos, o mundo melhorou pouco mais de 40% seu desenvolvimento humano, enquanto a evolução do índice brasileiro foi menor 38%". É neste contexto que Fábio Konder Comparato (1989) questiona o significado de democracia em nosso país: se nós não temos asseguradas no Brasil as condições essenciais de vida à maioria da população, o regime democrático também é inexistente. Isto é colocado na compreensão da democracia enquanto regime político, alicerçado em dois grandes pilares: o da liberdade e o da igualdade e, conseqüentemente, no direito de justiça. A democracia é um regime que respeita a vontade da maioria, em total respeito aos direitos da minoria e aos direitos humanos. Mas, no caso brasileiro, ainda estamos distantes da materialização desse regime. A igualdade é aqui entendida enquanto garantia do acesso aos bens sociais, às condições básicas necessárias para uma vida digna a todos os indivíduos. Dessa forma, o regime democrático pressupõe a existência do regime republicano e a República significa o bem público, o bem comum, que atenda a todos igualmente. Acreditamos que a concretização de uma verdadeira Democracia requer dos cidadãos o conhecimento das causas e processos que determinam as injustiças sociais e, ao mesmo tempo, das alternativas coletivas de superá-las. E, no caso do Brasil, é imprescindível conhecermos a história da formação do nosso povo, cujas origens são calcadas no modelo escravocrata, do mando, da submissão, do poderio, dos privilégios e, conseqüentemente, da negação de direitos. Este é um dos primeiros passos para podermos superar este modelo de sociedade que predomina até hoje, pois, do contrário, tudo é possível ser justificado pela cultura do povo. DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA Historicamente os direitos humanos surgiram como uma tentativa humana de regular os conflitos de interesses e para disciplinar os conflitos de um modo geral. Eles foram estabelecidos porque há necessidade de se ter na sociedade o que se chama equilíbrio da ordem social, que pressupõe a existência de direitos e deveres para todos igualmente. Assim, conforme Maria Victoria Benevides (1994), os Direitos Humanos são aqueles direitos comuns a todos os seres humanos, sem distinção de raça, sexo, classe social, religião, etnia, cidadania política ou julgamento moral. São aqueles que decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca a todo ser humano. Independem do reconhecimento formal dos poderes públicos - por isso são considerados naturais ou acima e antes da lei -, embora devam ser garantidos por esses mesmos poderes. Direitos humanos são essencialmente públicos - porque são comuns a todos - e referem-se tanto a direitos da fruição individual quanto da fruição coletiva. Diferem-se radicalmente dos direitos exclusivamente entendidos como direitos individuais e particulares. Daí a diferença entre os direitos humanos e cidadania. Os direitos humanos são de todos os cidadãos, extrapolam uma nação, e por isso são universais e históricos, enquanto que a cidadania é regulamentada por cada Estado, pode variar de uma sociedade para outra, além de ser sempre uma conquista de cada povo. A cidadania é um conceito político cuja idéia está ligada à de participação política. Dessa forma, a cidadania é entendida como um conjunto de direitos e deveres que garante à pessoa humana a sua inserção na sociedade (Maria Victoria Benevides, 1994).

A partir dessas considerações, a Educação para a Cidadania é uma solução ou um sonho impossível? Sabemos que educar para a cidadania e, conseqüentemente, para os direitos humanos, é um grande desafio, especialmente para aqueles que acreditam e lutam por uma sociedade mais justa, mais igualitária e solidária. É preciso ter a crença, a utopia, a paciência impaciente, como dizia Paulo Freire, ou seja, a paciência histórica que nos permite entender os processos e limites das conquistas dos nossos direitos, mas também as possibilidades, que são engendradas no conjunto da nossa sociedade. Neste entendimento, a educação é vista como um dos princ ipais instrumentos de formação da cidadania, no sentido do pleno reconhecimento dos direitos e deveres do cidadão, enquanto sujeito responsável pelo projeto de sociedade na qual está inserido. Enquanto instrumento social básico, a educação possibilita ao indivíduo a transposição da marginalidade para a materialidade da cidadania. Ela é um dos atributos da cidadania, faz parte da sua essência. Não é possível pensarmos na conquista da cidadania sem educação. Compreendemos que é necessário discutirmos a cidadania do nosso povo a partir do reconhecimento que separa, de um lado, a própria consciência dos direitos do cidadão, e, do outro, a existência ou não dos mecanismos institucionais dos recursos para garantir a sua prática. Educar para a cidadania é entend er que direitos humanos e cidadania significam prática de vida em todas as instâncias de convívio social dos indivíduos: na família, na escola, no trabalho, na comunidade, na igreja e no conjunto da sociedade. Mas, se fizermos uma reflexão em termos das relações sociais, quais os valores que atualmente são mais cultivados? Como estão as questões do respeito e da solidariedade entre as pessoas? E a tolerância para lidar com o diferente? Estas são, portanto, questões que permeiam as vidas das pessoas enquanto sujeitos sociais e devem estar presentes no conteúdo da formação de qualquer indivíduo. E, de forma mais específica, como está a escola em nossa sociedade com relação a estas questões? Conforme Vanilda Paiva (1997), "a escola tradicional deu lugar a uma escola popular de massa, na qual não tem mais espaço para o cumprimento das regras e ritos tradicionais, onde a pobreza limpa de pequenas escolas cedeu lugar a escolões com péssimos padrões de manutenção". Se nessa escola direitos humanos eram eventualmente desrespeitados, a escola que hoje temos apresenta muito maiores chances de desrespeitos desses direitos. Segundo essa mesma autora, o processo de democratização do acesso à escola pública se deu ao mesmo tempo em que as cidades cresceram e nelas difundiu-se a arma de fogo, o tráfico de drogas, as disputas armadas entre os grupos e a escola chega a ser até local de armazenamento de armas e munições. Esta situação atinge sobremaneira a vida escolar, especialmente refletindo no seu trabalho. No entanto, é nas diferentes formas de violência física e verbal entre os alunos e entre estes e professores que os direitos humanos são fortemente desrespeitados. Há uma cultura da valentia e da repressão/desrespeito dos mais fracos e dos menores. Em pesquisa feita por Vanilda Paiva (1997) nas escolas do município do Rio de Janeiro, a agressividade verbal e de comportamentos entre alunos assume grandes proporções. Atitudes como jogar restos de comida e cuspir nos pratos uns dos outros em momentos de recreio e frases do tipo "cala a boca seu negro safado!", "seu gordo nojento" são comuns. Em relação às atitudes dos professores para com os alunos, também apresentam tom de agressividade, rejeição e de preconceito, principalmente em momentos de

conselho de classe, em que o professor se sente mais livre para emitir opiniões tais como: "C é um vegetal, não entra em contato com a turma"; "A e D chegaram do nordeste esse ano, entram mudas e saem caladas, morreram e se esquecerem de deitar"; "em pleno mês de maio me aparecem uns estrupícios aqui, não sabem de nada". Por outro lado, as agressões dos alunos para com o professor também estão cada vez em números maiores, com formas diferenciadas, desde as reações de desrespeito verbal até a física. Os resultados dessa pesquisa vêm corroborar com os achados de um estudo que desenvolvemos em seis escolas do município de São Paulo, sobre a violência nas relações sociais no interior da escola. Fica evidente que a violência simbólica no fazer pedagógico está presente. Os alunos percebem essa forma de violência ao afirmarem que os professores não os respeitam como sujeitos de direitos e também esse respeito não acontece entre os alunos e destes para com os professores (Aida Silva, 1995). Mas é também no interio r da profissão que o profissional da educação se vê cada vez mais desrespeitado, desconsiderado, desestimulado e violentado nos seus direitos. As políticas governamentais vêm contribuindo para sucatear a profissão docente e desmoralizar os educadores de um modo geral, com medidas que acabam com conquistas históricas da categoria. É POSSÍVEL EDUCAR PARA A CIDADANIA ? Concordamos com Vanilda Paiva (1997), quando ela afirma que "assegurar os direitos humanos dentro das escolas depende, portanto, do nível em que a sociedade logra assegurá-los fora da escola. O espaço escolar foi dessacralizado, tornou-se um espaço como qualquer outro, reflexo da sociedade em que a escola se insere e do seu entorno imediato. Defender os direitos humanos na escola tem hoje, portanto, as mesmas conotações e oferece dificuldades que a sua defesa encontra na sociedade em geral. Defendê-los universalmente passando pelas escolas supõe também a disposição de reconstruir a escola pública como instrumento verdadeiramente democrático de construção de uma sociedade marcada por uma maior eqüidade". Mas, isto só é possível se a educação possibilitar a sensibilização, a percepção e a reflexão, que possam provocar a conscientização no indivíduo, fazendo valer o pressuposto, como diz Hannah Arendt (1988), de que "cidadania é a consciência que o indivíduo tem do DIREITO A TER DIREITOS". Neste sentido, a escola é um espaço privilegiado desse processo de conscientização ao trabalhar com o conhecimento, valores, atitudes e formação de hábitos. Entendemos que a educação para a formação da cidadania não pode ser vista como solução para todos os males da sociedade, pois a educação engendra-se no conjunto da sociedade e, conseqüentemente, reflete o modelo em que a mesma se estrutura. Por outro lado, a educação para a cidadania é um sonho possível, sim, se acreditarmos que a história é feita pelos homens e que, portanto, está em permanente modificação e reconstrução. Neste sentido, acreditamos que um projeto de escola que tenha como compromisso a formação da cidadania deve levar em conta : 1- que a educação formal, enquanto direito de todos, é condição essencial à formação da cidadania e tem na escola o seu espaço privilegiado. Lutar pela conquista da escola pública de qualidade é antes de tudo lutar por uma sociedade democrática. 2 - que a escola, de fato, cumpra o seu papel e sua função social, enquanto locus de construção e socialização do conhecimento. É, portanto, tarefa da escola garantir que todo aluno aprenda. O acesso ao conhecimento deve ser entendido como um instrumento de luta, pois sabemos que em uma sociedade como a nossa, conhecimento é antes de tudo poder.

3 - que trabalhar os direitos humanos e a formação da cidadania deve ser projeto global da escola, isto quer dizer, com a participação de todos os atores que nela atuam. 4 - o desenvolvimento de um processo de conscientização contínuo e permanente dos direitos e deveres que regulam o conjunto da sociedade, através, por exemplo, do estudo das leis e dos mecanismos para a materialização dos direitos. Esta conscientização deve ser calcada no princípio da solidariedade e na perspectiva da mudança de mentalidade. 5 - o respeitar às diferenças individuais sem perder de vista o coletivo. 6 - os conteúdos que dão materialidade ao currículo, tendo como eixo integrador os conteúdos dos direitos humanos e da cidadania, sob as diferentes formas de expressão: a música, o teatro, a dança, o texto individual e coletivo, a poesia, as artes plásticas. 7 - a vivência na escola de práticas que possibilitem a todos os seus agentes a gestão democrática de forma participativa com instituição de mecanismos tais como: conselho escolar, conselho de classe, organização estudantil - grêmios livres, cujas práticas devem ser pautadas no respeito ao outro, no respeito às diferenças e no estímulo à solidariedade. 8 - a politização do trabalho pedagógico da escola, transformando-a em palco permanente de discussão de temas da atualidade: reeleição, eleição, partidos políticos, formas de participação direta e violência, entre outros, possibilitando ao aluno informações necessárias à vivência de práticas que contribuam para o exercício da cidadania. Estas são algumas atividades escolares que podem contribuir para a conscientização dos indivíduos, no sentido de estabelecermos uma luta contínua e permanente, por um mundo em que as violências cedam lugar ao respeito, à solidariedade, ao convívio sadio, à humanização do homem e que para que possamos ter, como dizia Jeremias, no seu sonho de criança de 10 anos de idade, embora trabalhador desde os 8 anos, no corte de sisal, no interior da Bahia, ao ser entrevistado pelo Globo Repórter, um futuro elegante. E elegância para ele é ter dignidade, para poder ser um cidadão (Rede Globo de Televisão. Programa Globo Repórter-Trabalho Infantil, maio, 1997). E complementando a fala do Jeremias, tomo emprestado o que o Chico Buarque nos coloca tão bem através da música: é preciso não perdermos a esperança de podermos "cantar a canção dos homens, que é a canção da vida e da esperança". Esta deve ser a nossa utopia de um sonho possível. BIBLIOGRAFIA ARENDT, Hannah. Da Revolução - São Paulo, Ática, 1988. BENEVIDES, Maria Victoria. Cidadania e Justiça - In Revista da FDE - SãoPaulo, 1994. ---. A Consciência da Cidadania no Brasil - 1994, mimeo COMPARATO, Fábio Konder. Para Viver a Democracia - São Paulo, Brasiliense, 1989. Folha de S. Paulo - 8/9/97. PAIVA, Vanilda. Educação Formal como Direito Humano? Contradições e dilemas da revolução educacional da segunda metade do século XX, 1997, mimeo. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD - 1994.

SILVA, Aida Monteiro. A Violência na Escola: a percepção dos alunos e dos professores - 1995, mimeo. ---. Educação e Violência: qual o papel da escola? In Revista Diálogo, nº 8, São Paulo, 1997.

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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA DEFESA DA CIDADANIA CONSELHO ESTADUAL DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA/CONDEPE

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO/NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA - NEV-USP I CONFERÊNCIA ESTADUAL DE DIREITOS HUMANOS ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS PRINCÍPIOS E PRIORIDADES O Programa Estadual de Direitos Humanos afirma o compromisso do governo estadual de lutar para resolver os principais problemas na área dos direitos humanos, tais como a impunidade, a violência e a discriminação. O Programa define princípios, estabelece prioridades e apresenta propostas de ações governamentais para proteção e promoção dos direitos humanos em São Paulo. Na elaboração de uma política e um programa de direitos humanos exeqüível, deve-se reconhecer que não é possível resolver imediatamente problemas que foram gerados ao longo de décadas de desrespeito aos mais elementares direitos da pessoa humana. O PEDH baseia-se em cinco princípios básicos. Primeiro, a consolidação da democracia exige a garantia dos direitos humanos de todas pessoas, independentemente de origem, idade, sexo, etnia, raça, condição econômica e social, orientação ou identidade sexual, credo religioso e convicção política. Segundo, os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais são direitos indissociáveis. Terceiro, as violações dos direitos humanos têm muitas causas, de ordem internacional, política, econômica, social, cultural e psicológica. Quarto, o estudo e pesquisa da natureza e das causas das violações de direitos humanos são indispensáveis para formulação e implementação de políticas e programas de combate à violência e discriminação e de proteção e promoção dos direitos humanos. Quinto, a proteção dos direitos humanos e a consolidação da democracia depende da cooperação de todos, entre o governo federal e o governo estadual, com os governos municipais e a sociedade civil, tanto na fase de formulação quanto na fase de implementação, monitoramento e avaliação das políticas e programas de direitos humanos. Reconhecendo a indissociabilidade dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, individuais e coletivos, o PEDH procura definir propostas para proteção de todos os direitos humanos. Numa sociedade injusta como é a brasileira, com grave desigualdade de renda, é impossível promover os direitos humanos sem que os problemas estruturais do desemprego, do acesso à terra, da educação, da saúde e do meio-ambiente sejam objeto de políticas e programas governamentais. Mas, para que a população possa assumir que os direitos humanos são direitos de todos e as entidades da sociedade civil possam lutar por esses direitos e atuar em parceria com o Estado, é fundamental que seus direitos civis e políticos sejam garantidos. Na elaboração do PEDH, foi incentivada uma ampla participação de entidades governamentais e da sociedade civil, através do 1º Fórum Estadual de Minorias, organizado pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania e pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, e de encontros setoriais e seminários regionais, organizados pela Universidade de São Paulo, através do Núcleo de Estudos da Violência, sob a coordenação dos Profs. Paulo Sérgio Pinheiro e Paulo de Mesquita Neto, para apresentação e discussão de propostas e sugestões para o PEDH. Foram realizados seminários regionais em Campinas (8/10/96), Santos (27/2/97), Sorocaba (10/3/97), São José dos Campos (17/03/97), Ribeirão Preto (4/4/97), São José do Rio Preto (12/4/97), Bauru (14/4/97), Presidente Prudente (14/5/97).

No total, participaram do 1º Fórum Estadual de Minorias 365 pessoas, incluindo integrantes e representantes de 167 entidades. Participaram dos seminários regionais 775 pessoas, incluindo representantes e integrantes de 294 entidades governamentais e da sociedade civil, originários de todos os grupos sociais e regiões do estado, que fizeram uma avaliação da situação dos direitos humanos no Estado, discutiram políticas, programas e experiências concretas de defesa dos direitos humanos e apresentaram propostas para o Programa Estadual de Direitos Humanos. Uma das audiências públicas sobre o Programa foi realizada na FEBEM, com ampla participação das crianças e adolescentes, na Unidade do Tatuapé, na capital paulista. Em reunião extraordinária de seu secretariado, em 6 de junho deste ano, convocada especialmente para tratar do Programa Estadual de Direitos Humanos, que resultou em uma série de compromissos de ações integradas nessa área, o Governador Mário Covas afirmou que o PEDH é prioridade de sua administração. A versão preliminar do pré-projeto do Programa Estadual de Direitos Humanos, elaborada pelo Núcleo de Estudos da Violência, a partir das contribuições do Fórum de Minorias, dos encontros setoriais e dos seminários regionais, foi apresentada e discutida na 1ª Conferência Estadual de Direitos Humanos, na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, dias 16 e 17 de junho de 1997, da qual participaram 309 pessoas, incluindo integrantes e representantes de 142 entidades governamentais e da sociedade civil. Partindo do princípio de que não se tratava de uma conferência deliberativa, mas de crítica e cooperação, os 16 grupos temáticos e a plenária deram notável contribuição ao Programa, apontando propostas de ação governamental prioritárias, identificando entidades responsáveis e recursos disponíveis para sua implementação e monitoramento e sugerindo modificações e adendos às propostas apresentadas na versão preliminar do pré-projeto. No processo de sua elaboração, o Programa Estadual de Direitos Humanos teve por objetivo identificar e fortalecer parcerias entre Estado e sociedade para a defesa dos direitos humanos em São Paulo, envolvendo o Executivo, Legislativo e Judiciário estadual, Executivos e Legislativos municipais, organizações de direitos humanos, centros de pesquisa, universidades, empresas, sindicatos e associações empresariais e profissionais. Estas parcerias são fundamentais para o sucesso do Programa, como expressão dos ideais democráticos que orientaram sua elaboração mas também e como condição necessária para a sua credibilidade e execução. Da mesma forma como o Programa Nacional foi elaborado e está sendo executado a partir de uma parceria entre o Estado e a sociedade, tornando-se uma referência na luta pelos direitos humanos no Brasil, o Programa Estadual foi elaborado e será executado a partir de uma parceria entre o Estado e a sociedade para se tornar um marco na luta pelos direitos humanos em São Paulo. Decreto de 14 de setembro deste ano, do Governador Mário Covas, define o monitoramento do PEDH pelo Estado e pela sociedade civil, em conjunto. Cada órgão do Governo criará sua própria comissão de acompanhamento. Periodicamente serão divulgadas as iniciativas do Governo e da sociedade para o cumprimento do PEDH.

PROPOSTAS DE AÇÕES PARA O GOVERNO E PARA A SOCIEDADE 1 . Construção da Democracia e Promoção dos Direitos Humanos 1.1. Educação para a Democracia e os Direitos Humanos 1. Introduzir noções de direitos humanos no currículo escolar, no ensino de primeiro, segundo e terceiro graus, pela abordagem de temas transversais. 2. Promover cursos de capacitação de professores para ministrar disciplinas ou desenvolver programas interdisciplinares na área de direitos humanos, em parceria com entidades não governamentais. 3. Desenvolver programas de informação e formação para profissionais do direito, policiais civis e militares, agentes penitenciários e lideranças comunitárias, orientados pela concepção dos direitos humanos segundo a qual o respeito à igualdade supõe também reconhecimento e valorização das diferenças entre indivíduos e coletividades. 4. Criar comissão para elaborar e sugerir material didático e metodologia educacional e de comunicação para a implementação dos itens imediatamente anteriores. 5. Conceder anualmente prêmios a entidades e pessoas que se destacaram na defesa dos direitos humanos. 6. Apoiar iniciativas de premiação de programas e reportagens que ampliem a compreensão da sociedade sobre a importância do respeito aos direitos humanos. 7. Promover e apoiar a promoção, nos municípios e regiões do Estado, de debates, encontros, seminários e fóruns sobre políticas e programas de direitos humanos. 8. Promover campanhas de divulgação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos para operadores do direito, organizações não governamentais, igrejas, movimentos sociais e sindicais. 9. Fomentar ações de divulgação e conscientização da importância da legislação nacional pertinente às políticas de proteção e promoção dos direitos humanos. 10. Desenvolver campanhas estaduais permanentes que ampliem a compreensão da sociedade brasileira sobre o valor da vida humana e a importância do respeito aos direitos humanos. 11. Promover campanha publicitária sobre o 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1998. 12. Desenvolver campanha publicitária dirigida à escola sobre o valor da diferença em uma sociedade democrática. 13. Promover concursos entre as escolas por meio de cartazes, redações e manifestações artísticas sobre o tema da diferença.

1.2.

Participação Política.

14. Desenvolver programas estaduais e apoiar programas municipais, para assegurar a todos os grupos sociais o direito de participar na formulação e implementação de políticas públicas nas áreas de saúde, educação, habitação, meio ambiente, segurança social, trabalho, economia, cultura, segurança e justiça. 15. Apoiar campanhas que incentivem a participação política dos vários grupos sociais, nos municípios e no Estado.

16. Criar banco de dados sobre entidades, partidos políticos, empresas, sindicatos, escolas e outras associações comprometidas com a promoção e proteção dos direitos humanos. 2 . Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais 2.1. Direito ao desenvolvimento humano 17. Formular e implementar políticas e programas de governo para redução das desigualdades regionais, econômicas, sociais e culturais, definindo recursos em cada secretaria estadual para o alcance dessa meta. 18. Promover, em escala municipal e regional, a integração das ações direcionadas às comunidades e grupos mais carentes, pelas prefeituras municipais, governos estadual e federal e sociedade civil. 19. Criar um banco de dados que possibilite o direcionamento das políticas e programas de governo e a realização de parcerias entre o Estado e a sociedade para a redução de desigualdades regionais, econômicas, sociais e culturais. 20. Incentivar as empresas a publicar em seus balanços informações sobre realizações na área da promoção e defesa dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

2.2. Emprego e Geração de Renda 21. Criar fórum, com a participação de representantes do Executivo, Legislativo e Judiciário e da sociedade civil, para a realização de estudos visando a redução da jornada de trabalho e o fim das horas extras. 22. Estabelecer políticas e programas estaduais de desenvolvimento e apoiar políticas e programas municipais, visando reduzir a pobreza em áreas urbanas e rurais por meio da provisão de infra-estrutura e serviços básicos e da geração de empregos e/ou renda para as populações carentes, redirecionando a política orçamentária para a realização destes objetivos. 23. Incentivar nos municípios a criação de programas de renda complementar. 24. Incentivar a criação de organizações sem fins lucrativos capazes de gerar emprego e/ou renda, nas áreas urbanas e rurais, por meio de projetos de prestação de serviços à comunidade.

25. Incentivar a criação de centros de aprendizagem em que grupos carentes e pessoas desempregadas possam desenvolver projetos de sobrevivência. 26. Incentivar a criação de micro e pequenas empresas e cooperativas capazes de gerar emprego e/ou renda, nas áreas urbana e rural, com medidas e/ou propostas para simplificação, eliminação ou redução de suas obrigações administrativas, tributárias e creditícias. 27. Criar programas de financiamento para micro e pequenas empresas e cooperativas, associados à formação e reciclagem profissional. 28. Apoiar programas de regularização e legalização das atividades da economia informal, com instituição de tributos condizentes com sua atividade. 29. Ampliar o atendimento ao trabalhador, multiplicando os postos para obtenção de carteira de trabalho, formação profissional, orientação jurídica e acompanhamento das condições de saúde, higiene e segurança no trabalho. 30. Incentivar a criação e o funcionamento de comissões municipais de emprego.

2.3. Política agrária e fundiária. 31. Apoiar política e programa de ações integradas para o desenvolvimento do Pontal do Paranapanema e do Vale do Ribeira, incluindo ações de regularização fundiária, assentamento de trabalhadores sem-terra, com infra-estrutura adequada para produção agrícola, ecoturismo e incentivo a outras atividades econômicas compatíveis com a defesa do meio ambiente. 32. Apoiar formas negociadas e não violentas de resolução de conflitos fundiários. 33. Apoiar os assentamentos rurais existentes, dotando-os de infra-estrutura e promovendo treinamento adequado à produção agrícola, além de incentivar atividades econômicas compatíveis com a defesa do meio ambiente e a criação de canais de escoamento da produção. 34. Propor lei estadual definindo a legitimação da posse de terras devolutas com até 500 hectares aos ocupantes que atendam aos princípios da legislação agrária. 35. Dar continuidade à política de reivindicação e utilização de terras devolutas para assentamento de trabalhadores sem terra. 36. Apoiar a identificação de áreas rurais improdutivas ou que não atendam à função social da propriedade, para fins de reforma agrária. 37. Promover políticas e programas de abastecimento, apoiando a criação e o funcionamento de cooperativas para aproximar os produtores rurais dos consumidores urbanos. 38. Expandir o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar em São Paulo (Pronaf-São Paulo). 2.4. Educação

39. Promover a melhoria do ensino público, por meio de programas de educação continuada dos professores, elevação dos níveis salariais e melhoria das condições de trabalho. 40. Incentivar a participação de pais, professores e estudantes e fortalecer os conselhos de escola, as associações de pais e mestres, os grêmios estudantis e outras entidades comunitárias. 41. Garantir o acesso, o reingresso, a permanência e o sucesso de todas as crianças e adolescentes nos ensinos fundamental e médio, por meio de ações como a implementação de classes de aceleração, a recuperação paralela e outras medidas, entre as quais a concessão de incentivo às famílias carentes que mantiverem os filhos na escola. 42. Apoiar programas de monitoramento e eliminação da evasão escolar. 43. Promover serviços de informação, acompanhamento e apoio ao funcionamento da escola, como por exemplo o "Disque APM". 44. Valorizar as associações de pais e mestres, incentivando sua participação no gerenciamento dos recursos públicos destinados à escola. 45. Promover cursos de alfabetização de adultos. 46. Estabelecer programas de integração intersecretarias e organizações não governamentais, visando prevenir e reduzir a incidência do uso indevido de drogas e de doenças transmissíveis. 2.5. Comunicação 47. Promover ações de divulgação sobre o valor da educação, da saúde, do meio ambiente, da habitação, do transporte e da cultura como direitos da cidadania e fatores essenciais à melhoria da qualidade de vida das pessoas, bem-estar social e desenvolvimento econômico. 48. Criar o Conselho Estadual de Comunicação Social, com o objetivo de formular, implementar, monitorar e avaliar a política estadual de comunicação social. 49. Desenvolver ações para proteger o direito à preservação da imagem dos cidadãos. 50. Criar uma comissão de educação e mídia, com a participação de representantes do Estado, da sociedade e dos meios de comunicação social, para apoiar o desenvolvimento de uma perspectiva positiva no tratamento das questões de direitos humanos na mídia e monitorar os programas radiofônicos e televisivos, identificando os que contenham incitação ao crime ou sua apologia. 51. Promover a punição dos responsáveis pela transmissão de programas de rádio e televisão que contenham incitação ao crime ou sua apologia, com a aplicação das sanções cabíveis às concessionárias, na forma da lei.

2.6. Cultura e Ciência

52. Criar centro de referência de cidadania e direitos humanos, com biblioteca especializada, para desenvolvimento de estudos e projetos sobre os temas da cidadania e direitos humanos. 53. Destinar o prédio do antigo Dops à Secretaria de Estado da Cultura para a instalação de espaço cultural dedicado aos temas da cidadania e direitos humanos. 54. Apoiar programas de revalorização e criação de bibliotecas públicas, casas de cultura e oficinas culturais, estimulando intercâmbio entre grupos da Capital e do interior do Estado. 55. Elaborar indicadores de desenvolvimento humano no Estado. 56. Promover a realização de estudos e pesquisas sobre violência, custos da violência, discriminação, vitimização e direitos humanos. 57. Criar banco de dados sobre as violações dos direitos humanos e o perfil dos autores e das vítimas da violação a esses direitos. 2.7. Saúde 58. Incentivar, com ampla divulgação nos meios de comunicação de massa, a participação da comunidade na formulação e implementação de políticas públicas de saúde, por meio do Conselho Estadual de Saúde, dos Conselhos Municipais de Saúde e de outras formas de organização da população como os Conselhos de Bairros e as Comunidades de Saúde. 59. Apoiar programas de medicina preventiva, com equipes multidisciplinares, identificando e minimizando os fatores de risco aos quais a população está exposta, dando prioridade ao atendimento em áreas periféricas. 60. Promover campanhas para divulgar informações sobre os fatores que afetam a saúde pública, particularmente os que aumentam o risco de morte violenta, como o uso de armas de fogo, uso indevido de drogas, acidentes de trânsito e acidentes de trabalho. 61. Apoiar campanhas de conscientização contra os riscos do uso do fumo e do álcool. 62. Criar o Sistema de Vigilância Epidemiológica da Violência, a ser implantado inicialmente na Região Metropolitana de São Paulo e posteriormente em todo o Estado, com a participação das Secretarias da Saúde, da Segurança, da Justiça e da Defesa da Cidadania. 63. Criar o Sistema de Vigilância Epidemiológica da saúde do trabalhador. 64. Incrementar o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), contemplando o atendimento à vítima da violência doméstica e sexual. 65. Promover ações que contribuam para aumentar a integração entre as áreas da saúde, da educação e da segurança pública, com o objetivo de limitar a incidência e o impacto da violência contra a pessoa. 66. Desenvolver programas com o objetivo de melhorar a qualidade do ambiente de trabalho e aumentar a segurança e a saúde do trabalhador urbano e rural, integrando ações das

áreas de saúde, emprego e relações de trabalho, justiça e defesa da cidadania e agricultura, tendo em vista este objetivo. 67. Construir mecanismos para assegurar os direitos dos cidadãos, constantes da Cartilha dos Direitos do Paciente, elaborada pelo Conselho Estadual de Saúde, em 1995. 68. Fortalecer a atuação das comissões de ética e fiscalização das atividades dos profissionais da saúde. 69. Formular políticas e desenvolver campanhas públicas para incentivar a doação de sangue. 70. Desenvolver e divulgar programas, assistência e tratamento para os portadores de anemia falciforme. 71. Adotar programas que contribuam para a melhoria do atendimento às pessoas portadoras de patologias crônicas. 72. Apoiar programas de prevenção, assistência e tratamento à dependência de drogas. 73. Desenvolver campanhas de informação e prevenção sobre doenças sexualmente transmissíveis e HIV/Aids. 74. Apoiar estudos, pesquisas e programas para reduzir a incidência, morbidade e mortalidade causadas por HIV/Aids. 75. Apoiar a implantação de um cadastro técnico de receptores de órgãos, a cargo da Secretaria de Saúde do Estado, que vise assegurar o princípio da igualdade nas ações de saúde e a ordem cronológica de atendimento de pacientes que necessitem de transplante.

2.8. Bem-Estar, Habitação e Transporte 76. Implantar os Conselhos e Fundos Municipais da Assistência Social e elaborar planos municipais de assistência social com programas destinados a crianças, adolescentes, família, maternidade, idosos, portadores de deficiência, inserção no mercado de trabalho e geração de renda, incentivando a formação de parcerias entre organizações governamentais e da sociedade civil e redes municipais, regionais e estaduais. 77. Implantar políticas de comp lementação de renda familiar, integradas com políticas educacionais, de saúde, de habitação, de inserção no mercado de trabalho e de geração de renda. 78. Incentivar em parceria com a entidade civil programas municipais de orientação e apoio à família, para capacitá- las a resolver seus conflitos de forma não violenta e a cumprir sua responsabilidade de proteger e educar as crianças. 79. Criar, manter e apoiar programas de proteção à população em situação de rua, incluindo abrigo, qualificação e requalificação profissional, orientação sócio-educativa, com o objetivo de sua reinserção social.

80. Incentivar, nos programas de atendimento pré- natal, a inclusão de orientação preventiva de maus-tratos na infância. 81. Reativar convênio entre a Secretaria da Segurança Pública e Secretaria da Criança, Família e Bem Estar Social com o objetivo de oferecer atendimento nas delegacias de polícia, por assistentes sociais. 82. Implantar Conselhos e Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano, com o objetivo de democratizar a discussão de políticas e programas de desenvolvimento urbano. 83. Apoiar medidas no âmbito municipal que visem o aumento de impostos sobre imóveis desocupados, destinando os recursos para programas de construção e melhoria de moradias populares. 84. Apoiar medidas no âmbito estadual e municipal que visem a remuneração da cessão de próprios públicos para clubes e entidades sem fins lucrativo s, destinando os recursos para programas de assistência social. 85. Incentivar projetos de construção e melhoria das condições de moradias populares, particularmente por meio do sistema de mutirão, inclusive com programas de capacitação técnica, organizacional e jurídica dos integrantes de movimentos de moradias. 86. Promover a melhoria e expansão dos serviços de transporte coletivo. 87. Implantar programa de controle da poluição do sistema integrado de transportes no Estado. 88. Criar programa estadual e apoiar a criação de programas municipais de educação para a segurança no trânsito e de prevenção de acidentes de trânsito. 2.9. Consumo e Meio Ambiente 89. Ampliar o programa de municipalização da defesa do consumidor por meio da criação e fortalecimento de Procons municipais. 90. Apoiar o Poder Judiciário na instalação de juizados especiais para questões de direito do consumidor. 91. Aperfeiçoar a defesa de direitos dos consumidores, inclusive estabelecendo convênio entre a Fundação Procon e a Procuradoria Geral do Estado para a propositura de ações individuais, coletivas e ações civis públicas. 92. Implementar ações de educação para o consumo por meio de parcerias entre a escola e órgãos de defesa do consumidor. 93. Propor lei de defesa do usuário do serviço público. 94. Desenvolver e implementar programas permanentes de qualidade no serviço público.

95. Implantar conselhos das unidades de proteção ambiental, com representantes do Estado, prefeituras e sociedade civil, para formulação, implementação e monitoramento de políticas e programas de proteção ambiental. 96. Apoiar projetos de preservação, recuperação e melhoria do meio ambiente. 97. Desenvolver ações integradas entre os Governo Federal, os estaduais, os municipais, empresários e organizações da sociedade civil para projetos de educação ambiental e de turismo ecológico, na rede escolar. 98. Promover a melhoria e garantir a qualidade do meio ambiente, por meio de programas de coleta e reciclagem de lixo, em associação com projetos de geração de emprego e renda. 99. Criar centros de lazer, leitura e aprendizado ambiental em unidades de proteção ambiental. 3. Direitos Civis e Políticos 3.1. Acesso à Justiça e Luta Contra a Impunidade 100. Criar ouvidorias nas Secretarias de Estado, em especial nas áreas da Educação e Saúde e na Procuradoria Geral do Estado, bem como estimular sua criação pelo Ministério Público, pelo Poder Judiciário e pelo Poder Legislativo, garantindo aos ouvidores mandato com prazo certo. 101.

Fortalecer a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo.

102. Instalar e divulgar canais especiais de comunicação para denúncias, orientação e sugestões, especialmente nas áreas da segurança, justiça, saúde e educação, garantindo o anonimato dos usuários. 103. Agilizar a apuração e a responsabilização administrativa e judicial de agentes públicos acusados de atos de violência e corrupção, respeitados o devido processo legal e a ampla defesa. 104. Fortalecer e ampliar a atuação das corregedorias administrativas do Poder Executivo, notadamente da Polícia Civil e Polícia Militar, do Ministério Público e do Poder Judiciário. 105. Consolidar e fortalecer o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, de acordo com o Artigo 127, VII, da Constituição Federal. 106. Criar programa estadual de proteção a vítimas e testemunhas, bem como a seus familiares, ameaçados em razão de envolvimento em inquérito policial e/ou processo judicial, em parceria com a sociedade civil. 107.

Garantir indenização às vítimas de violência praticada por agentes públicos.

108. Criar programa de assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crimes dolosos, nos termos do Artigo 245 da Constituição Federal.

109. Estimular a solução pacífica de conflitos, criando e fortalecendo, na periferia das grandes cidades, centros de integração da cidadania, com a participação do Poder Judiciário, Ministério Público, Procuradoria de Assistência Judiciária, Polícia Civil, Polícia Militar, Procon, outros órgãos governamentais de atendimento social, de geração de renda, de prevenção de doenças e com ampla participação da sociedade civil. 110. Promover cursos de capacitação na defesa dos direitos humanos e cidadania, para lideranças populares. 111. Estimular a criação de núcleos municipais de defesa da cidadania, incluindo a prestação de serviços gratuitos de assistência jurídica, mediação de conflitos coletivos e requisição de documentos básicos para a população carente, com a participação de advogados, professores e estudantes, em integração com órgãos públicos. 112. Expandir, modernizar e informatizar os serviços de distribuição de justiça para melhorar o sistema de proteção e promoção dos direitos humanos. 113. Realizar gestões junto aos Poderes Legislativo e Judiciário para aprovação da lei estadual regulamentando os juizados especiais cíveis e criminais, a fim de que sejam efetivamente implantados no Estado. 114. Apoiar o estabelecimento e funcionamento de plantões permanentes do Poder Judiciário, Ministério Público, Procuradoria de Assistência Judiciária e Delegacias de Polícia. 115. Estimular o debate sobre a reorganização do Poder Judiciário e do Ministério Público, para melhor atender às demandas da população. 116. Estimular a criação e o funcionamento, no Ministério Público, de promotorias especializadas na defesa da cidadania e dos direitos humanos. 117. Estimular a criação e o funcionamento de mecanismos para agilizar o julgamento de casos de graves violações de direitos humanos. 118.

Criar um Centro de Direitos Humanos na Procuradoria Geral do Estado.

119.

Expandir e melhorar o atendimento às pessoas necessitadas de assistência judiciária.

120. Apoiar iniciativa de extinção da Justiça Militar dos Estados, com atribuição à Justiça comum da competência para julgamento de todos os crimes cometidos por policiais militares. 121.

Apoiar o projeto de lei que tipifica crime contra os direitos humanos.

122. Pugnar em favor do reconhecimento, pelo Brasil, da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos termos do Artigo 62 da Declaração Americana de Direitos Humanos. 3.2. Segurança do Cidadão e Medidas Contra a Violência 123. Apoiar programas e campanhas de prevenção à violência contra pessoas e grupos em situação de alto risco, particularmente crianças e adolescentes, idosos, mulheres, negros,

indígenas, migrantes, homossexuais, transexuais, trabalhadores sem-terra, trabalhadores sem-teto, da população em situação de rua, incluindo policiais e seus familiares ameaçados em razão da natureza da sua atividade. 124. Criar programa específico para prevenção e repressão à violência doméstica e implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, na parte de assistência a famílias, crianças e adolescentes em situação de risco, com a participação de organizações da sociedade civil e do Governo, particularmente das delegacias de defesa da mulher, ampliando e fortalecendo serviços de atendimento e investigação de casos de violência doméstica. 125.

Integrar os sistemas de informação e comunicação das polícias civil e militar.

126.

Coordenar e integrar as ações das polícias civil e militar.

127.

Elaborar um mapa de risco de violência no Estado, por região e município.

128. Criar cursos regulares para capacitação em gerenciamento de crise e negociação em conflitos coletivos, dedicados a profissionais ligados às áreas de segurança e justiça. 129. Desenvolver programas e campanhas para impedir o trabalho forçado, sobretudo de crianças, adolescentes e migrantes, particularmente por meio da criação, nas secretarias de Emprego e Relações do Trabalho, da Criança, Família e Bem Estar Social e da Segurança Pública, de áreas especializadas na prevenção e repressão ao trabalho forçado. 130. Valorizar os conselhos comunitários de segurança, dotando-os de maior autonomia e representatividade, para que eles possam servir efetivamente como centros de acompanhamento e monitoramento das atividades das polícias civil e militar pela comunidade e como mecanismos para melhorar a sua integração e a cooperação. 131. Incentivar experiências de polícia comunitária, definindo não apenas a manutenção da ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio mas também e principalmente a defesa dos direitos da cidadania e da dignidade da pessoa humana como missões prioritárias das polícias civil e militar. 132. Ampliar a atuação das polícias, orientando-as principalmente para as áreas de maior risco de violência, por meio do aumento e redistribuição do efetivo policial. 133. Fortalecer o Instituto de Criminalística e o Instituto Médico Legal, adotando medidas que assegurem a sua excelência técnica e progressiva autonomia, por meio da instalação da Superintendência de Polícia Técnico-Científica, com orçamento próprio. 134. Incentivar a criação de fundo da polícia, para obtenção de recursos e realização de investimentos na área da segurança pública. 135. Aperfeiçoar critérios para seleção e promoção de policiais, de forma a valorizar e incentivar o respeito à lei, o uso limitado da força, a defesa dos direitos dos cidadãos e da dignidade humana no exercício da atividade policial. 136. Apoiar programas de aperfeiçoamento profissional de policiais militares e civis por meio da concessão de bolsas de estudo e intercâmbio com polícias de outros países para

fortalecer estratégias de policiamento condizentes com o respeito à lei, uso limitado da força, defesa dos direitos dos cidadãos e da dignidade humana. 137. Apoiar a realização de cursos de direitos humanos para policiais em todos os níveis da hierarquia policial. 138.

Dar continuidade ao programa de seguro de vida especial para policiais.

139. Apoiar projeto de lei federal, agravando as penas para crimes dolosos, praticados por policiais ou contra policiais, no exercício de suas funções. 140. Dar continuidade ao Programa de Acompanhamento dos Policiais Envolvidos em Ocorrência de Alto Risco, da Secretaria de Segurança Pública, que afasta do policiamento de rua os policiais envolvidos em ocorrências que tenham como resultado a morte de civis, obrigando-os a realizar cursos de reciclagem. 141. Regulamentar e aumentar o controle sobre o uso de armas e munições por policiais em serviço e nos horários de folga, exigindo a elaboração de relatório sobre cada ocorrência de disparo de arma de fogo. 142. Desenvolver e apoiar programas e campanhas de desarmamento, com apreensão de armas ilegais, a fim de implementar no Estado a lei federal que criminaliza a posse e o porte ilegal de armas. 143. Apoiar o aperfeiçoamento da legislação que regulamenta os serviços privados de segurança. 144. Elaborar indicadores básicos para o monitoramento e a avaliação de políticas de segurança pública e do funcionamento do Poder Judiciário e do Ministério Público. 145. Rever os regulamentos disciplinares das polícias, notadamente o da Polícia Militar, compatibilizando-os à ordem constitucional vigente. 146.

Organizar seminário estadual para policiais sobre educação em direitos humanos.

3.3. Sistema prisional e ressocialização. 147. Desenvolver parcerias entre o Estado e entidades da sociedade civil para o aperfeiçoamento do sistema penitenciário e para a proteção dos direitos de cidadania e da dignidade do preso. 148. Incentivar a aplicação de penas alternativas pelo Poder Judiciário, contribuindo para a melhor reintegração dos condenados à sociedade. 149. Desenvolver programas de identificação de postos de trabalho para cumprimento da pena de prestação de serviços à comunidade, por meio de parcerias entre órgãos públicos e sociedade civil. 150. Apoiar o Projeto de Lei 2.684/96, em tramitação no Congresso Nacional, que trata das penas alternativas.

151. Incentivar a criação dos conselhos comunitários para supervisionar o funcionamento das prisões, nos termos da Lei de Execução Penal e exigir visitas mensais de juízes e promotores para verificar as condições do sistema penitenciário. 152. Construir novas unidades para o regime semi-aberto, incentivando o cumprimento de penas nesse sistema e no regime aberto, nos termos da Lei de Execução Penal. 153. Criar grupo de trabalho, destinado a propor ações urgentes para melhorar o funcionamento da Vara de Execuções Criminais, com a participação de representantes do Poder Judiciário, Ministério Público, Procuradoria Geral do Estado, Secretarias de Administração Penitenciária e da Segurança Pública, OAB e organizações da sociedade civil. 154. Criar as condições necessárias ao cumprimento da Lei de Execução Penal, no que toca à classificação de presos para individualização da execução da pena, com a contratação e a capacitação de profissionais para elaborar e acompanhar programas de ressocialização e reeducação de presos, em parceria com entidades não governamentais. 155. Aperfeiçoar o tratamento prisional da mulher, garantindo progressivamente a alocação de agentes femininas para vistoria e guarda dos pavilhões e a realização de visitas íntimas e familiares. 156.

Instituir a Ouvidoria do Sistema Penitenciário.

157.

Expandir e fortalecer a assistência judiciária ao preso.

158. Desenvolver programas de informatização do sistema penitenciário e integração com o Ministério Público e o Poder Judiciário, para agilizar a execução penal. 159. Garantir acesso aos mapas da população de presos no sistema penitenciário, nas cadeias públicas e nos distritos policiais, a fim de permitir o monitoramento da relação entre número de vagas e número de presos no sistema. 160. Garantir a separação dos presos por tipo de delito e entre presos condenados e provisórios. 161. Prever mecanismos de defesa técnica para presos acusados em processos disciplinares. 162. Agilizar o exame de corpo de delito nos casos de denúncia de violação à integridade física do preso. 163. Aperfeiçoar a formação e reciclagem dos diretores e agentes do sistema penitenciário, de acordo com as normas para seleção e formação de pessoal penitenciário da ONU e OEA. 164.

Criar Escola Estadual Penitenciária.

165. Implementar os procedimentos do Manual de Segurança Física das Unidades Prisionais em todo o sistema prisional do Estado.

166. Apoiar o trabalho do grupo de negociadores que tem por objetivo a resolução pacífica de incidentes prisionais e elaborar manual com regras mínimas para tratamento de rebeliões no sistema penitenciário. 167. Adotar providências que permitam a desativação do complexo do Carandiru, vinculando os recursos obtidos com a negociação da área à construção de novas unidades prisionais, nos termos das regras mínimas fixadas pela ONU. 168. Criar condições para absorção pelo sistema penitenciário dos presos condenados e recolhidos nos distritos policiais e cadeias públicas do Estado. 169. Facilitar o acesso dos presos à educação, ao esporte e à cultura, fortalecendo projetos como Educação Básica, Educação pela Informática, Telecurso 2000, Teatro nas Prisões e Oficinas Culturais, privilegiando parcerias com organizações não governamentais e universidades. 170. Promover programas de capacitação técnico-profissionalizante para os presos, possibilitando sua reinserção profissional nas áreas urbanas e rurais, privilegiando parcerias com organizações não governamentais e universidades. 171. Desenvolver programas visando a absorção pelo mercado de trabalho de egressos do sistema penitenciário e de presos em regime aberto e semi-aberto, privilegiando parcerias com organizações não governamentais. 172. Apoiar propostas legislativas para estender ao trabalhador preso os direitos do trabalhador livre, incluindo a sua integração à Previdência Social, ressalvadas apenas as restrições inerentes à sua condição. 173. Aperfeiçoar o atendimento da saúde no sistema penitenciário, inclusive estabelecendo convênios entre Governo Estadual e governos municipais para garantir assistência médica e hospitalar aos presos. 174.

Realizar o monitoramento epidemiológico da população carcerária.

3.4. Promoção da Cidadania e Medidas contra a Discriminação 175. Apoiar propostas legislativas coibindo todo tipo de discriminação, com base em origem, raça, etnia, sexo, idade, credo religioso, convicção política, orientação ou identidade sexual, deficiência física ou mental e doenças e revogar normas discriminatórias na legislação infraconstitucional, para reforçar e consolidar a proibição de práticas discriminatórias previstas na Constituição Federal. 176. Formular e implementar políticas, programas e campanhas para eliminação da discriminação, em particular na educação, saúde, trabalho e meios de comunicação social. 177. Desenvolver programas permanentes de treinamento do servidor público, para habilitá- lo a tratar adequadamente a diversidade social e a identificar e combater práticas discriminatórias. 178. Criar canais de acesso direto e regular da população a informações e documentos governamentais.

179. Instalar centrais de atendimento ao cidadão (como, por exemplo, o "Poupatempo"), reunindo e oferecendo à população serviços de diversos órgãos públicos. 180. Lançar campanha estadual, envolvendo todos os municípios, com o objetivo de dotar gratuitamente a população carente dos documentos básicos de cidadania, tais como certidão de nascimento, carteira de identidade, carteira de trabalho, título de eleitor e certificado de alistamento militar (ou certificado de reservista ou de dispensa da incorporação). 181. Instalar, no âmbito da Secretaria de Emprego e Relações de Trabalho, uma Câmara Permanente de Promoção da Igualdade, para elaboração de diagnósticos e formulação de políticas, programas e campanhas de promoção da igualdade no trabalho. 3.5. Crianças e Adolescentes 182. Implementar campanhas de proteção e promoção dos direitos da criança e do adolescente, com base em diretrizes estaduais e nacionais, priorizando os temas da violência, abuso e assédio sexual, prostituição infanto-juvenil, erradicação do trabalho infantil, proteção do adolescente trabalhador, violência doméstica e uso indevido de drogas. 183. Manter e incrementar infra-estrutura para o adequado funcionamento do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente e incentivar a criação e funcionamento dos Conselhos Municipais de Direitos, Conselhos Tutelares e Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente. 184. Incentivar a captação de recursos privados para os Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente. 185. Elaborar plano estadual e incentivar a elaboração de planos municipais de proteção dos direitos da criança e do adolescente, por meio de parcerias entre organizações governamentais e da sociedade civil. 186. Manter programas de capacitação de profissionais encarregados da execução da política de promoção e defesa de direitos da criança e do adolescente. 187.

Divulgar amplamente o Estatuto da Criança e do Adolescente nas escolas estaduais.

188. Erradicar o trabalho infantil no Estado e proteger os direitos do adolescente trabalhador, adotando normas que incentivem o cumprimento dos termos do Artigo 7º, Inciso XXXIII, da Constituição Federal. 189.

Desenvolver programa de combate à exploração sexual infanto-juvenil.

190. Ampliar programas de prevenção à gravidez precoce e de atendimento a adolescentes grávidas. 191. Desenvolver programa de capacitação profissional dirigido a adolescentes e jovens de 14 a 21 anos, prioritariamente para aqueles em situação de risco social, de acordo com os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente.

192. Desenvolver oficinas culturais e cursos de música, teatro e artes plásticas, dirigidos para crianças e adolescentes, particularmente aqueles internados em unidades da Febem. 193. Garantir orientação jurídica e assistência judiciária especializada nos processos de conhecimento e execução, em que sejam interessados crianças ou adolescentes. 194. Criar programas de orientação jurídica e assistência judiciária para famílias de adolescentes autores de ato infracional. 195. Apoiar a criação e funcionamento de varas, promotorias e delegacias especializadas em infrações penais envolvendo crianças e adolescentes. 196. Incentivar programas de integração da criança e do adolescente à família e à comunidade e de guarda, tutela e adoção de crianças e adolescentes, órfãos ou abandonados. 197. Reorganizar e regionalizar os estabelecimentos destinados à internação de adolescentes autores de ato infracional, de acordo com as regras previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, com participação da comunidade. 198. Desenvolver ação integrada do Poder Executivo com o Poder Judiciário e Ministério Público, aperfeiçoando o sistema de aplicação de medidas sócio-educativas aos adolescentes autores de ato infracional. 199. Priorizar programas que privilegiem a aplicação de medidas sócio-educativas não privativas da liberdade para adolescentes autores de ato infracional. 200. Estabelecer um sistema estadual de monitoramento da situação da criança e do adolescente, com atenção particular para a identificação e localização de crianças, adolescentes e familiares desaparecidos, combate à violência contra a criança e o adolescente e atendimento aos autores de ato infracional. 201. Criar e manter programas de nutrição e prevenção à mortalidade de crianças e adolescentes. 202. Manter programas sócio-educativos de atendimento à criança e ao adolescente em meio aberto, como creches, centros de juventude, em apoio à família e à escola. 203. Manter programas de atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua, oferecendo condições de socialização, reintegração à família, educação, lazer, cultura, profissionalização e trabalho e resgate integral da cidadania. 3.6. Mulheres 204. Apoiar o Conselho Estadual da Condição Feminina e incentivar a criação de conselhos municipais de defesa dos direitos da mulher. 205. Incrementar parcerias com organizações da sociedade civil, com a participação dos conselhos estadual e municipais, para formular e monitorar políticas e programas de governo para a defesa dos direitos da mulher.

206. Incentivar a participação das mulheres na política e na administração pública em todos os níveis. 207. Criar, manter e apoiar programas de combate à violência contra a mulher, priorizando as casas-abrigo e os centros integrados de atendimento às mulheres vítimas ou sob risco de violência, por meio de parcerias entre o Governo Estadual, os governos municipais e organizações da sociedade civil, em observância à Convenção Interamericana para Erradicar, Prevenir e Combater a Violência Contra a Mulher. 208.

Aprimorar o funcionamento e a expansão da rede de delegacias da mulher.

209. Apoiar os serviços de defesa dos direitos da mulher, tais como o Centro de Orientação Jurídica e Encaminhamento da Mulher - Coje, da Procuradoria Geral do Estado. 210. Apoiar o aperfeiçoamento de normas de prevenção da violência e discriminação contra a mulher, incluindo a questão do assédio sexual. 211. Apoiar a revogação de normas discriminatórias ainda existentes na legislação infraconstitucional, em particular as do Código Civil Brasileiro. 212. Apoiar a regulamentação do Artigo 7º, Inciso XX, da Constituição Federal, por meio da formulação e implementação de leis e programas estaduais para proteção da mulher no mercado de trabalho, nas áreas urbana e rural. 213. Assegurar a implementação da Lei 9.029/95, que protege as mulheres contra a discriminação em razão de gravidez. 214. Divulgar na esfera estadual os documentos internacionais de proteção dos direitos das mulheres ratificados pelo Brasil. 215. Divulgar e implementar a Convenção Paulista sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, assinada em 1992. 216. Desenvolver pesquisas e divulgar informações sobre a violência e a discriminação contra a mulher e sobre as formas de proteção e promoção de seus direitos.

3.7. População Negra 217. Apoiar o Conselho Estadual da Comunidade Negra e incentivar a criação de conselhos municipais da comunidade negra. 218. Promover o acesso da população negra ao mercado de trabalho e ao serviço público, por meio da adoção de ações afirmativas e programas para profissionalização, treinamento e reciclagem dirigidos à população negra. 219. Divulgar as convenções internacionais, os dispositivos da Constituição Federal e a legislação infraconstitucional que tratam da discriminação racial. 220. Revogar normas discriminatórias ainda existentes na legislação infraconstitucional e aperfeiçoar normas de combate à discriminação racial.

221. Apoiar políticas que promovam a comunidade negra econômica, social e politicamente. 222. Desenvolver ações afirmativas para ampliar o acesso e a permanência da população negra na rede pública e particular de ensino, notadamente em cursos profissionalizantes e universidades. 223. Desenvolver campanhas de combate à discriminação racial e valorização da pluralidade étnica no Brasil. 224.

Implementar a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial no Ensino.

225. Incluir no currículo de 1º e 2º graus a história e a cultura da comunidade negra no Brasil. 226. Desenvolver programas que assegurem a igualdade de oportunidade e tratamento nas políticas culturais do Estado, particularmente na rede pública e privada de ensino, no que se refere ao fomento à produção cultural e à preservação da memória da comunidade negra no Brasil. 227. Mapear e promover os atos necessários ao tombamento de sítios e documentos de importância histórica para a comunidade negra. 228. Promover a titulação definitiva das terras das comunidades remanescentes de quilombos, nos termos do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, bem como apoiar programas que propiciem o desenvolvimento econômico e social das comunidades. 229. Desenvolver pesquisas e divulgar informações sobre violência e discriminação contra a população negra e sobre formas de proteção e promoção de seus direitos. 230. Incluir o quesito "cor" em todos os sistemas de informação e registro sobre a população e bancos de dados públicos. 3.8. Povos Indígenas 231. Apoiar políticas de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas que, ao mesmo tempo, respeitem os princípios da Convenção sobre Diversidade Biológica. 232. Garantir aos povos indígenas assistência de saúde por meio de programas diferenciados, com atenção à especificidade de cada povo. 233. Garantir aos povos indígenas educação escolar diferenciada, respeitando seu universo sócio-cultural. 234. Promover a divulgação de informações sobre os indígenas e seus direitos, principalmente nos meios de comunicação e escolas, como medida de combate à discriminação e à violência contra os povos indígenas e suas culturas. 235. Apoiar as comunidades indígenas no desenvolvimento de projetos auto-sustentáveis do ponto de vista econômico, ambiental e cultural. 236.

Apoiar os serviços de orientação jurídica e assistência judiciária aos povos indígenas.

237.

Apoiar a demarcação de terras das comunidades indígenas do Estado.

238. Organizar levantamento da situação atual de saúde dos povos indígenas no Estado e desenvolver ações emergenciais nesta área, em colaboração com o Governo Federal. 239. Colaborar com o Governo Federal na assistência emergencial às comunidades indígenas mais vulneráveis no Estado.

3.9. Refugiados, Migrantes Brasileiros e Estrangeiros 240. Apoiar o aperfeiçoamento da Lei de Estrangeiros, de forma a garantir os direitos dos estrangeiros que vivem no Brasil, incluindo os direitos de trabalho, educação, saúde e moradia. 241. Apoiar propostas para anistiar e/ou regularizar a situação dos estrangeiros clandestinos e irregulares, dando- lhes plenas condições de exercício dos seus direitos. 242. Apoiar a ratificação da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e suas Famílias. 243. Aprofundar o debate sobre os direitos dos migrantes no Mercosul e apoiar acordos bilaterais para proteção e promoção dos direitos dos migrantes. 244. Garantir a implementação da Resolução Estadual SE-10, de 1995, que garante o acesso à escola para crianças estrangeiras, com direito a certificado de conclusão de curso e histórico escolar. 245. Apoiar os serviços gratuitos de orientação jurídica e assistência judiciária aos refugiados e migrantes. 246. Apoiar estudos, pesquisas e discussão dos problemas dos trabalhadores migrantes e suas famílias. 247. Criar e incentivar projetos de assistência e de qualificação profissional e fixação territorial da população migrante.

3.10. Terceira Idade 248.

Apoiar a formulação e a implementação da Política Nacional do Idoso.

249. Formular uma Política Estadual do Idoso, em conformidade com a Política Nacional, para garantir aos cidadãos com mais de 60 anos as condições necessárias para o pleno exercício dos direitos de cidadania. 250. Apoiar a criação e o fortalecimento de conselhos municipais e associações de defesa dos direitos do idoso. 251. Desenvolver e apoiar programas de escolarização e atividades laborativas para pessoas idosas, de eliminação da discriminação nos locais de trabalho e de inserção dessas pessoas no mercado de trabalho.

252.

Apoiar programas de preparo das pessoas idosas para a aposentadoria.

253.

Garantir atendimento prioritário às pessoas idosas em todas as repartições públicas.

254.

Apoiar programas de capacitação de profissionais que trabalham com os idosos.

255. Apoiar programas de orientação de servidores públicos civis e militares no atendimento aos idosos. 256. Facilitar o acesso das pessoas idosas a cinemas, teatros, e a outros espaços de lazer público. 257. Conceder passe livre e precedência de acesso aos idosos em todos os sistemas de transporte público urbano e interurbano. 258. Incentivar a modificação dos degraus dos ônibus para facilitar o acesso das pessoas idosas. 259. Apoiar programas de assistência aos idosos visando sua integração à família e à sociedade e incentivando o atendimento no seu próprio ambiente. 260.

Apoiar a criação e o funcionamento de centros de convivência para pessoas idosas.

261. Estudar formas de garantir moradia aos idosos desabrigados, ou que moram de forma precária e não têm condições de pagar aluguel. 262.

Garantir o atendimento preferencial ao idoso no sistema público de saúde.

263. Garantir assistência preferencial médica e odontológica e fornecimento de remédios aos idosos carentes e internados em residências para idosos. 264. Pugnar pela humanização dos asilos, inclusive promovendo visitas regulares do Conselho Estadual do Idoso às residências para idosos, para verificar as condições de funcionamento. 265.

Apoiar a criação da Curadoria do Idoso, no âmbito do Ministério Público.

266. Apoiar programas de estudo e pesquisa sobre a situação dos idosos com vistas ao mapeamento da situação dos idosos no Estado. 267. Incentivar à criação de cooperativas, microempresas e outras formas de geração de rendas para o idoso. 268. Criar e incentivar a criação de núcleos de atendimento-dia à terceira idade, com atividades físicas, laborativas, recreativas e associativas. 269.

Criar e incentivar programas de lazer e turismo para a população idosa.

270.

Apoiar a "Universidade para a Terceira Idade".

271.

Criar programas especiais de aluguel social para idosos de baixa renda.

3.11. Pessoas Portadoras de Deficiência 272. Apoiar o Conselho Estadual para Assuntos da Pessoa Portadora de Deficiência e incentivar a criação de conselhos municipais de defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. 273. Implementar políticas e programas de proteção dos direitos das pessoas portadoras de deficiência e sua integração plena à vida familiar e comunitária, priorizar o atendimento à pessoa portadora de deficiênc ia em sua residência e em serviços comuns de saúde, educação, trabalho e serviço social e facilitar o acesso a serviços especializados e programas de complementação de renda. 274. Formular e/ou apoiar normas relativas ao acesso do portador de deficiência ao mercado de trabalho e ao serviço público, bem como incentivar programas de educação e treinamento profissional que contribuam para a eliminação da discriminação. 275. Criar incentivos para aquisição e adaptação de equipamentos que permitam o trabalho dos portadores de deficiência física. 276. Promover campanha educativa para a integração da pessoa portadora de deficiência à sociedade, a eliminação de todas as formas de discriminação, divulgação da legislação sobre os seus direitos. 277. Assegurar aos portadores de deficiência oportunidades de educação em ambientes inclusivos. 278. Facilitar o acesso de pessoas portadoras de deficiência aos serviços de informação, documentação e comunicação social. 279. Desenvolver programas de remoção de barreiras físicas que impeçam ou dificultem a locomoção das pessoas portadoras de deficiência, garantindo a observância das normas técnicas de acessibilidade (ABNT 9.050/94) por todos os órgãos públicos responsáveis pela elaboração e aprovação de projetos de obras. 280. Garantir atendimento prioritário ao portador de deficiência em todos os serviços públicos. 281. Implementar políticas que contribuam para a melhoria do atendimento aos portadores de deficiência mental, por meio da regularização do trabalho abrigado, estímulo ao trabalho em meio aberto e construção de moradias devidamente equipadas e com pessoal capacitado. 282. Apoiar programas de estudo e pesquisa sobre a situação das pessoas portadoras de deficiência para mapeamento da sua situação no Estado. 283. Publicar guia de serviços públicos estaduais voltados à pessoa portadora de deficiência. 284. Apoiar programas de lazer, esporte e turismo, artísticos e culturais, voltados à pessoa portadora de deficiência.

285. Regulamentar a Lei Complementar estadual nº 683/92, que dispõe sobre reserva nos concursos públicos de cargos e empregos para pessoas portadoras de deficiência.

3.12. Homossexuais e Transexuais 286. Apoiar campanha pela inserção na Constituição Federal e na Constituição Estadual de dispositivo proibindo expressamente a discriminação por orientação e identidade sexual. 287. Apoiar programas de coleta e divulgação de informação junto a organizações governamentais e da sociedade civil sobre a questão da homossexualidade e transexualidade e da violência e discriminação contra gays, lésbicas, travestis e profissionais do sexo. 288. Pugnar pelo julgamento e punição dos autores de crimes motivados por discriminação centrada na orientação ou identidade sexual. 289. Apoiar a criação e funcionamento de casas abrigo para adolescentes expulsos da família por sua orientação ou identidade sexual. 290. Adotar medidas para coibir a discriminação com base em orientação e identidade sexual dentro do serviço público.

4 . Implementação e Monitoramento de Políticas de Direitos Humanos 291. Criar núcleo formado por representantes do Governo do Estado, da sociedade civil (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e Conselhos de Defesa da Cidadania) e da Universidade (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo) para coordenar e monitorar a efetivação do Programa Estadual de Direitos Humanos e elaborar relatórios anuais sobre sua implementação, a partir de relatórios parciais elaborados pelas Secretarias de Estado. 292. Acompanhar e apoiar as prefeituras municipais no cumprimento das obrigações mínimas de proteção e promoção dos direitos humanos. 293. Estabelecer acordos entre o Governo Estadual, governos municipais e organizações da sociedade civil, para formação e capacitação de agentes da cidadania, para atuar na formulação, implementação e monitoramento de políticas de direitos humanos e em particular do PEDH. 294. Assegurar a ampla divulgação e distribuição do Programa Estadual de Direitos Humanos no Estado, por todos os meios de difusão. 295. Apoiar o funcionamento do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e dos Conselhos Estaduais de Defesa da Cidadania. 296. Apoiar a criação e o funcionamento de conselhos municipais de defesa dos direitos humanos e de defesa da cidadania. 297.

Incentivar a elaboração de programas municipais de direitos humanos.

298. Apoiar o funcionamento da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa. 299. Apoiar a criação e o funcionamento de comissões de direitos humanos nas câmaras municipais. 300. Incentivar a formação de parcerias entre o Estado e a sociedade na formulação, implementação, monitoramento e avaliação de políticas e programas de direitos humanos. 301. Elaborar indicadores básicos para monitoramento e avaliação de políticas de direitos humanos e da qualidade de programas/projetos relativos aos direitos humanos. 302. Elaborar indicadores básicos para monitoramento e avaliação de políticas de segurança pública e de funcionamento do Poder Judiciário e do Ministério Público. 303. Divulgar anualmente as iniciativas do Governo do Estado no cumprimento do Programa Estadual de Direitos Humanos.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Adotada e proclamada pela Assembléia Geral na sua Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948

PREÂMBULO Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do homem; Considerando que é essencial a proteção dos direitos humanos através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão; Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações; Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla; Considerando que os Estados membros se comprometeram a promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais; Considerando que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da mais alta importância para dar plena satisfação a tal compromisso: A ASSEMBLÉIA GERAL Proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvo lver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição. Artigo 1º - Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 2º - I) Todo o ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, lingua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. II) Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. Artigo 3º - Todo o ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo 4º - Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas. Artigo 5º - Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Artigo 6º - Todo o ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei. Artigo 7º - Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. Artigo 8º - Todo o ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. Artigo 9º - Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. Artigo 10 - Todo o ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Artigo 11 - I) Todo o ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa. II) Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso. Artigo 12 - Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação. Todo o ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. Artigo 13 - I) Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. II) Todo o ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.

Artigo 14 - I) Todo o ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. II) Este direito não pode ser invocado em casos de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas. Artigo 15 - I) Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade. II) Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade. Artigo 16 - I) Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. II) O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. III) A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. Artigo 17 - I) Todo o ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. II) Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. Artigo 18 - Todo o ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. Artigo 19 - Todo o ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras. Artigo 20 - I) Todo o ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas. II) Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. Artigo 21 - I) Todo o ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. II) Todo o ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. III) A vontade do povo será a base da autoridade do governo, esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto. Artigo 22 - Todo o ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.

Artigo 23 - I) Todo o ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. II) Todo o ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. III) Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como a sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. IV) Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses. Artigo 24 - Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas. Artigo 25 - I) Todo o ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. II) A maternidade e a infância tem direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. Artigo 26 - I) Todo o ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnica e profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. II) A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. III) Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos. Artigo 27 - I) Todo o ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios. II) Todo o ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor. Artigo 28 - Todo o ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados. Artigo 29 - I) Todo o ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. II) No exercício de seus direitos e liberdades, todo o ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento

e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. III) Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas. Artigo 30 - Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer direitos e liberdades aqui estabelecidos.

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