Eu e outros nós, de Tiago Rivaldo Bernardo Mosqueira. (ao meu amor)

December 9, 2017 | Author: Pedro Santana Alcaide | Category: N/A
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1 Eu e outros nós, de Tiago Rivaldo Bernardo Mosqueira (ao meu amor) Eu vi um menino correndo eu vi o tempo brinc...

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Eu e outros nós, de Tiago Rivaldo Bernardo Mosqueira (ao meu amor) “Eu vi um menino correndo eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino. Eu pus os meus pés no riacho. e acho que nunca os tirei.“ “Lá longe era o mundo åquela hora coberto de sol. Mas haveria sol? Boiávamos em luar. O céu, uma difusa claridade. A terra, menos que reflexo dessa claridade.” “Eu perguntava, do you wanna dance?” Em 2001, ele deixava o Rio Grande do Sul e chegava ao Rio de Janeiro. Naquele momento, Tiago Rivaldo se propôs uma maneira de viver essa cidade. A nova solidão e as outras que surgiriam receberiam elaboradas reações poéticas. Os novos encontros e os velhos desencontros receberiam outros valores. Para cada investigação, para cada investida, para cada desejo, um novo jogo era proposto. As regras iniciais e os dados a rolar foram oferecidos a todos nas ocasiões das ações que se deram durante a exposição. O que esteve presente na mostra é parte do que Tiago acumulou ao dar vida a esses acordos nos últimos dez anos. Nesse catálogo, vamos ainda além da exposição. Pesquisando maneiras de investigar identidade, pertencimento, cadência, encontro e o comunicar, Tiago Rivaldo construiu formas de fundir o interior e o exterior da camera obscura como quem confunde objeto e tela, visual e tátil, observador e agente, retrato e paisagem, virtual e real. Tiago aprendeu a criar imagens como quem cria encontros. Descobriu como criar cor como quem faz caminho. Descobriu as proximidades entre o narrar e o andar e, sobretudo, Tiago Rivaldo nos apresenta e convida a um fazer arte que se faz como um fazer possíveis vidas e mais própria a própria vida. Túneis Chegando no Rio de Janeiro, Tiago ficou muito impressionado com os túneis da cidade. Deslumbramentos como esse são, frequentemente, inspiração formadora de seus trabalhos. Ao se propor penetrar e atravessar todos os túneis que cruzam as enormes pedras-montanhas da cidade do Rio, Tiago se propôs conhecer o novo território que escolhia como seu e entendeu que a chegada pode demorar. Não é ponto, é linha; não é clique, é fluxo; não é porta, é túnel. Utilizando uma simples câmera descartável, sem sua lente de plástico e com um pequeno furo, um pinhole, Tiago coloca o aparelho fotográfico em movimento dentro de seu objeto. Usada não mais como máquina mas, sim, como transporte do negativo que revela sua vontade em trabalhar com película, Tiago cria imagens que traduzem, em cada uma, a distância e a duração para atravessar cada um dos túneis.

Abolindo o aprisionamento do instantâneo em nome do interesse pelo momentâneo, Rivaldo exibe os resultados na intenção de registrar fluxos de tempo e espaço que mostram que o olho não é capaz de todas as possibilidades que a câmera aberta carrega. As fotografias são montadas como em um diagrama, sintetizando suas localizações no mapa da cidade do Rio de Janeiro. Cada uma das peças remete em sua forma, ainda, a placas de sinalização de trânsito, com seus cantos arredondados. Neste trabalho, cruzar os túneis e ter a película cruzada por suas luzes preconizam o desejo, mais evidente em trabalhos futuros, de marcar e ser marcado pela paisagem. Não se chega ao outro lado do túnel sem transformação. Obscura Vestível Em seu último trabalho feito em Porto Alegre, Tiago usava encaixado em sua face um tubo negro dentro do qual via, pela pequena estrutura de camera obscura criada no instrumento, a paisagem à sua frente de cabeça para baixo. Naquele momento Tiago pensava o objeto como um acessório do vestuário, interessado em questões relativas à moda na cultura. Não são à toa o título “vestível” e o fato de que a ação, em Porto Alegre, emitia um tom de desfile em espaço público. O trabalho carrega quem o veste e quem assiste a experiências de desorientação. Tiago demorou dez anos para repetir o trabalho na nova cidade. Precisou se sentir “local” antes da desorientação. Ironicamente, a ação em Porto Alegre se passou em um calçadão que reproduz padrão, em pedras portuguesas, semelhante ao de Copacabana. Na nova experiência, Tiago construiu uma caixa leve longa e trapezoidal que, para ser mantida na altura dos olhos, precisa que o artista se coloque de braços abertos. A sensação em quem observa é de estar na presença de alguém que, por não poder ver o que vemos, oferece um abraço impossível. Muito branco, usando sunga e a usual mochila, em dia de sol em frente à praia, Tiago causa muita curiosidade se assemelhando a um alienígena mestiço já tocado pela cultura carioca. O trabalho mostrado no Rio foi feito em dois dias de sol e é composto por seis fotografias que mostram partes da ação (sempre com pessoas se virando pra dar um outro olhar sobre o trabalho) e uma projeção com um vídeo que mostra o que era visto dentro da caixa. É interessante marcar que Tiago usa a expressão “estar lá dentro” para quando se está com o olhar voltado para dentro da câmera. Existe, como em muitos dos trabalhos do Tiago, um jogo complexo entre o que está dentro e o que está fora. Nesse caso, se dava pela vontade de mostrar, fora, o rastro luminoso do que, estando fora, ele via dentro da caixa. Volante Depois de algum tempo no Rio, Tiago teve de ir a Porto Alegre. Mais uma vez, questionando a banalidade dos acontecimentos, Rivaldo transforma poeticamente o cotidiano com o teor de sua vontade.

Dessa vez, registrar as viagens de ida e volta de carro entre Rio e Porto Alegre é, além de expor parte importante de sua pesquisa sobre fotografia viva, em/de movimento, é garantir e afirmar a volta ao Rio: é amostra da afirmação da decisão de uma mudança. Nesse trabalho, a câmera pinhole presa ao volante do carro registrava autorretratos de Tiago. As durações das exposições das fotografias eram os intervalos entre as paradas feitas no caminho para comer, ir ao banheiro, esticar as pernas etc. Um percurso narrativo se fazia. As cores das imagens, além de revelarem os horários e climas dos momentos, podem traduzir um braço apoiado ou a frequência dos cigarros. Se a reta é o caminho mais rápido entre dois pontos, quanto mais curvas a estrada tinha, mais transformado, distante do inicial, era o rosto de Rivaldo. Flanar Para um trabalho que faria em Paris, Tiago aproximou João do Rio a Baudelaire. O caminhar solto e atento é pleno em percepção: afirmação maior do indivíduo entre imagens. Mais uma vez maravilhado, Rivaldo deseja se imprimir sobre a paisagem, interferindo diretamente no resultado dos trabalhos. Dessa vez, os cartões postais do Rio são referência. Coincidindo com a época em que descobria o Reiki (prática espiritual budista japonesa de cura pela imposição das mãos muito difundida no Brasil), Tiago criou um instrumento com luvas especiais que portam lâmpadas de carro ligadas a uma bateria presa à sua perna. Após ter descoberto como transportar luz, Rivaldo se pôs a caminhar entre a câmera aberta e paisagens noturnas cariocas, criando, assim, desenhos cujas formas variam de acordo com a velocidade na qual o artista se locomoveu. A ação era, certamente, feita para o registro. A presença da câmera justificava, para o passante, o estranho que caminhava com luzes nas mãos. Tiago percebe, ainda, numa importante análise, que, mesmo que pudesse fazer esse trabalho sozinho, procurou sempre montar equipes que tornam o encontro e o outro imperativos ao trabalho. Era uma maneira de querer(PODE TIRAR) se apropriar da cidade, ser absorvido por ela, fazer parte da paisagem e da paisagem humana dela. O fazer das próprias mãos impresso sobre a cidade: das ações, nos restam os desenho das revoltas urbanas, trajetórias cometárias. Esperando Cravan É dito que Cravan, o controverso herói Dada de vida nebulosa, após seu casamento no México, colocou a esposa em um barco para a Argentina e decidiu navegar pelo mesmo caminho com um veleiro. Cravan nunca mais apareceria, e sua vida e desaparecimento se tornariam motivos de muita especulação. O trabalho de Tiago chamado “Esperando Cravan” é uma câmera-mirante que enquadra apenas o horizonte. O convite à contemplação é seguido pela sensação de que esperamos algo que demora muito a chegar e, talvez, não venha. Tiago sente a falta, fantasia um ressurgir Dada e dá sentido poético à espera por Cravan. Mas, com os olhos pousados sobre o horizonte, o que esperamos não surgirá de trás do mar, mas sim, de dentro de quem busca.

Via de mãos dadas, n.º 1 Em Amsterdam, no ano de 2004, após ter lançado um longa em que criticava o modo como a mulher é tratada na cultura islâmica, foi assassinado o diretor de cinema Theo Van Gogh por um muçulmano marroquino holandês. Tiago estava na cidade quando a população foi às ruas com tochas cobrar uma política do Estado em relação aos imigrantes e seu modo de ocupar a cultura local. Na cidade onde todos são ciclistas, surge, em Rivaldo, o questionamento de como dividir espaço (físico ou interno) de forma justa, horizontal, sem hierarquias. Depois de três anos estudando e repensando o trabalho, Tiago constrói a “bike”: objeto que é construído utilizando duas bicicletas que compartilham a roda traseira. O objeto, que remete à ideia de cabo de guerra e emana tensão, conflito, impossibilidade, luta e discórdia, precisa de seu uso como ação para que tudo possa ser colocado de outra forma. Diferente do que se imagina ao olhar o objeto, ele, de fato, pode ser utilizado. A roda central foi reforçada de modo a não se deformar pelo peso, pela tensão e pelas torções do encontro. Essa bicicleta, porém, não serve para sair de um lugar e ir a outro: o grande movimento no/do/pelo trabalho é interno. No processo de aprender a andar com essa nova bicicleta (quando ter controle, dar controle, ceder, sentir e se fazer sentido se mostram imprescindíveis), o pensamento, o equilíbrio, a força e a respiração conectados aos do outro colocam os participantes numa experiência que se constrói como a emergência de uma grande metáfora das relações. Retratopaisagem Novamente, o encontro pleno em vontade de fusão entre Tiago e a paisagem. Dessa vez, depois de procurar a vista certa, Rivaldo transforma o quarto de uma amiga em camera obscura. No propósito original, a luz se projetava sobre o rosto de um Tiago de olhos fechados, pois acreditava que, se encarasse a câmera ou o furo, não permitiria a própria passividade. Porém, acabou se mostrando possível, preciso e necessário ao mesmo tempo permitir e estar de olhos abertos. Dez anos após sua chegada ao Rio, Tiago se mostra pronto a receber a cidade. Ela pousa sobre ele - com todo o peso do Pão de Açúcar sobre o peito. E ele aguenta, vivo, atento, consciente, se fundindo em luz no processo, se fundindo nos grãos da impressão, se fundindo em vida na vida. Horizonte de nós dois Em festas e reuniões sociais, Tiago começou a recortar páginas de revistas e fotografar a sobreposição dos papéis aos rostos dos amigos. Com o mesmo propósito de se lançar sobre as questões de identidade, Tiago criou espelhos de duas faces e convida as pessoas a ficarem de frente umas para as outras com o espelho posto entre elas. O formato do espelho faz com que as pessoas possam ver o próprio rosto montado com os olhos da pessoa à frente ou ver os próprios olhos montados ao rosto do outro. O trabalho, invariavelmente, tirou as pessoas do sério: ver-se no rosto do outro ou ver o olhar do outro no próprio reflexo é desconcertante.

O silêncio que precede, em geral, a gargalhada nervosa é o (pode tirar) sinal de que há pacto sendo feito. Nesse pacto, os dois se reconhecem por compartilhar o mesmo desconforto em desejar e temer a perda da própria identidade. A vontade das pessoas em registrar em foto o reflexo e a dificuldade em fazê-lo fizeram com que Tiago elaborasse uma nova proposta. Rivaldo constrói um set fotográfico e convida o público a posar para uma foto na qual ele enquadra apenas os olhos do outro. A fotografia desse olhar é imediatamente impressa, e, então, Tiago troca de lugar com o participante, encaixa os olhos do outro no próprio rosto e pede que o colaborador o dirija até que esse possa fotografar a mistura entre seus rostos. Então, uma projeção exibe, em sequência, um grande número de fotografias de Tiago usando olhos de quem o fotografava. A presença do outro se mostra cada vez mais imperativa: por desejada. Olhar Condicionado Caminhando pela cidade, Tiago percebeu a enorme recorrência, nas fachadas, de buracos para condicionadores de ar vazios. Encontrou um desses até mesmo na própria casa. Tiago começou, então, a transformar esses espaços em camera obscura. Na simples instalação de uma placa de compensado com um orifício ao centro na face externa do buraco e uma placa de vidro jateado em sua face interna, a paisagem em frente ao orifício tem sua luz naturalmente projetada, de cabeça pra baixo, sobre o anteparo. Tiago concluiu o procedimento na própria casa, fez um vídeo que registra o efeito e expôs na galeria do Ibeu em seu próprio aparelho televisor ao lado de um pequeno cartaz. O impresso era um convite que propunha fazer a mesma operação na casa de um desejado colaborador voluntário em troca de poder exibir, durante a mostra, o vídeo feito na camera obscura do colaborador no televisor da própria pessoa durante o tempo restante de exibição. Olhar condicionado é um trabalho que deseja o encontro, precisa do outro, de seu interesse e de sua permissão. Tiago oferece o trabalho em troca de entrar na casa do outro, ouvir o outro, estar com o outro. Mais uma vez, Rivaldo confunde a membrana que separa dentro e fora: estando fora, troca pelo entrar; construindo a câmera, traz o que está fora para dentro; levando a TV para fora, adentra com ela o espaço expositivo que, por sua vez, sinaliza a fronteira, os laços e os poros entre o eu e o outro. Identidade Primeira carteira de identidade de Tiago emitida no Rio de Janeiro: roída por seus cachorros. Personal DJ - Baile da Mudança Uma das ações realizadas durante o período da exposição nasceu em parceria com Susana Guardado. A artista portuguesa realiza, desde 2008, a série “Personal DJ” de retratos sonoros em vídeo elaborados em parceria com o próprio retratado. Nessa ocasião com Tiago, foi intitulado “Baile da Mudança” e aproximava o interesse de Guardado na música como elemento agregador às cameras obscuras para encontros de Rivaldo.

Durante a ação, caixas de papelão preparadas com dois buracos recortados em forma de rosto e com dois pequenos orifícios sobre eles são oferecidas ao público para que, se e somente se duas pessoas encaixarem as faces nos recortes e vedarem as entradas de luz, a caixa se transforme em camera obscura e projete a paisagem invertida sobre os rostos dos participantes. Em geral, quando percebem como funciona o fenômeno, as pessoas começam a segurar com cuidado a caixa contra o próprio rosto, movendo o corpo para descobrir, com o enquadramento da projeção, novas imagens.Dessa forma, se movem com atenção ao movimento do outro. Isso, além do emparelhamento face a face, faz com que os pares pareçam dançar. Com muitas caixas, Tiago e Susana criaram um baile na praia de Copacabana. No lugar dos ícones recorrentes em caixas de papelão como a taça quebrada para “frágil” ou a seta orientando “este lado para cima”, entram o sinal de play para música, a taça convidativa à bebida, um par de setas indo e vindo para troca e um coração pleno para amor. Tiago, que já havia explorado o Rio de Janeiro, riscado a paisagem, encontrado o outro, trocado com o outro e recebido o peso da paisagem sobre si, agora faz um baile com seus amigos e com quem mais chegasse. Talvez nem soubéssemos, mas comemorávamos. Com música, bebida, troca e amor, comemorávamos os encontros que fazem o peso da paisagem e da cidade suportável; comemorávamos encontros que fundam trabalhos como esse, exposições como essa, catálogos como esse; comemorávamos o sorriso do outro ao receber a cidade sobre si e o sorriso de Tiago ao ver isso possível.

Por dentro da caixa-preta: variações da síntese na obra de Tiago Rivaldo Manoel Silvestre Friques in Seis Chaves- 1.ed. - Rio de Janeiro: Híbrida, 2012

o indivíduo não é senão o entrecruzamento necessário, porém variável, de um conjunto de relações Marc Augé Se pudéssemos sintetizar a obra de Tiago Rivaldo em uma única palavra, esta seria... síntese. Antes de ser reduzida a mero recurso tautológico, a síntese como síntese considera as variações em torno da ideia de condensação – temporal e espacial – entrevista nos trabalhos do artista. Tais variações deram-se de múltiplas formas e serão organizadas aqui em três abordagens distintas e permeáveis entre si. A primeira delas refere -se a um conjunto de trabalhos, produzido ao longo da primeira década do século XXI, no qual Rivaldo fabrica artesanalmente dispositivos fotográficos e, munido deles, passa a realizar deslocamentos no ambiente urbano – em especial, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, bem como nas rodovias que conectam as duas cidades. Integram esse grupo obras como Road movies e SubinônibuS (ambas de 2000), Câmera obscura vestível, nº1 (20002001), Túneis (desde 2001), Volante Rio–POA–Rio (2005) e Obscura para dois. Com exceção dos dois últimos – que, apesar de apresentarem o mesmo procedimento que caracteriza todos os outros, suscitam questões que nos conduzem às outras duas chaves de acesso, comentadas mais à frente – os trabalhos, em sua maioria fotográficos, apresentam imagens impregnadas de duração, uma vez que, por motivos técnicos, a fotografia de uma pinhole necessita de longa exposição. As fotos, com isso, apresentam uma atmosfera densa, resultante do percurso do artista sintetizado em uma única imagem. Cada foto – e isso impõe às suas imagens uma diferença radical em relação às fotografias instantâneas produzidas por câmeras digitais – revela-se como um aglomerado de imagens, todas consolidadas em uma só. Os trabalhos não refazem nem representam percursos, mas os revelam, condensados e sintetizados em uma única imagem. Cada fotografia apresenta-se a nós como puro deslocamento. Por decorrência desse filme amalgamado em um único fotograma, as imagens apresentam uma aura – e aqui, conscientemente, invoca-se Benjamin – fantasmática que impede o pleno reconhecimento de lugares, seres e coisas. Tudo nessas imagens é impreciso: não é possível identificar com nitidez nada, afinal, trata-se de capturar o transitório. Quando Rivaldo opta por uma relação com a imagem fotográfica que precede a sua industrialização – o artista não lança mão de dispositivos de alta tecnologia, mas os produz a partir dos princípios básicos da fotografia –, essa retomada dos procedimentos pioneiros não procura produzir, tal como outrora, imagens a partir da imobilidade dos objetos fotografados.

Se os primeiros aparelhos fotográficos necessitavam que seus modelos permanecessem imóveis, pois a longa exposição assim os solicitava, no caso das fotografias de Rivaldo, o movimento é o foco de interesse do artista, que procura capturá-lo em uma imagem-síntese. A aura decorrente daí não é a mesma dos primórdios da fotografia, que Benjamin descreveu apropriadamente em 1931. Sem dúvida alguma, ambas levam “o modelo a viver não ao sabor do instante, mas dentro dele” (BENJAMIN, 1999, p. 96). No entanto, enquanto nas imagens de fotógrafos como David O. Hill (1802–1870), a duração dá forma à pose, no caso de Rivaldo esta última desvanece. Isto é: nas fotos de Rivaldo, a pose se esvai, sublinhando o movimento e a imobilidade. As imagens-sínteses produzidas por consequência da longa duração exigida pelo aparelho criam retratos desorientadores – e a perspectiva crítica promovida por esse conjunto de trabalhos surge precisamente daí. Pois os locais nos quais se produzem as imagens são aqueles onde geralmente nós nos orientamos: avenidas, ruas e túneis apresentam-se como vias que nos direcionam, sempre, para um lugar determinado. Não se pode parar nesses locais, mas apenas passar por eles. Tal característica – comum a recintos como hotéis, aeroportos, redes de fast-food, caixas eletrônicos e shoppings – é um dos motivos que levaram o etnólogo francês Marc Augé a denominálos de “não lugares”, isto é, espaços impessoais e indiferenciados destinados à passagem, nos quais os indivíduos devem realizar ações previstas e já roteirizadas. SubinônibuS ou Túneis são imagens de não lugares: nos deparamos com fotografias que revelam o desnorteamento em meio a vias que, se por um lado apresentam-se como orientadoras, por outro oferecem-se como locais nos quais não é permitido criar nenhum tipo de vínculo e/ou de identificação. A desorientação é também trabalhada por Tiago Rivaldo nas obras Setas (a partir de 2004) e Dédalo1 (2011), que formam o segundo conjunto. Nelas, o artista deixa de lado a fotografia e passa a utilizar fitas adesivas para construir, sobre paredes e camas – dentre outros móveis que Rivaldo encontra nos quartos dos hotéis pelos quais transita – símbolos gráficos. O título do segundo trabalho evidencia a sua motivação: o artista assume a função do engenheiro grego que conteve o minotauro e produz sobre uma parede o seu próprio labirinto visual. A relação entre o gesto e a situação temporária (pois a confecção das setas se dá, muitas vezes, durante as viagens do artista) torna as setas rastros de seu itinerário. Como tal, o emaranhado multidirecional funciona como âncora – âncora de um deslocamento (síntese?). Um dos personagens mais clássicos da literatura do século XX é também mencionado indiretamente: Stephen Dedalus, reconhecido pela deriva urbana que é a sua vida narrada nas obras de James Joyce – neste caso, Dublin é a cidade personagem que se apresenta como labirinto para Dedalus e também para o homem moderno. Esse homem viveria hoje, segundo Augé, em uma supermodernidade, o outro lado da pósmodernidade caracterizado por espaços que não são relacionais, nem identitários, nem históricos.

Se, em Dédalo1, o convite para que o olhar se perca é motivado pelo labirinto, em Setas, Rivaldo produz aglomerados de setas, de modo que o coletivo de símbolos gráficos anule a função que um único exemplar possui. O procedimento utilizado pelo artista – qual seja, a neutralização da função de um objeto decorrente de suas multiplicação e inversão – aproxima Setas de Estojo de geometria (1977 – 1979), no qual Cildo Meireles, lançando mão de operação semelhante, une lâminas cortantes, pregos e machados de modo a destituí-los de suas respectivas funcionalidades. No trabalho de Rivaldo, as flechas reunidas não apontam univocamente para um alvo, mas sintetizam, na forma de aglomerados, desvios e evasões. Nos dois conjuntos de trabalhos comentados até o momento, seja por meio da fotografia ou de outros suportes, o artista focaliza a desorientação. A perspectiva subjacente a todas essas obras tematiza a deriva que constitui a experiência de nossa supermodernidade. A obra de Rivaldo, no entanto, não destaca apenas o malestar dessa condição, apresentando outras perspectivas menos desoladoras. Mais acima, afirmou-se que os trabalhos Volante Rio–POA–Rio e Obscura para dois, apesar de partirem da elaboração de pinholes, apontariam, tal como as obras do primeiro grupo, para questões que tornam-se mais explícitas no terceiro grupo de obras, composto por Via de mãos dadas nº1 (2008) e nº2 (2010), Fio dental (2007), Horizonte de nós dois (2011) e Sem Título, ou Carta Social, ou Carta-pretexto, ou Carta-protesto (2003). Vejamos por quê. Volante Rio–PoA–Rio é uma série de autorretratos do artista produzidos com a pinhole. Do mesmo modo que nas imagens-síntese do primeiro grupo, nesse trabalho o rosto do artista aparece desfocada e fugazmente, sendo, cada imagem, a condensação de uma duração da face e não apenas de um instante de sua aparência. Por sua vez, Obscura para dois só é possível com a colaboração de dois indivíduos, que devem preencher os dois buracos da caixa de papelão, para que ela se torne uma câmera obscura. No terceiro grupo de obras, tanto a figura do artista quanto a participação de terceiros estão presentes de modo conjunto. Em Horizonte de nós dois e Sem Título, ou Carta Social, ou Carta-pretexto, ou Cartaprotesto Rivaldo expõe a imagem de seu corpo, bem como solicita a colaboração de outros participantes. No primeiro caso, são construídos rostos derivados de dois sujeitos: a parte inferior da face origina-se do artista, enquanto a parte superior (do nariz para cima) provém do rosto convidado. Cria-se, com isso, uma nova identidade, a meio caminho de um rosto e outro. A multiplicação de possibilidades, resultante das inúmeras imagens produzidas pelo artista, faz desse trabalho um acervo fisionômico, não do real, mas de uma derivação do real, criando fotografias que ilustram visualmente as interações intersubjetivas do artista com seus colaboradores. Assim, Rivaldo cria faces para transações relacionais, produzindo simultaneamente um retrato e um autorretrato, sintetizados em um único rosto.

Em Sem Título, ou Carta Social, ou Carta-pretexto, ou Carta-protesto, o artista solicita outro tipo de comprometimento dos interlocutores. Em 32 cartas despachadas por Rivaldo a amigos de Porto Alegre, ele, além de cumprimentá-los, enviou-lhes instruções para que cada correspondência fosse levada à inauguração da exposição e fixada em um mural junto às outras, de modo a configurarem, em conjunto, o seu retrato em 3x4 ampliado. O resultado da proposta é um quebra-cabeça coletivo, expondo sete peças ausentes, nas quais a figura do artista (que não estava presente na exposição) ressurge fragmentada. Cada peça do quebra-cabeça apresenta uma trajetória singular: partindo de um ponto comum (o próprio artista), elas tomam percursos diferenciados, até convergirem parcial e novamente no suporte da exposição. Nesse trabalho, a imagem do artista se torna possível por meio da colaboração de terceiros – dependência que não permite a visualização completa de seu rosto, mas lhe impõem lacunas que, por sua vez, podem e devem ser completadas por outros colaboradores, aqueles que, sem participar diretamente do feito, apenas visualizam o seu resultado. Em Via de mãos dadas nº1 e nº2 e Fio dental, a síntese aparece como resultado de proposições dialógicas e temporárias entre o artista e seus colaboradores. Nos dois vídeos que compõem Via de mãos dadas, Rivaldo investe na constituição de um elemento comum resultante do comprometimento entre ele e seu interlocutor. Em um caso, o artista e seu interlocutor estão frente a frente, perfilados frente à câmera. Suas bocas passam então a produzir repetidamente bolhas de sabão, que, por sua vez, se interpõem entre os dois indivíduos. Com o passar do tempo, as bolhas ora se chocam, destruindo-se mutuamente, ora se unem, formando uma esfera frágil, que estabelece um elo temporário entre os dois sujeitos. Tal elo, sem dúvida alguma, funciona como um espaço – frágil e fugaz – no qual pode-se observar a plena produção da síntese. No entanto, o vídeo revela, com maior frequência, a destruição de uma bolha por outra, fato que parece querer sublinhar a dificuldade em se obter um espaço compartilhado, por mais delicado e temporário que seja. O que resulta de uma ação relacional não é, portanto, uma coesão entre os sujeitos implicados, mas um esforço em estabelecer bolhas efêmeras e quebradiças que criem espaços para a constituição do comum. Já no primeiro vídeo da série, Rivaldo cria uma bicicleta preparada, formada por duas bicicletas que dividem uma única roda traseira. Tal como no trabalho anteriormente comentado, e também em Fio Dental, na obra em pauta observa-se um conjunto de tensões produzido por decorrência da dificuldade em se instituir o comum. Aqui, o artista e seu colaborador permanecem de costas um para o outro, em direções inversas. A situação, portanto, parte de uma oposição: um deve ir para um lado, enquanto que o outro necessariamente deve seguir o caminho contrário. Ela, com isso, impõe a impossibilidade de os agentes envolvidos trilharem o mesmo caminho. Assim como em Setas, em que Rivaldo neutraliza a função do elemento gráfico por meio de sua multiplicação, aqui o artista torna inviável a opção por uma direção sem que esta não seja oposta a um dos agentes envolvidos. A diferença entre as duas obras é crucial: na primeira, focaliza-se a desorientação, por meio de uma densidade de

setas agrupadas em direções opostas; essa também é a preocupação do primeiro grupo de trabalhos, nos quais as fotografias surgem como imagens-sínteses de deslocamentos. No entanto, no caso de Via de mãos dadas, a síntese não procura sublinhar o desgoverno, mas as possibilidades relacionais entre dois indivíduos. Aqui, partese da oposição para revelar a oscilação de uma direção à outra como movimento ondulatório possível entre as partes. Tese e antítese, para além da polarização, parecem se equilibrar por meio de uma negociação entre os agentes. Tal síntese diz respeito aqui à mobilidade do binômio atividade-passividade entre os indivíduos, criando assim uma dialética relacional. Isto é, o condutor é conduzido – de fato, para que possa orientar o movimento, o ciclista da bicicleta preparada de Rivaldo precisa também ser orientado. Essa troca de funções entre os agentes, sem que haja uma atribuição estável dos papéis de sujeito e de objeto, é observada sobretudo em Obscura para dois – na qual há um mergulho de dois sujeitos no interior da caixa-preta. A industrialização da fotografia é o que, para Benjamin, inaugura o seu declínio. A partir de então, dois fenômenos ocorrem simultaneamente. De um lado, a fotografia perde a sua especificidade, transformando-se em objeto teórico, fato que permite que o crítico alemão eleja uma característica da fotografia, o click 1 do fotógrafo, para observar a experiência do choque na modernidade. De outro lado, a caixa-preta adquire tamanha complexidade que se torna um aparelho opaco, do qual o fotógrafo não possui domínio algum. Por mais que tenha conhecimento de determinados aspectos técnicos característicos da máquina fotográfica, o indivíduo só consegue controlar o seu input e o seu output, ignorando os processos internos que ocorrem independentemente dele. O interior da caixa-preta não está, portanto, disponível ao sujeito. Tal possibilidade manifesta-se justamente em Obscura para dois. Nesse trabalho, Rivaldo esvazia a caixa-preta de toda a sua complexidade tecnológica e, no lugar dela, propõe uma dinâmica de olhares que faz com que o ato de visão perca a sua unilateralidade. No interior da caixa-preta, a visão do outro pelo sujeito condiciona-o a também ser objeto do olhar de quem o está vendo. O sujeito se afirma na mesma medida em que se define como objeto. Como era de se esperar, observa-se aqui também uma síntese resultante do tratamento dado à caixa-preta, que, por sua vez, deixa sua aridez industrial de lado para ser o espaço no qual se promove o intercâmbio entre agentes e funções. Na verdade, pode-se dizer que não há fotografia, mas experiência fotográfica, em que aquilo que se focaliza não é uma imagem-síntese, como em outros trabalhos de Rivaldo, mas a síntese enquanto relação. Mas isto é apenas uma variação. _____________________________ 1 É Rosalind Krauss quem percebe as abordagens distintas de Benjamin em “A pequena história da fotografia”, publicado em 1931, e o famoso ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de 1936. Os cinco anos de diferença entre os dois textos indicam uma mudança radical no pensamento de Benjamin a respeito da fotografia.

Referências bibliográficas: AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1999. KRAUSS, Rosalind. Reinventing the medium. Critical Inquiry. Chicago: University of Chicago, Inverno 1999. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa‐preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

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