December 27, 2021 | Author: Antônio Coimbra Santos | Category: N/A
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CAPOEIRA
(DES)CONSTRUINDO DISCURSOS E PAPÉIS SOCIOCULTURAIS EM “NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS”, DE CRISTIANE SOBRAL _____________________________________
Revista de Humanidades e Letras
ISSN: 2359-2354 Vol. 1 | Nº. 2 | Ano 2015
Taise Campos dos Santos Pinheiro de Souza
RESUMO O seguinte artigo analisa, de forma comparativa, o poema “Não vou mais lavar os pratos” da escritora negra Cristiane Sobral (2010) e a Lei Áurea (Lei Imperial n.º 3.353), bem como os papéis domésticos e socioculturais historicamente construídos em torno da mulher. Para tanto será tomada como fundamentação teórica textos da área de Literatura Comparada que discutem sobre conceitos como paródia, crítica, leitor ativo, ironia intertextual, entre outros. Desse modo, será colocada em foco uma discussão sobre o uso, pela mulher negra, enquanto sujeito marginalizado, da literatura como uma forma de debater criticamente discursos e construções socioculturais, procurando desestabilizá-los. Palavras-chave: mulher negra; papéis socioculturais; Lei Áurea.
_____________________________________ ABSTRACT The following article comparatively analyzes the poem “Não vou mais lavar os pratos” of the black writer Cristiane Sobral (2010) and the Golden Law (Imperial law n.º 3.353), as well as the domestic and socio-cultural roles historically built around women. In order to do so, Compared Literature will be taken as theoretical foundation to discuss concepts such as parody, criticism, active reading, intertextual irony, among others. Thereby, focus will be placed in a discussion of the use, by black women, as marginalized subjects, of literature as a way to critically debate discourses and sociocultural constructions, looking to destabilize them. Key-Words:black woman; sociocultural roles; Golden Law. Site/Contato www.capoeirahumanidadeseletras.com.br
[email protected] Editores Marcos Carvalho Lopes
[email protected] Pedro Acosta-Leyva
[email protected]
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(DES)CONSTRUINDO DISCURSOS E PAPÉIS SOCIOCULTURAIS EM “NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS”, DE CRISTIANE SOBRAL Taise Campos dos Santos Pinheiro de Souza 1. Introdução A literatura comparada, ao longo do tempo, tem se configurado como um campo vasto e profícuo na abrangência de diversos discursos e diferentes tipos de textos e objetos de estudo e discussão, assemelhando-se, nessa perspectiva, ao campo dos estudos culturais, o que permite, em ampla escala, o diálogo entre esses dois campos. E “se estabelecido em bases críticas e reflexivas, tal diálogo pode tornar-se bastante produtivo para ambas as áreas, nestes tempos de globalização, crise de paradigmas científicos e disciplinares e enfraquecimento de discursos hegemônicos”. (MARQUES, 1999, p. 58). Como vemos, o diálogo entre Literatura comparada e Estudos culturais torna-se possível e necessário nesses tempos de globalização, em que a fluidez de discursos e sujeitos é marca peculiar e a quebra de discursos rígidos e estáveis se opera juntamente com essa mobilidade e liquidez dos sujeitos e dos tempos atuais. Desse contexto, emergem novas construções identitárias, reposicionando a relação do indivíduo consigo mesmo e com o outro. No texto “A identidade, da modernidade ao seu depois”, do livro Indivíduo singular plural: a identidade em questão, do autor Eduardo Leal Cunha (2009) vemos clara essa abordagem sobre a questão da identidade articulada à modernidade ocidental, a partir da obra do sociólogo britânico Anthony Giddens. O mesmo discute sobre o como o indivíduo contemporâneo utiliza a identidade como instrumento para lidar com o mundo ao redor, as instituições e os indivíduos que o cercam, procurando se posicionar frente a essas relações com o mundo, consigo mesmo e com o outro. Diante de tal conjuntura é importante ressaltar que: [...] a “identidade” agora se tornou um prisma, através do qual outros aspectos tópicos da vida contemporânea são localizados, agarrados e examinados. Questões estabelecidas de análise social estão sendo desmontadas e renovadas para se adaptarem ao discurso que agora gira em torno do eixo da “identidade” (BAUMAN, 2008, p. 178).
Falar de identidade como eixo que relaciona diversos aspectos da vida não somente social, mas também cultural e política, é problematizar a realidade, seus meandros e as várias redes de poder nela circunscritas. Significa pensar esses aspectos, essas dinâmicas de poder em relação com o indivíduo, a partir do lugar de fala, de enunciação e subjetivação do mesmo na tessitura desses processos.
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É pensando, em nossos tempos, na politização das identidades, nas possíveis imbricações, interligações entre Literatura comparada e Estudos culturais que a partir da leitura interdiscursiva entre o poema “Não vou mais lavar os pratos”, da autora Cristiane Sobral (2010) com a Lei Áurea (Lei Imperial nº 3. 353), os discursos e papéis socioculturais construídos em torno da mulher, que iremos refletir e colocar em pauta como a mulher negra, enquanto pertencente a uma maioria subjugada, ou seja, as chamadas “minorias”, pode através de um discurso literário e poético
contestar,
desestabilizar
representações,
ordenações
simbólicas,
funções
socioculturalmente construídas em torno da mulher, colocando-as em xeque a partir da escrita literária que se tece de maneira paródica e crítica, operando um movimento que põe em vista as alteridades da mulher subalternizada.
2. Abolição da escravatura, ontem e hoje Antes, porém, de nos atermos a uma análise do poema “Não vou mais lavar os pratos”, em relação aos papéis sociais impostos à mulher e a Lei Áurea, é necessário aqui explanar a referida lei e colocá-la em discussão. Há quase 127 anos foi sancionada por Isabel, princesa Imperial do Brasil a Lei Áurea (Lei Imperial n.º 3.353), em 13 de maio de 1888, que aboliu a escravidão no Brasil. No entanto, sabemos que essa não foi uma conquista fácil e rápida, uma vez que homens e mulheres, negros e negras, relegados à condição de não-cidadãos, foram por muito tempo oprimidos e coisificados pela sociedade escravocrata brasileira. A conquista da abolição foi fruto de muitas lutas e resistências por parte dos escravos, que naquela época se organizavam da maneira que podiam para tentar escapar das penas da escravidão. Além disso, o movimento abolicionista, feito por muitos que também almejavam a República, foi crucial no processo de aprovação da Lei. Esse marco histórico pareceu, de início, ter sanado totalmente a escravidão e o racismo com os negros, no entanto, não conseguiu impedir a
[...] marginalidade em que caiu a grande maioria dos negros, deslocados sem emprego para os centros urbanos e reforçando, assim, a discriminação racial. Dessa forma, o Brasil continuava, mais do que nunca, distante da modernidade idealizada de nação – a de homens livres numa sociedade não escravocrata (MALARD, 2006, p. 55-56).
Assim, observamos que o sentido de escravidão vai muito além de suas primitivas formas; as “senzalas”, hoje, se reconfiguram em outros processos de subjugação dos descendentes de negros e se reatualizam sob diversas perspectivas, uma vez que homens e
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mulheres negros (as) foram e ainda são condicionados ao papel de subalternos, por parte de uma sociedade estruturada pelo viés branco e masculino, pois: o racismo não cessou, mas está “ em progresso no mundo contemporâneo, sob tradicionais ou sob novas roupagens.” (MALARD, 2006, p. 49). Esse processo histórico de marginalização, exclusão e opressão dos negros, foi ainda mais ferrenho para com as mulheres negras, uma vez que estas além de comportarem a marca racial, são também estigmatizadas pelo viés do gênero. Por isso, é preciso apontar criticamente
[...] a dupla situação de discriminação e preconceito a que são submetidas as mulheres negras, que vivenciam em seus cotidianos situações onde racismo e sexismo se cruzam, agravando ainda mais a experiência da exclusão social em todos os âmbitos da sua vida (FALU, 2006, p.10).
Diante dessa constatação, observamos que as mulheres negras foram e ainda são marginalizadas, a partir dessas duas categorias, a de raça e de gênero, aliando-se ainda, por várias vezes, a de classe. Assim, foi construída uma imagem para a mulher como subalterna e que é socialmente e culturalmente imposta a cumprir certos papéis, funções que se configuram como outras formas de escravidão, que historicamente naturalizadas, são muitas vezes despercebidas ou negligenciadas. Portanto, a abolição da escravidão vai muito além da assinatura, decreto de uma lei, pois compreende questões socioculturais e políticas muito maiores, que ao longo do tempo vão se manifestar de diversas formas e a partir de diferentes sujeitos-alvo dessa lei. Como iremos perceber mais adiante a partir do poema “Não vou mais lavar os pratos”, a escravidão se traveste de outras maneiras, sutis e cotidianas, mas a luta e conquista da abolição, ampliando aqui seu alcance para questões não só raciais, mas de gênero, deve ser feita a cada dia, a cada desconstrução, mobilização pelos sujeitos sociais historicamente marginalizados.
3. Ressignificação de discursos e construções socioculturais por meio do texto literário
Como vimos, a abolição da escravidão no Brasil ocorreu em seus termos legais, porém não se concretizou plenamente, uma vez que vemos em nosso percurso histórico e social outras e renovadas formas de dominação, sendo a mulher, especialmente a negra esse outro, muitas vezes oprimida. Nesse contexto, muitas mulheres passaram a utilizar a escrita como forma de luta e contestação, contra a opressão e inferiorização, utilizando recursos textuais como a paródia para explanarem seus problemas, aliando a literatura a uma perspectiva histórica, social e cultural. Assim, a intertextualidade, em muitos casos irônica, a paródia: “é uma das principais maneiras Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.1 | Nº. 2 | Ano 2015 | p. 86
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pelas quais as mulheres e outros ex-cêntricos (sic) usam e abusam, estabelecem e depois desafiam as tradições masculinas na arte”. (HUTCHEON, 1991, p. 175). De autoria da escritora negra Cristiane Sobral (2010), o poema Não vou mais lavar os pratos é um exemplo dessa escrita feita por sujeitos historicamente subalternizados e invisibizados por uma ordem literária e artística que preconiza o ser homem e tudo o que este produz. A escrita de Sobral faz parte da construção desse discurso, que insere a mulher no mundo como sujeito ativo crítico-reflexivo, que ajuda a (des) construir a si mesmo e ao seu espaço social; vejamos:
Não vou mais lavar os pratos Nem vou limpar a poeira dos móveis Sinto muito. Comecei a ler Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi Não levo mais o lixo para a lixeira Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos a estética dos traços, a ética A estática Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros mãos bem mais macias que antes e sinto que posso começar a ser a todo instante Sinto [...] Tenho os olhos rasos d’água Sinto muito Agora que comecei a ler, quero entender O porquê, por quê? E o porquê Existem coisas Eu li, e li, e li Eu até sorri E deixei o feijão queimar… Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto Considere que os tempos agora são outros… Ah, Esqueci de dizer. Não vou mais Resolvi ficar um tempo comigo [...] De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi você foi o que passou Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto Desalfabetizou Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá [...] Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler [...] Sendo assim, não lavo mais nada e olho a sujeira no fundo do copo Sempre chega o momento De sacudir, de investir, de traduzir Não lavo mais pratos Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo Em letras tamanho 18, espaço duplo Aboli Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.1 | Nº. 2 | Ano 2015 | p. 87
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Não lavo mais os pratos Quero travessas de prata, cozinhas de luxo E jóias de ouro Legítimas Está decretada a lei áurea. (SOBRAL, 2010, p.25)
A autora desconstrói por meio de seu poema os papéis socialmente e historicamente instituídos para a mulher e, nesse processo, através do eu poético do texto busca o rompimento de mecanismos cotidianos de opressão e exploração feminina que se modelam como formas de escravização para mulher. Assim, a escritora realiza um verdadeiro “jogo paródico” que explana e questiona, a partir da sua voz poética, a vida cotidiana da maioria das mulheres que são submetidas e impelidas, desde cedo, a cumprir funções domésticas, não remuneradas. Essa voz ajuda a perceber o quanto essa mulher doméstica subalternizada é uma construção sociocultural e histórica que pode ser desestabilizada, desmontada, a partir do texto literário, mostrando que “entre o público e o privado, a mulher que escreve estabelece seu mundo imaginário, procurando dizer de si mesma aos outros e propondo novas maneiras de estar e fazer” (FREITAS, 2002, p.120). O discurso autônomo da mulher, enquanto sujeito excêntrico, afirma o quanto hoje, numa era pós-colonial, faz-se necessário a emergência de outros pontos de inscrição, de vozes antes subjugadas. Essa enunciação discursiva revela a mulher como sujeito do discurso, que fala, que tenciona as relações de poder presentes em seu contexto social, mostrando que, mesmo subalterna, não se coloca na posição de “coitadinha”, que explana seus problemas e fica de maneira inerte a se lamentar. Não! A escrita de Sobral nos revela a mulher subalterna que explana seus problemas, seus contextos de opressão, não para se alienar, mas para desestabilizar, mexer com os sistemas de dominação, opressão que a perpassa, mobilizando assim novas construções representativas e identitárias. Esse movimento de questionamento, de instabilidade, nos faz pensar na negação da subalternidade como um tipo de resistência à interpelação hegemônica e suas representações, como nos aponta Alberto Moreiras (2001). Assim, a mulher ganha voz e faz emergir sua alteridade por meio da arte, do texto, lançando novas representações sobre si própria, através da negação . No poema, vemos essas negações através de expressões como: “não vou mais”, “não levo mais”, “não lavo mais”, entre outras, mostrando que o modo de ser e agir dessa mulher configura sua própria identidade. Portanto, ela, à medida que desconstrói papéis e funções, estabelecidas historicamente e desmascara o que é legitimado, gera uma nova percepção de si mesma e a construção de outra identidade, que mostra essa mulher politicamente esclarecida que busca reverter uma ordem pré-estabelecida.
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A posição da mulher subalternizada que escreve, que desestabiliza, que empreende um novo modo de vida, nos faz ver que a literatura vai além do estético e que “a atividade artística do escritor não se desloca da sua influência política; a influência da política pelo cidadão não se desloca da sua atividade artística” (SANTIAGO, 2004, p. 66). A atividade da escrita deve, pois potencializar a vida, se fazer presente como prática social, de intervenção, mobilização, e é esse jogo discursivo que se faz presente no poema de Sobral. A autora, além de desconstruir funções e papéis construídos em torno da mulher, os realoca, ao mostrar que são remanescentes do período da escravidão no Brasil, uma vez que ao elencá-los e desestabilizá-los, ela faz menção à Lei Áurea, o que problematiza a abolição dessa escravidão. A imposição de tarefas domésticas à mulher não seriam formas continuadas e ressignificadas de escravização, no sentido de subordinação da mulher ao patriarcado? A cozinha, hoje, denominada por muitos como o espaço reservado à mulher, em sua maioria negra, não representaria apenas a transposição do ambiente anterior da senzala? Sim, a opressão, a subjugação se repetem sob novas e diferentes formas. E o que essa mulher enquanto sujeito marcado por essas opressões faz é contestar, problematizar, apropriando-se do texto literário, antes espaço reservado apenas para o homem e branco, mostrando que a construção literária deve ser plural e que hoje “O texto escuta as ‘vozes’ da história e não mais as representa como uma unidade, mas como jogo de confrontações.” (CARVALHAL, 2006, p. 48). E que ainda:
[...] um dos efeitos dessa pluralização discursiva é o de que o centro (talvez ilusório, mas já percebido como sólido e único) da narrativa histórica e fictícia é disperso. As margens e as extremidades adquirem um novo valor. O “ex-cêntrico” – tanto como offcentro quanto descentralizado – passa a receber atenção (HUTCHEON, 1991, p.170).
Nessa perspectiva, o texto literário de Sobral rompe com uma tradição formada, reverte uma ordem, rompe com uma estrutura linear, centralizadora que, tradicionalmente, privilegia o discurso pautado pela voz do homem e parodicamente a esses e outros discursos, dá lugar às diferenças, mostrando uma imagem de uma mulher diferente da perpassada pela maioria dos discursos que se instalam sob a ótica masculina. A autora faz referência à Lei Áurea e a novos modos de libertação da mulher, especialmente a negra, que ultrapassam um sentido de abolição em seu aspecto superficial e prontamente dado, nos fazendo perceber o “forte impacto, tanto no nível formal, como no nível ideológico, que a intertextualidade paródica pode produzir” (HUTCHEON, 1991, p. 176). O poema de Sobral configura-se então como texto político, que ironicamente recria e reposiciona esses papéis socialmente imputados à mulher e que, parodicamente, ressignifica a Lei Áurea e os devidos efeitos que deveriam surtir no dia-a-dia das mulheres, especialmente a Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.1 | Nº. 2 | Ano 2015 | p. 89
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negra, subalternizada pelo viés não só de gênero, mas racial o que torna seu processo de exclusão e exploração maior. Ainda o eu poético do texto atua na desconstrução de uma imagem passiva, inerte, serviçal da mulher, recriando-a como o sujeito ativo, e um traço importante a se ressaltar: evidencia a mulher como sujeito do conhecimento. A autora, por diversas vezes, refere-se ao ato de ler e reaprender a ler como aspecto importante nesse processo de politização e construção de uma autonomia feminina, que toma conhecimento do letramento “do poder”! Poder de sair da subalternização através da escrita e leitura. Ler
aqui no sentido de refletir, questionar,
problematizar, ler de forma produtiva, como nos aponta Hall (2003), codificando e decodificando os discursos naturalmente perpassados, retirando-os de sua aparência inocente. É, pois assim, que essa mulher, enquanto sujeito que se apropria do conhecimento, que se mostra uma leitora politica, socialmente e culturalmente contextualizada vai operar um movimento desestabilizador sobre discursos, representações que, mostrando que a literatura,
[...] prática artística e discurso altamente prestigiado, é perpassada por uma série de valores culturais, dialogando com as relações de poder presentes na sociedade. São criações artísticas que podem ser transgressoras ou reprodutoras de estereótipos [...] (LEAL, 2011, p.217).
E, portanto: “[...] a obra literária não está isolada, mas faz parte de um grande sistema de correlações” (CARVALHAL, 2006, p. 48). Essas correlações são, pois implicações da leitura produtiva de outros textos, da recepção dada a estes, recepção esta que modifica, realoca, potencializa e ressignifica o s sentidos de um texto antes lido, permitindo, como nos aponta Nitrini (2010) essa recepção que atua por uma via dupla abarcando o efeito produzido por uma obra e a maneira recebida por quem lê. Assim, podemos dizer que a autora Cristiane Sobral opera um movimento de recepção para com esses papéis socialmente construídos em torno da mulher e veiculados em uma quantidade maciça de discursos, do ponto de vista masculino, ao longo da história. Opera um movimento de (re) apropriação da Lei Áurea, deslocando e recriando seu sentido, resignificando a ideia de abolição de uma forma que se relaciona ao seu contexto de opressão atual. Desse modo, o leitor e também
produtor, que se coloca a partir de um entrelugar
(BHABHA, 2011) cultural que é entrecortado por relações de poder, de histórias, de momentos e significações vai justamente movimentar, suplementar um discurso literário que não é inocente, que perigosamente se constrói em meio a tensões. Assim, “tendemos a falar hoje de literaturas em condições histórica e socialmente específicas de produção e recepção” (BEVERLEY, 1997, p. 12). Por essa via, a literatura pode recepcionar criticamente um texto, no seu sentido amplo e realocá-lo, voltando a questões já trabalhadas, mas que ainda permanecem, como a escravidão, Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.1 | Nº. 2 | Ano 2015 | p. 90
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trazidas por Sobral de uma nova e reatualizada forma, mostrando que “a importância de tal retroação está na sua habilidade de reinscrever o passado, de reativá-lo, de realocá-lo, de ressignificá-lo ”(BHABHA, 2011, p. 94, grifo do autor). Ainda esse movimento desestabilizador é impelido por novas concepções que se formam em meio a uma sociedade dita pós-moderna, contemporânea, globalizante e, nesse sentido, o indivíduo que tende a empreender novas maneiras de lidar consigo mesmo, com o outro e com o mundo, tende também ao questionamento, à quebra de conceitos, ideias, representações que se sobrepõem a sua própria identidade, evidenciando que “[...] as coisas são observadas quando desaparecem ou se quebram, elas devem primeiro sair do rotineiramente ‘dado’ para que a busca por suas essências comece e as perguntas sobre sua origem, paradeiro, uso e valor sejam feitas” (BAUMAN, 2008, p. 179). É isso que vemos de maneira explicita no poema “Não vou mais lavar os pratos”, uma vez que, a autora, através da voz poética do texto, se insere num movimento de questionamentos, indagações e novas proposições, se colocando como esse ser atual, porque “agora os tempos são outros”. É tempo de repensar, de ressignificar conceitos, essências, formas naturalmente dadas e de visibilizar sujeitos ativos, como mulheres que pensam, repensam e reconstroem seus contextos.
Considerações Finais Constatamos como o poema “Não vou mais lavar os pratos”, da autora Cristiane Sobral (2010) tem um cunho sociocultural e político de grande relevância, ao expor um eu poético que representa as microlutas feministas e milhares de mulheres, que ainda vivem cotidianamente em contextos de opressão, exploração e subjugação. A literatura feita por uma mulher negra, que se coloca como sujeito do discurso, nos mostra como a apropriação do texto literário por parte dos grupos chamados ex-cêntricos, tem contribuído para desestabilizar, deslocar representações, normatizações e formas naturalizadas de ser, estar e fazer. Cristiane Sobral, por meio do texto, questiona e nega discursos, funções, papéis socialmente instituídos para a mulher, atua também na construção de uma nova identidade para a mesma, mostrando a mulher, aqui em especial a negra, como ser capaz de irromper e jogar com as alternâncias de poder circunscritas em seu meio social, em sua vida cotidiana. Ainda o jogo irônico e paródico realizado ao longo do texto evidencia como, através da incorporação deslocada, reposicionada do discurso do outro, a literatura pode funcionar de forma social, política e cultural. Também pode subverter ordens de exploração, subjugação do outro,
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instaurando novos e ressignificados modos de vida, de atuação, que vem não para destruir tudo o que já foi dito, mas para desestabilizar, ressignificar. Dessa forma, revela-se uma literatura que não é inerte, que aliada ao estético, obtém alcances culturais significativos. O poema de Sobral nos ajuda a refletir sobre a importância da escrita e da leitura, como ferramentas de apropriação, por parte das mulheres, no alcance de uma autonomia perante sistemas sociais de exclusão, que advém de um processo histórico, como o da escravidão. O desmonte, feito por Sobral, da Lei Áurea nos leva à reflexão sobre a necessidade do Letramento, inclusive escolar, para à sensibilização de inúmeras mulheres, que ainda cotidianamente são tocadas por processos de opressão, do direito à liberdade. Portanto, compreendemos que o texto poético de Sobral é uma verdadeira ferramenta de questionamento a instituições, a modos de dominação e escravização contemporâneas para com a mulher, ao mesmo tempo em que cria para mulher novos modos de ser e agir, revelando o quanto a escrita e a literatura se aliam à crítica cultural, a partir da problematização de diversas questões sociais e da apropriação de discursos autônomos por parte das minorias em seus diversos contextos.
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Taise Campos dos Santos Pinheiro de Souza Mestranda do Pós- Crítica - Programa de Pósgraduação em Crítica Cultural da UNEB Universidade do Estado da Bahia/ Campus II Brasil. É licenciada em Letras Vernáculas pela mesma Universidade, em que desenvolveu o trabalho de IC – Iniciação Científica (20092010) com o mapeamento de escritoras africanas e latino-americanas de Língua Portuguesa, com o apoio da FAPESB – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia. Atualmente, também, é pesquisadora-bolsista da FAPESB e se dedica ao trabalho de pesquisa que busca investigar modos de produção, publicação e circulação de obras de escritoras negras baianas. Sua experiência na área de Letras têm se voltado, principalmente, aos estudos étnicoraciais e de gênero. E-mail:
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