December 9, 2016 | Author: Luiz Eduardo Câmara Lancastre | Category: N/A
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CTS na educação tecnológica: tensões e desafios
IRLAN VON LINSINGEN MESA 4
Resumo Parece consensual, numa perspectiva CTS, que o desenvolvimento científico e tecnológico deve ser regulado socialmente e que para tal há que se criar condições para uma participação social aceitável nos processos de tomada de decisão; em outras palavras, criar as condições para a transmissão de poder social aos cidadãos em geral, e aos especialistas em particular. Tais condições deverão, por essa mesma perspectiva, ser proporcionadas por um sistema educacional que favoreça o desenvolvimento de capacidades cognitivas especialmente orientadas para uma mudança de visão quanto à natureza do fenômeno científico-tecnológico e de seus produtos. Nesse sentido, há um entendimento de que essa transformação, favorecida por uma formação humanística de caráter crítico de estudantes de engenharia e de ciências naturais seria suficiente para provocar uma catarse do sentir, pensar e agir dos atores da área tecnocientífica. Nesse contexto, são discutidos neste artigo alguns aspectos do desenvolvimento de uma sensibilidade crítica acerca dos compromissos sociais e ambientais das tecnologias, da construção de uma imagem mais realista da natureza social da ciência e da tecnologia, assim como do papel político dos especialistas na sociedade contemporânea. Palavras-chave: Educação tecnológica, Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS), Inovação social, Currículo.
1. Introdução A abordagem sistêmica da educação tecnológica adotada nesta reflexão admite a centralidade da tecnologia nas relações sociais, significando que o mundo social é mediado pela ciência e pela tecnologia de forma cada vez mais intensiva, e que a assumida imbricação entre ciência e tecnologia gradativamente transforma as culturas em tecnoculturas1. Admitir a centralidade da tecnologia não significa, todavia, considerá-la motor da história e nem tampouco autônoma em relação aos interesses humanos (PINTO, 2005a). De acordo com essa compreensão, há uma presente e decisiva configuração global das culturas em decorrência da intensificação e difusão do processo de inovação tecnocientífica. Tal imbricação sugere que, considerado isoladamente como produtor de benefícios, o processo inovador é dependente da capacidade de renovação da concepção e produção de artefatos tecnológicos, diretamente vinculados à crescente eficiência e intensidade, e que tal intento é factível se o processo de formação puder ter sua eficácia continuamente aumentada. Em termos históricos, entende-se que a técnica possui apenas caráter procedimental, e assim o passado é traduzido como algo "superado" e ao futuro é atribuído o significado de "aperfeiçoamento" dos procedimentos. Nesse universo de meios, que visa exclusivamente ao aperfeiçoamento e potenciamento da própria instrumentação, no qual o mundo da vida torna-se totalmente dependente do aparato técnico, os humanos acabam por tornar-se funcionários deste aparato (GALIMBERTI, 1999). A perspectiva educacional aqui abordada, ao buscar superar o tecnocentrismo nas relações sociotécnicas, visa também à superação dessa condição. Nesse modelo de relações sociotécnicas há também um expressivo aumento da exclusão tecnológica intra e intersocial (apartheid sociotécnico) e um desequilíbrio global nas relações de 1
Tecnocultura refere-se, no contexto CTS, à crescente imbricação da cultura com a tecnologia e desta com a ciência, admitindo a divisão clássica. (MEDINA apud CEREZO e RON, 2001).
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poder que essa apartação possibilita. O quadro é de dependência tecnológica e de dependência social, característico das novas relações centro-periferia do capitalismo global. Há aqui duas dimensões fundamentais a considerar: por um lado a necessidade de se reduzir a distância entre os detentores do saber científico-tecnológico e os consumidores de tecnologia2 nas sociedades e entre diferentes sociedades e, por outro lado, a de superação do abismo – que contribui para o aumento da exclusão – entre as culturas tecnocientífica e humanística no meio técnico. Interesses e pressões sociais diversos reclamam por renovações pedagógicas e curriculares para o atendimento de novas demandas profissionais exigidas por essas novas construções sociais. As instituições educacionais são instadas a mudarem o discurso tradicional de defesa de uma formação exclusivamente tecnocientífica, para o de uma formação com ingredientes adicionais de responsabilidade, criatividade, competências diversas, flexibilidade, cooperatividade, negociação, aspectos humanísticos…. Essa mudança de postura, contudo, não implica o pleno atendimento das duas dimensões citadas anteriormente, uma vez que o modelo de desenvolvimento – linear ofertista – ao qual o novo modelo de ensino tecnológico continua vinculado, nascido da política de desenvolvimento científico e tecnológico estadunidense após a segunda guerra mundial3, ainda continua fundamentando as estratégias de desenvolvimento e as políticas públicas de ciência e tecnologia. Pela concepção linear tradicional de ciência como processo de desocultamento dos aspectos essenciais da realidade, de desvelamento de leis que a governam em cada parte do mundo natural e social, a transformação da realidade com o concurso dos procedimentos das tecnologias asseguraria benefícios, desde que não sejam permeadas por interesses, opiniões e valorações. Os resultados de uma tal ciência e tecnologia seriam colocados a serviço da sociedade para que ela decidisse sobre seus usos, de tal modo que dessa relação resultariam os instrumentos cognitivos e práticos que proporcionariam a melhoria contínua da vida humana e do bem-estar social. Atualmente, apesar de delimitações relativamente rígidas dessas fronteiras nas áreas técnicas, evidencia-se a inadequação dessa separação e das fragmentações que são simultaneamente suas causas e efeitos, principalmente no que diz respeito à relação entre ciência e tecnologia. A cisão entre conhecimentos científicos e artefatos tecnológicos não é muito adequada, já que fica cada vez mais evidente que para a configuração daqueles é muitas vezes necessário contar com estes. A relação inversa, do conhecimento científico que configura a tecnologia, é ainda mais evidente e cada vez mais intensivamente assumida por engenheiros e tecnólogos. Entretanto, o conhecimento científico da realidade e sua transformação tecnológica não são processos independentes e sucessivos, senão que se acham entrelaçados em uma trama na qual constantemente se juntam teorias e dados empíricos com procedimentos técnicos e artefatos, e estes, por sua vez, são tecidos em redes sociotécnicas. Nesse sentido a relação entre tecnologia e sociedade, para engenheiros e tecnólogos, apresenta-se tão profundamente enraizada que parece não haver qualquer razão para debates. Identificada com os artefatos, ou seja, com um dos produtos da atividade tecnológica, a interação tecnologia-sociedade acabou por tornar-se oculta e, de modo mais contundente, parece não pertencer diretamente ao espaço da atividade técnica como tal, mas apenas ao espaço da ética profissional.
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Consideram-se como consumidores de tecnologia todos os atores sociais que se limitam a usufruir e adaptar tecnologias, como empresas, instituições e países que estruturam suas economias com base em tecnologias forâneas. Relatório Bush intitulado Science: The endless frontier (Ciência: a fronteira inalcançável) que prescrevia o nexo entre o conhecimento científico acerca das leis da natureza e o controle tecnológico da natureza mesma para o benefício e o progresso da humanidade. Sua implementação mais completa e de maior êxito foi a organização da ciência norteamericana durante a Guerra Fria, e se interioriza hoje em todos os níveis da complexa e diversificada empresa de pesquisa moderna. (SAREWITZ, 2001). 3
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Todavia, quaisquer que sejam os interesses subjacentes à transformação pedagógica, o reconhecimento da profunda imbricação entre fatores técnicos e humanísticos – mesmo que com a conotação de adaptação a interesses econômicos hegemônicos – está presente nas diretrizes curriculares, através da inserção de temas não-técnicos na formação de engenheiros e tecnólogos. Embora essa inserção não resolva o problema essencial da adequação tecnológica aos interesses sociais locais, e nem sugira estratégias pedagógicas para uma educação crítica na área tecnológica, esse é já um passo significativo no sentido de favorecer um processo de formação profissional socialmente comprometido e referenciado para além do sentido comumente considerado.
2. O enfoque CTS e o espaço da educação tecnológica O novo enfoque das relações entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS), na medida que transfere o centro de responsabilidade da mudança científico-tecnológica para os fatores sociais, opõe-se ao da imagem tradicional da C&T. As novas compreensões admitem o fenômeno científico-tecnológico como processo ou produto inerentemente social, onde os elementos não epistêmicos ou técnicos (como valores morais, convicções religiosas, interesses profissionais, pressões econômicas e ambientalistas etc.) assumem um papel decisivo na gênese e consolidação das idéias científicas e dos artefatos tecnológicos. Esse entendimento justifica a necessidade de renovação educativa, o que implica em criar também as condições metodológicas que favoreçam essa renovação pedagógica nas áreas técnicas. Em termos de ensino de engenharia e de tecnologia, esse novo entendimento das relações CTS pode significar uma transformação radical nos processos cognitivos, na medida que a atividade tecnológica, pensada como atividade meio, passaria a ser orientada por uma lógica distinta da que hoje a estrutura, orientada para a técnica como meio e não um fim em si mesma. Isto implica em incluir aspectos relacionados à relevância social como critérios nos projetos de engenharia e na atividade tecnológica, do mesmo modo que outros já naturalizados, como os econômicos associados à eficiência. Nesses tempos de exaltação das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e de reorganização das relações econômicas e de poder em nível mundial, a práxis educacional tecnológica parece sustentar-se por uma mescla de concepções das relações CTS, composta tanto pela concepção tradicional das relações entre ciência, tecnologia e sociedade4 quanto por concepções mais progressistas, não havendo uniformidade entre e nas diversas modalidades de ensino técnico (de engenharia e de tecnologia). Contudo, de acordo com a compreensão aqui desenvolvida, admite-se que ainda prevalecem os sentidos construídos sobre relações tradicionais na conformação dessa práxis, e que configuram muitas das resistências existentes ao processo de mudança. Em qualquer caso, na relação tecnologia-sociedade manteve-se sempre uma certa rigidez dos limites de interação, ou seja, uma separação estratégica, já que valores e interesses mais implícitos, imagina-se, não pertencem ao campo da técnica como tal, abrindo espaço para as atitudes tecnocráticas, o que foi plenamente absorvido pelo ideário da engenharia.
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Refere-se, nessa concepção, à essencialidade traduzida pelo modelo linear de desenvolvimento, que expressa o bem-estar social como decorrência linear e automática do desenvolvimento econômico propiciado pelo “progresso” continuado da ciência e da tecnologia. (BAZZO, von LINSINGEN, PEREIRA, 2003, p. 120).
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Entretanto, o tecido tecnocientífico não existe à margem do próprio contexto social em que se desenvolve, e no qual os conhecimentos e os artefatos adquirem relevância e valor. Desse modo, as imbricações entre ciência, tecnologia e sociedade apresentam uma complexidade muito maior do que as decorrentes de relações imaginadas entre campos estanques que se comunicam, mas sem interpenetração, apontando para uma análise mais cuidadosa e abrangente das reciprocidades, ao invés da simples aplicação da clássica relação linear entre elas. No que concerne à redução do distanciamento tecnológico entre diferentes sociedades, cabe considerar a questão da ideologia na relação centro-periferia capitalista, ou seja, do discurso prevalente que coloca o centro como irradiador do conhecimento tecnológico determinante ou, talvez mais adequado, dominante. Vieira Pinto refere-se a isso como “falso e interesseiro emprego do conceito de tecnologia, […], destinado a adormecer a consciência da nação dependente exercendo uma influência entorpecente” (PINTO, 2005b, p.683). A questão pedagógica fundamental é a da implícita relação de dominação tecnológica dos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, assentada numa formação discursiva de inadequação técnica que só pode ser superada com a busca incessante de conhecimento tecnocientífico mais evoluído, globalizado e, portanto, forâneo. Com isso, enfraquece-se ou mascaram-se muitos dos problemas que requerem soluções tecnológicas próprias dos países do capitalismo periférico. Vieira Pinto emprega a metáfora de colonização do futuro numa reflexão sobre as relações de perpetuação da dependência da periferia em relação ao centro, onde uma parte do permanente efeito colonizador seria a “redução do problema da desigualdade social, da luta de classes e da dependência nacional, à uma questão a ser resolvida pelo aperfeiçoamento da técnica” (KLEBA, 2006), numa relação tal que comprovaria que o futuro da periferia, no sentido de superação das carências sociais, seria provido pelo conhecimento científico-tecnológico que emana do centro. Em todas as acepções apresentadas, os atores da área técnica se apropriam dos sentidos construídos e adotados pelos atores do centro sem a necessária contextualização, passando a constituí-los como seus próprios discursos. Percebe-se aqui a difícil tarefa pedagógica da desconstrução de uma lógica de dependência para uma compreensão mais ampla, menos dependente, que considere também os ingredientes endógenos da tecnologia na configuração de um desenvolvimento social. Desse modo, para o imaginário da área tecnológica, passa desapercebido que os problemas sociais locais possuem alguma relação mais estreita com a tecnologia. Mas, em sentido oposto, a exaltação e o aperfeiçoamento do aparato tecnológico tal qual concebido no centro e arduamente perseguido pela periferia, possui efeito libertador futuro. (PINTO, 2005a). Efeito esse que emerge nas manifestações de sentidos sobre a atividade tecnológica dos atores da área técnica, e com notável freqüência nos discursos pedagógicos das escolas de engenharia.
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3. Compromissos adicionais da educação tecnológica Para os sentidos aqui pretendidos, não basta mais formar indivíduos apenas com qualificação tecnocientífica, porque as soluções tecnológicas se plasmam no contexto das relações sociais, exigindo assim mais que critérios exclusivamente tecnocientíficos e econômicos. Contudo, de acordo com o discurso que afirma ser o desenvolvimento cada vez mais condicionado à capacidade de aceleração do processo de transformação tecnológica, centrado na inovação, impõe-se à educação tecnológica o compromisso de formar agentes de inovação, ou seja, engenheiros e tecnólogos preparados para essa nova demanda sociotécnica, assumida como global. Fundamentalmente, portanto, nada muda em relação à concepção pedagógica histórica dos ensinos técnicos de nível médio e superior, que costuma defender a eficiência técnica e visão tecnocêntrica como ideais para a formação tecnocientífica. Todavia, para o cenário esboçado neste artigo, o ensino de engenharia e tecnologia assume novos papéis que remetem ao duplo e imbricado compromisso de garantir um crescente aprimoramento da capacidade cognitiva que é posta a serviço de transformações que interferem de forma notável nas relações sociais e na natureza, e a construção de uma visão sócioecossistêmica da atividade científico-tecnológica, ou seja, da construção de novos sentidos sobre os comprometimentos e referências socioculturais e ambientais da atividade científicotecnológica. Na condição de nação que integra o bloco dos países dependentes econômica e tecnologicamente, a questão da formação profissional no Brasil – e demais países latinoamericanos em semelhante situação – exige uma abordagem que tenha em conta tanto os aspectos gerais do estado da arte do conhecimento e dos movimentos internacionais relacionados com as interações da ciência e da tecnologia com a sociedade e a natureza, quanto das necessidades e peculiaridades socioculturais e socioeconômicas internas, seus ingredientes endógenos. Tal abordagem muda a maneira de compreender o processo (forma e conteúdo) de formação tecnológica, alterando inclusive o caráter da tecnologia nacional em relação ao de outros países. Buscando uma maior inserção social da engenharia e maior consonância com algumas tendências internacionais, as propostas curriculares têm incorporado conteúdos disciplinares de humanidades à formação dos engenheiros, com a alegação, legítima, que é uma necessidade para melhorar a qualificação profissional e conseqüente inserção num mercado de trabalho mutante e que se torna mais complexo. Tais preocupações, válidas e necessárias, parecem, entretanto, pairar na instrumentalidade da ação formativa e podem ser insuficientes para uma transformação efetiva do modo de ver e do fazer dos atores tecnológicos. Assim, é válido indagar: a introdução de conhecimentos das humanidades na grade curricular muda o conhecimento tecnológico, ou apenas a sociabilidade de engenheiros e tecnólogos? Em outras palavras, questiona-se em que extensão e com que profundidade se está pensando o processo educacional em engenharia e tecnologia. Pensando numa educação tecnológica inclusiva, o caráter geral é o da transmissão de poder social aos cidadãos em geral, e aos especialistas em particular. Tais condições deverão, por essa mesma perspectiva, ser proporcionadas por um sistema educacional que favoreça o desenvolvimento de capacidades cognitivas especialmente orientadas para uma nova compreensão da natureza do fenômeno científico-tecnológico e de seus produtos, considerando também as diferenças intersociais. Nesse sentido, há um entendimento de que uma formação humanística de caráter crítico de estudantes de engenharia e tecnologia pode provocar uma catarse do sentir, pensar e agir dos atores da área tecnocientífica e, conseqüentemente, favorecer as transformações que têm sido propugnadas pelo enfoque CTS e por pensadores da educação progressista.
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4. Aspectos Curriculares do ensino tecnológico Desde o início da formação tecnológica, é dado entender aos estudantes que os condicionamentos comportamentais explícitos e implícitos voltados para a solução eficiente de problemas técnicos que emergem de necessidades das empresas, combinados com dedicação, responsabilidade, probidade e lealdade, propiciam automaticamente o nexo social da atividade. Automaticamente porque, com algumas exceções mais recentes, não há orientação pedagógica formal que favoreça a compreensão da dimensão sócio-sistêmica da tecnologia. Esse quadro formativo no Brasil vem sofrendo alterações durante os últimos trinta anos, e mais recentemente – a partir da década de 1990 – tem-se buscado acrescentar novas perspectivas à formação técnica, principalmente através de ações institucionais de fomento à formação de empreendedores, reengenharia e outras, bem como por um fortalecimento da formação especializada nas escolas de engenharia que trabalham com pesquisa e desenvolvimento (fundamentalmente as públicas). Essas iniciativas, que emergem também em propostas de mudança curricular, têm popularizado no meio acadêmico a idéia de que as ações pedagógicas devem se orientar para a formação de competências, para a criatividade e para a inovação técnica, com forte embasamento científico, como modo de enfrentar as demandas do mundo contemporâneo. Da mesma forma, já como resposta aos anseios da sociedade organizada, tem-se defendido a necessidade de uma “sólida formação humanística”, expressa tanto pelas diretrizes curriculares nacionais quanto por manifestações oficiais de associações de classe e, também, a necessidade de se preparar adequadamente engenheiros e tecnólogos para o “desenvolvimento sustentável”. Agrega-se, desse modo, àquelas exigências técnicas, necessidades sociais e ambientais, o que aponta para mudanças conceituais nas áreas técnicas, embora desse fato os atores da área técnica talvez ainda não tenham clareza. Para tratar de questões curriculares desta natureza considera-se aqui, a título de exemplo, o que está na base dessa construção de sentidos sociais presente na definição clássica que os engenheiros dão de sua profissão. A definição formal, em qualquer uma de suas versões, afirma o caráter do seu comprometimento social, desde a definição original do século 18 atribuída a Thomas Tredgold5. A definição clássica dá conta da engenharia como “aplicação de princípios científicos para a conversão ótima dos recursos naturais em estruturas, máquinas, produtos, sistemas e processos para o benefício da espécie humana”.6 Atualmente essa definição sofreu uma alteração, possivelmente para adaptar o sentido da atividade engenheiril a uma condição talvez mais realista. As Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação em Engenharia7 expressam que “os Currículos dos Cursos de Engenharia deverão dar condições a seus egressos para adquirir um perfil profissional compreendendo uma sólida formação técnico-científica e profissional geral que os capacite a absorver e desenvolver novas tecnologias, estimulando a sua atuação crítica e criativa na identificação e resolução de problemas, considerando seus aspectos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais, com visão ética e humanística em atendimento às demandas da sociedade” (CNE/CES 11/2002. Grifos meus).
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Do rascunho de Tredgold da Associação Britânica de Engenheiros Civis, 1828. Nova Enciclopédia britânica (1995), Micropédia v.4, p. 496. 7 CNE. Resolução CNE/CES 11/2002. Diário Oficial da União, Brasília, 9 de abril de 2002. Seção 1, p. 32. 6
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Há aqui uma sutil, mas importante diferença com relação à definição clássica de engenharia, quando expressa que a atividade deve orientar-se para o “atendimento das demandas da sociedade”8. Essa alteração substitui o caráter normativo da profissão (da definição clássica) por um processo contexto-dependente e valorativamente neutro (MITCHAM, 1998), o que sugere novas interpretações e apresenta novas questões éticas. A supressão do caráter normativo da profissão pode ser analisada no contexto das relações de mercado. As pressões para expansão do mercado, associadas aos desenvolvimentos tecnocientíficos, podem produzir contradições éticas que dificultem a plena realização das capacidades técnicas que estão sendo formadas, uma vez que não há nada na técnica, vista como coisa em si mesma neutra, que a vincule com determinado tipo de comportamento social prévio, o que constitui uma fonte de dilemas éticos a que são submetidos os engenheiros e tecnólogos. Os aspectos das interações da engenharia e do seu ensino aqui trabalhados apontam para uma visão de currículo que seja capaz de possibilitar uma pertinente ruptura com o pensamento hegemônico centrado nos seus pressupostos legitimadores (baseados em essencialidade, neutralidade e autonomia da ciência e da tecnologia). Assim, há que se criar condições curriculares que permitam explicitar contradições sociotécnicas e problematizá-las numa perspectiva dialógica. Sendo fruto da interação de forças e pressões sociais, estando assim impregnado dos valores e ideologias dominantes, a construção do currículo numa perspectiva transformadora só se torna possível com o reconhecimento do modelo de sociedade em que está inserido. Em concordância com críticos do currículo, “uma abordagem do currículo que permanece submissa à primazia do mercado pode reduzir o projeto educacional a um sistema de treinamento de pessoas” (CUNHA e BORGES, 2001, p. 44-45). Essa postura fatalmente exclui o questionamento dos significados sociais, culturais e éticos dos modelos de produção, e limita-se a aceitar as “regras” implícitas do sistema hegemônico, passando a reforçá-lo. Assim, ao invés de se apresentar como uma possibilidade de transformação de estruturas, o currículo acaba por “reforçar a lógica do mercado, da produção, da competição desenfreada” (idem) contrapondose à busca de um maior equilíbrio nas relações sociais e contribuindo para a ampliação das desigualdades socioeconômicas. O que se propõe aqui é que ao se trabalhar o currículo da área técnica – seu projeto, reformulação e implementação – sejam considerados, entre outros, temas que se orientem pelo enfoque CTS, dado que pontos usualmente considerados, tais como a definição do perfil profissional desejado, a descrição das competências, atitudes e habilidades requeridas, a elaboração dos conteúdos e saberes que atendam a esses requisitos, e a estruturação dos métodos a serem desenvolvidos, estão intimamente relacionados com essa abordagem.
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Ver também os Criteria da ABET (Accreditation Board for Engineering and Technology) usados nos USA. .
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5. Dimensões da interdisciplinaridade e a abordagem temática na educação tecnológica Não se pode pensar em educação participativa, inclusiva, contextualizada, crítica, no contexto do enfoque CTS, que não tenha em conta a dimensão interdisciplinar constitutiva do conhecimento e da educação. Dimensão esta que não prescinde da base disciplinar que a que a possibilita. Nesse sentido, tanto a disciplinaridade quanto a interdisciplinaridade, estabelecidas historicamente, são construções humanas que se entendem como necessárias. O tema da interdisciplinaridade, já recorrente na área técnica, está ligado à constatação de que o aumento da complexidade do conhecimento científico-tecnológico extravasa a competência exclusiva das disciplinas, de modo que se transformou num conceito de uso comum na engenharia, de resto concordante com o de outras áreas do conhecimento, mas com uma demarcação tácita, qual seja, a da interdisciplinaridade técnica. Este enfoque da interdisciplinaridade possui a sua importância e não pode ser menosprezado, dado que tal forma de inter-relação possibilita novas realizações tecnológicas que de outro modo seriam obstaculizadas. Mas encerra, implicitamente, uma tensão que se manifesta na ação interdisciplinar que se dá fora do campo exclusivo das competências técnicas, na medida em que fortalece a idéia de primazia da técnica e de neutralidade decisória, porque formada sob a égide de um consenso de especialistas técnicos. Etges considera que, enquanto princípio mediador entre diferentes disciplinas, “a interdisciplinaridade é o princípio da máxima exploração das potencialidades de cada ciência, da compreensão dos seus limites, mas, acima de tudo, é o princípio da diversidade e da criatividade” (ETGES, em JANTSCH e BIANCHETTI, 1995, p. 14). Numa perspectiva antropológica, Severino propõe um redirecionamento do sentido da interdisciplinaridade, considerando que o saber, “ao mesmo tempo que se propõe como desvendamento dos nexos lógicos do real, tornando-se então instrumento do fazer, ele se propõe também como desvendamento dos nexos políticos do social, tornando-se instrumento do poder. […] Ser interdisciplinar, para o saber, é uma exigência intrínseca, não uma circunstância aleatória. Com efeito, pode-se constatar que a prática interdisciplinar do saber é a face subjetiva da coletividade política dos sujeitos. Em todas as esferas de sua prática, os homens atuam como sujeitos coletivos” (SEVERINO, 1995, p. 172). Uma questão fundamental da educação tecnológica diz respeito ao tratamento metodológico da dimensão interdisciplinar do conhecimento tecnológico. Do ponto de vista estritamente técnico, a interdisciplinaridade se exercita na abordagem e tratamento dos diferentes aspectos técnicos disciplinares definidores dos problemas e de suas soluções. Numa perspectiva CTS, contudo, a dimensão interdisciplinar é ampliada com a introdução de questões não-técnicas no rol das questões tecnológicas a serem tratadas. Uma possibilidade didático-pedagógica potencialmente promissora é a da abordagem temática, como uma alternativa ao processo educacional tradicional na área técnica. Exploram-se aqui, as possibilidades propiciadas pela aproximação entre o enfoque educacional CTS e a pedagogia de Paulo Freire (1975), na perspectiva da problematização e dialogicidade de questões sociotécnicas sobre as quais não existe consenso.
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A metodologia da investigação temática de Freire requer a participação de uma equipe interdisciplinar composta por professores das diversas disciplinas e por outros profissionais. Na perspectiva educacional CTS, a abordagem temática pode ser realizada a partir da escolha prévia de temas relevantes no contexto das produções da sociedade, que apresentem controvérsias, ressaltando também a importância da discussão de temas sociais a partir de um enfoque interdisciplinar. Os temas a serem trabalhados são estabelecidos por equipes interdisciplinares compostas por educadores e especialistas de diferentes campos do saber. Pressupõe-se que a composição dessas equipes deve propiciar um equilíbrio das especialidades, de tal modo que os diferentes aspectos técnicos possam ser confrontados e problematizados com os aspectos não-técnicos que representem os interesses sociais mais amplos. Tanto o enfoque CTS quanto o método de investigação temática proposto por Freire rompem com o tradicionalismo curricular do ensino tecnológico, uma vez que a seleção de conteúdos e dos problemas a resolver se dá a partir da identificação de temas que contemplem questões cotidianas dos estudantes; no contexto aqui tratado, refere-se a questões sociotécnicas. A proposta freiriana do uso de “temas dobradiças”, ao vincular a definição temática à sua apresentação e discussão preliminar com os atores, no âmbito da investigação temática, oferece uma alternativa metodológica satisfatória para a definição temática, reforçando a dialogicidade do processo para uma prática educacional transformadora. As propostas de Freire e das abordagens CTS requerem um novo tipo de profissional da educação já que, na concepção dialógica de educação ele deixa de depositar conteúdos na cabeça dos educandos, para assumir o papel de catalisador do processo de ensino e aprendizagem. De acordo com essa concepção, “o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa” (FREIRE, 1975, p.78). Desse modo, os docentes podem reavaliar seus métodos, refletir sobre suas concepções prévias, transformando o processo educacional tecnocientífico numa construção de sentidos sociais-culturais sobre a ciência e a tecnologia em que os estudantes se tornem sujeitos da própria aprendizagem, capazes de intervir conscientemente no mundo, pois para Paulo Freire: “A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, ‘desarmada’, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito.” (FREIRE, 1996, p.43).
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7. Considerações finais No que concerne à inclusão dos campos interdisciplinares – Humanidades, Ciências Sociais e Ciências Ambientais – no currículo das áreas técnicas, as novas diretrizes oferecem a possibilidade de se pensar a educação tecnológica numa perspectiva transformadora e dinâmica. Entretanto, a concretização dessa possibilidade pressupõe a estruturação de uma formação docente perenemente orientada para tal, o que constitui um trabalho de grande envergadura, que se insere no âmbito das políticas públicas educacionais e de ciência e tecnologia. Há contribuições (DAGNINO, 2002; von LINSINGEN, 2002) que permitem propor algumas estratégias que apontem para um currículo que contemple uma educação transformadora na área tecnocientífica, na qual a abordagem temática seja considerada na dimensão de sua relevância social. Essa relevância orienta-se pelo equilíbrio entre fatores técnicos, científicos e socioculturais, visando ao atendimento de demandas definidas por todos os setores da sociedade, e não apenas de uma suposta primazia do conhecimento tecnocientífico, o que implica também a busca da superação da perspectiva tecnocrática e a descentração do tecnocentrismo. Do mesmo modo, visa à superação da primazia do mercado na orientação da estrutura do currículo, de modo a que os aspectos sociais, culturais, econômicos e ambientais ocupem o devido espaço na formação de engenheiros e tecnólogos. Na concepção freiriana, aprender implica não apenas adaptar, mas, sobretudo, transformar a realidade, para poder nela intervir e recriá-la. Nesse sentido, um modelo educacional crítico deve possibilitar a compreensão da “estrutura que está presente na racionalidade do mundo moderno…” (PRESTES, 1994, p. 99) e permitir formar o sujeito reflexivo em relação à realidade social e ambiental na qual se insere, uma vez que considera as relações de poder com as quais o conhecimento se constitui (CUNHA e BORGES, 2001). As interações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade na formação de tecnólogos e engenheiros de todas a modalidades podem se tornar explícitas com a ajuda da análise sociotécnica. Esta, ao abrir a caixa preta da ciência-tecnologia expondo seus componentes sociais, faz emergir questões não-técnicas que permeiam o conhecimento tecnocientífico. Para uma pedagogia da tecnologia, a explicitação da rede sociotécnica, a partir da qual os artefatos adquirem materialidade, constitui uma fonte rica em temas transversais tecnológicos. Compreender a problemática da educação tecnológica contextualizada pressupõe ampliar o campo do olhar, construir novos sentidos sobre a ciência e a tecnologia, transgredir, buscar lá onde os guardiões das fronteiras esotéricas dos coletivos tecnológicos não permitem ir. Mas cabe lembrar que esses guardiões estão mais próximos do que podemos perceber à primeira vista; podem mesmo ter-se instalado nos nossos espíritos de tal maneira que acabamos por nos tornar seus defensores e, por conseqüência, defensores das fronteiras que estamos tratando de romper.
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8. Referências bibliográficas ABENGE, “Relatório da Comissão Nacional de Diretrizes Curriculares para os Cursos de Engenharia”. Brasília: ABENGE, 1999. BAZZO, W.A; von LINSINGEN, I.; PEREIRA, L.T.V. (Eds.). Introdução aos estudos CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade). Madrid: OEI, 2003. CUNHA, F.M.; BORGES, M.N., “Currículo para os cursos de Engenharia: o texto e o contexto de sua construção”. Revista de Ensino de Engenharia, v.20, n.2, p. 41-47. Brasília: ABENGE, 2001. DAGNINO, R., “A Relação Pesquisa-Produção: em busca de um enfoque alternativo”, In: SANTOS, L.W.; et al (Org.). Ciência, Tecnologia e Sociedade: o desafio da interação. Londrina: IAPAR, 2002. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. 31ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GALIMBERTI, U. Psiche e techne. L'uomo nell'etá della técnica. Roma: Feltrinelli, 1999. IBARRA, A.; CEREZO, J. A. L. Desafíos y tensiones actuales en ciencia, tecnología y sociedad. Madrid: Biblioteca Nueva/OEI, 2001. JANTSCH, A. P.; BIANCHETTI, L. (Orgs.). Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 1995. KLEBA, J. B. “Tecnologia, subdesenvolvimento e a domesticação do futuro – Uma reflexão crítica sobre a filosofia da técnica de Álvaro Vieira Pinto”. Memórias ESOCITE 2006, VI Jornadas Latinoamericanas de Estudios Sociales de la Ciencia y la Tecnología. Bogotá : Universidad Nacional de Colombia, 2006. Disponível em: < http://www.ocyt.org.co/esocite/>, acesso em 10/06/2006. MEDINA, M., “Ciencia y tecnología como sistemas culturales”. In: CEREZO, J.A.L.; RON, J.M.S. Ciencia, tecnología, sociedad y cultura en el cambio de siglo. Madrid: Biblioteca Nueva/OEI, 2001. MITCHAM, C. “The Importance of Philosophy to Engineering”. Teorema, v.XVII/3. Murcia: Tecnos, 1998. PINTO, A. V. O Conceito de Tecnologia [vol. 1]. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005a, 531p. PINTO, A. V. O Conceito de Tecnologia [vol. 2]. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005b, 794p. PRESTES, N.H. “A razão, a teoria crítica e a educação”. In: PUCCI (Org.). Teoria crítica e educação. Petrópolis: Vozes, 1994. SAREWITZ, D., “Bienestar humano y ciencia federal, ¿cuál es su conexión?”. In: CEREZO, J. A. L.; RON, J. M. S. Ciencia, tecnología, sociedad y cultura en el cambio de siglo. Madrid: Biblioteca Nueva/OEI, 2001. SEVERINO, A. S. “O uno e o múltiplo: o sentido antropológico do interdisciplinar”. In: JANTSCH, A. P.; BIANCHETTI, L. (Orgs.). Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 1995.
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von LINSINGEN, I., “Engenharia, Tecnologia e Sociedade: Novas perspectivas para uma formação”. Tese. Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2002.
Programa de Pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT/UFSC). Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Tecnológica (NEPET). Departamento de Engenharia Mecânica (EMC Universidade Federal de Santa Catarina C.P. 476 – CEP: 88.040-900 – Florianópolis SC – Brasil
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