Conhecimento, crença e fé

March 23, 2016 | Author: José de Figueiredo Sabala | Category: N/A
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1 Conhecimento, crença e fé Paulo Augusto Seifert * Sabemos o que julgamos saber? O famoso filósofo...

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Conhecimento, crença e fé Paulo Augusto Seifert *

Sabemos o que julgamos saber? O famoso filósofo grego Platão conta, em um de seus livros, intitulado A República, uma estória co­ nhecida como o Mito da Caverna. De acordo com esta alegoria, um grupo de pessoas vive preso den­ tro de uma caverna e, em razão de certas circunstâncias, tudo que eram capazes de ver se restringia às sombras projetadas no fundo da caverna. Essas sombras eram de seus próprios corpos, bem como de objetos e dos corpos de outras pessoas que viviam fora da caverna. As imagens desses objetos e corpos eram projetadas no fundo da caverna em razão de uma fogueira que se encontrava na entrada da caver­ na. Como as pessoas dentro da caverna só viam tais sombras elas julgavam que as sombras correspon­ diam ao real, e aquilo lhes parecia verdadeiro. Quando uma delas consegue se libertar e sair da caverna, fica inicialmente aturdida pela luz do sol e pela visão dos objetos reais. À medida que se acostuma, per­ cebe então serem as coisas que ela vê fora da caverna o verdadeiramente real, e aquilo que via quando estava dentro da caverna eram apenas sombras. Esta alegoria sugere que nem sempre aquilo que acreditamos ser verdadeiro realmente o é, e po­ demos estar enganados naquilo que nos parece óbvio. Todos nós julgamos que sabemos certas coisas, especialmente aquelas que nos são familiares, aquelas das quais temos experiências constantes, repe­ tidas, cotidianas. Tais experiências nos parecem confiáveis. Mas será que elas realmente são confiáveis? Um exemplo simples pode nos mostrar que talvez não, ou que, pelo menos em algumas situações, tal confiabilidade pode ser posta em dúvida. Aprendemos que há boas razões científicas para dizer que, contrário às aparências, o Sol não se move em torno da Terra, mas o inverso é verdadeiro. A Terra des­ creve um movimento elíptico ao redor do Sol. Mas não é isto que percebemos. Percebemos que o Sol ora está em um lugar, ora em outro. Quanto à Terra, não vemos e nem sentimos que ela se move. Contudo, como a ciência nos ensina, aquilo que vemos é falso, e aquilo que nem vemos e nem sentimos é, neste caso, verdadeiro. Como isto pode ser? Não deveríamos nos fixar em nossas próprias percepções, e nelas acreditar? Acreditar somente naquilo que podemos ver ou sentir? * Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Filosofia na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), em Canoas/RS.

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Acontece que nós temos, também, experiência de que nossos sentidos nos enganam, e que, por vezes, vemos coisas que não estão realmente ali, ou nos enganamos sobre as características dos objetos que percebemos. Quem já não passou pela experiência de, no entardecer, julgar que certo objeto visto era um pequeno animal (um cachorro, digamos), e ao se aproximar, perceber que era um arbusto. Cada um de nós pode pensar e lembrar de diferentes momentos em que nos enganamos quanto a sensações que tivemos; pode-se lembrar ainda a experiência de sonhos ou pesadelos intensos, de cujo caráter ilu­ sório só nos damos conta ao despertarmos. E, se a situação é assim no que diz respeito a sensações co­ muns, fica ainda mais complicado quando se tratam de teorias científicas, seja em ciências naturais ou em ciências sociais. Por exemplo, se tomarmos uma ciência social como a história, podemos estender esta dúvida da qual estávamos falando, e perguntar: como saber o que aconteceu em um passado dis­ tante (antiga Roma, por exemplo) se dependemos dos testemunhos de outras pessoas, e de seu teste­ munho escrito já que não mais estão vivas, e testemunhas não são muito confiáveis, e textos podem ter sido adulterados, e assim por diante?

O que é epistemologia? Epistemologia geral Questões como as do parágrafo anterior são tratadas pela epistemologia. Quando são questões gerais que se referem a qualquer área da ciência, da moral, da religião, da filosofia, constitui o que se pode chamar de epistemologia geral. Por exemplo, a questão acerca da natureza e dos limites de nos­ so conhecimento (o que podemos saber?; o que podemos provar?) é desse tipo. Os filósofos costumei­ ramente distinguem três tipos básicos de conhecimento, relacionados à forma como usamos o termo “conhecer” ou “saber”: a) conhecimento proposicional ou conhecimento de que algo é assim ou as­ sado. Quando alguém diz: “eu sei que Jesus Cristo era judeu”, ela está usando o verbo saber em seu sentido proposicional1; b) conhecimento direto ou por familiaridade, conhecimento este ligado geral­ mente à observação de algo. Se alguém diz: “Eu conheço Salvador”, ele está nos dizendo, mesmo que indiretamente, que lá esteve, visitou a cidade, e assim por diante. Aqui, o termo “conhecer” é usado em sentido não-proposicional; c) conhecimento como habilidade, aquele relacionado com a capaci­ dade de fazer algo. Se eu digo “sei nadar”, estou afirmando possuir uma certa habilidade. Essas são formas diferentes de conhecimento. Como se relacionam? Um desses tipos é mais fundamental, dele dependendo os outros?

1 “Proposição” é o termo usado pelos filósofos para distinguir uma certa espécie de sentença de outras, a saber, proposição é aquela sentença passível de atribuição de um valor-de-verdade. Pode-se dizer de uma proposição que ela é verdadeira ou falsa; aplica-se a ela o princípio do terceiro excluído. Assim, uma sentença como “Está chovendo agora” pode ser verdadeira ou falsa; é, portanto, uma proposição. Já a sentença “Feche a janela” não pode ser verdadeira nem falsa, pois é uma ordem, não afirma nem nega algo; é, portanto, uma sentença não-proposicio­ nal. Da mesma forma, quando expressamos sentimentos, estamos usando a linguagem de modo não-proposicional. Por exemplo, quando o enamorado diz à amada, “você partiu-me o coração em pedaços”, essa sentença não é verdadeira nem falsa.

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Mesmo que não se assuma explicitamente que o chamado conhecimento proposicional é o mais fundamental, geralmente as discussões epistemológicas giram em torno deste tipo. E se faz es­ pecialmente uma distinção em dois subtipos: conhecimento proposicional a priori e conhecimento proposicional a posteriori. O conhecimento a posteriori é o conhecimento empírico, aquele dependente da experiência perceptual. Embora não se possa simplesmente equiparar percepção com sensação (pense na alegação de que há percepção extra-sensorial ou de que há intuição), a experiência senso­ rial é tida, neste contexto, como o modelo privilegiado de experiência e fundamento do conhecimen­ to empírico. Assim, por exemplo, quando se pede pelas evidências de que algo é verdadeiro, a pessoa frequentemente está solicitando que se apresentem elementos ligados às sensações, como algo que se viu, ou ouviu, ou se tocou, assim por diante. O conhecimento a priori é o conhecimento racional ­independente da percepção, aquele conhecimento cuja comprovação não precisa fazer referência al­ guma a uma experiência sensorial ou de outro tipo, se houver. Aquilo que nós sabemos antes (no sen­ tido lógico) de qualquer experiência, ou, como alguns preferem dizer, o conhecimento inato em nós. Um dos mais importantes debates na epistemologia ocorre em referência a esta distinção entre o a priori e o a posteriori, ou, como também é chamado, as verdades de razão e as verdades de fato. Um exemplo de verdade de razão é “algo é igual a si mesmo”; um exemplo de verdade de fato é “Machado de Assis escreveu Dom Casmurro”. Esse debate opõe os empiristas aos racionalistas. Segundo o empirismo, todo e qualquer conhecimento depende, em última análise, da experiência sensorial. Se não for possível, em relação a qualquer fato ou objeto que se diz conhecer, apontar para alguma experi­ ência a ele relacionado, tal suposto conhecimento é ilusório ou fantasioso. As verdades de razão não são inatas, mas adquiridas, e consistem em relações de idéias, não em um saber acerca da realidade. Já para o racionalismo, nem todo conhecimento depende da experiência sensorial; pelo contrário, as verdades mais fundamentais sobre a realidade são não-sensoriais, e as percepções devem ser julga­ das por meio dessas verdades, ou desses conhecimentos fundamentais. Assim, em oposição aos em­ piristas, os racionalistas concebem as verdades de razão como inatas, e elas se referem à realidade tal como é e não apenas às nossas idéias. O que significa que podemos obter algum conhecimento sobre o mundo também raciocinando, sem necessidade de ter experiências ou fazer experimentos. A mes­ ma distinção é expressa em outros pares de opostos, como verdades necessárias/verdades contingen­ tes, juízo analítico/juízo sintético.

Epistemologia aplicada Quando questões como as mencionadas acima são tratadas em relação a alguma área espe­ cífica das ciências, ou a um tópico específico de uma ciência determinada, constitui o que podemos chamar de epistemologia aplicada. Por exemplo, a questão acerca do papel da memória no conheci­ mento histórico, ou o assunto deste livro, epistemologia das ciências sociais. A epistemologia apli­ cada não difere essencialmente, portanto, da epistemologia geral, nem aplicada aqui significa algo técnico. Apenas que há problemas epistemológicos que afetam qualquer área de conhecimento e outros que dizem respeito a determinadas áreas, mas não a outras. Há uma diferença, por exemplo, no que se refere à epistemologia da matemática e no que se refere à epistemologia da religião. Uma importante questão diz respeito a se existe alguma diferença epistemológica, e qual é, no que se re­ fere às ciências naturais (como a Física, a Química, a Biologia) e às ciências sociais (como a Sociologia, a História, a Antropologia).

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Episteme e doxa Epistemologia é um termo que provém do grego, e pode ser traduzido por “discurso sobre o co­ nhecimento” ou “teoria do conhecimento”2. A palavra grega episteme significa conhecimento, mas em um sentido forte (como era usual para os gregos, mas não o é para nós), o que hoje chamaríamos de co­ nhecimento absoluto, aquele do qual somente um tolo duvidaria. Os gregos usavam esse termo para di­ ferenciá-lo de um outro tipo de saber, aquele que chamavam de doxa, termo cuja tradução apropriada é opinião. E justamente, desde lá, consiste a tarefa fundamental da epistemologia, seja geral ou aplicada, em determinar a diferença entre conhecimento (episteme) e opinião (doxa), especialmente opinião ver­ dadeira. Os gregos perceberam que ter uma opinião que corresponde aos fatos não é necessariamente conhecer os fatos. Como assim?

Noções básicas em epistemologia: conhecimento, crença e fé Para um melhor entendimento do que se discute em epistemologia, convém diferenciar inicial­ mente as noções ligadas aos termos conhecimento, crença e fé. As distinções e relações que seguem não são exaustivas, e não pretendem cobrir todo o espectro do uso e significado de tais termos, mas somen­ te esclarecer alguns pontos importantes e fundamentais para que possamos adequadamente diferen­ ciar ciência e opinião.

Crença e conhecimento O termo crença pode ser usado em um sentido lato (amplo) e/ou em um sentido estrito. No sen­ tido lato, inclui o conhecimento; no estrito, freqüentemente é usado em contraposição a conhecimento. Quando digo que conheço algo (por exemplo, que sei que 3 . 3 = 9), então é também verdade que acredito nisto. Não faz sentido dizer que sei que 3 . 3 = 9, mas ao mesmo tempo dizer que não acredito que 3 . 3 = 9. Por outro lado, faz sentido dizer que acredito que Maria tem menos de 30 anos, mas não o sei, ou, como algumas pessoas também se expressam, que não tenho certeza. Qual a diferença? Segundo muitos filósofos, quando digo que sei que uma certa sentença é verdadeira, três elemen­ tos pelo menos devem estar presentes: primeiro, que eu penso ser ela verdadeira; segundo, que ela é de fato verdadeira; e terceiro, que há evidência suficiente para produzir o assentimento de qualquer pessoa racional (a quem as mesmas evidências estejam disponíveis). Por exemplo, se digo que sei que Maria tem menos de 30 anos, e apresento como evidências sua certidão de nascimento, o testemunho de seu pai, sua carteira de identidade e outras provas similares, então qualquer pessoa racional deveria concordar co­ migo. Isso, entretanto, não exclui a possibilidade de que eu esteja errado. Se restringirmos a aplicação do termo conhecimento tão somente àquelas sentenças em relação às quais é impossível logicamente que es­ tejamos errados, de pouca coisa poderíamos dizer que as conhecemos. Por exemplo, consideremos a sen­ tença: “se penso, existo”; ou, na sua formulação clássica: “penso, logo existo”. Para qualquer um que afirma uma tal sentença, é impossível, sob qualquer circunstância imaginável ou concebível, que ele esteja erra­ do; pois não há como alguém dizer “penso, mas não existo”. Ao dizer isto, a pessoa se contradiz, isto é, diz 2 Composto por duas outras palavras: episteme + logos

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algo e logo após diz o contrário do que disse. Isso não faz sentido. É como se nada dissesse. Contudo, tal peculiaridade não ocorre com a maioria das coisas que dissemos ou nas quais acreditamos. Quando digo “Maria tem menos de 30 anos”, isto pode ser falso, ou poderia ser diferente, ou pode ter sido verdadeiro no passado, mas agora não é mais. Em suma, posso estar enganado. Assim, se evidências posteriores alterarem a situação, eu não poderia continuar dizendo que sei, ou sabia, que Maria tem menos de 30 anos, mas deveria então dizer que, dadas as evidências disponí­ veis naquele momento, eu estava justificado em dizer que sabia. Por exemplo, se alguém mostrar que a certidão de nascimento de Maria é falsificada, e que o testemunho do pai dela depende do testemu­ nho da mãe, já falecida (pois ele só veio a conhecer a menina quando já crescida, digamos, com um ano e meio), então teria eu agora evidências que excluem as evidências anteriores nas quais baseava minha crença, mesmo que seja efetivamente verdadeiro, objetivamente considerado, que Maria tem menos de 30 anos. Esse importante ponto mostra como o segundo elemento, mencionado antes (a saber, que quan­ do dizemos saber algo, que este algo seja realmente verdadeiro) é problemático. A diferença fundamental, portanto, entre conhecimento e crença (no sentido estrito) está no grau de evidência disponível. Uma crença não é necessariamente algo em que acredito sem ter nenhuma razão para tal, mas algo em que acredito sem possuir evidências suficientes (e estou disto ciente) para compelir ao assentimento qualquer pessoa racional. Daí ser adequado falar em graus de crença. Esses graus de crença seriam estabelecidos de acordo com sua relação às evidências, o que se chama de princípio de proporcionalidade. Repetindo, o grau de uma crença, isto é, a força probatória que a sustenta, está em proporção direta com as evidências, com as razões que são apresentadas em seu favor, e inver­ samente proporcional às contra-evidências, as razões apresentadas contra ela. Quanto maior a evidên­ cia a favor, mais forte (objetivamente) a crença. Agora, nem todas as crenças podem ou devem ser provadas; nem todas as crenças exigem evi­ dências. Porque, se fosse necessário provar cada uma de nossas crenças, esta seria uma tarefa infinita: seria necessário apresentar a prova de uma crença, a prova da prova, a prova da prova da prova, e assim por diante, sem fim. Estaríamos na situação daquele personagem mítico, cuja tarefa era rolar uma pedra até o topo de uma montanha, mas, pouco antes de conseguir, a pedra rolava montanha abaixo, e ele ti­ nha de recomeçar tudo de novo, sem fim. O que fazer então? Parece haver três alternativas possíveis. Primeiro, manter que há crenças autoevidentes, isto é, cuja verdade é conhecida por si mesma e não necessita, portanto, de prova alguma. Já mencionamos um exemplo: “penso, logo existo”. Alguns filósofos argumentaram que somente quando nossas crenças se baseiam em tais verdades auto-evidentes podem elas ser consideradas conhecimen­ to, no sentido próprio do termo. Ou, como preferem alguns, na esteira da concepção grega, conhecimento absoluto. Somente nesses casos especiais não haveria diferença entre crer e conhecer. A segunda alternativa consiste em, numa certa altura do processo de prova, simplesmente nos darmos por satisfeitos com as evidências apresentadas, e aceitar a crença mesmo não tendo certeza ab­ soluta de que é verdadeira. Essa aceitação pode se dar de dois modos: ou se aceita a crença plenamente, ou se aceita a crença provisoriamente3. Se a crença for aceita plenamente, julga-se que ela é verdadeira e confiável, e somente se volta a considerá-la se alguém apresentar uma contra-evidência forte. Muitas das crenças que as pessoas têm são deste tipo: crenças acerca das propriedades dos objetos (de que cor são, que cheiro têm, qual seu tamanho etc.), crenças baseadas na memória (o que ocorreu ontem, o que 3 Conforme a classificação proposta por Mikael Stenmark, no texto “Racionalidade e compromisso religioso”, publicado na revista Numen, v. 2, n. 2, jul. dez. 1999.

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os outros disseram etc.), crenças baseadas no costume (que o Sol aparecerá novamente, que o leite ali­ menta, que o fogo queima etc.). Se a crença for aceita provisoriamente, não se recusa a crença, mas se julga que há necessidade de investigá-la mais, mesmo se ela própria é tomada como ponto de partida da investigação. Nesse caso, é possível proceder de duas maneiras: a) buscar ativamente contra-evidências, isto é, provas de que a crença está errada; b) buscar ativamente novas evidências a favor da crença. As teorias científicas são normalmente, ou pelo menos inicialmente, desse tipo. Por exemplo, quando os astrônomos no século XVI passaram a aceitar a teoria copernicana (o heliocentrismo), a crença em tal teoria era inicialmente provisória. Usando elementos da própria teoria no processo de investigação, os cientistas encontrarão poucas contra-evidências e muitas evidências novas a favor da teoria; assim, a crença em tal teoria passou a ser plena. Isso é o que os filósofos chamam de conhecimento provável ou conhecimento probabilístico. A terceira alternativa possível diante da questão acerca dos fundamentos de nossa crença consiste em simplesmente reconhecer que algumas crenças não têm fundamento e nem são auto-evidentes: ou as consideramos verdadeiras ou as consideramos falsas. Alguns as chamam de crenças fundamentais, e se justificam somente por fé. Um exemplo desse tipo de crença é a de que existem objetos físicos reais, inde­ pendentes da forma como os percebemos, e com características realmente similares àquelas que as nossas sensações desses objetos nos fazem crer. Isso se chama crença na existência do mundo exterior. Há filóso­ fos que, ao considerar o valor epistemológico desta crença, argumentaram que ela não pode ser provada e nem é auto-evidente. Logo, concluíram que aceitamos tal crença porque temos fé na sua verdade.

Crença e fé Conforme o argumento do parágrafo anterior, fé seria um tipo de crença. Mas precisamos estar atentos aqui, especialmente tendo em vista as associações usuais com o termo fé. Neste contexto pode levar a ambigüidades epistemologicamente indesejáveis; mas, mesmo assim, ele é apropriado, bastan­ do que tenhamos certos cuidados. Por fé muitas vezes se entende aquela crença que envolve intensi­ dade no assentimento4, e liga-se emocionalmente à pessoa, de forma que, se estiver errada ou se for atacada, provocará sério desapontamento. Geralmente, o termo está ligado a crenças religiosas, mas não é exclusivo delas. Levando em consideração o que foi dito até aqui, sendo a fé uma forma de crença, embora mais intensa, não se deve julgar de imediato que fé é algo irracional. Este tópico, sobre a racionalidade ou ir­ racionalidade da fé (e quando é discutido, geralmente os filósofos estão se referindo à fé religiosa), é complexo, pois o termo fé é normalmente aplicado a um conjunto bastante amplo de sentenças (por exemplo, quando se fala na fé cristã), e pode ser o caso de serem algumas destas sentenças racionais e outras irracionais. Se considerarmos o conceito fé de um ponto de vista estritamente epistemológico, e no contexto da discussão feita aqui, a fé não é racional nem irracional. No limite, uma crença seria irracional se a pessoa que a mantém não é capaz de produzir evidência alguma em seu favor, e há diversas contraevidências disponíveis. Mas uma crença pode ser racional sem que seja aceita por todas as pessoas racio­ nais que a discutem. Ela não constituiria assim um conhecimento, a não ser em um sentido derivado.

4 Veja o texto de John Locke na seção “Texto complementar”.

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Conclusão Podemos, então, concluir que uma das tarefas principais da epistemologia consiste em esclare­ cer o uso da idéia de conhecimento, quais os critérios que precisamos utilizar para não confundi-lo com crença em sentido estrito ou com fé, quais os seus componentes, como obtemos conhecimento e qual o seu alcance. Não devemos supor, no entanto, que as respostas a essas questões serão exatamente cor­ respondentes em qualquer área de conhecimento. Por essa razão, quando procuramos compreender epistemologicamente as ciências sociais, sem dúvida temos de considerar questões epistemológicas ge­ rais, mas não precisamos supor previamente que não há diferenças importantes entre esta e outras áre­ as de conhecimento.

Texto complementar (LOCKE, 1990, p. 687-688)

“Fé nada mais é que um forte assentimento da mente, o qual, se bem conduzido, conforme nos­ so dever, não pode ser dado a qualquer coisa a não ser tendo-se boas razões [...] Aquele que crê, sem ter qualquer razão para crer, pode estar enamorado de suas próprias fantasias. Mas não procura a ver­ dade como deve nem presta a devida obediência a seu Criador, que deseja faça ele uso das faculda­ des de discernimento que recebeu para evitar o erro e o prejuízo. Quem não faz isso usando o melhor possível suas faculdades, se às vezes atinge a verdade é antes por acaso do que por estar certo; e eu não sei se a sorte do acaso (acidente) excusará a irregularidade do procedimento.” John Locke, Um Ensaio sobre o Entendimento Humano, livro IV, capítulo XVII, parágrafo 24. Locke (1632-1704), um dos mais importantes filósofos ingleses e considerado um dos principais criadores da epistemologia contemporânea. A tradução é feita do original inglês.

Atividades 1.

Considerando o que você viu até o momento sobre epistemologia, explique que uso ou aplicação pode ter tal estudo na área das ciências sociais.

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2.

Faça uma lista de 20 crenças que você aceita, das quais dez você julga ter conhecimento e dez você aceita por fé. Compare com as listas de outros dois colegas e procure determinar as seme­ lhanças e diferenças.

3.

Por que é importante ter uma definição de conhecimento?

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