CERRADOS. Revista do Programa de Pós-Graduação em L it s r d t U P Q. Poesia Brasileira Contemporânea ISSN

October 18, 2017 | Author: Fátima Rios Gonçalves | Category: N/A
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1 ISSN CERRADOS Revista do Programa de Pós-Graduação em L it s r d t U P Q Poesia Brasileira Contem...

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ISSN 0104-3927

CERRAD O S

Revista do Programa de Pós-Graduação em L i t s r d t U P Q Poesia Brasileira Contemporânea

Universidade de Brasília

N° 1 8 -Ano 13-2004

Universidade de Brasília

ISSN 0104-3927

CERRADOS

Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura

n .1 8 , ano 13, 2004

BB

MISSÁO A Revista Cerrados configura-se como um veículo de divulgação do pensamento teórico literário, publicada semestralmente pelo Programa de Pós-graduação em Literatura da UnB. Visa a incorporar as contribuições do desenvolvimento do pensamento científico na área das literaturas e deis áreas afins do conhecimento, que enriqueçam as fronteiras das Ciências Humaneis na interdisciplinaridade necessária aos estudos acadêmicos contemporâneos. EDITOR Sylvia H elena Cyntrão

R E IT O R

Lauro M orhy V IC E -R E IT O R

Timothy Martin M ulholland DECANO DE

PESQ U ISA E PÓS-GRADUAÇÂO

N oraí R om eu Rocco DIRETO R DO IN STITU TO DE LETRA S

H en ry k Sieißierski CH EFE DO DEPARTAMENTO DE TEO R IA LITERÁ RIA E LITERA TU RA S

Robson Coelho Tinoco CO O RDEN AD OR DO PROGRAM A DE PÓS-GRADUAÇÁO EM LITERA TU RA

Rogério da Silüa Lim a

Universidade de Brasília

CERRADOS

Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura

Poesia brasileira contemporânea

n. 18, ano 13, 2004

Universidade de Brasília

Editor e Responsável pela seção temática deste número Sylvia Helena Cyntrão Comissão Executiva Robson Coelho Tinoco Rogério da Silva Lima Sylvia Helena Cyntrão Apoio Secretaria do Program de Pós-Graduação em Literatura Secretária: Dora Duarte

Conselho Editorial Consultivo Affonso Romano de Sant'A nna (Presidente da Fundação Biblioteca Nacional de 1991 a 1996, poeta e ensaísta-Brasil) Alckmar Luiz dos Santos (UFSC-Brasil) André Bueno (UFRJ-Brasil) Benito Martinez Rodrigues (UFPR-Brasil) Bernard Lamizet(Université Lumière 2-França) Eliane do Amaral Campello(UFSM-Brasil) Henryk Siewierski(UnB-Brasil) Hilda Orquídea Hartmann Lontra(UnB -Brasil) Jacques Fontanille (Université de Limoges-França) Luís Tatit (USP-Brasil) Maria Antonieta Pereira (UFMG-Brasil) Iná Camargo Costa (USP-Brasil) Laura Padilha (USP-Brasil) Luís Alberto dos Santos Brandão (UFMG-Brasil) Paulo Nolasco (UFMT-Brasil) Rita de Cassi Pereira (UnB-Brasil) Sara Almarza (UnB-Brasil) Revisão geral Sylvia Helena Cyntrão Impressão e revisão técnica

Gráfica e Editora Ltda.

ei 386-2944

[email protected]

R 454 Revista Cerrados / publicação do Departamento de Teoria Literária e literatura, organizado por Sylvia Helena Cyntrão; ano 13, n. 18 (2004). Brasília, 2005. — p. 200 ISSN 0104-3927 Semestral I. Literatura. 2. Teoria Literária. I. UnB/TEL. II. Cyntrão, Sylvia Helena. CDU 8(05)

AGRADECIMENTOS E NOTÍCIAS ESPECIAIS Conselho Editorial

7

APRESENTAÇÃO TEMÁTICA

9

Um olhar sobre as falas poéticas contemporâneas Sylvia H. Cyntrão ENTREVISTA

13

Affonso Romano de Sant'Anna

15

DEPOIMENTOS POÉTICOS

21

Hermenegildo Bastos Luis Turiba Ronaldo Costa Fernandes Xico Chaves

23 27 29

ENSAIOS

47

Anos 90: continuidade e invenção na poesia de novos trovadores: Álvaro Silveira Faleiros

49

35

Carmesim é a cor da musa Anazildo Vasconcelos da Silva

61

Oito conversas, a mesma: Carlos Augusto Lima/Manoel Ricardo de Lima

75

O híbrido lirismo brasileiro dos anos 90: injunções históricas, políticas e econômicas Christina Ramalho Nicolas Behr: Uma viagem pela cidade de Brasília Gilda Maria Queiroz Furiati Minas são muitas: quatro poemas na bateia.Uma controvérsia na manga Iacyr Anderson Freitas

89 101

III

Poesia gaúcha de 1990 para cá Luís Augusto Fisher Sob as barbas do Redentor - Uma análise de "Las muchachas de Copacabana" Rinaldo de Fernandes A POESIA CONTEMPORÂNEA PELO MUNDO De la chanson qui devient la lanterne de la culture québécoise um ensaio de Jean-Nicolas De Surmont HOMENAGENS Orides Fontela: Adalberto Müller/ Elizabeth Hazin Prefácio a Trèfle/Trevo: Michel Maffesoli Orides Fontela: 4 poemas /4 poèmes: Trad. Emmanuel Jaffelin e Márcio de Lima Dantas Augusto, o augusto Luis Turiba RESENHAS Oceano coligido, de Iacyr Anderson de Freitas por Alexei Bueno Eterno passageiro, de Ronaldo Costa Fernandes por Lígia Cardematori Além do Cânone. Vozes femininas cariocas estreantes na poesia dos anos 90. organização de Helena Parente Cunha por Fabrícia Wallace Na virada do século. Poesia de invenção no Brasil organização de Cláudio Daniel e Frederico Barbosa por Yara Fortuna

Agradecim entos e notícias especiais1

Este número reúne expressivo conjunto de idéias e análises de intelectuais, poetas e professores atuantes sobre a poesia brasileira contemporânea e sobre os novos vetores da lírica, em amplos aspectos teóricos. A todos e a cada um, muito especialmente, agradeço a colaboração e o apoio à manutenção dos caminhos de excelência que a Revista Cerrados - completando, em 2005, 14 anos de ininterrupta publicação - tem conseguido trilhar, graças ao trabalho dos membros de seu Conselho Editorial e Executivo, à relevante contribuição dos seus articulistas e ao apoio dos colegas do Programa de Pós-Graduação em Literatura. Cerrados visa a iniciar discussões, não a encerrá-las, fiel à sua missão acadêmica de ser um veículo de divulgação do pensamento crítico sobre a Literatura. Essa Editoria tem a satisfação de informar, por oportuno, que o poeta, ensaísta e acadêm ico mais jovem da Academ ia Brasileira de Letras, nosso ilustre colega, professor titular da UFRJ - Antonio Carlos Secchin- passa a integrar o operoso e participativo Conselho Editorial da Revista Cerrados, no ano de comemoração dos 30 anos do Programa. O convite foi feito por ocasião da presença do escritor na Universidade de Brasília , em 31 de janeiro último, quando participou de Banca de defesa de dissertação de mestrado. Bem-vindo, Antonio Carlos Secchin!

A Editoria

1 Em tem po, gostaríam os de registrar que, por m otivos acadêm icos de ordem diversa, não s e rá p u b lica d o o m a te ria l lite rá rio r e ce b id o , a p e s a r d a p o s s ib ilid a d e d iv u lg a d a na C h a m a d a d e p u b lic a ç ã o p a ra o n ú m e r o , d e m a r ç o d e 2 0 0 4 . A gradecem os sobrem aneira aos poetas que enviaram sua colab oração, colocando-nos ao in te iro d isp o r d o s m e sm o s p a ra os esclarecim entos que ju lgarem necessários, pelo e.mail cyntrao@ unb.br.

APRESENTAÇÃO TEMÁTICA

UM OLHAR OPINATIVO SOBRE AS FALAS POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS A Revista Cerrados apresenta neste número um-olhar abrangente sobre os novos vetores da lírica contem porânea, sobre os quais apresentamos, em seguida, algumas considerações temáticas iniciais. Os progressos da consciência sobre o fazer poético no último século propiciaram ao fruidor e ao estudioso do texto a ampliação considerável do instrumental psíquico-técnico que hoje configura a atitude de leitura analítica. Esta atitude compõe-se, sobretudo, da busca de percepção dos inter, intra e extratextos, elementos des-cobertos ou des­ velados da ativa ligação de forças que se estabelecem entre o ser humano e o cosmos no momento da criação e no momento da recepção. Vimos as rupturas literárias eclodirem no início da década de 1960, formulando um conjunto de princípios que hoje produzem uma textualidade singular, pela descontinuidade, pela indeterminação e pela pluralidade. Assim, as práticas literárias da pós-modernidade transitam contemporaneamente nos limites hibri dação dos gêneros literários e os sistemas semióticos concorrem para a sua fabricação, misturando texto com imagens e sons, entre outros elementos. Segundo Maria Augusta Babo2, "a hibridação é uma explosão de fronteiras e uma recombinatória de sistemas heterogêneos de significância". Podemos dizer que a poesia brasileira, desde os anos de 1990, sofreu esse processo de hibridação, iniciado pela erosão de fronteiras entre os gêneros (mídia, canção, teatro, videoclipe), ressaltando-se a internet como forma de afirmação de grupos de autores que publicam em revistas eletrônicas, como a www.pd-literatura.com.br3, cadastrada pela Unesco, para citar apenas uma das que venho acompanhando nos últimos anos. A coexistência de vários estilos e diferentes registros - poemas longos, breves, prosa poética, sonetos, hai-kais, poemas que seguem a sintaxe convencional ou aqueles que apresentam ostensiva

2 U n iv e rsid a d e N o v a de L isb oa. C o n ferên cia "A s tra n s fo rm a ç õ e s p ro v o c a d a s p elas te cn o lo g ia s d ig itais n a in stitu ição lite rá ria " 0 6 / 0 4 / 2 0 0 0 . 3 Editora responsável, A sta Vonzondas. 4 Esses Poetas - Uma Antologia dos Anos 90. RJ: A e ro p la n o ,1998. 5 A lém do Cânone. RJ: T em p o B rasileiro, 2004.

9

ruptura gramatical - se aliam à diversificação dos temas poéticos e uma antologia de poemas dos anos de 1990, como a que Heloísa Buarque de Hollanda4 lançou em 1998, ou a de Helena Parente Cunha5, publicada em 2004, podem conter versos de crítica social, questões existenciais-metafísicas, o feminismo-feminino, o homoerótico masculino, a memória, o urbano, o bucólico, o erotismo, a auto e a hetero-referenciação, entre tantos outros, emersos da diversidade cultural brasileira e mundial, neste momento desconstrutor e integrador a um só tempo. Poderíamos tentar explicar este processo adaptando a noção que Jung propõe do inconsciente coletivo: a mente dos autores e dos leitores está contatando uma multiplicidade de contextos e códigos culturais - psicológicos políticos - sociológicos - históricos - lingüísticos - literário s, entre outros, propiciando a proliferação dos sentidos e perm itindo aos significados vima expansão constante em trânsitos cruzados. E nesse sentido que compreendemos, portanto, ser toda obra literária uma rede de relações voltada pa:a o mundo. Percebe-se, no conjunto de ensaios que compõem este número de Cerrados, que o ponto de partida das análises críticas contem porâneas apresenta, invariavelmente, incisões reflexivas de caráter ontológico. Sabemos que, ao iniciar esta incisão, o analista está se defrontando com o mundo do impreciso, já que o próprio espírito humano é fluido em seu funcionamento, ambíguo em seus conceitos e vago em suas definições. Por outro lado, o nebuloso é também o lugar dos possíveis... A apreensão das falas de representação e transcendência que compõem os textos poéticos permeia-se, contemporaneamente, das implicações globais de integração e estranhamento do homem em seu meio. Os índices de contemporaneidade e

universalidade na obra poética são, portanto, identificados a partir da leitura do "hom em ", situado em tempo e espaço determinados. Entender este "hom em" é captá-lo numa perspectiva de globalidade, artífice de um complexo universo semiótico de interações axiologicamente orientadas. Se há lugar em que a cultura humana apareça mais explícita (embora olhos desavisados nem sempre consigam contemplá-la...), este lugar é o texto literário. Barthes6 já falava que "todas as ciências se encontram disseminadas no momento literário". Essa interdisciplinaridade provocará a interação complementar, contributo que fundamenta o texto em sua estrutura profunda. Sabemos que, por sua própria natureza sistêmica, o texto literário é uma rede interconectada e sua vida orgânica pressupõe, portanto, relações externas. Como nos ensina ainda o teórico, a língua é o domínio das articulações e o sentido é recorte, antes de tudo. Se a questão do estudioso da Literatura é contribuir, por meio de suas reflexões, para uma compreensão cada vez mais aprofundada do ser que produz o texto, que não existe por si, mas em colaboração e por contágio de suas inquietudes, estáse dizendo que o estudo das literaturas só faz sentido contemporaneamente se for pluridimensional, se buscar ultrapassar as fronteiras da superfície para verificar as relações particulares que as produzem. Buscar sentidos e significad os é, naturalmente, buscar o "humano ser" e o humano sendo. E buscar-se enquanto "e u " e enquanto "outro" é re-pensar, é re-significar a própria história. A Literatura como um vasto sistema de trocas sempre propiciará, portanto, leituras diversificadas. Gostaríamos de ressaltar neste número os

6 O prazer do texto. São P a u lo : P e rs p e c tiv a , 1987.

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ensaios que falam (e mostram) a Literatura e (em) suas fronteiras, a partir das palavras de Octávio Paz7, segundo o qual "as transformações neste domínio correspondem também às da imagem do mundo, desde a sua aparição na Pré-História aíé o seu eclipse contem porâneo. Palavra falada, manuscrita, impressa: cada uma delas exige um espaço distinto para se manifestar e implica uma sociedade e uma mitologia diferentes (...) a letra de imprensa corresponde ao triunfo do princípio de casualidade e a uma concepção linear da História. É uma abstração e reflete o paulatino ocaso do mundo como imagem. O homem não vê o mundo: pensa-o. Hoje, a situação transformou-se de novo: voltamos a ouvir o mundo, embora não possamos vêlo. Graças aos novos meios de reprodução sonora da palavra, a voz e o ouvido recobram seu antigo lugar". Foi a série de vanguardas no século XX que, valorizando o caráter am bivalente da palavra literária, a reaproximou, por ser de sua natureza mesma a característica correlacionai, das demais artes. Ganha a palavra interpretada, assim, nova dimensão, com o "contágio" dos códigos de leitura das outras artes. Na seqüência de suas reflexões, Paz diz, também, que o revigoramento da palavra falada não implica uma volta ao passado, já que o espaço é outro, mais vasto e, sobretudo, em dispersão; mas a palavra não pode ser estática, ela também está em rotação. Configurando um aparente paradoxo, também levantado nos presentes ensaios, é preciso pensar que, embora em sua plurivocidade a arte literária comungue com as outras artes, a escritura só vive quando se libera de toda companhia. Se o homem do Terceiro Milênio busca compreender o processo de fragm entação e

7 El arco y la lira. M éxico: Fo n d o d e C u ltu ra E con om ica, 1970.

reconfiguração cultural do qual é ator, é compreensível e desejável que o fenômeno plurivocal que é o texto literário seja focalizado e analisado sob o prisma de uma significação cultural e estética igualmente ampla. Sendo o texto literário privilegiado como fonte de conhecimento, sempre revelador do ser hum ano e de suas relações com os m icro e macrocosmos culturais, ler um texto poético deve ter, portanto, um sentido para além do exercício n arcísico in telectu al, deve abrir fronteiras intersubjetivas (o que não significa, necessariamente, que sejam coletivas) de compreensão do mundo em que vivem os. A ssim , saudam os com entusiasmo as reflexões que aqui se abrem nos artigos, já que, em cada um e em todos, esse foi o relevante eixo comum que identificamos. Nesse momento de particularização, são os aspectos qualitativos do pensam ento que buscam voz pela via do particular, que é social (mas não só), contra a idéia de homogeneização, vinda de uma interpretação errônea do significado de mundo globalizado. Instaura-se a realidade particular, menos ficcional do que a que se queria "universal", já que o particular é a abertura do possível e do que é viável, fora da utopia. Os espaços dogmáticos dentro da expressão lírica se fluidificaram e as patrulhas acadêmicas de voz excludente mostraram o vazio de seu discurso, já que, no mundo globalizado, o grande valor de sobrevivência é a incorporação e não a exclusão "sem ter vergonha de ser lírico", para lembrar a expressão recentemente utilizada por Affonso Romano de Sant' Anna8 em uma de suas mais lúcidas crônicas. E é justam ente com o poeta, ensaísta e presidente da Fundação Biblioteca 8 O Globo, 2 0 0 4

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Nacional de 1991 a 1996 que Cerrados faz uma entrevista sobre a sua destacada contribuição para a movimentação do cenário poético no Brasil e sua projeção internacional nos anos de 1990. Permito-me chegar a algumas conclusões e a expô-las, após a leitura dos intelectuais que aqui se expressaram , em seus depoim entos, poemas, ensaios e resenhas, com contribuições tão significativas quanto abrangentes dos cenários local, nacional e mundial. Devido também à minha própria vivência como professora e pesquisadora dedicada à poesia brasileira contemporânea, bem como poeta publicada nos anos de 19909, percebo claram ente que os estudos literário s, hoje, manifestam-se pela abertura de processos que compreendem o encadeamento sistematizado das várias esferas que circundam o ser na expressão de sua existência. Valores excludentes, tidos como absolutos durante muitos séculos, foram postos em xeque no século XX e, agora, o mundo os questiona em nome de um pensamento que incorpore a diferença, a pluralidade e a micrologia do cotidiano. C reio firm em ente ser p ossível, neste Terceiro Milênio - para os homens e mulheres que, apesar de a reconhecerem, querem superar a fragmentação autofágica legada pela modernidade -, pensar, sentir e vivenciar experiências existenciais com in tegrid ad e, fora das m áscaras, todas redutoras. Para tanto, as antigas barreiras devem ser transformadas em fronteiras de enriquecimento permanente, para honrar o sempre contínuo e perpétuo processo de busca de harmonização ativa desse SER que somos nós. Ser-essência. Quintessência. A leitura dos textos - nesta Revista

9 R eferências p rin cip a is em P a re n te C u n h a , H elena. Além do Cânone. RJ: T em p o B rasileiro, 20 0 4 . E e u rC o e lh o , N elly N o vaes. Dicionário Crítico de Escritoras. SP: E scritu ra s, 2003.

apresentados por professores e pesquisadores universitários, produtores culturais e poetas contemporâneos - possibilitará , portanto, uma abertura formal do pensamento à reflexão necessária sobre os sujeitos criadores e articuladores, aqueles que impulsionam a tão necessária transvaloração da condição do sujeito-de-hoje. Como havíamos sinalizado anteriormente para o futuro da Revista Cerrados, as fronteiras se abrem. Em sua nova fase, Cerrados é o espaço de divulgação desse processo. E, para melhor concluir, reproduzo um extrato poético10 de Christina Ramalho (ver ensaio da autora na p. 61), na pessoa de quem homenageio as poetisas e os poetas que, por meio da dedicação à sua arte, desconstroem e ressignificam a aventura viva da contemporaneidade. Trapos de todas as roupas rasgam sonhos de vermelhos impossíveis e de remotos medos temíveis como todos os medos são (...)

Algumas portas escancaradas portas algumas outras cerradas apelo sussurrante, disco do Tom (...)

Trapos e portas e memórias conturbadas assim, meio exagerada sim uma déia revolução. Sylvia H.Cyntrão11 Editora Geral

10 R am alh o, C h ristin a. Laço e nó. RJ: Elo E d ito ra , 1999. 11 D e d ic o m in h a s p e s q u is a s , d e s d e

fin ais d o s a n o s 8 0 , às

r e la ç õ e s e n tre a li te r a t u r a e c a n ç ã o p o p u l a r u r b a n a e à s q u estões id eoló gicas contfem porâneas

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na lírica b rasileira.

ENTREVISTA

AFFONSO ROMANO DE SANT' ANNA Entrevista exclusiva para a editoria da Revista Cerrados

Apenas mencionar o nome de Affonso Romano de Sant'Anna, poeta, cronista e ensaísta, Presidente da Fundação Biblioteca Nacional de 1991 a 1996, professor participante da resistência intelectual da UFRJ e da PUC nos anos de chumbo da ditadura, autor de livros teóricos sempre instigantes e atuais, me dispensaria destes e de muitos comentários - visto que seu currículo de profissional e cidadão é histórico na literatura contemporânea brasileira e em nosso país mas me retiraria uma enorme satisfação. Por isso menciono, também, que Affonso Romano é membro atuante do Conselho Editorial da Revista Cerrados, desde que o periódico passou por reformulações conceituais e gráficas, em 2002. Para com por a edição deste núm ero dedicado à poesia contemporânea, pedimos a ARS que nos contasse um pouco sobre a importância da revista Poesia Sempre, criada por ele em sua gestão frente à Fundação Biblioteca Nacional, com o espírito de aglutinar e promover seus pares, o mesmo que o impulsionou em 1973 - e é importante aqui essa memória - a organizar, na PUC/RJ, a EXPOESIA, que reuniu 600 poetas desafiando a repressão política, dando espaço à poesia marginal. A revista Poesia Sempre divulgou nossa poesia no exterior e foi lançada em Nova York, na Dinamarca, em Paris, em São Francisco, para citar apenas alguns dos muitos locais onde foi com sucesso recebida, bem como nas principais capitais latino-americanas. Cerrados - Como e por que surgiu a revista Poesia Sempre? ARS - Como parte de um amplo projeto cultural. Não se tratava apenas de mais uma revista de poesia, mas de uma ação com múltiplos significados. Estávamos na direção da Fundação Biblioteca Nacional, desde 1991, desenvolvendo várias frentes de trabalho: criamos o Proler, o Sistema Nacional de Bibliotecas, iniciamos um programa de exportação da literatura brasileira com bolsas de traduções, publicações de revistas em espanhol e inglês, divulgando nossa cultura, enfim, uma série de coisas. Pensava já em reeditar a antiga Revista do Livro, do tempo do INL, que tinha ensaios, documentos. Mas ocorreu-me que a FBN poderia, também, dar uma contribuição na área específica da poesia. Cerrados - Editando os poetas? ARS - Mais do que isto. As revistas literárias, em geral, são produzidas por grupos de jovens escritores emergentes ou grupos partidários.

E n trev ista exclusiva para a editoria da R evista C errad os

Sempre foram publicações provisórias, heróicas. Mas elas eram ligadas a grupos com ideologias próprias. Nos anos 50 e 60 a "Invenção" dos concretos só publicava o que achavam que era Pound-M allarmé-Joyce. A "Praxis" tinha uma programática construtivista. A "Tendência", em Minas, era de um grupo com idéias sobre cultura e nacionalismo. E assim por diante. Mesmo as revistas da Geração 45 e as diversas revistas m odernistas eram ram pas de lançam ento de autores jovens, afinados com certos restritos quesitos estéticos e políticos. Por isto mesmo pensei qué era função de um órgão público fazer uma revista na área da poesia que fosse uma inovação, que pertencesse a todos, não a um grupo, e um modo de tirar os poetas da apatia e da dispersão em que vivem, pois são raríssimas as publicações no gênero e de circulação restrita. Pensei uma revista que fosse: - um diálogo entre a tradição e a inovação - uma "plaza mayor" de todos os poetas brasileiros - um diálogo de nossa poesia com a poesia que se faz hoje no mundo - que tivesse textos em português, mas em outras línguas, para que conhecessem o que fazemos e conhecêssemos o que fazem noutros países - que tivesse seções inovadoras e não fosse uma mera coleção de poemas. Cerrados - E como foi a reação dos poetas? ARS - Foi de acolhida imediata. Os únicos que ficaram de banda e se negaram a participar naquele instante foram os concretos. Já tinha tido uma experiência negativa com eles quando organizei a "E x p o esia ". D isseram que não

participavam de iniciativas " eclético-aritativas", ou seja, não entram em bola d iv id id a, lhes interessa o discurso do "mesmo" e não do "outro". Cerrados - Por que, a partir do segundo número, houve uma evidente m odificação gráfica e de conteúdo? ARS - O primeiro número, de alguma maneira, foi experimental. Chamei o Antônio Carlos Secchin para ajudar na editoração. Fiz questão que meu nome não aparecesse, nem no expediente nem na introdução, nem nas colaborações. Sinalizava, assim, que não estava agindo em causa própria, mas abrindo espaço para outros, como sempre fiz. Cerrados - A que está se referindo, exatamente? A RS - Há pessoas que, por tem peram ento, trabalham excluindo, aceitando só os seus eleitos, os seus iguais. Há pessoas que trabalham pela inclusão, aproximando os heterogêneos, dando oportunidade a todos. Pertenço ao segundo tipo. Não é virtude, é meu temperamento. Em 1973, por exemplo, organizei a "Expoesia 1" (PUC-Rio), a "Expoesia 2"(C uritiba), a "Expoesia 3" (Nova Friburgo), reunindo cerca de mil poetas nas três exposições: a idéia era fazer falar a nova poesia brasileira, que começou a surgir com o nome de "p oesia m arg in al". Em 1962 (p o rtan to , já anteriorm ente) fui um dos organizadores da "Sem ana de Poesia de V an g u ard a"( Belo Horizonte), para mostrar os diversos grupos que trabalhavam na época (narro isto num livro recémrelançado: Música popular e m oderna poesia brasileira). Sempre tive um impulso normal de trabalhar em grupo, carrear forças, reunir pessoas. Deve ser coisa de tem peram ento e de minha form ação p rotestan te voltada para a ação comunitária. E nesse sentido que, na ocasião do "Violão de Rua", princípio dos anos 60, ao mesmo

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A fo nso R om an o d e San t'an n a

tempo em que participava desse grupo, também dialogava com os concretistas e com os demais grupos do país. Cerrados - E no caso da Poesia Sempre, como foi isso? ARS - Diria que a revista conseguiu agrupar poetas que nem se conheciam no Rio, embora vivessem na mesma cidade. E começamos um intercâmbio maior com poetas de todo o país, que mandavam seus poemas para publicação e livros para resenha. A seleção era democrática. O comitê de redação lia e discutia os poemas lidos. Cada um defendia o seu ponto de vista. Essa democracia era fundamental. Deste modo, Ivan Junqueira, Antônio Secchin, Marco Lucchesi, Suzana Vargas, Domicio Proença, Ferreira Gullar, Moacyr Felix, Ivo Barroso, Tomas A lborn oz, Jo rg e W anderley e outros passaram a se encontrar regularmente na redação da revista. Começaram a se conhecer melhor, a estabelecer amizades, a se lerem. Os escritores vivem muito isolados, necessitam de contato para fermentar seja suas idéias, leituras, seja suas invejas, concorrências, disputas, enfim, emulações da vida profissional. Então, a p artir do segundo núm ero resolvemos dar um salto. Apareceu-me Emanuel Brasil depois de uma tem porada nos Estados Unidos, amigo de Elizabeth Bishop, com larga experiência editorial, que trouxe o Victor Burton, velho amigo, que já havia feito a capa de meu Que país é este?, e eu já havia feito apresentação de exposições dele. Se o primeiro número foi dedicado à América Latina, o segundo o foi a Portugal e países de expressão portuguesa na África. íamos, assim, alargando o diálogo com outras poesias. Tinha uma visão p o lítica e cu ltu ral, queria integrar, dar a conhecer a poesia da América

Latina, a que se faz hoje e a poesia que se faz em Portugal e nos dem ais países de expressão portuguesa. Isto acompanhava ações no plano das bibliotecas e outros intercâmbios. Cerrados - É isso que chama de exportação da poesia e intercâmbio internacional? ARS - Digamos, mas era mais que isto, e aqui não posso repetir tudo o que está nos relatórios que ficaram na BN. Repito, era um projeto sistêmico. Cada número dedicado à poesia atual de um país. Assim, foram feitos números sobre os Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha, etc. Cerrados - E quem financiava isto, já que a revista, belíssima, com até 400 páginas e a cores, devia ser cara? ARS - Inventei um processo de cooperação. O país convidado dava uma parte, digamos uns cinco mil dólares, o Itamaraty dava uma outra parte e a FBN entrava com sua marca, com a mão de obra. Não pagávamos as colaborações porque não havia como. Se bem que teve um poeta que brigou comigo porque cismou que tinha que receber para ser do Conselho. Cerrados - E como faziam com a distribuição, que geralmente é o ponto de estrangulamento das publicações literárias? ARS - Entramos em contato com uma distribuidora. Em algumas livrarias importantes de algumas capitais conseguimos pôr a revista, mas a principal tática era outra. E aqui entra, de novo, o que chamo de uma política cultural, uma ação integrada. Conforme se lê na abertura do segundo número de "Poesia sempre" - o n° 1 esgotou-se rapidamente. Foi lançado no Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia, Juiz de Fora, Viçosa e Fortaleza, das mais diversas formas, abrindo espaço para que os poetas locais

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hn trev ista exclu siva para a ed itoria da R evista C errad os

mostrassem seus poemas através de leituras e performances. Aprofundou-se, assim, o diálogo entre poetas-editores e os poetas do país. E, no parágrafo seguinte, se dizia: " Poesia Sempre foi lançada também em Buenos Aires, Quito, Bogotá e Caracas, repetindo o mesmo êxito". Cerrados - Mas como é que vocês operacionalizavam isto? Devia sair caro... ARS - Não. Era questão de aproveitar, como no futebol, a bola rolando no campo. O melhor jogador é o que aproveita a oportunidade. A bola está ali, ã disposição de todos; no entanto, alguns pegam mais na bola que outros. Por quê? Naquela época, por razões de minha função na FB, eu tinha que viajar muito, pois cheguei a ser também o Secretário Geral do Conselho do Cerlalc, na Colômbia e da Abinia entidade que reunia as 22 bibliotecas nacionais iberoamericanas. A isto se somava outra coisa: muitos convites pessoais para fazer conferências. Eu aproveitava todas essas oportunidades para lançar a revista. E aí a estratégia era simples: eu levava os exemplares, pedia a alguém, fosse em Juiz de Fora, fosse em Copenhague, que escolhesse alguns poetas representativos e os convidassem a ler seus poemas no lançam ento. Assim, se aproximavam os publicados e os não publicados e os nossos iam conhecendo os outros. Fizemos belos lançamentos em Caracas (Venezuela), no México, na Universidade de Stanford, em Frankfurt (Alemanha), tanto quanto em Salvador e no interior da Paraíba. No plano externo, com a ajuda do Itam araty, consegui levar nossos poetas para leitura e lançamentos em Portugal, Argentina e Alemanha: Ivan Junqueira, Ivo Barroso, Ferreira G ullar, Suzana V argas, etc. Em anuel Brasil, infelizmente falecido, mas com uma boa intuição editorial e com conhecimentos, por exemplo, no

mundo literário norte-americano, conseguiu que M ark Strand, o poeta m ais con ceitu ad o dos Estados U nidos hoje e que, aliás, aprendeu português para ler e trad u zir D rum m ond, conseguiu que ele gravasse um vídeo-conversa com os poetas da revista, que foi exibida em sessão no Consulado Americano no Rio. A idéia original era usar os satélites para fazer um diálogo ao vivo entre nós e ele. Mas a tecnologia do satélite falhou. A mesma idéia era fazer esses diálogos ao vivo, via satélite, entre nossos poetas e, por exem plo, Octavio Paz. Talvez isto hoje fosse mais fácil, naquele tempo era ainda muito experimental. O projeto era um diálogo planetário sobre poesia, tirar a poesia de seu provincianismo e localismo. Mas outro exemplo do diálogo foi quando trouxemos diversos poetas franceses durante a exposição "120 poètes français d'aujourd'hui", na Biblioteca Nacional, e depois fizemos uma mesa redonda no auditório de O Globo, colocando do lado brasileiro alguns poetas do Rio: Alexei Bueno, Ledo Ivo, Ivan Junqueira e eu. Curiosamente, a apresentação desses poetas na Biblioteca Nacional foi no dia em que fui demitido pelo inócuo Francisco Weffort. Foi uma cena curiosa que apareceu nos jornais, pois, após a cerimônia de abertura da exposição, houve um abraço de dezenas de escritores e funcionários na / à Biblioteca Nacional, quando todos se deram as mãos circundando o prédio da BN num protesto e num adeus. Cerrados - Você falou de inovações que a revista trouxe, explique melhor. ARS - Gostaria que alguém pegasse essas revistas, sobretudo as que vão até minha saída em 1996, posto que, depois, m udaram de o rien tação editorial. Verão ali, por exemplo, uma seção sobre

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A fonso R om an o de San t'ann a

tradução. Em geral, a tradução é considerada coisa menor, os suplementos literários não têm sequer um espaço para crítica de traduções, como cansei de sugerir. C om eçam os a pu blicar diversas traduções de um mesmo poema. Por exemplo, pegávamos um poema de Hoelderlin, "Halfte des Lebens", e p u blicávam os as traduções dos mesmos, feitas por M anuel Bandeira, M arco Lucchesi, José Paulo Paes, Paulo Quintela, Antônio Medina R odrigues e M árcia C avalcanti. Ou pegávam os, nou tros n úm eros, poem as de Mallarmé, Iessiênin, Leopardi, Lorca e outros e publicávamos as várias traduções numa aula prática de criação textual. Outra seção era de "depoimentos", na qual um poeta explicava como fez um determinado poema. Assim, Manuel de Barros, Ferreira Gullar, Mario Chamie e eu mesmo, além de outros, demos as motivações de alguns de nossos textos, o que pode ser in teressan te para futuros analistas literários. Felizmente, a seção de resenhas com a relação dos livros de poesia pu blicados foi mantida. Assim, se poderá ter uma melhor idéia da produção poética do país. Mas há coisas que gostaria de destacar, como o esforço para pu blicar nossos poetas clássicos, antigos e modernos, em outras línguas, tanto em d in am arqu ês, quanto em alem ão, espanhol, italiano, etc. Era a oportunidade para que alguém no exterior tivesse um aperitivo, pelo menos, de nossa poesia. E posso lhe dizer que, quando lançávamos a poesia fosse em Santiago do Chile, São F ran cisco ou Rom a, sem pre se encontrava alguém que dizia que agora, sim, podia ter algum a idéia da poesia brasileira. E espantavam-se que o Brasil, esse país de meninos de rua, da floresta am azônica queim ada, da

violência e do tráfico, tivesse a revista de poesia mais sofisticada e cosmopolita da atualidade. Cerrados - E como anda a revista, hoje? ARS - Quando saí, em 1996, deixei programados o número sobre Israel e outro sobre a Bélgica. O de Israel acabou saindo. M as, a partir daí, o contato com a Biblioteca Nacional ficou truncado. Coisas estranhas aconteceram num governo com intelectuais no poder e que se dizia democrático. Não só o último relatório de minha gestão, o quanto sei, não foi publicado, e até me informaram que havia sido mandado para passar pela censura do Weffort, em Brasília (como se fazia ao tempo dos m ilitares) como pararam de me m andar publicações da BN. Sequer a Poesia Sempre me mandavam. Passei a ser "persona non grata". Só agora, no governo Lula, com eçam algum as sinalizações mais cordiais. Enfim, mesquinharias da vida política e literária, que perdem o seu sentido diante da poesia, que é aquilo que permanece para sempre. Cerrados agradece ao poeta ! E, para finalizar, apresenta uma "colheita" de seu livro Textamentos (Rocco,1999). FLOR E CULTURA Meu conceito de jardim determina o que é praga ao redor de mim

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DEPOIMENTOS POÉTICOS

HERMENEGILDO BASTOS*

•Poeta, en saísta. Doutor p ela U S P. Professor a d ju n to d a U n iv e r s id a d e de Brasília.

Quando começou o Parnasianismo entre nós? Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero. Não que a poesia hoje precise cantar os malfeitos nacionais nem legitimar os projetos de nação, como no Romantismo, mas sim que a poesia se interesse ou não por isso, encena modos de ser, pensar e sentir, comportar-se, de estar perante o mundo e a vida que não existem por si mesmos, estão contextualizados, no verso e no anverso, no cais da nação. Modos (ou faltas de) da subjetividade não serão os mesmos em Paris, Calcutá, Argel, Cairo ou Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro tampouco haverá homogeneidade. O sistema-mundo capitalista é uno e desigual: é isso um verso? (Curiosidade: o Manifesto comunista é contemporâneo das Flores do mal, com alguns anos apenas de diferença - ambos cantam o mal e têm como matéria poética as barricadas de Paris. Ah, Paris! E o Parnasianism o? O Brasil foi o país onde melhor se aclimatou o Parnasianismo. E por quê? Vá ver que ele nasceu aqui e não lá, senão na forma, na matéria (nasceu onde o refinamento da crueldade é mais apurado). Assim, mesmo em nações onde os problemas nacionais já não pesam tanto, porque os elementos formadores da unidade nacional estão integrados e funcionam a contento, mesmo aí encontraremos os traços nacionais na poesia. Para as nações que chegaram irremediavelmente atrasadas ao tempo de composição e integração nacionais, ah! o concerto das nações, o horizonte é ainda o dessa integração que, entretanto, parece não se completar jamais. A poesia, ao evidenciar e iluminar esse atraso, poderá também evidenciar e iluminar o sistema-mundo capitalista, onde esse atraso é sistêmico e contém os dados que, combinados, podem ajudar a entender o desconcerto do sistema-mundo, a desigualdade, a hipocrisia dos projetos da modernização, a sublimação das diferenças, a pós-modernização do pré-moderno o peso da vida se compra a cada dia

Mensagenzinha pra se passar o natal Tudo isso que dói no osso e músculo do seu rosto e inflama nervos e pele que lhe esmaga o sorriso roubando ao mundo sua paisagem mais límpida Isso tudo que você carrega e em revide lhe carrega é mineral como a pedra que vai embaixo do braço sobre a cabeça amarrada nas pernas mineral como o seu riso de metais, saliva e zinco Esmagado, porém, o sorriso insiste em explodir a combinação dos elementos da água é um tipo novo de saber feito de beiços, poros e dentes paisagem do mundo ao amanhecer

que já não há margem no corpo para tal

Bom, isso não será poesia, será talvez um depoimento de um leitor de Drummond, alguém que lê Drummond hoje, em 2005.

Depois do horror, pouca coisa: o raro

Antes: mercadorias espreitavam-me Assim desse jeito: solenemente Para ser sincero, era recíproco também as espreitava talvez mais jocosamente ao infinito Hoje já não excitam

E acaso haverá corpo? E o Brasil? Corpo mesmo, com sumo só o da mercadoria o corpo-alma clone sem defeitos o homem enfim superior colagem de esquartejados pedaços selecionados de inúmeros cadáveres compondo um único e artístico corpo só imagem, incorruptível (Gottfried Benn ou Augusto dos Anjos) Dos corpos na beira da estrada se retiram os brilhantes dos dedos Sem olhos, então, as coisas se espreitam

Então, eu pergunto: Em oção e econom ia: qual delas vem primeiro (pois a ordem dos fatores não altera o produto)? Da emoção para a economia: o que não pertence ao mundo do vil metal? O inconsciente mercantilizado? Alguma ilha deserta povoada de agências de turismo? Da economia para a emoção:

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Hermenegildo Bastos

Porque não se deve sentir nada tão fortemente só o bastante para efetivar o gesto do consumidor Assim se preservará emoção para o próximo gesto "Vou lançar a teoria do poeta sórdido" D epois "O s acon tecim en tos me entendiam". Mas "O carro da miséria", "A rosa do povo" antes aconteceram Ferreira Gullar veio a ser parnasiano redescobriu que o poema é sujo e o poeta, sórdido como em Bandeira "a nódoa no brim" Na Bahia ainda, no Chame-Chame li Mário Chamie Eu mesmo descobri Armando Freitas Filho Hoje já não poetizo mais leio o Elefante e o seu país este onde o parnasianismo insiste outra vez e sempre em recomeçar

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LUIS TU RI BA* Obra(sobre) nome (sobre) natural

* Poeta, jo rn alista, e d ito r d a R e v ista Bric a Brac. A sse sso r d e co m u n ica çã o do m inistro d a cu ltu ra G ilberto Gil.

Nhô nô tô saben dondé cô tô. Palavra nenhuma sabe donde qui tá. Pode está na luz, pode está na sombra, no som, no papel, na parede, na rede, na gota d'água, no orvalho, na partícula atômica da molécula - ou "diz que fui por aí tocando um violão debaixo do braço", à maneira de Zé Kéti. Tempos híbridos. Broça nueva; mistura & manda; papa-fina, papo de bamba. Poesia, mensagem de satélite, publicidade, cyberspace digital, ciência do futuro com raiz de orixá fashion e chip no xibiu. O que será que seria desta sereia? Não tentem enquadrar a poesia, pois está tudo m uito arredondado e as pedras continuam rolando. Melhor do que o gol foi o drible de corpo que Pelé deu no goleiro uruguaio na Copa de 70. Ping-Pong, pong-ping: de pé oh vítimas de esfinge! Ou a gente se RaONU ou a gente se Sting! Mas é tudo muito simples também. Assim como os poetas, são os bebês, quando estão aprendendo a balbuciar as primeiras palavras. Criam esses sistemas inventivos de comunicação e linguagem: pontes dialéticas entre vasos comunicantes, ponte aérea entre a Razão e a Emoção. E com eles - os bebês - que desaprendemos a logística da sintaxe e criamos as tais desequações lingüísticas que ficam zoando por aí. Na boca dos bebês, palavras voam, dão cambalhotas, brincam de roda, entram em transe num estado zen zaum de ser e star, como diria o poeta andarilho russo V. Khlébnikov. Augusto de Campos escreveu sobre "A Poesia das Palavras Desconhecidas", álbum-designer de Lia Zdanévith (outra figura de proa da Vanguarda Russa do início do século), também conhecido como Iliazd, na Bric-a-Brac n° 3. Há uma estranha beleza plástica em toda aquela matemôntica robótica. Voltemos aos bebês. Afinal, eles são o início de TUDO & TODOS. Um dos primeiros verbos que um bebê aprende é o dar. Ele pede "dá". Depois, o vocábulo cair. Até porque não conseguem ficar

L u isT u rib a

com algo nas mãos por mais de dois minutos. Se a Manoel de Barros, poeta pantaneiro, fala coisa não cai, o bebê a joga no chão com a aquele com sabedoria da subversão de transform ar impulso de realização. Joga e, todo feliz, vem logo palavras em insetos poéticos: comunicar a mãe, ao pai, avó ou babá. "O assunto não pode subir no poema como C erva. Desprezo o real, porque ele exclui fantasia. a Um frase encontrada em Guimarães Rosa: "A i poesia nasce de m odificações das realidades i lingüísticas". As nossas particularidades só podem u ser universais se comandadas pela linguagem. E u isso é tão velho quanto abrir janelas. Acho, por fim, u! que jamais alcançaremos o veio da criação. As Diz o bebê repleto de satisfação apontando palavras embromam em vez de aclamar. O poço a coisa lá no chão. está cada vez mais escuro e mais fundo. Até a E a palavra-m ovim ento, assim como a eternidade. Amém." pergunta "Cadê?" tem sua coreografia própria, com os bracinhos abertos e aquele beicinho único de interrogação. Penso no amor, esse sentimento-mãe, e penso na palavra "lo v e" e, ato contínuo, em alguns poemas gráficos, especialmente um, de Décio Pignatari, todo colorido (penso que o "Brasil: país de todos" foi criado a partir dele). I amo love, porque é uma palavra ovalada, orvalhada, m olhada, arredondada, um pinto saindo do ovo, uma lua cheia em forma de coração de neon, ou uma daquelas m úsicas bregasapaixonantes na voz de Caetano Veloso em filme de Almodóvar. Enfim, "love" é uma palavra orgástica repleta de esperança e fé, dor e felicidade - é dramática, mas ao mesmo tempo é im aginática; enquanto "anônima" é qualquer coisa sem sal, sem sol, sem sul, uma palavra quase afônica, mas certamente anêmica - sem nenhuma personalidade ânima. Assim são os nomes, os sobrenomes e os sobrenaturais de alm eida na obra de Nelson Rodrigues.

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RONALDO COSTA FERNANDES* Teoria da poesia

* R o m a n c is ta , e n s a í s t a e p o e ta . Doutor em L e tra s pela U nB. G an h ou ■vários p rê m io s c o m o o C a s a d e las Américas e, e n tre o u tro s, o G u im a rã e s Rosa. P u b licou os liv ro s d e p o e sia : . Estrangeiro (1 9 9 7 ), Terratrem e (1 9 9 8 ), Andarilho (2 0 0 0 ) e E tern o passageiro (2004).

Em seu artigo sobre a função social da poesia, T. S. Eliot registra a pertinência do poeta criar um espírito transformador no leitor e que, a partir de sua freqüência aos textos, repartirá com seus contemporâneos de língua uma experiência de nacionalidade. Não creio que a poesia cumpra função alguma além da produção de estesia no leitor. Tudo o que se lhe atribui além da estesia são fatores culturais que estão fora da essência do fazer poético. No mesmo artigo, Eliot argumenta que o poeta mostra seu tempo, que precisa apenas de um pequeno grupo de admiradores e que dialoga com a tradição. Talvez a melhor contribuição de Eliot foi apontar essa grande família literária, à qual o poeta se incorpora voluntária ou involuntariamente, criando, quem sabe, um gigantesco e único poema universal, produzido pela humanidade dos poetas. Creio que Pound, quando fala que o poeta tem dons de ser antena da raça, coloca o poeta não apenas como contemporâneo dos problemas do meio em que vive, mas também como alguém que anuncia os comportamentos vindouros. Esta idéia do poeta como profeta está ligada, para mim, a uma concepção do poeta como Todorov viu no aspecto primitivo da poesia. Todorov, em seu livro sobre simbologia, alertava que a poesia tinha um passado mítico, que a linguagem poética pertencia ao mesmo universo pré-histórico, quando do início da linguagem. A linguagem poética, desta maneira, seria uma volta aos primórdios. Ela estaria vinculada a uma concepção do mundo quando ainda se estava nomeando os objetos. A poesia, vista desta forma, renomearia o mundo à sua maneira. Poesia e religião primitivas estariam de mãos dadas nesta concepção do poeta como ser criador da realidade. As metáforas não passariam de uma maneira de dar nomes a objetos sem nome. Eu diria, seguindo o raciocínio, que, para o poeta, o mundo é um lugar cheio de objetos e sentimentos ainda sem rótulo e que a missão dele é dar vida e nome às coisas e ao sentir humano. Qualquer que seja a manifestação da poesia nos tempos de hoje, percebe-se que perde força um cânone cerceador e que a convivência com a diversidade se apresenta, talvez pela primeira vez na história da poesia, como uma característica forte. A poesia, hoje, é feita por poetas de diversas idades e, sob nenhum grande discurso que se elege como eleito, renega todos os demais. É certo que há algumas

Teo ria da Poesia

tendências a insistir, como representantes de um lirism o contem porâneo. A lgum as constantes parecem ter invadido de forma mais contundente as propostas existentes na produção do fim do século passado e início deste: o prosaico passa, desde a modernidade, a visitar com constância a poética dos autores; a mescla de popular e erudito se afirma; a perda de majestade das formas fixas como o soneto; a diminuição da freqüência do uso das rimas; a tentativa de fixar o inconstante, o fluxo da vida, a fugacidade dos momentos; a eleição de temas sociais - sem que, com isso, se queira afirm ar a preponderância do discurso político, como na década de 60 do século passado; a migração de poetas para a música popular e o movimento inverso, a edição de livros de letristas da música popular; o revigoramento de um tipo de poesia jocosa, oswaldiana, que retorna com outra vertente e não mais como expressão do social (a rejeição das editoras e o fabrico artesanal dos livros da geração mimeógrafo); a tendência a um encurtamento do verso e a quase negação (ainda feita pelos poetas que surgiram nos anos 50 e 60 do século XX) dos poemas longos ou poemas-rios; a procura do bizarro, a inclusão do m ístico e esotérico e o reaparecimento de vocação para o enaltecimento do simbólico. D eixei propositalm ente para o fim o sim bólico pois, para m im , representa uma constante da poesia. Sem o símbolo, a poesia corre o risco, sempre constante, de abeirar-se da prosa. Metáfora e símbolo são componentes essenciais do proceder poético, mesmo que os poetas mais despojados insistam que a poesia pode ser feita sem uma elaboração mais requintada. Toda vez que leio algo parecido a uma poética que cheira a despojamento, percebo que o poeta em questão é

limitado e justifica sua pouca erudição com um certo ar naif, que casa bem com manifestações literárias populares, como a poesia de cordel (que, por sinal, está carregada de metáfora e símbolo), mas não com uma produção mais elaborada e historicamente mais refinada, porque condensada e, infelizmente, dirigida a poucos leitores. Queiram ou não, misturem-se os gêneros ou sejam os ap olog istas de uma literatu ra que extrapole os limites do campo dramático, lírico e romanesco, não posso negar minha tendência a ver especificidade em cada gênero e reafirmar seus contornos nítidos. E misturá-los não quer dizer que deixem de existir por sua própria conta. A mescla não dilui o específico que cada um detém e apresenta. Retornando ao símbolo e à metáfora, é bom lembrar que não se pode, na poesia, escapar dela. Cito A canção do exílio, de Gonçalves Dias, que Aurélio Buarque de Holanda apontou como não contendo adjetivos num período da história literária, o Romantismo, onde abundava o uso indiscriminado da metáfora, geralmente gasta. Ora, o poem a de G onçalves Dias é altam en te rep resentativo de que não se pode fugir da metáfora. A metáfora é uma construção mental onde dois termos se equivalem: oculta-se um, apresenta-se o outro como representante dos dois. Como dizíamos no início, a construção do homem prim itivo ao nom ear a realid ad e é um procedimento metafórico. Ao chamar o avião de “pássaro de ferro", o indígena está construindo poética e primitivamente seu mundo sob a órbita do seu conhecimento da realidade, ao mesmo tempo em que nomeia e recria para si o mundo que vê. A canção do exílio não tem adjetivos, mas está toda construída sob o império da qualificação da realidade. Quando o autor diz "que minha terra

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R on ald o C osta F ernand es

tem palmeiras, onde canta o sabiá", elevou-a à categoria de utopia e de lembrança de um passado idílico. Não se precisa de adjetivo para adjetivar, como não se precisa de sím bolos e metáforas expressas para gerar símbolo e metáfora. Entre a concepção social da lírica proposta por Adorno (que, no final do artigo sobre Lírica e Sociedade termina cometendo uma crítica textual e tradicional) e a visão ahistórica da lírica frente à épica de Staiger (o que Staiger propriamente coloca é que, entre as duas, a épica é cortada pela vertente da H istória, enqu anto a lírica, su bjetiva, introspectiva, é menos sujeita às injunções da História), não se há de negar que o pesadelo da História (James Joyce) está presente na poesia, menos na lírica, mais no épico. Cortázar escreveu que a grande literatura era feita de arquétipos. Eu diria que a lírica ainda trabalha, mesmo com a injunção do contexto, com temas mais ou menos eternos. A presença dos mitos e arquétipos e dos grandes temas ainda perpassam a lírica, seja ela em forma despojada, seja ela trabalhando com formas fixas. E curioso observar que um poema de Anacreonte sobre a fluidez da vida, a velhice e o correr lépido dos dias ainda permaneça tão forte e atual que um leitor desavisado pode considerá-lo contemporâneo nosso. O mesmo não ocorre, talvez pela forte presença do histórico, no poema épico ou mesmo em outras formas literárias como o conto, o romance e o texto dramático. Na verdade, a poesia me parece ser transhistórica, sendo marcada, em cada momento, por projeções sociais que ela exprime, mas que são sobrepujadas por temáticas duradouras, como o amor, a inveja, a busca do infinito, a superação da morte, etc. etc. M enos perm eável, contudo, à História do que os outros gêneros, a poesia lírica

pode se manter fiel a si mesma e, quando vista num mundo moderno, cibernético, da virtualidade, não é necessário utilizar-se de outros veículos para expressar o poético. Tudo o que foi feito até agora (pelo menos até agora) no sentido de incorporar novas tecnologias para apresentar o poético não passou do que foi dito: as novas tecnologias apenas serviram como suporte, geralmente para produção de poesia ruim. Porque, ao contrário da máxima dos anos 60, a de que os meios são as mensagens, o veículo primordial da poesia é a palavra. A palavra única, descarnada, nua. E ela o veículo máximo da poesia. E se é verdade - desta vez, retornando ao princípio deste artigo - de que ela é fruto de uma religiosid ad e p rim itiva, prim a-irm ã das m anifestações mais arcaicas do pensam ento m ítico-religioso, então a poesia como tal só desaparecerá quando tal sentimento for extirpado do coração e mente do homem. O que não quer dizer que a poesia seja ingênua ou instintiva, pois é uma form a de arte elaborada, que requer conhecimento e muita leitura a fim de que o poeta se conecte com uma tradição (Eliot, não nego) e possa produzir de maneira original, recriando os seus predecessores (a angústia da influência de que fala Harold Bloom) e mesmo tendo a segurança de pertencer a uma linhagem, a um discurso a que se filia por afinidade estética e parentesco filosófico. Neste sentido, excetuando a poesia popular, a lírica só se enriquece com a diversidade, mas uma diversidade que tem continuidade, descentrando, por certo, o antigo e o ancestral, mas veiculandose a um grupo universal que, muitas vezes, o poeta desconhece, mas intui. Esta intuição, porém , poderá ser melhor trabalhada, caso o poeta tenha consciência de linhas estéticas na poesia e a

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maneira que ele pode a uma delas incorporar-se sem perder sua contemporaneidade nem o frescor de sua proposta estética. A própria diversidade da práxis corresponde à diversidade do conteúdo. A poesia pode ser metafísica, simples, complexa, de verso livre ou formas fixas, de temática grandiosa ou circunstancial. A poesia também pode ser, apenas, expressão de sentimentos, estados de alma ou apresentar uma leitu ra m ais elaborada da realidade. Os poemas metafísicos não são o forte da poesia brasileira. Poetas de pensamento são raros: Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto, a metafísica angustiada e quase mística de Cruz e Souza. Há outros poetas e, mais ainda, há outros poemas de determinados poetas que, aqui e ali, fizeram uma poesia mais cerebral ou que exprim iram uma idéia não tirada apenas da sensação de estar no mundo. O certo, contudo, é que nem o poema-rio, nem o poema circunstancial, nem o poema instantâneo que se acerca do hai-kai, nenhum deles tem primazia sobre outra expressão prática. A poesia tem seu caráter histórico e os cânones m udam. Mas a essência do poético permanece, a exigência de qualidade e da força expressiva de uma conjugação de espírito e de apresentação formal, jogo de palavras, maneira de apresentar verbalm ente o poema, a expressão original de forma e conteúdo, estas características permanentes do fazer poético apontam para um substrato de essencialidade nas transformações formais que se operam através do tempo. Não só os cânones mudam como também, através do tempo, os poetas passam a ter outra leitura. São duas leituras, minimamente, sobre a poesia de determ inado período: a leitura dos contemporâneos e a leitura, agora sob a égide de

novo cânone, dos p ó steros. Estas duas contemporaneidades, porém, não devem estar livres de uma terceira leitura. É muito difícil, embora todos condenem o cânone, estar livre do seu zeitgest (espírito do tempo). De qualquer forma, o leitor deve procurar o que subjaz de permanente, de essencial, de grande poesia que existe na produção sobre a qual se debruça. Não quero entrar no cam po da crítica, p refiro permanecer no espaço amplo da criação. Mas não há como escapar de com entar a m udança de comportamento de poetas como Sousândrade, que só pôde ser compreendido em sua verdadeira envergadura na metade do século XX. Há aqueles que argumentam que a crítica está tão escaldada com esse tipo de "erro" histórico que dificilmente incidiria novamente numa avaliação distorcida dos seus contemporâneos. O que representa uma ingenuidade, porque não sabemos como os leitores futuros se comportarão e, menos ainda, qual será o cânone futuro, qual o olhar do futuro para o presente que vivemos. A proximidade com os contem porâneos, m uitas vezes, em pana o discernim ento crítico , porque os poetas contemporâneos emitem outros significados além de sua obra. A vida do poeta, seu carisma, sua permanência na mídia, sua capacidade de gerar notícia, tudo isso pode confundir a leitura crítica ou fazer com que outro poeta, mais acanhado, menos midiático, de vida reservada ou distante dos grandes centros, tenha o reconhecim ento da dimensão exata de sua obra postergada. Os formalistas russos foram os primeiros a sistematicamente abordar a produção literária como desvio. A sua teoria do estranhamento, advindo do deslocamento da linguagem literária que se diferencia da linguagem coloquial, atravessou o tempo e o

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continente e foi também estabelecida pelo New criticism norte-americano. Tanto a questão ainda incomoda que Terry Eagleton, em sua Introdução à teoria literária, e Wolfgang Iser e Jauss também se debruçaram sobre o problema. Que a linguagem literária se afasta do coloquial, todos, ao que parece, estão de acordo, mesmo que a linguagem dita coloquial ingresse no poema, deixando de fazer parte de um código que se restringe à comunicação e ao intercâmbio social para fazer parte do código poético. A teoria do desvio e estranhamento nos seduz porque não é apenas um apetrecho lingüístico, mas uma produção de sentido, de formação de pensamento poético, distinto do pensamento da linguagem coloquial e distinto mesmo da filosofia ou do pensar do ensaio. A produção de "pensamento" na poesia não requer verdade nem está aí para ser refutada e discutida, já que é um "conhecimento" da realidade muito específico, que diz apenas à maneira particular e "deslocada" de o poeta enxergar o mundo. Logo, o estranhamento não é apenas verbal, mas conceituai. O desvio tanto mais será desvio não porque se distancia da forma coloquial; nem mesmo, como queriam os formalistas russos, que afirmavam que, quanto mais difícil o texto, mais produzirá o estranhamento; não se opera na dificuldade ou grau de distorção da linguagem, mas ao apresentar um fato lingüístico novo, original, uma maneira inteligente e pertinente de "sentir-pensar" o mundo. 0 desvio não é, também, um desvio mental que poderia ser interpretado como uma forma esquizofrênica de representar a realidade, mas uma maneira de mostrar a realidade de um ponto de vista distinto daquele que a linguagem comum apresenta cotidianamente. A poesia é um deslocamento, a partir do ponto de vista do poeta que observa o mundo, e também um centramento, já que o poeta reinterpreta

a realidade e a apresenta (e a nomeia) como um mundo possível e poético. A idéia de que o poeta lida com elementos prim ordiais e que sem pre está à beira de desaparecer por ser anacrônico vem acompanhando a poesia da modernidade, já que a sociedade parece não encontrar lugar para alguém que, através de sua subjetividade, entocado em seu laboratório poético, produz algo que é de difícil intercurso comercial. O poeta não é a antena da raça, como queria Pound, mas um artista sensível a seu tempo e à História, que tem um olhar distinto e menos reificado a fim de que conte aos contemporâneos e aos pósteros a inquietação ontológica que incomoda não somente a si, mas a sociedade como um todo. Embora seja pouco consumida em forma de livro, a sociedade produz e consome poesia em outras formas menos nobres e de maneira vulgar, através da publicidade, dos ditos populares, da literatura de cordel, da televisão, da música popular e mesmo da linguagem cotidiana que, vez por outra, cria seu "desvio" e produz poeticidade. Visto desta forma, a poesia deve estar entranhada no com portam ento hum ano e sua produção livresca é apenas uma sofisticação de um modelo prim itivo de com portam ento m ental. Essa decantação da poesia em livro não quer dizer elitismo, mas que o leitor comum cada vez mais deixa de dom inar os códigos da arte contem porânea, a ponto de, até hoje, ter resistência, por exemplo, à pintura já centenária dos vanguardistas do princípio do século XX.

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XICO CHAVES* Blocos de viagem de 2004, ponto infinito e uns fragm entos de 86

Amazonas, poema de água vaza floresta afora. Vai, lentamente, cheio de lendas, envolto na espuma verde da floresta que resta. Ainda imensa e misteriosa, deixa avistar da janela deste boing aldeias e sinuosas trilhas que levam a retilíneas estradas finas e negras. Por ali se vê passar um minúsculo automóvel solitário com destino ignorado. Ignora-se este mundo onde Nunes Pereira ouviu histórias fantásticas e as contou em Moronguetá, um decamerón indígena. Tribos que nasceram e viveram sem orifícios, cotias virando gente, piranhas transmutadas em pássaros, pássaros voando para o sol. Heróis que não se tornaram popstars da TV e das histórias de animação, como poromina-minare, o terror da selva, o camaleão do nosso imaginário. Há que se ler estas lendas todas, recolhidas por religiosos das missões salesianas nas regiões do uaupés e margens do rio Negro, para se ver que ali ainda dormem muitos dos nossos maiores poemas, contados com dramaticidade, em rodas de muinta gente. Em línguas extintas eram mais fantásticos e apenas o som destas fonéticas seriam capazes de nos seduzir, sem mesmo sabermos o que está sendo contado. O que é tradição oral para nós já é pura poesia. Lá, onde não há fronteira entre realidade e fantasia, invenção humana e natureza. Onde a ignorância colonizadora chegou de autom óvel derrubando templos m ilenares de árvores e rochas, cachoeiras cristalinas, ocas, tabas, mitos, etnias, festas, memórias.

’ Poeta, ensaísta, artista plástico. Autor de Da P au licéia à C en topeia Desvairada. RJ: Elo, 1999.

Em frente à casa africana de manaus, agora uma lanchonete, sentado em uma cadeira de vime, a sombra de um homem alto e sorridente ainda toma solitariamente sua cerveja, aguardando a presa manauara de rosto largo e moreno, baixa estatura, corpo bem feito, bunda redonda. Sobre chão xadrez de azulejos hidráulicos, seus enormes sapatos acompanham o ritmo do carimbo. No bolso, um bastão de guaraná e uma língua de pirarucu seca, para lixá-lo e produzir o pó. O gigante veio de longe para aventurar a vida como escrivão e deixar ali mais uma dezena de romances passageiros. Um dia, voltou contando o caso de uma sucuriju de 40 metros que se enrolou em uma cadeia e libertou todos os presos, mas chegou a engolir o delegado de plantão. Trouxe ainda umas ervas para infusão e cura de bebedeira, sabonetes de óleo de tartaruga, balas de cupuaçu, arco bem feito de madeira preta e flexas de taboca com penas de arara e

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mutum. Uma preciosidade. Trouxe ainda uns colares de sementes e dentes de macaco, um couro curtido de onça pintada, uma navalha inglesa e uma traqu itan a de coisas exóticas para impressionar a rapaziada , a esposa, os filhos e a mulherada do baixo meretrício. No meio destas coisas todas vieram, ainda, Cobra Norato, de Raul Bop, e um in fin d ável rosário de h istórias fantásticas para serem contadas em casa e nos botecos de Minas Gerais. O poema que se tece se contorce agora no cerrado tosco e se incrusta nas fissuras das pedras tapiocangas, se refrata nos cristais do chão de cascalho, rasteja por entre o capim-manteiga e se aloja no ninho dos guaxos estridentes, pendurados como sacos de gravetos num galho de uma árvore cascuda e retorcida. Voa para a linha do horizonte, onde a cidade de concreto e vidro reflete o ocaso do sol e suas cores. Ávida, lhe consome a alma e estende seu corpo nas avenidas, superquadras, blocos, praças, monumentos. No vértice, na linha de fronteira entre a geometria sensível e a abstrata , nenhum sintoma de emoção, nenhum abalo sísmico nos lábios, lágrima nenhuma. Mas sensual e movediça, se esquiva entre os raros transeuntes e procura na sombra de alguém a carcaça de seu corpo. Corrói-se, se enferruja. Busca alinhavar-se entre a poeira onde dormem as sementes e as raízes secas aguardando a chuva. Os rodamoinhos vermelhos tornados transparentes a levam a esmo pelo espaço azul. É ainda um camaleão entre as areias brancas de quartzo. Procura um coração esconderijo para tatuar seu descompasso, uma página em branco para riscar um rumo. Manaus ficou lá, entre Minas e Goiás, virando geometria. Sem tantos pássaros. Sem tantas águas. Com menos versos.

Terezina, sim, transbordou-se em estrofes repentistas de quadrões e martelo-agalopados, acompanhados pela rabeca de um cego anônimo e a viola de um poeta itinerante. Foi no meio do mafuá m ulticolorido da feira popular, entre relógios digitais, calcinhas de microfibra, balaios, raízes, temperos, lamparinas. Por entre as redes de algodão cru entrecruzando barracas, galhos de árvores e postes, umas crianças choram e chamam pelas mães, que foram ganhar a vida no tumulto, vendendo raízes, b iju terias, frutas de palha, cabeções de madeira e farinha d'água. Enormes cajus carnudos e perfumados, colorai, pimenta moída, perfume barato, lenços, rendas, sapatos de couro de bode, trancelins, aratacas, garrafadas, chocalhos, tambores, sinetes e correntinhas de ouro com medalhinhas de Nossa Senhora da Conceição. Alguns passos além, atravessando uma rua cheia de carros estacionados, uma praça vazia e um letreiro: Teatro Torquato Neto. Silêncio. Let's Play That Pra Dizer Adeus. Cajuína para lavar a alma de todos os poetas do mundo. Ali, onde o rio Parnaíba se encontra com o rio Poti, onde as sardinhas de água doce fervem sob a água e comem até tomate. A poucos metros de uma ilha de areia, onde houve uma festa com o afoxé coisa de preto e uns grupos de hip-hop. O fogo saía de buracos no chão e de tochas vermelhas sob a luz da lua. Macalé, que passou por lá tempos depois, contou que não se lembra exatamente como foi sua volta ao Rio de Janeiro. Mas quis relatar algumas passagens suas do final dos anos 70. H élio Oiticica e Lygia Klark ainda estavam vivos. Disse ter sido encontrado na praia de Ipanema, num sábado de verão, trajando cuecas pretas com bolinhas vermelhas, empunhando em uma das mãos um enorme facão e, na outra, a espada que

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pertenceu a seu pai, que fora oficial da marinha. Dizia que a hipocrisia estava se instalando na cultura brasileira e que alguém teria que tomar uma providência urgente. Era necessário cortar pela raiz a praga, antes que uma avalanche de mediocridades se abatesse sobre todos como uma gigantesca onda. Ninguém quis lhe dar atenção e passou assim uma semana sem dormir, andando entre o Arpoador e o final do Leblon. Foi levado para a casa de Lygia, que lhe acolheu e lhe deu para descansar a cabeça uns travesseirinhos cheios de bolinhas de isopor, uns sacos plásticos cheios de ar e uma janela para olhar Copacabana. Do alto pode ver o mar, os travestis , as meninas de programa, os turistas indo para a praia, os transeuntes normais que trabalham normalmente em seus empregos, o jornaleiro, a balconista, o motoboy, a manicure, o apontador de jogo do bicho, o guarda, o cam elô e aquele cara que trabalha na farmácia, famoso por usar dezenas de correntes e colares no pescoço. Olhou para seus pés e percebeu que usava umas meias compridas do Flamengo. Saiu de volta para casa, onde ficou 15 dias sem pronunciar uma palavra. Se não há nada de extraordinário nesta história, é para ser assim mesmo. Nem todo poema exige uma idéia nova também. Nas entrelinhas, talvez. Há sempre um código oculto entre as palavras, ou entre vírgulas. E como descobrir entre duas enormes pedras uma pequena, que parece sustentá-las. Mas pode acontecer que, ao retirá-la, o equilíbrio não se altere. Permanece tudo igual, apenas sem a pequena pedra, que nem era muito especial, mas que foi parar na estante de alguém, como uma pedra a mais de uma coleção a mais de pedras, No entanto, o colecionador vai sempre se lembrar que aquela pedrinha estava entre duas

grandes pedras e que elas não se moveram quando foi retirada. Vai se lembrar do lugar, da paisagem, de uma cena interessante que aconteceu naquele dia. E mesmo que tenha sido uma cena sem importância numa paisagem comum, vai sempre haver aquele lugar na memória, aquele dia que justifica a existência de uma pedra a mais na coleção. A palavra no verso não é a mesma coisa. Talvez a vírgula tenha mais a ver com esta pedra. Ou um vazio entre uma linha e outra, entre uma palavra e outra, entre uma entrelinha e outra, em uma reflexão repentina num verso lugar-comum, ocorrida por um acaso. Como um pingo d'água num capô de um carro... a queda de uma cinza de cigarro. Guardiões era o nome que Bené batizava aquelas enormes pedras rosadas da Chapada dos G uim arães. R ealm ente, pareciam grandes esculturas feitas pelo tempo. Algumas até lembram as grandes figuras da Ilha de Páscoa. Soube ainda que o Luizão levou até lá um grupo de estudantes de arte e os induziu a enterrar no chão de cascalho suas carteiras de identidade. Enterrou também a sua. Deixaram por lá mesmo e voltaram para Cuiabá, onde Gervane construiu, com outro grupo, um grande tamanduá de madeira para que entrassem dentro. De madrugada, levaram o bicho para o campus universitário. Quando o dia amanheceu, o grupo foi saindo de dentro e começou a recolher formigas e guardá-las dentro de potes de vidro. As formigas foram levadas à tarde para a floresta e soltas perto de uma cachoeira. V oltaram e destruíram o cavalo ao som de violas de cocho, tam bores e maracas. Sob o sol escaldante de Cuiabá, estes acontecimentos ficaram na memória de alguns, para serem esquecidos em baldes de gelo, na som bra das m angueiras de A line

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Figueiredo. As mangas destas mangueiras são incríveis. Pequenas, amarelas e sensuais, lembram, de uma só vez, os sexos masculino e feminino. Essas mangas são incríveis e saborosas. fio d'água na montanha/ sobre a pedra tece o véu/ que reflete a ponte/ entre terra e céu / reflete o sol e só/ vai se encontrar/ com outro só/ que nuvens brancas trouxeram/ sobre as verdes copas/ e que em pingos de cristal/ penetraram a terra um rio nasce assim / aos poucos/ de pequenas leves névoas/ ( das chuvas, do orvalho, dos serenos)/ sobre a sólida pedra/que sinaliza as travessias/ e lentamente molha a vida/ que se oculta nos solos/ encharcados, úmidos, secos/ até areias e desertos algum as m ãos cravaram as raízes/ à procura de cristais pequenos/ certam ente encontraram/ a umidade que verteu das nuvens/ sobre um corpo antigo e profundo/ que sem água não brotaria/ da semente. tão linda aquela imagem de mulher/ dentro e fora do tronco/ e das raízes que afloram/ e deixam claro que a árvore/ é tão imensa para cima/ quanto para o interior da terra depois, os finos fios d'água/ sobre a rocha/ e os outros/ captados pela flora/ reunidos/ formam riachos, raízes líquidas que brotam/ espontaneamente/ sob as pedras/ as folhas secas/ as samambaias, os espinheiros, os musgos/ a trama da ramagem esverdeada aquela imagem / se fundindo com as folhas/

pés descalços/ apalpando caminhos/ trilhas desfeitas/ atalhos de muitas pegadas/ para encontrar o pouso certo/ no meio da mata/ iluminada aos poucos o ruído das cascatas/ decanta músicas misturadas/ que o tempo construiu/ num templo sagrado/ para mostrar os seus espelhos/ matar a sede e lavar a alma do corpo fatigado no percurso/ cheio de guardiões e pássaros/ flores raras e surpresas/ espinhos e cruezas/ (a natureza ensina ao agulhar os pés e esfolar a pele) surge imenso tronco/ enraizado sobre grandes pedras/ trono perfeito para deuses invisíveis/ que nos guiam pela vida afora/ os mesmos que incorporamos no silêncio/ que a intimidade com as plantas/ resgata de um mundo primitivo e cósmico/ ( similar ao mundo das crianças) o cetro deste rei é a forquilha/ de um galho bem alto/ da árvore mais alta/ aquela que é buquê na sua primavera/ e/ em seu verão, raiz aérea por detrás do tronco e da muralha/ de repente o canto e o ruído se revelam/ em chuviscos brancos sobre as rochas cinzas/ esp irros , corredeiras, rodamoinhos caminhos rápidos, líquido frio/ cristal opaco a desfazer-se em fios/ jatos translúcidos de luz/ refratada em pingos de arco-iris/ pequenos rios/ poços claros verde-azulados/ onde os corpos mergulham/ e se deliciam/ no fluido vivo cheio de arrepios/ os cabelos na água se enraízam/ e os corpos nus/ as samambaias acariciam

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os líquidos quentes do corpo/ brotam em milhares de cores/ que só os amores propiciam/ ao se fundirem com as sinfonias/ que o vento e as águas criam/ junto com as cigarras, os gravetos/ as sementes, areias, micas/ borboletas, besouros, fantasias. maior presente não existe/ na mão da floresta/ a água alivia/ revela o desenho/ nas linhas da palma/ onde está o destino/ de futuro escrito/ onde o grito de prazer anuncia/ que a coroa de ouro é tão bonita/ quanto a folha de palmeira / que irradia/ sua aura/ sobre a cabeça, vivo cocar de índia/ ressurgida dos arranha-céus de vidro/ por entre a malha da floresta/ que resiste ainda essas águas de energia/ fecundam/ em seu cam inho/ (entre rochas escorregadias/ quedas e tran q u ilo s poços transparentes/ seguidos de abru p tas cascatas/ e saltos de chuviscos e respingos} / cachoeiras, riachos, rios/ até encontrar o mar com seus mistérios/ eternos movimentos de ondas que anunciam/ outras viagens, como as ondas/ que nunca se repetem, nunca se revelam/ só para dizer em nossos livros/ que tudo isso ficará para sempre/ no fundo dos corações cristalinos/ a refletir-se por dentro do corpo/ por detrás das retinas/ (impossível ser escrito numa só vida ) relâm pagos na noite, repentinos dias/ trovões das vozes do mundo/ e os raios sobre a mataria/ desenham índios entre as folhas/ zombando das calm arias/ que a guanabara guarda entre os granitos revoada de borboletas azuis/ sobre as

folhas secas/que os pés das tribos repisaram nas trilhas/ e o estrondo do arcabuz espantou/ para sempre/ porque o medo veio se alojar nos arvoredos/ nas pedras e caniços vergadiços/ que a brisa ainda balanceia tempestades, aguaceiros, cabeças-d'água, cachoeiras cheias/ de lendas, causos, histórias de amor e ódio/ sangue nas ribanceiras/ sobre as verdes folhas das palm eiras/ onças, lindas, ondulantes, patudas espreitadeiras/ de olhos mimetizados nas tramas trepadeiras/ fisgavam capivaras ingênuas, mansas/ como as primeiras tribos/ porque as derradeiras sofreram, penaram, morreram/ como os caititus, as antas, os macacos/ as cobras espreguiçadeiras/ como os tupis e guaranis/ da confederação dos tamoios/ chegaram os predadores/ pedras e dores/ e os jesuítas com a cruz e a pólvora/ a peste e a profana ceia prateia a umbaúba sob o sol do meio dia/ abrigo de bandos de verdes periquitos/ em dueto com a chuva multicolorida das saíras/ tantos e tantos passarinhos que passaram/ onde hoje é o refúgio de suas almas/ e dos tico-ticos papagaio do peito roxo/ onde foste esconder seu bico?/ nas sumaúmas gigantes/ nos cedros, nas sucupiras?/ no meio das mil flores aquarelas/ azuis, vermelhas, amarelas/ pontudas, estreladas, chuviscadas/ redondas, esgarçadas águia branca nos galhos secos/ da árvore mais alta/ voa e some/ no disco aceso do sol veio a neblina e uma explosão de nuvens/

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sobre o coração da mata/ os urubus em silêncio/ os tucanos predadores de ninhos/ calados/ uma paineira cheia de garças brancas./ passa um avião/ fogos de artifício de balões incendiários/ românticos bólidos de fogo/ a passarinhada se assanha/ e some na ramagem sagüis se agarram/ nas galhadas mais folhudas/ com seus filhos, pedem clemência/ chuva grossa, pingos graúdos/ enchem de novo as cascatas/ que vão cantando pedreira abaixo/ hinos e arrulhos, choros e valsas/ (ainda há melodia nestas matas) se pararem de construir/ por dez anos/ a cidade cede/ a floresta se enraíza novamente/ e arrebenta ruas, prédios/ estádios, supermercados/ ciclovias tudo corre para o mar/ chove pelo ar/ chora sobre o mar/ a luz dos raios/ o estrondo dos trovões/ o alimento dos peixes da fronteira/ as tainhas, os pitus, as manjubas/ paratis/ nos espelhos dos lagos/ os cardumes/ o mar/ com seus peixes de prata/ os grandes peixes milenares/ as tartarugas gigantes/ o nosso olhar distante/ procurando áfricas e ilhas doce e sal/ navios barcos piratas/ doce sal/ na carne dos peixes/ sal e doce/ mangues e marés/ peixe voador/ borboleta marítima/ salgada de sol/ ondas nas pedreiras/ esbranquiçadas de sal/ que a chuva lava/ adoça/ e o mar salga/ salva/ docemente/ e/ violenta/ com doçura/ inventa/ a nuvem salgada/ o vapor/ que volta/ sobre a mata/ salgada maresia/ adocicado sereno/ doce e sal/ das alvoradas/ sinuosas/ nas montanhas verdes/ nas ilhas cinzas.,

Em toda palavra tem imagem. Mas a imagem não é tudo. Nem em tudo tem palavra. O que será do mudo? Em toda palavra tem um som. O que será o som ao surdo? A palavra é tato ou som ao cego e ao mudo. Do olfato da palavra não duvido. A palavra tem ouvido. A imagem na palavra faz sentido. Como a voz retida no signo. A retina lê outros sentidos que a palavra-imagem anima. A poética não está só na palavra. O poema processo dela é livre. Mas o concreto nela se estigmatiza. O poema-imagem está na vida que o olhar decifra. Entre a palavra e a imagem não há uma linha limítrofe que a semiótica decodifique. Uma imagem não fala por mil palavras e o inverso também é verossímil. Nada disso se define com palavras ou imagens. O poema imágico não tem limites. O poema-objeto é mais que inter-signo. É também o que se associa, o que para o poeta é um vício. Vasculhar o infinito de uma galáxia de detritos para encontrar sentido em prosseguir o seu ofício. Constrói-se a obra que se faz com o título. Configura-se o título quando a imagem o torna explícito. Resgata-se o código oculto no eclipse onde se exprime a imagem que a palavra excita. No poema onde a estrutura se exercita, articula-se a forma construtiva. No poema espontâneo do improviso psicografa-se o imprevisto. Descontróise o óbvio quando a ruptura se livra do delito. Soneto-concreto-processo-objeto, a palavra-imagem é apenas o veículo do poema ( texto, fragmento, figura, gesto, pó ou cor volátil). Nas linguagens limítrofes coexistem quase-cinema, quase-foto, quase-pintura, quase-teatro. Não existe quasepoema. O poema afina e desafina a melodia. Se alia à poesia onde a imagem se anistia. Em sua órbita imponderável não se alinha a um destino. Surge de um ponto da paisagem vazia e se aninha na

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própria forma que lhe deu origem. Nele, em toda sua absoluta liberdade, fica o não dito pelo dito, onde o ponto final não significa limite, nem existe

URUCUM FUMAÇA (Escrito para as crianças de Paraíba do Sul) Novembro de 1978 Num dia de sol a pique com o mar batendo no dique do porto da praça quinze debaixo das castanheiras toparam Urucum e Fumaça dois poetas repentistas de parecidas maneiras Urucum estava tranquilo olhando para Niterói e com uma caneta bic escrevia como dói viajar na cantareira depois que o trabalho rói Fumaça chegou devagar com olhos de curió fixados no fundo do mar e num relance descobre Urucum buscando rimar como quem rema um barco ora com o remo n'água ora com o remo no ar. Fumaça não aguentando vontade de versejar foi logo desafiando o poeta Urucum Lagomar:

F Seu poeta me desculpe esta minha intromissão acontece que o mar esculpe em minha rotina um trovão que é trova repentina fervendo em minha visão vendo você escrevendo tenho coceira na língua e como não tenho caneta para escrever um quadrão pergunto se você pode não ser poeta, escrivão e levar comigo um repente deixando correr a emoção U com todo o prazer abandono a caneta sobre o banco, o repente também permite botar o preto no branco F há muito tempo procuro botar o claro no escuro sobre a arte da palavra que no repente se crava, já fui muito criticado por ter trocado e quebrado a rima e a estrutura do nosso cordel consagrado. U não se entregue derrotado há cordel de todo o jeito mas sempre aparece um letrado para descobrir um defeito já estou acostumado

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a escrever amarrotado o que explode no peito. F todo homem é poeta todo poeta é artista não importa se o verso dói no fundo da vista, pela lei do universo todo poema é perfeito não existe modelista que possa impor à palavra forma perfeccionista. U a poesia é também uma forma de ver não é preciso escrever nem é necessário rima pra que possa acontecer. a métrica existe em tudo o ritmo, é só perceber, às vezes a rima rígida ao invés de enriquecer a ponta do verso encrava tornando a palavra escrava de uma forma de escrever, a poesia, para o homem é uma forma de ser e não existe só nele pois está até num ponto que ele não consegue ver. F se gosto de fazer rima aproveito a inspiração

combinando repentino um raio, um traço, um trovão, é pra descobrir o segredo atrás de cada brinquedo esquecido na memória no meio da escuridão. U a poesia admite toda forma de construção há poesia concreta processo, repente e quadrão. até na linha de fronteira, citando Wally Salomão varia muito a solução: você pode tirar um verso com tinta, colagem e carvão, pode quebrar as palavras criar a rima com fotos recortadas num jornal todo recurso se usa pra dar tom ao visual. há poesia sonora, falada, gravada, cantada, cremosa, picante, atonal, há poesia cruzada nas linhas de sua mão há poesia na pedra no lodo que nela medra na água, no ar, no fogo, no chão F a poesia é um disco atravessando o universo, é um peixe no rio a palavra no verso

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X ico C haves

u é o canto dos Trumai sem estilo literário é pedra que o operário quebra pelo salário porta por onde passo saída, se não aguento, é dia frio e cinzento cavalo de quatro asas voando em câmara-lenta a poesia, qualquer um inventa, é tiro no escuro palavra pixada no muro, juro a poesia é o exercício da liberdade (antes cedo do que tarde) F a poesia é tudo aquilo que me faz ser um ser vivo buscando ser um ser livre pra não ser mais um cativo, do contrário não me iludo: o poeta não contempla as maravilhas do mundo tendo preso na garganta um verso engasgado e mudo U a poesia é um reduto de coisas bem misturadas é um corpo inteiro, um busto, é uma trilha de pegadas são os ramos da samambaia tecendo um rabo de saia é uma pipa de seda num zigue-zague no ar é uma bola de gude

girando num patamar é o mergulho da gaivota pescando peixe no mar é o canto da araponga que canta por não voar é a liberdade do verso sem medo de errar. F um catavento de pedra girando por um motor um papagaio de cera falando versos de amor um caracol de estrelas girando em volta do sol um sabonete de barro lavando um branco lençol um vagalume piscando na boca de um peixe-boi o vento da liberdade trazendo toda a verdade do que vai e do que foi U o curupira cambeta soprando preta trombeta a caipora comendo um musgo sobre uma tora uma gravata voando sob o clarão da aurora um pintassilgo de fogo queimando sobre o cerrado um crocodilo pintado querendo comer um poste a quiromante pedindo que cuidem de sua sorte um orixá paranóico

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no pára-raio da morte um cadilac de luxo num cardume de piranhas um astronauta e um bruxo disputando duas montanhas um prego comendo alpiste dentro de uma bacia uma estrela brilhando dentro de um lampião tudo isso só existe se a liberdade resiste em nossa imaginação F se a liberdade resiste em nossa imaginação no universo sem limite cujo fundo é infinito na infinita escuridão tudo o que a gente sabe por ser infinito cabe nessa funda imensidão: um alicate de unhas mordendo um maçã um analista pirado falando com seu divã uma batalha de estrelas numa lâmina de gilete um batalhão de formigas atravessando um sorvete um valete de baralho no timão de uma corveta um olhar de onça pintada nas asas da borboleta a poesia é minha asa vermelha como brasa

em noites desesperadas leve como uma pena como uma nuvem serena quando é clara madrugada U vivo com elas nas ruas debaixo de quatro luas rolo com ela na areia viro um camaleão no corpo de uma sereia F comigo bebe cachaça esquenta a alma penada que sai pelas narinas girando um véu de fumaça U Sou da tribo nhambiquara onde vida e poesia nenhum caminho separa F já conheci muita terra vestido de pau-de-arara U girei o globo da morte pintei a cara de preto pulei por cima dos muros num pinote suicida deixei meu beijo num poste no meio de uma avenida F perdi emprego e salário rompi o negro portão

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X ico C haves

que separava meu corpo da alma da multidão mudei de rumo e de tema como muda de cor o verde camaleão minha sorte não procuro sou como um tiro de fé lançado dentro do escuro U eu sou um você é outro somos um em dois retratos tenho meu ponto de apoio na luz que brilha no espaço perto do meu alcance longe do meu abraço neste momento um apito cortou o céu e o mar Fumaça olhou pro infinito e vendo a noite chegar estendeu a mão satisfeito ao poeta Urucum Lagomar F tem a noite pela frente é preciso navegar tem Suzana e Madalena me esperando no bar tem o morro do cubango pegando fogo ao luar agradeço esta palestra tá na hora de embarcar U vou ficando um pouco mais aqui olhando o mar

esperando o movimento da multidão se acalmar eu também te agradeço pelo fato de criar na liberdade do verso o ato de conversar

I Fumaça atravessou a praça em direção à estação ultrapassou a roleta se misturou na multidão que avançou sobre a barca quando abriram o portão. no meio daquelas caras iguais no mesmo destino diferentes na direção Fumaça cumpria as palavras transformado em camaleão Urucum Lagomar ficou lá com os olhos na Guanabara vendo a lancha indo embora ficando pequena no mar a noite veio chegando com as luzes da cidade que são as primeiras estrelas que começam a brilhar seu corpo foi se apagando se misturando ao escuro camaleão viajando o futuro vestido com a cor do ar. Xico Chaves Novembro de 1978

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ENSAIOS

ANOS 90: CONTINUIDADE E INVENÇÃO NA POESIA DE NOVOS TROVADORES* Álvaro Silveira Faleiros Universidade de Brasília

RESUMO: Chico César, Zeca Baleiro e José Miguel Wisnik são compositores de música e letra representativos da MPB dos anos 90. Em algumas de suas canções, é possível identificar características tanto da poesia trovadoresca como da poesia dos cantadores; forma* reinventadas em poemas cantados desses autores. Palavras-chave: canção, MPB, trovadores. A BSTRA C T: Chico César, Zeca Baleiro and José Miguel Wisnik are representative MPB composers in the nineteens. In some oftheir songs, it's possible identify troubadours poetry and cantadores poetry characteristics; form s reinvented in singing poems ofthem. Keywords: lyrics, MPB and troubadours. Segundo Martha Herr (2002:15), pode-se afirmar que, pelo menos até o início do século XX, o canto - música vocal, poesia lírica/ canção - "é a arte de expressar a palavra através da música vocal". Essa longa tradição do canto continua viva e é, hoje, no Brasil, um meio im portante de m anifestação poética. Nas linhas que seguem identificaremos alguns dos traços que caracterizam a poesia da canção e que a diferenciam dos textos poéticos escritos. Alguns desses traços, de fato, encontram-se na própria gênese do canto como manifestação humana e têm origem nas características da fala (em oposição à escrita), já outros se explicam pelo lugar social da canção.

De que canto vem?

* E n s a io re c e b id o e m d e z e m b r o de 2004

É sabido que a relação entre poesia e música está na própria origem da poesia no Ocidente. Como assinala Spina (2002, 15), a poesia primitiva "não é exclusivamente a poesia dos povos préletrados, mas a poesia que está ligada ao canto". Segundo Cascudo (1970, 93), o cantador "é o descendente do Aedo da Grécia, do rapsodo ambulante dos Helenos, do Glee-man anglo-saxão, dos Moganís e metrís árabes, do velálica da índia, das runoias da Finlândia, dos bardos armoricanos, dos scaldos da Escandinávia, dos menestréis, trovadores, mestres-cantores da Idade Média". É provavelmente sua origem na Idade Média européia que faz com que os trovadores sejam símbolos do compositor-intérprete de canções, como elas são feitas atualmente na música popular brasileira. Desse período, a poesia

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popular b rasileira herdou algum as de suas características. Isso se deve, também, à densidade dessa produção medieva. A maturidade formal dessas composições trovadorescas e sua musicalidade levaram Rennó (2003, 52), em seu estudo sobre a relação entre a m úsica e a canção, a debru çar-se sobre as propriedades musicais da poesia, a afirmar que: A associação entre elas (poesia e música) (...) remonta à própria origem da poesia (da poesia ocidental, pelo menos), que, na Antiguidade, como sabemos, era cantada. Depois, muito tempo depois, na Alta Idade Média, a chamada poesia trovadoresca veio a promover uma ampliação da aplicação dessa propriedade primordialmente característica da poesia. Como igualmente se sabe, também os poemas criados pelos trovadores ou menestréis eram todos cantados, a cada um correspondendo invariavelmente uma melodia. Não à toa vieram a ser chamados de "canções" (...) As canções trovadorescas constituem efetivamente o caso mais evidente da poesia literária em pondo de convergência com a música. Outro autor que destaca a importância da época provençal na con stitu ição da poesia ocidental é Erza Pound (1977, 56), que afirma: Guido e Dante, na Itália, Villon e Chaucer, na França e na Inglaterra, tiveram suas raízes em Provença: sua arte, seu artesanato e grande parte de seu pensamento. A civilização ou, para usar uma palavra abominada, a "cultura" européia poderá ser mais bem entendida se a imaginarmos como um tronco medieval lavado e relavado por ondas de classicismo.

Essa influência provençal está na origem e ecoa até hoje em parte da canção popular brasileira. Dessa maneira, nos cantos populares brasileiros, desde o século XIX, com os estudos de Sílvio Romero e Teófilo Braga, entre outros, faz-se uma série de paralelos importantes entre a poesia trovadoresca e a poesia dos repentistas. Esses estudos chegam até os dias atuais. W oensel (2001, 22)12, por exem plo, assinala que "os poetas de cordel continuam cultivando - sem que se dêem conta disso - diferentes aspectos da poesia medieval, tanto no que diz respeito à forma como ao conteúdo". Além de con servar-se de form a mais marcada na obra de repentistas e emboladores, a tradição dos trovadores transfigurou-se e, somada à influência negra, deu origem ao que se chama, hoje, M úsica Popular B rasileira (M PB), que posteriormente incorporou elementos da música norte-am erican a. Fenôm eno essen cialm en te urbano, a MPB, desde as suas origens, é marcada pela presença de grandes autores-compositores (conhecidos no m undo h isp ân ico com o cantautores); músicos-poetas que, pelo seu talento e pelas características próprias da canção (musicalidade, fala, entonação), trazem algumas contribuições importantes para a poesia no Brasil. Não se trata, aqui, de estudar detalhadamente a produção de todos esses artistas, mas vale, contudo, lem brar que, seguindo a categorização de Carlos Rennó (2003, 56-7), entre eles destacam-se, na primeira geração (anos 30), Orestes Barbosa, Lamartine Babo e Noel Rosa; na segunda (anos 40), Dorival Caymmi, Lupicínio Rodrigues, Nélson Cavaquinho e Cartola; na terceira 12 V er tam b ém C hico V ian a & M au rice V an W oen sel, Poesia m ed iev a l o n tem e ho je: J o ã o U n iv e rsitá ria , 19 9 8 .

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P essoa,

C C H L A /E d ito r a

A no s 90: co n tin u id ad e e invenção na poesia d e no vo s trovadores

(anos 50), Vinícius de Morais; na quarta (anos 60), os ainda atuantes Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil13; na quinta (anos 70), Rita Lee e Raúl Seixas e, na sexta (anos 80), Cazuza e Arnaldo Antunes14. A descrição de Rennó encerra-se ai, cabendo-nos, em parte, continuá-la. Essa tradição de cantautores é seguida por uma série de compositores que iniciaram a sua carreira em CD nos anos 90. É impossível, neste estudo, enumerar todos eles, por isso destacamos três que nos parecem representativos da produção atual: Chico César, Zeca Baleiro e Zé Miguel Wisnik. A escolha desses autores deve-se, em parte, a uma afinidade pessoal e, em parte, à projeção e qualidade da obra dos mesmos. Na obra dos três, de forma mais ou menos marcada, pode-se identificar alguns ecos da poesia trovadoresca e da poesia dos cantadores. Nosso propósito é saber como elas são reinventadas.

Chico César, Zeca Baleiro, Zé Miguel Wisnik: novas trovas nos anos 90 Entre os três artistas citados, aquele que formalmente mais se aproxim a da poesia dos repentistas é o paraibano Chico César, que gravou seu prim eiro CD, Aos vivos, em 1994. A sua apropriação das estruturas trovadorescas dá-se através da poesia p op u lar do N ordeste. Na tradição do repente, como nos informa Ayala

13 É in te r e s s a n te n o ta r q u e e s se trê s ú ltim o s c ita d o s , em geral, q u a n d o fa z e m p a r c e ria s , e s cre v e m as le tra s, a lé m de tam bém p ro d u z ire m o b ra s e m p ro sa e a lg u m a d ra m a tu rg ia. Cabe n o ta r q u e n e n h u m d o s trê s p u b lico u , a té o m o m e n to , um livro de p o em as. 14 Creio que os nom es de Paulo C ésar Pinheiro (anos 50), Aldir

(1988, 130), o cantador deve respeitar regras no que concerne à rima, ao metro e à oração; esta última inclui o tema, a imagística e a coerência textual. A grande m aioria desses aspectos é recuperada em "Béradêro". Os olhos tristes da fita Rodando no gravador A moça cosendo roupa Com a linha do equador E a voz da santa dizendo: O que é que eu tô fazendo Cá em cima desse andor A tinta pinta o asfalto Enfeita a alma motorista É cor na cor da cidade Batom no lábio nortista O olhar vê tons tão sudestes E o beijo que vós me nordestes Arranha-céu na boca paulista Cadeiras elétricas da baiana Sentença que o turista cheire E os sem amor, os sem teto Os sem paixão, sem alqueire No peito dos sem peito uma seta E a cigana analfabeta Lendo a mão de Paulo Freire A contenteza do triste Tristezura do contente Vozes de faca cortando Como o riso da serpente São sons de sim, não contudo Pé quebrado, verso mudo Grito no hospital da gente

Blanc (anos 60) e Vitor Ramil (anos 80) deveriam constar da lista.

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Na tradição do repente, a rima é um dos critérios utilizados para se julgar a qualidade de urna obra. As rimas devem ser consoantes, para serem consideradas perfeitas, ou, como afirma Ayala (Idem. Ibidem) "vivas"; o que não ocorre necessariamente na poesia medieval, em que a rima toante é bastante praticada. Em "Béradéro", há, de fato, apenas rimas consoantes, algumas delas "ativas", de acordo com Téo Azevedo (1979, 15), como em dizendo/fazendo, sudestes/ nordestes15. A disposição das rimas tem uma relação direta com a estrutura estrófica. No caso de "B érad êro", a estrutura é ABCBDDB. Ela corresponde ao que Coutinho Filho (1953,30) chama de "forma de evolução da sextilha" nas cantorias que acompanhou no sertão nordestino, e que é descrita por ele da seguinte maneira: Temos, ainda, a pouco adotada, porém muito harmoniosa, a estância de sete versos em setissílabos, rimando o quinto e o sexto entre si, e uniformizando-se as rimas do segundo, e do quarto, com o sétimo. Note-se que, em sua descrição, Coutinho Filho associa essa estrutura estrófica ao verso setissilábico, metro também de "Béradêro". Este é um dos metros tradicionais não só da poesia popular, mas da poesia trovadoresca. Spina (2003, 35), ao referir-se ao que ele denomina de redondilho, ao invés de verso de redondilha, afirma que este (de sete ou cinco sílabas) era praticado pelos trovadores. A redondilha maior é, aliás, um metro 15 O que Téo A z e v e d o ch a m a de "rim a ric a " corresp o n d e à n o m en clatu ra fran cesa e é o qu e C h o cia y (1976, ??) nom eia de rim a am p liad a, ou seja, re co rrê n cia s fônicas tam b ém em sons an teriores à tô n ica final.

tipicamente galego-português; não desenvolvido nas outras línguas rom ânicas. Essa tradição conservou-se na poesia dos cantadores, tanto é que, segundo Cascudo (1970,18), nas cantorias "a constante-rítmica é o verso de sete sílabas". Desse modo, em "Béradêro", o esquema rímico, articulado à estrutura estrófica, liga-se também a uma métrica rígida. Encontramo-nos, assim, diante de uma forma fixa, identificada por Cascudo (1970,177) como verso de sete, já utilizada no início do século XX pelos cantadores. O fato de compor um verso de sete, de acordo com os parâm etros m etro-rím icos tradicionais, não impede Chico César de inventar no que diz respeito à oração. Assim, o autor dialoga de forma constante com a tradição sem, contudo, prender-se a ela, pois incorpora, em seu universo poético, termos e imagens urbanas, metropolitanas. Tal incorporação dá-se, contudo, dentro de um universo temático nordestino; o que já se nota no título, "Béradêro". Segundo o Dicionário Houhaiss, beiradeiro é, na Paraíba, um homem interiorano, rústico, que habita nas imediações das moradias dos sertanejos. Na própria forma como escreve o nome, Chico César utiliza uma das características da fala nordestina, que é a perda do i nos ditongos em ei. Esse apagamento, que é recorrente no português falado, é uma tendência da canção, ou seja, na canção, diferentemente da poesia escrita, as marcas da fala são muito mais recorrentes e produtivas; recorrentes pela natureza mesma do suporte, a voz; produtivas, pois permitem uma série de rimas, assonâncias e aliterações encontradas com menos freqüência na poesia escrita, ainda que, desde o M odernism o, haja uma vontade explícita de incorporação de marcas do falar brasileiro. Nessa

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canção, pode-se notar o uso de tô ao invés de estou. Outro aspecto importante do texto, e que se reflete em outros momentos da obra de Chico César, é sua dim ensão p o lítica; o verso "A cigana analfabeta/ lendo a mão de Paulo F reire" é freqüentem ente citado como um dos grandes achados do poeta. Aí se nota outra característica da canção popular brasileira que aparece mais diluída na poesia escrita: a citação de nomes de membros da classe política e do meio artístico. Essa referen cialid ad e pode ser exem plificada por canções como "Podres poderes" e "Para Todos", de C aetano V eloso e C hico Buarque, respectivamente. A temática do nordestino marginalizado também perm eia o poem a pela presença do migrante que chega e "arranha o céu da boca paulista". Chico César retoma, dessa maneira, uma temática cara à literatura brasileira e, na poesia, central na obra de João Cabral de Melo Neto: a do êxodo rural rumo à cidade. Na canção, esse é o tema de composições antológicas como "O último pau-de-arara", "Asa branca" e "Triste partida", na qual Patativa do Assaré (1953, 56) canta: Eu vendo meu burro, meu jegue, meu cavalo, Nós vamo a Sã Paio vivê ou morrê. Em Chico César, o tom não é tão dramático, o autor cria im agens inusitadas deslocando o arranha-céu para dentro da boca paulista. As imagens adquirem até um tom humorístico em algumas p assag en s, com o "B atom ’ o lábio nortista" e "cadeiras elétricas da baiana". Esse tom humorístico - às vezes irônico, lúdico outras vezes - marca a produção poética de alguns

novos trovadores da MPB, sendo mais rara na obra de poetas16, tanto é que na canção "Sanfoneiros serelep es", Ná O zzetti e Itam ar A ssum pção entoam: "Sanfoneiros se divertem/ Só poetas seguem tristes". O que chama mais a atenção, contudo, são os neologismos, como contenteza e tristezura, que, pelo jogo de aliterações em que estão envolvidos, adquirem um grande grau de poeticidade. Chico César utiliza-se de dois processos produtivos na língua - de construção de substantivos a partir de adjetivos pela sufixação em -eza e -ura - e cunha os referidos termos, o que o aproxima do linguajar popular. Outro termo beiradeiro é o uso de Nordestes como verbo, salto criativo e de recurso mais sofisticado, o que deixa claro que, um pouco na linha Roseana, Chico César é um compositor de inspiração popular, mas intelectualizado, inventivo, que ultrapassa, em sua imagística e suas criações vocabulares, o universo da poesia popular17. As características que ressaltam os em "Béradêro" - incorporação de marcas da fala; as citações referentes ao universo da política e ao mundo artístico; o tom irônico e humorístico; a estrutura formal mais fixa, com metro e rima - são alguns aspectos que se destacam na obra de vários cantautores e letristas e que os diferem dos poetas mais voltados para a produção escrita. Entre essas

16 É claro que a veia satírica, existen te d esd e sem p re na poesia, foi g ê n e r o p r a ti c a d o p o r g r a n d e s p o e ta s , c o m o B o c a g e , G r e g ó rio d e M a to s e, m a is r e c e n te m e n te , L e m in sk i, Z u c a S ard am , G lau co M atto so , nos anos 90, p o r R u y P roen ça. 17 A in d a em seu p rim e iro C D , isso se to rn a e x p lícito , p o r exem plo, na com p osição "A rosa im p ú rp u ra d o C a icó ". A lém da referência ao filme de W oo d Allen, o au tor cunha o adjetivo catolaico (de C atolé d o R ocha) a partir d o adjetivo m allarm aico (de M allarm é), o que pressu põe conh ecim en to literários.

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características, além da presença explícita de traços da fala, o aspecto formal é um dos que mais diferencia as duas formas de poesia; e é o que leva Woensel (2001, 22) a afirmar: . De um modo geral, os modelos específicos, os temas mais recorrentes e o estilo da poesia medieval constituem, no âmbito da poesia atual, uma linguagem extin ta, apenas analisada e relem brada pelos estud iosos: de fato, a mentalidade pragmática das gerações modernas não simpatiza com a simplicidade, o despojamento e a estrita observância das regras de métrica da parte dos poetas medievais (Grifo nosso) Ainda que a "antipatia m oderna" pelo despojamento seja contestável, parece-nos correto afirmar que, na canção, assim como na poesia popular, princípios formais, como a métrica e a rima, sejam com mais freqüência utilizados, o que se explica pela própria natureza da canção que, desde suas origens, tem na repetição um de seus elementos primeiros, como nos ensina Spina (2002,15): E stã o aí, co m o se v ê, os e le m e n to s p rim ord iais que p resid em à gênese do canto: o ritm o, a exp ressiv id ad e e a repetição. T o d o s os d em ais - o p ara lelism o , o refrão, a rim a, os segm en tos m elód icos que red u n d am n a e s tr u tu r a v é r s ic a , os s e g m e n to s v é r s ic o s q u e re s u lta m n o s esquem as estróficos - têm suas raízes nesses com p onen tes do can to prim itivo. As estruturas homófonas e isométricas são, como vim os, constantes na poesia trovadoresca, assim com o na poesia dos

rep en tistas. Essas estru tu ras podem ser plenamente recuperadas, como é o caso do verso de sete a que nos referimos, ou apenas parcialmente utilizadas pelos compositores, como nas letras das canções de Zeca Baleiro e de José Miguel Wisnik, que estudaremos a seguir. N ote-se que, para A lm eida & A lves Sobrinho (1978,11) há três tipos de repentistas: os cantadores, os glosadores e os coquistas. Os primeiros cantam acompanhados de viola e os últim os, que cantam o coco, são tam bém conhecidos como emboladores, suas emboladas também inspiram a geração 90. É o caso do maranhense Zeca Baleiro. Seu segundo CD, de 1999, chama-se "Vô imbolá"; a faixa homônima é uma apropriação do universo dos emboladores, como se pode notar: Quando eu nasci era um dia amarelo já fui pedindo chinelo rede café caramelo o meu pai cuspiu farelo minha mãe quis enjoar meu pai falou mais um bezerro desmamido meu deus que será bandido soldado doido varrido milionário desvalido padre ou cantor popular nem frank zappa nem jackson do pandeiro lobo bom e mau cordeiro mais metade que inteiro me chamei zeca baleiro pra melhor me apresentar nasci danado pra prender vida com clips ver a lua além do eclipse já passei por bad trips mas agora o que eu quero

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é o escuro afugentar faz uma cara que se deu essa empreitada hoje a vida é embolada bola pra arquibancada rebolei bolei e nada da vida desimbolá Imbola vô imbolá eu quero ver rebola bola você diz que dá na bola na bola você não dá Vô imbolá minha farra minha guitarra meu riff bob dylan banda de pife luiz gonzaga jimmy cliff poesia não tem dono alegria não tem grife quando eu tiver cacife vou-me embora pro recife que lá tem um sol maneiro foi falando brasileiro que aprendi a imbolá Eu vou pra lua eu vou pegar um aeroplano eu vou pra lua saturno marte urano eu vou pra lua lá tem mais calor humano eu vou pra lua que o cinema americano A qui, com o em "B é ra d ê ro ", a grafia reproduz a fala popular. Aqui, o verbo embolar é escrito com i e, no infinitivo, apaga-se o r final, o que, neste contexto, justifica-se, pois como o próprio Baleiro afirma, "foi falando brasileiro que aprendi a imbolá". Essas duas tendências do português falado estão registradas desde o século XIX, como

assinala Sílvio Romero (1977: 240). Sobre essas duas características, ele afirma que a supressão de uma ou mais letras no final das palavras é usual entre os brasileiros, principalmente caboclos e caipiras, que dizem botá, ardê, subi, comendo, invariavelmente, os rr finais. E, mais adiante, acrescenta que José de Alencar já havia notado a nossa tendência de pronunciar o e final como i e o o como u. As homologías entre o texto de Zeca Baleiro e as emboladas atingem também aspectos formais. Primeiramente, há a utilização da redondilha maior na maioria dos versos; esses são intercalados por decassílabos colocados sempre no início de cada estrofe. Ora, o setissílabo e o decassílabo são, justamente, os metros mais utilizados na poesia de língua portuguesa desde as trovas galego-portuguesas e são, ainda, os metros predominantes na poesia popular: "é o setissílabo o metro nacional, divulgado nos "romances" (quando na disposição simples e não clássica), nos provérbios, adágios e ditados" (Wilson: 1985,32)". Quanto ao decassílabo, é o nosso verso heróico e, na poesia popular, o verso do martelo. Salientamos, contudo, que o uso da heterometria é rara na poesia popular (mais recorrente na poesia medieval), a não ser na utilização de um verso de péquebrado, encerrando a estrofe. Quanto às estrofes, na primeira parte do poem a, elas têm a m esm a rim a nos quatro primeiros versos e são todas amarradas com rimas em [a], o que fica claro pela presença do desimbolá no final da primeira parte da canção. Essas rimas em [a] no final das estrofes estão presentes em m uitas em boladas, como as de Zé Menino e Manuel Moreira, recolhidas por Leonardo Mota (1963, 116-132). Após o refrão, iniciam-se quadras, nas quais rimam os três últimos versos, estando o

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primeiro verso livre. É interessante notar que, segundo Câmara Cascudo (s.d., 367), em seu Dicionário do folclore brasileiro, nem a quintilha nem a quadra são características da em bolada, cuja "característica, além da sextilha é o refrão típico". Entretanto, Dona Selma do Coco utiliza, em suas composições de coco de rua, a estrutura estrófica da quadra (como nos cocos "M inha H istória" e "Odete") e da quintilha (forma das composições "Coco para Berlim" e "A rolinha"), justamente as formas utilizadas por Zeca Baleiro. E, como os cocos e emboladas confundem-se, diferenciándo­ se pela presença da dança nos primeiros, pode-se afirmar que a estrutura estrófica de "Vô imbolá" corresponde a diferentes formas de coco de rúa. Aliás, a terceira e última parte da letra, na qual repete-se a frase "eu vou pra lúa", corresponde tam bém à estrutu ra de alguns cocos (com o "Areia", de Selma do Coco). Outra semelhança entre essa composição e "Béradéro" está na presença de citações, sobretudo de cantores. A diferença, contudo, está no fato de que alguns deles (Frank Zappa, Jimmy Cliff) fazem parte do universo do pop-rock internacional, rompendo-se assim com urna referencialidade intracultural. Essa tendência encontra-se também em algumas composições de Chico César (em que cita os nomes de Mandela, Benazir, Mallarmé, entre outros). Na forma como Zeca Baleiro faz suas citações nota-se um tom irónico-hum orístico bastante acentuado, que abre um leque de possibilidades interessantes em suas composições. Neste poema, a incorporação de uma série de term os do rock introduz novas rim as no português; dessa maneira, torna-se possível rimar riff/banda de pife/jimmy cliff com grife/cacife/recife. Outra seqüência nova é a das rimas em [ips] de

clips/eclipse/bad trips. O uso de estrangeirismos encontra-se em obras anteriores, como em algumas canções de Chico Buarque e em outras de Aldir Blanc; também nesses autores, o recurso é, em geral, embebido de humor, como, por exemplo, em "A história de Lili Braw n", de Chico, ou em "C o n cu b in ato ", de A ldir. N esses dois casos, predominam rimas entre vocábulos brasileiros e termos em inglês. Esse recurso, que abre a possibilidade de novas rimas em português, é marca de um registro de língua coloquial. A fala das ruas de que esses compositores se apropriam não se reflete apenas na fonética da canção, mas permeia igualmente o léxico da canção popular. Além das referidas neorrimas, há a incorporação de expressões atuais como "faz uma cara" e "um sol m aneiro". A coloquialidade é uma tendência que marca a canção brasileira desde os seus prim órd ios. Tinhorão, em entrevista concedida ao "Caderno M ais", da Folha de São Paulo (19/08/2004), assinala que, já no século XVIII, Domingos Caldas Barbosa, antepassado da canção popular urbana brasileira, incorporava expressões absolutamente coloquiais em suas letras, o que era inaceitável em poemas árcades. A atualização de expressões populares e o tom humorístico do poema, no caso de Zeca Baleiro, não o impedem de encerrar sua embolada com os singelos e altamente poéticos versos: "eu vou pra lua/eu vou pegar um aeroplano/eu vou pra lua/ saturno marte urano/ eu vou pra lua/ lá tem mais calor humano/ que o c.iem a americano". Este é um d js casos em que a letra da música acaba "extrapolando os limites entre alta e baixa cultura e confundindo as d istinções usualmente feitas entre cultura erudita e cultura

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popular. Ela alcança um plano esteticam ente superior e pode, então, ser tomada como uma modalidade de poesia: poesia cantada (uma forma de poesia de música, em contraposição à poesia literária, de livro)" (Rennó: 2003, 53). Aqui se coloca uma questão crucial para o entendimento da p o eticid ad e da can ção; a apreciação da dimensão poética do texto só pode ser dar de maneira mais completa se também for escutada a música que o acompanha. M esm o se nossa análise restringe-se essencialmente aos aspectos textuais, lembramos que a toada, nom e dado à m elodia pelos repentistas, marca gêneros no repente (Tavares, s.d., 16). No caso de "Béradêro" e "Vô imbolá", pode-se recon hecer linhas m elódicas dessas formas de cantoria. A apropriação de estruturas, de temas e de melodias pode ser feita em relação a uma canção clássica do repertório da MPB. Aí, o compositor distancia-se mais das formas populares de cantoria para mergulhar mais especificamente no universo do que se chama, hoje, MPB. Este é o caso de "Assum branco", uma elogiada reconstrução de "A ssum p re to ", clássico de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, composta por de José Miguel W isnik18, em 1998. N esta canção, também há referências à música "Asa branca", da mesma dupla de nordestinos. Em "Assum branco", Wisnik apropria-se de estru tu ras fixas existen tes na poesia trovadoresca e na poesia popular, como se pode notar na letra que segue: 18 A u to r de u m a o b ra m a rc a d a m e n te exp e rim e n ta l, o que o in sere n o g ru p o c h a m a d o de v a n g u a rd a pau listan a, bastan te atu ante nos anos 70 e 80, W isnik, contud o, estréia e m C D solo ap en as em 1992, m otiv o pelo qual tratam o s aqui de sua obra.

Quando ouvi o teu cantar Me lembrei nem sei do quê Me senti tão só Tão feliz tão só Só e junto de você Pois o só do meu sofrer Bateu asas e voou Para um lugar Onde o teu cantar Foi levando e me levou E onde a graça de viver Como a chuva no sertão Fez que onde for Lá se encontre o amor Que só há no coração Que só há no bem querer E na negra escuridão Assum preto foi Asa branca dói Muito além da solidão Em cada uma das quatro quintilhas que compõem o poema, há redondilhas maiores (de sete sílabas) e menores (de cinco sílabas) dispostas regularmente em todas as estrofes. A relação que estabelece entre metro e rima é clara. Desse modo, as redondilhas menores, dispostas sempre no 3o e 5o versos da estrofe, rimam entre si. O mesmo ocorre entre os heptassílabos do 2o e do 6o versos. Quanto às redondilhas maiores dos primeiros versos das quatro estrofes, há uma rima interestrófica entre três deles, não rimando apenas o primeiro verso do poema. No que se refere à métrica, destacamos a redondilha m enor (já dissertam os sobre a redondilha maior), que Spina (2003, 36) afirma ser o tipo de verso mais curto usado pelos trovadores.

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Na poesia popular, a "carretilha, também dita 'parcela', é o verso de cinco sílabas, empregadíssimo no desafio..." (Cascudo: 1970, 20). A combinação das duas métricas, contudo, não corresponde à tradição. Assim como em "Vô imbolá", de Zeca Baleiro, o que se verifica é uma reinvenção a partir das formas fixas. A reinvenção não atinge apenas a heterometria em "Assum branco", mas se verifica também na estrutura estrófica, a quintilha, também presente em "Vô imbolá". Salientamos que a quintilha - assim como as outras estrofes ímpares (com exceção da setilha) não é uma estrutura estrófica recorrente, nem na Idade Média nem na poesia popular, ainda que apareça, como foi visto, em alguns cocos. Ela, em geral, aparece como uma estrutura interna à décima, estrutura estrófica valorizada na cantoria. Apesar de ser uma estrutura pouco recorrente, a quintilha aparece ainda em uma das formas do mourão, sobre o qual afirma Coutinho Filho (1953, 32): Sua

fo rm a

o r i g in á r i a

de

s e is

verso s

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por exemplo, inicia-se com o advérbio "quando" e, naquela, há os versos "Assum preto o meu cantar/ é tão triste quanto o teu", ou seja, pode-se dizer que Wisnik compõe um mourão pós-moderno, moldado dentro de uma estrutura estrófica arcaica e uma m étrica n ão-co n v en cion al, ainda que cunhada a partir de metros tradicionais. Na rima predominam rimas tradicionalmente chamadas de "pobres"19, características da poesia popular. Bela exceção é a rima foi/dói, inexistente nos cancioneiros populares que consultamos. No cam po lexical, W isnik retom a o u niverso nordestino sem, contudo, utilizar características da fala, como nos poemas dos autores acima citados. Em linhas gerais, podemos, pois, afirmar que, nesta canção de Wisnik, a reconstrução melódica e temática não o levou a assimilar um registro mais coloquial da fala em seu discurso, o que nos parece coerente com sua postura com o artista e intelectual. Sua inventividade produz poesia de outra espécie, com um registro de língua mais culto, talvez.

s u b s titu íd a p e la d e c in c o , a in d a n o s é c u lo p a s s a d o . Já n ã o é u s u a l o m o ir ã o d e c in c o , p r im e ir a

e v o lu ç ã o

do

g ê n e ro ,

p o ré m

são

freqü en tes, e atu ais, o de sete e o de d oze versos (...) G ê n e ro p o é tic o d o s m a is d ifíce is , n u n ca d esd en h ad o p elos n osso s rep en tistas, aju sta-se m elh o r à d e n o m in a çã o de tro ca d o, p o rq u e, em d iálogo , os articu listas se rev ezam nos v erso s e n as estrofes.

O que nos chama a atenção é o fato de que o gênero que teve, em sua primeira evolução, a quintilha como estrofe, seja um gênero marcado pelo diálogo. Ora, em sua composição, Wisnik dialoga com "Assum preto" e "Asa branca"; esta,

Anos 90: continuidade e invenção A sucinta apresentação feita de três importantes cantautores que iniciaram sua carreira em CD nos anos 90 é apenas um aspecto de suas obras. Eles são compositores que experimentam diversas formas e dedicam-se a diferentes temas. Nesse sentido, pode-se assinalar que a relação que os compositores MPB estabelecem com a tradição é livre e criativa, ultrapassa os limites.das formas rígidas a que estão presos os repentistas cuja arte:

19 N a p o e sia p o p u la r, e n tr e ta n to , tr a ta -s e d e r im a s ric a s. C o m o a firm a T éo A z e v e d o (1 9 7 9 ,1 5 ), “ A s rim a s m a is ric a s n o sentido d e en co n trar p a la v ra s são: ao , ar, eiro ''.

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A nos 90: co n tin u id ad e e inv enção na p oesia de no vo s trovadores

"não se co n stró i pela violação e sim pela obediência às normas existentes. A inovação se dá por acréscim o " (A yala,1988, 150). A ssim , ao contrário do repente, na poesia da MPB, sobretudo entre os autores mais cultos, as normas existentes na cantoria e na poesia trovadoresca servem de ponto de apoio, mas a regra é a invenção. A originalidade e a invenção fazem com que cada um dos três trovadores em questão contribua de forma diferente para a poesia da nova MPB. Chico César destaca-se pelos seus neologismos, nota-se nele um uso consciente da plasticidade da língua. Zeca Baleiro, mais rock, usa e abusa de termos em inglês, referências do cinema e da TV e introduz, dessa forma, uma série de expressões e gírias, ampliando o léxico da canção brasileira. Wisnik, por sua vez, procura produzir "pérolas aos p ou cos". C uidadosam ente sólido, não é um inventa-línguas, como os outros dois. No conjunto, nota-se que há repetição de estruturas formais e que a gestualidade da fala aparece de forma sistemática na canção e não nos textos escritos de autores atuais20, pela própria natureza do suporte; a voz. Dessa maneira, na maioria das canções, uma simetria sonora (métrica ou rímica) sustenta a composição e, por sua vez, a coloquialidade e a atualidade da fala ampliam e multiplicam o campo lexical do trovador de forma mais rápida e dinâmica do que para o do poeta que trabalha o texto escrito, pois a escrita, em geral, tem um tempo de assimilação mais lento das novidades da fala. Enfim , as ca racterísticas apontadas -

sobretudo a incorporação de marcas da fala; as referências ao universo da política, ao mundo artístico e ao cotidiano; a estrutura formal mais fixa, com metro e rima - só são relevantes porque, apoiadas na música, na melodia e devidamente trabalhadas pelos au tores, adquirem uma poeticidade que as eleva a ponto de tornarem-se sím bolos de regiões, de épocas, de emoções: aquarelas de um Brasil carinhoso, beiradeiro, embolado, vuadô.

2 0 A in d a q u e h a ja p o e ta s q u e d e s e n v o lv e r a m a rim a e a m é trica d e fo rm a c ria tiv a n o s a n o s 9 0 . D e n tre eles, d e s ta c o P au lo H en riq u e s B rito e G lau co M ato so .

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CARMESIM É A COR DA MUSA* Anazildo Vasconcelos da Silva* Universidade Veiga de Almeida Ex-professor da UFRJ

RESUM O: Desde os anos 80 venho pesquisando o gênero épico, com a intenção de resgate e reafirmação do mesmo como legítima expressão artística. A produção épica nos anos 90 deu continuidade à certeza, formulada ao longo dos anos dedicados à pesquisa, de que o épico reafirma tradições culturais num importante momento de enfraquecimento, em nível mundial, dessas mesmas tradições. Optei, assim, neste ensaio,por retomar as formulações teóricas sobre o gênero e analisar uma manifestação épica dos anos 90, Musa Carmesim, nela destacando o caráter heterorreferencial que caracteriza não só as manifestações épicas, mas as líricas e as narrativas na pós-modernidade Palavras-chave: gênero épico; pós-modemidade; Musa Carmesim ABSTRACT: Since the 80s, I have been making researches about the epic genre with the purpose of to rescue and to reaffirm the epic as a legitimate artistic expression. The epic production in the 90s made me sure about the opinion that I have been supporting all theses years: the epic poetry, in our modern age, reaffirms the cultural heritage in an important moment, in which this heritage is weak in all the word. This thought made me to resume some theoretical formulations about the genre and to analyze one epic poem of 90s, the Musa Carmesim, in accordance with the purpose of observing its main character: the use of multiples references that characterizes all post-modern literature. Keywords: epic genre; post-modernity; Musa Carmesim

Introdução

* E n s a io r e c e b id o e m d e z e m b ro de 2004 * A u to r d e v á rio s liv ro s, d e n tre eles,

Formação épica da literatura brasileira. RJ: E lo , 1 9 8 7 .

A última década do século XX, com a inauguração do século XXI, faz-se acervo histórico e desperta na crítica e na historiografia literárias o desejo da investigação das manifestações ali reunidas, com o objetivo de verificar como a humanidade testemunhou, artisticamente, m ais uma virada de século, e m ais, de m ilênio. Contudo, o distanciamento temporal ainda não é suficiente para que se recolham, com a devida isenção, as impressões e as marcas dos anos 90. Vale, todavia, iniciar a trajetória crítica, apontando traços mais evidentes e significativos. Um desses traços, a meu ver, é a presença do épico. Desde os anos 80 venho pesquisando o gênero épico, com a intenção de resgate e reafirmação do mesmo como legítima expressão artística. A produção épica nos anos 90 deu continuidade à certeza, formulada ao longo dos anos dedicados à pesquisa, de que o épico reafirma tradições culturais num importante momento de enfraquecimento,

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em nível mundial, dessas mesmas tradições. Optei, assim, neste ensaio, a retomar as formulações teóricas sobre o gênero e analisar uma manifestação épica dos anos 90, Musa Carmesim, nela destacando o caráter heterorreferencial que caracteriza não só as manifestações épicas, mas as líricas e as narrativas na pós-modernidade A sem iotização épica do discurso, que serve de fundamento teórico para a elaboração desse trabalho, embora constitua um corpo teórico independente na formulação de seu objeto de estudo, está contextualizada no âmbito teórico de uma ampla reflexão semiológica sobre a questão da criação literária, de modo que, para ser plenamente compreendida, não poderia prescindir de uma explanação básica dos princípios gerais que a integram às dem ais sem iotizações: a ficcional, a lírica, a ensaística e a retórica. Tal síntese não caberia no espaço de um artigo, é claro; por isso d esenvolvo, a segu ir, apenas os fundamentos básicos de minha teoria épica do discurso, im prescindíveis para alcançar meu objetivo, o de caracterizar Musa Carmesim como uma legítima epopéia pós-moderna.

1 Pressupostos teóricos O gênero épico, dentre todos os gêneros propostos por A ristó teles, foi o único que permaneceu, crítica e teoricamente, estagnado, o que impediu o reconhecimento de um percurso independente da epopéia na form ação da literatura ocidental. A proposta de Aristóteles, tomada inadvertidamente como uma teoria do discurso épico, instituiu a m anifestação épica clássica com o padrão teórico para o reconhecimento das manifestações posteriores do discurso épico, contribuindo, em parte, para a

perda da perspectiva crítico-evolutiva da epopéia. A formulação aristotélica restringe-se, conforme demonstrarei adiante, à epopéia grega, de modo que sua ap licação, através dos tem pos, im possibilitou o reconhecim ento de epopéias legítimas fora do âmbito clássico. Aristóteles, a partir do exame de toda a produção literária grega até o seu tempo, fez uma ampla reflexão sobre a manifestação do discurso, elaborando, desse m odo, uma proposição de natureza crítica. Assim, tudo o que ele afirma sobre a epopéia, por exem plo, em bora esteja absolutam ente correto, só vale para aquela manifestação do discurso épico que constituiu o "corpus" criticam ente delim itado - a epopéia grega -, e não para todas as demais manifestações posteriores desse discurso. A extrapolação da proposta crítica de Aristóteles do âmbito clássico, desenvolvida como uma teoria épica do discurso por seus discípulos, impossibilitou o reconhecimento e a legitimação de novas manifestações do discurso épico. Este lamentável equívoco tem contribuído também, entre outras coisas, para a afirmação inconsistente de que teria havido a fusão do curso da epopéia com o do romance, e o gênero épico teria se esgotado naturalmente. O discurso épico caracteriza-se por sua natureza híbrida, isto é, por apresentar uma dupla instância de enunciação, a narrativa e a lírica, m esclando, por isso m esm o, em suas manifestações, os gêneros narrativo e lírico. Daí a presença na epopéia de um narrador e de um eu lírico, em que se configuram, respectivamente, as instâncias de enunciação narrativa e lírica. Na épica clássica, devido à geratriz sem iótica da matriz épica clássica (categorias que desenvolverei adiante), a instância de enunciação narrativa

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predomina sobre a instância lírica, e Aristóteles vai assinalar corretamente, é claro, a essencialidade narrativa da epopéia grega. Com a conversão da proposta aristotélica em teoria do discurso épico, impõe-se o reconhecimento da epopéia apenas por sua in stân cia n a rrativ a, predom inante na elaboração discursiva da Épica Clássica, fazendo com que a crítica, inadvertidamente, arrolasse a epopéia ao gênero narrativo, figurando-a ao lado da narrativa de ficção. A medida que, por uma inju nção n atu ral da evolu ção das form as artísticas, a instância de enunciação lírica começa a d esem p enhar função estru tu ran te e vai sobrepondo-se gradualmente à instância narrativa, a crítica deixou de reconhecer a existência de epopéias legítimas. As últimas obras reconhecidas como epopéias no consenso crítico, assim mesmo com sérias restrições, são as renascentistas, já que estas obras, favorecidas pela identificação do R enascim ento com o C lassicism o , tomam a epopéia greco-romana como modelo. Chegou-se mesmo a afirmar, em decorrência da perda da predominância narrativa, a fusão do curso da epopéia com o da n arrativ a de ficção e o conseqüente esgotam ento do discurso épico, elegendo-se o romance histórico como sucessor da epopéia. Ora, se a especificidade do discurso épico consiste na articulação de uma dupla instância de enunciação, a narrativa e a lírica, é claro que a predominância estruturante de uma sobre a outra não altera a natureza épica. Ou seja, a passagem da p red om in ância n arrativ a para a predominância lírica, que se observa no percurso da épica ocidental, é uma decorrência natural da natureza híbrida do discurso épico e não impede, por isso mesmo, o reconhecimento de epopéias da Antigüidade Clássica ao Pós-modernismo, tão

legítimas umas como as outras. É surpreendente que, ao invés de aceitar essa evolução natural da epopéia e refletir sobre as causas que a motivaram, a crítica tenha preferido forjar uma insustentável evolução da epopéia para o romance, descartando a existência de uma trajetória independente da epopéia no curso da literatura ocidental. O discurso, sob o enfoque semiótico, é um processo de estruturação da significação, único e inesgotável em si mesmo, passível de múltiplas m anifestações. O discurso é a unidade e sua m anifestação é a diferença. Posso dizer, por exem plo, que Camões, Castro Alves e Carlos Drummond de Andrade são líricos, pois, com base no critério da unidade, os três autores usaram um mesmo processo de estruturação da significação, o discurso lírico. Mas posso dizer também, com base no critério da diferença, que os autores acima mencionados realizaram diferentes manifestações desse mesmo discurso lírico. E o que torna as várias m anifestações de um mesmo discurso diferentes umas das outras são as concepções literárias que contaminaram esse mesmo discurso, em cada uma delas. Cam ões realizou uma manifestação do discurso lírico no século XVI, contam inado por uma concepção literária denominada renascentista; Castro Alves realizou uma outra manifestação desse mesmo discurso lírico, no século XIX, contam inado por uma concepção literária denominada romântica; Carlos Drumm ond de A ndrade realizou uma outra manifestação desse mesmo discurso, no século XX, contam inado por uma concepção literária denominada modernista. Se acrescentasse, por exemplo, Sá de Miranda, Alvares de Azevedo e Fernando Pessoa ao grupo anterior, não haveria nenhuma alteração de natureza teórica. Os seis

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poetas referidos, agrupados dois a dois, integram uma mesma manifestação do discurso lírico, num mesmo período, contaminado por uma mesma concepção literária; logo, não há diferença teórica entre eles. As diferenças entre Camões e Sá de Miranda, entre Castro Alves e Álvares de Azevedo, e entre Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa são de ordem pessoal: estilo, visão de mundo, motivação psicológica etc., e, entre os dois últimos, também de ordem cultural. Compreende-se, então, que a proposição de Aristóteles, por sua natureza crítica, conforme d em onstrei, define p lenam ente uma única manifestação do discurso épico, a primeira delas realizada na A ntigüidade, contam inado pela concepção literária clássica, e não toda e qualquer m anifestação do discu rso épico. Por isso a aplicação da proposta aristotélica às demais manifestações do discurso épico acarretou uma série de equívocos, como tomar uma manifestação do discurso pelo próprio discurso, aceitar o esgotam ento do discurso épico num a única manifestação, propor a transformação da epopéia no romance, exigir que se fizesse epopéia grega ontem, hoje e sempre etc.

1.1 A épica O discurso épico caracteriza-se pela dupla instância de enunciação, a narrativa e a lírica, e não podendo p rescin d ir de nenhum a delas, define-se como um discurso híbrido. Ou seja, se a especificidade do discurso épico não se define nem pela instância n arrativa nem pela lírica, articuladas independentemente, mas tão somente por sua natureza híbrida, então ele deve ser reconhecido como um discurso autônomo. A instância de enunciação duplamente semiotizante

distingue o discurso épico dos demais, inclusive daqueles que lhes fornecem a geratriz híbrida, o narrativo e o lírico, que são, em contraposição a ele, discursos de in stân cias de enunciação unissem iotizantes. A liás, quando A ristóteles propôs um gênero épico, ao lado do lírico e do dramático, certamente inferiu a especificidade e a autonomia do discurso épico, mas não estava em seus propósitos, todavia, formulá-las teoricamente. A alternância "gênero épico ou narrativo" que levou a epopéia a integrar o gênero narrativo foi uma elaboração da poética clássica que, fundada no erro de tomar a proposta crítica de Aristóteles como uma teoria do d iscu rso, reconheceu a esp ecificid ad e épica apenas num a de suas in stân cias sem iotizan tes, a n arrativ a, que é preponderante na epopéia clássica. A form ulação da esp ecificid ad e do discurso épico no hibrid ism o da dupla semiotização de sua instância de enunciação, aqui desenvolvida, faz dele um discurso autônomo e impõe, necessariamente, o reconhecimento de um gênero épico igualmente independente. Assim posto, as categorias "narrativa épica" e "poesia épica", de que se tem utilizado a crítica literária, tornam-se impróprias para designar a epopéia, exigindo uma reform u lação do quadro classificatório dos gêneros literários, elevando seu número para cinco, a saber: o lírico, o épico, o dram ático, o n arrativo e o en saístico , com o m anifestações autônomas dos discursos lírico, épico, dram ático, n arrativo e en saístico , respectivamente. A epopéia, mesclando naturalm ente os gêneros narrativo e lírico, apresenta, de um lado, os elem entos esp ecíficos da n arrativa personagem, espaço, acontecimento e narrador -

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inseridos na estrutura verbal duma proposição de realidade, de outro lado, os elementos específicos da lírica - sujeito lírico, espaço lírico, motivação lírica e eu lírico - inseridos na expressão subjetiva da experiência lírica. Embora narrativa, a epopéia não se confunde, todavia, com a narrativa de ficção, pois, diferente desta, a epopéia apresenta um eu lírico que integra a expressão formal na estrutura narrativa, utiliza como unidade o verso, explora recursos rítmicos e divide-se em cantos, enquanto a narrativa de ficção tem apenas a voz narrativa, utiliza como unidade o período e dividese em capítulos. Outra diferença fundamental entre epopéia e n arrativ a de ficção , igualm ente importante para distingui-las, é a natureza da proposição de realidade estruturada. A narrativa de ficção, sendo uma elaboração imaginária da relação existencial do hom em com o mundo, estrutura uma proposição de realidade ficcional. A epopéia, nutrindo-se do real e do mito, fundidos na matéria épica, estrutura uma proposição de realidade histórica. A narrativa de ficção estrutura uma matéria romanesca, elaboração literária do real imaginário; a epopéia estrutura uma matéria épica, fusão do real histórico com o mito. A epopéia tem sido p riv ilég io dos poetas, pois, para a integração da expressão form al na estrutura narrativa, é imprescindível a presença de um eu lírico, exigin d o que o autor épico seja, necessariamente, um poeta. Mas também não se confunde com o poema que, embora integre a expressão formal em sua estrutura sêmica através da voz lírica, carece da instância narrativa que sustente a proposição de realidade histórica. Enfatizo, para concluir, que a epopéia pode ser p red o m in an tem en te n arrativ a ou pred om inantem ente lírica, de acordo com a

especificidade híbrida da instância de enunciação épica, mas que essa predominância não atenta contra a legitimidade de sua natureza épica nem a enquadra no gênero narrativo ou no lírico, daí a necessidade de reconhecer a existência independente do gênero épico.

1.1.1 A matéria épica A m atéria épica deve ser entendida, inicialm ente, como uma form ação autônoma, processada no nível da realidade objetiva, resultante da fusão do real histórico com o mito. A base original de formação da matéria épica é um fato histórico. No exato momento em que ocorre, o fato histórico é apenas realidade, e o seu relato é História. Mas se esse fato é grandioso e fantástico, a ponto de ultrapassar o limite do real, isto é, capaz de ultrapassar a capacidade de compreensão do homem da época de sua ocorrência, começa a gerar uma aderência m ítica que o desrealiza como História e, com o passar do tempo, a ele se funde, constituindo então uma m atéria épica. Assim posto, a matéria épica tem duas dimensões, uma real, sustentada pelo fato histórico que lhe dá origem, e outra mítica, sustentada pela aderência mítica que a ele se integra. A matéria épica será tão mais perfeita quanto maior for a desrealização imposta pela aderência mítica ao fato histórico, aproxim ando-se, m uitas vezes, do conceito generalizado de lenda. Matéria épica e epopéia não se confundem, pois resultam, em princípio, de dois diferentes processos de form ação: o real e o literário. Enquanto a m atéria épica é uma form ação autônoma do processo de realidade, em que se efetiva a fusão do real histórico com o mítico, a epopéia é uma realização literária específica duma

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matéria épica. A matéria épica preexiste à epopéia, ela se faz independentemente de sua realização literária em epopéia, podendo, inclusive, ser também realizada lírica, ficcional e dramaticamente. Isso significa que o reconhecimento de uma matéria épica autêntica, por si só, não é suficiente para definir uma realização literária da mesma como epopéia, embora caiba ressaltar que, entre todos os gêneros, o épico é o único que não prescinde de uma matéria épica, enquanto outros, como o narrativo, por exemplo, pode tanto articular uma matéria épica como uma matéria puramente ficcional. E necessário, para ser uma epopéia, que essa realização literária da matéria épica se faça como uma m anifestação estruturalmente reconhecida do discurso épico. A epopéia apresenta dois planos estruturais: o histórico, em que se manifesta a dimensão real da matéria épica, e o maravilhoso, em que se manifesta a dimensão mítica da matéria épica. A fusão das dimensões real e mítica na matéria épica impõe a interação entre os planos estruturais da epopéia em que estas dimensões se m anifestam : o h istó rico e o m aravilhoso. A interação entre eles é de fundamental importância, por exemplo, para a caracterização épica do herói e do relato, já que ambos, por uma exigência épica, devem ser projetados no plano maravilhoso. O sujeito da ação épica, para ser herói, precisa agenciar as duas dimensões da matéria épica, o que exige dele uma dupla condição existencial: a histórica, necessária para a realização do feito histórico, e a mítica, necessária para a realização do feito maravilhoso. Sendo o personagem épico, por suposto, um ser de existência histórica quase sempre comprovada, a condição humana para agenciar o real histórico lhe é um atributo natural. Mas não basta, para elevá-lo à categoria de herói,

a condição humana. Como homem, ele é apenas um ser histórico, isto é, um mero mortal sujeito à consumação do tempo. Ele precisa pisar o solo do m aravilhoso para tran scen d er o hum ano e alcançar o estatuto do herói, ou seja, passar do plano histórico para o maravilhoso e ganhar a "transfiguração m ítica" que, resgatando-o da consumação do tempo histórico, confira-lhe a "imortalidade" épica. O mesmo acontece com o relato, pois o acontecimento histórico só alcança as grandiosas proporções épicas quando, desprendendo-se do real, insere-se no maravilhoso. A interação entre os planos estruturais da epopéia, permitindo o trânsito livre de um para o outro, possibilita a tran sfigu ração m ítica do acontecim ento h istó rico e do herói. Essa transfiguração ocorre em toda e qualquer epopéia, mesmo se o personagem for um herói épico por natureza, isto é, se já tiver em si mesmo, por uma atribuição genética, as condições humana e mítica. E o caso, entre outros, de Aquiles e Enéas que, filhos ambos de humanos mortais com deusas im ortais, têm em si m esm os, com o atribu to original, a dupla condição existencial que qualifica o herói épico. Com relação ao herói épico, afirmo ainda que ele não pode prescin d ir da dupla condição existencial, a humana e a mítica, sob pena de perder a heroicidade. Quando Ulisses, no canto V da Odisséia, recusou a oferta que lhe fez a deusa Calipso de tornar-se um deus imortal, o fez por uma exigência épica, embora no curso da trama a recusa seja creditada ao seu amor por Penélope. Se ele aceitasse a imortalidade ofertada, perderia a condição hum ana e, com ela, a qualificação do herói. Por isso os deuses, tendo apenas a condição m ítica, não ingressam na galeria épica dos heróis.

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C arm esim é a cor da m usa

O processo de formação da matéria épica sofrerá uma alteração im portan te no curso evolutivo da epopéia, o que é natural. A fusão das d im ensões real e m ítica, que era efetivada, inicialmente, apenas no nível do real, passará a ser elaborada também literariamente, conforme assinalaremos no momento oportuno. Mas isso não descaracteriza a matéria épica, nem altera sua natureza, uma vez que permanecerá reconhecível em suas duas dim ensões fundidas, a real e a mítica, independentemente dessa fusão se efetivar no nível do real ou no âmbito da elaboração literária. Esclareço ainda, para não deixar dúvida, que as dimensões real e mítica permanecem como criações do real, que se dão ao poeta, e este as funde literariamente, mas não as cria. A matéria épica de O G uesa, epopéia de Joaquim de Sousândrade, poeta brasileiro do Romantismo, para servir de exemplo, tem como dimensão mítica uma lenda indígena pré-colom biana, e como dimensão real a história da colonização dos povos americanos, que é pós-colombiana. Sousândrade não criou, evidentemente, nem o mito indígena do Guesa, nem a história da colonização dos povos americanos, mas é claro que a fusão dessas duas dimensões, tão afastadas cultural e temporalmente, só poderia ser processada literariamente, uma vez que o mito indígena não foi uma aderência mítica gerada pelo fato histórico de colonização da América.

1.1.2 A dupla semiotização do discurso épico A epopéia, manifestação híbrida de dois discursos, o narrativo e o lírico, ambos investidos literariamente, define-se pelos padrões literários da narrativa e da lírica, sujeitando-se, portanto, de um lado à elaboração significante das lógicas do espaço, do personagem e do acontecimento e, de

outro, da ação semiotizante das lógicas líricas de reduplicação, sentimentalização e mentação. O discurso épico, correlacionando essas lógicas de acordo com as geratrizes semióticas das retóricas, exerce uma dupla semiotização da matéria épica. De modo que, nos momentos da retórica clássica, a natureza narrativa da epopéia será determinada pela lógica ficcional do espaço e sua natureza lírica pela ação sem iotizante da lógica lírica de reduplicação, nos momentos da retórica romântica, pela lógica ficcional do personagem e pela lógica lírica de sentimentalização e, nos momentos da retórica m oderna, pela lógica ficcion al do acontecim ento e pela lógica lírica de mentação. Assim, posso dizer, seguindo os padrões literários da narrativa, que uma epopéia é de espaço, de personagem ou de acontecim ento, ou que, seguindo os padrões da lírica, exerce a ação sem iotizante a partir das lógicas líricas de redu plicação, de sentim en talização ou de m entação. Mas, se assim o fizer, estarei, em qualquer dos casos, consid erando apenas a natureza narrativa ou lírica da epopéia, e não sua natureza verdadeiramente híbrida. Mesmo porque, correlacionadas, estas lógicas não são autônomas na elaboração significante da epopéia, como o são, separadam ente, na elaboração significante do romance e do poema. Elas sofrem duas restrições na elaboração significante: uma externa, imposta pela natureza da matéria épica que, resultando duma gênese dupla, histórica e mítica, priva as lógicas narrativas e líricas da elaboração sign ifican te plena, restring in d o-as, quase exclusivamente, ao exercício da ação semiotizante; outra interna, imposta pela natureza híbrida do discurso que as obriga, de acordo com as exigências épicas específicas, a uma sobredeterminação

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A n azild o V asco n celo s da Silva

alternativa mútua. Há ainda ou tros a sp ecto s a c o n sid e ra r na c a ra c te riz a ç ã o da ep o p éia em relação aos padrões narrativos ou líricos, segundo o desem penho das lógicas narrativas e líricas. Na n a rra tiv a de fic ç ã o , p o r e x em p lo , as ló g ica s n a rra tiv a s atu am na ela b o ra çã o fic c io n a l da m a téria ro m a n esca e na e s tru tu ra ç ã o da proposição de realidade ficcional no âm bito da qual se realiza a situação existencial im aginária, mediante o conflito do personagem com o espaço. Na ep op éia, o fato h istó rico que dá origem à m atéria épica ocorre no âm bito da im agem de mundo de realidade; logo, o herói épico, como ser histórico, aciona, com o qualquer ser hum ano, as ló g ica s n a tu ra is da e x p e riê n c ia e x iste n c ia l h u m an a, in v estid a s na lín g u a n a tu ra l. Só na ep op éia é que o h eró i e a m atéria ép ica, por c o n seg u in te, são a cio n a d o s p ela s ló g ica s do in v estim e n to lite rá rio no d iscu rso n a rrativ o , devido à neutralização da elaboração significante das ló g ica s n a tu ra is o p e ra d a p ela sem io se literária. Por isso, operacionalm ente, os padrões literários da narrativa de ficção não se aplicam à narrativa épica. C lassificar uma epopéia como de esp a ço ou de p e rso n a g e m , p or ex em p lo , significaria dizer que, na prim eira, o herói é um agente da lógica do espaço, ou seja, age de acordo com os valores cod ificad os e, na segunda, um ag en te da ló g ica do p erso n a g em , isto é, age segundo as motivações de ordem pessoal; mas isso, por si só, não define a natureza épica do herói. A diferença apontada entre as m atérias ép ica e ro m a n e sca , e la b o ra d a s que são, re s p e c tiv a m e n te , p o r d ois in v e stim e n to s sem iológicos diferentes, o da m acro-sem iótica na lín g u a n a tu ra l e o da se m ió tic a lite rá ria no discurso, não afeta diretamente a semiotização das

lógicas líricas, uma vez que a experiência lírica se realiza no âmbito estruturado de uma im agem de mundo histórica, a mesma em que o ser humano realiza sua experiência existencial. M as há de se considerar que há duas proposições de realidade pressuposta: a imediata do eu-lírico (poeta), que determina a concepção literária, e a imediata do eulírico (herói), que é o sujeito da experiência lírica. Por isso o eu-lírico (poeta) sem iotiza a proposição de realidade histórica do herói no espaço lírico, de acordo com a lógica lírica determinada pela geratriz sem iótica da retórica que estrutura sua própria imagem de mundo, e depois insere o espaço lírico no mundo narrado, como expressão subjetiva do eulírico (herói). A ssim ocorre, p or exem p lo, nos famosos episódios líricos de Os lusíadas, de Camões, que, colocados na boca do herói Vasco da Gama, se in se rem no m u n d o n a rra d o , em b o ra a semiotização da proposição de realidade histórica do h eró i se faça a p a rtir da ló g ica lírica de reduplicação, de acordo com a geratriz semiótica da retórica clássica no Renascimento. A epopéia in icia sua trajetória com a predominância da estância narrativa sobre a lírica, alcançando, em sua p rim eira m an ifestação na antiguidade clássica, a preponderância narrativa. A p artir daí, a in stân cia lírica vai assum indo, gradativamente, o desempenho da função estruturante até predominar sobre a instância narrativa, levando a epopéia a alcançar a preponderância lírica em sua manifestação na Pós-modemidade.

2 - Musa carmesim M u s a C a r m e s im , liv r o d e e s tr é ia de

C hristina Ram alho, pu blicad o em 1998, elabora a m arca da individualidade criadora no contexto do P ós-m od ernism o, co n stitu in d o assim , pela

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C arm esim é a cor da m usa

e la b o r a ç ã o lite r á r ia e p e lo q u e stio n a m e n to existencial, um a expressão artística legítim a dos anos 90. D esta co , p rim eira m en te, sem querer invadir o cam po da crítica fem inista, não apenas o fato de ser um a epopéia de autoria fem inina com um h eró i épico tam bém m ulher, ou seja, uma h eroín a, m as tam bém , e p rincip alm en te, o resgate da trajetória da m u lh er aprisionad a no espaço m ítico da arte e no espaço da realidade histórica. A heroín a é, no in ício da partid a, um ser d em iu rg o , c ria tu ra d o a d o ra da n a tu rez a divina e da n a tu re z a h u m a n a , cin d id a em si mesm a e, por isso, sem id entid ad e, um "corp o v ia ja n te sem a lm a " , d is se c a d o na a n a to m ia pictural. N ão é por acaso que a m usa tem nom e de cor e um a alm a sem corpo, estilh açad a na fisiologia do cotid iano. A v ia g em em p re en d id a p ela m usa, descendo do pedestal da arte para pisar o chão do barro o rig in a l, rom p en d o com a im o b ilid ad e d iv in izad a p ara re in te g ra r a h um an a transitoriedade, dá-lhe a dupla condição existencial de ser m ítico (m usa) e h istórico (m ulher), que legitima sua condição épica de heroína. C onquisto o dia na face da noite, no lado onde adorm ecida a m usa espera para despertar. Se musa é alma de poesia, se épicos cantos a revelam no transbordar das palavras no papel, se tudo, enfim , faz-se de sua magia e se ela é veio, vou me entregar... e ficar no anseio esperando a musa

e nesse passeio vamos juntas navegar. Enlaçando o referencial sim bólico do préhumano em que se assenta o mito com o referencial h istó ric o em qu e se a sse n ta a c iv iliz a ç ã o , contextualizados no espaço sígnico das artes e na proposição de realidade histórica, respectivamente, reco n h ece-se, na fu são das d im en sõ es real e mítica, uma matéria épica autêntica. A realização literária dessa m atéria épica, sob a concepção lite rá ria p ó s-m o d e rn a , m a n ife sta n d o su as dim ensões real e m ítica nos planos h istórico e m aravilhoso do poema, legitim a a epopéia. Trata-se de um poema longo, dividido em três partes: a) Corpo Viajante, precedido de um poema abertura, destacado, que lhe serve de proposição, intitulado Canto I Parto não porque queira ou porque seja mais sensato parto porque é outono e eu sou a folha que lentamente derrama na estrada o seu fim. b) Alma Fêmea, precedida também de um poema de abertura, destacado, que lhe serve de proposição, intitulado Des En Canto II Era tanto violeta atravessando a noite tanta melodia a colorir o instante que ali não calei as vozes estremecidas pelo grito urgente do emergente amor. c) Amor índio, precedido igualmente de um poem a de abertu ra, isolad o, que lhe serve de proposição, intitulado En Canto III

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A nazildo V asco n celo s da Silva

Sim, há melodia na canção que te canto no suor que pinga relembrando o desejo ignorado. Assim, senta-te ou me adora de pé. Lambe este suor no transe da melodia. Porque meu am or é poesia e meu desejo é escarlate. A lém disso, há um poem a de abertura, so lto e sem títu lo , que é, ao m esm o tem p o, proposição geral e invocação: Que a m ulher sabia a dor sabia a fome sabia a voz mas não sabia o silêncio e muda engoliu todos os cantos entoou todas as m elodias ensaiou todas as vozes e tudo disse ali na mudez da fome e tudo disse ali no espasm o do seu gozo sem par. Vem, Vênus, e não deixa calado este grito tão aprisionado nas épicas tram as da tradição Renasce da água, renasce do chão, mas renasce em mim o que se perdeu na estrada.

Estes elem en to s exp licitam a intenção lite rá ria é p ica , qu e se c o m p le ta com a referen cialid ad e p oética das m u sas, d ivinas e hum anas, que preenchem o p ercu rso da épica ocidental, no curso da qual M u sa C a rm esim se in sere. O p tan d o p elo d iscu rso ép ico em sua contam inação literária pós-m odernista, a autora soube explorar poeticam ente a dupla instância de enunciação que o caracteriza, a lírica e a narrativa, e a essencialidade lírica de sua m anifestação pósm od ern a. D aí a u tiliz a ç ã o do re c u rso da re fe re n cia ç ã o p o é tic a , de a co rd o com o processamento semiótico da heterorreferenciação, próprio da lírica pós-m oderna, que consiste em fazer dos enunciados poéticos, próprios ou dos o u tro s, a m a té ria do p o e m a , v in c u la n d o -o s signicam ente ao novo referen te p oético, e da h e te ro c o n te x tu a liz a ç ã o n a rra tiv a , re cu rso ca ra cterístico da n arrativ a p ó s-m o d ern a , que consiste em elaborar a proposição de realidade fic c io n a l a tra v é s do re fe r e n c ia l e x te rn o das co n te x tu a liz a ç õ e s h is tó r ic a s , lite r á r ia s e biográficas. A heterorrefefenciação poética faz de M usa Carmesim um poema intratextualizado único, porém tem ática e estruturalm ente m ultifacetado, devido à inserção direta dos enunciados poéticos que referenciam autores, obras e form as artísticas:

Brinquei de verso e de prosa rim ei m usas brasileiras mas restam duas conversas lado avesso no trajeto Fala, Clarice, Fala, Cecília, joguem no mar a mulher-objeto!

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C arm esim é a c o r d a musa

E... Q uase sou Cleópatra de braços dados com M arco António b a ta lh a p erd id a no se rp e n te sco gosto grotesco de morte. Q uase sou Penélope aguardando Ulisses vendo m orrer pretendentes sob o m ítico braço da heróica sorte. Quase sou Helena inim izando Páris e M enelau eternizando a Tróia no cavalo-forte.

e de sabiás já mortos... Me interessam os pés descam ados molhados por secas lágrim as e fome e guerras políticas e discursos vazios brasis perdidos no quadro repulsivo das ausências 5a. Hora Sessenta minutos de pernas como as longas e santificadas pernas de El Greco estendendo-se sobre ó mundo

A h eterocon textu alização, articulada na instância n arrativ a, con figu ra a proposição de realidade h istó rica, que se con strói através de referentes externamente reconhecidos, inseridos na p rim eira p a rte do p o e m a , p or e x em p lo , na alternância frenética dos poem as no transcurso das 24 horas do dia, contrapondo realidade social e realidade artística no dram ático confronto de imagens especulares: 3a. hora E quanta verdade, Caravaggio, nos M ateus sujos e descalços... E quanta sim etria, Leonardo, nos pés que são m eias-cabeças no viajante corpo 7 X A ! Pés em escorço, pés em sim etria, pés rasgando as cores e libertando o mármore. Pés força-de-trabalho pura nas pinceladas de Portinari ! 4a. H ora Pés desta geografia implacável e impiedosa de um a terra de palm eiras entristecidas

Ah... as longilíneas pernas de Degas dançando a dança de um tempo fragmentado cena fotográfica cotidiano de ritmadas pernas bailarinas! Grossas e m orenas pernas prim itivas que criaram um Taiti em todas as pernas gozo de Gauguin em terras estranhas... Pernas enraizadas a em ergirem da pedra av en tu ras de um R od in em tem po de descobertas ■

6a. Hora Falo das pernas aposentadas Perfiladas nos Banerjs e Bancos dos Brasis! Pernas que morrem no compasso da espera Falo das pernas desta terra sem-terra Catando um resto de chão Tal qual bandeirante a procurar esmeraldas Na lata de lixo onde não há sequer pão! O poema articula-se na prim eira pessoa, através de um eu metonímico presentificado, que

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A n azild o V asco n celo s da Silva

é, ao m esm o, eu lírico , n arrad or e heroína. A elaboração literária da m atéria épica, através da reintegração da expressão subjetiva do eu/herói na proposição de realidade histórica que a gerou, vai possibilitar a viagem inesperada da heroína, da dim ensão m ítica para a dim ensão real, em busca do resgate de sua identidade histórica. Ela parte do sem tem p o e sem lu g a r, ín d ices da atem poralidade e da aespacialidade m íticas, para o lu g a r e o tem p o da v id a , ín d ic e s da tem poralidade e da espacialidade históricas. O h e ró i ép ico p re cisa de um a d u p la co n d içã o existencial: a hum ana, que lhe perm ite agenciar a dim ensão do real histórico, e a m ítica, que lhe p erm ite a g e n cia r a d im en sã o m ítica do real m a ra v ilh o so . A s m u sa s, ou são d eu sas por n a tu re z a , ou h u m a n a s de o rig e m , m as que optaram pela im ortalidade divina, conservando, por isso m esm o, ap en as sua n atu reza m ítica. Destituídas da condição histórica, não podem se deslocar do plano m aravilhoso, de m odo que só são alcançadas pela transcendência dos heróis. Por isso, a M usa Carm esim precisa resgatar sua co n d içã o h u m a n a p ara p isa r o so lo do real histórico e parte em busca de um corpo, numa v ia g em de re g re sso do m u n d o d as form as plásticas, em que está eternizada pela beleza, para o m u n d o das fo rm a s h u m a n a s, e fê m e ra s e tran sitó rias, num con trap on to pu n gen te, pois humanizar-se implica, igualmente, humanizar a dor. Quantas maravilhosas faces te construíram, Bela H istória ! Como lam entaram as faces de Giotto... Quanta candura em Fra Angélico... Que Marias tão lindas como as de Rafael ? Ah, Ticiano, que fascínio em tantos retratos da história !

E q u an ta g ló ria , R u b e n s, em tua tão merecida fama ! São faces-presentes presentes nossos (tão espectadores dessa vida que a arte transborda). E a em o ção se v o lta p ara as faces de Vandyke, Velázquez e Frans Hals E os olhos se entorpecem nos auto-retratos de Rembrandt, entrega pura, telas de divã. V a i, S an ta T e re sa , co n tin u a a nos presentear com o êxtase da tua barroca visão, enquanto Miss Bowles - doce e meiguice abraça seu cãozinho e nos olha. Q u an tas m a ra v ilh o s a s fa ces te construíram , Bela H istória ! Me falam desconhecidas faces sem faces olhos sem brilho bocas com tédio dos beijos pescoços sem procura do cheiro ouvidos sem som, sem m úsica, narizes sem aroma faces de sombra ! Dançam marionetes estas faces sem vida trabalho trânsito banco m arm ita stress enchentes doenças circunstâncias C om o re s g a te do co rp o que estav a aprisionado nas artes plásticas, a musa se torna m ulher e m ortal, mas é preciso resgatar a emoção que anima o corpo, a alma, aprisionada na música e na literatura. A M usa em preende então, nesta

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C arm esim é a cor da m usa

segu n d a p a rte, D es En C an to II, um a nova cam in h a d a , a tra v és do m u n d o das v ib rações sonoras e dos signos, fazendo um contraponto das vozes e das em oções das m usas eternizadas no g ran d e g esto da su b lim a ç ã o , com a em oção degrad ad a da existên cia anônim a e das vozes suplicantes da angústia e da m iséria humanas. Busco as m ulheres de brasilidade sofrida e encontro o m acho na contrapartida. É uma Isabel aqui uma Ana N éri acolá enquanto infinitas lustraram as armaduras e se puseram nuas, cum prindo deveres. A H istória continua mas eu preciso me alim entar e alço o vôo da outra sinfonia chega dessa m ania de lam entar...

epopéia. N ão é por acaso que este herói, préexistente ao herói guerreiro encarnado no processo civilizatório, seja o índio, agente do referencial sim bólico do pré-hum ano, ainda não corrompido pelo referencial histórico da civilização. Não índio arrolado no processo civilizatório, seduzido pelos instrum entos de poder e violência do progresso, literariamente colonizado. Mas não traga Caramuru nem arma de fogo nem fogo de isqueiro. Quero a lança primitiva a pura essência do índio desejo. Mas não traga Cererê nem Norato nem Saci. mas o índio do ser prim ordial:

Agora, a Musa tem corpo e tem alma, o que lhe confere a condição hum ana e o estatuto épico de heroína, podendo então transitar livremente de um a d im e n sã o p a ra a o u tra , p ro v o ca n d o a interação dos planos estru turais da epopéia, o maravilhoso e o histórico, através da qual se fundem as dimensões real e mítica da matéria épica. Na terceira parte, En Canto III, a heroína empreende, enfim , sua viagem individualizadora, cam inhando agora do real m aravilhoso da épica ocid ental, onde ja z ia ap risio n ad a, para o real histórico, refazendo, através do contraponto dos feitos épicos dos heróis com os feitos históricos dos homens, o percurso da epopéia e da História. A fin al lib erta do con texto de força e violência, perseguições e guerras, em que estivera encarcerada com o musa e como mulher, a heroína parte em busca do seu herói, o herói de uma nova

Quero o índio escondido de qualquer tribo tupi ou de qualquer outra tribo que nem mesmo viva aqui. Quero o rosto escondido fitando esta epopéia particular. Quero só e apenas um herói para amar. Ainda que o herói, perdido ser no mundo, nem saiba o que é ser herói nem saiba o quanto me dói esta epopéia particular. Resta dizer, para term inar, que a heroína, fundindo a musa m atricial e a Eva ancestral na id e n tid a d e fe m in in a , in teg ra na sua v iag em individualizadora a travessia histórica da mulher na arte e na vida.

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A n azild o V asco n celo s da Silva

Conclusão Quanto ao gênero, M usa Carmesim se define como epopéia e, quanto à concepção literária, como uma obra pós-m oderna. Juntando as duas coisas podemos dizer, então, que se trata de uma epopéia pós-moderna. O gênero épico, dado por esgotado no sé cu lo X V I, e in c o rp o ra d o ao n a rra tiv o , segundo uma crítica apressada, que não soube recon h ecer a p erm a n ên cia da trad ição ép ica, presente que esteve em todos os m ovim entos literários, ressurgiu, com todo o vigor, no século X X , de que são e x em p lo s no m o d ern ism o brasileiro, obras com o M artim C ererê, de Casiano Ricardo; Cobra Norato, de Raul Bopp; Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima; Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, e tantas outras. A faceta mais surpreendente de M usa Carm esim não está, porém, em ser uma epopéia, m as uma epopéia de autoria fem inina, um a vez que esta form a artística de e x p re ssã o lite rá ria tem sid o , com ra ríssim a s exceções, exclusividade dos poetas e, mais ainda, em destacar-se, dentro das exceções da épica de autoria fem inina, por ter como sujeito épico uma heroína, projetando a personagem fem inina na galeria seleta dos heróis épicos.

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OITO CONVERSAS, A MESMA*

R E SU M O : Este trabalho é uma pequena apresentação ou mostra da coluna dedicada à literatura contemporânea no Jornal O Povo, em Fortaleza, Ceará, desde 1992 e, mais efetivamente, a partir de 1997 até os dias de hoje, com artigos, resenhas e entrevistas sobre e com autores vivos (algumas vezes). A coluna / página é dividida por Manoel Ricardo de Lima e Carlos A ugusto Lima .

Palavras-chave: literatura contem porânea; jornal O Povo

Carlos Augusto Lima Universidade Federal do Ceará

Manoel Ricardo de Uma U n iv e rsid a d e F e d e ra l de Santa Catarina (Doutorando)

* Ensaio recebido em dezembro de

2004

A B ST R A C T : This work is a small presentation or sam p lefro m the colum n dedicaded to the contem porary litera tu re, in O Povo N ew sp a p er, fro m Fortaleza, Ceara, sin ce 1 9 9 2 , but specially fro m 1 9 9 7 u n til these days. Contaning articles, think pieces, and interviews about and zvith living authors (som etim es). The colum n /p a g e is divided by M anoel Ricardo de Lima and Carlos A u gu sto Lima.

Keyw ords: contemporary literature; O Povo Newspaper Em 1992 teve início nosso trabalho no Jorn al O Povo, em Fortaleza, Ceará, no segundo caderno, chamado Vida & Arte. O Povo é o jornal mais importante do estado, mais antigo e, também, o que mais abre brechas para os textos de seus colaboradores. Tem um projeto gráfico invejável e tenta acom panhar de perto uma m elhor forma, sem pre, de fazer jornalism o. Em nenhum mom ento deixa a dever a outro periódico do país, nem graficam ente e nem no que se refere aos conteúdos de suas páginas - obviam ente, com altos e baixos. Com o a vida. Assim, a partir de 1997 estávamos configurados como articulistas do jornal, com total liberdade de pauta e gesto com nossos textos. De 1998 até os dias de hoje escrevemos em dias fixos. Já foi aos sábados, aos domingos e, agora, por último, às terças-feiras. A última página do caderno é inteiramente dedicada à literatura e seus diálogos, dobras, brechas, possibilidades e avessos. A página é feita dentro de um revezamento entre nós, Carlos e M anoel, mais o Jorge Pieiro, bom prosador e de conversa sempre larga. A cada terça-feira, cada um dá a ver sua caprichosa e leve lengalenga de texto. M u ito recen te, Jo se ly V ian n a B ap tista e F ran cisco Faria publicaram um livro, M usa paradisíaca, que era título da página de cultura que editaram durante um bom tempo na Gazeta do Povo, de Curitiba, e no jornal A Notícia, de Joinville, para dar mostra deste trabalho sério e rigoroso e do que ainda pode ser feito, assim, em

C arlos A ugusto Lim a

páginas de jornal. Não custa ir longe e lem brar da p á g in a e d ita d a p o r M á rio F a u stin o , P o esia experiência, entre os anos 1950 e 1960, no SDJB, no Rio de Jan eiro . T rab alh o que tam bém está publicado em livro, ou uma am ostra dele. Assim, pensando nisso (e numa dista para entender m elhor este país de desvios), e numa tentativa de dizer que existe sim , e bem mais do que c o n seg u e ir a ch a n d o o d e sa v isa d o , o conformado ou o preguiçoso (ou o ignorante, o que se basta), que pensa que o Brasil se resolveria entre Rio de Janeiro e São Paulo, que topamos o convite da Cerrados pra m ostrar um pouco do que é feito há ta n to tem p o em term o s de lite ra tu ra contem porânea brasileira na nossa página, e que reunirem os em livro no ano de 2005. O gesto da página é para dar sentido e ampliar o que não está p o sto a ssim , fá c il, c o m e rc ia lm e n te . Sem p re topamos o mais largo, o mais longe, a brincadeira, para dizer que fazem os uma espécie de Feira da Prim avera em nossos artigos. Mas tanto faz o nó: editoras pequenas, médias, grandes, livros com 50, 100, 82 ou 15 exem p lares a tiragem , ou m il... Interessa, para nós, o que tem a ver com nossa própria produção de poesia, venha de onde vier ou que, m uitas vezes, venha e seja uma produção que passe por nossos am igos. M as assum im os isso, com muita tranqüilidade, porque tudo o que é neutro é mito. A idéia é sem pre esticar a conversa com alguma delicadeza para o texto, dar a notícia de algo que está posto ali para ser afirmado em algum eixo de ajuste com a nossa m ão; serenam ente. M esmo que este algo, em seu recorte, atravesse também um nosso diferente, um nosso outro, um tempo difuso e contrário. Porque temos nossas d ife r e n ça s , am ém , em jo g o e p o sta s m u ito

tranqüilam ente na mesa. Com o o texto tomasse sentido de conversa regada a água de coco: uma afirmativa, sempre. Aqui, optamos por trazer oito desses textos, que dem arcam uma certa produção de poesia de 2000 pra cá, ou livros p u blicad os no período, mesmo que reedições. Traçam os um revezamento de au tores, tem as, assertiv as e descan so. Não a lte ra m o s os te x to s, e les e s tã o co m o foram publicados; apenas o serviço que a coluna traz foi retirado; mas os textos se indicam , com o a data, por exem plo, a partir do ano em que os livros usados como objetos da coluna foram publicados. Traçam os, também, um revezam ento nosso, para apontar as diferenças na conversa. E usam os um pequeno indicador em sigla para lem brar quem escreve ao final de cada um dos textos. Usamos C A L p ara C arlo s A u g u sto Lim a e M R L para M anoel Ricardo de Lima. LUXUOSO MARGINAL ... penso no meu amor lendo Drummond. com lentes de contato nervosa e linda sublinhando adjetivos ... (Luís Olavo Fontes) C aríssim os leitores, venho através desta lhes comunicar que o Cacaso, m arginal-poeta, está à solta, de novo. A gora com p leto, sem cortes, v iv in h o na p a la v ra . O p o e ta b a ca n in h a , desencanado com as coisas, volta num a antologia luxuosa, fruto da troca de passes entre as editoras 7 L etra s e C o sa c
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