Araraquara

May 7, 2017 | Author: Anonymous | Category: N/A
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RODRIGUES, A. K. A Viagem no Cinema Brasileiro: Panorama dos Road ...... Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Qu...

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ANAIS XIII SEMINÁRIO DE PESQUISA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS: RELAÇÕES INTERSEMIÓTICAS E I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE SEMIÓTICA

15 a 19 de outubro de 2012

UNESP – Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara

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Vice-Reitor no exercício da Reitoria Julio Cezar Durigan Diretor José Luis Bizelli Vice-Diretor Luis Antonio Amaral Comissão Organizadora Adalberto Luis Vicente Brunno Vinicius Gonçalves Vieira Cristiane Passafaro Guzzi Márcio Thamos Marco Aurélio Rodrigues Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Maria Teresa de França Roland Comissão Científica Arnaldo Cortina Elisabeth Brait Diana Luz Pessoa de Barros Diana Junkes Martha Toneto Lúcia Teixeira de Siqueira e Oliveira José Luiz Fiorin Jean Cristtus Portela Sérgio Vicente Motta Ivã Carlos Lopes Rejane Cristina Rocha Renata Maria Facuri Coelho Marchezan Tânia Pelegrine Apoio

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SUMÁRIO Lista de Autores – Projetos de Pesquisa Alejandro Gonzáles Urrego................................................................................................ 7 Alessandro Yuri Alegrette................................................................................................ 11 Alexandre Silveira Campos.............................................................................................. 15 Aline Taís Cara Pinezi ..................................................................................................... 19 Allyne Fiorentino de Oliveira........................................................................................... 27 Amauri Faria de Oliveira Filho ........................................................................................ 32 Ana Carolina Negrão Berlini de Andrade ......................................................................... 37 Ana Paula Dias Ianuskiewtz............................................................................................. 49 André Luiz Rodriguez Modesto Pereira ........................................................................... 58 Andrea Cristina Martins Pereira ....................................................................................... 63 Audrey Castañón de Mattos ............................................................................................. 69 Beatriz Moreira Anselmo ................................................................................................. 77 Candice Angélica Borborema de Carvalho ....................................................................... 82 Carlos Eduardo Monte ..................................................................................................... 91 Cátia Cristina Bocaiuva Maringolo .................................................................................. 99 Cristal Rodrigues Recchia ...............................................................................................103 Cristiane Passafaro Guzzi................................................................................................109 Daiane Rassano...............................................................................................................116 Daniel Rossi ...................................................................................................................123 Daniela Aparecida da Costa ............................................................................................128 Emerson Cerdas ..............................................................................................................139 Érika Bergamasco Guesse ...............................................................................................144 Fabiana Abi Rached de Almeida .....................................................................................152 Fabiana Angélica do Nascimento ....................................................................................156 Fábio Gerônimo Mota Diniz ...........................................................................................162 Fabiola Maceres Silva.....................................................................................................173 Fernando Góes................................................................................................................180 Franco Baptista Sandanello .............................................................................................184 Giulliana Santiago...........................................................................................................190 Hellen Viviane Rodrigues ...............................................................................................197 Isabella Unterrichter Rechtenthal ....................................................................................204 Islene França de Assunção ..............................................................................................211 Jacob dos Santos Biziak ..................................................................................................217 Joana Junqueira Borges...................................................................................................222 Joana Prada Silvério........................................................................................................226 João Jorge da Silva Pereira..............................................................................................232 Joyce Conceição Gimenes Romero .................................................................................236 Júlia Mara Moscardini Miguel ........................................................................................242 Julio Cezar Bastoni da Silva............................................................................................247 Kedrini Domingos dos Santos.........................................................................................254 Laura Lopes de Oliveira..................................................................................................257 Leonardo Vicente Vivaldo ..............................................................................................262 Levi Henrique Merenciano..............................................................................................270 3

Ludmila Giovanna Ribeiro de Mello ...............................................................................278 Marco Aurélio Rodrigues................................................................................................284 Marcus Vinícius Benites .................................................................................................291 Mariana Bravo de Oliveira ..............................................................................................299 Mariana Funes ................................................................................................................306 Mariana Veiga Copertino Ferreira da Silva .....................................................................312 Mariângela Alonso..........................................................................................................316 Marília Gabriela Malavolta .............................................................................................320 Marli Cardoso dos Santos ...............................................................................................327 Naiara Alberti Moreno ....................................................................................................335 Natali Fabiana da Costa e Silva .......................................................................................340 Natália Pedroni Carminatti..............................................................................................345 Natasha Vicente da Silveira Costa...................................................................................352 Olívia Dias Queiros ........................................................................................................358 Patrícia Aparecida Antonio .............................................................................................363 Patrícia Helena Baialuna de Andrade ..............................................................................370 Patricia Magazoni Gonçalves ..........................................................................................375 Paula Aparecida Volante.................................................................................................387 Pollyanna Souza Menegheti ............................................................................................393 Priscila Maria Mendonça Machado .................................................................................402 Rafael Trindade dos Santos.............................................................................................406 Raíssa Medici de Oliveira ...............................................................................................411 Regina Alves Mendes .....................................................................................................416 Renata Acácio Rocha ......................................................................................................422 Renato Alessandro dos Santos.........................................................................................429 Rosana Munutte da Silva ................................................................................................436 Rosária Cristina Costa Ribeiro ........................................................................................444 Roseli Deienno Braff ......................................................................................................451 Rosilene Frederico Rocha Bombini.................................................................................460 Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero ...........................................................................468 Sílvio Fávero ..................................................................................................................475 Tais Matheus da Silva .....................................................................................................481 Thalita Morato Ferreira ...................................................................................................486 Thiago Buoro..................................................................................................................491 Thiago dos Santos Jerônimo............................................................................................501 Vanessa Aparecida Ventura Rodrigues............................................................................510 Vanessa Chiconeli Liporaci.............................................................................................515 Waleska Rodrigues de M. O. Martins..............................................................................522

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Lista de Autores - Comunicações Alessandro Yuri Alegrette...............................................................................................528 Alexandre Silveira Campos.............................................................................................539 Amauri Faria de Oliveira Filho .......................................................................................545 Ana Carolina de Picoli de Souza Cruz.............................................................................551 Ana Cláudia da Silva ......................................................................................................558 Ana Claudia Rodrigues ...................................................................................................569 Ana Paula Dias Ianuskiewtz............................................................................................583 Andrea C. Martins...........................................................................................................592 Andressa Cristina de Oliveira..........................................................................................597 Ane Carolina Randig Tavares .........................................................................................608 Antônio Jackson de Souza Brandão.................................................................................617 Camila Cristina Branquinho Barbosa Tozzi.....................................................................641 Camila de Araújo Beraldo Ludovice ...............................................................................649 Caroline Talge Arantes ...................................................................................................660 Claudia C. Valladares .....................................................................................................665 Claudia Fernanda de Campos Mauro...............................................................................674 Cleyton Vieira Fernandes................................................................................................684 Cristiane Passafaro Guzzi................................................................................................697 Daiane Carneiro Pimentel ...............................................................................................708 Daniela Aparecida da Costa ............................................................................................723 Daniela Ramos de Lima ..................................................................................................733 Edvanda Bonavina da Rosa.............................................................................................743 Érika Bergamasco Guesse ...............................................................................................761 Euzenir Francisca da Silva ..............................................................................................768 Fabiana Abi Rached de Almeida .....................................................................................779 Fabrícia Silva Dantas ......................................................................................................786 Fabrício Floro e Silva......................................................................................................802 Flavia Karla Ribeiro Santos ............................................................................................812 Franco Baptista Sandanello .............................................................................................821 Gabriela Alias Rios .........................................................................................................830 Gabriela Aparecida dos Santos........................................................................................838 Isabella Unterrichter Rechtenthal ....................................................................................845 Jânder Baltazar Rodrigues...............................................................................................851 Jéssica Cristina Celestino ................................................................................................857 Júlia Mara Moscardini Miguel ........................................................................................871 Júlio César Souza de Oliveira..........................................................................................884 Larissa Cristina Arruda de Oliveira .................................................................................891 Leonardo Vicente Vivaldo ..............................................................................................901 Levi Henrique Merenciano..............................................................................................909 Lucas da Silva Roberto ...................................................................................................924 Lucas Takeo Shimoda .....................................................................................................933 Luciano Barbosa Justino .................................................................................................948 Luciano Marcos Dias Cavalcanti.....................................................................................957 Ludmila G. Ribeiro de Mello ..........................................................................................966 Luiz Carlos Pedrosa Torelli.............................................................................................982 5

Marco Aurélio Rodrigues ................................................................................................994 Marcos Rogério Martins Costa......................................................................................1002 Maria Goreti Silva Prado ..............................................................................................1017 Mariana Veiga Copertino F. da Silva ............................................................................1032 Mariângela Alonso........................................................................................................1038 Natasha Vicente da Silveira Costa.................................................................................1050 Patrícia Aparecida Antonio ...........................................................................................1056 Patrícia Margarida Farias Coelho ..................................................................................1063 Philipe Tocci.................................................................................................................1074 Raquel Silveira Fonseca ................................................................................................1082 Ravel Giordano Paz ......................................................................................................1091 Regina Alves Mendes ...................................................................................................1102 Renata Cristina Duarte..................................................................................................1110 Renato Alessandro dos Santos.......................................................................................1120 Rodrigo Fontanari.........................................................................................................1127 Roseli Deienno Braff ....................................................................................................1148 Sandro Tôrres de Azevedo ............................................................................................1153 Sérgio Mauro ................................................................................................................1162 Joana Junqueira Borges.................................................................................................1167 Luiz Henrique Pereira ...................................................................................................1175 Matheus Nogueira Schwartzmann .................................................................................1175

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I – PROJETOS DE PESQUISA

A CONSTRUÇÃO METAFICCIONAL DO CORPO DE EVITA NO ROMANCE SANTA EVITA DE TOMÁS ELOY MARTÍNEZ Alejandro Gonzáles Urrego (PAEDEX) Maria Dolores Aybar Ramírez Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O objetivo da minha pesquisa é analisar a reconstrução metaficcional do corpo de Evita Perón no romance Santa Evita (1997), do escritor argentino Tomás Eloy Martínez, onde este se converte no personagem principal do enredo. Assim, Martínez reconstrói, com ajuda de diferentes elementos metaficcionais, um corpo que em vida adquiriu poder, e depois de morto esse poder se tornou ainda maior. A obra mostra uma Evita cheia de vida, intrépida, ágil, ativa e, acima de tudo, muito querida pelas classes menos favorecidas do povo argentino. Sendo a Primeira Dama da Argentina, ela costuma mostrar-se em público sempre mostrando um corpo formoso, com o cabelo arrumado vestido com roupas de Cristian Dior, jóias brilhantes; uma atitude que demonstrava um propósito muito claro: expressar aos descamisados, que eles também podem realizar seus sonhos, escapar da miséria e ter êxito, como ela. Mas, por outro lado, Tomás Eloy durante o desenvolvimento da trama, apresenta o corpo embalsamado dela, que recobra a voz através da leitura, expõe uma série de sentimentos contraditórios. Além disso, Evita mesmo morta, desperta medo nos oligarcas e militares, uma vez que eles acreditavam que se em vida ela tinha sido uma poderosa inimiga, com sua morte ela se tornaria ainda mais forte. No entanto, para os pobres, Evita se converteu em um símbolo de esperança: a ponto de eles a considerarem uma mulher santa, capaz de realizar atos milagrosos. É a partir desses eventos que o autor faz uma reconstrução metaficcional apoiando-se nos testemunhos de pessoas, de diversas camadas sociais e que conviveram com Evita. Cada qual, de alguma maneira, manifesta seu direito de propriedade sobre o cadáver embalsamado da ex Primeira Dama.

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Além disso, Evita usa sua feminilidade para expressar-se através do corpo, para ascender ao poder e penetrar em um mundo controlado pelos homens. Casar-se com Perón foi à oportunidade de sua vida, que garantiu o exercício do poder por vontade própria. É importante enfatizar que ela também exerceu o poder de maneira radical nas pessoas ou instituições que a criticam. Com o apoio do povo argentino, Evita sonha com um país igualitário, justo e sem pobres. Mas, para conseguir alcançar esse objetivo, ela tem que eliminar aos seus adversários: os oligarcas. O cadáver embalsamado de Evita é o desejo de ser lembrada, de nunca ser esquecida, expressando a insistência de um espírito que resiste em abandonar a matéria humana. Permanecendo assim, imortal e purificada em um corpo espiritual, que o povo acreditava ser capaz de convertê-la em uma santa que regressará como a “mãe guiadora e protetora de seus filhos”. O objetivo desta pesquisa é analisar a reconstrução do corpo de Evita no romance Santa Evita de Tomás Eloy Martinez. Assim, se torna necessário primeiro definir claramente o conceito de corpo utilizando diferentes abordagens teóricas que nos ajudarão a ampliar a visão sobre esse tema. Também pretendo demonstrar o processo de construção metaficcional do discurso narrativo do romance. A construção metaficcional do corpo de Evita. O trabalho de Tomás Eloy Martínez no romance Santa Evita está orientado para reconstruir o corpo de Evita em duas etapas: um corpo vivo que adquiriu poder junto com o general Perón, mas, quando ficou embalsamada, adquiriu um poder ainda maior. A reconstrução metaficcional do corpo de Evita é apresentada no romance através dos testemunhos de pessoas que conviveram com ela ou a conheceram em diferentes momentos de sua vida. Mas também, as testemunhas das pessoas que ficaram com ela depois de embalsamada pelo vente anos seguintes. Essa reconstrução não tem um caráter unitário, mas sim se fraciona em lembranças de sujeitos que pertencem as diferentes classes sociais, cada um, descrevendo-a de forma diferente, de modo a criar uma personalidade multifacetada. Para seus fiéis seguidores, as massas e os descamisados, o corpo de Evita se torna um símbolo da luta armada nos anos 70; uma luta que também se expressa no slogan “Perón ou

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morte”, variação de “A vida por Perón” e que aparece nas margens do peronismo dissidente ansioso por ocupar o centro político. É aqui onde o corpo de Evita recupera sua voz, seu desejo de poder, justiça, igualdade e seu grito de guerra. Portanto, a reconstrução metaficcional do corpo apresentada no romance, delimita as diferentes fases da vida de Evita: de menina pobre e filha bastarda a Primeira Dama da Argentina, que mesmo depois de morta se transformou em um ícone cultural e político. Estágio atual da pesquisa No presente momento, o trabalho de pesquisa encontra-se em sua fase inicial. Até agora foram realizadas leituras e fichamentos de alguns livros que integram a bibliografia e analisam alguns tópicos concernentes à memória, a relação entre a Historia e a ficção e a metaficção. São eles: Tempo passado de Beatriz Sarlo, História e Memória de James Le Goff, Ficção de Catherine Gallagher, A ficção de Karlheinz Stierle. É possível comprovar que os principais temas inseridos nos textos escritos por esses autores são: o relato testemunhal, diferentes tipos de memória, e os recursos narrativos usados na metaficção. Todos eles pertinentes ao objeto de estudo deste trabalho de pesquisa. Conclui-se nesta fase inicial da pesquisa que o romance de Martínez propõe a reconstrução metaficcional do corpo de Evita Perón, como estratégia para recuperar um pensamento nacional e reafirmar o papel da mulher na memória coletiva do povo argentino. Bibliografia ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ____ . Notas de literatura 1. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2003. BAUDRILLARD, Jean. A precessão dos simulacros. In: ____ Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d´Agua, 1981. CHNAIDERMAN, Miriam. Estudos em Teoria Psicanalítica, artigos sobre Esfarelando tempos não ensimesmados, Rio de Janeiro: Agora, July/dec 2003, vol. 6 no 2. COMPAGNON, A, O trabalho da citação. Trad. Cleonice P.B. Mourão. Belo Horizonte: Ed. Da UFMG, 2007.

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FOUCAULT, Michel. -“Poder-cuerpo” En islas Hilda, de la historia al cuerpo y el cuerpo a la danza, Conaculta, México, 2001. GALLAGHER, Catherine. Ficção, In: MORETTI, F. (org.) O romance 1: A cultura do romance. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. GIVONE, Sergio. Dizer as emoções, a construção da interioridade no romance moderno. In: MORETTI, F. (org.). O romance 1: A cultura do romance. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Traduçao de Beatriz Sidou, São Paulo: Centauro, 2006 HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo, Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1991. HUYSSEN, Andreas. Passados presentes. Da sedução pela memória à análise de nós mesmos. Tradução de Sergio Alcides. Seleção de Heloisa Buarque de Hollanda. 2ª . Ed Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. JAMES, Henry. A arte da ficção, Trad. Daniel Piza. Seleção de Antônio Paulo Graça, São Paulo, Editora Imaginário, 1995. LE GOFF, James. História e Memória. Tradução Bernardo leitão. Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990. MARTÍNEZ, Tomás Eloy. Santa Evita. Tradução Sérgio Molina. Companhia Das Letras, 2da Edição, 1997. RICOEUR, Paul. A memória, a história o esquecimento. Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1998. SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa freire d`auiar. São Paulo: Cia. Das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. STIERLE, Karlheinz. A ficção. Novos Cadernos do Mestrado, Trad. Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Caetés, 2006. Crítica Literária sobre Evita ACOSSANO, Benigno. Eva Perón, su verdadera vida. Editorial Lamas, Buenos Aires, Argentina, 1955. ALBORNOZ DE VIDELA, Gabriela. Evita. Editorial Luis Lasserre, Buenos Aires, Argentina, Sin fecha.

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ARA, Pedro. El caso Eva Perón. Editorial CVS, Madrid, España, 1974. BARNES, John. Evita. La biografía. Editorial Thassalia, Barcelona, España, 1997. BARNES, John. Eva Perón: la vida legendaria de una mujer; la más amada, la más odiada, que todo el mundo conoce como Evita, Hechos reales. Madrid, España, 1979. BAUNMGARTNER, Juana M. La anti-virgen Evita. Editorial Parteluz S.L, Madrid España, 1997. CASTIÑEIRAS, Noemi. Ser Evita, síntesis Investigaciones”, Buenos Aires, Argentina, 2001.

biográfica.

Instituto

Nacional

de

DUJOVNE ORTIZ, Alicia. Eva Perón, la biografía. Editorial Aguilar 1ra edición, Buenos Aires, Argentina, 1995.

AS METAMORFOSES GÓTICO-ROMÂNTICAS NO DISCURSO NARRATIVO DE WUTHERING HEIGHTS, DE EMILE BRONTË Alessandro Yuri Alegrette (FAPESP) Karin Volobuef Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O objetivo da presente pesquisa é tratar do romance Wuthering Heights – O Morro dos Ventos Uivantes (1845), de Emily Brontë. A espinha dorsal de nossa abordagem é propor a discussão sobre a configuração gótica específica explorada pela autora no enredo de sua narrativa. Para grande parte da crítica literária, o romance de Brontë é uma obra híbrida: a primeira parte é gótica e a segunda realista. Por outro lado, outros estudiosos afirmaram que existe uma tendência mais forte dessa obra ser plenamente inserida no gótico, pois neste romance, Brontë além de ter retomado temas recorrentes nessa modalidade literária, tais como, o conflito entre o bárbaro e o civilizado, a dissolução entre as fronteiras entre o eu e o outro, o natural e o sobrenatural e motivos que a caracterizam (o duplo, fantasmas, criaturas sobrenaturais). Do ponto de vista da construção da narrativa, a obra combina essa atmosfera gótica com uma vertente romântica que, pode ser definida como “Byroniana”, onde se destaca a presença do herói romântico condenado a um pathos trágico e, que se caracteriza por suas 11

intensas demonstrações de sensibilidade. Dessa forma, O morro dos ventos uivantes, a exemplo de Frankenstein, de Mary Shelley, pode ser considerada uma obra que faz uma síntese do chamado “gótico-romântico” no século XIX. Além disso, a autora em seu discurso narrativo também faz alusões ao plano metafísico, remetendo assim a vários conflitos de oposição, que são sempre destacados no discurso narrativo dos romances góticos: o bem e do mal, o céu e o inferno, o natural e o sobrenatural. Assim, apesar dessa obra ter sido analisada criticamente em ensaios dentro de diferentes abordagens teóricas, mesmo após tanto tempo de sua publicação, O morro dos ventos uivantes continua suscitando questionamentos dentro do meio acadêmico sobre seu processo de criação, sua configuração gótica específica, que se diferencia de outras narrativas inseridas nesse tipo de literatura, seus pontos de intersecção com textos inseridos no gótico ou, com outras obras que mantêm uma relação de proximidade com esse gênero literário, tornando-se assim objeto de estudo deste projeto de pesquisa. Estágio atual da pesquisa No presente momento, o trabalho de pesquisa encontra-se em sua fase inicial. Até agora foram realizadas leituras e fichamentos de alguns livros que integram a bibliografia e analisam a relação de proximidade entre o romance gótico e o romantismo inglês. São eles: Gothic, de Fred Botting, The literature of Terror de David Punter, The Cambridge companion to gothic fiction, de Jerrold E. Hogle, The romantic agony, de Mario Praz, The Gothic Novel, de Victor Sage, The Gothic flame, de Devendra Varma e Introdução à literatura fantástica, de Tzvetan Todorov. Nessa primeira fase, com o propósito de se verificar como ocorre o diálogo intertextual entre a literatura gótica e o movimento romântico, foi iniciada a leitura de obras (poemas e dramas em prosa) dos seguintes poetas ingleses: Samuel Colerigde, William Wordsworth, Percy Shelley, John Keats e Lord Byron, esse último muito admirado por Emile Brontë. Ainda sobre Byron é possível constatar que os personagens de seus escritos e, até mesmo o próprio poeta, que era conhecido por seu comportamento instável e rebelde, teriam servido de inspiração para a criação do protagonista do romance de Emile Brontë: Heatchcliff, que se destaca mais pelos seus defeitos que por suas qualidades e também se

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assemelha a outros vilões que aparecem em outras narrativas góticas publicadas na metade do século XVIII. Também é possível comprovar que os principais temas inseridos nos textos escritos por esses autores românticos, tais como: o isolamento, a alienação da realidade, o sublime como experiência estética, a rebeldia, a solidão e a morte estão presentes no discurso narrativo de Wuthering Heights. Conclui-se nesta fase inicial da pesquisa que esse romance de Emile Brontë, além de estabelecer pontos de intersecção com Frankenstein, outra obra considerada góticoromântica, também pode ter mantido uma relação intertextual com outras obras que apresentam elementos românticos, ou góticos em sua composição e foram escritas anteriormente à sua publicação. Assim, é provável que Wuthering Heights tenha sua origem na combinação da configuração gótica, que remonta a metade do século XVIII, com o romantismo inglês do século XIX, em sua vertente “Byroniana”, onde se destacam diversas relações de oposição, mas que de algum modo se tornam ambivalentes dentro de seu discurso narrativo. Bibliografia BRAVO, NICOLE. Duplo. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Tradução Carlos Sussekind e outros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. BOTTING, Fred. Gothic. London: Routledge, 1996. BRONTË, Charlote. Jane Eyre. Oxford: Oxford University Press, 1998 [1847]. BRONTË, Emile. O morro dos ventos Uivantes. Introdução, tradução, notas e dossiê: Renata Maria Parreira Cordeiro e Eliana Gurjão Silveira Alambert. São Paulo: Landy, 2005. ______. O morro dos ventos uivantes. Tradução Raquel de Queiroz. Nova Cultural: São Paulo, 1995. _____. Whutering Heigths. New York: Oxford University Press, 1950 [1847]. BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Tradução Carlos Sussekind e outros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias sobre o

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sublime e do belo. Tradução Enid Abreu Dobránzky. Campinas, S. P.: Papirus, 1993. COX, Jefrey. Keat’s Poetry and Prose. New York: W. W. Norton & Company, Inc, 2009. FRANK, Katherine. Emily Brontë – A chainless soul. London: Penguin Books, 1992. GILBERT, Sandra & DUBAR, Susan. Looking Oppositely: Emile Brontë’s Bible of Hell. In: ______. The Madwoman in the Acttic: The Woman Writter and the Nineteenth-Century Imagination. New Haven: Yale University Press, 1979. GUINSBURG, J. O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978. HOGLE. E. Jerrold. The Cambridge companion to gothic fiction. United Kingdom: Cambrigde University Press, 2002. JENNY, L. et al. Intertextualidades. Coimbra: Livraria Almedina, 1979. (Poétique) v. 27. KADOTA, N.P. A escritura inquieta: linguagem, criação, intertextualidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1999. LEVINE, Alice (ed). Byron’s Poetry and Prose. United States: W.W. Norton & Company, Inc, 2010. LONGINO. Do sublime. Trad. Filomena Hirata. São Paulo: Martins Fontes, 1996. LOVECRAFT, H. P. O terror sobrenatural na literatura. Lisboa: Vega, 2003. MENGHAM, Rod. Emily Brontë –Wuthering Heigths. London: Penguin Books, 1989. MILLER, Lucasta, The Brontë myth. London: Vintage, 2002. MILTON, John. Paradise Lost. Oxford: Oxford University Press, 2005. PRAZ, Mário. The romantic agony. London: Oxford University Press, 1958. PUNTER, David. The literature of terror: a history of gothic fiction from 1765 to the present day. Londres: Longman, 1996. RADCLIFFE, ANN . The Italian. Oxford: Oxford University Press, 1998 [1797]. ______. The misteries of Udolpho. Oxford: Oxford University Press, 1998 [1794]. SAGE, Victor. (Ed.). The Gothic Novel. Houndmills: The Maximilian Press, 1990. SIQUEIRA, Ramira, Maria, SILVA PIRES. Pelas Fendas da razão: a ficção gótica inglesa. In: VOLOBUFF, Karin (org). Mito e Magia. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

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SHELLEY, Mary. Frankenstein. London: Penguin Classics, 2003. SALMOYAULT, T. A intertextualidade. Tradução Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo e Rothschild, 2008. VARMA, Devendra. The Gothic flame. London: Scarecrow Press, 1987. VICARY, Tim. The Brontë story. Oxford: Oxford University Press, 2000. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. S. P.: Perspectiva, 2004.

MITO E METALINGUAGEM EM NIEBLA, DE MIGUEL DE UNAMUNO Alexandre Silveira Campos Maria de Lourdes O. Gandini Baldan Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A pesquisa tem por um de seus objetivos encontrar no romance Niebla momentos em que as expressões ou motivos míticos encontrem nas formas de construções metafóricas uma possibilidade de leitura, ou releitura, original. E, a partir da possível comprovação dessa tese – encontrar no texto unamuniano abordagens originais de motivos recorrentes na literatura, feitas através de procedimentos metafóricos – levantar questões a cerca da relação metalinguagem/metáfora e mito. Como por exemplo, a própria dicotomia “mito/literatura”, pensando-se na possibilidade de encontrarmos aí alguma maneira de oposição, desloca o mito para um lugar que normalmente não é o seu, ou seja, o afasta do pensamento lúdico e parabólico para aproximá-lo, por contraposição à linguagem poética, ao pensamento linear e denotativo. Porém, ao invés de observarmos isso, pejorativamente, como uma forma de enfraquecimento da linguagem mítica, podemos ver tal fenômeno como um descortinamento de uma das faces dessa expressão, a qual revela a presença – e a importância que deve ser analisada dentro do romance – do logos, no sentido de razão, como elemento fundamental na leitura do mito. Assim, uma possível questão a ser abordada é como uma narrativa de origem mítica, dentro de um universo predominantemente estético, realiza o papel de “voz da razão”, aproveitando-se da sua ligação com a metáfora e trazendo para a literatura, ao menos para a

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de Unamuno, a representação do “mundo real”. Em alguns casos, essa aparição do logos (a razão ou o plano empírico) no romance será realmente um choque gerador de tensões dentro do texto, em outros será o pano de fundo para, mais ainda, destacar (ou, até mesmo, criar) a “desconcertância” do mundo irreal. No caso de Niebla, o mundo do real-poético unamuniano. Acerca dessa proposição a tese trata de alguns temas ou motivos de origem mítica que são recorrentes no pensamento de Don Miguel de Unamuno, tais como, o mito da imortalidade, ligado ao mito da criação e do Paraíso. Esse é um mito do desejo de eternidade que normalmente, na história da literatura, aparece interpretado como a procura existencial do homem. O qual é, na verdade, mais um motivo literário que propriamente um mito, e que pode ser relacionado a várias imagens, como a rebeldia dos homens perante os deuses na Grécia antiga, o mito de Prometeu, ou outros, em que a ousadia do homem que quer ser deus é punida. Como talvez seja o caso de Niebla, onde o herói Augusto é punido pelo autor pela sua ousadia de desafiar seu poder. Parece importante ainda, para o desenvolvimento da tese, ter em vista os textos que expressem relevância para o assunto e sejam recolhidos em outras obras e em outros momentos da produção crítica, filosófica e literária do autor. Como, por exemplo, o ensaio crítico “Como se Hace Una Novela”, publicado em 1927, onde Unamuno vai expor suas idéias teórico-narrativas, centrando suas reflexões no conceito do romance como um gênero aberto. Héteme aquí ante estas blancas páginas - blancas como el negro porvenir: ¡terrible blancura!- buscando retener el tiempo que pasa, fijar el huidero hoy, eternizarme o inmortalizarme en fin, bien que eternidad e inmortalidad no sean una sola y misma cosa. Héteme aquí ante estas páginas blancas, mi porvenir, tratando de derramar mi vida a fin de continuar viviendo, de darme la vida, de arrancarme a la muerte de cada instante. (UNAMUNO, 1999, p.01)

A pesquisa se dá fundamentalmente pela análise do romance Niebla (névoa) (UNAMAUNO, 1914), em linhas gerais do corpo completo do texto, visto como um todo coerente e representativo do pensamento unamuniano e, mais detalhadamente de alguns episódios do romance, considerados importantes para compor uma linha a ser estudada, dados os propósitos do trabalho.

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O suporte teórico para o estudo do mito está centrado, principalmente, nas proposições de Mircea Eliade, tal como, a noção de “deus vivo” (ELIADE, 2003), onde o deus do mito nunca é uma idéia, uma noção abstrata ou uma simples alegoria moral. É, pelo contrário, um poder terrível, manifestado na “cólera”, ou no pathos, divino. Também é importante a definição de mito que relaciona questões como a construção da narrativa, a posição de quem fala, o “de onde se fala”, a ligação íntima da “forma” do relato com o modo de rito resultante e as maneiras de recepção do relato mítico, principalmente ao que se refere à distinção entre “real” e “simbólico”. Todas estas pontuações podem levar a questões instigantes e serem de extrema pertinência na análise da narrativa de Unamuno. A exemplo do trecho descrito abaixo, se pensarmos numa relação extensa entre as formas do relato mítico e do romance moderno. O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gesta constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados. O mito é pois a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. “Dizer” um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez “dito”, quer dizer, revelado, o mito tornase verdade apodítica: funda a verdade absoluta. (ELIADE, 1996, P.50)

A abordagem teórico-literária do trabalho consiste em relacionar as teorias de cunho histórico e social que tratem do romance como expressão fundamental de um pensamento identificável com certa camada social, no caso, a burguesia. E que a partir desse modelo – amálgama complexo e talvez irrealizável de muitas formas de escrita: epopéia, romance de aventura, romance de formação, etc. – se possa identificar um novo aspecto do romance, chamado “romance moderno”. Os procedimentos narrativos inovadores e a busca por novas possibilidades de expressão dentro de uma fórmula já consagrada são, em Niebla, a concretização de um projeto que já apontava, e aflorou no romance de Unamuno, como indicador de novos caminhos, de uma nova tradição. Niebla é, assim, um romance, uma nivola, coerente com uma “modernidade” que tem como característica fundamental a adoção de valores negativos, a ruptura, a fragmentação e a própria crítica do “moderno”, sua autocrítica (PAZ, 1996).

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Portanto, toda fundamentação teórica que trate da narrativa sob tal perspectiva, seja de “poética moderna” como em Octavio Paz (1996), seja de “crise do romance” como em Walter Benjamin (1994), e dos caminhos que foram percorridos pela prosa ocidental, a partir do início do séc. XX, é pertinente como comprovação ou refutação das proposições que surjam a partir da análise do corpus principal da tese. Bibliografia BACHELARD, G. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 2.ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BARBOSA, J. A. A Metáfora Crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974. BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, 1975. BENJAMIN, Walter. A Crise do Romance. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BORGES, Jorge Luis. Kafka y sus Predecessores. In: Obras Completas, V.4. 15A Ed. Buenos Aires: EMECE Argentina, 2005. CALINESCU, M. Cinco Caras de la Modernidad. Modernismo, vanguardia, decadencia, kitsch, posmodernismo. Madrid: Editorial Tecnos, 1991. CAMPBELL, J. A Imagem Mítica. Campinas: Papirus Editora, 1994. CAMPOS, H. Metalinguagem e Outras Metas. São Paulo: Perspectiva, 1992. CARVALHO, José Carlos de Paula. Mito Crítica e Arte. Londrina: Editora UEL, 1999. CASSIER, E. Linguagem e Mito. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Trad. dos Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo: Abril Cultural, 1978. CHEVALIER, J. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2000. COHEN, J. A Plenitude da Linguagem: teoria da poeticidade. Trad. J. C. S. Pereira. Coimbra: Almeida, 1978.

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JULES LAFORGUE E CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: A IRONIA E A CONSTRUÇÃO DO GAUCHE Aline Taís Cara Pinezi (CAPES)

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Guacira Marcondes Machado Leite Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Após estudos de autores inseridos no Simbolismo brasileiro, o gosto pelo movimento cresceu, sobretudo no que diz respeito à escrita irônica. Assim, surgiu o interesse pelo poeta francês

Jules

Laforgue

(1860-1887).

Jules

Laforgue

foi

um

importante

decadentista/simbolista cuja obra perpassa estes dois movimentos literários; seguiu, segundo denominação de Wilson (1967), a corrente “coloquial-irônica” do simbolismo, fazendo uso, portanto, de recursos como ironia, crítica, paródia, humor e dissonância. O escritor nasceu em Montevidéu, Uruguai, de pais franceses, e aos seis anos de idade mudou-se para a França. Por isso, escreveu em francês e também realizou traduções de autores estrangeiros para o idioma adotado; dentre estes, Walt Whitman. Em 2009, após a conclusão do Mestrado, pensamos em dar continuidade aos estudos da ironia e também da oralidade, visto que este é um campo muito vasto, sobretudo no que diz respeito às composições do poeta francês, repletas de recursos, de intertextos, de vocabulário próprio e de jogo de palavras. No entanto, o objetivo era não somente aprofundar as pesquisas laforguianas, mas sim comparar seus poemas a outros de um poeta brasileiro que fosse, de fato, leitor e adepto de algumas técnicas presentes em Jules Laforgue. Optou-se, então, por Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987), devido à ausência de estudos comparativos entre ambos. Drummond é, reconhecidamente, um dos grandes nomes da literatura brasileira; e sua poética é perpassada por peculiaridades e inovações vocabulares, métricas e estéticas. Um dos recursos presentes em seus poemas é a ironia, muito parecida no tom com a utilizada por Laforgue. Em vista disso, decidiu-se aproximar as leituras das composições de ambos, a fim de comprovar, por meio de exemplos, as semelhanças existentes na poética de ambos. Sobre Jules Laforgue, a crítica, desde meados do século XX, tem reconhecido a importância para a poesia subsequente à sua, visto que o poeta figurava à frente de seu tempo, com relação a características e recursos que utilizava. Ele foi, de certa forma, eclipsado pelos seus contemporâneos tão conhecidos: Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e Verlaine; todavia pode e deve ser inserido entre os grandes nomes dessa época literária, ou seja, da modernidade poética, pois sua obra tem características que perpassam o

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Decadentismo e o Simbolismo. Os escritos surpreendentes e as características inovadoras é que fazem dele o inspirador e mestre de poetas como Ezra Pound e T. S. Eliot. O Decadentismo foi um movimento anterior ao Simbolismo, com teor mais pessimista e negativista. O Simbolismo, contudo, teve duas vertentes: a “sério-estética”, comumente estudada, abordando o culto, o sonho, a musicalidade, a sugestão e a indefinição; e a menos estudada, a “coloquial-irônica”, segundo denominação de Wilson (1967), a qual é representada por Laforgue e Corbière (ambos foram incluídos no movimento simbolista por T. S. Eliot, que enxergou na obra deles uma poesia tão representativa quanto a de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé), marcada pelo uso de temas do cotidiano, pelo emprego da linguagem oral e irônica. Segundo Hamburger (2007), estes dois escritores discutiram, em suas composições, a obra inicial de Rimbaud, o spleen e o idéal de Baudelaire. A corrente na qual se inseriam, diferente da “sério-estética” - que cultiva o mistério, o vago, o indizível, o sonho, o invisível, tendo poetas que se habitam “torres de marfim”, à margem da sociedade, pois não encontram nela o seu lugar, sendo chamados de nefelibatas - não visava dar um sentido mais puro às palavras; ao contrário, pretendia colocar em confronto as torres de marfim e o mundo fin-de-siècle, porque se preocupava com o cotidiano e o tematizava. É nesta vertente que se pautam os recursos utilizados nas composições de Laforgue. Este possui uma escrita inovadora, na qual se reconhece a presença da oralidade, da ironia, do humor e da crítica. Ele consegue unir o incompatível, aquilo que parece ser essencialmente diferente: o lirismo e o humor. Além disso, utiliza a paródia, a alegoria, o pastiche e a caricatura com o propósito de imbuir efeito às suas criações, apresentando um ideal poético que perpassa o discurso clownesco, minucioso e excêntrico. Seus procedimentos poéticos podem ser encontrados em poetas que o seguiram, entre os quais os nossos modernistas Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Aproximam-se também dos mecanismos empregados por Laforgue os poemas de dois simbolistas brasileiros: Pedro Kilkerry (1885-1917) e Marcelo Gama (1878-1915). Laforgue exerceu influência sobre grandes autores como Cummings, Willianns, Crane, Dylan Thomas, além de Eliot e Pound. Este (1976, p.120) apontou toda a importância que deve ser creditada a Laforgue “talvez [...] o mais sofisticado dos poetas franceses”.

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Mário Faustino (1976) diz ainda que o poeta é um jovem de gênio preparando o mundo para o que virá; é, portanto, um poeta do século XX, mais do que do XIX, um visionário figurando entre os poetas maiores. Este é um dos fatores que ofuscou o poeta diante do olhar da crítica; além de ser um dado que o aproxima dos escritos que Drummond arriscaria um século depois. Os autores da modernidade buscavam revolucionar a linguagem, limpá-la por meio do uso do sentido etimológico, da conotação, das combinações inesperadas, entre outros procedimentos. Laforgue atinge o mais alto grau na revolução de seu vocabulário. Essa peculiaridade do poeta francês pode ser observada e analisada também nos poemas de Carlos Drummond de Andrade, como mostra de influência e concordância com mecanismos de escrita citados. Dessa forma, o que se pretende neste trabalho é apresentar recursos que são caros a ambos os escritores e, após este estudo, analisar comparativamente alguns poemas de modo a comprovar a semelhança de ferramentas discursivas como formadoras de estilo. Vale ressaltar que o intuito principal da comparação do autor francês com o brasileiro é aproximar a construção da ironia “fina” presente em Drummond, um dos grandes poetas da literatura brasileira, à utilizada por Laforgue, mostrando a semelhança na construção da ironia e do humor, bem como o uso particular desses recursos construindo a noção do poeta gauche, “torto”, “canhestro”, em face de si e do mundo, que não consegue se encaixar em um contexto social, pois apresenta um “eu” insatisfeito com o mundo conflituoso, buscando, desejando encontrar um sentido para sua vida. Com relação aos poemas de Laforgue, é possível, através deles, enxergar o universo decadente do período em que escrevia; o mundo industrial instalando-se e instigando as críticas do poeta. Estas recaem não apenas sobre o ritmo acelerado das cidades, mas também sobre aqueles que decidem isolar-se da sociedade, sentindo-se alheios ao mundo, refugiando-se em torres de marfim. Laforgue, diferentemente de outros poetas, desaprova esse isolamento, critica os que se prendem a convenções poéticas e, como solução, inova, modifica os moldes vigentes inventando uma nova linguagem e, consequentemente, uma nova poesia, utilizando sua bagagem intelectual para fazer crítica. Sendo assim, precisa de um leitor que desenvolva um atento trabalho de investigação e reflexão.

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O mesmo ocorre em Drummond: seus poemas revelam a agitação do mundo moderno, o individualismo decorrente; propõe a liberdade das palavras, a liberdade do idioma cativo das convenções poéticas usuais, criando uma modelação poética à margem de normas e regras de escrita. Apropria-se do verso livre, flexibiliza o ritmo e mostra que não é necessário um metro fixo para se escrever bons poemas. Por conseguinte, Drummond, assim como o poeta francês, figura outra face moderna: mais objetiva e mais concreta do que lírica. Estágio atual da pesquisa A pesquisa encontra-se em desenvolvimento. Estou no segundo ano de Doutorado e, no momento, cumpro meus créditos obrigatórios e continuo lendo os exemplares que constam na bibliografia. Ainda não iniciei as análises comparativas de poemas, de forma pontual. Tenho percebido as semelhanças apenas de modo geral. Além disso, por já trabalhar com Jules Laforgue anteriormente, minha bibliografia ainda apresenta menos textos referentes a Drummond. Vale ainda ressaltar que o Programa de Pós-Graduação permite que enviemos somente cinco páginas contendo o andamento da pesquisa e a bibliografia, o que dificulta uma descrição detalhada do trabalho. Bibliografia ALLEMANN, B. De l’ironie en tant que príncipe littéraire. In: Poétique. nº 36, nov. 1978. ANDRADE, Carlos Drummond de. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1996. ANDRADE, Carlos Drummond de. Literatura Comentada. Seleção de textos, notas, ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2001. BALAKIAN, A. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000. BERTRAND, J. - P. Petite mythologie portative.Vortex, nº 2. Université de Liège, 1998. Disponível em . Acesso em: 21 jan. 2009.

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ASPECTOS DO POEMA EM PROSA DE CRUZ E SOUSA E RUBEN DARÍO Allyne Fiorentino de Oliveira Adalberto Luis Vicente Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O estudo da literatura da metade a fins do século XIX encontra sempre uma relevância multidisciplinar por ser a base da literatura moderna, sobretudo o movimento denominado Simbolista, que possui autores importantes e inovadores. A quebra da formalidade poética proporcionou novas experimentações no fazer poético, alcançando a hibridação de gêneros e maior liberdade criadora para os poetas. Um dos gêneros cultivados pelos simbolistas foi o poema em prosa, pois sua estrutura permitia uma maior liberdade rítmica, sendo que mais tarde, no Modernismo, isso se desenvolveria para outras experimentações poéticas mais ousadas. Portanto, os estudos literários sobre o simbolismo, contribuem para a compreensão das bases fundadoras da literatura moderna e contemporânea.

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Em nosso projeto de pesquisa buscamos analisar e comparar os poemas em prosa do autor brasileiro João da Cruz e Sousa e do nicaraguense Ruben Darío, fazendo sempre um paralelo com a teoria já publicada acerca desse gênero. O cotejo dos dois poetas certamente permitirá avaliar aspectos importantes do simbolismo nas Américas, bem como verificar como nos dois autores o poema em prosa se faz um gênero poético moderno. Como a pesquisa ainda se encontra em estágio inicial nossos objetivos estavam focados em três pontos principais, sendo eles: leitura e conhecimento das obras a serem analisadas; leitura de algumas obras teóricas relacionadas ao período literário em que as obras estão inseridas (Simbolismo) e obras teóricas sobre o gênero poema em prosa. No projeto inicial nos propusemos a analisar a obra “Missal” (1893) de João da Cruz e Sousa, composta de 45 poemas em prosa voltados para o lado estético e impressionista que se assemelham mais aos poemas em prosa de Ruben Darío. Já os poemas em prosa do autor nicaraguense estão distribuídos por várias de suas obras, dentre elas: Azul (1888), Cantos de vida y de esperanza (1895), El canto errante (1907), Prosa dispersa (1919) e alguns sobre o nome de Cuentos y crônicas no volume XIV de suas Obras Completas, dificultando a restrição do corpus em relação a datas de publicação. A partir das leituras e pesquisas desse semestre optamos então por utilizar um livro argentino cuja primeira publicação data de 1948 e contém uma compilação de 25 poemas em prosa retirados de diversas obras de Darío. Foram feitas leituras dos poemas de ambos os poetas e anotações acerca das primeiras impressões e das possíveis aproximações entre os autores para que sejam a base do aprofundamento que será realizado posteriormente. O que pudemos notar de início é que a linguagem de Cruz e Sousa é bem mais rebuscada que de Ruben Darío, trazendo mais elementos pictóricos e sonoros. Apesar de Darío também utilizar o pictórico e o sonoro, suas imagens poéticas são embasadas mais nas referencias intertextuais e culturais, ou seja, ele constrói as imagens através de elementos culturais, veja-se um exemplo: Es un mar de pizarra, con una multitud de florecimientos de nieve, es un mar gris oscuro, con mil puntos en donde estallan copos de espuma. Chente Quirós me llamó poeta niño. ¡Pornógrafo! No me subleva el adjetivo. Víctor Hugo da ese nombre al formidable anciano Homero.

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Pero en el Océano me siento niño. Siento siempre aquella primera impresión de las potentes aguas inmensas; siento lo que tan admirablemente expresó Pierre Loti (…). (Trecho do poema “En el mar” de Ruben Darío)

Ó mar! Estranho Leviatã verde! Formidável pássaro selvagem, que levas nas tuas asas imensas, através do mundo, turbilhões de pérolas e turbilhões de músicas! Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de todas as plangências e dolências… Mar! Mar azul! Mar de ouro! Mar glacial! (Trecho do poema “Oração ao mar” de Cruz e Sousa) A partir desses pequenos trechos tirados de dois poemas que tem como temática o mar, já podemos notar que a escrita de Darío utiliza bem mais elementos intertextuais, pois somente nesse trecho há quatro citações extratextuais (Chente Quirós, Victor Hugo, Homero e Pierre Loti). O eu lírico não nos diz claramente aquilo que sente em relação ao mar, diz sentir aquilo que Pierre Loti1 expressou em seus poemas, ou seja, o sentimento do eu lírico é criado através das suas referências culturais e não somente pelo seu sentimento frente ao objeto poético. As referências intertextuais são bastante abundantes nos poemas em prosa de Darío, enquanto que Cruz e Sousa explorava a intertextualidade em imagens poéticas por meio de comparações como em “Leviatã verde”, comparando o mar à criatura mitológica. Note-se também que o ritmo dos dois poemas são diferentes, no primeiro o tom prosaico é mais notável “No me subleva el adjetivo. Víctor Hugo da ese nombre al formidable anciano Homero”, a construção da frase é mais linear e direta, enquanto que no segundo a evocação ao sol e os ritmos binários dão um tom mais poético ao texto como em “Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de todas as plangências e dolências”. Das obras relacionadas ao período literário, aprofundamos algumas leituras prévias como “El movimiento Simbolista” de Anna Balakian e “O castelo de Axel” de Edmund Wilson, fazendo uma leitura mais atenta, resumindo as obras e retirando conceitos importantes para a compreensão do período denominado Simbolista. O movimento Simbolista tinha como uma das propostas mais importantes a expressão da musicalidade da

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Pierri Loti foi um escritor francês do período do Romantismo. Por ser da marinha, sempre utilizava a vida no mar como tema de suas obras.

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poesia. Desprezando aquilo que era visível nas coisas, procuravam sugerir ao invés de mostrar. Ferramentas abstratas como a música e os símbolos seriam mais propícias para isso. “Para os simbolistas, portanto, fazer poesia implica a tentativa de expressar fugidia, que merece necessariamente uma forma de expressão condizente com ela, também vaga, indecisa” (BALAKIAN, 1985, p.28). As bases para o Simbolismo e, consequentemente, para a poesia moderna remontam ao Romantismo, que já apresentava o início tímido das quebras com o passado poético, iniciando uma pequena inovação. Isso permitiu um legado de consciência de representação poética que seria trabalhado pelas gerações de poetas futuros, sendo modificadas e aprofundadas. Segundo FRIEDRICH (1956, p.30) “a poesia moderna é o Romantismo desromantizado”. Sobre o gênero poema em prosa, nossa pesquisa foi enriquecida com a leitura da obra principal sobre o assunto “Le poème em prose de Baudelaire jusqu’à nos jours” de Suzanne Bernard, uma obra importante e pioneira que procura abranger a teoria sobre o gênero e ainda enumera vários autores que se dedicaram a escrita do poema em prosa, demonstrando as características inerentes a cada um. Além dessa obra também houve a leitura de outras obras relevantes para a pesquisa como “Lire le poème em prose” de Michel Sandras e “Configurações do poema em prosa” de Ângela Varela, ambos seguindo o estilo de Suzanne Bernard, apresentando uma parte teórica e discussões sobre o gênero poema em prosa desde a origem até os dias de hoje, passando pelas diferenciações entre poesia e prosa e finalizando com o estudo individual de alguns autores demonstrando as várias formas que o poema em prosa pode assumir dependendo do autor e da época. Isso nos possibilitou compreender a criação poética e as variadas formas de representação do poema em prosa em autores de diferentes períodos literários. Algo que nos preocupa também no projeto é a discussão sobre os limites entre poesia e prosa e assim poder demonstrar o poema em prosa enquanto gênero independente e não somente fusão entre poesia e prosa. Apesar de tão enraizada na Literatura Francesa, a questão do poema em prosa continua, ainda hoje, em aberto, suscitada pela controversa delimitação dos modos literários (VARELA, 2011, p.66). Também foram de grande valia as leituras de teses e dissertações acerca do tema, destacando a tese de doutoramento “Pela volúpia do vago: O Simbolismo. O poema em prosa nas literaturas portuguesa e brasileira” do professor Doutor Antonio Donizeti Pires em que ele discorre sobre o gênero estudado em nossa pesquisa, fazendo uma abordagem

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bastante completa de forma histórica e teórica sobre o tema, além de fazer o estudo da obra “Missal” de Cruz e Sousa. Outra tese interessante foi “Um poeta simbolista na República Velha: literatura e sociedade em Missal de Cruz e Sousa” de Jefferson Agostini Mello que nos possibilitou outra visão acerca da obra de Cruz e Sousa diferente da primeira tese citada. Teses e trabalhos específicos sobre o poema em prosa de Ruben Darío são bem escassas no Brasil, sendo que nos parece que o interesse por essa parte da obra do poeta é maior nas Universidades estrangeiras, dos EUA e da Espanha. Com a evolução da pesquisa espera-se elucidar os pontos que ainda estão em fase inicial, levantando hipóteses e discussões para que sejam aplicados ao corpus posteriormente, visando sempre contribuir para os estudos sobre o Simbolismo e do gênero poema em prosa. Bibliografia BALAKIAN, Anna. El movimiento simbolista. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1969. BERNARD, Suzanne. Le poème em prose de Baudelaire jusqu’à nos jours. Paris : Nizet, 1959. CRUZ E SOUSA, João da. PÉREZ, José (org.). Missal, Evocações. In: Cruz e Sousa: Prosa. 2 ed. São Paulo : Cultura, 1945. v. 2. pp.5-126. (Série Clássica BrasileiroPortuguesa, Os mestres da língua, 14). Versão online disponível em http://www.4shared.com/file/mExm2uIi/Missal-CruzeSousa-wwwLivrosGra.html Acesso em 20/08/2011. DARÍO, Ruben. Obras completas. Madrid: Editorial Mundo Latino, s/d. DARÍO, Ruben. Poemas en prosa. 2ª ed. Buenos Aires: Colección Austral, 1948. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. 2.ed. SP: Duas Cidades, 1991. GALE, Leonore V. Ruben Darío y el poema en prosa modernista. The City University of New York. Versão online. Disponível no endereço eletrônico www.ucm.es/BUCM/.../ALHI7575110367A.PDF. Acesso em 22/08/2011 MELLO, Jefferson Agostini. Um poeta simbolista na República Velha: Literatura e sociedade em Missal de Cruz e Sousa. Universidade de São Paulo, 2004. (Tese de doutoramento).

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MURICY, José Cândido de Andrade. Para conhecer melhor Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: Bloch Editores, s/d. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. (Coleção Logos) PIRES, Antônio Donizeti. Pela volúpia do vago: O Simbolismo. O poema em prosa nas literaturas portuguesa e brasileira. 2002. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Araraquara. v. 1 e 2. SANDRAS, Michel. Lire le poème en prose. Paris: Dunod, 1995. (Coll. Lettres Sup). TORREMOCHA, María Victoria Utrera. Teoría del poema en prosa. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1999. VARELA, Ângela. Configurações do poema em prosa: de Notas Marginais de Eça ao Livro do Desassossego de Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2011. WILSON, Edmund. O castelo de Axel: Estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. São Paulo : Companhia das Letras, 2004.

TRAJETÓRIA DE UM CRESCIMENTO: CAMINHOS EMPÍRICOS, PRAGMÁTICOS E INTUITIVOS Amauri Faria de Oliveira Filho Maria Célia de Moraes Leonel Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O presente estudo volta-se para a análise dos recursos narrativos e poéticos da prosa de Guimarães Rosa, especificamente na novela “Campo geral” com o propósito de configurar a sensibilidade e intuição do protagonista, em seu processo de amadurecimento, que ganha vida na voz de um narrador com o qual, por vezes, se confunde. Para tal, o trabalho assume como base a obra Discurso da Narrativa de Gerard Genette [197-], na qual o teórico francês aponta a voz, o modo e o tempo como os aspectos constitutivos e geradores de sentido no texto literário. No primeiro momento da pesquisa, foram levantados os aspectos narrativos e seus efeitos de sentido na obra em questão. Em “Campo geral”, Rosa destramente brinca com o que Genette chamou de “[...] fronteira oscilante, mas sagrada, entre dois mundos: aquele em que se conta, aquele que se conta (GENETTE, [197-], p. 235). O narrador é 32

heterodiégetico e, portanto, não participa da história. A focalização da narrativa, no entanto, é interna fixa, pois ele assume o ponto de vista do menino de apenas oito anos, adotando seu código de valores em construção e os impasses de seu aprendizado e amadurecimento, na busca de um entendimento sobre o mundo e sobre os homens. Essa característica, aliada ao trabalho com a linguagem na prosa poética peculiar do escritor mineiro, concede um caráter peculiar ao texto preenchendo-o de possibilidades de leitura. Esses primeiros estudos conduziram a revelação de que se, no que diz respeito ao tempo da narração, em “Campo geral” predomina a narrativa ulterior, posição clássica da instância narrativa, com diversos movimentos anacrônicos de analepse como é comum no romance, foi possível observar que nesses momentos, o narrador mimetiza a memória do protagonista que, por se tratar de uma criança, tem maiores dificuldades em conseguir recuperar por inteiro o passado vivido do que o adulto. A instância narrativa, construtora de um discurso que narra uma história rica, apresenta-a porém, repleta de lacunas, tanto do passado quanto do presente, pois visa reconstituir o quadro de uma memória ora dotada de clareza, ora vaga para resgatar o vivido pela criança. Esse vazios, longe de serem um revés ao entendimento do texto, preenchem-no de potencialidades, fazendo de cada leitura uma descoberta. No nível narrativo, “Campo geral” apresenta um narrador extradiegético, modulado pelo olhar do protagonista intradiegético que, por sua vez, assume, em certos momentos, o papel de contador de histórias aos irmãozinhos em nível hipodiegético. Novamente, há total harmonia entre os recursos utilizados, pois o fato de entreter os irmãos com suas fantasias/mentiras ajuda a construir a imagem de uma personagem que não é apenas ator da diegese, mas também participa da criação. De volta à categoria tempo, no que diz respeito à relação entre a duração da história e a do discurso, de acordo com as proposições de Genette (197-, p.85), é possível notar em “Campo geral” que há situações de aceleração e desaceleração da velocidade da narrativa, particularmente em ocasiões em que algum acontecimento na vida de Miguilim afeta sua própria percepção do tempo. Assim, na ocasião em que Tio Terêz lhe pede para levar um bilhete secreto para sua mãe e trazer a resposta no dia seguinte, a dúvida moral sobre ser fiel ao tio ou ao pai, a dúvida respeito de “[...] como é que a gente sabe certo como não

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deve de fazer alguma coisa, mesmo os outros não estando vendo” (ROSA, 2001, p. 86), impregna o texto de lentidão – são necessárias treze páginas para a passagem de um dia. Por outro lado, a cena do encontro com o doutor José Lourenço, a revelação da sua miopia e a decisão e partir para a cidade (marcando o encerramento da história), cuja duração também é de apenas um dia, se desenrola em plena aceleração em quatro páginas. Esses exemplos de anisocronias entre o tempo da história e o tempo do discurso na narrativa cujo protagonista é o menino Miguilim apontam para as peculiaridades do mundo da criança, construindo seu universo de valores em contato com adultos, particularmente no que se refere a tomar decisões. A resolução sobre a partida pertence, de fato, à Mãe, que chega a lhe perguntar se ele que ir, mas demonstra claramente que já decidiu a respeito do destino do filho. Já deliberar sobre a entrega do bilhete de Tio Terêz é uma atividade solitária, que não pode ser compartilhada nem com Dito, sob pena de romper a promessa feita ao tio. Decidir sozinho, quando se tem apenas oito anos ou pouco mais, requer tempo e muita coragem. Finalmente, ainda quanto à categoria do tempo, mas agora em relação à frequência, vale ressaltar que alguns fatos que passaram uma vez, aqueles mais marcantes, são contados várias vezes. Entre eles está o episódio da cachorrinha Cuca Pingo-de-Ouro, o mais querido entre todos os animais que viveram com a família e que o pai “tinha dado para estranhos” (ROSA, 2001, p.35) e com maior destaque a astúcia, os ensinamentos e a saudade de Dito, que, ao morrer, deixa vazio o mundo de Miguilim: “Os lugares, o Mutúm – se esvaziavam, numa ligeireza, vagarosos.” (ROSA, 2001, p. 122). A despeito das repetições, os episódios recontados não são monótonos. A cada recontar, lança-se sobre o evento uma nova luz, um novo olhar, um novo entendimento que buscam sugerir ao leitor o caminho de amadurecimento do protagonista. Cotejando os ensinamentos de Genette com as considerações que Auerbach (1971) tece a respeito da objetividade e da subjetividade no romance moderno, particularmente em relação ao romance “To the lighthouse” de Virginia Woolf, levantei, ainda no primeiro momento dos estudos, relações entre os movimentos de aproximação e afastamento presentes em “Campo geral”. O jogo com a distância imprime ao texto rosiano, a princípio, um caráter enigmático a respeito do papel do narrador que dá vida à diegese, por meio do ato narrativo produtor do discurso, e aquele que vê. Assim, aquele que fala e o que vê ora

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se aproximam e se imbricam, ora se afastam. Além disso, essa característica imprime dinamismo e subjetividade à obra, pois não há uma câmera fixa, que de forma isenta ou imparcial, acompanha o desenrolar das ações. Em “Campo geral”, a narrativa alterna momentos em que imperam os conhecimentos objetivos do narrador heterodiegético tradicional e momentos em que os pensamentos e sentimentos do protagonista imprimem subjetividade unipessoal ao texto. Da leitura de texto de Auerbach (1971) sobreposta à novela rosiana emerge a seguinte questão: existe uma “realidade objetiva diversa do conteúdo da consciência” (AUERBACH, p. 482) de Miguilim? Os diferentes recursos poéticos usados na prosa rosiana na construção da história de Miguilim e seus poderosos efeitos emocionais e de sentido são, no presente, que denomino segundo instante do trabalho, o foco da pesquisa. Para tal, busco construir um aparato teórico nas disciplinas cursadas como aluno especial e em andamento, ainda no primeiro ano de mestrado, pela pós-graduação da UNESP. Por meio delas adquiri maior compreensão a respeito dos estudos sobre narrativa de Gerard Genette, conforme exposto anteriormente, e, no primeiro semestre de estudos, acumulei leituras teóricas e práticas de vários críticos e estudiosos sobre a poesia e suas diferentes formas, tais como Octavio Paz em O arco e a Lira, Alfonso Berardinelli em Da poesia à prosa e Tzevtan Todorov em Os gêneros do discurso. Como forma de ampliar o estudo, o trabalho contempla leituras paralelas de ensaios críticos de estudiosos de Guimarães Rosa como Antonio Candido em O homem dos avessos, Benedito Nunes em O dorso do tigre: ensaios, Franklin de Oliveira em A literatura no Brasil, Heloísa Vilhena de Araújo em O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa, além da busca das origens da poesia rosiana em Magma e gênese da obra de Maria Célia Leonel, Octavio Paz em O arco e a lira, e Tzvetan Todorov em Os gêneros do discurso, entre outros. Por se tratar do início do trabalho, há ainda muito que se levantar sobre a vasta fortuna crítica existente a respeito de Guimarães Rosa. Mais especificamente sobre Campo geral recorreremos, entre outros, aos estudos de Nilce Sant’Anna Martins em Simplicidade e beleza na linguagem de Campo geral, Vânia Maria Resende em O menino na literatura brasileira e Dirce Côrtes Riedel em Minha gente, Miguilim... e outras estórias.

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Na fase atual, os estudos conduziram à descoberta de que a narrativa rosiana em questão, misto de conto, novela e poesia, promove um encontro fluido que resulta numa amalgamação entre a prosa e a poesia, originando um adensamento lírico que faz emergir do texto uma imagem profundamente emocional e sensível do protagonista e, por esse mesmo motivo, comunicativa ao leitor. Pretendo, nesse segundo instante do trabalho, fazer um levantamento dos recursos e técnicas rosianas de composição de uma prosa poética singular repleta de possiblidades de leitura e, em seguida, demonstrar que o escritor mineiro desenvolve uma narrativa em prosa que não tem marcas de pausa abrupta para inserção dos modelos e ferramentas tradicionais da poesia. Pelo contrário, nos textos rosianos, do começo ao fim, já existe um caráter poético feito da combinação de ritmo, aliterações, assonâncias, neologismos, arcaísmos, eruditismos, regionalismos, entre outros, em uma perfeita homologação entre os planos de expressão e conteúdo. Em Guimarães Rosa, o encontro entre prosa e poesia revela, a partir da introdução de elementos líricos na narrativa, novas maneiras de traduzir o homem, sua mente e suas paixões. Esse gênero híbrido que combina elementos aparentemente díspares (ações, ideias e escolhas morais do lado da prosa, com sentimentos e temas, da poesia), transcende o simples encadeamento de ações da narrativa tradicional e aproxima-se de imagens que representam, de modo atemporal, o ser humano e o mundo, a velha nova história, sempre única quando trata-se de Guimarães Rosa, mineiro/universal. Ao final de “Campo geral” não se chega a saber qual a situação real do mundo exterior a Miguilim, mas é possível conhecer sua intimidade, seu crescimento, e amadurecimento, a significação de sua travessia sem chegar à fase conclusiva final. A cidade o espera para novos desafios. Semelhante a Miguilim e a sua trajetória, busco progressivamente transcender a matriz que sustenta a pesquisa, pois os novos estudos promovem uma diluição do traço negro das linhas no branco do papel e, cada vez mais, deparo-me com os mistérios de um tom acinzentado, vago e repleto de potencialidades. Bibliografia AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Trad. G. Sperber. São Paulo: Perspectiva, 1971. BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. Trad. M. S. Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. CANDIDO, A. O homem dos avessos. In: João Guimarães Rosa, Ficção completa em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. P. 78-92. COUTINHO, E. F. Guimarães Rosa: um alquimista da palavra. In: João Guimarães Rosa, Ficção completa em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. P. 11-24. FIORIN, J. L. Elementos da análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2000. GENNETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Veja, [197-]. LEONEL, M. C. Guimarães Rosa: Magma e Gênese da obra. São Paulo: UNESP, 2000. LISBOA, H. O motivo infantil na obra de Guimarães Rosa. In: João Guimarães Rosa, Ficção completa em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. P. 133-140. MARTINS, N. S. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: EDUSP, 2001. NUNES, B. De Sagarana a Grande Sertão: Veredas. In: _____. Crivo de Papel. São Paulo: Ática, 1999. p. 247-262. PAZ, O. O Arco e a Lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. ROSA, G. Manuelzão e Miguilim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. TODOROV, T. Em torno da poesia. In: _____. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 95-125.

DO ÁRIDO, A ESTÉTICA: A REPRESENTAÇÃO TEMÁTICA E FORMAL DA ARIDEZ EM GALILEIA E ÁRIDO MOVIE Ana Carolina Negrão Berlini de Andrade Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Este projeto se propõe a investigar de que maneira a aridez, tema recorrente na produção artística brasileira, tem sido retomada em narrativas contemporâneas, a fim de apontar as mudanças efetuadas na construção do tema no livro Galileia (2009), de Ronaldo Correia de Brito, e no filme Árido movie (2008), de Lírio Ferreira, nas quais a aridez não é

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somente temática, mas marca estrutural capaz de agregar significados e valores artísticos às narrativas. Partimos do pressuposto de que a aridez é um leimotiv recorrente nas artes nacionais, tendo em vista a grande quantidade de obras em que este tema é presente, não sendo, portanto, uma característica exclusiva de obras da contemporaneidade. Contudo, a seca, como elemento estruturador da forma, aparece, principalmente, a partir da década de 30 na literatura e da década de 60 no cinema, períodos que correspondem, respectivamente, à geração literária de 1930 (ou prosa regionalista) e ao Cinema Novo. E é, sobretudo, com estes dois movimentos – e sua abordagem do cenário da seca – que as obras da contemporaneidade mantem relações intertextuais e interdiscursivas. No entanto, entre as obras do corpus e os movimentos regionalistas precedentes existem diferenças significativas, tanto de ordem estética quanto em relação à abordagem temática e ideológica, pois as obras da contemporaneidade, longe de tentarem definir uma brasilidade ou denunciar uma realidade social, como a literatura de 30 e o cinema de 60, pensam o sertão sob o viés do discurso. Nessas obras, a intenção não é relacionar-se com o real objetivo (inapreensível, visto que a percepção da realidade já conota uma leitura), pelo contrário, dado que o ponto central dessa retomada é justamente o aspecto de constructo da representação figurativa e temática da aridez, da seca e do sertão. Assim, ao acrescentar novas nuanças à produção literária e cinematográfica de cunho regional, as obras do corpus se destacam, sobretudo, pela metalinguagem e pela retomada crítica da tradição. Não por acaso, Antonio Donizeti Pires (2005, p.1) propõe uma nova terminologia para essas obras que, apesar da temática regionalista, estão vinculadas aos temas contemporâneos: é o neo-regionalismo crítico. Na mesma esteira, Tânia Pellegrini (2004) define essas obras como pertencentes a um “regionalismo revisitado”, termos que já indicam (novos) caminhos de leitura para as obras que fazem dos temas caros ao regionalismo o seu material narrativo. Seja qual for a terminologia, é consenso que as novas obras retratam temas comuns do imaginário popular e cultural de modo completamente diverso. E mais: não sendo naturalistas e não pretendendo realizar uma cópia “fiel” da realidade, podem ser vinculadas àquilo que Candido (2000a) chama de super-regionalismo. Ou seja, obras que veiculam valores universais, independentemente do local onde se desenvolvem. Nestas obras, o local

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e os costumes seriam a figurativização do discurso, nível mais superficial de uma narrativa onde os valores propostos no nível fundamental são desenvolvidos. É por isso que, apesar de serem obras que retratam o sertão e sua aridez, estas são figuras, cuja função é exprimir os

valores

contidos

no

nível

fundamental.

Em

Galileia,

por

exemplo,

o

narrador/protagonista Adonias percebe que a aridez é característica inerente às relações humanas, e não só ao cenário sertanejo. Uma das características dessa retomada crítica da tradição é justamente a discussão sobre o espaço e sobre a formação do imaginário cultural formado a partir dele. Dessa forma, a atividade, metalingüística e metadiscursiva de releitura da tradição é enfatizada pela natureza dos protagonistas que, por serem viajantes, pessoas do espaço urbano, estão aptos a questionarem o espaço geográfico e cultural no qual estão provisoriamente inseridos. Isso significa que o sertão, a seca ou a aridez nessas novas produções não são representados sob o ponto de vista de um explorador, sem vínculos com o espaço geográfico e cultural, ou tampouco sob o viés de alguém que, por ter raízes na região, tenha aderência total e completa ao mundo definido pelo sertão. Assim, a revisitação crítica é tematizada na narrativa, por meio dos seus personagens que constantemente questionam valores, sejam estes os da tradição familiar, sejam os próprios (tidos como “civilizados”, como define provisoriamente Adonias). Esta escolha acentua o caráter de retomada, de reapropriação e de recriação dos discursos previamente existentes, pois ao mesclar os olhares internos ao sertão aos de fora, ou ao dispor os personagens refazendo a própria memória, também a tradição regionalista está sendo esmiuçada, questionada. Nos textos selecionados, existem contrapontos à seca, à aridez, pois os próprios personagens estão em trânsito, literal e figurado, entre dois locais geograficamente e culturalmente distintos: eles possuem outros parâmetros, que não os do sertão tradicional, possibilitando um tipo de questionamento que só é possível quando há distanciamento em relação a uma visão de mundo, no caso, o definido culturalmente pelo espaço da seca. Portanto, nessas obras, a viagem é combinada à reflexão (de valores que vão do espaço, aos culturais e aos pessoais, inter-relacionados). Em Galileia, (2009) o protagonista, há muito tempo afastado da terra de origem, volta à propriedade “fantasma” da família, a fim de se despedir do avô. No trajeto, tenta preencher as lacunas de uma

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história que, apesar de participar ativamente, jamais compreendeu. No entanto, por mais que o protagonista tenha se distanciado do espaço e da cultura de origem (ele é médico em uma grande cidade), conforme se aproxima do coração do sertão, seu comportamento começa a se modificar, assim como o seu discurso, de modo que percebemos uma troca osmótica entre o lado exterior e o interior do personagem, pois todos têm, dentro de si, um vasto sertão particular, sendo que o espaço físico externo apenas reflete a angústia e a solidão dos viajantes (MIGUEL apud DICKE, 2008, p.7). Inclusive há no romance de Brito uma frase que sintetiza a conexão mantida entre meio, personagem e até a tradição regionalista1 “O sertão a gente traz nos olhos, no sangue, nos cromossomos. É uma doença sem cura” (BRITO, 2008, p. 19). Portanto, a aridez que as obras retratam é humana, individual ou coletiva, mas humana. Árido movie (2008), por sua vez, retrata a viagem de Jonas à terra natal, uma cidade também no meio do sertão, para o enterro do pai. Na casa da família, sua avó tenta lhe convencer a vingar a morte do pai, que fora assassinado. O protagonista, que vive na região Sudeste e longe das tradições regionais, entra em contato com uma realidade cultural que ele julgava inexistente, digna de mitos. A profissão do protagonista, “homem do tempo” de uma rede de televisão, é abordada reiteradamente ao longo do filme, pois, ao aparecer no jornal, a família sente que “convive” com ele, mas a recíproca não é verdadeira, o que causa o estranhamento frente às convenções sociais do sertão que ele supostamente deveria conhecer. Este choque entre locais culturalmente e geograficamente distintos gera as reflexões dos protagonistas, bem como a abordagem híbrida do sertão, fato que também será sentido nas linguagens. Na obra literária, as reflexões, o aspecto psicológico em suma, são potencializadas pela narração do protagonista, Adonias, de modo que a sua perspectiva é que define o uso da língua, seja por meio dos vocábulos, seja por meio das estruturas sintáticas ou das metáforas, que conotam a sua visão de mundo, assim como a aridez da própria narração. Em Árido movie, a interioridade é explorada por meio das subjetivas indiretas livre que, como Pasolini define, são o equivalente cinematográfico do discurso indireto livre literário, no qual há a confluência da visão do narrador com a psicologia do

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http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-237354,00.html. Acesso em 05/01/2012.

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personagem. No filme, por exemplo, compartilhamos a confusão mental do protagonista de Árido movie quando este ingere uma planta alucinógena, a qual modifica a sua percepção da realidade e a estética das cenas que vemos. Desse modo, o sertão, ao ser colocado em contraste com outros elementos, tal como a urbanidade dos protagonistas, torna-se mais evidente, torna-se o diverso, o outro, de modo que percebemos melhor tanto as diferenças quanto as semelhanças das diferentes abordagens da realidade. Sendo assim, a linguagem, quando assimila características da secura, se distancia da linguagem puramente comunicativa e torna-se mais expressiva, margeando a linguagem poética. Em Galileia, a narração parece árida por conta da concisão do discurso, a qual remete à composição de figuras nos haicais que, em poucas palavras, criam uma imagem completa, mas sem floreios. Exemplo dessa concisão é a passagem direta, sem explicações, entre as histórias que Adonias narra, em um tipo de corte que se assemelha ao cinematográfico. Em Árido movie, a aridez define tomadas, contrastes e intensidade da luz, relacionadas ao sol inclemente do sertão, além disso, a cromaticidade, associa-se à infertilidade, à seca/aridez devido ao uso de cores desbotadas, tendentes a uma monocromia terrosa. Além dessas características que sugerem aridez (metafórica ou não), a expressividade nas obras estudadas também é construída por meio de associações não usuais, como acontece quando, dentro do paradigma do sertão, é inserida uma figura, uma palavra ou uma imagem que se distancia do seu universo, a exemplo da motociclista que tange um rebanho, situação que descontrói o estereótipo patriarcal do “sertanejo forte” montado a cavalo, como o próprio narrador de Galileia constata. Ou ainda, em Árido movie, no contraste entre o verde intenso de uma plantação e a monocronia ocre do entorno árido, das pedras e rochas. Combinação esta que, tal qual em Galileia, subverte a tradicional imagem do sertão, resumida à seca ou à produção de algodão e açúcar, culturas substituídas no filme pela maconha. No entanto, assim como na literatura e nos filmes de cunho regional, a seca continua sendo política, mais do que climática, e ainda existem jagunços, a serviço dos grandes produtores, mas, ao invés de cavalos, também utilizam motos. A potencialização da expressividade, nesses casos onde há combinação de elementos de diversos campos semânticos, é explicável a partir dos conceitos de Jakobson, para quem

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A seleção é feita em base de equivalência, semelhança e dessemelhança, sinonímia e antonímia, ao passo que a combinação, a construção da seqüência, se baseia na contigüidade. A função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação. A equivalência é promovida à condição de recurso constitutivo da seqüência. (s/d p.130, grifo do autor).

Isto é, a combinação e a ordenação de vocábulos ou imagens diversos fazem com que as leis da contigüidade ou similaridade sejam subjugadas, modificando a apreensão do discurso e, conseqüentemente, da tendência à monossemia, típica da função denotativa. Além da tendência à monossemia, que é subjugada, nesses exemplos vemos a questão dos diálogos mantidos pelas obras da contemporaneidade com os movimentos regionalistas, cujos temas são modificados, re-narrados. Além do hibridismo de campos paradigmáticos, existe o hibridismo de linguagens, de procedimentos semióticos diversos. Por exemplo, em Galileia, a linguagem, sucinta, direta, “seca” é também imagética, pois “filma” o sertão, suposição confirmada pelo próprio narrador, que utiliza termos cinematográficos na elaboração da narrativa. Já em Árido movie, a namorada do protagonista está filmando um documentário sobre o misticismo que envolve a falta de água, de tal modo que os procedimentos “realistas”, típicos do gênero documental, utilizados por ela são contrapostos ao gênero assumidamente ficcional de Árido movie. Dessa maneira, tanto o hibridismo quanto a revisitação da tradição são elementos metalingüísticos, uma vez que o fazer artístico é colocado em pauta, questionado, percebido pelo leitor/espectador. O que nos leva novamente à Jakobson (s/d), para quem toda obra poética é, naturalmente, metalingüística, pois evidencia os traços de sua própria construção, de sua elaboração. Nas obras elencadas, a modificação da forma é evidente, explicitando a estruturação das obras. Além dos exemplos já mencionados, podemos citar a iluminação estourada de Árido movie, simulando, como dissemos, a luminosidade típica do sertão nordestino, ou as subjetivas indiretas livres, que conotam o estado psicológico do personagem, ou ainda o uso das cores para caracterizar a abundância ou a falta de água, como é o caso da oposição entre as cenas do sertão, em tons terrosos, e as cenas azuladas, claras, do templo do personagem místico “Meu velho”, onde a água é abundante. Esses são temas e situações que a estrutura do filme procura assimilar, dando à câmera usos específicos, modificando a

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cromaticidade e a iluminação das cenas, o ritmo de montagem etc. Elementos que nos fazem, obrigatoriamente, reconhecer que o que estamos vendo é uma obra de ficção, construída, elaborada segundo critérios estéticos bem delimitados, e não uma pretensa reprodução inequívoca da realidade. Por sua vez, a metalinguagem em Galileia é construída por meio dos discursos: o protagonista tem consciência tanto do próprio discurso quanto dos alheios, afinal a sua narrativa é baseada, muitas vezes, em histórias que lhe foram contadas, as quais, em conjunto com as próprias memórias, Adonias tenta organizar de maneira una e coerente, a fim de entender a sua família e a si mesmo. Logo, o discurso principal deixa entrever a psicologia de outros personagens, seja por meio do discurso indireto livre, que funde sua psicologia de narrador à de um terceiro, seja pelos discursos diretos. De qualquer maneira, há uma moldura narrativa que contem os demais discursos, criando uma situação polifônica que destaca o fazer enunciativo. Ou seja, a questão da construção discursiva é, em ambas as obras, característica essencial e está relacionada com a retomada crítica da tradição regionalista. De modo que a aridez, metafórica, estrutural ou literal é reelaborada por estes textos atuais, nos quais, as figuras relacionadas à seca e ao cenário do sertão retratam relações humanas, e não um local geográfico. Bibliografia ALBUQUERQUE JR., D. M. de. Nos Destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife: Edições Bagaço, 2008. ANDRADE, M. Sertão é coisa de cinema. João Pessoa: Marca de fantasia, 2008. ANDRADE, O. Manifesto Antropófago. Disponível em: http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html. Acesso em: 15 jul 2011. AVELLAR, J. C. O chão da palavra: Cinema e literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BAKHTIN, M. Questões de Literatura e Estética. São Paulo: Hucitec, 1988.

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IRIS MURDOCH E SIMONE DE BEAUVOIR: UMA LEITURA FEMINISTA DE A FAIRLY HONOURABLE DEFEAT E LA FEMME ROMPUE Ana Paula Dias Ianuskiewtz (FAPESP) Maria Clara Bonetti Paro Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Pretendemos nesta pesquisa, abordar os aspectos do feminismo pelo viés da crítica anglo-americana em duas obras ficcionais que foram publicadas relativamente no mesmo período, ou seja, final dos anos sessenta e início da década de setenta: La Femme Rompue (1967), de Simone de Beauvoir (1908-1986), e A Fairly Honourable Defeat (1970), da escritora irlandesa Iris Murdoch (1919-1999). Para tal propósito, temos como intuito, primeiramente, comparar a caracterização das personagens femininas nessas duas obras, analisando os tipos de papéis que estas representam, como também, os temas com os quais elas estão associadas. Posteriormente, faremos um breve estudo da condição feminina na sociedade britânica e francesa desde o fim da Segunda Guerra até o início da década de setenta, período que abrange grande parte da produção literária das duas autoras e que presenciou as principais mudanças que colaboraram para a emancipação feminina. Dessa forma, demonstraremos como essas autoras utilizam a ficção para “refletir” e potencializar em suas obras certos aspectos da realidade sócio-política das mulheres nas últimas décadas do século XX. Finalmente, realizaremos uma leitura crítica de uma das obras mais importantes de Beauvoir para o movimento feminista, Le Deuxième Sexe (1949), que acreditamos ser fundamental para nortear a análise dos aspectos sócio-feministas de La

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Femme Rompue e A Fairly Honourable Defeat e mostraremos como certas passagens de Le Deuxième Sexe dialogam com certas passagens dessas duas obras ficcionais. Simone de Beauvoir e Iris Murdoch ampliaram cada qual sua produção literária e ensaísta a partir do término da Segunda Guerra, quando as sociedades inglesa e francesa experimentavam várias mudanças de cunho social e político e ambas testemunharam e retrataram, em suas obras literárias, as várias mudanças e dilemas que as mulheres experimentaram desde os anos quarenta até a década de setenta, com o auge do movimento feminista. Grande parte da obra ficcional e filosófica de Simone de Beauvoir foi produzida em uma época em que o Existencialismo era o pensamento filosófico em voga na França e que tinham Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty e Sartre como representantes dessa corrente filosófica. Consequentemente, o nome de Beauvoir sempre esteve relacionado com esse movimento. De maneira geral, os existencialistas acreditam que toda experiência humana se define por meio da liberdade de escolha e das ações, não existindo nada a priori que caracterize a existência do sujeito. Sendo assim, cada indivíduo é responsável por encontrar e revelar seu significado no mundo e é unicamente a liberdade que carrega o difícil fardo de nossos êxitos ou fracassos. Portanto, devido à grande responsabilidade que temos ao assumirmos cada qual sua liberdade e atos, muitos a recusam e agem por má-fé, conceito muito discutido entre os existencialistas. Simone de Beauvoir, em Le Deuxième Sexe, cita o exemplo da má-fé ao analisar o fracasso da mulher em assumir a responsabilidade pela própria liberdade, pois nas sociedades, esta é induzida a acreditar que o caminho mais fácil para sua realização como indivíduo é assumir o papel do outro. Entretanto, é importante observar que o conceito de liberdade em Beauvoir diferencia-se significativamente comparado aos de outros existencialistas, como Sartre. Em L’Être et le Néant (1943), Sartre afirma que estamos sempre livres para escolhermos, mesmo se a liberdade de escolha represente somente o ato de recusar determinada situação. Já Beauvoir, considera a liberdade condicionada à facticidade, ou seja, de certa maneira, a liberdade está relacionada às circunstâncias impostas por um contexto social, uma cultura ou um momento histórico.

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A Fenomenologia foi outra corrente filosófica que muito influenciou o pensamento beauvoiriano e várias estudiosas do feminismo, como Sara Heinämaa, Karen Vintges, Sonia Kruks, Eva Gothlin e Kristina Arp, interpretam as obras de Beauvoir como fenomenológicas e existencialistas. Eva Gothlin, no artigo Reading Simone de Beauvoir with Martin Heidegger, afirma que: Thus, for Beauvoir, human beings are not free to be anything whatsoever, since they are situated. On the other hand, a human being is not defined in advance as having an essence, for example, feminine or masculine, evil or good… But one should note here an interesting difference between Sartre and Beauvoir and an interesting resemblance between Heidegger and Beauvoir in the conceptualization of existence, something that also has to do with their view of “possibilities”. (GOTHLIN, 2003, p. 52)

A Fenomenologia considera relevante a maneira pela qual cada indivíduo interpreta sua existência por meio das experiências vividas. O importante, não é o mundo que existe, mas sim o modo como o conhecimento do mundo se realiza para cada pessoa, independentemente de suas crenças e valores, a fim de que o sujeito se concentre somente na experiência em foco. Dessa forma, é o indivíduo e sua relação com o mundo que interessa para a Fenomenologia. Le Deuxième Sexe é considerado por muitos um exemplo da Fenomenologia, pois nele, Simone de Beauvoir examina como se dá a relação entre o gênero feminino e a realidade que o cerca, uma realidade que está sempre condicionada aos valores impostos pelas sociedades patriarcais. Portanto, a filosofia de Simone de Beauvoir considera o que implica na experiência pessoal de cada indivíduo viver condicionado a um determinado gênero, mais especificamente ao gênero feminino e suas ideias e conceitos serviram como base para posteriores estudos de escritoras de várias linhas do feminismo como, por exemplo, Kate Millet, Betty Friedan, Shulamuth Firestone, Juliet Miitchell, Luce Irigaray, Hélène Cixous, Toril Moi e Judith Butler. Murdoch não nega o existencialismo, mas contesta alguns de seus conceitos e julga que a conduta de um indivíduo, não pode ser limitada somente aos imperativos da razão ou aos fatos empíricos. Segundo a autora, as ações do sujeito abrangem também os aspectos e mistérios da consciência humana e fatos que vão além das expressões da conduta moral ou dos atos de escolha. Em um de seus ensaios filosóficos, The sublime and the beautiful revisited Murdoch, ao se referir ao existencialismo elucida:

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Existentialism shares with empiricism a terror of anything which encloses the agent or threatens his supremacy as a center of significance. In this sense both philosophies tend toward solipsism. Neither pictures virtue as concerned with anything real outside ourselves. Neither provides us with a standpoint for considering real human beings in their variety, and neither presents us with any technique for exploring and controlling our spiritual energy. (MURDOCH, 1999, p.269)

La Femme Rompue, última obra ficcional de Simone de Beauvoir, é constituída por três novelas, L’âge de discrétion, Monologue e La Femme Rompue, que abordam o tema da vulnerabilidade das mulheres no que diz respeito ao envelhecimento, à solidão e à perda do ser amado. Nessas três narrativas, a autora recorre ao fluxo de consciência, ao monólogo e a escrita de um diário para expor as experiências caóticas pelas quais passam as personagens, experiências que resultaram das próprias escolhas que cada qual fez para si mesma. Em A Meia Marron, ao analisar as características estilísticas do romance do século XX, Auerbach utiliza como exemplo a obra de Virginia Woolf, To the Lighthouse (1989), na qual o escritor, como narrador de fatos objetivos, desaparece quase que completamente e tudo o que é dito aparece como reflexo da consciência da protagonista do romance, Mrs. Ramsay. Em La Femme rompue, podemos observar os mesmos recursos estilísticos citados por Auerbach em A Meia Marron, e que fazem igualmente da obra de Simone de Beauvoir, um exemplo de um romance em que o sentido do real realiza-se unicamente por meios das constatações e digressões das consciências das personagens femininas. Nessas narrativas, Beauvoir não fornece ao leitor nenhuma impressão objetiva e segura acerca das personagens e a objetividade não é garantida por meio de um narrador onisciente. Tal como acontece em To the Lighthouse, não há nenhuma descrição física ou psicológica das protagonistas, pois tudo o que se apreende a respeito das personagens, ou mesmo daqueles que as cercam, é por meio do olhar de três mulheres, caracterizadas somente como esposa, mãe ou como alguém que, beirando os sessenta anos, tem que conviver com os percalços da velhice. Desse modo, a objetividade das narrativas de La Femme rompue se limita apenas por intermédio de um narrador autodiegético, de uma focalização interna e de um enredo simples. O que há de “real” e relevante nessas narrativas de Beauvoir, são os dilemas e conflitos de mulheres que atravessam a angústia de uma existência, e não o retrato social de uma época, refratado por meio de várias personagens e por um enredo complexo.

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Iris Murdoch sempre deixou evidente a sua preferência pelo estilo de romance realista do século XIX encontrados nas obras de Walter Scott, Jane Austen, George Eliot e especialmente Tolstoy. Segundo ela, uma das principais qualidades que o romance pode oferecer ao seu leitor, é a pluralidade de tipos humanos reunidos em um universo ficcional proporcionando assim, uma visão ampla da diversidade da natureza humana. Dessa maneira, opondo-se à narrativa de Simone de Beauvoir, em A Fairly Honourable Defeat, a objetividade é garantida por meio dos diálogos e por um narrador em 3ª pessoa, heterodiegético, que analisa o caráter das personagens devido à sua onisciência. Além disso, as personagens nessa narrativa se desenvolvem mediante várias ações que transcorrem ao longo da trama, por meio de um enredo complexo, de um tempo linear e não há mais o emprego de monólogos ou fluxos de consciência. Embora A Fairly Honourable Defeat tenha sido publicado no início da década de setenta, quando na sociedade inglesa as mulheres já haviam conquistado alguns direitos que as levariam a uma maior liberdade e poder no campo social e político, muitos impasses que estas precisaram superar nas décadas anteriores são ainda abordados por Murdoch nesse romance. Por exemplo, na Grã-Bretanha, o aborto passou a ser disponibilizado pelo sistema público de saúde a partir de 1967. No entanto, Murdoch por meio da personagem Morgan Browne, ilustra as dificuldade e humilhações que as mulheres enfrentam quando precisam ou querem recorrer ilegalmente a essa prática para interromper uma gravidez. Porém, Morgan Browne, ao contrário das personagens de La Femme rompue, goza de mais liberdade para fazer diferentes escolhas em sua vida, pois possui uma carreira e sente-se livre mesmo para deixar o marido e partir em busca de uma aventura nos Estados Unidos. Simone de Beauvoir, em Le Deuxiéme Sexe, aponta a busca por um trabalho como algo primordial para que a mulher alcance certa liberdade: “c’est par le travail que la femme a en grande partie franchi la distance qui la séparait du mâle; c’est le travail qui peut seul lui garantir une liberté fondé concrète” (BEAUVOIR, 1986, p.597). Consideramos que a pesquisa proposta se justifica pela grande relevância que Iris Murdoch e Simone de Beauvoir possuem no cenário literário mundial e pelo estudo da representação do sujeito feminino em duas grandes obras ficcionais que, embora tenham sido publicadas em culturas diferentes e por diferentes autoras, compartilham temas e

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valores inerentes não apenas à época de suas publicações, mas que ainda permeiam os estudos sociais e literários nas mais diversas sociedades. Bibliografia AUERBACH, E. A meia marrom. In:_____. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2009. BEAUVOIR, S. La femme rompue. Paris: Gallimard, 1967. ______, S. Le deuxième sexe . Paris: Gallimard, 1986. GOTHLIN, E. Reading Simone de Beauvoir with Martin Heidegger. In: CARD, C. (Ed.). The Cambridge companion to Simone de Beauvoir. Cambridge University Press, 2003. p. 45-65. MURDOCH, I. A fairly honourable defeat. New York: Penguin, 2001. MURDOCH, I. The sublime and the beautiful revisited. In: CONRADI, P. Writings on philosophy and literature. New York: Penguin, 1999. SARTRE, JP. L’être et le néant. Paris: Editions Gallimard, 1976. WOOF, V. To the lighthouse. New York : Harvest Books, 1989. Bibliografia AGUIAR, Neuma (org.). Gênero e Ciências humanas: desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1997. ALBISTUR, M; ARMOGATHE. D. Histoire du féminisme français: du moyen âge à nos jours. Paris: Des femmes, 1977. BAJAJ, K. Critical study of Iris Murdoch’s fiction. New Delhi: Atlantic Publisher & Distributors, 2007. BANNET, E. The domestic revolution: enlightenment feminisms and the novel. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2000. BARD, C; METZ, A; NEVEU, V. Guide des sources de l'histoire du féminisme: de la révolution française à nos jours. Paris: PU Rennes, 2006. BERSANI, J. La littérature en France depuis 1945. Paris: Bordas, 1970. BISHOP, M. Thirty voices in the feminine. New York: Rodopi B. V. Edition, 1996. 54

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A ESPADA E A LUNETA: A DESCOBERTA DO MUNDO ENTRE O ORDINÁRIO E O MARAVILHOSO André Luiz Rodriguez Modesto Pereira (FAPESP) Karin Volobuef Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A pesquisa proposta destina-se a analisar comparativamente os dois contos de fadas artísticos (ou Kunstmärchen, conforme o termo já consagrado em alemão), Klein Zaches genannt Zinnober [O Pequeno Zacarias chamado Cinábrio] (1819), de E. T. A. Hoffmann, e Farmer Giles of Ham [Mestre Gil de Ham] (1949), de J. R. R. Tolkien. Apesar de mais de um século de diferença entre as datas de publicação dos textos, é notável a permanência de um mesmo tema: o confronto entre aquilo que se aceita por real e o que se julga extraordinário ou maravilhoso, como fadas, dragões ou objetos mágicos. Em ambas as obras, os elementos mágicos são mostrados como autênticos, reais ¨C o que traz os textos de maneira inquestionável para o gênero do maravilhoso ¨C; sendo, porém, a sua “veracidade” questionada ou duvidada pelas próprias personagens, que ignoram o mundo extraordinário que as cerca. Assim, ocorre um confronto de visões de mundo, e a tendência de duvidar do improvável ou do inverossímil é satirizada, revelando que sociedades que tendem a se mostrar como superiormente “racionais” ou “civilizadas”, sob a máscara do ceticismo, podem estar despreparadas para lidar com o surpreendente mundo que as cerca. Introdução e Justificativa Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822) é um escritor do romantismo alemão tardio, bastante renomado internacionalmente, mas conhecido no Brasil sobretudo como o autor de Der Sandmann [O homem da areia] (1817) e outros contos fantásticos. John Ronald Reuel Tolkien (1892 - 1973) é o autor dos ainda polêmicos “contos” sobre Middleearth (ou Terra-média), que inclui, entre outras, obras tais como The Hobbit [O Hobbit] (1937), The Lord of the Rings [O Senhor dos Anéis] (1954-55) e The Silmarillion [O Silmarillion] (1977). Ao colocar esses nomes lado a lado, pode-se notar, de imediato, algumas equivalências entre as obras de cada autor e semelhanças entre os momentos históricos em que se situou o período de vida deles.

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Hoffmann atravessou um período que foi marcado, no âmbito político-social, pela Revolução Francesa, pelo terror jacobino, pela ascensão, expansão e derrota napoleônicas ¨C um período de guerra e grande violência ¨C e, por fim, a Restauração dos velhos estados nacionais na Alemanha, quando o retrocesso nos avanços sociais acentuou as diferenças entre burguesia e nobreza ¨C algo tematizado em Klein Zaches. No âmbito das ciências, o que era científico se misturava à superstição de tal modo que alguns passos dados no sentido do que viriam a ser a Psicologia, Pedagogia e Psiquiatria modernas, eram acompanhados pelo retorno do interesse na doutrina da Música das Esferas, pelo surgimento de uma Doutrina dos Sonhos, pela crença no magnetismo animal (mesmerismo) e a descoberta da eletricidade ¨C ainda misteriosa. Segundo Brigitte Feldges e Ulrich Stadler (1986, p. 43), casos de perda da razão, ainda analisados sob um viés supersticioso, magnetismo animal, magia e a eletricidade (Elektrizitätslehre) estavam entre alguns dos interesses do autor. Talvez pela percepção de haver coisas empiricamente explicáveis e outras ainda tão misteriosas, o autor tenha dado voz ao maravilhoso em sua literatura, que não se restringe apenas aos contos fantásticos e de horror, mas inclui também contos de fadas, como Klein Zaches gennant Zinnober e Der goldene Topf [O vaso de ouro], e romances como Lebens-Ansichten des Katers Murr [Considerações sobre a vida, do gato Murr], paródia do romance de formação, que tem como modelo Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe. Tolkien, por sua vez, viveu as duas Guerras Mundiais, tendo se alistado e participado na primeira; assistiu ao forte abalo do sistema capitalista, na crise de 1929; bem como a ascensão do comunismo na Rússia e de outros sistemas totalitários pela Europa. O tema da guerra é constante nos escritos sobre a Terra-média e aparece, de certa forma, em Farmer Giles, quando o fazendeiro se vê obrigado a enfrentar o dragão. Quanto a isso, o que se destaca é que, exceto em The Silmarillion, muitos do que vão para o campo de batalha são pessoas simples, sem qualquer treinamento militar, nem pretensões de realizar feitos heroicos. É o caso também de Bilbo Baggins, em The Hobbit, dos quatro hobbits em The Lord of the Rings, e do próprio Giles. No campo das ciências e das artes é possível notar transformações ainda mais significativas. Em fins do século XIX e início do XX pode-se observar o desenvolvimento das ideias nascidas com o simbolismo e que se espalharam nas artes plásticas, na literatura

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e, de certo modo, na música ¨C por meio de compositores tão diversos quanto Debussy e Schönberg ¨C pelos movimentos impressionista e expressionista, fundamentos das vanguardas. No que se refere ao campo das ciências, ele merece um olhar mais detalhado, visto que em nosso trabalho confrontaremos as diferentes noções de realidade desenvolvidas em cada época: a primeira, de fins do século, via as capacidades do homem em um limite de se acreditar, que nada mais poderia ser inventado e a maior parte dos mistérios do mundo já havia sido desvendada pelos métodos e ferramentas empiristas disponíveis; a segunda noção, já no século XX, abala os conceitos de, por exemplo, uma física exata, com o surgimento já em 1905 da Teoria da Relatividade Restrita de Albert Einstein. O final do século XIX presenciou a separação definitiva entre ciência e teologia, o que abriu espaço bastante otimista a uma crença nas potencialidades humanas de desvendar todos os enigmas da natureza, do próprio homem e do universo. Porém, logo nas primeiras décadas do século XX a Física passou por um período de profunda transformações, deixando claro que a Física Clássica era apenas uma representação incompleta do universo. A Nova Física levou o empirismo aos seus limites e a própria ciência (pelo menos no âmbito da Física, sendo inegáveis os avanços nas áreas da Biologia, em especial no ramo da Genética) passou em muitos campos a se desenvolver essencialmente de forma teórica, como no caso das investigações envolvendo partículas subatômicas ou o espaço sideral. O que se pode notar nitidamente, nos casos de E. T. A. Hoffmann e J. R. R. Tolkien, é que ambos passaram respectivamente por épocas de profundas mudanças nas quais aquilo que se considerava certo ¨C a crença na razão humana para decifrar os mistérios da natureza ¨C foi abalado por novas descobertas e novas perguntas, cada vez mais difíceis de serem respondidas. As disciplinas cursadas até o momento, a saber, “Aspectos da Narrativa” e “Perspectivas Pós-modernas”, possibilitaram a reflexão sobre a obra em duas instâncias. Na primeira, comparando o gênero maravilhoso com as tendências mais realistas em literatura e, na segunda, buscando na obra tolkieniana, uma relação entre os motivos do Spätzeit (período tardio) e de identidade nacional, algo retratado em Farmer Giles no processo de fundação de um novo reino. O que se propõe é analisar os textos literários em confronto com a visão de mundo de cada época, forjada pela mistura de ciência e senso comum,

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enfatizando sempre o caráter crítico de cada texto de, através do maravilhoso, apontar as lacunas do conhecimento humano e sua forma incompleta de conceber o mundo. Bibliografia ARMITT, Lucie. Fantasy Fiction: An Introduction. New York: Continuum, 2005. AUERBACH, Erich. Mímesis: A representação da realidade na literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1998. BARFIELD, Owen. Poetic Diction: A Study in Meaning. Middletown, Connecticut: Wesleyan University Press, 1973. BROOKE-ROSE, Christine. A Rhetoric of the Unreal: Studies in Narrative and Structure, specially of the Fantastic. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2002. CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 2006. CAPRA, Fritjof. O Tao da Física: Uma análise dos paralelos entre a Física Moderna e o Misticismo Oriental. São Paulo: Cultrix, 2011. CARPENTER, Humphrey. J. HarperCollinsPublishers, 2002.

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HOJE É DIA DE MARIA E A PEDRA DO REINO: CONJUNÇÕES, DISJUNÇÕES E APROXIMAÇÕES Andrea Cristina Martins Pereira Lúcia Teixeira de Siqueira e Oliveira UFF O projeto que conduz esta pesquisa propõe-se a aplicar as teorias acerca das comunicações de massa e da semiótica, particularmente nos campos da semiótica tensiva e sincrética, a fim de analisar os diferentes modos de recepção das obras televisuais Hoje é dia de Maria (HDM) e A pedra do reino (APR), assinadas pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, uma vez que ambas são adaptações de literatura de conteúdo popular, sertanejo, e ambas apresentam recursos estéticos semelhantes, com forte acento no hibridismo, tendo apresentado, por outro lado, diferenças extremas de aceitação pela crítica e pelo público. As

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hipóteses são de que, (1) apesar do conteúdo de cultura popular comum às duas obras, e que é fator de aproximação com o público, (2) o uso de elementos novos e já conhecidos é feito de maneira dissemelhante pelo enunciador, de forma que em HDM prevalece o já conhecido revestido de novidade, enquanto em APR prevalece o novo, obscurecendo o já conhecido; além disso, (3) a montagem, ou seja, as estratégias do enunciador na instauração das instâncias da enunciação (pessoa, tempo e espaço), na sincretização das linguagens auditivas e visuais e na hibridação de gêneros gera estabilidade na primeira obra e instabilidade, na segunda, segundo os conceitos de José Luiz Fiorim (2008). O resultado disso se reflete no ritmo e, consequentemente, na aceitação dos enunciados pelos enunciatários. A estrutura da tese prevê quatro capítulos, além da introdução e considerações finais, a saber: um capítulo sobre a televisão e sua capacidade de comunicar e expressar, assim como sobre o percurso do diretor Luiz Fernando Carvalho por esse veículo; uma análise sobre as aberturas das duas obras; e dois capítulos dedicados à análise das minisséries propriamente. O atual estágio da pesquisa inclui a primeira escrita do segundo capítulo – a análise das aberturas – e alguns apontamentos referentes ao primeiro capítulo – sobre a televisão e o autor das obras analisadas. É um pequeno resumo do trabalho realizado até o momento que apresentamos a seguir. A televisão é, sem dúvida, o meio de comunicação de massa de maior alcance na atualidade. Sendo assim, é natural que desperte o interesse de pesquisadores e críticos das mais diversas áreas aglutinadas ou afetadas por ela. E as abordagens são, segundo aponta Arlindo Machado (2005), em geral, negativas. A ideia de que a TV só se (pre)ocupa com produtos de mercado é amplamente disseminada entre os estudiosos dos meios de comunicação. Isso, segundo Machado, porque tais abordagens envolvem apenas o sistema político, econômico e tecnológico no qual se ditam as regras de produção e as condições de recepção, deixando de lado a análise do que realmente importa que é, segundo ele, o exame dos programas veiculados, propriamente, e não sobre o meio televisual como algo homogêneo que, definitivamente, a televisão não é. Para o pesquisador, é necessário que se faça um “exame detalhado daquilo que, dentro de uma imensa massa indiferenciada de material audiovisual, se distinguiu, permaneceu e permanecerá como uma referência importante dentro da cultura do nosso tempo.” (MACHADO, 20005, p. 16).

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A considerar a excelente aceitação pela crítica e pelo público, os índices de audiência e os prêmios angariados, no Brasil e no exterior1, a minissérie HDM (2005) certamente estará entre aquelas que permanecerão como referência na produção televisual brasileira deste século. Na esteira do sucesso dessa minissérie, Carvalho cria o Projeto Quadrante, com a proposta de adaptar, para a televisão, quatro obras da literatura de diferentes regiões brasileiras. A fórmula híbrida presente na primeira experiência se repete nas duas primeiras produções do Projeto: A pedra do reino, adaptada do Romance d’A pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, de Ariano Suassuna, e Capitu, do consagrado Dom Casmurro, de Machado de Assis. Se a concepção dessas duas obras segue, em grande parte, o estilo que o diretor imprimiu em HDM, o mesmo não se pode dizer sobre a recepção. Enquanto esta minissérie atingiu média de 362 pontos na primeira jornada, levada ao ar em janeiro de 2005, e 273 pontos na sequência, exibida dez meses depois da primeira, APR 4 e Capitu5, obtiveram média de 11 e 15 pontos de audiência, respectivamente. Em suas entrevistas, Luiz Fernando Carvalho, cuja carreira foi quase toda construída na televisão, manifesta de forma recorrente seu desejo de ver esse veículo mais comprometido com a educação e a formação do gosto estético. Essa preocupação do diretor encontra eco nas pesquisas de Pierre Bourdieu das quais resultou a obra O gosto pela arte, em que ele conclui que “o acesso às obras culturais é privilégio das classes cultas” (BURDIEU, 2003, p.69). Para o pesquisador francês o que ele chama de “necessidade cultural”, ou seja, a propensão em consumir arte, é produto da educação. Mas se a educação tem papel preponderante na formação dos gostos, conforme afirma Bourdieu, Umberto Eco (2006) pode estar certo ao atribuir à própria televisão a capacidade de contribuir com o refinamento da apreciação estética, já que segundo Alceu Amoroso Lima, a formação do gosto “é fruto da educação e convivência” (LIMA apud TAVARES, 2002, p.13) 1

http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-237354,00.html. Acesso em 05/01/2012. 2 http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG71886-6011,00-O+SONHO+NAO+ACABA.html>. Acesso em: 04 mar. 2009. 3 http://ofuxico.terra.com.br/materia/noticia/2005/10/17/final-de-hoje-e-dia-de-maria-marca-27-pontos-deaudiencia3534.htm>. Acesso em: 04 mar. 2009. 4 http://cultureba.com.br/2008/12/16/%E2%80%9Ccapitu%E2%80%9D-da-mais-audiencia-que%E2%80%9Capedra-do-reino%E2%80%9D/>. Acesso em: 4 mar. 2009. 5 CULTUREBA, op. cit.

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Entretanto, se a preocupação maior dos empresários de televisão é com o consumo dos produtos veiculados, a relação enunciador/enunciatário desse meio, de uma maneira geral, parece ser relativamente simples: para atingir o maior público possível, a enunciação da maioria dos programas é construída de forma desacelerada, acessível, reiterativa. Faltalhe muitas vezes a fratura, conforme aponta Greimas (2006), a ruptura pela qual o sujeito experimentaria o valor estético. Sem essa experiência, o enunciatário que tem na televisão o principal meio de acesso à cultura, acaba por manter sua capacidade de intelecção e aceitação num nível mediano ou em constante queda. Nesse jogo, colocar o enunciatário frente a uma rigorosa linguagem estética, de forma não gradativa, pode ser perigoso. Para o enunciador e para o próprio enunciatário, que acaba por criar resistência à experimentação de novos produtos, por não se sentir confortável frente à sensação experimentada. De acordo com a semiótica tensiva, de origem francesa, o ritmo é a chave para o entendimento de um texto, seja ele verbal ou não verbal, uma vez que é responsável pela intensidade com que o sujeito da recepção interage com o enunciado, resultando daí o efeito agradável ou desagradável (RODRIGUEZ apud FECHINE, 2009), e a consequente aceitação ou recusa. Decidimos começar a análise das obras por suas respectivas aberturas, por entender que as aberturas dos programas televisivos em geral procuram sintetizar o conteúdo da obra e, às vezes, também alguns elementos de expressão. Além disso, essa peça é usada para marcar os inícios e finais dos episódios nos dias em que são exibidos. Com isso, as imagens e trilha sonora que compõem a abertura desses programas acabam por se transformar em sua identidade. No plano visual, a abertura da primeira jornada de Maria tem como primeira imagem uma cortina artesanal que se abre para um palco onde desenhos animados se movimentam em um cenário sertanejo. As cenas e personagens que se sucedem na estrada indicam para uma viagem e muitas aventuras; a paisagem é substituída à medida que as cenas se sucedem, assim como a iluminação, que indica uma passagem linear de tempo. Assim, nesta abertura, o espaço, o tempo, os personagens e a narrativa, bem como o hibridismo de linguagens que comporá o plano de expressão são antecipadas de forma a promover uma aproximação entre telespectador e obra, tanto pelo que dá a conhecer, quanto pelo que

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apenas sugere. Já na abertura da segunda jornada de Maria, embora a primeira cena mantenha elementos de aproximação com a primeira, como a cortina se abrindo, o cenário sertanejo e a compilação musical, a pouca iluminação e os tons escuros sugerem outro tempo e um tom sóbrio. Essa impressão se confirma na sequencia das imagens, em que tudo é novo: ferragens (rodas, pregos, sucatas em geral) compondo o cenário, o sertão sendo substituído pelo mar e pela cidade, ruas e construções

ofuscando os poucos

personagens que surgem. O conteúdo causa maior estranhamento e, portanto, menos intelecção. A leveza e a saudade da infância da primeira abertura são substituídas por certa opressão. Assim, se na primeira abertura os elementos novos entre os já conhecidos apontam para a surpresa; na segunda abertura essa relação é inversa: a surpresa causada pela imprecisão dos objetos e movimentos em cena, é minimizada pela retomada de elementos da abertura anterior, o que sinaliza para a continuidade de uma narrativa bem sucedida Na abertura de APR, a primeira imagem em cena não representa dificuldade de leitura: trata-se de uma coroa, objeto comum à monarquia. Nesta obra, em particular, a coroa reafirma a ideia que o próprio título traz implícita, a de que a história a ser contada refere-se à realeza. Num movimento zoom out, a coroa se aproxima e se abre a partir das frestas marcadas pelo traço do desenho, de baixo para cima, – de novo como cortinas –, iniciando um mergulho para o qual o telespectador é arrastado, e que sugere uma viagem interior. A partir daí, o que se vê são figuras soltas se sucedendo ao rápido movimento da câmara, sempre em zoom out, de forma que ao mesmo tempo em que arrasta e prende a atenção do telespectador, impede-lhe, pelo menos numa primeira leitura, uma apreensão precisa – ou mesmo razoável – do conteúdo de que é portador: escudos, portal, castelo, capela, figuras geométricas, o céu, estrelas, planetas, mandalas, cartas de baralho. Individualmente, as imagens que compõem a abertura dessa obra não são estranhas ao olhar do telespectador, a dificuldade está em construir um sentido para o que a relação entre elas pode sugerir, já que as figuras aqui apontam para símbolos (coroa, portal, castelo, estrelas, astros, baralho), metáforas da narrativa que se propõem a apresentar. Assim, a inquietação que os primeiros elementos (concretos) suscitam no enunciatário se intensifica na segunda parte da abertura, com a presença sistemática de

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símbolos místicos, o que torna o conteúdo da obra predominantemente acelerado. Diante disso, retomando Renata Mancini (2007) pode-se dizer que estamos diante de um texto que manipula o enunciatário “pela surpresa, pelo estranhamento causado pelo desconhecido, pelo insólito ou imprevisto.” (MANCINI, 2007, p. 298). No plano da expressão, temos um andamento, em princípio, também acelerado, graças principalmente à própria velocidade do movimento da câmara, mas também pela predominância dos tons escuros e da cor dourada, e pela composição musical, destituída de letra, com uma melodia repetitiva e sons agudos extraídos de instrumentos artesanais. Bibliografia BOURDIEU, Pierre, DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. (tradução de Guilherme João F. Teixeira). São Paulo: Edusp, 2003. CARVALHO, Luiz Fernando. Hoje é dia de Maria (minissérie e encarte). Rio de Janeiro: Globo Marcas, 2006. ______.(et al). A pedra do reino (minissérie). Rio de Janeiro: Globo Marcas, 2008. ______.(et al). Capitu (minissérie). Rio de Janeiro: Globo Marcas, 2009. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. (Tradução Pérola de Carvalho). São Paulo: Perspectiva, 2006. FECHINE, Yvana. Contribuições para uma semiotização da montagem. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia, TEIXEIRA, Lúcia. Linguagens na comunicação. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 2008. GREIMAS, Algirdas Julien. Da imperfeição. Trad. Ana Cláudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2002. MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. 4. ed. São Paulo: Editora Senac S/P, 2005. MANCINI, R., TROTTA, M., SOUZA, S.M. Análise semiótica da propaganda Hitler, da Folha de São Paulo. XIII Colóquio CPS - Atelier estratégias enunciativas em textos sincréticos, p. 292-304, 2007.

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A FORMAÇÃO DO TECIDO DISCURSIVO EM A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO E EM A MANTA DO SOLDADO, DE LÍDIA JORGE Audrey Castañón de Mattos Márcia Valéria Zamboni Gobbi Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Como se constrói o discurso – ou os discursos – em um romance? Entender o discurso como teia textual implica entendê-lo como resultado da imbricação de elementos diversos, como a visão (feminina ou masculina), as trajetórias das personagens, a História. Estabelecer, entretanto, como ele se constrói, vai além de simplesmente identificar e enumerar os recursos narrativos ou as categorias textuais que o compõem, pois, assim como a frase não é a mera justaposição de palavras, o discurso não é o mero emaranhar desses elementos. A propósito desta palavra – emaranhar –, não a utilizamos no sentido de caos, mas de uma ordem que assim se apresenta, como emaranhado, por não saltar diretamente à compreensão. Nos romances que constituem o corpus deste trabalho – A árvore das palavras (2004), de Teolinda Gersão e A manta do soldado (2003), de Lídia Jorge – identificamos, a priori, a presença de dois discursos entre os quais se estabelece um diálogo sofisticado. Um, mais evidente, relaciona-se à busca de suas narradoras pelo estabelecimento de suas identidades, por sua afirmação enquanto indivíduos. Outro, subjacente ao enredo, está ligado ao processo histórico de formação dos contextos em que se ambientam as narrativas. O diálogo entre ambos evidencia a interferência de aspectos sociais no indivíduo e viceversa. Nossa tentativa de compreender o discurso, ou discursos, nesses dois romances da atual prosa portuguesa, ampara-se na análise de sua formação enquanto tecido discursivo, isto é, pretendemos desmanchar-lhes as costuras e isolar os elementos que os compõem. Por esse motivo, propomos uma análise do discurso histórico que subjaz a ambos os romances, bem como do “discurso do eu” que as narradoras levam a cabo por meio do refazimento de suas trajetórias e das de outros personagens importantes em seu processo de constituição como sujeitos. Mas não apenas isso. É preciso deslindar esses discursos – no sentido barthesiano de desfiá-los como a uma malha –, compreendê-los na série de relações que estabelecem entre si.

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Esse trabalho de detetive não pode ser realizado sem que se leve em conta o atual estado da arte das teorias da literatura, as quais vêm preterindo o binarismo analítico frente ao reconhecimento da literatura como “entrelugar” (COMPAGNON, 2010, p. 135), como interface entre o mundo e seu próprio universo. Se, de um lado, a desconstrução1 do tecido discursivo com vistas à sua compreensão não pode perder de vista a especificidade do discurso literário, de outro, não deve ignorar os índices de referencialidade que o remetem àquilo que lhe é externo: a realidade circundante, o contexto histórico, o autor implícito. A análise da formação do discurso no corpus selecionado para este trabalho considera o momento político-social do período de sua produção como doador tanto da temática que perpassa esses discursos quanto da sua realização textual. Em outras palavras, tem-se, nos dois romances, a referencialidade refletida pelas estratégias linguísticas. Algumas coincidências unem as duas obras estudadas; duas delas motivaram a que traçássemos um esboço do contexto de sua produção: as temáticas de ambos giram em torno do passado recente de Portugal – um passado conturbado, marcado, entre outros fatos, pela política isolacionista da ditadura de Oliveira Salazar e pela longa guerra colonial – e, segunda coincidência, nos dois romances as narradoras, a partir do olhar que dirigem para o exterior de si mesmas, realizam um autoexame, procuram determinar seus próprios lugares no mundo por meio do entendimento da realidade que as cerca. Essas duas posturas – a do exame do passado e do exame do “eu” – estão presentes em outros autores da prosa portuguesa da segunda metade do século XX, como José Saramago e José Cardoso Pires, de forma que se pode inferir daí uma tendência do período – iniciado com a abertura democrática do país em 1974 – a qual, para ser primeiramente confirmada e depois compreendida, requer certo conhecimento do momento em que ocorre. Assim, dedicamos um capítulo do trabalho aos “Diálogos entre Literatura e História”, o qual incorpora um panorama político e social de Portugal nos 25 anos que sucederam a Revolução dos Cravos. Assuntos como a definição da identidade portuguesa, o período ditatorial, o mundo das colônias e sua posterior independência foram alvos do revisionismo crítico da literatura portuguesa do final do século XX. 1

Desconstruir no sentido de isolar as partes constituintes, visando à compreensão de suas funções no todo.

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No caso do romance A árvore das palavras, esse movimento retrospectivo não se restringe à esfera temática. Ao ambientá-lo em um Moçambique ainda sob o estatuto de colônia de Portugal, Teolinda Gersão revisa também um momento literário cujo ápice se deu entre os anos 1930 e 1974, que é a literatura colonial. Essa retomada, pela forma como se processa, num diálogo muito nítido com aquela estética, por meio do qual promove a sua atualização para o novo paradigma da forma de se pensar a relação entre Portugal e suas (ex) colônias, configura-se como um exercício metaliterário bastante sutil, porque estrutural, operando como um texto paródico do gênero “romance colonial”, na medida em que desloca o modelo daquela estética. Servimo-nos da tipologia proposta por Francisco Noa (2002) para demonstrar como o romance em questão se apropria de características determinantes da literatura colonial e como seu olhar revisionista promove subversões em seu interior. Assim como em A árvore das palavras, no romance de Lídia Jorge também o discurso histórico se presentifica na narrativa: o patriarcado de Francisco Dias, as emigrações por motivações econômicas, o envio de portugueses para as possessões portuguesas na Índia. Pretendemos mostrar a relação entre o discurso ficcional e o histórico, seguindo uma linha de abordagem semelhante à da análise do romance de Teolinda Gersão, isto é, destacar o papel do discurso histórico na narrativa. Inicialmente pensamos em utilizar como suporte teórico o livro de Lincoln Secco (2004), A revolução dos cravos, porque, como o historiador analisa os fatos numa perspectiva de longa duração, fornece dados históricos sobre o Portugal dos anos em que está ambientado o romance, basicamente as décadas de 1950 e 1960. Nessa parte do trabalho, entretanto, apresentou-se nos uma dificuldade metodológica: A análise de A árvore das palavras encontrou na tipologia da Literatura colonial o modelo de que o romance se apropriou e subverteu para consolidar a presença da História em sua estrutura. No caso de A manta do soldado, não identificamos, até o momento, um modelo ou estética com que romance estabeleça uma relação tão dialógica (quanto aquela que identificamos entre o romance de Teolinda e o romance colonial). O romance é narrado (predominantemente) em terceira pessoa – há algumas alternâncias significativas para a primeira pessoa do discurso – e focaliza a relação da

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narradora com seu pai que, entretanto, não convive com ela, pois antes de a filha nascer escolheu viajar pelo mundo. A narradora habita um casarão rural onde convive com o avô, seis tios e suas esposas e maridos e sua mãe, casada com um dos tios que assumiu sua paternidade em lugar de seu verdadeiro pai. Francisco Dias, o avô, centraliza a autoridade sobre os filhos, genros e noras, tanto em relação ao trabalho na terra quanto às suas vidas pessoais (foi ele quem obrigou seu filho mais velho a casar-se em lugar do caçula, para salvaguardar a honra da família). Os filhos, entretanto, abandonam a propriedade e emigram para países da América. O leitor toma conhecimento desses fatos a partir do trabalho da narradora de refazer a narrativa de seu pai por meio de tudo que ouve a seu respeito dos demais habitantes da casa. Como figura ausente, sua imagem é idealizada pela filha ainda criança e depois destruída pela adulta. Nota-se, por esse breve resumo, como o casarão de Francisco Dias parece ser uma metáfora do próprio Portugal de Salazar. Embora tenhamos localizado o discurso histórico no romance, falta-nos determinar se, como em Teolinda Gersão, há uma estética específica da qual se apropria. Intentamos analisar também outro discurso, a que chamamos “discurso do eu”, que se forma simultaneamente à escrita do Outro. Nos dois romances as narradoras, por meio de rememorações, refazem a narrativa de outras pessoas – em A manta do soldado, a narrativa do pai ausente, como mostramos, e, em A árvore das palavras, a trajetória dos pais da narradora. Dessa escrita do Outro resulta a escrita do próprio indivíduo, no caso, das duas narradoras. A distinção de ambas enquanto seres individuais depende do reconhecimento da alteridade, da delimitação do outro. Nossa análise não pretende perder de vista que a escrita do eu se interliga à escrita da História. Tanto em Teolinda quanto em Lídia Jorge, os percursos dos pais, tios e mesmo dos avós, evocam a vocação portuguesa para as viagens. Em A manta do soldado, Walter aventura-se pelo mundo como um espírito desassossegado em busca de algo incerto, retomando, em certa medida, um dos mitos de formação de Portugal. Os irmãos de Walter também emigram em direção às Américas para “fazer a vida”. Em A árvore das palavras, também por motivos econômicos, Laureano deixa Portugal rumo à África, mesmo destino de Amélia, anos mais tarde, mas por razões amorosas. Antes de Laureano seu pai já havia deixado o país para trabalhar no Brasil.

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Os destinos dessas personagens são ditados pela situação política e social de Portugal. Nas décadas de 1930 e de 1940 Laureano e Amélia vão para Moçambique, época em que o sistema colonial ainda não entrara em xeque e povoava o imaginário português como lugar de oportunidades de enriquecimento ou refúgio para os que viviam desilusões amorosas, como bem pontua Francisco Noa (2002) em seu Mito e miopia – Moçambique como invenção literária. Nos anos 1950, Walter, enviado pelo Exército, parte para a Índia, onde se localizava a possessão portuguesa de Goa. A partir dos anos 1960, quando o sistema colonial começa a entrar em crise com o início da longa guerra, a África deixa de ser um bom destino e é a América que passa a atrair os portugueses, destino dos seis irmãos de Walter que vão escapando, sorrateiramente, ao domínio de Francisco Dias. É nesse mesmo período, com o agravamento da crise econômica em Portugal, advindo, em grande parte, dos gastos dispendiosos com as guerras no Ultramar, que a situação das populações rurais – caso da família Dias – começa a entrar em colapso, registrando-se grandes fluxos de êxodo dessas áreas para as cidades que, no entanto, não têm estrutura para receber os numerosos recém-chegados. Todo esse contexto impulsiona as emigrações em direção a outros países da Europa e para as Américas, como os irmãos Dias. Os dois romances são extremamente ricos, no sentido de que concorrem para a constituição da malha discursiva diversos “fios”. Em Teolinda há uma sutileza deliberada dos procedimentos, tudo parece ser subjacente, estar em relação de tensão com a superfície e mal se contendo para vir à tona; também é deliberada a explicitação em Lídia Jorge: as comparações às claras entre a casa dos Dias e o Estado, ou as intenções da narradora ao procurar o rompimento com o pai. Não perde, entretanto, o romance de Lídia Jorge, em sofisticação. A explicitação acaba por colocar o discurso constantemente em suspeição – fica-se na dúvida, por exemplo, se a narradora foi injusta ao escrever a parábola sobre o pai ou se tudo que diziam dele era verdade. Essas são linhas muito gerais da análise que os romances comportam e essa visada tem o objetivo de demarcar, ainda que provisoriamente, o seu rumo e propiciar a se façam sugestões no sentido de afiná-la. Bibliografia

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L’AMOUR DÉCADENT NAS CENAS DE VILLIERS DE L’ISLE-ADAM, MAURICE MAETERLINCK E FERNANDO PESSOA Beatriz Moreira Anselmo (CAPES) Renata Soares Junqueira Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – Araraquara A estética simbolista-decadentista e seus artistas – escritores, músicos, pintores etc. – exerceram grande influência sobre autores que pertenceram ao movimento modernista. Para muitos artistas do início do século XX, os seus antecessores simbolistas foram uma rica e inspiradora fonte que muito acrescentou à formação de uma nova expressão artística. Tal inspiração pode ser realçada no caso do escritor português Fernando Pessoa (1888-1935), que seguiu os passos de poetas-dramaturgos relacionados com o SimbolismoDecadentismo, em especial os do belga Maurice Maeterlinck (1862-1949) e os do francês Villiers de L’Isle-Adam (1838-1889). A aproximação destes três autores, do ponto de vista de uma teoria das influências, muito tem sido aventada. Todavia, não há estudos que mostrem, de fato, elementos pontuais que o autor francês, o belga e o português têm em comum. Por isso, nosso objetivo inicial é estudar e analisar obras dramáticas de Villiers de L’Isle-Adam, Maurice Maeterlinck e Fernando Pessoa, subsidiadas também pelas respectivas obras teóricas e ensaísticas, a fim de evidenciar que uma determinada temática amorosa, a que chamamos de “amour décadent”, é sistematicamente explorada pelos três autores e encontra-se especialmente vistosa – ainda que com tonalidades distintas – nos textos Axël (1890), de Villiers de L’Isle-Adam, Pélleas et Mélisande (1892), de Maurice Maeterlinck e nos fragmentos dramáticos de Fernando Pessoa intitulados Salomé, Diálogos no jardim do palácio, A morte do príncipe, e Sakyamuni. Tais fragmentos encontram-se publicados na

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tese de doutoramento chamada Fernando Pessoa et le drame symboliste: héritage et création (1985), de autoria da pesquisadora portuguesa Teresa Rita Lopes. Após a integralização dos créditos no primeiro semestre de 2011, teve início o período de análises das obras literárias citadas sob o viés teórico, com o intuito de elaborar parte da tese que foi apresentada em relatório de qualificação da pesquisa de doutorado em 31 de maio de 2012. Situa-se, portanto, a pesquisa, na fase final de análise, recolha de dados e escrita da tese. Para o exame de qualificação fora apresentado à banca examinadora, além do relatório de atividades e disciplinas realizadas, três capítulos que comporão a tese. No primeiro capítulo fora realizado um levantamento aprofundado da estética simbolista em França, Bélgica e Portugal e particularmente da existência de uma expressão dramática na estética do fin-de-siècle. Acreditamos ser fundamental, pois, a identificação do contexto histórico em que o teatro simbolista se desenvolveu, das influências que recebeu, das tendências filosóficas e ideológicas que se seguiram e das inovações estéticas que tais tendências promoveram. Para isso, utilizamos a fortuna crítica do Simbolismo-Decadentismo, com destaque para os estudos de Edmund Wilson (2004), Anna Balakian (1967), Jean-Nicolas Illouz (2004), Arnold Hauser (2003), Eugen Weber (1988), Guy Michaud (1966) etc. No segundo capítulo tratamos de Villiers de L’Isle-Adam e de sua obra teatral, com ênfase ao drama poético Axël, obra que pode ser considerada como o verdadeiro testamento da escrita literária villiersiana. Além disso, traçamos uma argumentação sobre as transformações que Villiers efetuou em seu teatro no que diz respeito ao afastamento e à transição de um teatro romântico para um teatro que acreditamos estar na vanguarda da dramaturgia simbolista. Já no terceiro capítulo da tese fora analisada a representação da problemática questão amorosa em Axël, a partir dos pressupostos teóricos da filosofia de Platão expostos n’ O banquete. Partimos de tal embasamento estético-filosófico com opropósito de traçar as raízes da negação e/ou impedimento amoroso presente não só no drama escolhido de Villiers, mas também nos dos outros autores que compõem este trabalho. Além da questão amorosa discutida no capítulo três da tese, apresentamos uma análise do olhar e da apreciação dos autores decadentes sobre a figura feminina.

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Por fim, estamos em processo de confecção de outros dois capítulos em que expomos nossas análises da peça Pélleas et mélisande de Maurice Maeterlinck e dos dramas fragmentados de Fernando Pessoa, onde também procuramos lançar luzes sobre o desenvolvimento da temática amorosa na literatura desses autores que escreveram suas obras nos fins do século XIX e no início do XX. A tese que defendemos é, pois, partidária do apego que tanto Villiers de L’Isle-Adam e Maurice Maeterlinck quanto Fernando Pessoa, afastados no tempo e espaço, têm à estética do fin-de-siècle, principalmente no que concerne à negação e ao escapismo da realidade desenvolvimentista de suas épocas e à banalização do sentimento amoroso em meio a uma atmosfera de busca de riquezas que oprimia e massificava o homem. Bibliografia ADORNO, Theodor. Notas de literatura 1. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2003. p.55-63. ALBERONI, Francesco. O erotismo. Trad. Élia Edel. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. 198p. ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Cultrix, 1962. ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. Tradução de Teixeira Coelho. São Paulo: Man Limonad, 1984. Título original: Le théatre et son double, 1938. ALMADA-NEGREIROS, José Sobral de. Obras completas: teatro. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993. v. 7. (Biblioteca de Autores Portugueses). BALAKIAN, Anna. O simbolismo. Trad. José Bonifácio A. Caldas. São Paulo: Perspectiva, 1967. 147p.(Coleção Stylus) BARATA, José Oliveira. História do teatro português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991. 417p. BAUDELAIRE, Charles. Les fleurs du mal. Édition établie par J. Dupont. Paris: Flammarion, 1991. 373p. ______. O pintor da vida moderna. Trad. Adolfo Casais Monteiro. Lisboa: Editorial Inquérito, 1941. 68p. BENTLEY, E. A experiência viva do teatro. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

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A CRÍTICA ROSIANA E O VEIO INTERPRETATIVO SOCIOLÓGICOHISTORIOGRÁFICO DE GRANDE SERTÃO: UMA LEITURA CRÍTICA DA CRÍTICA Candice Angélica Borborema de Carvalho Maria Célia Leonel Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr De modo sistemático e dialético, ancoradas em linhas teóricas e metodologias diversas, as leituras críticas acerca da obra Guimarães Rosa, neste mais de meio século decorrido desde que o escritor surgiu na cena literária, têm sido elaboradas e reelaboradas em diferentes esferas crítico-analíticas. Tais abordagens – fruto da irradiação da obra rosiana pelos mais diferentes veios interpretativos – permitiram que se ampliasse a compreensão da produção ficcional do escritor mineiro para além dos limites inicias da crítica. No caso de Grande sertão: veredas, as leituras desdobraram-se de tal modo que contamos hoje com um leque crítico vastíssimo, de forma que é possível sistematizarem-se as múltiplas perspectivas de interpretação do romance em diferentes vertentes analíticas – pesquisas linguísticas e estilísticas; análises de estrutura e composição de gênero; crítica genética; estudos esotéricos e metafísicos; interpretações sociológicas, históricas e políticas, dentre outras. Voltando-se ao veio interpretativo sociológico-historiográfico de Grande sertão: veredas, a pesquisa propõe estabelecer uma leitura crítica das abordagens críticas ancoradas na relação entre literatura e sociologia histórica. Alentadas pela possibilidade de paralelismo entre o romance de Guimarães Rosa e a historiografia, tais abordagens, que se difundiram exacerbadamente pela crítica, sobretudo neste século, encaram a obra, principalmente, como romance-ensaio e/ou como alegoria político-histórica do Brasil. Com raízes fixadas nas proposições encetadas no ensaio de Antonio Candido (2000b) de 1957 – “O Sertão e o Mundo”, posteriormente intitulado de “O homem dos avessos” –, a corrente interpretativa sócio-histórica e política de Grande sertão: veredas é inaugurada na década de 70 pelo estudo de Walnice Nogueira Galvão (1972). Em As formas do falso, a ensaísta – sem negligenciar os elementos ficcionais e estético-estruturais do romance e voltando-se ao desvendamento de seus aspectos sócio-históricos e políticos – afirma que a obra constitui um profundo e completo ensaio sobre a plebe rural brasileira. A orientação

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crítico-analítica de Walnice Nogueira Galvão foi retomada enfaticamente na última década por, entre outros, Heloisa Starling (Lembranças do Brasil, 1999), Willi Bolle (grandesertão.br, 2004) e Luiz Roncari (O Brasil de Rosa, 2004), os quais, agudizando as dimensões sociológicas do romance, reinterpretam-no como alegoria histórico-política e social do Brasil. Willi Bolle (2004, p.23-24) considera Grande sertão: veredas como a “reescrita crítica” de Os sertões e – ao lado de obras historiográficas e sociológicas, como as de Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Gilberto Freyre – um “romance de formação” em que se revela o “retrato do Brasil”, escopo da proposição do ensaísta. Para Heloisa Starling (1999, p.6) – guiando-se pela noção de alegoria benjaminiana, tal como Bolle, e por autores da teoria política clássica –, o romance rosiano figura um “gigantesco ‘mapa alegórico’ do interior do Brasil” onde se projetam “cenas de fundação” da história. Já a leitura de Luiz Roncari (2004, p.293) arquiteta-se sobre a base argumentativa de que a obra representa a “teatralização de nossa vida político-institucional”. Cabe acrescentar que na mesma linha crítica de Walnice Nogueira Galvão (1972), a interpretação de Sandra Guardini T. Vasconcelos (2002) baseia-se na leitura de Grande sertão: veredas como romance-ensaio. Segundo Vasconcelos (2002, p.331), o romance de Guimarães Rosa é “[...] sobretudo um agudo ensaio sobre a liquidação do coronelismo durante a Primeira República, narrado de dentro e de baixo, da perspectiva de uma personagem que viveu todo o processo.” Como exposto sumariamente, tais interpretações – debruçadas sobre aspectos da cor local incrustados na trama do continente ficcional rosiano – apresentam progressivo acirramento no tratamento da relação entre literatura e sociologia histórica, inclinando-se de modo empenhado às dimensões nacionais (ou localistas) de Grande sertão: veredas e distanciando-se do cerne que fundamenta a recepção crítica inaugural do romance, o mencionado ensaio de Antonio Candido (2000b) – “O homem dos avessos” – calcado na dialética local-universal. Apontando a ambiguidade como o elemento estrutural que compõe os todos os níveis do romance rosiano e mostrando como as instâncias ambivalentes e lábeis conjugam-se dinamizadas na integridade da obra, Antonio Candido (2000b, p.122) afirma que Grande sertão parte do “poderoso lastro de realidade” e converte-se em “[...] grandes lugares-

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comuns, sem os quais a arte não sabe sobreviver: dor, júbilo, ódio, amor, morte, – para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o Sertão é o Mundo”. Afirmação que – ressalte-se – introduz e encerra “O homem dos avessos”, tecendo-se como o arcabouço argumentativo que se lança como estofo nos ensaios ulteriores de Antonio Candido (1989a, 1989b, 2004a) acerca da produção ficcional rosiana e que alicerça o conceito de “superregionalismo” com crítico (CANDIDO, 1989b, p.162) definiria a obra de Guimarães Rosa. Frente ao largo processo de transformações (aqui muito sucintamente pontuadas) que concorrem ao dimensionamento crítico de Grande sertão: veredas, convenha-se sublinhar o que talvez seja evidente: a posição da crítica literária (no sentido amplo que engloba todas as modalidades do discurso crítico literário) liga-se – como, aliás, os estudos literários em geral – à volubilidade de relações estabelecidas com texto literário. A natureza de contrapartida do texto crítico em que se erigem seu caráter e sua função insufla-o, no processo temporal, a sucessivas tendências replicantes ou a redimensionamentos de juízos, caso contrário, ele se sucumbe à força do processo temporal ou à esfera do decalque apreciativo. Nesse processo de renovação (pretensas inovações, por vezes), a crítica mune-se de escolhas de ferramentas teóricas e aparatos analítico-metodológicos que lhe permitam, na apreensão da obra literária, ancorar interpretações ou julgamentos distintos. O fato é que, a cada posicionamento crítico, realizado por um sujeito a seu tempo e sob a retração, a expansão, a recuperação ou, ainda, a conjunção de critérios analíticos e veios teóricometodológicos, a avaliação, ao passo que é sincrônica, é também diacrônica, constituindo um processo ou um encadeamento de juízos em que as disparidades possibilitam-nos visualizar o alargamento de interpretações críticas desdobradas em variados modos de julgamento. Na sucessão de teores e pesos avaliativos (relativismo ou pluralismo? Eis a dúvida que se escancara), o processo de diversificação de juízos críticos incorporados a fatores acoplados ao decurso do tempo faz transparecer, portanto, o redimensionamento crítico aliado à procura pela descoberta de novas interpretações que revelem primazias de juízos valorativos. No bojo desse processo, afloram-se transmutações de prerrogativas de valor.

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Não se desconsiderando a inexorabilidade do redimensionamento da crítica literária, tampouco se desprezando a essencialidade desse processo em curso (mutatis mutandis) ao aprofundamento e à ampliação da exegese literária, a reflexão que aqui se deixa impor é em que medida o discurso crítico, açodado pelo apetite de originalidade, tem se vergado à proposição de combinações e a procedimentos arraigadas a ingerências vorazes – e muitas vezes arbitrárias – de tendências dogmáticas instauradas em torno de certos modismos teórico-metodológicas atribuindo-lhes posição nuclear e desfocando a obra literária, relegando-a, muitas vezes, à condição de pré-texto. A integridade da crítica literária estaria sendo de certo modo banida em razão de visões parciais em relação tanto à função e ao processo crítico quanto à natureza da obra literária, questiona-se. Ao que nos concerne, levando-se em conta as reflexões travadas, compete-se averiguar, do ponto de vista da investigação da estrutura da narrativa e do procedimento metodológico, de que modo são constituídas as relações entre critério de avaliação e valor literário pelo veio crítico orientado ao entrecruze entre literatura e sociologia histórica através da conjugação da ficção à realidade. Cabe ressaltar que não se trata de questionar a validade de interpretações críticas sociologicamente orientadas, uma vez que tal caminho é possível e legítimo quando conduzido à interpretação coerente e, acima de tudo, ao discurso crítico que seja integral. A reflexão que se faz plausível é se o curso crítico rosiano escoltado em tal orientação tem se arqueado ao brandimento do caráter sociológico como critério absoluto e incondicional, conduzindo-se a posições críticas extremadas e alheadas à composição estrutural da obra literária. Por outras palavras, questiona-se se a vertente crítica sociológico-historiográfica de Grande sertão: veredas, por meio de estudos de notável envergadura nos meios acadêmicos, tem se embrenhado no percurso analítico parcial e estrito do “sociologismo crítico” – usando a expressão de Antonio Candido (2000a, p.9) em Literatura e sociedade –, convergindo-se à tendência “[...] devoradora de tudo explicar por meio de fatores sociais”. Sem o intuito de reduzir a pluralidade de leituras do romance rosiano a uma tábua unívoca de valores – uma vez que valor é uma atribuição historicamente construída –, a pesquisa tem como meta emparelhar e debater dialogicamente o modo e as implicações cristalizadas no percurso crítico aliado à corrente interpretativa sociológico-historiográfica de Grande sertão: veredas. Nesse sentido, a reflexão que aqui se obriga fazer é em que

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medida tal direcionamento crítico, ao enfatizar de modo agudo a função que a estrutura social exerce na composição do romance rosiano, tem submetido a perspectiva crítica de Antonio Candido (2000b), fundada na dialética local-universal, a sucessivas inflexões parcializadas de modo a dimensionar o curso crítico de Grande sertão: veredas a campos de visões desmedidos incorrendo no agravo tanto da integridade da criação artística de Guimarães Rosa quanto da dimensão funcional cabida à crítica literária. O embasamento teórico da pesquisa divide-se em três principais linhas de estudo. A primeira compõe-se de estudos sobre teoria literária e crítica literária, destacando-se Texto, crítica e escritura (2005) e “Situação crítica” (1990) de Leyla Perrone-Moisés, O prazer do texto (1993) e Crítica e verdade (1970) de Roland Barthes, Os universos da crítica de Eduardo Prado Coelho (1982), A crítica literária no século XX de Jean-Yves Tadié (1992), Crítica de la crítica de Tzvetan Todorov (1991), Conceitos de crítica de Wellek (1970), Crítica em tempos de violência de Jaime Ginzburg (2012), “Movimentos de um leitor: ensaio e imaginação crítica em Antonio Candido” de Davi Arrigucci Júnior (1992), O método crítico de Sílvio Romero (1988) e o “Prefácio” de O discurso e a cidade (2004b) de Antonio Candido, dentre outros. A segunda linha constitui-se dos estudos que dão suporte teórico às relações entre crítica e sociologia, destacando-se, especialmente, Literatura e sociedade de Antonio Candido (2000a), além das reflexões travadas por Alfredo Bosi (2002) em “Por um historicismo renovado: reflexo e reflexão em história literária” e por Otto Maria Carpeaux (1959) em História da literatura ocidental. À terceira linha de estudos pertencem os ensaios críticos acerca da obra de Guimarães Rosa e, especificamente, de Grande sertão: veredas, subdividindo-se em três grupos. Primeiro: os estudos de estrutura, composição e gênero do romance, que nos servirão como aparato teórico e paradigma crítico-analítico, salientando-se “O mundo misturado” de Davi Arrigucci Júnior (1994), O dorso do tigre (2001) e “De Sagarana a Grande sertão: veredas” (1996) de Benedito Nunes, “Trilhas no Grande sertão” de Cavalcanti Proença (1959), Rosa em dois tempos de José Carlos Garbuglio (2005), “Grande sertão: estudos” de Roberto Schwarz (1970), dentre outros. O segundo grupo compõe-se dos ensaios de Antonio Candido: “Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa” (2004a), “Notas de crítica literária – Sagarana” (2002a), “No Grande sertão” (2002b), “O homem dos

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avessos” (2000b), “A nova narrativa” (1989a), “Literatura e subdesenvolvimento” (1989b). Terceiro grupo: os estudos pertencentes à vertente crítica sócio-histórica e política de Grande sertão: veredas e que constituem o corpus da pesquisa: As formas do falso de Walnice Nogueira Galvão (1972), grandesertão.br de Willi Bolle (2004), O Brasil de Rosa de Luiz Roncari (2004), Lembranças do Brasil de Heloisa Starling (2009), “Homens provisórios. Coronelismo e jagunçagem em Grande sertão: veredas” de Sandra Guardini T. Vasconcelos (2002). Acrescentem-se como subsídio crítico ao estudo da crítica rosiana “Alegoria e política no sertão rosiano” (2008) e “Sociologia e literatura” (2009a) de Maria Célia Leonel e José Antonio Segatto. Bibliografia ARRIGUCCI JÚNIOR, D. O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n.40, p.7-49, nov.1994. ______. Movimentos de um leitor: ensaio e imaginação crítica em Antonio Candido. In: ______. Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. D’INCAO, M. A., SCARABOTOLO, E. F. (Org.). São Paulo: Cia da Letras: Instituto Moreira Salles, 1992. p.181-204. BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de Jaime Ginzburg. São Paulo: Perspectiva, 1993. ______. Crítica e verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1970. BENJAMIN, W. Passagens. Edição alemã de Rolf Tiedemann, organização da edição brasileira de Willi Bolle, colaboração de Olgária Chain Féres Matos, tradução do alemão de Irene Aron, tradução do francês de Cleonice Paes Barreto Mourão, revisão técnica de Patrícia de Freitas Camargo e posfácios de Willi Bolle e Olgária Chain Féres Matos. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. BOLLE, W. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 2004. BOSI, A. Por um historicismo renovado: reflexo e reflexão em história literária. In:______. Literatura e resistência. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p.7-53. ______. História concisa da literatura brasileira. 44.ed. São Paulo: Cultrix, 2007.

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A REESTRUTURAÇÃO TEMÁTICA E DISCURSIVA NO CONTO CONTEMPORÂNEO DE ANGELA CARTER: UMA LEITURA COMPARATIVA Carlos Eduardo Monte (CNPQ) Luiz Gonzaga Marchezan Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Não poderiam ser mais tempestivos os presentes debates, uma vez que nossa pesquisa enceta, atualmente, para quatro caminhos mais ou menos distintos. É fato, os assuntos se imbricam, mas, por vezes, geram desvios que simplesmente não conseguimos enxergar – ou até mesmo não podemos deixar de conter, engendrados pelo afã de não querer deixar nada de fora. Assim, essa ou aquela vertente, uma nova informação, ou até mesmo todo um caminho que se descortina durante as horas de leitura e pesquisa, parece nos instigar, por vezes, muito mais que aquelas intenções iniciais pretendidas, coisa que nos leva do estranhamento à satisfação, e vice-versa. Se em um primeiro momento gritamos: Eureca! No momento seguinte, já pesando as consequências do novo, nos indagamos: o que fazer com essa informação? Por conseguinte, não raramente nos vemos perdendo o foco, o fio de Ariadne embaraça-se todo, e nos deparamos com as mais complicadas missões de uma pesquisa, excluir, cortar e (re)direcionar. Nada obstante estas ponderações iniciais, devemos dizer que estamos empolgados com a ramificação possível sofrida em nossos estudos, entendemos, enfim, que surte como prova de que a escolha se mostra cada vez mais pertinente e interessante – pensamos que seria terrível seria a constatação do oposto, como, por exemplo, a perda de interesse pela autora ou coisa que o valha. Resumidamente, estamos amplamente iludidos, e nada desiludidos. Falemos, enfim, mais objetivamente. No estágio embrionário de nossa pesquisa, olhávamos mais detidamente ao que nos parece ser uma característica inerente do ser humano, o ato de contar uma história. Alguma significação inicial dessa arte, a partir de Esopo, depois com Fedro, e já bem mais tarde com La Fontaine, sem dúvida, repousa na construção fabular, registrada como o ato de fala, 91

pela conjugação do mundo animal com o que é, em verdade, condição propriamente humana. Inventiva, pontual, breve, expressiva, harmônica e argumentativa, a fábula representa, em sua origem, a inocência coletiva da linguagem, formulada, essencialmente, para ser ouvida. É dessa ouvida, dessa compreensão, que conhecemos também o conto popular e folclórico, e, sobretudo, de onde se origina o conto de fadas, no qual se exercita um reaproveitamento daquela fabulação, estabelecendo uma continuidade natural à fábula. Recolhas, estudos e reconfigurações dessas histórias tornaram-se famosas nas mãos de Perrault e dos irmãos Grimm. No campo teórico, A morfologia do conto maravilhoso, de Propp e, sobretudo, o abrangente Formas simples, de Jolles, são obras lapidares para a compreensão desse iter evolutivo, resultando, de forma indefectível, na produção intelectualizada, em prosa, que hoje conhecemos como conto, uma prosa para ser lida, e não mais ouvida, que se estrutura pela narrativa que dará um fim, uma solução, imaginária ao que se pretende contar, como se sucede nos outros gêneros hoje por nós conhecidos. Atribuímos ao romance a excelência do gênero literário, com sólido respaldo teórico, a quem diga já ao esgotamento, mas com relação ao conto há unanimidade na ausência de uma teoria mais substanciosa. Seus estudos, normalmente, reivindicam não uma teoria encerrada, mas uma tipologia que decorre, no mais das vezes, das reflexões e análises cometidas pelos próprios autores, como podemos ler, por exemplo, em Poe, Tchekhov, Borges ou Cortázar. Se para Edgar Allan Poe, um dos fundadores da noção moderna do conto, a brevidade, a originalidade e a unidade de efeito eram características imprescindíveis à constituição de um conto, como podemos ler em sua interessantíssima Filosofia da composição, vimos que seus sucessores, absolutamente brilhantes, como Maupassant ou Tchekhov, ou, ainda mais tarde, com Virginia Woolf, Joyce, Kafka, Katherine Mansfield, Faulkner ou Hemingway, sedimentando basicamente dois tipos de conto: conto de enredo ou de atmosfera, consolidam o gênero pela arte da reinvenção de que se valem seus autores, sem, contudo, perder seus elementos básico-caracterizadores. A amplitude de seu sentido, dessa maneira, pode ser compreendida a partir de suas diferenças, uma vez que o onipresente não pode ser percebido – como pontua Todorov. Como se nota, passeamos pelo brilhantismo de muitos autores, já completamente canonizados. E a pergunta que fizemos, então, foi àquela mesma que já ecoa desde meados dos anos 60, e agora, após todo esse arcabouço genial de produção, o que de fato temos ou pode ser feito?

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Angela Carter, de nosso especial apreço, pareceu ser uma boa fonte de inspiração para esse estudo. Nossa pesquisa, portanto, inicialmente, justificava-se porque procurava unir, ou cindir de uma vez, estas duas pontas, disparadas por uma mesma história e tema, um intertexto que advém do fabular e da tradição popular, para, então, ser convertida com mestria como obra intelectualiza, no conto contemporâneo, cujos procedimentos organizacionais – apreendidos a partir do Formalismo Russo, e sedimentados pelo Estruturalismo –, narrativos e discursivos são reformulados na solução da história e na materialização do sentido do texto – já que a autora reescreveu, em 1979, dez contos transcritos por Charles Perrault, em 1697. A veia transgressiva e caudalosa que a contemporânea Carter – romancista, contista, ensaísta e roteirista –, veicula de forma maravilhosamente inventiva – até mesmo antirrealista à ficção britânica –, caracteriza-se por convergir o grotesco e a sexualidade da fantasia pela construção de verdadeiros contos de fadas para maiores, de forma que, não por acaso, tem sido reconhecida como uma espécie de nova mamãe ganso. Detidamente, nossa pesquisa buscou sistematizar a evolução do conto como gênero literário, partindo do ato de contar, fabular, do conto de fadas, do conto popular ou folclórico (talvez ainda não literário, como lemos em Jolles), para, então, firmar-se, já no século XIX, como produção intelectualizada, artística, pensada a exaustão. O trabalho, por assim dizer, tornou-se essencialmente comparativo, o corpus foi reduzido a apenas um conto: partimos do popular Barba-Azul, de Perrault, dotado de reminiscências fabulares, e o contrapusemos (tomando-o como hipotexto) ao conto de Carter, O quarto do Barba-Azul (aproximadamente 60 páginas). Interessava-nos, inicialmente, entender e esgotar os procedimentos organizacionais da autora, e de como havia solucionado sua narrativa, a partir de uma temática que atravessa séculos de existência, e, agora, no contemporâneo, reestruturada de forma válida e conveniente às suas intenções, num exercício de verdadeira transvalorização axiológica. Pois então, resumidamente, eram estas nossas intenções. Ocorre que, à nossas noções preliminares de pesquisa (sem dúvida, ainda muito jovens), novas ideias se somaram e acabaram por nos dar, até agora, quatro abordagens que podem nos interessar – e os debates podem perfazer enorme contribuição. Vale, ainda, a ressalva de que outras abordagens mais surgiram, mas logo pereceram de interesse. A título de exemplo, apontamos a vertente feminista, que foi logo excluída. Carter, além de se autodeclarar uma feminista (embora não

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no sentido mais ortodoxo do termo), sedimentou o movimento, em 1978, com o fabuloso ensaio The Sadeian Woman. Nosso interesse, contudo, distancia-se desse percurso: a uma, porque a autora já muito estudada por seu engajamento político – raramente Carter escapa de compêndios mais sérios que tenha como enfoque a reunião da escrita feminista; a duas, porque nos distanciaríamos demais da análise das estratégias procedimentais literárias da autora, enfim, dos recursos discursivos de seu texto, desembocando mais essencialmente nas soluções temáticas. Entendemos que a autora mereça um olhar que não aquele de engajada, sua obra, certamente, ultrapassa o epíteto. Após estas considerações, vamos à nossa encruzilhada de opções: a) estudo mais detidamente do texto da autora, apreciando se sua obra pertence (ou se funda, por assim dizer), à determinada tipologia do conto. Entendemos que essa opção, de fato, é a que mais se alinha às nossas intenções iniciais. Nesse caso, privilegiaríamos o Estudo do Conto. Procuraríamos, enfim, compreender quais as contribuições da autora para o gênero. Além da bibliografia relacionada, contamos com o respaldo obtido com a disciplina, Procedimentos narrativos e discursivos do conto (cursada em 2011, 2.o semestre, como aluno especial); b) análise dos contos com enfoque na representação. Disciplina de base, Aspectos da narrativa (cursada em 2012, 1.o semestre). Nesse caso, parece-nos coerente realizar um estudo sobre as várias possibilidades da organização narrativa – e tomaríamos como suporte teórico a obra Discurso da narrativa, de Gerard Genette. Pelas reconhecidas relações que decorrem entre história, narrativa e narração, pretendemos pontuar, no tópico Tempo, como a ordem, a duração e a frequência foram elaboradas nesse conto. Também, em seguida, como as questões de Modo, como distância ou foco narrativo (perspectiva) foram executadas. Ainda, pensando nos níveis narrativos, a situação da Voz, pela análise da pessoa da narração. A pesquisa seria realizada em termos mais operacionais, a exemplificar: Lembro que aquela noite eu estava deitada, acordada, no vagão-leito, imersa num suave e delicioso êxtase de excitação, com a face em brasa comprimida na impecável fronha do travesseiro e o bater do coração a imitar o bater dos grandes pistões que incessantemente impediam o trem que me afastava de Paris, da mocidade, da quietude branca e fechada do apartamento de minha mãe, em direção ao país inimaginável do casamento (p. 03). “Esse é o parágrafo inicial de O quarto do Barba-Azul. Abre o conto e instaura uma das diferenças fundamentais em relação ao texto com o qual dialoga. Podemos

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dizer que estamos diante do primeiro grande desvio entre as narrativas. A introdução de um narrador autodiegético oblitera o esperado Era uma vez... A história, reescrita, agora é narrada pela protagonista; memorialista, ela os organizará, convenientemente, como bem entender...”; c) estudo dos contos de Carter dentro do pós-modernismo. Disciplina de apoio, Perspectivas pós-modernas na literatura contemporânea (cursada em 2012, 1.o semestre). Pensando no diálogo agônico que cada geração produz em relação às anteriores, o contista contemporâneo sofre dessa angústia de que nos fala Harold Bloom (A angústia da influência, 1997). Para responder aquela pergunta que parecia intransponível para os artistas no final da década de 60, O que fazer agora?, John Barth investiu no aproveitamento de nossas heranças, e não em sua suplantação. A obra de Carter, sem dúvida, é clara materialização daquela resposta dada por Barth. Ela discursa a favor de que o contemporâneo, se nada pode criar de absolutamente original, inspira-se pela reutilização inventiva de procedimentos, recursos e características, assumindo esse procedimento. Aqui, sem dúvida, a reescrita ganharia destaque de estudo. Vimos, quando lemos O narrador, de Benjamin, como o narrador aglutinava e transmitia valores sociais e morais ao ouvinte e de como essa sabedoria foi se esboroando ao longo do tempo, pela ascensão do individualismo, marcando o desaparecimento do narrador clássico para dar lugar ao romancista questionador, perplexo, desorientado, como ele diz. Através da reescrita, Carter mira uma transposição diegética, normalmente de forma irônica, utilizando-se da paródia, ‘na repetição com diferença’, conforme Linda Hutcheon, que pontifica, na sua irônica transcontextualização e inversão, repetição com diferença. A paródia, enfim, precisa de quem a defenda. Tem razão Hutcheon nesse sentido. O que é a paródia: uma crítica séria? Uma alegre e genial zombaria? A exaltação do texto parodiado, o contracanto? Ou o aviltamento do texto primário? Críticos desse estilo, afundados num conceito esquizofrênico da originalidade, não conseguem olhar para a obra, sem olhar para o recurso que ridicularizam, haja vista o que escreveu Grieco acerca de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Para Carter, aquela ideia de imagem, somada a narrativa, somada ao produto da ideologia (elementos da paródia séria) – em textos em que se vão modificando elementos presentes na narrativa transposta vai buscando sua transformação de verdadeira natureza axiológica em relação ao primitivo horizonte cultural; por fim: d) estudo mais detidamente comparativo do conto de Perrault e o de

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Carter, pensando no efeito fábula que se encontra esparramado (e implícito) neste segundo, enquanto no primeiro se encontra explicitado. Disciplina de apoio, Formas da fábula (em curso, 2012, segundo semestre). A lida do material teórico acerca da fábula, ultrapassando aquele ato de fala, como verdadeiro recurso retórico-pedagógico, para se tornar, enfim, um gênero literário – no caso, esparramado pela narrativa de Carter o efeito fábula, de que nos fala Alceu Dias Lima. Aqui, o estudo comparativo, sem dúvida que movimentado pela análise dos textos em seus três níveis de leitura, aproximando-nos de certa maneira dos estudos semióticos. Cada narrativa guarda a marca de sua época, seus registros. Tais marcas, mais ou menos identificáveis, são traduções dos códigos que efetivamente pautam àquela determinada fase inventiva. Carter, uma cultora da tradição oral, escreve em um de seus inúmeros discursos teóricos (aproveitado na abertura de A menina do capuz vermelho e outras histórias de dar medo) que: “[...] foi Mamãe Gansa – arquetípica contadora de histórias – quem inventou todas as ‘histórias de velhas comadres’, ainda que ‘velhas comadres’ de qualquer sexo possam participar desse contínuo processo de reciclagem em que qualquer um pode se apropriar de uma história e modificá-la.” (2011, p. 10). É no caráter cíclico da narrativa fabular, transformada e adaptada, capaz de servir aos ‘novos leitores’, em que está toda a força criativa, atualizando seus contos dentro de um iter propositadamente corretivo, sem abandonar as constantes que se aplicam. Enfim, após a escolha do corpus, realizamos levantamento bibliográfico, lemos grande percentual dele, e cursamos quatro disciplinas que dialogam com nossa pesquisa. Resta, sem dúvida, a tomada de posição. Bibliografia ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. BACCHILEGA, C. Postmodern fairy tales: gender and narrative strategies. Philadelphia: U. of Penn. Press, 1997. BATTELLA GOTLIB, N. Teoria do conto. 4.a ed. São Paulo: Ática, 1988. BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da C. Pereira. Lisboa, PT: Relógio d’Água, 1991. ______. A troca simbólica e a morte. Trad. Maria S. Gonçalves e Adail U. Sobral. São Paulo, SP: Ed. Loyolla, 1996. 96

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NEGRAS VOZES MULHERES: COM QUANTOS RETALHOS SE TECE UMA HISTÓRIA? Cátia Cristina Bocaiuva Maringolo (CNPq) Claudia Fernanda de C. Mauro Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Ponciá Vicêncio e Beloved: história de mulheres. O amanhã de Ponciá era feito de esquecimento. (EVARISTO, 2003, p.16)

A memória pode ser considerada como a personagem principal de ambos romances: tanto Sethe (Beloved) quanto Ponciá (Ponciá Vicêncio) são construídas e constituídas pela memória, rememoração, relembrança. A memória tece e da forma a colcha narrativa das personagens, que a revisitam a todo o momento, como que para esclarecer e compreender a situação presente, que, como afirma o narrador em Ponciá Vicêncio, feito de esquecimento. A revisitação traz a tona lembranças de fatos que elas preferem esquecer, sensações e percepções inenarráveis, presentificação de uma herança cultural e histórica de um povo marcado, sistematicamente, pela exploração e subjugação. Ao mesmo tempo memória individual e coletiva.

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Desse modo, partindo dos romances Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo e Beloved de Toni Morrison objetiva-se analisar a importância da memória e da relembrança, como fator político e questionador na literatura de escritura afro-feminista. A memória do passado serve, não somente como resgate das origens — dos que já foram — mas, principalmente, como caráter constitutivo da identidade das personagens femininas dentro da história. Pretende-se analisar, portanto, como estas personagens ao serem construídas por meio da relembrança, desestabilizam concepções de gênero e raça. Tecendo história pela memória: O narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos, experimentadas no trabalho, fazem gestos que sustentam a história, que dão asas aos fatos principiados pela sua vez. Tira segredos e lições que estavam nas coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras do chão, como no conto da Carochinha. A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana. (BOSI,

1979, p.48) Ponciá Vicêncio e Beloved, ambos romances são construídos de modo artesanal, como um artista que dá forma ao barro e, com precisão e paciência, molda algo que anteriormente não havia sentido. A rememoração do passado para as personagens torna-se um meio, uma tática narrativa de tentar encontrar no passado sentido para as situações presentes que enfrentam. Tempo presente e tempo passado se entrecruzam e se misturam, algumas vezes, dando voltas que, às vezes parecem não sair do lugar. A memória, do passado serve, não somente como resgate das origens — dos que já foram — mas, principalmente, como caráter constitutivo da identidade da personagem feminina dentro da narrativa. As narrativas entrecortadas e fragmentadas configuram-se como romances em flashback; no qual os narradores recontam uma história de um modo lento, simples e delicado, como se estivesse realizando um trabalho artesanal, tecendo a história de um povo e de uma cultura. Em Beloved, Toni Morrison procura inspiração em uma história real de uma escrava fugida que, para evitar que seus filhos voltem ao confinamento, opta pelo infanticídio. Já Ponciá representa uma mulher negra brasileira, comum e simples, mas que mesmo passados tantos anos desde a tão iludidamente sonhada liberdade, ainda carrega consigo os jugos de um povo, preso ao passado, pois o presente é feito de esquecimento.

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Ponciá e Sethe tentam emendar “um tempo no outro”: no caso de Ponciá o tempo passado, marcado pela figura de seu avô, com seu próprio presente, melancólico, angustiado e vazio. Sethe tenta ligar, relembrar as lembranças de Sweet Home, seus filhos e o infanticídio, ao seu presente mal assombrado e quase enlouquecido. O tempo, assim, torna-se muito importante para a constituição dos romances, e das identidades das personagens, uma vez que é o fio condutor da narrativa. Desse modo, pretende-se refletir sobre a memória e o tempo nos romances como fatores constitutivos para a construção das personagens que, a fim de justificar e compreender o tempo presente, elas necessitam revisitar acontecimentos de tempos passados por meio da memória, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Sendo assim, o narrador representa um papel extremamente importante na tessitura da colcha narrativa, pois, ele é o que dá voz as tristezas, e aos sofrimentos dos personagens, e também o que expressa à alegria e a felicidade que as personagens, como se elas nem fossem capazes de rir e chorar por conta própria. De acordo com Bosi, a relação entre narrador e ouvinte é uma “relação de alma, olho e mão: assim o narrador transforma sua matéria, a vida humana” (BOSI, 1979, p.49). Ou seja, o narrador é aquele que transforma experiências humanas em experiências narráveis; no caso de Ponciá e Sethe é o narrador que transforma a experiência das personagens — uma ficção — em história, em realidade significativa: um mundo de experiências ao mesmo tempo dolorosas, angustiadas e solitárias, mas que são fatos e acontecimentos que merecem ser lembrados e nunca esquecidos. “A lembrança é a história da pessoa e seu mundo, enquanto vivenciada.” (STERN apud BOSI, 1979, p. 28) Qual é a função da memória? Não reconstrói no tempo, não o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundos dos vivos e o do alem, ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol. Realiza uma evocação: o apelo dos vivos, a vida à luz do dia, por um momento, de um defunto. É também a viagem que o oráculo pode fazer, descendo, ser vivo, ao país dos mortos para aprender a ver o que quer saber. (...) Hoje a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo, localiza cronologicamente. Na aurora da civilização grega ela era vidência e êxtase. O passado desse modo não é antecedente do presente, é a sua fonte. (grifo da autora,

BOSI, 1979, p.47-48)

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A memória e o tempo, conceitos humanos e intrinsecamente humanos, são a força motriz dos romances, ambos escritos por escritoras de descendência africana, mas que se encontram em realidades diferentes. Embora, pretenda-se analisar romances tão diferentes em suas especificidades, frisa-se que a análise pauta-se pelo pressuposto de que, tanto Evaristo quanto Morrison narram histórias de mulheres marcadas por passados sofredores e exploradores, mas que ao invés de pensar o passado como algo que algema o presente; utilizam-no como fator questionador e crítico, repensando e refletindo sobre antigos conceitos que ainda permeiam a sociedade. A memória é o fio norteador e condutor do romance, é por meio da relembrança que fatos antes mudos tornam-se audíveis e ressoantes. A memória, mesmo sendo evocação do passado, serve como fator libertador: rememora-se, pois, nada mais é possível e necessário. Bibliografia BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. BERND, Z. O que é negritude? São Paulo: Brasiliense, 1988a. BERRY, M.F.; BLASSINGAME, J. W. Long Memory: The Black Experience in America. New York: Oxford University Press, 1982. BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. BROOKSHAW, D. Raça e cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst.Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. CARVALHAL, T. F.; COUTINHO, E. F. (orgs) Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. CHIAVENATO, J. J. O negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio. 8 ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005. GATES, H. L. MCKAY, N. (general editor). The Norton anthology of African American Literature. 2nd ed. New York: W. W. Norton, 2004. GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos.

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A MEMÓRIA, O TEMPO E O CORPO FEMININO EM DEBATE – UM NOVO OLHAR E UMA NOVA CRÍTICA PARA A LITERATURA PRODUZIDA POR MULHERES: ANAÏS NIN E NATALIA GINZBURG Cristal Rodrigues Recchia

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(CAPES) Maria Dolores Aybar Ramirez Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Tema, justificativa e corpus

Como se dá a representação da mulher e do feminino na literatura? Qual o limite entre ficção e realidade em um texto autobiográfico? Existiria uma estética do feminismo? A existência ou não de algum tipo de especificidade que faz um texto escrito por uma mulher diferente de um texto escrito por um homem, ou a existência de um texto feminino, independente do sexo do autor, são questões que nos levam a diferentes caminhos teóricos. Em grande parte, esse polêmico tema está ligado aos múltiplos significados socioculturais que o termo “feminino” carrega. É quase impossível dissociar o feminino da mulher, embora a feminilidade não seja algo exclusivo das mulheres, como a masculinidade não é algo exclusivo dos homens. O que se torna importante tanto no estudo da literatura produzida por mulheres, quanto na compreensão do que é feminino, é aceitar que pode existir uma diferença, ou ao menos, problematizar essa discussão. Isto não quer dizer que o diferente, o outro, no caso, o feminino, seja inferior ou marginal. Essa é uma das bandeiras levantadas por Lúcia Castello Branco (1994, p. 62), quando diz que é preciso conseguir “se fazer ouvir em sua outridade. Não o modelo unissex, mas a diferença”. Por outro lado, este tipo de reflexão pode ser arriscado, como lembra Heloisa Buarque de Hollanda (1994, p.10), uma vez que se identifica o feminino com o “outro”, e assim paradoxalmente, possibilita-se a existência de certa colaboração com a perpetuação da cultura misógina. O eixo de nossas reflexões são, desta forma, questões que envolvem os estudos de gênero aplicados à literatura. Nosso embasamento teórico aborda as reflexões de Elaine Showalter (1994), e Kate Millett (1969). Para compor o corpus escolheu-se os diários não expurgados de Anaïs Nin: Henry e June, Incesto e Fogo, que cobrem o período de 1931 a 1937; e a obra Lexico familiar, de Natalia Ginzburg. Este recorte, que prioriza os diários de Anaïs Nin e as rememorações de Natalia Ginzburg, em prol de suas obras ficcionais, servem-nos de alicerce quanto às questões da exclusão do cânone que as autobiografias e os diários sofreram. Tais questões se potencializam quando somamos a gêneros banalizados a autoria feminina, que

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historicamente também foi excluída. De certa forma, questionar o cânone é questionar os mecanismos de perpetuação dos discursos de autoridade da sociedade patriarcal. Anaïs Nin (1903-1977) manteve desde os quatorze anos até o final de sua vida diários pessoais, nos quais se sobressaem o erotismo e a sensibilidade de como interpretava o mundo ao seu redor. Seus diários foram reunidos e publicados em sete volumes. Fortemente influenciada pela psicanálise freudiana e pelo movimento feminista, Anaïs tem nas relações sexuais e amorosas o fio condutor de grande parte de sua obra. Porém, muito além do erotismo, seus contos são histórias de libertação e superação. Seus diários são considerados pela própria autora uma versão sem cortes do mundo, que para ela era uma versão “feminina” dos fatos (NIN, 2008a, p. 13-14). Natália Ginzburg (1916 – 1991), filha de pai judeu, teve sua história marcada pela luta contra o Fascismo Italiano. Com uma linguagem direta e simples, a autora retrata pormenores da sociedade em que viveu, em especial, o círculo familiar. A literatura direta e leve de Natália Ginzburg nos leva às profundezas das almas de suas personagens, de maneira que até os sentimentos ficam “nus” aos nossos olhos. Diferentes visões de mundo que se repetem e ao mesmo tempo diferenciam-se desvendam um universo feminino, o que é fonte de calorosos debates teórico-críticos. Pretende-se que através de estudos históricos, filosóficos, de literatura comparada e teoria literária alcancemos uma nova posição crítica à cerca da literatura produzida por mulheres. Existiria, então, algo que poderíamos chamar de estética do feminismo, ou uma estética da literatura produzida por mulheres? Se traçarmos o caminho ditado pelos diários de Anaïs Nin e pelas memórias de Natalia Ginzburg, poderíamos chamá-la, inclusive, de estética da libertação: a mulher consciente de seu papel sócio-cultural, e livre em sua sexualidade. Objetivos Os principais objetivos são:

 Fazer uma análise crítica e comparada das obras Henry e June, Incesto e Fogo de Anaïs Nin; e Léxico familiar de Natalia Ginzburg, sob o foco da ginocrítica de Elaine Showalter;

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 Observar e analisar a construção do tempo nas obras de Anaïs Nin e Natalia Ginzburg;  Observar e analisar a representação do corpo feminino nas obras e Anaïs Nin e Natalia Ginzburg;  Observar e comparar a estrutura das relações sociais, além de traçar de que maneira o contexto histórico construído nas obras interferem na vida das personagens; 

Observar como cada uma das narradoras coloca seus conflitos existenciais em seu relato.

Resultados Neste primeiro ano de pesquisa, além de cursar as disciplinas obrigatórias, o principal objetivo do trabalho foi levantar a fortuna crítica de Anaïs Nin e Natália Ginzburg, e retomar o estudo feito no mestrado das principais correntes teóricas à cerca da escrita feminina, da escrita de autoria feminina e do feminismo. Além disso, publicamos um artigo a partir dos estudos do mestrado, e produzimos três monografias para as disciplinas da pós, que pretendemos transformá-las também em artigos. Bibliografia BEAUVOIR, S. O segundo sexo: 2: A experiência vivida. Tradução de Sergio Milliet. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. BENCO, S. Natalia Ginzburg. In: GINZBURG, N. Lessico familiare. Torino: Guilio Einaudi, 1963. BOOTH, W. C. A retórica da ficção. Trad. Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Minerva/Arcádia, 1980. BOSI, A. O tempo e os tempos. In: NOVAES, A. (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 19-32. BOURDIEU, P. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Berthand Brasil, 2005. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 106

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ENTRE O RISO E A MELANCOLIA: A CONFLUÊNCIA DE LEITURAS NA TRANPOSIÇÃO DO ROMANCE DOM CASMURRO PARA A MINISSÉRIE CAPITU Cristiane Passafaro Guzzi (CAPES) Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O presente estudo volta-se para o processo de transposição realizado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, ao transpor o romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, para a minissérie televisiva Capitu (2008). Luiz Fernando Carvalho, ao ler a obra machadiana em sua “aproximação” televisiva, parece ter deixado ressoar, por meio dos efeitos de sentido construídos, tanto no plano de conteúdo quanto no plano da expressão, as experiências de Machado de Assis enquanto escritor, poeta, ensaísta, crítico, dramaturgo. Desse modo, este trabalho propõe demonstrar que o enunciado do texto sincrético mostrase composto e atravessado por tantos outros enunciados já existentes sobre o texto verbal; contudo, o que o diretor Carvalho faz é conseguir escancarar tais diálogos, pelo seu característico modo de exibir o processo de feitura de suas realizações ficcionais. A enunciação parece produzir um enunciado que reúne a história de Machado e a história da crítica do romance, de modo deliberado e atualizado.

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O romance Dom Casmurro institui-se como uma obra que convoca leituras em continuidade, permitindo ao leitor que se proponha analisar os significados engendrados pelo texto, a partir da autonomia de seus significantes. Cada leitura da obra de Machado considera e redimensiona as leituras anteriores, construindo um paradigma crítico que aponta para novas possibilidades de leituras combinatórias. A minissérie televisiva Capitu (2008) escrita por Euclydes Marinho, com colaboração de Daniel Piza, Luís Alberto de Abreu e Edna Palatnik, e texto final do diretor Luiz Fernando Carvalho, apresenta-se como uma transposição aproximada da obra Dom Casmurro, preservando, quase que na íntegra, o conteúdo do romance. Para Luiz Fernando Carvalho, a ideia do conceito de adaptação, em qualquer texto, “é um achatamento da obra, um assassinato do texto original”, preferindo, assim, o termo “aproximação”, no qual as imagens dominam a cena em detrimento do universo dramático do romance. Entendendo, portanto, que os gêneros e as linguagens vão se organizando de acordo com suas especificidades e um acaba por influenciar o outro, infere-se que o meio televisivo confere uma maior importância para o plano de expressão, atribuindo-lhe, pelas próprias características do suporte sincrético, uma dimensão maior de análise. A sintaxe da linguagem visual é utilizada para dar forma e significado correspondente aos diversos níveis de leitura de estruturação de um texto verbal e que pode ser codificado. Com base numa análise comparativa, percebe-se que os adaptadores da minissérie usam artifícios para causar determinados efeitos de sentido nos leitores, que são diferentes daqueles usados pelo autor da obra original. As categorias da narrativa – narrador, personagens, tempo, espaço – são bastante alteradas pela mudança na esfera de veiculação do novo texto. Considera-se, assim, que o processo de adaptação não se esgota na transposição do texto literário para outro veículo. Ele gera uma cadeia de interpretações, identificações, intertextualidades, constituindo uma realização estética que envolve tradução e interpretação de significados e valores histórico-culturais. Nesse sentido, para estudar a obra literária Dom Casmurro, de Machado de Assis, recorreremos à extensa e consolidada fortuna crítica existente sobre a obra e que, recentemente, foi recuperada, de maneira organizada e reflexiva, na apresentação feita por Paulo Franchetti, com notas e comentários de Leila Guenther, numa reedição de Dom Casmurro (2008), publicada pela Editora Ateliê Editorial. A partir desse direcionamento,

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retomaremos os estudos realizados por Abel Barros Baptista, Alfredo Pujol, Augusto Meyer, Eugênio Gomes, Gilberto Pinheiro Passos, Hélio de Seixas Guimarães, Helen Caldwell, John Gledson, José Luis Passos, Lúcia Miguel Pereira, Roberto Schwartz, Ubiratan Machado, entre outros. Além disso, recorremos também aos recentes trabalhos publicados sobre a obra machadiana decorrentes do ano de comemoração do centenário de morte do escritor. Para estudar a criação televisiva, buscamos o apoio teórico nos estudos de Anna Maria Balogh, Osvando José de Morais, Ilana Feldman, Ismail Xavier, Francis Vanoye, Robert Stam e nos estudos a que eles nos remetem, bem como todo o material publicado sobre construção das minisséries televisivas; que incluem entrevistas concedidas pelo diretor Luiz Fernando Carvalho a respeito do processo criativo dessas realizações artísticas. Para depurarmos as manifestações das categorias das narrativas e entendê-las em sua completude, escolhemos alguns aspectos da teoria semiótica de inspiração francesa, enriquecidas por contribuições de Gerárd Genette. Além disso, para compreendemos a exploração, principalmente no plano de expressão, da presença das características composicionais que definem a forma shandiana explorada por Machado de Assis ao longo de todo o romance, utilizamos como base o livro de Sérgio Paulo Rouanet, Riso e melancolia: a forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garret e Machado de Assis (2007). Em relação à depreensão do estilo, das coerções dos diferentes gêneros, da voz autoral e dos princípios constitutivos dos dois autores/criadores em questão, serão utilizadas como fundamentação teórica as reflexões presentes na obra do Círculo de Bakhtin, bem como outros apontamentos e releituras feitas sobre seus conceitos a partir da perspectiva de alguns estudiosos de semiótica, como Diana Luz Pessoa de Barros, José Luiz Fiorin e Norma Discini de Campos. Ainda que todos esses estudos formem uma rede orientada e sobredeterminada pela teoria semiótica de inspiração francesa, linha teórica escolhida como suporte teórico predominante, o presente estudo compreende os possíveis diálogos existentes entre a teoria semiótica de linha francesa – antes somente compreendida como imanentista e, portanto, fechada às relações externas do texto - com as reflexões que Bakhtin e seu Círculo vêm deixando como contribuições cada vez mais profícuas para o enriquecimento dos estudos sobre o discurso, especialmente, para a semiótica da enunciação.

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As relações, nesse sentido, entre o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, e a minissérie Capitu, de Luiz Fernando Carvalho, foram examinadas pelo modelo de percurso gerativo do sentido, oriundo da semiótica greimasiana, que nos ofereceu métodos próprios para extrair algumas das especificidades desses textos, fazendo com que a análise apontasse, com maior rigor, o processo de concepção das obras como um universo organizado, coerente, dialógico e lógico, cujo produto configura seres que, de maneira particular, formalizam sua realidade. Os dois textos apresentados para análise pedem, cada um a seu modo, especificações em seu trato, justamente por mobilizarem modos de enunciação diferentes. Há, portanto, nesse modo de entrada analítico requerido pelo próprio texto, espaço para as contribuições de Bakhtin e seu Círculo, uma vez que o processo de análise de uma enunciação sobre outra enunciação (leitura da obra de Machado lida, por sua vez, por Carvalho) fundamenta-se num complexo movimento dialógico que nos permite depreender não só a significação dos dois textos em questão, mas, principalmente, as vozes reverberadas do texto transposto e da tradição a que ele se filia ou a que ele se distancia. Pautando-nos, portanto, na aproximação entre os dois veios teóricos, o que tencionamos, ao longo de todo este trabalho, é mostrar o modo como Luiz Fernando Carvalho, ao fazer uma leitura do romance de Machado, consegue aproximar não só processos de engendramento de sentido e leituras distintas, mas instaurar uma nova leitura e um índice crítico do romance Dom Casmurro. Vale ressaltar que tal feito se deve às marcas enunciativas reverberadas no texto transposto e às marcas dialógicas espraiadas nas relações com outros discursos e com a própria crítica tradicional da obra. No caminho da pesquisa à redação da dissertação, este trabalho encontra-se dividido em quatro capítulos, com variadas subdivisões em cada. O primeiro trata das possíveis aproximações entre literatura e televisão e delineia o espaço que o gênero minissérie ocupa dentro da linguagem televisual – especificamente as realizações de Luiz Fernando Carvalho e seu Projeto Quadrante. Nesse sentido, indica, embora sinteticamente, o modo como as relações entre literatura, cinema e televisão devem caminhar em busca de um entendimento para um todo de significação que se organiza mediante metonímicas contribuições (articuladas e não apreendidas de modo separado) que cada linguagem mobilizada engendra à estratégia global enunciativa de um texto sincrético que tem como ponto de partida o texto verbal.

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No segundo capítulo, apresentamos o projeto estético do diretor Luiz Fernando Carvalho. Tal projeto, que se define por uma constante fusão de elementos populares com a mais sofisticada técnica existente no meio televisivo, é alicerçado por um intenso diálogo com demais manifestações eruditas, de modo deliberadamente escancarado. Com uma prática de artificialidade à mostra, tanto dos recursos mobilizados quanto do próprio movimento lúdico inerente à ficção, temos um questionamento sobre os (des)limites do conceito de ficção trabalhado, por sua vez, por uma espécie de literariedade imagética. Ainda no mesmo capítulo, traçamos as características que definem um romance autoconsciente. O intuito é demonstrar como o enunciador, pelo modo como explora esse determinado princípio composicional à mostra, consegue explorar os índices definidores de uma ficção autorreflexiva em um outro gênero como a minissérie. A estratégia amplia a definição do próprio conceito de literatura ao testar os modos existentes de representação da mesma em uma textualização outra. O terceiro capítulo traz as vozes que compõem o trajeto da crítica sobre a obra Dom Casmurro. Além disso, delineia um possível paradigma de leitura do enunciador sincrético, estabelecendo uma compreensão responsiva entre a tradição machadiana consolidada e as atuais leituras feitas pelos críticos e pelo diretor, sobre o romance, para a composição da minissérie televisiva. Ao evidenciarmos como tais vozes se fazem presentes de algum modo na realização, verifica-se como o conceito de dialogismo, base dos estudos do Círculo de Bakhtin, se mostra na obra, não só no que diz respeito ao modo de funcionamento real da linguagem, mas à própria forma composicional que parece estruturar a aproximação televisiva Capitu. Ademais, verifica-se como esse enunciador sincrético, dotado de um “crer crítico” (BERTRAND, 2003), torna-se responsável pelas associações, pelas relações e pelas possíveis interpretações presentes na nova enunciação, uma vez que é sob sua responsabilidade que o sentido deve emergir, de acordo com a leitura advinda desse processo crítico que o enunciatário deve travar ao deparar-se com as figuras e com os temas trabalhados no texto. No quarto e último capítulo, examinamos o modo como os procedimentos discursivos de citação deixam transparecer os dizeres dos enunciados alheios que perpassam o enunciado da minissérie. Ao se apropriar de diversas leituras sobre a obra, o enunciador sincrético ora distancia-se, ora se aproxima dessas diversas vozes que compõem a

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realização televisiva, contando, portanto, para tal efeito, com as ferramentas disponibilizadas pelo recurso da figurativização. Tal procedimento foi explorado na reiteração figurativa das categorias narrativas transpostas para a minissérie. Estas, por sua vez, foram preenchidas pelos traços que definem a forma shandiana, lida e trabalhada por Machado enquanto leitor direto do escritor Laurence Sterne, precursor da referida forma literária. Deparamo-nos, na análise da configuração discursiva da minissérie, com um narrador tagarela, fruto de uma leitura reverberativa das contribuições do filósofo Michel de Montaigne na obra de Machado. Esse narrador é ancorado, por sua vez, em um tempo e um espaço em ruínas, construídos de modo expressionista, e coabitando com personagens que encenam ser/estar em uma ópera televisiva. Tais ressoos figurativos, os quais formalizam nossa isotopia de leitura, transparecem no modo crítico de participação e adesão da leitura empreendida pelo enunciador sincrético da realização, o qual conjuga um modo reflexivo da tradição literária, da tradição visual e da forma como estas se contaminam em um processo de transposição de linguagens. Mais do que um realizador de transposições imagéticas para o cinema e para a televisão, Luiz Fernando Carvalho parece mobilizar e atualizar todo um repertório em torno das obras e em torno de suas próprias leituras, engendrando significações plurais. Dessa maneira, permite, inclusive, que telespectadores de imagens prontas, como é o caso do público do gênero televisivo, desacostumados a observar as fabulações de um modo geral, comecem a dialogar com o que cada fabulação traz de invenção e estímulo para a imaginação. Dentro do exagero, da hiperbolização e de um escancaramento do fazer que caracterizaram suas minisséries, encontramos possíveis sutilezas que permitem um estudo aprofundado da obra, da crítica, da tradição e das reverberações que a produção dos escritores selecionados representam na projeção de nossa literatura brasileira. Tais contribuições nos permitem, ainda, cotejá-lo, como um diretor que parece estar firmando, também, seu lugar em nossa arte televisiva, fornecendo-nos, com seu modo de sentir suas produções, um conceito de literariedade pela imagem. Bibliografia

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AS MEMÓRIAS TRÁGICAS DO NARRADOR DE CRÓNICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ Daiane Rassano Maria Celeste Consolin Dezotti Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Tencionamos com esta pesquisa estudar as características da tragédia e do trágico dentro da obra Crónica de una muerte anunciada do autor colombiano Gabriel García Márquez. Abarcaremos, também, estudos sobre o narrador e as memórias recolhidas pelo mesmo, para a construção de seu discurso. Estudos nos revelam que as tragédias originaram-se em ritos religiosos em honra ao deus Dioniso. O termo “tragédia” significa “o canto do bode”, e o que mais se difundiu foi a identificação deste bode com os sátiros, que eram associados ao culto desse deus. Teria

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sido nas festas denominadas “dionisíacas urbanas” que a primeira tragédia teria sido encenada pela primeira vez. Aristóteles, entretanto, vincula a tragédia aos autores de ditirambo, que era um canto religioso dionisíaco; posteriormente, a tragédia teria abandonado as histórias curtas e a linguagem divertida devido à sua origem satírica, e aos poucos se transformou em um gênero majestoso. “A tragédia, como gênero literário, apareceu apenas porque estas festas em honra de Dioniso procuraram, deliberadamente, a própria substância das suas representações num domínio estranho ao ambiente deste deus.” (ROMILLY, 2008, p. 20). Aristóteles nos apresenta os primeiros estudos acerca da tragédia, definindo-a como “a representação duma ação grave, de alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com seu atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções.” (ARISTÓTELES, 1980, p. 24). O propósito da tragédia para esse filósofo grego seria imitar, ou seja, representar, ações e a vida. Percebemos, portanto, que o interessante nas tragédias não era o caráter ou as pessoas, mas sim, suas ações, que poderiam levar um indivíduo a imprevistos da existência humana. A tragédia, como nos afirma Williams (2003), não é algo de fácil sistematização, pois a cultura grega era pautada por uma rede de crenças, que envolviam sentimentos e práticas, “e não teorias sistemáticas e abstratas, que hoje chamaríamos de uma filosofia trágica ou uma teologia.” (WILLIAMS, 2003, p. 35-6). A problemática do trágico, segundo Lesky (1971), continua em aberto. “É da natureza complexa do trágico o fato de que, quanto maior a proximidade do objeto, tanto menor é a possibilidade de abarcá-lo numa definição.” (LESKY, 1971, p. 17). Ao longo de nossos estudos, é evidente que encontramos como traço habitual o fato de que toda tentativa para se esboçar uma teoria acerca do trágico parte sempre da experiência da tragédia grega antiga: Antes de qualquer coisa, defrontamo-nos aqui com a questão de saber se o conteúdo trágico, entendendo-se ainda a palavra em sua acepção mais geral, está tão intimamente vinculado à forma artística da tragédia, que só aparece com ela, ou se, na criação literária [...] dos gregos, já se encontram germes em que se prepara a primeira e, ao mesmo tempo, a mais perfeita objetivação da visão trágica do mundo, no drama do século V.” (LESKY, 1971, p. 18).

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Podemos afirmar que os gregos que criaram a arte trágica, entretanto, não desenvolveram uma teoria para o trágico, que fosse além das construções em seus dramas e abarcasse, assim, uma concepção de mundo. “Vemos que Aristóteles, longe de chegar a uma conceituação de trágico, apenas aplica este termo a certas situações e certos procedimentos que poderiam a rigor ser simplesmente qualificados de patéticos1.” (MALHADAS, 2003a, p. 75). Outra análise que pretendemos executar no corpus é a que diz respeito ao narrador de Crónica. Percebemos que esse narrador apresenta-nos as memórias que colheu durante décadas, junto das personagens que participaram daquela tragédia anunciada. Apesar de ser classificado como homodiegético, sob a perspectiva teórica de Genette (1979), uma vez que participa da ação que narra, o narrador apresenta a particularidade de não ser consciente inteiramente dos fatos que levaram os gêmeos Vicário a assassinar o até então amigo Santiago Nasar, conforme ele mesmo declara na seguinte afirmação: “Yo conservaba un recuerdo muy confuso de la fiesta antes de que hubiera decidido rescatarla a pedazos de la memoria ajena.” (GARCÍA MÁRQUEZ, p. 2012, p. 53). A identidade deste narrador-personagem não nos é revelada; sabe-se, entretanto, que era amigo de Santiago Nasar e irmão de Margot. Com seu discurso podemos perceber que não acreditava na culpabilidade da personagem e que Ângela Vicário, que teria sido desonrada por Santiago, estava escondendo quem de fato havia cometido o referido crime: “A todo el que quiso oírla se la contaba sus pormenores, salvo el que nunca se había de aclarar: quién fue, y cómo y cuándo, el verdadero causante de su perjuicio, porque nadie creyó que en realidad hubiera sido Santiago Nasar. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2010, p. 104). As personagens envolvidas nesta tragédia apresentam-nos memórias pautadas em impressões pessoais a cerca do ocorrido e que juntas farão parte da tensão dentro da obra. Aludimos para o fato de que “a memória oral, longe da unilateralidade para a qual tendem certas instituições, faz intervir pontos contraditórios, pelo menos distintos entre eles, e aí se encontra a sua maior riqueza.” (BOSI, 2003, p. 15). Assim, como nos apresenta Ecléa Bosi, em suas análises sobre as memórias, é com o vínculo com o passado que construímos nossa identidade, a nossa visão de mundo. Na busca pelas circunstâncias que levaram a este

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Ação com sofrimento, geralmente com mortes em cena, dores intensas e ferimentos.

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crime, que o narrador apresenta-nos o rico passado deste povoado que durante anos não pôde falar de outra coisa. Atribuímos à memória uma função decisiva dentro da narrativa de García Márquez, porque, além de construir a teia narrativa, ela permite uma relação com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no curso atual das representações (BOSI, 2003, p. 36). É importante ressaltar ao longo de nossa análise que as personagens, ao rememorarem o passado, evocam imagens e revivem as ações que levaram ao assassinato de Santiago. Desvendar o presente daquele povoado, impregnado de lembranças daquele passado, é a intenção principal do narrador e de seus relatos. Portanto, pautamo-nos nos aspectos acima apontados a fim de estudar a obra Crónica de una muerte anunciada. Procuraremos evidenciar a sua contribuição para os estudos do trágico, memórias e análises que se pautam em observações descritivas e interpretativas do narrador. Para que isto ocorra, faremos um percurso histórico da tragédia até que consigamos chegar a estudos recentes das contribuições que esse gênero traz para a literatura. Isso implica elencar as características do mesmo presentes dentro do referido corpus e, ainda, estudar como esse termo se desenvolveu e evoluiu de seu conceito clássico presente em obras gregas. A tragédia que se estabelece na obra de García Márquez apresenta algumas características próximas das da tragédia grega e outras que a distanciam dela. Percebemos, por exemplo, que o assassinato de Santiago Nasar é um crime expiatório, com características de sacrifício. Ao nos deparar com isso, aludiremos ao fato de que nos primórdios da tragédia ática, sacrifícios eram realizados nos rituais sagrados, de onde segundo Lesky (1971), podemos depreender as origens das tragédias. Quando nos propomos a analisar as divergências entre a tragédia grega e a obra de que nos ocupamos, notamos, por exemplo, que o reconhecimento (característica apontada por Aristóteles em todas as tragédias gregas) que, segundo Malhadas (2003b), consiste na passagem da ignorância para o conhecimento dos fatos, que da felicidade levarão a infelicidade (infortúnio), não existe em Crónica de una muerte anunciada, porque, assim como nos diz o narrador, Santiago Nasar “murió sin entender su muerte.” (GARCÍA MÁRQUEZ, p. 2010, p. 116).

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Estes são apenas alguns exemplos de como a tragédia pode ser estudada dentro da referida obra de García Márquez, pois vemos que a mesma apresenta um campo profícuo para analisarmos questões sobre a tragédia e o trágico. Quanto aos estudos pautados no narrador e nas memórias, procuraremos elaborar um estudo que vincule estes temas, que têm sido estudados em separado: há alguns estudos sobre tempo e memória, mas não vinculados ao narrador. As memórias, assim como nos afirma Bosi (1994), “é reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição.”(BOSI, 1994, p. 20). Com isso, percebemos a ideia central deste narrador, que busca entender sua vida, com o outrora, com seu passado significativo. E por fim, mas não menos importante, com esta pesquisa almeja-se criar os ensejos necessários para a contribuição dos estudos das obras latino-americanas, bem como auxiliar no resgate de características clássicas em obras contemporâneas. O primeiro semestre de 2012 foi destinado à integralização parcial dos créditos obrigatórios em disciplinas, levantamento das referências bibliográficas e leituras e fichamentos das mesmas. Destinamos a esse semestre, também, a reescrita do projeto de pesquisa, aprofundando-o sob o viés teórico, preparando, assim, o terreno para a pesquisa. Neste segundo semestre de 2012 realizaremos a integralização dos créditos em disciplinas e partiremos, em seguida, para o estudo das obras teóricas e a análise do corpus. Bibliografia ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Sousa. Lisboa: Guimarães, 1980. BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. ______. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. GARCÍA MÁRQUEZ, G. Crónica de una muerte anunciada. Buenos Aires: Debolsillo, 2010. LESKY, A. A Tragédia Grega. São Paulo: Perspectiva, 1971.

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MALHADAS, D. O trágico na encruzilhada. In: FACHIN, L. & DEZOTTI, M. C. C. Teatro em debate. Araraquara: Laboratório Editorial FCL/UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2003a. ______. Tragédia Grega: O mito em cena. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003b. ROMILLY, J. A tragédia grega. Lisboa: Edições 70, 2008. WILLIAMS, R. Tragédia Moderna. Tradução Betina Bischof. São Paulo: Cosac e Naify, 2002. BIBLIOGRAFIA GERAL ADRADOS, F. R. El héroe trágico. El héroe trágico y el filósofo platónico. Cuadernos de La Fondación Pastor, n° 6. Madrid: Taurus, 1962. BERGSON, H. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000. FACHIN, L. O discurso trágico na virada do milênio. In: FACHIN, L. & DEZOTTI, M. C. C. Em cena o teatro. Araraquara: Laboratório Editorial FCL/UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2005. FUENTES, C. La nueva novela hispanoamericana. México: Joaquin Mortiz, 1969. GAGNEBIN, J. M. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago, 2005. ______. Crônica de uma norte anunciada. Tradução de Remy Gorga. Rio de Janeiro: Record, 2011. GENETTE, G. Discurso da Narrativa. Lisboa: Arcádia, 1979. GOIC, C. Historia y critica de la literatura hispanoamericana. vol. 03. Barcelona: Crítica, 1991. GONÇALVES FILHO, J. M.. Olhar e memória. In: NOVAES, A. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 95-124. HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo : Vértice, 1990. LIMA, M. J. S. As máscaras de Dioniso: filosofia e tragédia em Nietzsche. São Paulo:

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Discurso Editorial/ Editora Unijuí, 2006. MACHADO, L. T. O herói, o mito e a epopéia. São Paulo: Alba, 1962. MACHADO, R. O nascimento do trágico: De Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. MALHADAS, D. O espetáculo na tragédia grega. Itinerários, Araraquara, n. 5, p. 49-60, 1993. MARCOS, J. M. De García Márquez al post-boom. Madrid: Orígenes, 1986. MORETTO, F.M.L. Alguns aspectos do teatro ocidental. Araraquara: UNESP, 1982. MUECKE, D. C. Ironia e o Irônico. São Paulo: Perspectiva, 1995. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Tradução J. Guins Burg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. OVIEDO, José Miguel. Historia de la Literatura Hispanoamericana (tomo I: De los orígenes a la emancipación y tomo II: Del Romanticismo al Modernismo), Madrid, Alianza, 1995. REIS, C. & LOPES, A. C. M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988. RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed.da UNICAMP, 2007. SHAW, D. L. Nueva narrativa hispanoamericana. Madrid: Cátedra, 1981. SELIGMANN-SILVA, M. História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Edunicamp, 2003. ______. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005. SZOND, P. Ensaio sobre o trágico. Tradução Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. VERNANT, J. P. A bela morte e o cadáver ultrajado. In: Revista Discurso nº 09. Revista da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 1979, p. 31 a 62 VERNANT, J. P; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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LITERATURA E VIDA: A "TRILOGIA FRANCESA" DE HENRY MILLER Daniel Rossi Maria Clara Bonetti Paro Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A intenção desta pesquisa é oferecer uma interpretação da chamada "trilogia francesa" (Trópico de câncer, Primavera negra e Trópico de capricórnio) de Henry Miller por um viés filosófico, tendo como principal objetivo discutir o tema vida. Longe das questões autobiográficas, nossa intenção é compreender a afirmação da vida (NIETZSCHE, 2000; 2001; ROSSET, 2000) na obra de Henry Miller, suas implicações éticas e estéticas nas obras elencadas. Para tanto, o diálogo com a filosofia se faz premente já que pode fornecer apoio teórico para abordar esta questão na obra do escritor americano. Lançamos mão, principalmente, das obras de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Clément Rosset, Friedrich Nietzsche e Maurice Blanchot, dentre outros filósofos, escritores e críticos literários que abordem a questão ou que são comentaristas e intérpretes da obra milleriana. Nosso intuito é nos colocarmos justamente neste entremeio, entre a literatura e a vida como forma de interpretar e acompanhar o escritor e suas obras ao colocar em evidência esta marca de afirmação e aceitação da existência em todas as suas formas (ROSSI, 2011; BRADBURY, 1991). Para tanto, o embasamento teórico passa muito mais pela filosofia do que pela teoria literária propriamente dita: as questões com que nos deparamos vão ao encontro de questões trabalhadas há muito pela filosofia. A pergunta premente é: o que é vida? Será ela trabalhada como conceito ou como a questão autobiográfica que perpassa toda a obra? Primeiramente, é importante lembrar que não procuramos propor uma definição do que seja vida. Os filósofos que trabalhamos em conjunto com as obras mencionadas de Miller propõe questões que estão mais próximas da ética e não de uma discussão do conceito em si. Sendo assim, a vida é vista como atividade e não pode ser questionada em seu valor intrínseco, como Nietzsche já dizia em Crepúsculo do ídolos (NIETZSCHE, 2000). Mas algumas coordenadas desta aproximação com o vocábulo são possíveis: todos os filósofos que elegemos como fonte de pesquisa (Deleuze e Guattari, Nietzsche, Rosset, Espinosa e, em menor grau, Blanchot) tratam a vida e a afirmação da vida, como maneira de se desvencilhar de categorias transcendentes (Deus, Sujeito, Estado)

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e experiência de limites. A vida então não é algo ativo, ela espera e aguarda, ao mesmo tempo em que tem em sua própria contextura a contestação. Como diz Deleuze: Escreve-se em função de um povo por vir e que ainda não tem linguagem. Criar não é comunicar mas resistir. Há um liame profundo entre os signos, o acontecimento, a vida, o vitalismo. É a potência de uma vida não orgânica, a que pode existir numa linha de desenho, de escrita ou de música. São os organismos que morrem, não a vida. Não há obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho entre as pedras.

(DELEUZE, 1992, p. 179) Uma objeção comum é afirmar que na literatura não há vida, apenas narrativas sobre a vida, personagens que encenam vidas. O que pretendemos aqui é explicitar justamente trabalhar com o oposto: não tomar a literatura apenas como um "teatro", mas perceber justamente a força que ela possui como campo de conhecimento, como uma "linguagem que é real, porque pode se projetar para a não-linguagem que ela é e não realiza" (BLANCHOT, 1997, p. 27): um transbordamento que faz da literatura esse algo a mais que não apenas divertimento e faz de conta. Como afirma o próprio Miller: Se tivesse que apresentar meu critério de bom e mau em relação a obras literárias, diria: as que estão vivas e as que estão mortas. Algumas delas não só dão um sentido à vida e a alimentam, mas, tal como certos indivíduos excepcionais, também a aumentam. Certos autores, há muito falecidos, estão menos mortos do que outros que se encontram vivos, ou, pondo a questão de outra forma, são “os mais vivos de entre os mortos”

(2004, p. 147). A trilogia francesa de Henry Miller pode ser caracterizada como um canto de vida entre duas grandes catástrofes: escrita no entretempo entre a primeira e a segunda Grande Guerra, ela possui uma característica sui generis: obra que possui um compromisso mais com uma arte de viver do que com as questões político-sociais que animavam o período. Escritas tardiamente (Henry Miller já tinha mais de 40 anos quando da publicação de seu primeiro livro, Trópico de câncer), são marcadas pela posição do escritor que não busca uma revolução, mas apenas escrever total franqueza. Mas este "escrever com total franqueza" é constituído por uma aceitação do real em toda a sua amplitude: o escritor se coloca em perspectiva, reconhece seu tamanho e papel em uma conjuntura maior, sua pequenez frente ao tamanho do universo, sua fugacidade (ROSSET, 2000; 2008; 1989). Além disso, o tema da vida está relacionado à capacidade do autor em afirmar tudo que

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existe e não avaliar a possibilidade de existir ou tentar melhorar o mundo e os homens: o intento de sua literatura e de suas várias "auto-biografias" é compreender a literatura como performance ativa responsável por dar passagem à vida, para além do vivível e do vivido (DELEUZE, 1997a). É a própria expressão do amor fati1:

Por semanas e meses, por anos, na verdade, por toda minha vida eu esperava algo acontecer, algo intrínseco que mudaria minha vida e, naquele momento, de repente, graças à completa desesperança de tudo, senti-me aliviado como se tirassem um grande peso dos meus ombros. (...) Caminhando em direção a Montparnasse, resolvi seguir ao léu, não resistir em nada ao destino, não importa como se me apresentasse. (...) Resolvi não me apegar a nada, não esperar nada, dali por diante eu viveria como um animal, uma fera carnívora, um nômade, uma ave de rapina. (...) É preciso enfiar-se na vida outra vez para ter carne. O verbo tem que se fazer carne; a alma está sedenta. Toda migalha que meus olhos virem, vou pegar e devorar. Se o que está acima de tudo é viver, então vou viver, mesmo se tiver de virar canibal. (...) Estou morto apenas espiritualmente. Fisicamente, estou vivo. Moralmente, sou livre. O mundo de onde saí é uma jaula. (MILLER, 2006, p. 97-99)

Ao nos colocarmos em uma perspectiva entre literatura e filosofia, buscamos justamente o encadeamento entre as duas áreas do conhecimento. Isso equivale a tratar a literatura como fonte de saberes tão válidos quanto outras áreas do conhecimento, como produtora de questões que se sustentam dentro de sua própria esfera de atuação mas que podem instigar outro tipo de interpretação e discussões que são importantes para o conhecimento como um todo. Por isso a intenção é construir um campo de interação nãohierarquizado entre literatura e filosofia, como forma de trabalhar esta relação de maneira isonômica: uma não valendo, ou tendo mais legitimidade que a outra, mas sim mantendo a singularidade de sua própria área de atuação ao mesmo tempo em que podem ser fontes de questionamento, uma área para com a outra. 1

§276. Para o ano novo. – Eu ainda vivo, eu ainda penso: ainda tenho de viver, pois ainda tenho de pensar. (...) Hoje, cada um se permite expressar o seu mais caro desejo e pensamento: também eu, então, quero dizer o que desejo para mim mesmo e que pensamento, este ano, me veio primeiramente ao coração – que pensamento deverá para mim ser razão, garantia e doçura de toda a vida que me resta! Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei um dos que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, 2001, p. 187-188)

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Quanto à divisão da pesquisa propriamente dita, por hora pretendemos trabalhar detidamente cada um dos romance de Henry Miller que compõem a trilogia francesa, buscar entender sua forma de expressão e como o tema vida é apresentado nestas três obras. Posteriormente, procuraremos relacionar as questões levantas por estes romances com a filosofia dos autores elencados, buscando pontos de conjunção entre as obras desses vários autores. Por último, buscar proposições que produzam novos questionamentos sobre o tema a partir do conjunto das discussões estabelecidas no decorrer da pesquisa. Como esta pesquisa é uma extensão do trabalho empreendido ainda no Mestrado, que forneceu as questões que agora abordamos, boa parte da bibliografia sobre Henry Miller e os filósofos citados já foi feita. Neste primeiro momento, além do cumprimento dos créditos necessários para o programa de Doutorado, estamos relendo, selecionando e buscando outras fontes de pesquisa que possam contribuir com o estudo das questões que elegemos para a pesquisa, bem como outras obras teóricas que sejam de ajuda para o embasamento da perspectiva que utilizamos para analisar os romances de Henry Miller. O que se faz necessário neste momento é o estudo mais detalhado das obras indicadas na bibliografia apresentada como forma de dar início à escrita da tese. Bibliografia BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocc, 2011. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradadução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BRADBURY, Malcolm. O romance americano moderno. Tradução de Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. BRASSAÏ. Henry Miller: the Paris years. Translated from French by Timothy Bent. New York: Arcade Publishing, 2011. DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997a.

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DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997b. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995, vol. 1. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1997a, vol. 2. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1996, vol. 3. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997b, vol. 4. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 1997c, vol. 5. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010. MILLER, Henry. Reflexões sobre a arte de escrever. In: MILLER, Henry. A sabedoria do coração. Tradução de Lya Wyler. Porto Alegre: L&PM, 1986, p. 21-29. MILLER, Henry. O mundo do sexo. Tradução de Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. MILLER, Henry. Os livros da minha vida. Tradução de Ana Bastos. Lisboa: Antígona, 2004. MILLER, Henry. Primavera negra. Tradução de Aydano de Arruda. São Paulo: Ibrasa, 1995. MILLER, Henry. Trópico de câncer. Tradução de Beatriz Horta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. MILLER, Henry. Trópico de capricórnio. Tradução de Marcos Santarrita e Angela Pessôa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. ROSSET, Clément. A anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Tradução de Getulio Puell. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. ROSSET, Clément. Alegria: a força maior. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. ROSSI, Daniel. Filosofia nos trópicos: literatura e filosofia em Trópico de câncer. Campo Grande (MS): Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2011. (Dissertação de mestrado).

FICÇÃO E HISTÓRIA: A TRANSFIGURAÇÃO DO PASSADO EM NARRATIVAS DE TEOLINDA GERSÃO E MIA COUTO Daniela Aparecida da Costa (CAPES) Maria Célia de Moraes Leonel Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr 1.

Breve contextualização do projeto de pesquisa de doutorado em desenvolvimento

A pesquisa de doutorado em desenvolvimento (2011-2015), intitulada “Ficção e história: a transfiguração do passado em narrativas de Teolinda Gersão e Mia Couto”, está inserida na linha de pesquisa Teorias e Crítica da Narrativa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara, sob orientação da Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel. O tema do estudo são as interações entre literatura e história presentes no corpus da pesquisa constituído de cinco romances: Paisagem com mulher e mar ao fundo de 1982 e A árvore das palavras de 1997, da escritora portuguesa contemporânea Teolinda Gersão e Terra sonâmbula de 1992, Vinte e zinco de 1999 e O último voo do flamingo de 2000, do escritor moçambicano Mia Couto. Essas narrativas incorporam em sua urdidura fatos históricos recentes nos dois países (Portugal e Moçambique) que, em muitos aspectos, possuem pontos de intersecção, devido ao colonialismo português na África do século XV

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ao XX, que teve término somente com a Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974. A tomada da matéria histórica pela ficção é um dos procedimentos primordiais empregados como artifício literário na constituição das narrativas dos dois autores aqui elencadas, como o estudo pretende mostrar. O termo transfiguração é tomado com base na definição cunhada por Maria Teresa de Freitas (1986, p.7; grifos nossos), ao analisar as relações entre literatura e história na obra ficcional de André Malraux: Por meio de um arranjo literário, os elementos históricos vão ser redistribuídos num conjunto fictício, que se transforma em algo diferente do universo social de onde eles foram extraídos ao criar uma história, com personagens e situações dramáticas, o autor tentará passar uma visão pessoal do universo – que não é de forma alguma cópia da realidade, mas sim interpretação dos acontecimentos relacionados à História -, através da qual chegará a uma realidade de natureza distinta daquela que a originou. A transfiguração artística deforma o mundo exterior, e produz uma determinada realidade filtrada pelos preconceitos e pelos anseios do escritor; essa deformação é o que determina o valor estético da ficção.

O que ocorre na incorporação do histórico nas obras literárias de André Malraux, analisadas por Freitas, e nos romances de Gersão e Couto do nosso corpus, é a transfiguração/transformação do que seria a realidade objetiva. A linguagem narrativa cria, portanto, a representação de um cenário, que não é cópia da realidade como pretende o discurso histórico, que se utiliza principalmente da função referencial da linguagem, mas revela, por meio de um posicionamento discursivo que privilegia o poético, um espaço textual singular, em que a história oficial se redimensiona pelo viés subjetivo das instâncias narrativas, afirmando-se como matéria e parte da ficção e não como documento histórico. Freitas (1986, p.7) afirma ainda que a transfiguração “[...] é o momento em que a imaginação do autor se liberta das imposições da História e se afirma como criação literária”. Essa colocação faz-nos lembrar as importantes reflexões de Antonio Candido em Literatura e sociedade (2000, p.13), em que o crítico brasileiro afirma que a linguagem literária possui liberdade na incorporação da realidade, podendo deformá-la se for necessário para maior expressividade. Para Candido (2000, p.13), a liberdade “[...] é o quinhão da fantasia, que às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva [...]”, constituindo-se “[...] num movimento paradoxal que está no cerne do trabalho literário e garante a sua eficácia como representação do mundo”. Mas o

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autor alerta que não “[...] basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la, [pois isso] é correr o risco de uma perigosa simplificação causal” (CANDIDO, 2000, p. 13). Outro aspecto interessante veiculado pelo autor (2000, p.7) na referida obra, é a proposta de uma análise integrada entre texto e contexto; para o crítico, o contexto (o social) deve ser tomado como elemento constituinte da estrutura romanesca operando “como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo” (2000, p.7). Candido (p.18) ressalta ainda que é necessário, para um estudo integrado, a interpretação dialética da literatura e seu meio social, pautada nos seguintes questionamentos: “[...] qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte?” e “[...] qual a influência exercida pela obra sobre o meio?” (p.18). O que buscamos com o estudo das interações entre ficção e história nos romances de Teolinda Gersão e Mia Couto é justamente fugir de uma comparação simplista, da análise da mera transposição do real para o ficcional. O intuito é o de investigar como se manifesta no meio ficcional a incorporação do histórico, quais as deformações operadas pela construção narrativa e como o histórico opera, juntamente com as instâncias narrativas, na formação de novos sentidos e possibilidades de interpretação da realidade objetiva no tecido literário. Vale ressaltar que, para o estudo da ficção de Gersão e Couto, faz-se necessário debruçar sobre o espaço geográfico da escrita, posição defendida pelo crítico Edward Said em “Literatura e geografia” (2003, p.225-226), quando afirma ser indispensável pensar a literatura do seu espaço geográfico de produção sem levar em consideração as mudanças geográficas do mundo pós-eurocêntrico, ou seja, é necessário, de acordo com o autor, refletir sobre o espaço não só textual, mas social para a compreensão das diferentes perspectivas construídas no processo de tomada dos fatos históricos e incorporação da história e da memória pela literatura dos dois autores. O corpus literário do estudo, como mencionado, é formado, de um lado, por três romances de Mia Couto, que foram escolhidos por tecerem certa sequência cronológica na tomada dos fatos pela ficção; de outro, por dois romances da escritora portuguesa Teolinda Gersão, que trazem no corpo ficcional questões históricas muito próximas às das narrativas do escritor moçambicano. Vejamos o conteúdo das narrativas selecionadas. De Mia Couto:

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a) Vinte e zinco, de 1999, é um romance de encomenda, escrito a pedido da Editorial Caminho para integrar a coleção Caminhos de Abril em comemoração aos 25 anos da Revolução dos Cravos. Retrata a presença dos portugueses em Moçambique, por meio da narração dos dias finais de um agente da PIDE, Lourenço de Castro, no período da Guerra Colonial e iminência da Revolução em Portugal e dos movimentos de independência e libertação da colônia. O texto de Couto problematiza de modo irônico e irreverente a presença da empresa colonial em Moçambique e põe em xeque o 25 de Abril português, que não possui o mesmo sentido para os africanos. b) O cenário em Terra sonâmbula, de 1992, primeiro romance do autor, é o da guerra civil que eclodiu no país pós-independência. O horror da guerra é quebrado pelas experiências do menino Muidinga e do velho Tuahir que, ao fugirem de um campo de refugiados, encontram uns cadernos e/ou diários de Kindzu. Nesses escritos, os dois se deparam com uma nova Moçambique: cheia de aventuras, magia e fatos sobrenaturais, fazendo com que a dura realidade vivida por ambos diante de um país devastado pela miséria e pela guerra seja atenuada pelo imaginário. Para Pires Laranjeira (1995, p.198), esse romance de Couto é sobre a capacidade de sonhar e de contar, pois, mesmo diante de tanta desolação, exploram o contar, o sonhar, e, muitas vezes, o sobrenatural. c) Em O último voo do flamingo, de 2000, temos retratadas, pelas memórias do narrador, as ruínas deixadas pela empresa colonial portuguesa, pela guerra civil e os abusos de poder dos movimentos de guerrilha que assumiram a administração do país pós-independência e pós-guerra civil. Trata-se de uma construção narrativa em que ironia o humor formam um falso romance policial, como classificou Carmem Lúcia Tindó Ribeiro Secco (2011). De Teolinda Gersão: a) Paisagem com mulher e mar ao fundo, de 1982, segundo romance da autora, é tido pela crítica como o mais político de seus livros. Apresentam-se sobrepostos nessa narrativa vários momentos importantes e dramáticos da história recente de Portugal e de suas ex-colônias, como a opressão causada pelo regime salazarista, os horrores da guerra colonial na África, e, por meio de uma das cenas em que temos uma

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procissão religiosa em que a imagem do santo padroeira cai, uma alegoria que nos remete à Revolução dos Cravos. O enredo aparece a nós leitores de forma diluída, por meio das divagações, das lembranças, da manifestação do mundo interior fragmentado das personagens, em especial de Hortense e Clara, que vivem situações-limite devido à atmosfera de opressão veiculada pelo romance. b) Em a Árvore das palavras, de 1997, o espaço da narrativa é Lourenço Marques, antiga capital de Moçambique, hoje Maputo. O romance retrata, por meio das memórias da menina Gita e depois pela da jovem, o choque entre as culturas (casa preta versus casa branca; Lóia versus Amélia), os dramas humanos e a luta pela liberdade numa narrativa permeada pela memória e pela história. O que podemos depreender de nossas leituras do corpus literário, num primeiro momento, é que cada um dos autores partilha, em espaços geográficos diferentes, de um passado conflituoso, com dimensões e problemas diferentes para cada um dos povos, que metonimicamente são representados em seus romances por meio de dramas individuais. Teolinda Gersão, por exemplo, em Paisagem, analisa criticamente a postura do Estado Novo de enviar os jovens para servir nas colônias na Guerra Colonial, além do drama dos retornados pós-revolução por meio da família de Hortense e Clara. Mia Couto, em Vinte e zinco, retratando os últimos dias de Lourenço de Castro, traz a atmosfera de perseguição, mortes, prisões e torturas em Moçambique ocasionadas pela presença dos portugueses. Cada um em seu espaço e tempo da escritura escreve sobre as mazelas da história, não com o objetivo de retratar fielmente o histórico, mas de transfigurá-lo ou deseroicizá-lo. O que fica em evidência é o olhar crítico da literatura para com a matéria histórica recente, por meio do retrato do choque cultural sob diferentes perspectivas e pelas artimanhas da linguagem. De certa forma, busca-se com a pesquisa de doutorado dar continuidade, no sentido de aprofundamento, aos estudos de literatura e realidade desenvolvidos na dissertação de mestrado Cenários do sujeito e da escrita em Paisagem com mulher e mar ao fundo, de Teolinda Gersão, de minha autoria, defendida em agosto de 2010, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da UNESP de São José do Rio Preto, sob orientação da Profa. Dra. Maria Heloísa Martins Dias. O segundo romance de Teolinda Gersão, Paisagem com mulher e mar ao fundo, é retomado

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no atual estudo. Um exemplo de como ocorre nas narrativas do corpus a transfiguração da matéria histórica, pode ser visto no romance O último voo do flamingo (2005), de Mia Couto que, via ironia, humor e paródia, mostra-nos as várias faces do passado histórico recente de Moçambique. O discurso narrativo traz situações jocosas e irônicas, que põem em evidência a crítica mordaz ao discurso histórico, como o mistério do falo decepado por uma explosão de mina, ironizando a presença da força de paz da ONU na retirada da minas deixadas pelas guerras de independência e civil no país e também os desmandos da administração do país. Ao mesmo tempo, ao lado da crítica ao factual, o romance apresenta-se com poeticidade na composição e apresentação de algumas situações sobrenaturais e personagens misteriosas, como Sulplício, que retira o esqueleto para dormir, e Temporina, corpo de moça e rosto de velha, revelando-se, desse modo, como ficção e não como documento histórico. 1.1 Objetivos O estudo busca, por meio da análise do corpus literário escolhido, confrontar os diferentes olhares sobre o passado recente das duas nações veiculados pelos romances de Teolinda Gersão e Mia Couto. Nossa hipótese é a de que os dois autores utilizam, como primordial técnica de composição narrativa, as interações entre ficção e história de modo a transfigurar a matéria histórica no corpo ficcional. O intuito da pesquisa é traçar convergências e divergências entre a produção de Gersão e de Couto, levando sempre em consideração o contexto histórico-crítico em que essas obras foram produzidas e também a geografia (SAID, 2003, p.225-226) de cada produção e as preferências e tendências marcantes de cada um dos autores, a fim de analisar os procedimentos narrativos na incorporação do discurso da história no espaço da ficção como elemento constitutivo da matéria ficcional (CANDIDO, 2000, p.7), operando a produção de novos sentidos, juntamente com as instâncias narrativas, que buscam discutir, questionar e compreender a própria identidade. Vale ressaltar, como mencionado, que este estudo não visa analisar a simples transposição do real para o ficcional nos romances, mas o trabalho artístico na incorporação da realidade, já que a literatura não possui o compromisso de documento histórico e sim

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liberdade na incorporação e transfiguração dos fatos do que seria a realidade objetiva. 1.2 Caminhos teóricos Para o desenvolvimento da pesquisa são tomados como embasamento teórico-crítico os seguintes grupos de estudo: a) textos sobre a interação entre literatura e história e o problema da representação da realidade ao longo da crítica literária. Destacam-se o “Livro X” de A república (1973), de Platão e “Poética” (1985), de Aristóteles, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (1988), de Auerbach, Literatura e história: o romance revolucionário de André Malraux (1986), de Maria Teresa de Freitas, Literatura e sociedade (2000), de Antonio Candido. b) textos teóricos dos Estudos Culturais para a compreensão da configuração da literatura em países de independência recente, como é o caso de Moçambique. Destacamse: “História, literatura e geografia” (2003) e Cultura e imperialismo (2011), de Edward Said; O local da cultura (1998), de Homi Bhabha; Da diáspora (2011), de Stuart Hall. c) estudos teórico-críticos sobre a constituição e principais tendências das literaturas de língua portuguesa, em especial, a produção de Moçambique com Mia Couto e de Portugal pós-Revolução dos Cravos, com destaque para a obra ficcional de Teolinda Gersão. Destacam-se: Literaturas africanas de expressão portuguesa (1995), de Pires Laranjeira; Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária (2002), de Francisco Noa; Mia Couto: espaços ficcionais (2008), de Fonseca e Cury; A voz itinerante: ensaio sobre o romance português contemporâneo (1993), de Álvaro Cardoso Gomes; Teolinda Gersão: o processo de uma escrita (1988), de Inês de Sousa; A palavra do romance: ensaios de genealogia e análise (1886) e Para um estudo da expressão do tempo no romance português contemporâneo (1987), de Maria Alzira Seixo, entre outros textos críticos elencados em nossa bibliografia. c)

estudos teóricos para a compreensão dos conceitos de memória, história e

ficção. Destacam-se os estudos: Tempo e narrativa (1994-1997) e A memória, a história, o esquecimento (2008), de Paul de Ricoeur; História e memória (2003), de Jacques Le Goff; A ficção (2006), de Karlheinz Stierle.

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proposições da Teoria da Narrativa para a análise das categorias narrativas. Para o tempo, narração e focalização, destaque-se Discurso da narrativa (s/d), de Gérard Genette; para o estudo do espaço: Espaço e romance (1985), de A. Dimas e Lima Barreto e o espaço romanesco (1976), de Osman Lins. Bibliografia ANDRADE, L. P. de. Alguns voos em O último voo do flamingo. Revista África e africanidades, ano 1, n.2, p. 1-15, agosto, 2008. AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2008. ARISTÓTELES. Poética. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Intr. Roberto de Oliveira Brandão. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, p.17-52. ARNAUT, A. P. D. Post-modernismo no romance português contemporâneo: fios de Ariadne – máscaras de Proteu. Coimbra: Almedina, 2002. AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BARTHES, R. O efeito de real. In: _____. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1987. BATALHA, M. C. Histórias de guerra, sonhos de paz: a Angola de Manuel Rui e Pepetela. Ipotesi, v.14, n.2, p.179-187, jul/dez 2010. BHABHA, H. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8ª. ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000. CHAVES, R.; MACEDO, T. Caminhos da ficção da África portuguesa. Vozes da África Revista Entre Livros. São Paulo, edição especial, n.6, p.44-51, 2007. COMPAGNOM, A. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. COSTA, D. A. da. Cenários do sujeito e da escrita em Paisagem com mulher e mar ao fundo. 98 f; Dissertação de mestrado em Letras, Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto, 2010.

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EM FACE DO ÉPICO: A HEROICIZAÇÃO NAS NARRATIVAS DE XENOFONTE Emerson Cerdas Maria Celeste Consolin Dezotti Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O objetivo dessa pesquisa é analisar as narrativas de Xenofonte, Helênicas, Anábase, Agesilau e Ciropedia, pensando as relações entre ficção e história na Antiguidade, partindo do pressuposto de que a literatura tem fronteiras muito mais fluídas do que a ficção. Costuma-se, nos manuais de literatura grega1, relacionar o nome de Xenofonte entre os historiadores clássicos, e esta classificação deve-se, principalmente, ao fato de Xenofonte trabalhar com temas históricos em suas narrativas. Entretanto, conforme Aristóteles (Poética, 1451b), o fato de o escritor utilizar de temas históricos não significa que sua obra seja historiográfica, pois nada impede que os sucessos reais sejam “[...] por natureza, verossímeis e possíveis” (ARISTÓTELES, 1966, p.79.). Há, de fato, uma série de recursos narrativos e linguísticos, tanto temáticos quanto de estrutura, que se constituem como elementos determinantes na caracterização de um gênero. Na Antiguidade, o gênero historiográfico se estabelece a partir da obra de Heródoto e se renova com a de Tucídides. Ambas se configuram como obras historiográficas não só por narrarem fatos passados, mas também por serem compostas de acordo com os critérios narrativos do gênero. Contudo, a literatura historiográfica clássica desenvolveu-se para além desse cânone, produzindo obras muito diversas que, conscientemente, procuraram reinventar a escrita narrativa da história (GABBA, 1981). Quando analisada sob esse critério – comparação com a obra de seus antecessores – observamos que as obras de Xenofonte (séc. IV a.C.) apresentam um sensível 1

Cf. Lesky (1986); Romilly (1984); López Férez (1988).

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desenvolvimento literário em relação aos modelos deixados pelos seus antecessores, Heródoto e Tucídides. Acreditamos que esse novo projeto narrativo revela-se por comentários do próprio escritor, principalmente nos proêmios das suas narrativas. O proêmio é uma estrutura discursiva em que o narrador estabelece um contrato com seu público, que reconhece o enquadramento genérico a que o texto pertence (SMITH, 2007, p.188). O proêmio de uma obra histórica, segundo Luciano de Samóstata, em Como se deve escrever a História (2009), deve esclarecer e facilitar ao leitor a compreensão do relato (diégesis) que se seguirá.

O modelo de proêmio de uma obra historiográfica provém de Heródoto que, em suas Histórias, afirma que a sua obra é a exposição da investigação (historíes apódeksis) da causa (aitíen) da guerra entre gregos e persas, para que as grandes e admiráveis obras (érga megála te kai thomastá) dos homens não sejam apagadas com o tempo. Podemos observar que, desse modo, o historiador estabelece, no proêmio, o tema (não qualquer feito, mas os grandes e admiráveis) e o objetivo de sua obra (impedir que tais fatos não sejam esquecidos). Tucídides, na História da Guerra do Peloponeso, constrói seu proêmio sobre estas mesmas balizas: estabelecer o tema e a finalidade da obra. Tucídides diz que escreveu (ksunégrapse) sobre a guerra dos peloponésios e atenienses, para que essa fosse uma aquisição para sempre (ktéma te és aieí), pois previa que ela viria a ser grande e a mais digna de menção (aksiologótaton), uma vez que tanto Esparta quanto Atenas estavam no ápice de todos seus recursos (akmázontes te ésan). Assim, o tema de Tucídides, como o de Heródoto, é a guerra, em que se revelam os grandes e admiráveis feitos dos homens, tornando-se, por isso, dignos de menção. Estabelece-se assim a essência do tema da historiografia: tratar de assuntos militares e políticos de grandes e poderosos Estados (MOMIGLIANO, 1984; RAHN, 1971). Diferentemente, as obras narrativas de Xenofonte anunciam uma mudança de postura com relação ao proêmio: tanto as Helênicas quanto a Anábase não apresentam proêmio de fato, iniciando-se diretamente na narrativa, enquanto que a Ciropedia e o Agesilau, obras tardias de sua produção, apresentam o proêmio. Entretanto, no decorrer das obras o narrador faz comentários que, como afirma Hartog (2001, p.13), são proêmios em potencial, já que estes comentários identificam, conscientemente, os mecanismos que

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constroem a narrativa. Esses comentários metaficcionais são essenciais para a compreensão do projeto narrativo de Xenofonte, e do consciente afastamento com relação aos seus modelos. Neste sentido, por exemplo, a análise das Helênicas é fundamental, pois essa obra é, dentre as obras de Xenofonte, a que mais se aproxima da historiografia de Tucídides (LESKY, 1986). Além disso, se aceitamos a datação de Delebecque (1957) e Anderson (2008), Xenofonte começou a escrevê-la ainda na juventude, prosseguindo a sua escritura até o fim da vida. Desse modo, sentimos, com o desenrolar da leitura, a progressiva tensão entre o manter-se fiel à tradição historiográfica e o estabelecimento de uma nova narrativa, revelando o amadurecimento das ideias de Xenofonte. Além disso, podemos contemplar e comparar as mudanças auferidas nas Helênicas com os projetos narrativos propostos nas outras obras de Xenofonte, que fazem parte do corpus deste estudo. Deve-se levar em conta que, a partir do momento que Xenofonte se afasta do modelo tucidideano, começa a surgir um novo conceito do que deve ser um feito digno de menção (aksiólogon), digno de ser narrado . Por exemplo, nas Helênicas II.3.56, após narrar as

últimas falas da personagem Têramenes, que precederam a sua morte, o narrador afirma que tais falas não são dignas de menção (ouk aksióloga), mas mesmo assim as narra pelo que revelam do caráter do homem. Ao afirmar que as falas de Têramenes não dignas de menção, nos parece que Xenofonte retoma o critério estabelecido por Tucídides em seu proêmio. Isso nos parece mais evidente à medida que a expressão ouk aksióloga retoma o termo aksiologótaton que Tucídides utiliza. Porém, embora Xenofonte deixe claro que sua obra está construída sob o critério da historiografia tucidideana, e de que as falas de Têramenes não são dignas para uma narrativa historiográfica, mesmo assim ele as narra, estabelecendo, portanto, uma ruptura consciente com o modelo assumido. Desenha-se, desse modo, uma nova concepção de ação memorável e digna de menção, concebendo como aksiólogon não apenas os feitos dos grandes Estados e suas ações políticas e militares, mas a história e o caráter do indivíduo. Em um recente trabalho sobre a historiografia do século IV a.C., Francis Pownal (2004) discute o papel da caracterização do indivíduo nas Helênicas e demonstra que Xenofonte sacrificava a verdade dos fatos em vista de um programa moral, que se organizava pela apresentação de um feito individual que fosse exemplar ao leitor.

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Concordamos com a autora quanto ao valor do exemplo moral na escrita de Xenofonte, porém a conclusão da autora só explica o objetivo final de Xenofonte, não os recursos que usou para alcançar tal objetivo literário. Em nossa opinião, Xenofonte, na criação desses paradigmas morais individuais, busca heroicizar suas personagens por meio de referências aos textos poéticos da literatura grega, em especial à épica homérica, dando para a própria narrativa uma dimensão poética e universal. O título de nosso projeto, Em face do épico, retoma a interpretação de Jacyntho Lins Brandão (1992) para o termo anti-epopeia, propagado por Donaldo Schüler (1985 apud BRANDÃO, 1992). Em grego a preposição antí significa “em face de”, “a posição espacial de quem dialoga com” (BRANDÃO, 1992, p.43), e, neste sentido, a expressão estabelece a condição essencial de toda a literatura grega, que se estabelece como anti-epopéia, ou antiHomero, construindo, assim, um contínuo diálogo com a voz inaugural da literatura grega. Para compreender o diálogo literário que Xenofonte efetua com as epopeias, devemos, primeiramente, considerar a imagem do herói fornecida pelos poemas épicos, e em que medida os valores expressados pela Ilíada e Odisseia são retomados e transformados em um novo contexto literário, histórico e social. O herói épico é um indivíduo que possui dons que o tornam superiores aos outros homens comuns, despertando a admiração tanto pelos seus feitos quanto pelo seu caráter (BOWRA, 1966, p.91). Na epopeia homérica, os valores aristocráticos são condensados na fórmula do kalós kagathós, o homem nobre, belo e bom, que possui aqueles dons do corpo e do caráter que conduzem ao sucesso na ação e são, por isso, admirados (BOWRA, 1996, p.97). Aquiles, por exemplo, é filho de Tétis, uma nereida, divindade marinha, e de Peleu, rei dos Mirmidões, cujo avô era Zeus. Além disso, Aquiles foi educado pelo centauro Quíron e pelo herói Fênix, que no canto nono da Ilíada, forma ao lado de Odisseu e Ájax, a embaixada enviada por Agamemnom para demover Aquiles de sua ira. A noção dessa educação vincula-se à formação da areté do nobre, pois ao herói não basta ser valoroso na guerra; ele ainda deve portar-se como superior em tudo o mais, aspirando à honra e ao reconhecimento de “todas as suas excelências” (JAEGER, 1995, p.41). Na Ciropedia, Xenofonte nos apresenta a personagem Ciro como filho de Mandane, princesa da Média, e Cambises, rei dos persas, e descendente de Perseu, o herói mitológico. Esta genealogia é um produto ficcional de Xenofonte, pois difere de qualquer outra fonte a

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respeito da vida de Ciro; desse modo, a origem de Ciro é divina e nobre, como o são as origens dos heróis homéricos. Quanto à descrição de sua natureza, Ciro “era por natureza de aparência muito bela (kállistos), com alma muitíssimo bondosa (philanthropótatos), amantíssimo dos estudos (philomathéstatos) e das honras (philotimótatos), de tal modo que suportava todas as fadigas, resistia a todos os perigos, pelo amor aos elogios”2. Note-se como Ciro é descrito tanto por características físicas quanto morais, por meio de superlativos que exalçam a sua personalidade, constituindo-se, por isso, como um verdadeiro homem nobre. Além disso, uma das características predicadas a Ciro, o ser amantíssimo das honras, é, em síntese, a própria essência do caráter do herói épico, pois este herói só pode contemplar o valor de sua areté (excelência) por meio da time, o reconhecimento do seu valor pela sociedade. Na epopeia homérica, negar a honra do herói “era a maior tragédia humana” (JAEGER, 1995, p.31). Desse modo, Xenofonte retoma valores épicos para a construção do seu modelo de herói – será, portanto, nosso intuito ler as obras de Xenofonte, tendo como subtexto as epopeias Ilíada e Odisseia. Assim, nosso projeto visa o estudo de quatro narrativas de Xenofonte, as classificadas como históricas pelos manuais de literatura, procurando demonstrar a inovação que essas narrativas apresentam comparadas ao modelo de seus antecessores, questionando, mesmo, até que ponto suas obras podem ser classificadas desse modo. Bibliografia ANDERSON, J. K. Xenophon. London: Bristol Classical Press, 2008. ARISTÓTELES. Poética. Prefácio, Introdução, Comentário e Tradução de Eudoro de Souza. Porto Alegre: Ed. Globo, 1966. BOWRA, C. M. Heroic poetry. London; Melbourne; Toronto: Macmillan, 1966. BRANDÃO, J. L. Primórdios do épico: Ilíada. In: APPEL, M. B.; GOETTEMS, M. B. As formas do épico. Porto Alegre: Editora Movimento, 1992. CERDAS, E. A Ciropedia de Xenofonte: um Romance de Formação na Antiguidade. (Dissertação de Mestrado). Araraquara, 2011. DELEBECQUE, E. Essai sur la vie de Xénophon. Paris: Klincksieck, 1957. 2

Ciropedia, I. 2. (1972). Tradução nossa.

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SHENIPABU MIYUI: LITERATURA E MITO Érika Bergamasco Guesse (FAPESP) Karin Volobuef

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Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP/FCLAr Nossa pesquisa tem por objetivo realizar uma análise de um grupo de doze narrativas indígenas de origem mítica, contidas na obra de autoria coletiva dos índios Kaxinawá, Shenipabu Miyui (1995), organizada pelo professor Joaquim Mana Kaxinawá. As histórias que compõem a obra foram narradas pelos mestres da tradição indígena em versões tanto na língua indígena Kaxinawá quanto em língua portuguesa (contadas por índios que dominavam a “língua dos brancos”). Obviamente, são as versões em português que formam nosso corpus de trabalho. Desta forma, a pesquisa está organizada de modo a cobrir basicamente três tópicos: discussão sobre a configuração do que poderíamos chamar de literatura indígena contemporânea, para contextualizar a obra a ser analisada; estudo do mito – um levantamento de suas especificidades enquanto matéria cultural e literária – com enfoque nos mitos indígenas e seu processo de migração da oralidade para a escrita, bem como a importância desse processo para as comunidades indígenas e para a manutenção e conservação de suas histórias e costumes. E por fim, análise das narrativas míticas do povo Kaxinawá, considerando esses textos enquanto realização literária, contemplando sua matéria estética, ou seja, um universo composto de expressão de idéias, de criatividade verbal e elaboração da composição narrativa. Descrição do estágio atual da pesquisa Seguindo a metodologia proposta para o desenvolvimento do trabalho, no primeiro momento da pesquisa, nos dedicamos a verificar como tem ocorrido o “fenômeno da escrita indígena” no Brasil e como essas produções escritas de autoria indígena têm se revestido de um caráter literário. Buscamos investigar como se iniciou o processo de escrita indígena, quais são as características dessa literatura e quais são seus principais representantes. Em primeiro lugar, pesquisamos os direitos legais garantidos aos indígenas essencialmente pela Constituição de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e pelo Plano Nacional da Educação (2001). De acordo com Souza (2003, on-line), a constituição brasileira de 1988 reconheceu oficialmente a existência de línguas indígenas no Brasil e garantiu o direito à educação bilíngüe. Como conseqüência disso, a

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partir da década de 90, escolas indígenas diferenciadas começaram a ser criadas em nosso país. Com a criação dessas escolas, algumas personagens, antes inexistentes, iniciaram sua atuação no cenário educacional brasileiro. Professores indígenas passaram a ser formados e a lecionar nessas escolas para um público discente composto em sua grande maioria (quando não em sua totalidade) por indígenas. Dessa maneira, um material didático também diferenciado se fez necessário. Além de aprenderem ou aprimorarem o domínio da língua portuguesa escrita, muitas tribos indígenas, anteriormente ágrafas, intensificaram o processo de construção de sistemas alfabéticos escritos de suas próprias línguas de origem. São esses professores que assumiram primordialmente a confecção de seus próprios materiais didáticos, fazendo com que suas histórias, cantos, mitos e poesias passassem do âmbito da oralidade para o âmbito da escrita. Eles têm construído, a partir de suas práticas de trabalho, a literatura das suas comunidades: são os chamados “livros da floresta” (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 196-297). Neste processo de solidificação de uma literatura brasileira de autoria indígena, as comunidades indígenas consideram a escrita de seus mitos muito importante (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 233). Sendo assim, como suporte à análise das narrativas do corpus, consideramos necessário dedicar um capítulo ao estudo do mito enquanto material literário e cultural. A partir daí ganhamos subsídios para tratar especificamente do mito indígena, colocando sob a lupa suas peculiaridades, especificidades, seus elementos mais recorrentes, sua simbologia. Atualmente estamos, portanto, desenvolvendo o segundo tópico da pesquisa, que trata do estudo do mito, no qual dedicamo-nos a isolar seus principais aspectos em termos de sua realização enquanto narrativa carregada de dimensão estética. Cabe aqui lembrarmos que “os mitos são tidos como obra de literatura, em virtude de serem obras da imaginação, reconhecidamente anônimas e coletivistas, mas não por isso menos imaginativas” (RUTHVEN, 1997, p.72). Em consequência dessa estreita relação entre mito e literatura, de há muito a narrativa mítica (transmitida oralmente ou em textos considerados sagrados) nutriu e fertilizou a efabulação e criatividade (voltadas a objetivos estéticos): por exemplo, muito do que nos chegou da mitologia greco-romana foi preservado no bojo de tragédias, epopéias e outras formas literárias altamente sofisticadas. Segundo Eliade, o que evitou que os deuses e heróis gregos caíssem no esquecimento após o longo processo de

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desmitificação ao que foram submetidos após a ascensão do cristianismo foi, principalmente, o fato de as artes plásticas e a literatura terem se desenvolvido em torno dos mitos heróicos e divinos. Diz Eliade: Em última análise, a herança clássica foi “salva” pelos poetas, artistas e filósofos. Desde o fim da Antiguidade – quando não eram mais tomados ao pé da letra por nenhuma pessoa culta – os deuses e seus mitos foram transmitidos à Renascença e ao século XVII, pelas obras, pelas criações literárias e artísticas (1972, p. 137 – grifo do autor).

Ainda de acordo com o mesmo estudioso, a literatura desempenha um papel importante em relação ao legado mítico dos povos, já que determinados gêneros literários, como a narrativa épica e o romance, por exemplo, em outro plano e com outros fins, prolongam a narrativa mitológica. Assim, nas sociedades modernas, teria sido mais especificamente o romance o gênero que assumiu o lugar da transmissão oral dos mitos e contos das sociedades populares e tradicionais. Seria até mesmo possível identificar estruturas “míticas” em romances modernos, demonstrando a sobrevivência literária dos grandes temas e personagens do universo mitológico. O fator considerado por Eliade como o que mais aproxima a função da literatura daquela das mitologias é a “saída do Tempo” produzida pela leitura. O tempo que se “vive” ao ler um romance não é, evidentemente, o tempo em que o membro de uma sociedade tradicional reintegra, ao escutar um mito. Em ambos os casos, porém, há a “saída” do tempo histórico, pessoal, e o mergulho num tempo fabuloso, trans-histórico. O leitor é confrontado com um tempo estranho, imaginário, cujos ritmos variam indefinidamente, pois cada narrativa tem o seu próprio tempo, específico e exclusivo. O romance não tem acesso ao tempo primordial dos mitos; mas, na medida em que conta uma história verossímil, o romancista utiliza um tempo aparentemente histórico e, não obstante, condensado ou dilatado, um tempo que dispõe, portanto, de todas as liberdades dos mundos imaginários (ELIADE, 1972, p. 164).

Dentre os vários aspectos compartilhados pela literatura e pelo mito estão a metáfora, a dimensão simbólica, a incorporação de valores éticos e de parâmetros de comportamentos sociais e até mesmo uma certa compreensão histórica, podendo-se dizer que em muitos casos a literatura é composta da matéria-prima dos mitos: uma “literatura feita por artesãos que falsificam artisticamente os mitos a fim de criar alguma coisa que – em sua forma estabilizada e codificada – está bastante distante do que o antropólogo encontra em seu

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trabalho científico de campo” (RUTHVEN, 1997, p. 72). Para Roberto Calasso (2004, p. 119), a constante aliança entre literatura e mito pode “ser considerad[o] um retorno às origens – ou, ao menos, um recuo para aquele recinto de onde os deuses sempre saíram”. Quanto aos mitos indígenas, procuramos apresentar quais são suas principais características narrativas, seus elementos e sua significação simbólica. Acreditamos haver semelhanças entre as narrativas indígenas e outras mitologias de diversas partes do mundo, tendo em vista sua configuração como histórias sagradas, muitas vezes com natureza etiológica ou cosmogônica. No entanto, nosso enfoque principal é averiguar as especificidades e peculiaridades da expressão mítica indígena, ou seja, mais do que apresentar os aspectos temáticos compartilhados entre essas expressões e outras, buscamos os elementos diferenciadores, uma vez que, por meio deles, podem ser identificados o caráter único e a dimensão criativa, próprios da forma de expressão de uma cultura específica. Tem acontecido, em várias aldeias brasileiras, uma interação diferenciada entre os mais velhos (considerados mais sábios) e os mais novos, que são os verdadeiros protagonistas desse novo processo educacional e literário. Os mais velhos se dispõem a narrar aos coletores as histórias “verdadeiras” de seus povos, as histórias de um tempo antigo, remoto, de um tempo em que a escrita não existia para dizer que havia histórias falsas. Os coletores, por sua vez, respeitam todo o contexto cultural no qual as narrativas estão inseridas e escrevem/ registram aquilo que ouvem. Configura-se um processo bem complexo de fixação das expressões literárias orais para uma expressão literária escrita, que será editada, publicada e utilizada na formação escolar das crianças da aldeia ou então que será destinada também ao público leitor branco, mesmo que seja em menor escala. A forma mais simples, e talvez a mais clara, de definir o mito é como a representação concreta da concepção do mundo de comunidades humanas. Dessa forma, a tradição mítica de cada povo constitui um esforço no sentido da representação de si próprio, do que é, do que faz, de como vive, e do estabelecimento de toda uma moral, um ritual, uma mentalidade, baseando-se nessa mitologia. A função social do mito, porém, não exclui a sua função poética ou recreativa (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p.

233). Podemos perceber que, ao escreverem e publicarem seus mitos, os índios concretizam o universo de sua cultura, seus costumes, suas crenças. O que acontece nos dias de hoje não

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é um simples processo editorial e literário, mas sim o assumir, por parte dos índios, um novo posicionamento na História e na literatura, um posicionamento mais ativo, coletivo e até mesmo político. Através da escrita de seus mitos, os índios colocam-se como os verdadeiros autores de sua História, segundo Almeida e Queiroz (2004). Podemos dizer que a literatura indígena vinha passando por um processo de folclorização, com o intuito de ocultá-la. O uso dos mitos indígenas nas escolas, por exemplo, trazia as entidades míticas desespiritualizadas. Apenas a escrita desses mitos, que possibilita que eles sejam lidos como literatura, reespiritualiza as entidades míticas, na medida em que recompõe graficamente suas formas rituais. Para o estudo do mito e sua relação com a literatura, recorremos principalmente às obras de André Jolles, Roberto Calasso, Mircea Eliade, Raul Fiker, Mielietinski, Ruthven, Campbell, Lévi-Strauss dentre outras. Em relação aos mitos indígenas, fizemos alguns contatos muito proveitosos com a Universidade Federal do Pará, através da professora Sylvia Maria Trusen e da professora Maria do Socorro Simões, sendo essa última membro integrante da coordenação do programa de pesquisa “O imaginário das formas narrativas orais populares da Amazônia paranaense” (IFNOPAP), já citado anteriormente. Conseguimos, por intermédio desse projeto algumas obras que, certamente, contribuirão para o desenvolvimento deste tópico do trabalho. Dentre elas estão: Belém conta..., Santarém conta..., Abaetetuba conta... e Cultura e biodiversidade – entre o rio e a floresta. Além disso, os estudos de Lévi-Strauss, Câmara Cascudo, Sílvia Carvalho, Osvaldo Orico, Sérgio Medeiros e Maria Inês de Almeida também serão bibliografia básica para esta etapa da pesquisa. Bibliografia ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: As edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: A Autêntica; FALE/UFMG, 2004. BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. Tradução de Carlos Sussekind e outros. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. CALASSO, Roberto. A literatura e os deuses. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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E DO VERBO SE FEZ CARNE: UM ESTUDO SOBRE A OBRA LAVOURA ARCAICA DE RADUAN Fabiana Abi Rached de Almeida (FAPESP) Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Progama de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O objetivo geral desta pesquisa é analisar a obra Lavoura Arcaica de Raduan Nassar (1975) a partir do corpo enquanto lócus conceitual, inspirado pelo projeto teórico de Beividas cujo cerne é a junção da semiótica de linha francesa com a psicanálise. Pensando em que medida a tensão pulsional organiza a narrativa e como o texto expressa essa tensão, ou seja, como ela aparece manifestada no Plano de expressão, talvez cheguemos à conclusão que o filme construiu uma organização tensiva da obra literária e, a partir de então, é possível reler a obra sob essa perspectiva, por meio de uma “devolução tímica” da obra literária. Para tanto, nesta proposta de trabalho, levaremos em conta também a tradução fílmica, o filme homônimo (LavourArcaica), de Luiz Fernando Carvalho (2001), apresentando os resultados parciais da pesquisa, neste evento, a partir da análise de um trecho do filme. De acordo com Beividas (1996), o sensível do corpo enquanto novo lócus conceitual, enquanto lugar das primeiras somações tímicas do sujeito e onde a semiótica procura legitimar a nova instância ab quo do sentido, prescinde aqui do conceito metapsicológico freudiano de pulsão. A pulsão, de forma resumida, seria o resultado de um processo somático que ocorre num órgão e do qual se origina um estímulo representado pela pulsão e cujo objetivo é suprimir um estado de tensão. Freud fala sobre pulsão a primeira vez em Três ensaios da Sexualidade de 1905 e reformula o conceito em 1915, no texto, A pulsão e suas vicissitudes1. Assim, para Beividas, a proposta programática é a de semiotizar a pulsão. Não apenas para densificar seu estatuto simbólico, mas poder ampliar o campo de atuação das 1

No texto de 1915, Freud pontua que a pulsão é diferente de estímulo fisiológico que atua no psiquismo. A pulsão é uma força constante, inevitável e irremovível e não momentânea como seria o caso do estímulo e provém do interior do organismo. A pulsão possui como características: a pressão (a soma da força), a meta (satisfação), objeto (aquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta) e fonte (processo somático que ocorre em um órgão e do qual se origina um estímulo representado na vida psíquica pela pulsão).

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semióticas das paixões. Isto é, “pleitear a contrapartida de uma sensibilização individual para a sensibilização e moralização concebidas como operações de interpretação e regulação das configurações passionais no espaço comunitário.” (BEIVIDAS, p.131). De ponto de vista semiótico e metapsicológico, a pulsão pode ser vista como o primeiro “ato puro” da somação tensiva com que o sujeito sente o corpo, primeira somação que incita o imaginário humano para além do registro etológico. É o limite que, situado entre o corpo biológico e o corpo pulsional (simbólico), não podemos deduzir neurologicamente uma linha de continuidade, e, sim, um hiato de contiguidade, ainda irresoluto. A passagem do biológico para o simbólico pode ser vista como um buraco negro, no entanto, a pulsão pode se encarregar do lugar onde emerge a existência semiótica das informações do mundo e do corpo interior. A fome e o amor, por exemplo, deixariam de ser parte apenas do campo etológico da necessidade orgânica para provocar, como apelo de demanda, o sentimento de carência ou angústia da falta, pertencentes ao estatuto simbólico. Dessa forma, se a pulsão for entendida como o lugar da conversão semiótica do mundo natural, para Beividas, será possível conceber o universo passional como um desdobramento sequencial da tensividade pulsional, isto é, a pulsão como a matriz da paixão. Nesse sentido, será possível também perceber um percurso gerativo da subjetividade inconsciente. Assim, por exemplo, numa instância profunda, poderiam ser teorizados e descritos três tipos de modulações ou oscilações tensivas: as modulações erotensivas (pulsões sexuais), as modulações thanato-tensivas (pulsões de morte) e as modulações auto-conservativas (pulsões de autoconservação). Numa instância mais superficial, essas modulações sofreriam uma conversão fundada nos diversos enquadres do objeto pelo sujeito (conversão fantasmática) e se converteriam nas modulações patológicas constitutivas de algumas configurações matriciais, tais como: histeria, obsessão, narcisismo, psicose, perversão, etc. Numa terceira conversão, que supõe a sublimação e a idealização, essas matrizes resultariam nas configurações passionais propriamente ditas, como: avareza, inveja, ódio, indiferença, etc. A reflexão sobre pulsões, afetos e paixões dentro da Psicanálise, no registro do sentido, significa levar em conta o corpo. Significa colocar o simbólico, a linguagem, como a sua causa. Isto é, significa indagar qual a motivação ou causa (simbólica) se articulam

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pulsões, afetos e paixões quando habitam o corpo. No texto de 2000, Semiótica e psicanálise: o gerativo e o genético (p.02), Beividas, pontua ainda: “[...] para a Psicanálise, sobretudo pela ênfase de Lacan por sobre o texto de Freud, é o modo de sensibilização do discurso (Simbólico) no sofrimento do corpo que define cada sujeito seu inconsciente ou sua subjetividade”. E, para o autor, a teoria semiótica pode ser muito bem vinda aqui enquanto interface deste estudo, uma vez que a semiótica tem como proposta metodológica de base o modo de construção do sentido, da sua interpretação nos discursos em geral (os não-verbais também). O registro do sentido para semiótica, assim como foi o registro do Simbólico para Lacan (1966), um lugar privilegiado de descrição do campo passional e pulsional, de forma que a análise ganhe um rigor científico e assim melhores resultados. Para tanto, o autor recorre à semiótica das paixões e a partir de suas três instâncias principais2 e as homologa para construir um percurso gerativo do psiquismo inconsciente, formulando a partir de três níveis de profundidade ou instâncias: (a) uma instância fundamental pulsional, que evoluiria para uma instância intermediária (b) patológica (das matrizes clínicas da histeria, obsessão...) e que culminaria (c) na instância passional, da paixão e do afeto a ser integrada na psicanálise lacaniana. Tal apropriação do método semiótico feita pelo autor interessa-nos em particular para o nosso estudo. Para Beividas, convocar a semiótica para o exame das pulsões e das paixões significa retomar na Psicanálise o diálogo com outras teorias que apostam igualmente no registro do sentido, do simbólico ou da linguagem para a apreensão dos fenômenos psíquicos. Isto é, retomar um tempo no qual a Psicanálise realmente se enriqueceu com conceitos advindos de outras ciências, como a linguística, filosofia, antropologia, etc. Assim, o discurso de descrição do universo passional e pulsional, importado do método semiótico, apresenta-se como uma alternativa ao hábito imperante de cognição no campo psicanalítico, qual seja, “o discurso emintemente estilístico povoado de metáforas, de aforismos, que se presume autorizado pelo ensino de Lacan. Sem contestar a metáfora

2

As três instâncias que compõem o percurso gerativo da significação, resumidamente, seriam: (a) instância “ondular” (BEIVIDAS, 2006), da tensividade fórica; (b) instância modal, articulada nas modalidades do querer-dever e (c) instância discursiva passional, onde se instauram as metáforas do tempo, o aspecto e o espaço.

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ou o poético como legítimos instrumentos de captação e de formulação dos fenômenos sutis da linguagem e, portanto, do psiquismo” (p.397). Mas um estudo que pretende se inspirar também na construção de Beividas persegue um caminho solitário nestas questões: como a articulação entre pulsão e paixão se articularia no discurso cinematográfico, uma vez que o corpo é o lócus conceitual da análise? Poderíamos pensar que as pulsões se evidenciam (sem se mostrarem propriamente) no simbólico naquilo que escapa ao discurso? Bibliografia BEIVIDAS, W. Do sentido ao corpo: semiótica e metapsicologia. Corpo e Sentido. São Paulo: Editora da Unesp, 1996. BEIVIDAS, W. Pulsão, afeto e paixão: psicanálise e semiótica. Psicologia em estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 391-398, mai/ago. 2006. BEIVIDAS, W. Semióticas Sincréticas (o cinema). Edição on line. ISBN: 85-905252-1-X. DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO AGENCIA BRASILEIRA DO ISBN, 2006. BEIVIDAS, W. Inconsciente et verbum: psicanálise, semiótica, ciência, estrutura. São Paulo: Humanitas/FFLCHUSP, 2000. CARVALHO, L. F. Sobre o filme Lavoura arcaica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. FREUD, S. Obras completas (vol. III/ 1983 - 1899). Trad: Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques Brito e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1996. FREUD, S. Obras completas (vol. VI/ 1983 - 1899). Rio de Janeiro: Imago, 1996. FREUD, S. Obras completas (vol. XIV/ 1914 -1 1915). Trad: Margarida Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. FREUD, S. Obras completas (Vol. XIII / 1913 - 1914). Trad: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, [1985?]. GREIMAS, A. J.; FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma. Trad: Maria José Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993.

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LACAN, J. (1972-1973). O seminário, livro 20: mais ainda. Tradução: M.D. Magno. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 1985. LACAN, J. Escritos. Trad: Vera Ribeiro. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 1998. LACAN, J. Conférence donnée au Centre culturel français le 30 mars 1974, suivie d’une série de questions préparées à l’avance, en vue de cette discussion, et datées du 25 mars 1974. Lacan in Italia 1953-1978. En Italie Lacan. Milan: La Salamandra, 1978. LAVOURArcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Produção Donald K. Ranvaud e Luiz Fernando Carvalho. Adaptação do romance homônimo de Raduan Nassar. 2001. Rio de Janeiro: Riofilme distribuidora, 2001. 1 bobina cinematográfica (163 min), son., color., 35mm. NASSAR, R. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2000

A NOVELA POLE POPPENSPÄLER, DE THEODOR STORM E O TEMA DA OPOSIÇÃO ENTRE O ARTISTA E O BURGUÊS Fabiana Angélica do Nascimento (CAPES) Mário Luiz Frungillo UNICAMP Este trabalho tem como objetivo a análise da novela Pole Poppenspäler como uma novela organizada ao redor do tema da oposição entre o artista e o burguês. Tal análise, baseada na própria definição de novela por Storm, demandará que se investigue o modo de tratamento do mesmo tema nas novelas românticas e sua posterior apropriação por Storm, validando-se assim a hipótese de Kunz (1970) segundo a qual as narrativas de Storm se organizam ao redor de uma oposição de caráter histórico-político. A escolha de tal objetivo tem como justificativa duas razões: a primeira, pela quase inexistência de estudos brasileiros sobre a obra, o autor e sobre o próprio movimento estético no qual obra e autor estão inseridos; a segunda, pela necessidade de se investigar a novela, considerada gênero de difícil definição. Josef Kunz (1970) reconhece uma estreita ligação entre a “arte da novela” do século XIX e o Romantismo. Sob o termo “século XIX”, Kunz (1970, p. 8) está entendendo o conceito de época do Realismo alemão, chamado “Realismo Poético”, durante o qual, “com a exceção de algumas poucas obras”, os motivos da novela romântica foram retomados e

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desenvolvidos. Kunz ressalta especialmente o tema do artista, que aparece primeiramente em Grillparzer (Der arme Spielmann), passando por Mörike e Stifter até chegar a Raabe (Frau Salome). A retomada dos temas românticos pelos autores realistas provoca, entretanto, mais do que uma reapropriação de motivos, uma espécie de subversão da novela romântica no que diz respeito ao entusiasmo, tornado ceticismo. Kunz dá o exemplo de D. Juan, a novela de Hoffmann, na qual já se encontra aquilo que se convencionou chamar de “pessimismo romântico”. Nesse sentido, diz Kunz (1970, p. 9), “a novela de Hoffmann representa não apenas os momentos de plenitude, mas também, junto ao clímax da vida, o poder superior da morte, a Beleza ao lado do poder devorador do grotesco.” Mas, aquilo que na novela romântica é apenas uma alusão, torna-se tema central na novela realista. Se, por um lado, os românticos concedem uma amplitude à subjetividade, ao fantástico e à ironia, que favorecem tanto a representação dos aspectos sociais quanto a mistura com o “Märchen”, os realistas concentram-se no acontecimento como tal para devolver à realidade da natureza e à sociedade o seu próprio equilíbrio; em ambos os casos a narrativa novelística se desenvolve na concentração do caso isolado (Einzelfall), cujo significado se forma, na maioria das vezes, em uma poética simbólica. Expressões como motivo (Leitmotiv), silhueta (Silhouette) ou peripécia (Wendepunkt), servem para denominar uma tendência de estilo que destaca o acontecimento único em sua expressividade particular que alcança, por meio de seu significado subjetivo, uma validade objetiva, é o que, em linhas gerais, o Realismo poético busca e se verifica na novela em questão. Desse modo, não se pode simplesmente atribuir “objetividade” à novela cultivada pelos assim chamados realistas, em oposição à novela do Romantismo e ao Märchen. Os limites entre a novela como relato de um quadro histórico e social e uma narrativa que admite o extraordinário e o inaudito, assim como a subjetividade da linguagem, são fluidos e não se prestam a uma divisão de época de cunho meramente didatizante. A novelística de Storm é representativa dessa linhagem, da mescla entre o relato objetivo de costumes e a admissão do inaudito e do extraordinário. Seja o objeto da narrativa “um único acontecimento” ou o acompanhamento de uma trajetória individual,

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essa miscigenação pode ser tomada como uma das características mais estáveis da novela do século XIX. Segundo Kunz (1970, p.135), a consciência de viver em uma época histórica de transição é nítida em toda a novelística de Storm, concedendo-lhe unidade temática, mesmo entre narrativas de diferente valor estético. Novelas compostas entre as décadas de 50 e 60 do século XIX como Immensee, Im Sonnenschein e Im Schloss organizam-se ao redor de uma situação de transformação da ordem social, seja para confirmá-la, por meio da continuidade das relações de posse e de gênero, seja para subvertê-la por meio de uma escolha individual na busca pela realização pessoal e amorosa. Essa polaridade reveste-se de diferentes aspectos, como a oposição entre as economias artesanal e capitalista, assim como na oposição entre o artista e o mundo burguês. A breve narrativa Pole Poppenspäler (1873/1874) concentra algumas dessas oposições. A situação de transição social pode ser reconhecida, no que diz respeito às dificuldades advindas da necessidade de adaptação (geográfica, confessional, profissional) em uma ordem social diferente da origem. Publicada em 1874 em uma revista voltada ao público infanto-juvenil (Deutsche Jugend), a novela narra a história do velho marionetista de Munique Josef Tendler, cuja filha, Lisei, casa-se com o torneiro artístico Paul Paulsen. Os dois jovens se conhecem quando a família da menina apresenta uma temporada na cidade de Paul. Doze anos depois, durante a peregrinação de Paul que constitui parte de sua formação profissional, os jovens se reencontram numa cidade do interior da Alemanha. Josef Tendler é preso por suspeita de roubo, e Paul ajuda Lisei a tirar seu pai da cadeia. Depois desse episódio, Paul pede Lisei em casamento, que aceita imediatamente, e os três partem de volta à cidade de Paul. Apesar do escárnio dos moradores da aldeia por Paul viver com uma família de artistas mambembes, ele atende o desejo do velho Tendler em realizar mais uma apresentação a qual resulta em um grande fiasco. O velho marionetista não consegue suportar o fracasso e morre. Depois de seu enterro, o boneco Kasperl, dado por perdido, é lançado por alguém sobre o túmulo, entretanto, toda essa manifestação de ódio não consegue perturbar a felicidade de Paul e Lisei. A situação histórica que dá origem ao conflito é simbolizada, no plano da narrativa, pela profissão de Tendler, marionetista, artífice e artista mambembe, em oposição à

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profissão de Paul, já voltada à produção do tipo industrial. Paul não é um artista, embora seu trabalho possa servir também a esses. O rapto da marionete e a subseqüente morte de Tendler podem ser entendidos como símbolo da transição de uma economia de cunho artesanal para a economia capitalista. Da mesma forma, instala-se o conflito, retomado pela novela do século XX, entre a mentalidade do artista e o modo de vida burguês. Essa é a oposição que servirá de fio condutor ao longo da narrativa, simbolizada pelo rapto do boneco Kasperl, objeto ao mesmo tempo artístico e artesanal que antecipa o modo capitalista de produção em série. Como observaram Kluge e Radler (1974, p. 407): o tema encontra-se na variação da contradição entre o ‘mundo do artista’ (Künstlertum) e o ‘mundo burguês’ (Bürgertum), um dos motivos que faria Thomas Mann destacar a importância da obra de Storm. [Tal contradição] Encontra-se, primeiramente, na fase da infância, na relevância do mundo do artista que é aventureiro e estranho e encanta a criança pequeno-burguesa de tal modo que, na segunda parte da narrativa, o mundo burguês cai num campo visual mais forte que torna proscrito os artistas mambembes e que da ao narrador o apelido Pole Poppenspäler. O final feliz não representa a reconciliação real entre os dois mundos, mas nasce, outrossim, ao pagar o preço da ‘limitação e isolamento’ da visão de mundo que, segundo a definição do autor, pertence à essência da novela.

Corpus e metodologia A pesquisa se fundamentará a partir da localização do tema em algumas novelas românticas, como Aus dem Leben eines Taugenichts, de Eichendorff e também O vaso de ouro, de E. T. A. Hoffmann. Além disso, far-se-á a configuração de um panorama da narrativa novelística do século XIX a partir de outros autores que contribuíram para o estabelecimento do gênero, como Kleist, Paul Heyse, Gottfried Keller e Theodor Fontane. Abordar-se-á também outras narrativas de Theodor Storm, como Der Schimmelreiter, Immensee, Im Sonnenschein e Acquis Submersus a fim de se verificar como os conflitos histórico-políticos se instauram e como é o tratamento dado pelo autor ao gênero novela. A concepção de novela far-se-á por meio da revisão da leitura das definições elaboradas pelos próprios autores, como Theodor Storm, Goethe, Friedrich Schlegel etc. e também por meio da revisão bibliográfica e da pesquisa em textos críticos mais atualizados, como Novelle (1998) de Winfried Freund, Kurze Geschichte der Novelle (1994) de Thomas Degering, Novelle (1999) de Hugo Aust, Die Novelle (2000) de Wolfgang Rath, Theorie

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der Novelle (1992) de Herbert Krämer (org.) e Poetik der Novelle (1993) de Hannelore Schlaffer. Resultados Atualmente, tem sido feitas leituras e interpretações dos textos que comporão a análise descrita acima, bem como da bibliografia sobre novela. No primeiro semestre, houve a freqüência a duas disciplinas e este semestre pretendese concluir os créditos exigidos pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária que exige a Unicamp, ou seja, a freqüência a três disciplinas. A disciplina “Narração de Si e Constituição do Sujeito” da Profª Drª Jeanne-Marie Gagnebin possibilitou a ampliação do olhar sobre os estudos literários e filosóficos, mas não contribuiu especificamente para o trabalho. A disciplina “Seminários de Orientação em Análise Literária Comparada I” do Prof. Dr. Mário Luiz Frungillo foi fundamental para expandir a visão sobre o trabalho na medida em que se discutiu o projeto. Este semestre, a freqüência à disciplina “Mito e Maravilhoso” da Profª Drª Karin Volobuef certamente proporcionará subsídios preciosos à pesquisa, pois abordará narrativas românticas que farão parte da análise, além de tratar do Märchen, contrapartida ao estudo da novela. A disciplina “Grande Autor em Língua Estrangeira II” do Prof. Dr. Marcos Siscar que tratará sobre o poeta Stéphane Mallarmé, dará um alcance maior aos estudos de literatura, sobretudo sobre poesia. Por fim, a disciplina “Seminários de Orientação em Análise Literária Comparada II” do Prof. Dr. Mário Luiz Frungillo fornecerá as orientações essenciais para a organização e redação da pesquisa. Bibliografia AUST, Hugo. Novelle. 2°. Auflage. Stuttgart: Metzler, 1995 BAUMANN, Barbara und OBERLE, Birgitta. Deutsche Literatur in Epochen. München: Max Hueber Verlag, 1990.

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BEUTIN, Wolfgang und anderen. Deutsche Literaturgeschichte: von den Anfängen bis zur Gegenwart. Stuttgart: Metzler, 1992. BÖSCH, Bruno (org.). História da Literatura Alemã. SP: Herder, 1967. DEGERING, Thomas. Kurze Geschichte der Novelle. München: Fink, 1994. ECKERMANN, Johann Peter, Conversações com Goethe. Tradução de Marina Leivas B. Pinto. Belo Horizonte : Itatiaia, 2004. EICHENDORFF, Joseph von. Aus dem Leben eines Taugenichts. In: Sämtliche Erzählungen. Herausgegeben von Hartwig Schultz. Stuttgart: Reclam: 1998. Pp. 85-183. FREUND, Winfried. Novelle. Stuttgart: Reclam, 1998. FUCHS, A. e MOTEKAT, H. Stoffe, Formen, Strukturen. Studien zur Deutschen Literatur. München: Max Hueber Verlag, 1962. GUTZEN, D., OELLERS, N. e PETERSEN, J. Einführung in die neuere deutsche Literaturwissenschaft. Berlin: Erich Schmidt Verlag, 1979. HOFFMANN, E. T. A. Os autômatos.In: Contos fantásticos. Trad. Cláudia Cavalcanti. Rio de Janeiro: Imago, 1993. Pp. 85-112. ______. O vaso de ouro. Trad. Maria Osswald. Lisboa: Vega, s/d. HEYSE, Paul. L´arrabiata. In: Três novelas. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1971. Pp. 53-78 HOFFMANN, Friedrich G. Grundlagen, Stile, Gestalten der Deutschen Literatur. (sem ficha catalográfica). KELLER, Gottfried. O traje faz o homem. In: Três novelas alemãs. Trad. Germano Thomsen. Rio de Janeiro: Boa Leitura, 1965. Pp. 11-69. ______. Romeu e Julieta na aldeia. In: Três novelas alemãs. Trad. Germano Thomsen. Rio de Janeiro: Boa Leitura, 1965. Pp. 73-159. KLEIST, Heinrich von. Terremoto no Chile. In: Novelas. Trad. Paulo Edmur de Souza Queirós. Rio de Janeiro: Três, 1974. Pp. 173-186. (Biblioteca Universal, 18). KLUGE, M e RADLER, R. Hauptwerke der deutschen Literatur. Einzeldarstellungen und Interpretationen. München, Kindler Verlag, 1974. KRÄMER, Herbert (org.). Theorie der Novelle. Stuttgart: Reclam, 1992.

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KUNZ, Josef. Die deutsche Novelle im 19. Jahrhundert. Berlin: Erich Schmidt Verlag, 1970. LAAGE, Karl Ernst. Theodor Storm. Leben und Werk. Husum: Husum, 2007. MAAS, W. P. D. O cânone mínimo – O Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, s/d. RATH, Wolfgang. Die Novelle. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 2000. (UTB für Wissenschaft: Uni-Taschenbücher; 2122). REIS, Carlos e LOPES, Ana C. M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. ROSENFELD, Anatol. História da literatura e do teatro alemães. São Paulo: Perspectiva, 1993. ______. E. T. A. Hoffmann. In: Letras Germânicas. São Paulo, Perspectiva, 1993. Pp. 2941. SCHLAFFER, Hannelore. Poetik der Novelle. Stuttgart; Weimar: Metzler, 1993. STORM, Theodor. Pole Poppenspäler. Stuttgart: Reclam, 1998. ______. Sämtliche Werke. Berlin: Aufbau-Verlag, 1956. TIECK, Ludwig. Der blonde Eckbert und andere Erzählungen. Stuttgart: Reclam, 1954. WIESE, Benno von. Die deutsche Novelle von Goethe bis Kafka. Düsseldorf: August Bagel Verlag, 1957. ZIMMERMANN, Werner. Deutsche Prosadichtung unseres Jahrhunderts. Düsseldorf: Pädagogischer Verlag Schwann, 1971.

A RELIGIÃO, A MAGIA E O CANTO DE ORFEU NA ARGONÁUTICA DE APOLÔNIO DE RODES Fábio Gerônimo Mota Diniz (CNPq) Maria Celeste Consolin Dezotti Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr

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A. Objetivos Esse trabalho pretende levantar os aspectos significativos do personagem Orfeu dentro da obra Argonáutica, de Apolônio de Rodes, verificando três aspectos principais de sua composição: (i) a análise da função de Orfeu como líder religioso da expedição, da realização dos rituais os quais comanda e sua consequente relação com os deuses dentro do poema, bem como de sua relação com os demais heróis que compõem a expedição; (ii) a investigação do papel de Orfeu como figura mágica dentro do poema, da fundamental oposição entre os dons do herói e as práticas mágicas empreendidas por Medeia e da análise do conceito de thélxis em relação à sua música e poesia; por fim, (iii) a análise do seu papel como aedo e alter ego do próprio narrador e dos aspectos do personagem como protótipo de aedo dentro do poema, tendo em vista como essa característica pode ser utilizada por Apolônio com função metanarrativa. Analisar-se-ão também todas as passagens que envolvam religião, magia e canto, levando em conta os contextos que circundam cada uma das situações, de maneira a compreender como esses elementos se relacionam na Argonáutica. B. Metodologia Realizar-se-á a análise e tradução, acompanhadas das devidas notas e comentários, de cada uma das passagens onde o personagem Orfeu aparece na Argonáutica, permitindo uma investigação profunda da participação dele na organização do poema épico em questão. Com o levantamento e a análise de todas essas passagens, mais a investigação das ocorrências de certas estruturas chave e a análise do vocabulário relacionado ao personagem Orfeu objetiva-se delinear um caminho para se caracterizar esse herói e suas aparições dentro da obra, tendo sempre por base os contextos que envolvam religião, magia e a música e poesia de Orfeu. C. Corpus Levando em conta os contextos que circundam cada uma das situações, delimitamos um conjunto de episódios cuja análise e traduções permitirão abarcar todos os aspectos salutares de Orfeu sem prejudicar a continuidade da narrativa. Assim, primeiramente,

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optamos pela tradução completa do catálogo dos argonautas (I, vv.1-233), devido às implicações deste para a compreensão da estrutura da narrativa e do papel de cada um dos heróis participantes da jornada. Então, analisaremos todas as passagens onde Orfeu atua, que irão compor uma antologia da participação de Orfeu dentro da Argonáutica, o que permitirá ter uma noção o mais completa possível de como o personagem é abordado por Apolônio de Rodes. Além dessas passagens, todos os momentos da obra que envolvam os temas destacados nos três itens principais da análise (religião(i), magia(ii) e canto(iii)) serão devidamente abordados com base no texto grego e com a tradução e análise de cada um deles. Todas as traduções da Argonáutica serão feitas diretamente do texto grego estabelecido a partir da edição comentada de Mooney, 1912 (cf. bibliografia). D. Andamento da pesquisa Planejamos inicialmente uma estrutura da tese dividida em quatro partes, que se manteve na versão da qualificação, a ser realizada em breve. A título de não se estender muito nesse breve texto, optamos por apresentar, num primerio momento, um esboço curto do percurso a ser realizado, baseado no sumário geral do texto de qualificação. Esse percurso compreende uma introdução teórica e metodológica sobre o personagem, o contexto de produção do poema e os temas a serem abordados (PARTE I); a análise e tradução dos eventos importantes dos cantos I e II, acompanhadas da análise de cada trecho destacado (PARTE II); a análise da ausência de Orfeu no canto III e da aparição de Medeia como contraponto a ele, bem como outras questões relativas ao tema da magia (PARTE III); e, por fim, a análise da participação de Orfeu no canto IV e as devidas conclusões e considerações sobre as análises (PARTE IV). A divisão está esquematizada a seguir: PARTE I - ORFEU: SACERDOTE, MAGO E POETA Capítulo 1. A Argonáutica e a tradição órfica; 1.1. O poema de Apolônio; 1.2. Aspectos relevantes do personagem Orfeu e a metodologia da análise; 1.3. O mito e suas fontes; 1.4. Orfeu na Argonáutica: fortuna crítica; 1.5. Orfeu e o poder da thélxis; Capítulo 2 Magia e Religião; 2.1. Uma proposta de leitura antropológica; 2.2. A problemática da relação entre magia e religião; 2.3. O orfismo e o novo homem helenístico; 2.4. A teoria geral da magia de Marcel Mauss; 2.5. Claude Lévi-Strauss: linguagem simbólica e intertextualidade; 2.6. 164

Um prelúdio sobre a magia na Argonáutica: a oposição thélxis e téchnē; Capítulo 3 As narrativas e os narradores: o Aedo Apolônio e o Aedo Orfeu; 3.1. Quem é o narrador da epopeia?; 3.2. A narrativa de Apolônio. PARTE II – A PRESENÇA DE ORFEU NA ARGONÁUTICA: CANTOS I E II. Introdução: Sobre o texto e a tradução; Capítulo 1. Canto I; Síntese do Canto I; 1.1 O catálogo dos Argonautas (I, vv.1-233); 1.1.1. O(s) Intróito(s); 1.1.2. Proêmio ou Hino: A performance do aedo na Argonáutica de Apolônio de Rodes.; 1.1.3. Os elementos hímnicos do proêmio da Argonáutica; 1.1.4. Cumplicidade e interpretação; 1.2. A Cosmogonia de Orfeu (I, vv.450-518); 1.2.1. Poesia e Ordem; 1.2.2. Poesia e Encantamento; 1.2.3. Ordem e Encantamento; 1.2.4. Amor e Luta; 1.3. A partida dos argonautas (Ar. I, vv.536-579); 1.3.1. Os observadores da partida; 1.3.2. Uma tensão sexual?; 1.3.3. Sol e Lua; Esse é o breve sumário do que já foi desenvolvido até o momento e que será apresentado no exame de qualificação. A partir daí, continuar-se-a a parte II da tese com os trechos seguintes a serem analisados: Os ensinamentos sobre os ritos secretos e a iniciação dos argonautas na ilha de Electra (I, 910-921); A dança comandada por Orfeu, como parte do ritual sugerido por Mopso para cessar as tempestades no mar (I, 1078-1152) A celebração da vitória de Polideuces sobre o rei Amico (II, 155-163); A consagração da ilha de Tínia a Apolo, e o canto realizado por Orfeu em honra ao deus, que traz descrições de suas várias proezas (II, 669-719); A visão da tumba e do fantasma de Estênelo, as consequentes libações em honra de Apolo e a consagração da ilha de Lira (II, 900-929). PARTE III – CANTO III: A AUSÊNCIA. PARTE IV – CANTO IV E CONCLUSÃO. A música de Orfeu que impede os argonautas sejam dominados pelo canto sedutor das sereias (IV, 885-921); Os festejos pelo casamento de Jasão e Medeia (IV, 1128-1200); A intercessão de Orfeu junto às ninfas do jardim das Hespérides para que elas aplacassem a sede dos argonautas (IV, 1393-1456); O oferecimento do trípode de Apolo às divindades do lago de Tritão e a aparição deste (IV, 1537-1622); Considerações finais; Bibliografia.

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O primeiro ano da pesquisa foi todo dedicado às leituras da bibliografia e ao cumprimento de créditos de disciplinas. As discussões e leituras realizadas nas disciplinas Poética da expressão: crítica da poesia e poetas críticos, ministrada pelo Prof. Dr. João Batista Toledo Prado, e Palavra e imagem: relações entre poesia, pintura e cinema, ministrada pelo Prof. Dr. Márcio Thamos permitiram estabelecer diretrizes primárias e um modelo de análise para as passagens selecionadas do poema de Apolônio. Dessas disciplinas surgiram as primeiras análises da obra. No segundo semestre do mesmo ano, a disciplina A tradução portuguesa do legado greco-romano, ministrada pelo Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira, trouxe importantes reflexões para o processo tradutório de obras clássicas, que servirão como diretrizes para as abordagens tradutórias das passagens selecionadas da Argonáutica. No ano de 2011, a disciplina Mito e poesia, também ministrada pelo Prof. Dr. João Batista Toledo Prado, trouxe mais reflexões importantes para avaliar as questões que englobam a matéria poética em relação ao mito relatado, bem como do papel da aparição desse poeta/aedo dentro da obra poética. As reflexões levaram à inclusão de uma leitura diferenciada do mito presente no texto literário, que investiu sobre o tema da magia e religião do ponto de vista de antropólogos, especialmente Marcel Mauss, Claude LéviStrauss e Gilbert Durand. A leitura de Durand associada às discussões realizadas nas aulas permitiram a elaboração de uma monografia que versou sobre a partida dos argonautas, analisando as participações de Apolo e Ártemis no referido trecho (I, vv.536-579). No segundo semestre de 2012, a disciplina Aspectos da Narrativa, ministrada pela Profª.Drª. Maria Célia de Moraes Leonel propiciou uma visão mais ampla das questões narrativas envolvendo a produção literária ocidental, desde as primeiras teorias sobre literatura de Aristóteles até visões mais modernas. As leituras realizadas abrangeram diversos autores de correntes teóricas distintas, o que permitiu uma visão ampla da história da teoria da Narrativa. Na monografia realizada como avaliação para a disciplina, intitulada “O aedo não é um narrador? A construção da performance na Argonáutica de Apolônio de Rodes.”, importantes pontos da discussão realizada na disciplina foram perscrutados tendo em vista debater a natureza do narrador em Apolônio de Rodes. Para tanto, traduziram-se e analisaram-se os primeiros 22 versos da Argonáutica.

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As leituras iniciadas a partir das disciplinas se associaram ao levantamento bibliográfico decorrente das análises já empreendidas ou iniciadas, o que convergiu em uma expansão considerável da bibliografia apresentada ao início do doutorado. Das diversas possibilidades de abordagem dos temas da magia, religião e da matéria poética do canto de Orfeu na Argonáutica, decidiu-se abranger um grande número de abordagens, mas privilegiando sempre o que o próprio texto de Apolônio oferece, em comparação com suas fontes e modelos poéticos e pela investigação da estrutura de sua obra. Essa abordagem pretende-se, de tal forma e na medida do possível, primeiramente imanentista, mas é esperado que se encaminhe a partir dessa investigação textual um aprofundamento teórico decorrente das diversas leituras selecionadas. Três foram os objetivos do texto preparado para o exame de qualificação: indicar de maneira o mais clara e minuciosa possível os caminhos pretendidos para a análise de Orfeu e de sua constituição no contexto do poema Argonáutica; apresentar um ou mais modelos metodológicos concretos de análise para o personagem, levando em conta suas participações na obra e a trajetória do personagem na cultura grega; e, por fim, permitir uma primeira apresentação do procedimento de análise dos trechos, e de como esse modelo se aplicará às análises subsequentes. Pelo que foi levantado até então, pretende-se dar prosseguimento à análise da presença de Orfeu na Argonáutica de Apolônio de Rodes tendo em mente todas as implicações já apresentadas na Parte I e tudo que os primeiros trechos traduzidos e investigados do Canto I já permitiram compreender sobre essa presença. Espera-se que, por intermédio de tais procedimentos, fique evidente a procura por um formato o mais próximo possível da versão final da tese, com sua estruturação bem delimitada e, na medida do possível, clara para o leitor. Bibliografia 1. Edições da Argonáutica: APOLLONIOS DE RHODES. Argonautiques. Texte établi et commenté par Francis Vian et traduit par Émile Delage. Paris: Les Belles Lettres, 1976. APOLLONIO RHODIO. Os Argonautas. Tradução: José Maria da Costa e Silva. Lisboa: Imprensa Nacional. 1852.

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O ABSURDO NA FICÇÃO DE MURILO RUBIÃO Fabiola Maceres Silva (CAPES) Maria Célia de Moraes Leonel Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr 173

A singular e expressiva obra do contista Murilo Rubião (1916-1991), após a recente celebração de 20 anos da morte do autor, proporcionando uma viva multiplicidade de reflexões acerca dos temas e formas patentes nos contos, vem sendo estudada e difundida pela crítica como uma profícua e definitiva literatura. Rubião, aclamado como escritor prógono do realismo mágico no Brasil, e que de fato, compôs uma literatura cuja gênese se constitui pela elaboração do insólito em suas narrativas sem precedentes nacionais (excluindo-se aqui obras de autores como Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Afonso Arinos e Monteiro Lobato que apresentavam raros elementos fantasiosos mais próximos, no entanto, do gênero fantástico), surpreende por executar uma obra, embora concisa e fracionada em contos, com uma inegável qualidade e sentido de unidade em sua técnica de composição (LINS,1987). Isto ocorre porque as coordenadas narrativas do autor não se assemelham exclusivamente à esfera da estrutura, mediante as constantes em cada conto (naturalização do elemento insólito, concisão, epígrafes bíblicas, linguagem simples e direta), mas sintetizam uma “cosmovisão absurda” que subverte as expectativas lógicas, articulando forma e conteúdo nos textos. A peculiaridade dos contos murilianos reside no fato de que sua ficção explora a reversão das leis naturais, tornando evidente, através do sobrenatural, complexos temas referentes ao homem na modernidade. Em carta ao escritor, Carlos Drummond de Andrade faz seu juízo crítico, alertando para o drama que o “insólito"1 desvendava: O Ex-mágico é uma delícia. Ele nos transporta para além de nossos limites, sem entretanto jamais perder pé no real e no cotidiano. (...) E por mais absurdas que sejam as novas relações estabelecidas por V. entre as coisas e o homem, a verdade é que elas não são mais absurdas do que as condições de vida normal, controlada pela razão: eis a lição amarga que se tira de sua sátira, tão poética e tão rica de invenção (Drummond apud

SCHWARTZ, 1982) Jorge Schwartz, por exemplo, que faz uma leitura das epígrafes bíblicas contidas em todos os seus contos, pontua que na obra, subtraídos do “fantástico como texto metafórico global” (SCHWARTZ, 1981, p. 82) sobressaem três subtextos amalgamados: o cristão, o social e o existencial, homólogos ao contexto em que vive o homem moderno representado. 1

Obs: Estes termos possuem uma acepção teórica específica, que deverá ser explorada no desenvolvimento da pesquisa, de acordo com a bibliografia necessária.

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Davi Arrigucci Jr., a respeito da criação fantástica de Rubião, observa na inserção do sobrenatural inegável representação da realidade humana, como no trecho a seguir: Desde sua estréia literária, Murilo Rubião pode ser visto como o criador de um mundo à parte. Sua marca de fábrica sempre foi o insólito. Para maior desconcerto nosso, um insólito que se incorpora, sem surpresa, à banalidade da rotina. O mundo à parte é também o nosso mundo”. (...) quando a técnica não malogra, o leitor, levado pela cumplicidade, acentua sua participação mergulhando no mundo ficcional. Como este é ainda o seu mundo, pois dissolve o insólito na rotina, pode, então, ver melhor, a distância, numa perspectiva crítica, sua própria banalidade. (...) O fantástico dá lugar ao afloramento de um real mais fundo

(ARRIGUCCI, 1987, p. 141, grifo nosso) Assim, reconhece-se na obra do contista uma gama variada de narrativas, com situações ilógicas (e até lúdicas), porém irremediavelmente trágicas, impostas a narradores e personagens, desenvolve a problemática característica de escritores da geração do pósguerra: a condição absurda de estar no mundo. Dentre as temáticas da metamorfose, da vida além da morte, o aparecimento de criaturas mágicas, as situações inexplicáveis em que suas personagens estão inseridas, entre outras, os elementos sobrenaturais enfatizam de maneira sensível a profundidade crítica com a qual o autor trata a condição humana, a dessacralização do homem, e em um contexto mais específico, a modernização conservadora e os seus desdobramentos sociais. Os valores transcendentes da religião e a razão cientificista/tecnológica são opostos constantemente na sociedade de consumo estabelecida neste processo. Está aí instituída a crise da civilização cristã-burguesa, tal qual apontam alguns autores. Como resultado, temos o sujeito moderno – o mesmo que habita o universo muriliano – oscilando entre a tradição e a ruptura, com tendência para a dessacralização do mundo. Nas palavras de Nelly Novaes Coelho (1987, p.2): Inequívocos símbolos do homem contemporâneo – despojados de sua origem divina – as personagens murilianas pertencem à terrível família de seres já conformados com a tragédia sem sentido, em que se resume a vida, quando amputado de transcendência. Seres que não se assustam, nem se espantam com nada, eles perambulam, atônitos, em um mundo totalmente fechado a qualquer possibilidade de realização humana: o mundo dessacralizado que surge dos escombros da civilização-da-culpa-edo-resgate.

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Destituídas de origem divina, as personagens não acreditam em Deus e nem na possibilidade de transcendência – muito embora, a persistência de epígrafes bíblicas possa remeter a um retorno ao sagrado, não nos restam dúvidas de que estão ali insinuando verdadeira ironia. Sucede-se então, a busca permanente da verdade ou da realização, sempre proibidas no universo dos contos de Murilo Rubião. Impossibilitadas de chegar ao verdadeiro conhecimento, ao absoluto, deparam-se com o absurdo, como se cada personagem se descobrisse em uma condição ilógica e completamente banal. Deste modo, a vida adquire conotação trágica justamente na tomada de consciência de sua condição. Apesar da perplexidade, ou “espanto congelado” (ARRIGUCCI, 1987, p. 141) “diante do inevitável”, não há outra possibilidade senão conformar-se. Como conseqüência, as ações tendem à inutilidade ou esterilidade, o que, decisivamente, motivará a sensação de ser estrangeiro com relação ao mundo. Este é o cerne das questões do homem moderno, quando contrapõe os valores materialistas e as dúvidas metafísicas. Como se percebe, analisar o realismo mágico em Rubião implica examinar temas referentes à própria condição humana, que vão envolver necessariamente uma relação forma/conteúdo, bem como isso se resolve na narrativa em termos de representação. Nesse sentido o objetivo do trabalho é refletir sobre a estruturação dos elementos insólitos como mecanismo de representação simbólica do homem moderno em seis contos do autor, a saber, O ex-mágico da Taberna Minhota; O pirotécnico Zacarias; Teleco, o coelhinho; Os dragões; O edifício e A cidade. No estágio atual em que esta pesquisa se encontra, estamos realizando e escrita da dissertação. Para embasar o procedimento formal dos contos também estão sendo utilizadas teorias críticas acerca do fantástico e do realismo mágico. Diferentemente das narrativas fantásticas do séculos XVIII e XIX (E.T.A. Hoffmann, Edgar Allan Poe, Theóplihe Gautire, Guy de Maupassant, entre outros) o insólito na obra do ficcionista irá divergir das premissas formais do gênero fantástico, que estabelece uma tensão entre o real e o sobrenatural. Tal processo não ocorre nas narrativas murilianas já que nelas há “compatibilidade entre o natural e o sobrenatural” característico do realismo mágico como aponta Camarani (2008). No entanto, o estudo do fantástico realizado por Jean Paul Sartre (2005), em seu ensaio Aminadab, ou o fantástico como linguagem, será importante na medida que o filósofo francês fundamenta a mudança estética do sobrenatural promovida

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por autores como Kafka e Blanchot – e aqui incluímos o Murilo Rubião – como uma forma de desempenhar o retorno ao humano na época do pós-guerra, exercendo, a “transcrição da condição humana” dentro deste “derradeiro estágio da literatura fantástica” (SARTRE, 2005, p.138): Para encontrar lugar no humanismo contemporâneo, o fantástico vai se domesticar, tal como os outros gêneros, renunciar à exploração das realidades transcendentes, resignar-se a transcrever a condição humana.

Sartre afirma que, para efetivar esse retorno ao humano, a construção formal do gênero subverte a noção lógica de finalidade, instituindo a “revolta dos meios contra os fins” (SARTRE, 2005, p.136) . Assim, na narrativa, as personagens estão em contato constante com objetos ou lugares, meios e instrumentos que, por circunstância do insólito, perdem seus propósitos. Nela, a ausência, o mascaramento ou fugacidade dos fins é total. Citamos o exemplo do conto O edifício cuja ação se desenvolve em torno de um empreendimento absurdo, que é a construção de um edifício infinito, sem finalidade alguma. O fazer, projetado ao eterno, e por isso sem sentido, acentua a compreensão de que a vida dedicada quase completamente à (ir)realização do edifício, se reduz a uma existência banal, e por isso, absurda. É justamente aí que o mundo humano se vê representado, já que a condição absurda do homem é ser contingente, desconhecendo o sentido pleno de suas ações. As mágicas incompreensíveis de conto O ex-mágico da taberna minhota, as metamorfoses incessantes de Teleco, o coelhinho, a construção infinita de O Edifício, a interminável (A) fila, a fatal (A) armadilha, entre outros, sobressaem nos textos onde personagens cativas padecem sua condição. O leitor estranha a naturalidade com que narrador e personagens lidam com seu universo, e ainda mais com a falta de controle e ação efetiva sobre as provocativas situações que vão surgindo. Contudo, é um estranhamento ambíguo: o sobrenatural é embaraçoso, a ponto de descobrimos residir nele mesmo a representação do absurdo de nossa condição. Assim, uma vez inserido na atmosfera opressiva do fantástico, concebe-se a banalidade de sua própria realidade. Destacamos, por exemplo, a constrição do trabalho estéril, tal como o ex-mágico, funcionário público impossibilitado de criar um mundo mágico; ou ainda, a compreensão de que os valores

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sufocantes da sociedade são incapazes de promover a adaptação de seres puros, tal como em Os dragões. A respeito da tipologia do Realismo Mágico, possui destaque neste trabalho duas das categorias propostas por W. Spindler (1993): o realismo mágico metafísico e o ontológico. No primeiro, a narrativa descreve uma cena cuja atmosfera opressiva, ainda que cause certo espanto ou estranhamento, não apresenta a irrupção do sobrenatural. Tal fenômeno ocorre, por exemplo, em A cidade, conto que narra a chegada de Cariba a uma cidade onde é proibido questionar. Já o termo realismo mágico ontológico define, por outro lado, o sobrenatural descrito por sua presença objetiva na narrativa sem provocar estranhamento, como algo naturalizado. É o caso do conto O ex-mágico da taberna minhota no qual o protagonista nasce velho e sem passado, evento que é narrado como se não houvesse estranhamento. Será a partir desta perspectiva que daremos sequência a análise dos contos durante a pesquisa. Bibliografia ADORNO, Theodor. “Anotações sobre Kafka”. In:______ Prismas: Crítica Cultural e Sociedade. Augustin Wernet (Trad.). São Paulo: Ática, 1998. ARRIGUCCI Jr. Davi. Enigma e Comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. CAMARANI, Ana Luiza. “Murilo Rubião e o realismo mágico”. Retirado de: em abril de 2011. CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Ari Roitman e Paulina Watch (Trad). Rio de Janeiro: Record, 2008. CARPENTIER, Alejo. El reino de este mundo. 11ª ed. Barcelona: Biblioteca de Bolsillo, 1997. CESARINI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006. CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 5° ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997. FURTADO, Felipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte Universitário, 1980.

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O ROMANCISTA DO MAR: UM ESTUDO DA REPRESENTAÇÃO DO MAR NOS ROMANCES DE MOACIR C. LOPES Fernando Góes (CAPES) Luiz Gonzaga Marchezan

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Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A presente pesquisa de doutorado acerca das obras do autor Moacir Costa Lopes dá prosseguindo ao estudo iniciado no mestrado, quando se analisou o romance A ostra e o vento1. Na ocasião buscou-se analisar essa narrativa focando, sobretudo, as metáforas marítimas que conduzem o enredo. Lopes é conhecido pela alcunha de romancista do mar e já no mestrado, embora se tenha analisado profundamente apenas uma obra, buscou-se verificar como essa temática se apresenta na prosa desse autor. Para tanto, desenvolveu-se certa teoria acerca das metáforas ditas marítimas. Elas teriam origem nos primevos contatos do ser humano com o elemento água. Assim, as metáforas do mar guardam relações com as imagens primordiais da água. Tais metáforas marítimas florescem com toda intensidade em uma determinada espacialidade que não compreende apenas o mar. Desse modo, analisando no mestrado a conotação espacial do mar, chegou-se ao conceito de ambiente marítimo. Este ficaria ao lado de outras espacialidades já cristalizadas na análise de narrativas como, por exemplo, o espaço urbano e o regional. Não se enquadrando A ostra e o vento em nenhuma dessas espacialidades, pois seu enredo se desenrola em uma ilha desconhecida e não localizada, predominaria nessa obra então o ambiente marítimo que compreende o mar e tudo aquilo que permite a interação entre o homem e essa vasta massa líquida como o porto, as cidades portuárias, ilhas, navios, e outros2. O ambiente marítimo é, portanto, bem amplo e compartilha suas lendas, mistérios e perigos com todos os países do globo. O homem do mar pertence, em essência, a todos os lugares. No caso de A ostra e o vento o elemento desse ambiente do mar que mais se destaca é a ilha o que traz para esse romance de Lopes uma carga de fantástico, mistério e introspecção que quase sempre acompanham os romances insulares, mesmo aqueles cujo único fim, em princípio, é a distração. De fato, a análise de A ostra permitiu bem visualizar essas características e partindo delas chegar à metáfora da tempestade marítima que, protagonizando a luta entre dois elementos naturais, água e vento, parece espelhar a luta

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Dissertação realizada no IEL – Unicamp e defendida em 2011. Os homens do mar, aqueles que vivem sempre em contato com o oceano como, por exemplo, o pescador, o marinheiro e o faroleiro e suas histórias fantásticas são também parte desse ambiente marítimo. 2

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entre a personagem Marcela e o misterioso narrador Saulo que caminhava por entre os ventos da ilha. Nessa primeira parte do doutorado que ora se desenvolve buscando estudar outras obras de Lopes, o que se fez foi analisar o conto chamado Navio morto escrito em 1965 e que dará origem ao romance Belona, latitude noite (1968). O conto traz a história de Rômulo, Teresa, Dalva e outros personagens que embarcaram em um navio suspeito e fugiram para o alto mar tentando escapar de uma epidemia que então assolava a região em que viviam. Todavia, a fuga não dá certo, pois a peste embarca junto com os fugitivos e leva a morte para o navio. Os fugitivos vão morrendo e sendo jogados ao mar. Rômulo, marinheiro que roubou o navio de seu capitão, é quem passa a comandar toda a tragédia. De seus pensamentos e questionamentos tem origem a história que termina em uma espécie de mergulho no maravilhoso, quando os personagens se dão conta que estão em um navio fantasma, navegando para o desconhecido. Navio morto é uma narrativa de ambiente marítimo que explora como espaço o navio, a embarcação. Dos muitos espaços contidos nesse ambiente do mar, o navio é talvez o mais explorado e um dos mais complexos para ser pensado como espacialidade, uma vez que se trata de um espaço móvel, dominado pelo mar e que por isso recebe muito mais influência dessa massa líquida. O navio configura, portanto, a espacialidade mais latente desse conto, um espaço que constantemente recebe influências de outros elementos do ambiente marítimo, sobretudo do mar e de suas lendas e mistérios. Do navio, especificamente, o porão é o lugar mais sombrio e que mais destaque merece em Navio Morto, pois é o lugar para onde são levados os agonizantes que lá encontrarão a morte. Vale ressaltar que quando se aborda o navio de modo isolado, ou seja, sem liga-lo ao mar e ao mundo marítimo que o envolve, o que se tem é uma espécie casa. O barco é uma habitação, ao mesmo tempo em que é também um meio de transporte. O homem por meio do navio torna o mar habitável, transforma a água em um espaço pleno. Desse modo, fisicamente o navio também pode ser estudado, em termos espaciais, como uma casa, mas seria uma casa isolada em um deserto o que favorece a introspecção. Nesse momento do estudo a obra Poética do espaço de Bachelard está sendo lida e já se pode afirmar que oferece várias ideias acerca de como analisar o aspecto de moradia que

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todo navio possui. Outra obra de Bachelard que foi lida durante o mestrado e relida há alguns meses é A água e os sonhos. Essa obra permite compreender melhor o aspecto simbólico que acompanha os vários tipos de embarcação. No mestrado chegou-se a tocar nesse assunto, mas de modo superficial. Pretende-se agora aprofundar o estudo do navio como metáfora e melhor entender como essa figura se manifesta nos romances de Lopes, bem como objetiva-se também estudar o aspecto simbólico do navio, que em muitas culturas sempre manteve certa relação com a morte. Vale ressaltar que foi feita uma análise das categorias da narrativa nesse conto de Lopes e se verificou o mesmo tipo de narrador e linguagem presentes em A ostra e o vento. A presentificação do relato, como se o texto fosse de um roteiro de cinema, está presente, o narrador observador, que a todo o momento alterna o foco também é bem sentido, assim como a presença do fantástico, do discurso indireto livre entre outras características. Na próxima etapa do trabalho analisar-se-á o primeiro romance de Moacir chamado Maria de cada porto. Espera-se com o estudo da primeira obra de Lopes confirmar ou não a mudança ocorrida em sua prosa após A ostra e o vento. Os poucos que estudaram esse autor dividem sua produção romanesca em duas fases: antes e após A ostra e o vento. Questionar essa afirmação procurando refutá-la ou melhor compreendê-la é um dos próximos passos. Bibliografia BACHELARD, G. A água e os sonhos: Ensaios sobre a imaginação da matéria. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. GOES, Fernando. A metáfora da tempestade marítima em A ostra e o vento. Dissertação (Mestre). Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011. LOPES, Moacir C. A ostra e o vento. 7. ed. Rio de Janeiro: Quartet, 2000 ______. Belona, latitude noite. 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1975. ______. Maria de cada porto. 6. ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977.

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______. O navio morto e outras tentações do mar. Rio de Janeiro: Revan, 1995.

ILUSÃO E TÉCNICA NARRATIVA EM O ATENEU, DE RAUL POMPÉIA Franco Baptista Sandanello (FAPESP) Wilton José Marques Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr E contudo, Senhor, percebemos os intervalos dos tempos, comparamo-los entre si e dizemos que uns são mais longos e outros mais breves. Medimos também quando este tempo é comprido ou mais curto do que outro, e respondemos que um é duplo ou triplo, ou que a relação entre eles é simples, ou que este é tão grande como aquele. (Santo Agostinho, 1975, p. 306)

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Questionamento inicial O questionamento inicial desta pesquisa de doutorado, realizada sob a orientação do

Prof. Dr. Wilton José Marques na linha de pesquisa “História Literária e Crítica” da Unesp / FCLAr, remonta a um problema específico da fortuna crítica do romance O Ateneu, de Raul Pompéia. Grosso modo, ao levantarmos a recepção relativamente extensa deste romance (processo continuado de uma pesquisa anterior de Iniciação Científica realizada durante a graduação na UFSCar), percebemos que a técnica narrativa da obra foi estudada como elemento acessório ou complementar a outras questões, tais como a biografia conturbada do escritor ou o fim do escravismo e da monarquia brasileira. Por isso, e num primeiro momento, dividimos a recepção crítica do romance em três grandes “tendências interpretativas”: uma primeira de viés biográfico, pautada na comparação direta entre a estadia de Sérgio no internato e aquela de Pompéia no Colégio Abílio e Dom Pedro II (em que se distinguem textos como os de Araripe Jr., José Veríssimo, Mário de Andrade, Olívio Montenegro e Temístocles Linhares); uma segunda de viés social, marcada pela compreensão do internato enquanto “microcosmo” do Brasil da época, de maneira mais ou menos radical (como, respectivamente, os textos de Flávio Loureiro Chaves e Alfredo

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Bosi); e uma terceira de viés “revisionista” ou pluralista, de estudo das questões narrativas da obra a partir de / simultaneamente a questões diversas, como, por exemplo, as experiências homossexuais dos internos e os aparelhos de opressão do internato (onde despontam os textos de Silviano Santiago, José Lopez Heredia e Sônia Brayner, bem como o livro de Leyla Perrone-Moisés O Ateneu: retórica e paixão como um todo). Assim, identificado o problema – a saber, o “desvio de grau” que sofre o estudo especificamente narrativo d’O Ateneu frente a outras questões, aparentemente preponderantes –, levantamos a seguir uma hipótese de natureza teórica: sabendo-se da proximidade que pode haver entre a vida e a obra de Pompéia, seja por sua infância problemática, seja por sua militância política, seria este um problema de recepção particular a seu texto, de caráter memorialístico e autobiográfico, como o indicado no subtítulo “Crônica de Saudades”, ou seria este um “desvio” previsto por todo texto deste tipo? Ou seja, a confusão entre Sérgio e Pompéia, ou mesmo entre o Ateneu e o Brasil, teria por base uma confusão maior entre a autobiografia ficcional / narrativa de memórias e a autobiografia, onde obviamente se mesclariam vida e obra do autor? Chegamos, pois, à conclusão parcial de que estudar a “técnica narrativa” d’O ateneu exige um esclarecimento inicial das “ilusões” ou “desvios” características do subgênero romanesco em que ele se insere, razão pela qual tomamos por título de nossa pesquisa Ilusão e técnica narrativa em O Ateneu, de Raul Pompéia. 

Objetivos Partindo de uma questão de recepção crítica para outra teórica, deparamo-nos então

com os seguintes objetivos gerais: 1. Discutir e sistematizar o lugar da memória na narrativa de primeira pessoa a fim de esclarecer o “desvio de grau” das questões narrativas na recepção crítica d’O Ateneu; 2. Analisar e discutir o papel específico do narrador no romance de Pompéia; 3. E finalmente, contribuir para um estudo especificamente narrativo d’O Ateneu. 

Metodologia

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No intuito de realizar uma análise narrativa do texto em questão, e tendo em vista a revisão teórica do lugar da memória na narrativa de primeira pessoa como um todo, tomamos como ponto de partida o sistema de análise narrativa proposto por Gérard Genette em Figures III (em particular, na seção intitulada Discours du récit: essai de méthode) e em Nouveau discours du récit, texto complementar ao anterior. Trata-se basicamente de uma proposta de estudo dos problemas relacionados ao narrador a partir de um “ensaio ou tentativa de método”, i.e., de uma perspectiva diacrônica em que o estudo d’O Ateneu venha a remeter ao estudo da autobiografia ficcional como um todo, e que, inversamente, as conclusões teóricas abrangentes auxiliem na compreensão do texto em questão. 

Resultados parciais Até o momento, foram escritos dois de três capítulos previstos: um primeiro, a

respeito do lugar do foco narrativo na fortuna crítica d’O Ateneu; um segundo, sobre o (não) lugar da memória na narrativa de primeira pessoa; e um terceiro, relativo à analise propriamente dita do romance. Assim, resta continuar e terminar a análise do livro, apenas esboçada, e corrigir / complementar os capítulos já terminados. Para fins de organização, os capítulos foram dispostos em duas partes, precedidos de uma breve Introdução: “Fortunas teóricas e tradições críticas” (capítulos 1 e 2) e “Ilusão e técnica narrativa em O Ateneu, de Raul Pompéia” (capítulo 3). Como já expusemos brevemente nossa crítica à recepção do romance, que equivale ao primeiro capítulo (três tendências interpretativas sumárias X “desvio de grau” dos problemas narrativos do texto), resta, pois, discorrer brevemente sobre o segundo capítulo, de natureza teórica. Partindo da amplitude da discussão do (não) lugar da memória na narrativa de primeira pessoa (memória, tempo, indivíduo etc.), e levando-se em conta o papel mediador do narrador-memorialista na exposição dos eventos ficcionais passados, optamos inicialmente por tomar o dado temporal da narrativa não como algo natural, mas como algo suspeito, e buscamos avaliá-lo a partir de suas negativas a fim de sistematizar com maior exatidão (ou com o mínimo possível de “desvio”) seus limites. A primeira dessas negativas parte da evidência de que ninguém – ficcional ou real – pode narrar uma ação no instante mesmo em que ela ocorre, i.e., simultaneamente ao fato, e que, por isso, temos

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(sumariamente) que toda narrativa ficcional – hetero ou homodiegética – mantém uma temporalidade “ulterior” à história que narra, e que, portanto, deve haver uma dependência a priori (para não dizer abstrata e puramente lógica) da narrativa para com a memória. Afunilando a negativa anterior, a segunda delas parte da evidência de que nenhum narrador ficcionalmente situado pode ter uma visão abrangente dos fatos, dadas as suas limitações sensoriais e cognitivas de personagem fictício, e disso conclui que a narrativa de memórias é a expressão unilateral de um testemunho particular, e não um testemunho em si. 1 Por fim, partindo das negativas anteriores, temos uma última negativa de que a narrativa de memórias é assim inclassificável, posto que ela se estruture ao redor das experiências passadas de um narrador autodiegético e que, por conseguinte, devam existir tantas narrativas de memórias quanto narradores. Não obstante, torna-se possível sistematizar a narrativa de memórias a partir destas mesmas limitações (ulterioridade da voz narrativa, limitação sensorial e cognitiva do narrador-memorialista e inclassificabilidade da narrativa de memórias): distinta da autobiografia pelo que há de ficcional – e não documental – em sua rememoração do passado, a narrativa de memórias / autobiografia ficcional pode ser sistematizada com base na maior ou menor preocupação do narrador para com sua evocação do passado, i.e., em uma consciência ou respeito maior de suas próprias limitações e de sua inserção temporal ulterior ao universo narrado. Assim, poderemos ter três tipos de narrativa de memórias: uma primeira “retrospectiva”, de maior atenção às limitações do narrador e à integridade dos eventos passados (“retro” designando o “retrocesso, retorno, recuo” ao momento anterior da existência visto segundo a “speção” ou olhar presente do narrador; ex: Fome, de Knut Hamsun); uma segunda “presentificativa”, de recuperação do passado simultânea à revisão atual do narrador, e, consequentemente, de menor atenção às suas limitações (no limite do que permanece ou se estabiliza na / da visão “presente” de quem narra; ex: Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust); e uma terceira e última “prospectiva”, de ênfase renitente do narrador em um único argumento ou visão dos fatos passados, voltada

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I.e., enquanto referente a um acontecimento real: “La distinction entre témoigner et raconter une autre histoire – fiction imaginée, texte memorisé, etc. – réside dans l’opération de factualisation, l’affirmation de la référence à un événement du monde réel, laquelle passe, à moins de faire appel à um autre témoin, par l’attestation biographique du narrateur” (Dulong, 1998, p. 11-12).

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inteiramente para o beneplácito de seu leitor (processo de “speção” ou de visão “pró-” narrador; ex: Dom Casmurro, de Machado de Assis). Dentro desta proposta teórica, ainda em estado de elaboração e desenvolvimento, é que buscaremos continuar a análise do romance, correspondente ao terceiro capítulo da pesquisa, além de, como o estamos elaborando no presente momento, revisitar a fortuna crítica da obra. Contamos, pois, com as colaborações desse Seminário de Pesquisa tanto para a revisão dos caminhos já tomados quanto como preparação para o exame de qualificação que se dará no início de 2013. Bibliografia AGOSTINHO, Santo. Confissões. 8 ed. Porto: Apostolado da Imprensa, 1975. ANDRADE, Mário de. Aspectos da Literatura Brasileira. 6 ed. São Paulo: Martins, 1978. ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Araripe Júnior: teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos; São Paulo: EDUSP, 1978. BAL, Mieke. Narratology: introduction to the theory of narrative. 2 ed. Toronto: UTP, 1997. BOOTH, Wayne C. The rhetoric of fiction. Chicago: The University of Chicago Press, 1968. BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. ______. O Ateneu: opacidade e destruição. In: ______. Céu, Inferno. São Paulo: Ática, 1988. CAPAZ, Camil. Raul Pompéia: biografia. Rio de Janeiro: Gryphus, 2001. CHAVES, Flávio Loureiro. O brinquedo absurdo. São Paulo: Polis, 1978. COHN, Dorrit. La transparence intérieure: modes de représentation de la vie psychique dans le roman. Paris: Éditions du Seuil, 1981 COLONNA, Vincent. Autofiction & autres mythomanies littéraires. Auch:Tristram, 2004. DULONG, Renaud. Le témoin oculaire: les conditions sociales de l’attestation personelle. Paris: Éditions de l’École des hautes études en sciences sociales, 1998. GENETTE, Gérard. Figures III. Paris: Éditions du Seuil, 1972.

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______. Nouveau discours du récit. Paris: Seuil, 1983 HAMBURGER, Kate. A lógica da criação literária. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Coimbra: Almedina, 1980. LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Éditions du Seuil, 1975. LUBBOCK, Percy. A técnica da ficção. São Paulo: Cultrix, 1976. MENDILOW, A. A. O tempo e o romance. Porto Alegre: Globo, 1972. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2 ed. São Paulo: Ática, 2000. PERRONE-MOISÉS, Leyla (org.). O Ateneu: retórica e paixão. São Paulo: Brasiliense; EDUSP, 1988. PLATÃO. A república. São Paulo: Martins Fontes, 2006. POMPÉIA, Raul. Obras de Raul Pompéia: O Ateneu. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; MEC; FENAME, 1981. v.2. POUILLON, Jean. O tempo no romance. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1974. PRINCE, Gerald. “Introduction à l’étude du narrataire”. Poétique: revue de théorie et d’analyse littéraires. Paris, n. 14, p. 181, 1973 RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1984. v. 2. SANTIAGO, Silviano. O Ateneu: contradições e perquirições. Cadernos da PUC. Rio de Janeiro, nº 11, out. 1972. SCHWARZ, Roberto. “O Ateneu”. In: A sereia e o desconfiado. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1981. TACCA, Oscar. As vozes do romance. Coimbra: Almedina, 1983. TADIÉ, Jean-Yves; TADIÉ, Marc. Le sens de la mémoire. Saint-Amand (Cher): Gallimard, 1999. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006. VERÍSSIMO, José. Últimos estudos de literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia; EDUSP, 1979.

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COTEJO LITERÁRIO PORTUGUÊS: A NARRATIVA ANÔNIMA OBRAS DO DIABINHO DA MÃO FURADA E AS ÓPERAS JOCO-SÉRIAS DE ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA Giulliana Santiago Renata Soares Junqueira Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O objeto principal de nossa pesquisa é uma narrativa portuguesa intitulada Obras do diabinho da mão furada, escrita provavelmente no século XVIII e de autoria desconhecida. Pretendemos analisar a narrativa sobretudo no que diz respeito à construção da comicidade, refutando a leitura que muitos estudiosos fazem ao afirmarem tratar-se de mais uma novela exemplar, muito comum na época. Parece-nos, antes, conter um discurso crítico à sociedade, convenientemente camuflado sob as cores da ironia e da sátira. Além disso, longe de esgotar a polêmica que envolve sua autoria, gostaríamos, entretanto, de fornecer alguns subsídios a essa problemática, fazendo com que nossa investigação seja também de caráter comparativo, ao aproximar a novela das óperas joco-sérias do famoso comediógrafo português Antônio José da Silva, mais conhecido pela alcunha de o “Judeu” e morto pelas fogueiras da Inquisição, para quem muitos estudiosos atribuem a autoria das Obras. Utilizaremos para tal fim sua última peça, O precipício de Faetonte, levada ao palco lisboeta em 1738. Nossa pesquisa tratar-se-á, portanto, de um levantamento de formas, de aspectos similares, de figuras retóricas comuns, enfim, de procedimentos cômicos que possam aproximar a narrativa de um lado e a peça teatral do outro, levando em consideração as peculiaridades no que diz respeito aos diferentes gêneros textuais de que tratamos. Na primeira etapa de nosso trabalho, fizemos um levantamento bibliográfico sobre a vida e obra de Antônio José da Silva, o Judeu, bem como sobre o contexto histórico no qual ele viveu e escreveu, e constatamos que sua trágica morte nas fogueiras da Inquisição chama mais atenção do que seu espólio teatral, que constam de oito óperas cômicas, chamadas de joco-sérias. Percebemos que todas elas seguem um mesmo princípio organizador, que tratamos como uma sobreposição de identidades. Tendo vivido num

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tempo em que recrudescia a ação da censura inquisitorial portuguesa – a primeira metade do século XVIII –, o Judeu leva ao palco peças com sátiras convenientemente camufladas, seja pela linguagem repleta de trocadilhos e ambiguidades, seja pela máscara das personagens – com destaque para o gracioso –, seja pela própria técnica de interpretação, que se serve de bonecos de cortiça. Somente dessa maneira Antônio José conseguiria passar pela censura rigorosa da Inquisição e criticar a sociedade sua contemporânea. Da mesma maneira, pois, se estrutura a narrativa sobre a qual nos debruçamos. O fio condutor é regido pelas duas personagens principais, André Peralta e o diabinho, que se não se transformam de fato um em outro, como ocorre na maioria das peças do Judeu, seus discursos se sobrepõem e se confundem. Assim, ao final da leitura, constata-se que nem tudo é o que parece e que as aparências realmente enganam. Essência de Antônio José: ser x parecer. Na segunda etapa, nosso foco foi, sobretudo, em teorias que nos dessem subsídios para analisarmos com mais propriedade a construção da comicidade presente tanto em um quanto nos outros textos. Vale ressaltar que atentamos, a todo o momento, na diferença existente entre os gêneros textuais e que levamos isso em consideração. No presente momento, estamos trabalhando na elaboração do Relatório de Qualificação. Esboçamos a análise da comicidade presente na novela e em um momento posterior nos dedicaremos à análise das peças teatrais, sobretudo O precipício de Faetonte. Apresentamos, então, parte dos resultados obtidos. Conforme pontua João Gaspar Simões em sua História do romance português, a prosa portuguesa do século XVIII foi um prolongamento daquela que dominou todo o século anterior, “cujas principais tendências eram a exacerbação teórica e a intenção moralista” (SIMÕES apud OLIVEIRA FILHO, 1993, p. 23). É, pois, exatamente dessa maneira que muitos dos que têm se debruçado sobre a novela diabólica a entendem: como fruto da pena de um autor que intencionava tão somente moralizar; que os homens, possuidores do livre arbítrio, escolhessem o caminho do bem ao conhecerem os malefícios existentes no mundo e o padecimento daqueles que não foram bons do lado de cá. Nossa leitura do texto vem exatamente na contramão desse entendimento. Acreditamos que, antes de querer moralizar seu público, o autor intencionava criticar a sociedade de seu tempo, utilizando-se para esse fim de recursos cômicos, como a sátira e a

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ironia. Repetindo o dogma católico, subverteu-o. É válido lembrar que o cômico distinguese da comédia, apesar de muitas vezes com ela ser confundido. Enquanto esta é um subgênero específico, uma modalidade dramática que atende a convenções retóricas bastante específicas, aquele pode ser entendido como um modo, mais abrangente e que pode estar presente em diferentes gêneros. Vladimir Propp, em Comicidade e riso, discute sobre a contraposição errônea que muitas vezes é feita entre cômico e trágico, defendendo que ambos não são tão contrários quanto à primeira vista parecem ser. Defende, ainda, que tampouco o cômico deveria ser oposto ao sério, porque daria uma impressão de que tem menor importância, talvez pelo peso que a palavra “sério” carregue. A melhor hipótese seria opor cômico x não cômico, o que eliminaria qualquer juízo de valor de um sobre o outro. Em Anatomia da crítica, Northrop Frye, ao teorizar sobre a sátira, assim pontua: a sátira requer pelo menos uma fantasia mínima, um conteúdo que o leitor reconhece como grotesco, e pelo menos um padrão moral implícito [...]. Duas coisas, pois, são essenciais à sátira: uma é a graça ou humor baseado na fantasia ou num senso de grotesco ou absurdo, a outra destina-se ao ataque. (FRYE, 1973, p. 220)

Ao lidar sempre com o momento presente, ainda que seja de uma maneira mascarada, sem o conteúdo fantasioso a sátira tornar-se-ia demasiadamente opressiva. Nas Obras do diabinho da mão furada, detectamos as duas características das quais fala Frye. A primeira delas, a fantasia, encontra-se já na epígrafe, quando o autor propõe ao leitor um pacto através do lúdico: “Palestra moral e profana, donde o curioso aprenda para divertimento ditames e para o passatempo recreios” (SILVA, 1958, p. 219). O caráter cômico e fantástico é ainda reforçado em outras duas partes – no A quem ler: “Leitor curioso, nestas fabulosas Obras do Diabinho da Mão Furada te ofereço desenganos das suas tentações [...]” (SILVA, 1958, p. 221, grifo nosso) e no Proêmio: “Nem sempre se podem escrever histórias verdadeiras, políticas e exemplares; também do fabuloso e jocoso se colhe muito fruto [...]” (SILVA, 1958, p. 223). Mas é, sobretudo, na representação de uma das personagens que verificamos o caráter fantasioso e jocoso de forma mais clara e expressiva. Dessa maneira, o diabinho assim se apresenta a André Peralta: “em figura de fradinho, de pequena estatura, mas de disformes feições, os narizes rombos e ascorosos de moncos, a boca formidável com colmilhos de javali, e os pés de bode” (SILVA, 1958, p. 228). Trata-

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se, pois, mais de uma caricatura, própria para incitar o riso, do que de uma figura amedrontadora, tal como se faz presente no imaginário popular, fruto, talvez, de um descrédito na representação do Diabo que mencionamos anteriormente. Lembramos que Henri Bergson já pontuara que as personagens cômicas tendem ao caricaturesco. O diabinho seria uma delas por excelência. A segunda característica da qual nos fala Frye é o ataque. Nas Obras, ele é dirigido especialmente à sociedade portuguesa setecentista, de maneira evidentemente camuflada e, mais especificamente à Inquisição que, dissimulada sob o rótulo da religião e a máscara da fé, ocultava o seu verdadeiro perfil de mantenedora do status quo, ao qual os judeus eram já uma ameaça, dadas as suas habilidades comerciais e a sua real capacidade de ascensão socioeconômica (cf. ALVES, 1983, p. 36). À Igreja era, pois, tanto mais oportuna a abominação da heresia quanto mais parecia interessante confiscar os bens materiais dos hereges. Decerto essa realidade não passou despercebida ao autor das Obras do diabinho da mão furada. A crítica atualiza-se e se universaliza se pensarmos que em qualquer sociedade há a necessidade do uso de uma máscara social pelos indivíduos, distinguindo o ser e o parecer. Dessa forma, configura-se a principal crítica do texto: todas as coisas têm duas faces, desenvolvida através de um discurso irônico e zombeteiro. A ironia presente nas Obras encontra-se alojada no discurso do autor. Se logo no início da narrativa, como demonstrado anteriormente, ele deixa claro tratar-se apenas de uma fábula para desfastio da doutrina, questiona mais à frente que de que servem as fábulas que os antigos escreveram, mais que de inventiva e assunto de católicas moralidades? Que não profana a lição o fabuloso, quando se toma por motivo para inclinar ao acertado. (SILVA,

1958, p. 224) e ainda se desculpa na Protestação, ao término do livro: Se nestes discursos houver alguma cousa que profane aos bons costumes e o decoro da modéstia com que se devem escrever, ou contra o que crê e ensina a Santa Madre Igreja Romana, desde logo me retrato e dou o dito por não dito, protestando ser erro da ignorância, e não absurdo da malícia.

(SILVA, 1958, p. 347)

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Em tempos de Inquisição, quem ousaria desafiar abertamente a Santa Madre Igreja Romana? A crítica, dessa maneira, dissolve-se, exigindo do leitor astúcia suficiente para percebê-la. Como pontua Maria Theresa Abelha Alves, a leitura ingênua (aquela feita sobre o claramente expresso) apreenderá da jocosidade os seus ensinamentos morais, enquanto a leitura comprometida com a “produção textual” dela colherá como fruto a sátira social.

(ALVES, 1983, p. 79) É o princípio que encontramos na ironia. Apesar de ser um conceito com limites ainda não muito demarcados, há um consenso entre os estudiosos em defini-la como o ato de dizer uma coisa querendo significar outra. Para Maria Helena de Novais Paiva (1961), na raiz da ironia está a dissociação entre duas realidades: “o corpo formal da palavra e o seu conteúdo já não são aspectos tão intimamente ligados como as duas faces de uma folha de papel” (p. 9). Daí a importância da participação do leitor/ouvinte em abandonar uma atitude passiva em relação ao texto, que exige dele um desdobramento para se tornar compreensível. Mesmo com o discurso moralizador do narrador, já visto por nós, é na criação das suas personagens que ele irá instaurar a subversão. A inversão, uma das fontes do riso, operada pelas personagens, é que irá ocasionar a transgressão da ordem. Vale lembrar que, conforme pontua Vilma Arêas em Iniciação à comédia, as personagens cômicas tendem a ser planas. Isso porque para rirmos de determinada situação ou mesmo indivíduo, é necessário que tomemos certa distância, nos posicionando até mesmo numa posição superior. Dessa forma são apresentadas nossas personagens nas Obras. Podemos apenas inferir algumas características por meio das atitudes de um e de outro. Observemos. “A dupla – Diabinho e Peralta – ora representa a oposição Bem e Mal [...] ora expressa a reduplicação da personagem em si mesma (na personagem representativa do Bem, convive o Mal e vice-versa)” (ALVES, 1983, p. 25). O diabinho, presente na memória popular como uma figura maligna por excelência, tem ações que o contradizem. Desde o início, mostra-se benevolente com seu companheiro André Peralta, ao oferecer-lhe uma panela cheia de cruzados. Em mais de uma passagem, afirma que só deseja fazer-lhe o bem, configurando-se, então, mais como um anjo protetor, dando a André meios de sobrevivência que deveriam ser garantidos antes pelo Estado, uma vez que se trata de um

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soldado que o defende com a própria vida se necessário. O epíteto de mão furada vem das mãos esburacadas que o diabinho possui, “rotas de liber[ali]dades, que em muitas casas onde andamos fazemos ferver o mel, crescer o azeite, aumentar-se os bens, lograrem-se felicidades e [...] descobrimos tesouros escondidos aos donos das casas que andamos” (SILVA, 1958, p. 229). Poderíamos interpretar essa característica do diabinho como uma alusão à figura de Jesus Cristo, ou ainda à própria imagem do deus provedor, aproximando duas figuras diametralmente opostas – deus e o diabo, o bem e o mal. As maldades que faz em sua trajetória são mais peraltices dignas de uma criança, traçando um paralelo com o próprio nome do soldado, André Peralta, para corroborar mais uma vez a duplicação existente. Além disso, o diminutivo de seu nome deixa entrever um enfraquecimento de sua malignidade e também desperta uma simpatia para com o leitor, já que o uso do sufixo geralmente é feito como demonstração de afeto. Por fim, é o diabinho que torna tudo compreensível a Peralta nas três enigmáticas visões que a este proporciona. O esquema se repete: no Inferno, no Palácio dos Sete Pecados e na Casa da Cobiça, o soldado vai ficando atordoado com aquilo que presencia e não compreende, sendo os enigmas explicados pelo diabinho, que tudo vê e tudo sabe, atestando sua onisciência divina. Do outro lado, encontra-se André Peralta, o incorruptível (?) soldado. No início da narrativa, aceita o dinheiro que o diabinho lhe oferece, e que garantirá a sua sobrevivência durante toda a jornada, bem como sua entrada no convento ao final da história. Age como cristão de seu tempo por meio de seu discurso: “A verdadeira felicidade não consiste em ter tudo, senão em desejar nada” (SILVA, 1958, p. 231). Verbalmente diz não possuir o pecado da ambição, mas sua ação o desmente em várias passagens do texto. Além disso, mesmo dizendo-se possuidor de palavras que podem livrá-lo da maligna companhia, nunca as profere. Ao longo do caminho, numa hospedaria em Vendas Novas, Peralta encontra-se com um religioso, a quem lhe dá conta de tudo, ouvindo como conselho o contemporizar com o diabinho até que tudo se ajeite. Mas é ao próprio diabinho com quem mais de uma vez vai confessar-se. Cumpre notar que a confissão é um sacramento religioso, parodiado na novela diabólica como meio de rebaixamento da religião oficial, o cristianismo. Mas não é a única passagem em que ocorre a desonra. Em tantas outras ocasiões, o dogma convive lado a lado com a superstição, praticada por pessoas cristãs e mesmo por membros da própria Igreja.

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O recurso ao cômico, presente na construção das duas personagens principais das Obras, se encontra também em outras passagens do texto. É com uma linguagem cuja construção lança raízes na ironia e na metáfora que se processa o potencial cômico, a capacidade de divertimento lúdico desta narrativa do diabinho. “O certo é que zombando se dizem as verdades” (SILVA, 1958, p. 271) dissera Antônio José da Silva por meio de Chichisbéu, personagem de uma de suas óperas joco-sérias, a saber O precipício de Faetonte. Esse foi o caminho escolhido pelo Judeu para importunar a sociedade do seu tempo, que vivia de pequenas e grandes complacências. Parece que o autor das Obras do diabinho da mão furada compartilhava da mesma ideia. “A novela, cumprindo o papel de enigma a ser decifrado, repousa na antilogia; por isso abre-se para o domínio do jogo ao referenciar a ambiguidade e demonstrar que tudo apresenta duas faces”, como já observou Maria Theresa Abelha Alves (1983, p. 31). Num mundo onde tudo parece mascarado e camuflado, onde as aparências sempre enganam, torna-se também difícil diferenciar anjos e diabos. Bibliografia ALVES, Maria Theresa Abelha. A dialética da camuflagem nas Obras do diabinho da mão furada. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983. (Temas Portugueses). ARÊAS, Vilma. Iniciação à comédia. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. BAKHTIN, Mikhail Mikhalovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1996. BARATA, José Oliveira (coord.). História do teatro português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991. BERGSON, Henri. O riso. Ensaio sobre a significação do cômico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. DINES, Alberto. Vínculos do fogo: António José da Silva, o Judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. v. 1. EMERY, Bernard (Org.). OBRAS do fradinho da mão furada: palestra moral e profana atribuída a António José da Silva, o Judeu. Edição crítica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1997.

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A MOTIVAÇÃO FEMININA NA TRAJETÓRIA DO HERÓI EM CORPO DE BAILE DE GUIMARÃES ROSA: O PAPEL DOS MITOS E ARQUÉTIPOS Hellen Viviane Rodrigues (CAPES) Maria Célia de Moraes Leonel Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Ao considerar as personagens femininas de Guimarães Rosa, observa-se que elas, na maioria das vezes, são deixadas à margem pela crítica em função das personagens masculinas, as protagonistas na maior parte das histórias. No entanto, nota-se que as mulheres são personagens elaboradas e determinantes na história, pois, quando não constituem o eixo em torno do qual gira o protagonista, elas influem de diversas maneiras

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na condução da personagem masculina, ampliando ou modificando seus horizontes. Atentando-se para as três camadas textuais destacadas no texto de Guimarães Rosa por Luís Roncari (2002) – a tradição literária, a dimensão simbólica e mítica e a alegórica-, viu-se, no estudo realizado no período de 2009 a 2010, que os aspectos míticos e aqueles advindos da tradição das narrativas orais destacam-se na configuração das personagens rosianas, tanto masculinas quanto femininas – em geral, auxiliando a construção de aspectos sociais. Sendo assim, a pesquisa tem como propósito investigar os mitos e arquétipos femininos na construção das personagens femininas em um corpus que compreende três narrativas de Corpo de baile: “O recado do morro”, “Dão-lalalão” e “Cara-da-Bronze”, dando continuidade ao trabalho desenvolvido em nível de graduação, em que foi analisado o mesmo tema nas demais novelas de Corpo de baile (“Campo Geral”, “Uma estória de amor”, “A estória de Lélio e Lina” e “Buriti”).

A detecção e análise dos traços

mencionados – mítico e arquetípicos – são realizadas por meio da investigação da ação dessas personagens na narrativa, da relação delas com as personagens masculinas e da maneira como outras categorias da narrativa como narrador, focalização, tempo e espaço enformam tais características. Como apoio teórico para o trabalho, tomamos, primeiramente, ensaios críticos sobre o autor e o corpus escolhido e a entrevista concedida por João Guimarães Rosa a Günter Lorenz publicada em Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro (ROSA,1973). Quanto aos estudos sobre ele, contamos com A raiz da alma (1992) de Heloísa Vilhena de Araújo; “Guimarães Rosa” em O dorso do tigre (1969) de Benedito Nunes e Cores de Rosa: ensaios sobre a ficção de Guimarães Rosa (2010) de Adélia Bezerra de Menezes. No que diz respeito ao estudo do feminino na obra rosiana, nos valemos das proposições de Cleusa Rios Pinheiros Passos, em Guimarães Rosa; do feminino e suas estórias (2000). No que respeita à perspectiva mitológica e arquetípica, adotaremos as propostas de Cassirer em Linguagem e mito (1972), as ideias do estudioso russo Meletínski em A poética do mito (1987) e em Os arquétipos literários (2002); bem como os estudos de Mircea Eliade, em Mito e realidade (1972), O mito do eterno retorno (1969) e O sagrado e o profano (1992). Como material de apoio e consulta, utilizaremos o Dicionário de mitos

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literários (2005) organizado por Pierre Brunel e o Dicionário de mitologia grega e romana (1993) de Grimal. Sobre o feminino na antiguidade, apoiamo-nos no livro Ilíada e Odisséia de Homero: uma biografia, de Alberto Manguel (2008), com o livro L'éternel feminin dans la religion méditerranéenne (1965), de Uberto Pestalozza que trata especificamente do tema, e a coletânea de ensaios intitulada História das Mulheres no Ocidente: a Antiguidade ([199-]) organizadas por Georges Duby e Michelle Perrot. Por fim, baseamo-nos nos textos teóricos sobre as categorias da narrativa como as propostas da narratologia de Gérard Genette em Discurso da narrativa ([19--]) e estudos sobre o espaço como o de Osman Lins contido no livro de Antonio Dimas (1994), Espaço e romance. A pesquisa, assim, encontra-se na fase de escrita da dissertação. Esta, por sua vez, está esquematizada em quatro capítulos, os quais estão dispostos da seguinte maneira: 1) Concepções sobre mito e arquétipo; 2) As personagens femininas de Guimarães Rosa: paradigma na antiguidade clássica; 3) Mitos e arquétipos femininos nas novelas de Corpo de baile (análise de “Dão-lalalão”, “Cara-de-Bronze” e “O recado do morro”; comparação com as demais narrativas – “Campo Geral,”, “Uma estória de Amor”, “A estória de Lélio e Lina” e “Buriti”), 4) Considerações finais. No primeiro capítulo, atentamos para as definições de mito e arquétipo segundo Cassirer, Meletínski e Eliade. Esse último (ELIADE, 2010, p.7-8) diz que os mitos são “histórias verdadeiras”, preciosas pelo caráter sagrado, exemplar e significativo. É considerado “vivo” porque fornece os modelos para a conduta humana, conferindo significação e valor à existência e, ao relatar acontecimentos ocorridos no tempo primordial, constitui-se como uma narrativa de uma criação, aspecto considerado por Meletínski (1987, p.192) como uma especificidade do mito. O estudioso russo (MELETÍNSKI, 1987, p.184) destaca o papel exclusivo do mito na gênese de literatura devido à natureza metafórica, figurativa e simbólica. O autor (MELETÍNSKI, 1987, p.191) atenta para o fato de que, obedecendo a um sistema que ele denomina de sincretismo, tudo o que compõe o mito – as relações espaço-temporais, os temas, os motivos, as personagens e conteúdo arquetípico - se corresponde em busca da formação de uma identidade, pois no pensamento mitológico, não há a separação entre sujeito e objeto, entre material e ideal, singular e plural.

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Para Cassirer (2009, p.20), o mito é também uma forma simbólica assim como a arte, a linguagem e a ciência. E, sendo um processo de enformação espiritual, reflete o real, mas não chega a captar a própria realidade tendo que, para representá-la, recorrer ao signo, ao símbolo (CASSIRER, 2009, p.22), “não no sentido de que designam na forma de imagem, na alegoria indicadora e explicadora, um real existente, mas sim, no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu próprio mundo significativo”. Atenta-se para a importância da metáfora considerando-a como a unidade do mundo mítico, sendo o vínculo intelectual entre a linguagem e o mito. Vê-se, desse modo, que todas as proposições teóricas confluem na visão do mito pelo aspecto simbólico de modo que ele é visto como uma narrativa de conteúdo sagrado, destacando-se a orientação funcional. Relatando um acontecimento ocorrido no tempo primordial, fabuloso, do princípio, prevalece a nostalgia de um retorno à Idade do Ouro, ao tempo das origens. Nesse sentido, repete-se o ato da criação, permitindo o estabelecimento dos arquétipos, como diz Eliade (2010, p.8). No entanto, para a pesquisa, o sentido de arquétipo que adotamos é o de Meletínski (2002, p.19): estruturas que se mantêm na literatura, sendo transformações originais de alguns elementos inicias, ou esquemas primordiais de imagens e de temas. Com a instauração e repetição dos arquétipos na literatura, os momentos míticos são atualizados e mantém a vivacidade do instante de origem, o que resulta no mito vivo, permitindo ao homem, suprir a necessidade de suspender o tempo profano – objetivo, cronológico, histórico – para inserir-se no tempo mítico, da esperança da renovação, da (re)criação. Isto posto, vemos que em “Dão-Lalalão”, novela que tem o tema anunciado n' “A estória de Lélio e Lina” - “O amor era isso – lãodalalão – um sino e seu badaladal.” (ROSA, 1965a, p.237), Soropita é o protagonista, aparecendo de maneira multifacetada na narrativa: ora é forte e viril, ora feio e imperfeito, ora infeliz, ora destinado e poderoso, o que nos permite relacioná-lo ao arquétipo do duplo que conflui em uma só personagem, conforme as delimitações de Meletínski (2002, p.95), diferente do arquétipo tradicional. O protagonista possui boa fama de vaqueiro no passado e abandona tudo para viver nos Gerais com Doralda, a esposa, ex-meretriz. Esta, também dona de diversas facetas, representadas pelos diversos nomes, constitui a tônica da narrativa, sendo o motivo do desenrolar das ações de Soropita, sujeito marcado pelo ciúme. Izilda é presença simbólica

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na narrativa, fruto da imaginação de Soropita e também prostituta; a visão dela se cruza com a de Doralda. Dola, Dada, Sucena aparece como a figuração mítica de Afrodite e a atmosfera erótica-amorosa advinda da deusa do amor é a que predomina no conto. Por meio desse aspecto mítico, ela auxilia o protagonista em sua travessia interna de uma maneira ambígua, pois é a causa e a solução dos conflitos vivenciados pela personagem masculina. “Cara-de-Bronze” também é uma novela permeada de elementos míticos femininos. O próprio protagonista o traz em seu nome: Saturnino Jéia Velho Filho, apresentando-se como um adorador da Grande-Mãe (Géia, a Terra para os gregos), figura arquetípica explorada por Meletínski (2002, p.108-109). Grivo, a mando de Cara-de-Bronze, parte em busca da poesia, que se apresenta como um elemento do eterno feminino, encontrado, por sua vez, na Moça Branca. Desse modo, poesia, personagem feminina e palavra condensam o desejo real da personagem: a redenção, a salvação, a renovação. Surgindo como o real motivo da viagem de Grivo, a Moça reúne as grandes figuras míticas da Terra Mãe, da Terra Primordial e da Árvore da Vida – Nhorinhá, Beatriz e Helena. Três mulheres que contém as diferentes necessidades do homem (a satisfação carnal e espiritual), que, na obra de Guimarães Rosa, parece ser um aspecto comum, como se vê em Grande sertão: veredas e nas novelas de Corpo de baile como “Campo geral”, “Uma estória de amor”, “A estória de Lélio e Lina” e “Buriti”. Até mesmo em “O recado do morro”, em que a importância da personagem feminina pode ser questionada por se tratar de uma história de vaqueiros, sem a forte interferência de mulheres, observamos que elas constituem o motivo do desejo de vingança de Pê-Boi e instaura a tensão entre ele e Ivo Crônico: “Aquele mesmo Ivo, que evinha ali, e que de primeiro tão seu amigo fora, andava agora com ele estremecido, por conta de uma mocinha, Maria Melissa, do Cuba, da qual gostavam” (ROSA, 1965a, p.9). A relevância delas na trajetória do protagonista também é evidenciada nos momentos em que Pedro Orósio passa pela fazenda de dona Vininha e nhá Selena e mantêm um relacionamento conturbado com Nelzí, por meio dos quais evidenciamos sua visão em relação às mulheres. A novela, ocupando o centro da composição de Corpo de baile condensa a ideia presente nas demais em relação às personagens femininas: a mulher como representação do eterno feminino, no sentido que propõe Goethe (apud MANGUEL, 2008, p.165): “[o eterno feminino é a] atração que guia o desejo do homem no sentido de uma transcendência”, uma

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vez que a mulher, nesta novela, aparentemente se constitui como uma presença motivadora do herói, que o guia no sentido de transcender a atmosfera caótica do sertão: “Na saída, em ouso saudou a Nelzí, com aceno de cabeça. O mês de agosto, ainda anoitece depressa; fuscava. – ‘Pode sossegar, Pê, que lá também vai ter moça, e muitas... É baile de bom batuque, samba sapateado!” (ROSA, 1965a, p.60). De acordo com Meletínski (1987, p.2), o período que compreende o final do século XIX até meados do século XX é caracterizado como caótico, por conta das guerras, das crises e da fragmentação do ser humano. Desse modo, o mito, contendo elementos eternamente consistentes da existência humana (GRASSI, ano, p.118), constitui-se como um meio de fuga da realidade ou como uma forma de reconstruí-la, o que caracteriza a “remitologização” na literatura (MELETÍNSKI, 1987, p.9). Seguindo essa tendência, em Corpo de baile de Guimarães Rosa, as condições sociais e existenciais geradas e impostas pelo local (o sertão rosiano) - as quais, muitas vezes, personificam o caos -, adquirem caráter universal, não só, mas também, por meio da recorrência ao mito que (re)organiza e (re)cria a realidade em um processo de cosmicização, em que “O Sertão é o Mundo” (CANDIDO, 1991, p.309). Essa luta arquetípica – caos e cosmos – é instaurada, também, no interior das personagens masculinas, de modo que as personagens femininas representam o elo entre os dois pólos, permitindo a travessia dos protagonistas entre um e outro. Cabe a elas esse intermédio porque são seres sensíveis, divinos, capazes de transitar entre as duas esferas, graças ao universo mítico sertanejo. Isso pode ser observado pela caracterização e ação das personagens femininas na narrativa: elas são construídas sob os aspectos míticos e arquetípicos, os quais são determinantes no estabelecimento da função social que assumem na sociedade. Desse modo, são ora divinizadas, ora humanizadas, mas determinantes na trajetória do herói porque promovem a redenção e a salvação das personagens masculinas, permitindo-lhes o autoconhecimento e a transcendência. Bibliografia ARAÚJO, H. V. de. A raiz da alma. São Paulo: EDUSP, 1992. (Col. Criação & Crítica; v.10). BRUNEL, P. (Org). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

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A PRODUÇÃO ROMANESCA DE JOSÉ LINS DO REGO E A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO Isabella Unterrichter Rechtenthal (CNPq) Maria Célia de Moraes Leonel

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Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O presente trabalho - resultado da pesquisa desenvolvida ao longo do primeiro semestre do curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - visa relacionar os romances de José Lins do Rego a partir da observação da construção do espaço nas obras do escritor. Tomando-se o romance Água-mãe como corpus principal da pesquisa - narrativa em que o escritor paraibano sai do cenário do Nordeste e representa um espaço do Rio de Janeiro, as margens da lagoa de Araruama e a própria lagoa - pretende-se analisar a construção do espaço literário nesse romance para levantar e analisar semelhanças e diferenças na maneira como essa categoria narrativa é trabalhada em Água-mãe e em outras obras de José Lins do Rego. Para a análise, parte-se da leitura e fichamento de três tipos de textos: a) proposições teóricas sobre o espaço na literatura, como as de Osman Lins (Lima Barreto e o espaço romanesco, 1976), Iuri Lotman (A estrutura do texto artístico, 1978), Mieke Bal (Del lugar al espacio, 1987) entre outros; b) estudos sobre a produção reguiana e o regionalismo no Brasil, como os de Antonio Candido e José Aderaldo Castello (Presença da literatura brasileira, 1968), de Luis Costa Lima (A literatura no Brasil, 1970) e de José Aderaldo Castello (José Lins do Rego: Modernismo e regionalismo, 1961); c) estudos específicos sobre Água-mãe, como os de Olívio Montenegro – “O novo romance de José Lins do Rego” -, de Roberto Alvim Corrêa – “Reflexões à margem de Água-mãe” - e de Manuel Anselmo – “Um romance de José Lins do Rego”, que integram o título José Lins do Rego da coletânea Fortuna Crítica, organizada por Afrânio Coutinho (1991). Definido pela crítica como um escritor regionalista – corrente literária que se destacou nos anos 1930 no Brasil e trazia como temática as realidades social e cultural de determinadas regiões do país -, José Lins do Rego produziu romances que possuem, segundo Luís Costa Lima (1970, p. 304), caráter documental, pois fixam o comportamento de figuras afetadas pela situação socioeconômica de certa área, a zona da mata nordestina. Além disso, as obras reguianas são marcadas por um tom memorialista e têm como contribuição fundamental a nostalgia em relação à terra dos tempos de infância e adolescência do escritor, que deixa transparecer, em grande parte da obra, o testemunho dos “últimos lampejos” (CANDIDO; CASTELLO, 1968, p. 251) de uma sociedade fundamentada na produção dos engenhos de açúcar, cuja substituição pela usina, em

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meados de 1930, determina um processo de revolução de toda a estrutura social e econômica da paisagem do Nordeste (CASTELLO, 1961, p. 71). José Lins do Rego dá a essa produção o nome de ciclo da cana-de-açúcar, ao qual correspondem os romances Menino de engenho, de 1932, Doidinho, de 1933, Banguê, de 1934, O moleque Ricardo, de 1935, Usina, de 1936 e Fogo morto, de 1943. Ambientados também no Nordeste são os romances Pedra Bonita, de 1938 e Cangaceiros, de 1953, que diferem dos acima mencionados por se passarem não mais na zona da mata, mas sim na zona sertaneja da região. Por fim, integram a produção regionalista do escritor os romances Pureza, de 1937 e Riacho Doce, de 1939, chamados por Candido e Castello (1968, p. 253) “produções independentes” por não possuírem a carga telúrica das obras anteriores. Além da produção ambientada no Nordeste, José Lins do Rego produziu dois romances que se passam no Rio de Janeiro e são considerados, portanto, obras não regionalistas pela crítica. Trata-se de Água-mãe - publicado em 1941 - e Eurídice publicado em 1947 - que, segundo Luís Bueno (2006, p. 465), são deixados na sombra, ofuscados pelo sucesso e pela importância do ciclo da cana, principalmente. Tratados como um grupo separado, ambos os romances possuem poucos estudos específicos e justifica-se, assim, a proposta de aprofundar a análise referente ao romance corpus da pesquisa. A narrativa de Água-mãe (1976) é ambientada na representação das margens da lagoa de Araruama, no Rio de Janeiro, e traz como tema o mistério e o terror do sobrenatural que as personagens sustentam pela chamada Casa Azul, habitação majestosa do lugar. A história de Água-mãe conta a vida e as relações de três famílias distintas, que residem nas margens da lagoa: a do Cabo Candinho, a da Dona Mocinha e a dos Mafra. As duas primeiras – de Dona Mocinha e de Cabo Candinho – são naturais da região e pertencem a segmentações econômicas próprias do lugar – Cabo Candinho é o chefe de uma família de pescadores de camarão e Dona Mocinha é a dona da salina da Maravilha, que retira da lagoa a matéria prima da produção. Habitantes de longa data, as personagens centrais do romance partilham, junto às personagens secundárias – padeiros, outros pescadores, mercadores etc – do mesmo temor que predomina no lugar: o medo da Casa Azul, da qual acredita-se vir malefício. O leitor toma conhecimento, por meio do narrador, que esse elemento espacial é majestoso e belo, atrai os olhares dos viajantes e encontra-se abandonado na primeira parte do romance – intitulada “A Casa Azul”. Conta-se que os

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proprietários anteriores haviam se mudado e posto a casa à venda após diferentes acontecimentos trágicos dos quais ela havia sido palco, como mortes inesperadas, enlouquecimentos e suicídios dos familiares. Acontecimentos anteriores a esses, como falências, acidentes e aparições sobrenaurais também são contados nos primeiros capítulos do romance e reforçados no decorrer de toda a narrativa, mantendo-se assim o temor de todos os habitantes sobre a Casa Azul. Na segunda parte do livro – intitulada “Os Mafra” – a casa é comprada, reformada e passa a ser a morada de verão dos Mafra, família rica do Rio de Janeiro que passa as férias no lugar e retoma a vida na Casa Azul. Com o desenrolar da narrativa, os novos moradores chamam a atenção dos habitantes da lagoa de Araruama, que começam, aos poucos – principalmente os mais novos, filhos de Cabo Candinho e de Dona Mocinha -, a se relacionar com a casa e quebram os preconceitos que tinham a ela. Por outro lado, as personagens mais velhas – pais e cidadãos – mantêm sua opinião sobre o lugar e preferem não se relacionar com os moradores de lá. Com o passar do tempo, entretanto, o temor da Casa Azul é amenizado – “[…] aos poucos, a Casa Azul foi vencendo o terror dos pobres.” (REGO, 1976, p. 70) –, para ser retomado após a primeira desgraça – a morte de Lourival, filho do casal Mafra – à qual se seguem outras mais, mantidas até o final da narrativa. Cresce, assim, a crença de que a responsabilidade pelos acontecimentos é, de fato, da Casa Azul, que volta a ser evitada após as tragédias que recaem sobre aqueles que se relacionam com ela. Dada a Casa Azul como principal elemento de Água-mãe, faz-se necessário o estudo da construção do espaço para que se analise, entenda e avalie a importância dessa categoria para a constituição do tema da narrativa. É necessário, ainda, que se observe o modo como a casa é tratada pelo narrador e pelas personagens para a criação da atmosfera de mistério que envolve o romance. Para a análise do espaço de Água-mãe parte-se, principalmente, das proposições teóricas de Osman Lins, reunidas em Lima Barreto e o espaço romanesco (1976), estudo no qual o teórico (LINS, 1976, p. 70) propõe o conceito de ambientação, definido como o “conjunto de processos utilizados pelo escritor para criar um determinado ambiente” que repousa sobre três tipos básicos: as ambientações franca, reflexa e dissimulada. A ambientação franca se dá pela introdução pura e simples do narrador, enquanto a reflexa

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necessita que as coisas sejam relatadas pelo ponto de vista de determinada personagem. Já a ambientação dissimulada exige uma personagem ativa que, conforme se locomove por determinado espaço, faz surgir objetos que a cerca, tornando visível o local em que se encontra. Em Água-mãe, tem-se a apresentação do espaço a partir das ambientações franca e reflexa, pois o narrador começa por descrever a lagoa e a Casa Azul de um ponto de vista externo para, no segundo capítulo, adotar o ponto de vista de diferentes personagens, revelando assim tanto o que elas veem - a lagoa, a Casa Azul, as salinas - quanto o que elas pensam sobre esses lugares. É desse modo, portanto, que o leitor toma conhecimento do apreço que todos sentem pela lagoa e do terror que sentem pela Casa Azul, optando sempre por manter a distância desse lugar. A disposição dos elementos espaciais no cenário de Água-mãe contribui também para a valorização e temor voltados à Casa Azul. Sabe-se que essa se encontra sobre uma elevação e em posição centralizada, situando-se entre as casas de Cabo Candinho e de Dona Mocinha e opondo-se, sobretudo, à lagoa de Araruama. Mieke Bal afirma, em “Del lugar al espacio” (1987), que “A menudo, un espacio será opuesto al otro.” (BAL, 1987, p. 104, grifo nosso) e pode atuar como “[…] marco [que] ostenta una función altamente simbólica.” (BAL, 1987, p. 102, grifo nosso). Em Água-mãe, a oposição entre o espaço da Casa Azul e o espaço da lagoa marca não só uma diferença física, como também representa conceitos opostos, tais como o mal e o bem, o silêncio e a agitação, a tristeza e a alegria e, principalmente, o infortúnio e a sorte. Embora seja a lagoa o espaço que mais privilegia as personagens, a quem essas possuem sentimento de gratidão, é em relação à Casa Azul que todos se unem e partilham do mesmo sentimento, optando sempre por respeitá-la e por manterem-se afastados, a fim de evitar os males que acreditam provir do lugar. Esse elemento atua, portanto, como símbolo destinado a reunir a todos os moradores em um mesmo propósito, aproximando-os e mantendo, assim, a ordem nas margens de Araruama. À simbologia do espaço proposta por Mieke Bal pode-se associar aquilo que Iuri Lotman chama, em “O espaço do texto artístico” (1978), de “modelização espacial de conceitos”, a possibilidade de utilizar a “[…] linguagem das relações espaciais […] para dar conta do real” (LOTMAN, 1978, p. 359), ou seja, valer-se de espaços distintos – como alto-baixo, interior-exterior – para representar valores variados, como válido-não válido, bom-mau, os seus-os estranhos etc. No caso de Água-mãe, os valores distintos concentram-

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se nos espaços da lagoa e da Casa Azul e fazem surgir aquilo de Lotman (1978, p. 373) chama de fronteira, conceito que separa, segundo o teórico, espaços e tudo aquilo que lhes é próprio, como seres bons de seres ruins, naturais de estrangeiros, pobres de ricos etc. No caso de Água-mãe, é nítida – embora não explícita – a fronteira que divide, primeiramente, o espaço da Casa Azul do resto do território da lagoa e, consequentemente, o mal proveniente da Casa da população de Araruama. Ao ultrapassar essa fronteira, as personagens do romance acabam por descompor a ordem pré-estabelecida e sofrem, portanto, as consequências por terem invadido o espaço maléfico representado pela Casa Azul: as mortes e desgraças que recaem sobre todos no final do romance. Com base nos resultados apresentados, observa-se que a construção do espaço em Água-mãe baseia-se, principalmente, nos seguintes aspectos: 1) a história passa-se em um microcosmo - nas margens da lagoa de Araruama; 2) há uma construção – a Casa Azul – que se destaca nesse microcosmo, sendo a responsável por manter, direta ou indiretamente, a ordem do lugar; 3) essa construção abriga, em geral, personagens possuidoras de grau mais elevado de instrução ou financeiro; 4) a construção opor-se-á ao resto do ambiente, sendo notável também a fronteira entre esta e o resto do espaço, opondo valores e, por vezes, estando em pontos mais elevados no lugar. A partir das observações, pode-se propor a aplicação dessa tipologia espacial às demais obras reguianas, como observado ao pensarmos em Menino de engenho (1970) e Banguê (1943). Em ambos os romances, a história passa-se nos limites do engenho do Santa Rosa, comandado pelo coronel José Paulino, avô de Carlos de Melo, personagem central do romance. Seguindo a tipologia encontrada com a análise de Água-mãe, tem-se o microcosmo no próprio engenho, sendo a construção de maior importância a casa principal, habitada pelo coronel José Paulino e seus familiares. São essas personagens – sobretudo o coronel - os responsáveis pela administração da produção da cana-de-açúcar e detêm, portanto, o poder no lugar, organizando e sobrepondo-se aos demais moradores do engenho, trabalhadores do cultivo da cana-de-açúcar. A casa principal representa, assim, o local que concentra o poder financeiro e administrativo, opondo-se ao resto do ambiente e estabelecendo a fronteira entre ricos e pobres, escolarizados e analfabetos e patrões e empregados. A distribuição espacial de ambos os romances torna clara, portanto, a pirâmide social da região do final do século XIX e início do XX, acentuando a participação

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de José Lins do Rego na retratação da economia e da sociedade nordestina daquele momento. Conclui-se, portanto, que Água-mãe, embora siga temática distinta da maior parte da produção reguiana e fuja do cenário comum às demais narrativas do escritor, apresenta pontos em comum com as obras de cunho regionalista. É clara no romance a influência do espaço sobre as personagens, mas aqui, diferentemente das obras ambientadas no Nordeste, a influência é simbólica e indireta, distanciando-se da participação direta do ambiente na economia e na distribuição social observada na maior parte dos romances de José Lins do Rego. Bibliografia ANSELMO, M. Um romance de José Lins do Rego. In: COUTINHO, E. F. (Org.) José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 379-384 (Col. Fortuna crítica). BAL, M. Del lugar al espacio. In:_____. Teoría de la narrativa (una introducción a La narratologia). Madrid: Cátedra, 1987. p. 101-107. BUENO, L. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp, 2006. CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A. José Lins do Rego. In:_____. Presença da literatura brasileira III. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968. p. 250-276. CASTELLO, J. A. José Lins do Rego: Modernismo e regionalismo. São Paulo: Edart, 1961. CORRÊA, R. A. Reflexões à margem de Água-mãe. In: COUTINHO, E. F. (Org.) José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 373-377. (Col. Fortuna crítica). LOTMAN, I. O problema do espaço artístico. In:_____. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 358-375. MONTENEGRO, O. O novo romance de José Lins do Rego. In COUTINHO, E. F. (Org.) José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 365-370. REGO, J. L. Água-mãe. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. ______. Banguê. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.

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______. Cangaceiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. ______. Doidinho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. ______. Eurídice. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. ______. Fogo morto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. ______. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. ______. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. ______. Pedra Bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. ______. Pureza. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. ______. Riacho Doce. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. ______. Usina. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

FAIT DIVERS, MITO E POESIA: “L’ECHAPPE” E “VILLA AURORE”, DE LE CLEZIO Islene França de Assunção (CAPES) Ana Luiza Silva Camarani Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP/FCLAr Os contos “L’échappé” e “Villa Aurore” revelam bem a mobilidade e a duplicidade que caracterizam a obra de Le Clézio: ao mesmo tempo em que o título do livro, La ronde et autres faits divers, anuncia a representação da realidade a partir do fait divers, a presença do mito confere às narrativas um forte potencial de poeticidade, constatado principalmente na temática e nos recursos poéticos que o autor utiliza na composição de suas narrativas. Assim, como os demais textos de La ronde et autres faits divers, os contos selecionados apresentam a força de uma narrativa realista, atrelada ao cotidiano banal, a partir do qual se determina um movimento em direção ao mito, configurando uma estrutura circular. A representação do narrador, do tempo e do espaço duplicados contribuem na determinação dessa estrutura e, ao lado do privilégio dado ao espaço da natureza, convergem para a expressão do desejo de evocação das origens. O presente trabalho tem, pois, por objetivos

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examinar os contos supra-citados, considerando, sobretudo, o narrador, o espaço e o tempo ficcionais, buscando observar de que modo as duplicações dessas categorias narrativas contribuem para uma estrutura circular e para um movimento de resgate do paraíso perdido, que tem como ponto de partida a realidade manifestada pelo fait divers. Procuramos-se, ainda, investigar como se constitui, no corpus selecionado, a poeticidade apontada pela crítica como recorrente na obra de Le Clézio. Ao conceder seu prêmio mais prestigioso a Jean-Marie Gustave Le Clézio, a Academia Nobel1 saudou-o como “o escritor da ruptura, da aventura poética e do êxtase sensual”, além de apontá-lo como “o explorador de uma humanidade além e abaixo da civilização reinante”. Obra plural, sempre em movimento, pode ser colocada, sob o signo ambivalente do deslocamento e da mestiçagem, embora apresente uma unidade incontestável, já que os motivos se interpenetram e se correspondem com sutileza de um livro a outro, “ora vibrando em contato com o mito ou o sonho exótico, ora nos conduzindo com brutalidade rumo a uma realidade mais sombria em que surgem os males profundos de nossa época – a nova pobreza, a explosão migratória globalizada, a exclusão das minorias.” (CAVALLERO, 2009, p. 4). A representação da cidade revela-se, então, recorrente nas narrativas leclézianas e integra sua visão do mundo contemporâneo, compondo o que Onimus denomina a “face sombria” (1994, p. 58) de seu universo ficcional, já agregando outros elementos considerados negativos pelo autor, como o intelectualismo, a mecanização, as regras, a multidão, o consumismo. Por outro lado, a busca das origens, de um espaço e um tempo diferenciados, unidos à figura da criança, constitui o que Onimus (1994) aponta como a “face luminosa” do universo lecléziano. A obra lecléziana apresenta, de fato, o que Roussel-Gillet (2010, p. 39) chama de uma “nostalgie d’origine”, configurando um movimento em direção às origens, às raízes. De acordo com Claude Cavallero (2008), a infância em Nice alimentou inegavelmente “l’imaginare de l’écrivain, dont tous les personnages de premier plan possèdent l’intacte faculté d’accéder au paradis des premières années par la symbiose qu’ils tissent avec le monde, avec les éléments cosmiques, avec la faune et la flore” (p. 131). Suas personagens apresentam um inegável desejo de se isolar do resto do mundo e entrar em comunhão com a natureza, que aparece sempre associada à felicidade, ao sonho e à plenitude. A colina e o 1

Le Clézio foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura de 2008.

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mar, refúgios ideais contra a violência da cidade, aparecem frequentemente em sua obra como símbolos de liberdade e evasão de um mundo concebido como aprisionador e ameaçador. Os textos do escritor são calcados, assim, numa oposição entre um mundo nãoocidental, luminoso e belo, de uma beleza perfeita e natural, e um mundo ocidental moderno, feio e degradado. O espaço urbano é visto como uma prisão, tornando o ser humano escravo da tecnologia, do mundo consumista, produzindo a violência e os delinquentes, por dar espaço a desigualdades sociais. O progresso, a ciência, o intelectualismo, idealizados, por muitos, como grandes avanços e bens da humanidade, em Le Clézio apresenta uma caráter disfórico, e a cidade carrega também uma semântica negativa: [elle]est plutôt décrite comme un lieu oppressant et dangereux, un lieu ou les protagonistes sont déshumanisés soit par l’enfer des machines, par les publicités qui transforment les individus en consommateurs robotisés, par les institutions chargées de la sécurité, ou tout simplement par les règles de vie em société. (LÉGER, 2008, p. 110)

O retorno às origens almejado pelos protagonistas exige uma verdadeira integração à natureza, preconiza o abandono do mundo dos homens para uma verdadeira inserção no mundo do mito, do divino, do sagrado: “l’initiation au sacré contredit et empêche l’intégration du personnage à la société” (THIBAULT, 2008, p. 87), o que explica a marginalidade dos protagonistas leclézianos e deixa evidente o motivo por que todos eles quitte[nt] l’espace urbain moderne du centre-ville , espace rationnel et fonctionnel, avec ses rues rectilignes et ses immeubles rectangulaires, pour pénétrer dans un monde plus fantaisiste, plus sauvage et plus irrégulier, um monde merveilleux de venelles serpentines, des vieilles villas entourées de jardins à l’abandon. (THIBAULT, 2008, p. 84, 85)

Essa atração pelos mitos provém, segundo Roussel-Gillet (2010), da capacidade que têm de fazer a conexão com os tempos antigos. O mito do eterno retorno se faz presente em toda a obra, delineando a volta ao tempo primordial empreendida pelos protagonistas, e afirma o anseio que parece perpassar a literatura lecléziana de “partir à la reconquête de facultés atrophiées par le rationalisme et l’impérialisme économique: la puissance cognitive des sens, l’imagination, l’affectivité et la spiritualité.” (SALLES, 2010, p. 28).

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Sem deixar totalmente de lado a cultura ocidental, Le Clézio integra o mito à realidade do mundo contemporâneo apresentada pelo fait divers. De acordo com Barthes (1993), o fait divers, diferentemente das notícias comuns, é uma informação particular, da esfera privada e que se encarrega da classificação do “inclassificável”, ou seja, notícias variadas que não se enquadram em nenhuma categoria conhecida, como, por exemplo, “Política”, “Economia” e “Ciência”. Tendo sua origem no jornal, o fait divers apresenta uma informação insignificante ou excepcional e inusitada, uma atualidade efêmera, facilmente esquecida. “Informação total”, o correspondente às “Variedades” do jornal brasileiro traz em si todos os dados necessários à compreensão do acontecimento, sem necessidade de um conhecimento anterior, sem remontar a nada que não seja ele mesmo e, sendo definido, portanto, exatamente por essa sua imanência que, afirma Barthes, é o que o aproxima da novela e do conto, e não do romance. No domínio da literatura, o fait divers, segundo Frank Évrard em seu livro Fait divers et littérature (1997), convida a uma reflexão a respeito do acaso, do destino e da fatalidade. Partindo de uma aparente banalidade, o fait divers suscita questões fundamentais da humanidade, como, por exemplo, a morte, a infância, a velhice. “Les événements relevant des fait divers touchent aux ‘choses de la vie’, mais aussi aux préoccupations profondes de l’être humain comme la mort, l’accident qui modifie son existence”, atesta Évrard (1997, p. 20). Como forma de representação do real, o fait divers presta-se à criação de efeitos de sentido que tornam o texto mais realista e verossímil. Ancorado na realidade, mas preocupando-se igualmente com os problemas universais do homem, o fait divers parece querer sair do particular e específico para se inserir no mais geral e coletivo, tornando-se análogo ao próprio mito, seja pela semelhança das personagens que, segundo Évrard (1997), evocam os heróis míticos ao transgredirem as leis humanas, seja pela temática adjacente aos acontecimentos que relata: a iniciação, em “La ronde” e a infância, em “Villa Aurore”2, por exemplo. Assim, na esfera literária, “coupé de son origine journalistique, [le fait divers] est amplifié, ennobli par la distance et l’esthétisation propres à la littérature. Il acquiert un caractère métaphorique, exemplaire, qui le rapproche souvent du récit mythique” (ÉVRARD, 1997, p. 7). Le Clézio tira proveito dessa alta carga mítica, 2

“La ronde” e “Villa Aurore”: contos de La ronde et autres faits divers, 1982.

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utilizando-o como ponto de partida, para empreender um movimento mais amplo, rumo ao mito. Os contos selecionados desenvolvem-se, com efeito, entre a magia do mito e a banalidade do cotidiano. Em “Villa Aurore” observa-se a necessidade de fuga do narrador, que, presa da degradada realidade do presente, causada exatamente pelo excesso de civilização, só vê possibilidade de evasão pelas suas próprias lembranças. Diante da impossibilidade de voltar a ser criança nesse mundo artificial, em que o sonho e a imaginação não cabem mais, o único modo de obter a unidade perdida, a comunhão consigo mesmo, é a memória. E é justamente a ocorrência de um fait divers que permitirá ao protagonista a confrontação final com os apelos ora da infância e do passado, ora do presente e da idade adulta. “L’échappé”, por sua vez, traz, como protagonista, Tayar, um jovem que, tirado de seu país natal, passa à situação de fugitivo, sendo obrigado a passar dias de sede, fome e frio no alto de uma montanha gelada. O conto apresenta uma personagem em fuga, não só da prisão, como também das pessoas e lembranças da realidade presente. Tayar busca o refúgio que a natureza representou no passado e que agora proporciona a almejada liberdade. O contato com a natureza trará lembranças de sua infância, possibilitando-lhe uma espécie de encontro consigo mesmo, com a criança que fora, suscitando uma felicidade incomparável e fazendo-o esquecer a fome e o frio. Face a um mundo artificial e impiedoso, é inevitável, pois, aos protagonistas leclézianos, voltar ao tempo mítico do paraíso perdido. A partir dessa necessidade de retorno é que se pode explicar a importância atribuída à infância nas narrativas poéticas leclézianas, de modo que à criança seja dado sempre o lugar privilegiado de protagonista. Ambos os contos trazem protagonistas que se recordam do tempo da infância, buscando resgatá-lo pelo contato com as coisas pertencentes àquele mundo de encantamento. Jean-Yves Tadié, em sua obra Le récit poétique (1978) assegura que “[...] le récit dont le héros est un enfant se tourne, naturellement et fatalement, vers la poésie [...]” (p. 85). O tema da infância é, pois, basilar nas narrativas poéticas de Le Clézio. Em geral, as personagens centrais são crianças, estão sempre muito próximas da infância ou carregam sempre o desejo de retorno a esse tempo. Por essa proximidade das origens, por sua inocência característica e sua capacidade de ver o mundo de modo diferenciado, a criança

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eleva-se ao estatuto de criatura mítica. O olhar da criança lembra ao homem a necessidade de resgatar a inocência perdida. Nesse sentido, entende-se a escolha do escritor pela narrativa poética, visto que a poesia é o que há de mais original, de mais humano, no homem. A linguagem poética, desautomatizante, humanizadora por excelência, se presta perfeitamente a exprimir a vontade das personagens leclézianas de uma volta ao seu estado de pureza natural, a um tempo em que o mundo é visto e exprimido de acordo com um pensamento analógico, associativo, que vê a relação existente entre todas as coisas do universo: “Chez Le Clézio ce retour vers un paradis perdu est devenu un leitmotiv que nous appelerons poésie [...]” (ONIMUS, 1994, p. 55). Tais colocações permitem delinear alguns resultados obtidos no curso de nossa pesquisa. Em cumprimento ao que foi proposto no Cronograma, estamos em fase de preparação para o exame geral de qualificação, organizando os resultados e redigindo o relatório de qualificação. Bibliografia BARTHES, Roland. Structure du fait divers. In: ______. Oeuvres complètes. Paris: Seuil, v. 1, 1993. CAMARANI, Ana Luiza Silva. A representação da cidade contemporânea em Le Clézio: da ficção científica ao fait divers. In: M. V. Z. Gobbi, M. C. Leonel, S. Telarolli (org.). Narrativa e representação. São Paulo: Cultura Acadêmica, p. 161-172, 2007. ______. A magia do universo infantil: espaço e tempo na narrativa lecléziana. Letra: Literatura e magia, UFRJ, n. 2, p. 23-35, 2005. CAVALLERO, Claude. L’Étoile J.-M. G. Le Clézio. Europe: Le Clézio, p. 3-7, 2009. ______. Villa Aurore ou le jardin d’enfance. In : Les Cahiers J.-M. G. Le Clézio. n. 1. Paris : Éditions Complicités, 2008, p. 131-147. ÉVRARD, Frank. Fait divers et littérature. Paris: Nathan, 1997. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, [197-]. (Vega Universidade). LE CLÉZIO, Jean Marie Gustave. Villa Aurore. La ronde et autres faits divers. Paris: Gallimard, 1982. (Folio).

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LÉGER, Thierry. L’arrière-pays niçois et les collines dans l’espace imaginaire leclézien. In : Les Cahiers J.-M. G. Le Clézio. n. 1. Paris : Éditions Complicités, 2008, p. 101-114. ONIMUS, Jean. Pour lire Le Clézio. Paris: PUF, 1994. (Écrivains). ROUSSEL-GILLET, Isabelle. Le Clézio, l’écrivain métisserrand – pour une nécessaire interculturalité. Itinerários, Araraquara, n.31, p.33-57, Jul./Dez. 2010. SALLES, Marina. Le Clézio, un écrivain de la rupture? Itinerários, Araraquara, n.31, p.15-31, Jul./Dez. 2010. TADIÉ, Jean-Yves. Le récit poétique. Paris : PUF, 1978. (Écriture). THIBAULT, Bruno. La ville de Nice en mots et en images. In : Les Cahiers J.-M. G. Le Clézio. n. 1. Paris : Éditions Complicités, 2008, p. 83-99. VIART, Dominique; VERCIER, Bruno. La littérature française au present: héritage, modernité, mutations. Paris: Bordas, 2008.

ENTRE O CLARO E O ESCURO: UMA POÉTICA DA ANGÚSTIA EM SARAMAGO Jacob dos Santos Biziak Márcia Valéria Zamboni Gobbi Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Esta pesquisa de doutorado pretende um enfoque original não só sobre a obra de José Saramago, mas, também, a respeito da situação da ficção e da mímesis literária dentro da contemporaneidade. Tomando a ficção literária não como fingimento, mas como modelação de uma realidade, pretende-se analisar como ocorre a construção do sentimento de angústia dentro de parte da obra do escritor português José Saramago. Na verdade, a pesquisa busca, de início, uma reflexão sobre a condição contemporânea do homem e do mundo do capitalismo tardio: como são marcadas as relações humanas, qual a visão de realidade que vigora na lógica cotidiana, qual o estilo de vida, etc. Assim, projetam-se esses elementos numa reflexão a respeito de como esses fatores externos ao corpo da obra de ficção literária podem ser trabalhados ou ter influência na estrutura e na temática do mesmo. Para o estágio acima da pesquisa, de onde partimos, usamos primordialmente algumas obras de Zygmunt Bauman, uma vez que seu enfoque sociológico sobre a situação 217

hodierna nos parece muito cabível. Usamos, com destaque, Mal-estar na pós modernidade (1999), Medo líquido (2008), Confiança e medo na cidade (2009), Amor líquido (2004). Diante do cenário contemporâneo esboçado a partir de tais leituras, este trabalho pretende se debruçar sobre o sentimento de angústia. A reflexão sobre ela, hoje, aparece de forma renovada e, de fato, reconhecida como inerente à condição humana - não porque antes não o fosse, mas o entendimento de mundo e de sujeito era outro. Agora, reconhecese o ser humano, definitivamente, como um ser cindido, perdido entre as múltiplas possibilidades de concretização da experiência de construção de uma identidade. Parece, progressivamente, termos a representação de um sujeito marcado pela perda de tudo, inclusive do direito a ter um vazio interior, de sentir-se desamparado. Antes, tomando como exemplo as épicas clássicas e o romance histórico português, o protagonista aparece representado como o verdadeiro herói: suas maiores qualidades físicas e algumas virtudes – como respeito, lealdade, coragem, etc – aparecem como pontos-chave de construção da imagem do sujeito e do mundo que o cerca. Por outro lado, a literatura contemporânea parece, mais do que reconhecer, incorporar a temática da angústia à ficção romanesca. O vazio humano está dentro da estrutura literária, como tema e como forma. Na história da evolução da ficção romanesca como gênero, segundo Catherine Gallagher (2009), o envolvimento com a representação do cotidiano e dos problemas da classe burguesa sempre foi primordial. Hoje, esta mesma classe pode se ver representada de forma mais visceral e complexa: a identificação com a narrativa ocorre por outros motivos, com a encenação do drama existencial humano. Para análise da presença da angústia dentro deste universo que delineamos aqui, esta pesquisa se apoia em dois grandes pensadores: Kierkegaard – O conceito de angústia (2010a) e Temor e tremor (2009) – e Freud – Inibições, sintomas e ansiedade, Mal estar na civilização (2006b), Futuro de uma ilusão (2006a). Apesar de ambos atuarem de acordo com bases epistemológicas diferentes, pudemos perceber, em nossas leituras, pontos de contato entre tais autores; talvez isso surja como sintoma de uma crise, que se aprofunda, da representação do sujeito e do mundo. Na obra O tempo e o cão (2009), de Maria Rita Kehl, a autora tece uma série de considerações sobre o estatuto, a condição psíquica do homem contemporâneo, que muito

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nos interessa e muito nos chama a atenção: a profusão excessiva de imagens, a gama monstruosa de informações, o exagero no uso das capacidades conscientes do ser humano, o fim da tradição da transmissão oral da experiência, a sensação de aniquilamento do conteúdo da existência, o mal-estar advindo do fato de que somos pouco incitados a desenvolver nossa identidade em detrimento do coletivo, etc. - tudo isso culmina, inevitavelmente, como viemos considerando até agora, em uma nova forma de se entender sujeito, realidade e ficção. Assim, os pensamentos de Kierkegaard e de Freud – assim como de seus respectivos comentadores – nos amparam na medida em que trazem fôlego à nossa discussão. Kierkegaard registra a dificuldade de se assumir as rédeas da existência diante da responsabilidade iminente de se fazer escolhas. Segundo ele, assumir isso, e evoluir de um estágio estético a um religioso da existência, é retornar para a mesma de forma renovada: não se trata de abolir a razão, mas de exercer a subjetividade e a razão conjuntamente, dando nova dimensão à vida. Freud, por ser turno, apoiado na concepção de aparelho psíquico, contribui com sua visão a respeito dos afetos: o ser humano carrega consigo uma pulsão de destruição inerente a ele. Assim, na verdade, elementos como a religião, a ética e os valores são criados para diminuir nossa sensação primordial de desamparo. A sociedade, dessa forma, atua como elemento que recalca o princípio de prazer do homem, instituindo o princípio de realidade. Passamos a vida lutando entre as pulsões de vida e de morte. Voltamos a salientar que ambos os pensadores acima – fundamentais à nossa pesquisa – trabalham a partir de pressupostos diferentes: para Kierkegaard, o primordial é a existência em si enquanto ato de escolha; para Freud, o primordial é a memória, o aparelho psíquico que atua por meio de deslocamentos e condensações. Mesmo assim, apesar das diferenças, são dois autores que criam suas obras a partir das crises do século XIX. Apesar de nunca terem se conhecido ou “se lido”, pensamos que são registros das fissuras contemporâneas que começam a se delinear deste então: temos os sintomas de um mal estar. Entrelaçamos isso com as reflexões sobre o estatuto da ficção contemporânea: a obra não só fala, muitas vezes, da angústia – o afeto sem objeto e que nunca engana – como incorpora vazios que nos desamparam: o narrador que se fragmenta, sempre provisório; a discussão sobre o estatuto da história, etc. Segundo Karlheinz Stierle , a ficção, como

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fingere, não pode ser entendida como um discurso mentiroso, mas como modelação de uma realidade. Aí encaixamos a obra de Saramago: uma grande e complexa modelação do barro amorfo que é a angústia dentro do processo existencial humano. Como corpus de análise, escolhemos como ponto nodal a obra Ensaio sobre a cegueira (1995), de Saramago. Ela está colocada, no projeto, como eixo central de estudo e de aprofundamento sobre a obra do autor. No entanto, não se busca apenas a leitura desta ficção, mas usá-la como arranque para considerações a respeito da produção literária deste escritor como um todo. Percebe-se, em Saramago, uma espécie de poética do sentimento de angústia deste homem contemporâneo do qual estamos no rastro. Por fim, vale dizer que esta descrição de pesquisa tem por intenção delinear quais são os pressupostos de que partimos para pensar, analisar nosso corpus. A metodologia de trabalho ainda está sendo delineada conforme nossas leituras estão sendo feitas e as disciplinas cursadas. Temos certeza de que os procedimentos metodológicos serão centro de debate em um próximo seminário de pesquisa. Bibliografia ARNAUT, A. P. Post-modernismo no romance português contemporâneo. Lisboa: Almedina, 2002 AUERBACH. Mimesis. São Paulo: Cultix, 2005 BASTAZIN, V. Mito e poética na literatura contemporânea: um estudo sobre José Saramago. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006 BAUMAN, Z. Mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. ______. Amor líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. ______. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. ______. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BIRMAN, J. As pulsões e seus destinos. São Paulo: Civilização Brasileira, 2009. COMPAGNON, A. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 1999. FARAGO, F. Compreender Kierkegaard. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

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FREUD, S. Uma nota sobre o bloco mágico (1925). Rio de Janeiro: Imago, 1976. ______. Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, Análise leiga e outros trabalhos (1925-1926). Rio de Janeiro: Imago, 2006a. ______. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (19271931). Rio de Janeiro: Imago, 2006b. GALLAGHER, C. Ficção. In: MORETTI, F. (org.) . O romance 1: A cultura do romance. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 629-658. GENETTE, G. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega. s.d. GOUVEA, R. Q. A palavra e o silêncio – Kierkegaard e a relação dialética entre fé e razão. São Paulo: Fonte Editorial, 2009. LACAN, J. O seminário – livro 10 – a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. LEITE, S. Angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. LIMA, L.C. O controle do imaginário: razão e imaginação no Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1985. ______. Vida e mimesis. Rio de Janeiro: 34, 1995. ______. Mimesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ______. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. KEHL, M. R. O tempo e o cão. São Paulo: Boitempo, 2009. KIERKEGAARD, S. Temor e tremor. São Paulo: Hemus, 2009. ______. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2010a. ______. O desespero humano. São Paulo: Editora Unesp, 2010b. MATUSTIK. Kierkegaard in post-modernity. Indiana: Indiana University Press, 1995. RAMOS, G. A. Angústia e sociedade na obra de Sigmund Freud. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. SAROLDI, N. O mal-estar na civilização. São Paulo: Civilização Brasileira, 2011. STIERLE, K. A ficção. Trad. Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Caetés, 2006.

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VALLS, A. L. M. e MARTINS, J. S. Kierkegaard no nosso tempo. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2009. VALLS, A. L. M. e ALMEIDA, J. M. Kierkegaard. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

50 POEMAS DE MARCIAL TRADUZIDOS POR JOSÉ FELICIANO DE CASTILHO: EDIÇÃO, NOTAS E COMENTÁRIOS Joana Junqueira Borges (FAPESP) Brunno V. G. Vieira Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Nossa pesquisa pretende, desde a Iniciação Científica, contribuir com a pesquisa de traduções lusófonas de clássicos romanos, além de estudar a recepção dos textos grecolatinos em nossa literatura. O trabalho no Mestrado segue pelo mesmo caminho, procuramos inventariar, estudar e divulgar a obra tradutória e estudos acerca de temas clássicos de José Feliciano de Castilho, poeta português que tem acrescido à sua importância a vivência brasileira, uma vez que viveu no Rio de Janeiro de 1847 até sua morte em 1879. O fato de ter vivido aqui coloca em sua produção muito do que estava em voga no âmbito da tradução em nosso país, sem contar a participação em encontros literários com o próprio imperador D. Pedro II, temos notícias até mesmo de palpites do monarca sobre traduções de José Feliciano de Castilho e entre seus leitores do período encontram-se o próprio Machado de Assis e Joaquim Manoel de Macedo (1879). Castilho José1, como ficou conhecido pela imprensa da época, deixou-nos uma vasta obra de filólogo, latinista e de tradutor de latim, bem como testemunharam as edições comentadas dos quinhentistas Fernão Mendes Pinto e João de Lucena, os estudos sobre a obra de Camões e Bocage, os comentários a Virgílio e Ovídio, além de traduções de excertos de Propércio, Virgílio, Marcial e Lucano. Já nos valemos de suas traduções para nossas análises tradutórias na Iniciação Científica e agora damos continuidade à nossa pesquisa traduzindo, analisando e atualizando cerca de 50 epigramas de Marcial, retirados das notas realizadas por Castilho 1

Cf. assinatura na edição da Arte de amar (OVIDIO, 1862) e a citação de Machado de Assis no conto Decadência de dois grandes homens: “o que me trouxe à memória aqueles versos de Lucano, que o sr. Castilho José nos deu magistralmente” (ASSIS, 2008, v.2, p.1196)

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José à tradução da Arte de Amar de seu irmão, o ilustre poeta português Antônio Feliciano de Castilho. Aliando nossa formação em Língua Latina e o aprofundamento em História da Tradução, nossa pesquisa pretende aliar a importância da literatura da Antiguidade à constituição de uma tradição literária em Língua Portuguesa. Metodologia Nosso trabalho é realizado em cinco etapas. A primeira delas é a justificativa da tradução se encontrar nas notas de Castilho José, ou seja, por que citou um trecho específico de Marcial em tradução? É uma nota referente a quê? Em seguida trabalhamos com o texto latino, sua busca em edições da época que acreditamos que Castilho José tenha estado em contato, como o caso das edições da Packoucke, bastante utilizadas naquele período, além de haver uma convergência nas numerações dos Epigramas que não é encontrada em nenhuma outra edição pesquisada. Em seguida, com o texto latino em mãos, é realizada uma tradução de serviço. Feito isso, transcrevemos e atualizamos a tradução de Castilho José, nos detendo, principalmente, na acentuação e grafia. Para isso utilizamos o Vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa (SANDRONI, 2009) e os Índices de nomes próprios gregos e latinos (PRIETO; PRIETO; PENA, 199_). Juntamente com esse trabalho, realizamos notas com esclarecimento e de termos específicos de Mitologia e Cultura Romana. Por fim, realizamos comentários sobre as escolhas tradutórias de Castilho José: versificação; rima; questões estilísticas da tradução; acréscimos do tradutor; mudanças ou inserções de sentido em relação ao texto latino. Em nossa pesquisa de Mestrado o trabalho com o texto latino tem como preocupação final a elaboração de uma Antologia de Marcial pela ótica castilhiana, ou seja, pretendemos como produto final erigir a leitura que Castilho José fez de Marcial no século XIX, abarcando principalmente a temática com que ele realizava suas traduções (realizando contrapontos entre as temáticas pretendidas por Marcial e encontradas em estudos contemporâneos2 e a leitura do século XIX). 2

Como os estudos realizados por Dezotti (1990), Cairolli (2009), Cesila (2005; 2007; 2008) Leite (2011) e Agnolon (2010).

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Descrição do estágio atual da pesquisa Cumprimos, no primeiro período de nosso Mestrado, os créditos requisitados pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários de nossa universidade. A monografia de algumas dessas disciplinas nos renderam apresentações em congressos o que resultou em publicações em seus anais. Também já realizamos a compilação, organização e tradução dos epigramas definidos para o nosso corpus, além de terem sido brevemente contextualizados com o intuito de facilitar nossa construção antológica de Marcial por Castilho José. Planejamos para a nossa Dissertação Final colocar frente a frente a nossa interpretação atual de Marcial com a antologia que o próprio Castilho José construiu a partir de suas versões dos textos do epigramista romano. Sendo assim, o que pretendemos ressaltar em nosso trabalho é como que Marcial era lido no século XIX, especificamente por José Feliciano de Castilho. Partindo primeiramente de um estudo sobre os temas de Marcial em contrapartida com os temas lidos por Castilho José, para tanto utilizaremos definições atuais da poética de Marcial para compararmos com a leitura realizada pelo português. O ponto principal é: Castilho José usa o epigrama de temática definido como erótico com essa temática? Ou ele o modifica a ponto de inseri-lo em outra temática, desprezando o que há de erótico no texto latino? Investigaremos aqui até que ponto o contexto social pode influenciar as escolhas do tradutor. É também de grande importância um aprofundamento na recepção de Marcial, traremos à tona como o poeta foi lido através do tempo, especialmente por ter uma produção bastante ácida, algumas vezes até mesmo definida como obscena. Valeremo-nos para tanto de artigos como o de Pierre Laurens “Traduire Martial” encontrado na Révue des études latines, além de outros artigos e edições que mencionem Marcial e sua recepção e tradução. Bibliografia AGNOLON, A. O Catálogo das Mulheres: os epigramas misóginos de Marcial, SãoPaulo: Ed. Humanitas, 2009.

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ASSIS, M. de. Obra completa em quatro volumes. Organizada por A. Leite Neto, A. L. Cecilio e H. Jahn. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. ALBUQUERQUE, S. J. G. e. Arte de traduzir de Latim ao Português. Lisboa: Impressão Régia, 1818. BERMAN, A. A prova do estrangeiro. Trad. M. E. P. Chanut. Bauru,SP: EDUSC, 2002. BURKE, P. Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna. In; ________; HSIA, R. P. A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. Trad. R. Maioli dos Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 13-44. CAMPOS, H. Tradução, ideologia e história. In: SIMON, Iuma Maria (org.) Território da Tradução, revista Remate de Males. Campinas: IEL, 1984. p. 239-247. CAIROLLI, F. P. Pequena gramática poética de Marcial. 2009. 124f. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas e Vernáculas) Universidade de São Paulo, 2009. CESILA, R. T. Cesila, Robson T. O palimpsesto epigramático de Marcial: intertextualidade e geração de sentidos na obra do poeta de Bílbilis. 2008. 281 f. (Doutorado em Linguística) Universidade Estadual de Campinas, 2008. ______. Saturnais: uma época para ler Marcial. Phaos, Campinas, v. 5, 2005, pp. 13-9. ______. Mecanismos de produção de humor nos epigramas de Marcial. Letras Clássicas, São Paulo, v. 7, 2007, pp. 151-169. DEZOTTI, J. D. O epigrama latino e sua expressão vernácula. 1990. 195f. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) Universidade de São Paulo. FALEIROS, A. A crítica da retradução poética. Itinerários, v 28, p. 145-158, jan./jun. 2008. FLEIUSS, M. D. Pedro II e as letras pátrias. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol. 98 (152):894-903, 1928. GRIMAL, P. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1966. LARBAUD, V. Sob a invocação de São Jerônimo: ensaios sobre a arte e técnicas de tradução. São Paulo: Mandarim, 2001. LAURENS, Pierre. Traduire Martial, Revue des Études Latines. tome 76 (1999), p. 200215.

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LIMA, A. D. possíveis correspondências expressivas entre latim e português: reflexões na Área de Tradução. Itinerários, Araraquara, n. especial, 13-22, 2003. MACEDO, J. M. de Discurso. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol. 42(59):307-314, 1879. MARTIAL. Epigrammes de M. Val. Martial. Ed. V. Verger, N. A. Dubois et J. Mangeart. Paris: Panckoucke, 1834. OVÍDIO. Arte de amar de Publio Ovidio Nasão. Tradução de A. F. de Castilho seguidas de comentários de J. F. de Castilho. Rio de Janeiro: Laemmert, 1862. 3 Tomos. PRIETO, M. H. T. C. U.; PRIETO, J. M. T. C. U.; PENA, A. N. Índices de nomes próprios latinos e gregos. Coimbra: Calouste Gulbenkian/JNICT, 199_. SANDRONI, C. Vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa. 5.a ed. Rio de Janeiro: Global Editora, 2009.

A METAMORFOSE SENIANA: POESIA E CRÍTICA NA OBRA DE JORGE DE SENA Joana Prada Silvério (FAPESP) Maria Lúcia Outeiro Fernandes Programa de Pós Graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A obra do poeta português Jorge de Sena (1919-1978) é conhecida pela vastidão dos temas que desenvolveu ― Amor, Liberdade, Justiça, Humanidade, Linguagem, Mar, Testemunho, Tempo, Metamorfose, Peregrinação, entre outros ― e também pela variedade de formas em que buscou se expressar ― poesia, romance, contos, teatro, crítica, tradução. A integração com que essa obra se estrutura, já havia sido discutida por Jackson, em 1983, quando o crítico reconhece que alguns poemas transformam-se, posteriormente, em tópicos da poética seniana. É o caso do “Metamorfose”, de Coroa da Terra (1946), em que a possibilidade de mudança de formas dará o escopo necessário para o livro Metamorfoses, de 1963. Da mesma maneira, Lourenço (1998) buscou ler as ressonâncias entre a poesia e a narrativa de Sena. Além disso, o crítico explicitou a necessidade de consideração da crítica de poesia desenvolvida por Sena. Outro trabalho que não deixou de dar a devida importância à metatextualidade da obra seniana foi o de Carlos (1999), buscando ver a relação de tensão que podia ser estabelecida a partir das esferas de atuação do escritor. 226

Dessa maneira, nosso trabalho, ― A metamorfose seniana: poesia e crítica na obra de Jorge de Sena ― com vistas a promover uma integração entre a atividade poética e a atividade crítica, não só mostra-se viável em termos teóricos, como também, insere-se entre os esforços de compreensão da obra seniana a partir de uma perspectiva dialógica, em que os diversos níveis de expressão comunicam-se entre si. Se pudermos pensar a poesia seniana como uma forma de conhecer, assim como aparece no metapoema “Os trabalhos e os dias”, em que o escrever é uma apreensão do mundo, perceberemos que a crítica, nascida junto com essa atividade poética, não apenas revela aspectos importantes acerca desse fazer poesia, mas, principalmente, decorre dele. Poesia e crítica podem ser pensadas lado a lado porque o ser poeta é o centro do qual emanam todas as outras possibilidades. Segundo Sena (1977, p. 255): “Sucede que eu sou um escritor português, e como escritor me considero sobretudo um poeta ― apesar de quantas peças de teatro, contos, ensaios, livros e artigos de erudição eu tenho publicado [...]”. Assim, quando faz crítica, Jorge de Sena não deixa de ser o poeta que sempre foi, acrescendo uma atividade a outra. Além disso, há de se considerar também que a poesia seniana por si só trabalha um componente inquiridor do mundo e, dessa forma, uma ideia de crítica nunca está apartada dela. Para Lourenço (1998, p. 17-18), a poética seniana deve ser pensada como “o aferir constante de uma práxis poética, em que o que se racionaliza, a nível teórico, é fruto de um trabalho verbal, que, por sua vez, obriga a uma adequação ou ajustamento progressivo das proposições teóricas”. Tendo estabelecido uma possibilidade de intersecção entre poesia e crítica, faz-se necessário dizer que esse cruzamento será pensado nos termos de um dos vetores que movimentam a poesia seniana: a metamorfose. Essa faceta, desenvolvida plenamente pelo poeta no livro de 1963, ― “uma das obras-primas do século” (CARLOS, 1998, p. 126) ― dá conta, não só de procedimentos formais utilizados para que o poema aconteça, mas também, e, principalmente, a metamorfose é uma forma de ver o tempo em que o passado, o presente e o futuro encontram-se conectados. Justifica a escolha desse tópico seniano a possibilidade, ainda em fase de desenvolvimento, de pensá-lo como uma espécie de correlato da modernidade. Nessa medida, os textos escolhidos para formar o corpus crítico, que tratam de questões concernentes, encaixam-se ao corpus poético selecionado. Estágio atual da Pesquisa

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O primeiro passo a ser dado para o início da pesquisa foi a definição de um corpus poético e crítico em que fosse possível encontrar vias de comunicação. Necessariamente, a intersecção entre os campos só poderia ocorrer, na medida em que as análises dos poemas e a exegese dos textos fossem realizadas. Dessa forma, o recorte feito, no caso da crítica, centrou-se em dois livros: Dialéticas teóricas da literatura (1977) e Dialéticas aplicadas da literatura (1978). No primeiro, que reúne textos escritos entre 1959 a 1976, Sena propõe um método tipológico para análise literária, discute a incompatibilidade da noção de sistema e crítica, avaliando a situação das correntes críticas que lhe são contemporâneas, fundamenta a ideia de que os períodos literários formam-se com base numa “dualidade fundamental” (SENA, 1977), argumenta a favor de um perspectivismo histórico-literário, em que passado e presente sejam analisados lado a lado, a partir da gama de manifestações culturais produzidas; o que dará a medida “Para um balanço do século XX ― Poesia europeia e outra”. No segundo volume, a atenção do crítico volta-se para a análise efetiva de obras dos mais diversos escritores. Dada a gama de assuntos, fazia-se necessário optar por textos que estivessem correlacionados com nosso tema maior: a Modernidade. Assim, de Dialéticas Teóricas da Literatura pinçamos o “Para um balanço do século XX ― Poesia europeia e outra” (1976) em que Sena traça um caminho no tempo, que vai de Petrarca a Baudelaire, para explicar a revolução cultural promovida pelo Modernismo e suas consequências. Na mesma linha, só que com o acréscimo de uma discussão do conceito de modernidade em duas frentes, uma histórica e outra fenomenológica, está o “Do Conceito de Modernidade na Poesia Portuguesa Contemporânea” (1971), retirado de Dialécticas Aplicadas da Literatura. Assim, o contexto histórico-estético em que a poesia de Jorge de Sena está inserida é contemplado pela exegese realizada nesses textos. Faltava, contudo, uma apreciação da poesia seniana a partir de um método que desse conta das características formais da obra. Isso nos levou a realizar a exegese de “Ensaio de tipologia literária” (1959-60), também presente nas Dialécticas Teóricas da Literatura. Neste texto, o autor, tendo em vista uma tipologia literária, esboça vinte e dois planos de análise estética compostos, cada um, por um par antitético de atitudes. Dessa forma, nosso corpus crítico é composto por três textos, sendo dois deles relativos às discussões acerca de um contexto histórico-estético, que auxiliam uma análise

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da poesia seniana, a partir da visão crítica do autor sobre seu próprio tempo; e outro que reflete a atividade literária, a partir de uma concepção dialética, ampliando a análise dos poemas no sentido de uma visão geral da obra. Para tanto, o corpus crítico passou por um exercício exegético em que buscamos seguir os textos originais o mais próximo possível, comentado-os a cada passo. A isso, acresceu-se, sempre que necessário, poemas de Jorge de Sena com temáticas coincidentes. De certa forma, este acréscimo do poético no teórico, já pode ser considerado como uma primeira forma de intersecção entre as duas esferas. Além disso, utilizamos o material exposto em “Ensaio de uma tipologia literária” junto com as informações decorrentes das análises dos poemas para traçar uma tipologia literária da obra seniana. Mas, antes que expliquemos como faremos para que poesia e crítica dialoguem, cabe apresentar também como foi realizada a definição do corpus poético. A partir do trabalho de Fazenda Lourenço (1998), A poesia de Jorge de Sena. Testemunho, metamorfose e peregrinação, a crítica passou a adotar estes três vetores como referenciais básicos para pensar os caminhos em que o poeta desenvolveu sua atividade literária. Se a questão do testemunho ganha atenção especial no Prefácio (1960) da 1.ª edição de Poesia I (1961), com o poeta afirmando que “como um processo testemunhal sempre entendi a poesia” (SENA, 1988a, p. 26), a questão da metamorfose não fica atrás, sendo dilucidada por Sena no Post-fácio (1963) de Metamorfoses. Durante o desenvolvimento do trabalho, Coroa da Terra: a poesia como (re)criação do mundo1 realizamos a análise do poema “Metamorfoses”, de Coroa da Terra, e percebemos, como esse vetor mobiliza a cosmovisão seniana, no sentido de uma percepção da realidade material como algo em constante movimento. Além disso, enquanto o testemunho pode ser entendido como um dizer sobre o tempo, a metamorfose é um ver o tempo, na medida em que carreia aquele componente denunciativo, próprio do testemunho, acrescido de uma consciência que enxerga a movimentação temporal, sob uma perspectiva em que o passado se transforma em presente para projeção de um futuro. Assim, Metamorfoses tem uma estrutura interna 1

Nossas conclusões nessa primeira pesquisa apontavam para o fato de os três vetores, identificados por Fazenda Lourenço (1998), serem estruturados, pela primeira vez, em Coroa da Terra (1946). É neste segundo livro publicado pelo poeta, que Fazenda Lourenço encontra “Os trabalhos e os dias”, ou na visão do crítico, a “primeira súmula da sua concepção (em sentido genético) da poesia como um testemunho de linguagem” (LOURENÇO, 1998, p. 41). Mas, também em Coroa da Terra, já aparece a ideia de transformação das formas, com “Metamorfoses” e a concepção de poeta peregrino, e, portanto, de peregrinação, na epígrafe do livro.

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construída em três níveis: a Ante-metamorfose ― com a evocação, por paratexto autoral, do poema “Metamorfoses”, de Fidelidade (1958) ―, as Metamorfoses ― todos os vinte poemas, que compõem o miolo do livro ― e a Post-metamorfose ― com os poemas “Variação Primeira” e “Variação Segunda”. Nosso corpus poético buscou, mais uma vez, seguir as indicações de leitura deixadas pelo autor, o que também representa uma articulação de poesia e crítica. Assim, realizamos a análise de quatro poemas; os três já citados e o poema “Céfalo e Prócris”, que foi utilizado como representativo da metamorfose em si. Ainda sobre a estrutura do livro Metamorfoses, é importante dizer que os poemas que compõem o miolo do livro são acompanhados por reproduções de obras de arte (pinturas, esculturas, construções de valor arquitetônico, fotografia), que são a base primeira a partir da qual a poetização acontece. Assim, a metamorfose, enquanto processo formal, dá-se na medida em que há a transmutação verbal do objeto artístico em poema. Nossa análise de “Céfalo e Prócris” buscou captar como essa transmutação ocorre. Além disso, as análises dos outros três poemas fez-se no sentido de entender o motivo de serem classificados pelo autor como Ante-metamorfose e Post-metamorfose. Com essas quatro peças poemáticas, construímos um recorte do livro de 1963, que respeita o caminho de leitura sugerido pelo autor. Assim parece possível estabelecer uma correlação entre a cosmovisão do tempo, expressa pela ideia de metamorfose, e a combinação de transitório e imutável (BAUDELAIRE, 1991), expressa pela ideia de modernidade. A metamorfose é consciência dessa dialética temporal, na medida em que o processo de transformação pressupõe etapas ― ante-metamorfose/ metamorfose/ post-metamorfose, ou quadro-poema, escultura-poema etc ― e, principalmente, porque a metamorfose captura, por meio das obras de arte que o poeta vê, a “historicidade humana” (SENA, 1988b). Uma consciência metamórfica do tempo está associada à modernidade, na medida em que as duas pressupõem a transformação das formas como ponto de partida. Outra ressonância ainda mais evidente entre uma ideia de metamorfose e modernidade está em “Para um balanço do século XX ― poesia europeia e outra”, no momento em que o crítico resume o século XX como “a fundação de uma tremenda epifania: o regresso dos deuses, não com seus mesquinhos rituais e proibições, mas com a liberdade responsável jamais conseguida na história humana” (SENA, 1977). O caminho de

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leitura do livro de 1963, composto pela Ante-metamorfose, metamorfoses e Postmetamorfose, promove poeticamente este “regresso dos deuses”. Assim, o projeto poético, que Jorge de Sena engendra para a composição do livro Metamorfoses, transforma-se num olhar crítico acerca do tempo em que o escritor viveu. O poeta dá as bases para o crítico afirmar que o espaço da modernidade permitiu, não uma quebra com a tradição formada pela herança cultural, mas com o academicismo que se formou em torno dessa tradição. Os deuses regressados são, na verdade, a liberdade conquistada pelos poetas modernos para desenvolver a atividade literária sem ter que seguir normas pré-estabelecidas. “A fundação de uma tremenda epifania” pode ser relacionada ao que o vetor da metamorfose representa na obra seniana, uma vez que esta cosmovião do tempo é uma tentativa de superação da Morte (FAGUNDES, 1982). Fazer um livro em que a poesia revisa a história dos homens, por meio de manifestações artísticas que são vistas como ícones de um momento histórico, é entender a poesia como um discurso transformador, conferindo-lhe a capacidade de suplantar o tempo. Considerações finais Posto isso, estruturamos nosso trabalho em três capítulos. No primeiro deles, ainda sem título definido, um contexto histórico, seguido de informações acerca dos 5 livros que antecedem as Metamorfoses e uma discussão sobre o Prefácio (1960) da 1.ª edição de Poesia I (1961) e o Post-fácio (1963) de Metamorfoses armam a rede de referências necessárias para as considerações posteriores. O segundo capítulo, uma Fortuna Crítica, busca coligir e discutir os principais trabalhos desenvolvidos pela crítica sobre a obra seniana. A importância deste capítulo revela-se na medida em que cumpre duas funções: 1) servir de fundamentação teórica à monografia e, 2) ampliar nosso campo de visão acerca dos estudos senianos, já que, enquanto empenhamo-nos para discutir certas proposições teóricas de outros críticos, vamos testando nossas próprias hipóteses. Ao terceiro capítulo, também sem título certo, cabe a incumbência de apresentar a parte dura da pesquisa, ou seja, nele situam-se as análises dos poemas escolhidos e as exegeses propostas para os textos críticos. Para o fechamento desse trabalho monográfico a intersecção entre as duas esferas será o principal ponto. Bibliografia 231

BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: CHIAMPI, Irlemar (Coord). Fundadores da modernidade. Tradução de Maria Salete Bento Cicaroni. São Paulo: Ática, 1991, p. 102-119. CARLOS, Luís Adriano. A esplendorosa ressonância de estar vivo: Jorge de Sena 19191978-1998. Colóquio/Letras nº 147/148, p. 121-131, janeiro 1988. Disponível em: http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=147&p=121&o=p. Acesso em: 3 de Agosto de 2012. ______. Fenomenologia do discurso poético. Ensaio sobre Jorge de Sena. Porto: Campo das Letras, 1999. FAGUNDES, Francisco Cota. History and poetry as Metamorfoses. Bulletin of Hispanic Studies, LIX, 2, Liverpool, 1982, p. 129-142. JACKSON, Kenneth David. The humanistic imagination: Jorge de Sena’s poetry of exile and enlightenment. Quaderni Portoghesi, Pisa, n.° 13-14, p. 89-98. LOURENÇO, Jorge Fazenda. A poesia de Jorge de Sena. Testemunho, metamorfose, peregrinação. Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 1998. ______. Dialécticas teóricas da literatura. Lisboa: Edições 70, 1977. ______. Dialécticas aplicadas da literatura. Lisboa, Edições 70, 1978. ______. Poesia I. Lisboa: Edições 70, 1988a. ______. Prefácio (1960) da 1.ª edição de Poesia I (1961). In: ____. Poesia I. Lisboa: Edições 70, 1988a. ______. Poesia II. Lisboa: Edições 70, 1988b. ______. Post-fácio (1963) da 1.ª edição de Metamorfoses (1963). In: ____. Poesia II. Lisboa: Edições 70, 1988b.

A MÚSICA EM AS BÁQUIDES, DE PLAUTO – TRADUÇÃO E ANÁLISE DOS CANTICA João Jorge da Silva Pereira (CAPES) Brunno Vinicius Gonçalves Vieira Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FLCAr Titus Maccius Plautus, ou simplesmente Plauto para os lusófonos, foi um dos mais representativos comediógrafos da antiguidade. Suas peças serviram de inspiração para

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dramaturgos como Moliére e Shakespeare, e influenciaram movimentos artísticos como a Comedia Dell'arte italiana, o que nos dá uma idéia da dimensão de sua importância para o teatro, através dos tempos. Grande parte de sua produção teve inspiração na Comédia Nova Grega, em especial na obra do grego Menandro, de cujas peças sobreviveram apenas fragmentos escassos, o que só aumenta a relevância das peças plautinas, já que essas também são fontes para o estudo da própria Comédia Nova Grega, haja vista a supracitada escassez de obras originais desse movimento artístico da antiguidade. A proposta deste projeto de pesquisa baseia-se no estudo de uma das obras de Plauto intitulada As Báquides, adaptada da comédia intitulada Δὶς ἐξαπατῶν, ou Dis Exapaton, cujo nome pode ser traduzido por “Enganado duas vezes”, do já citado Menandro, e tem por foco a presença constante do acompanhamento musical em grande parte dos diálogos das personagens, os chamados cantica, em que o instrumento utilizado geralmente era a tibia (instrumento de sopro que pode ser considerado a versão latina do αὐλός grego), e a utilização de diferentes metros para as partes musicadas, em contraste com aquelas não acompanhadas pela música (que em geral seguem uma métrica mais ou menos fixa, com versos constituídos em sua maior parte pelos chamados senários jâmbicos, i.e. versos com seis pés métricos, forma latina equivalente ao trímetro jâmbico dos gregos) e as implicações da escolha desses metros e dos efeitos expressivos obtidos por tais escolhas, partindo-se do pressuposto de que tais opções não ocorrem de forma aleatória ou ao bel-prazer do autor. A princípio, tentar-se-á fornecer uma tradução dos cantica em versos, para posterior cotejo com traduções anteriores, e uma análise crítica. Pretende-se, portanto, com a pesquisa proposta, enriquecer a discussão sobre o teatro na antiguidade, sobretudo a da comédia na Roma Antiga, numa área que tanto carece de estudos mais aprofundados em língua portuguesa, i. e. a das letras clássicas. Descrição do estágio atual da pesquisa A pesquisa em questão propõe uma tradução em versos dos cantica da peça As Báquides, do comediógrafo latino Tito Mácio Plauto, conforme já explicitado na introdução deste texto e no resumo enviado anteriormente para o evento. O cronograma descrito no projeto propõe um período de oito meses para o levantamento bibliográfico e para o cumprimento de créditos das disciplinas necessárias para a conclusão do curso, para

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posterior leitura desse aporte teórico, tradução do texto proposto, cotejo com outras traduções existentes em língua portuguesa, e redação da dissertação, baseada na tradução, comentários e uma análise crítica quanto à utilização da métrica enquanto recurso expressivo na obra de Plauto, especificamente na obra já citada. Até o presente momento foram cumpridos dezesseis créditos em duas disciplinas: “Da poesia e suas formas”, ministrada pela Profa.Dra. Guacira Marcondes Machado Leite e “Poética da expressão: crítica da poesia e poetas críticos”, ministrada pelo Prof. Dr. João Batista Toledo Prado, cuja feitura decerto será de muito préstimo na elaboração da dissertação, especialmente no que tange às relações entre a métrica e outras questões pertinentes à forma e sua influência no conteúdo do texto poético, esteio do pensamento de eminentes críticos literários, a exemplo dos formalistas russos (Todorov, Jakobson), cuja teoria aqui também será suporte inegável. Também encontra-se em andamento um levantamento bibliográfico no que tange às obras relacionadas na bibliografia descrita no projeto de pesquisa, com eventual acréscimo de obras à lista. Foi encontrada, por exemplo, uma tradução mais recente da comédia As Báquides do que a anteriormente catalogada no projeto de pesquisa, pertencente a Newton Belezza (1977). O volume contendo a tradução da peça as Báquides faz parte de um projeto de tradução da obra completa de Plauto pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo sido lançado em 2006. O que de forma alguma diminui a importância da pesquisa aqui realizada, haja vista o fato de que objetivo do estudo proposto é o de analisar as questões relativas à métrica no teatro plautino, em especial nos cantica, para além da tradução, e no que tange a essa questão em particular, a tradutória, é notória a ausência de traduções no português brasileiro de certas peças do sarsinate, na qual inclui-se As Báquides. Também foram encontrados volumes importantes no que concerne ao aspecto da métrica e da musicalidade no teatro antigo e nas comédias de Plauto, como Introduzione alla metrica di Plauto, do italiano Cesare Questa, bem como manuais que trazem as fundações para a compreensão da métrica na antiguidade, como o Res Metrica, de William Ross Hardie, e Initiation a la métrique et a la prosodie latines, do francês Maurice Lavarenne. Além disso, há mais uma disciplina em andamento, ministrada pelo Prof. Dr. Brunno Vinicius Gonçalves Vieira, intitulada “A tradução portuguesa do legado greco-romano”, cujo intuito é de prover os discentes cursantes com

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mais bagagem teórica e reflexiva sobre a função do tradutor, desde a antiguidade até os dias de hoje, e que será de extremo proveito para a realização deste trabalho. Bibliografia ARISTÓTELES. HORÁCIO. LONGINO. A poética clássica. Introdução de Roberto de Oliveira Brandão. Tradução direta do grego e do latim por Jaime Bruna. 3.ed. São Paulo: Cultrix, 1988. BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. S. Paulo: Cultrix, 1977. HARDIE, William Ross. Res Metrica – An Introduction to the Study of Greek and Roman Versification. London: Oxford University Press, 1920. JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. 12. ed. Trad. I. Blikstein e J. P. Paes. São Paulo: Cultrix, 1985. LAVARENNE, M. Initiation a la métrique et a la prosodie latines. Paris: Magnard, 1948. LEIGH, Matthew. Comedy and the Rise of Rome. London: Oxford University Press, 2004 MOORE, Timothy J. Music and Structure in Roman Comedy. American Journal of Philology, V. 119, N. 2, Summer 1998, pp. 245-273. MOORE, Timothy J. Music in Roman Comedy. Cambridge, England: Cambridge University Press, 2012. MORENO, Jesus Lúque. Arsis, Thesis, Ictus – Las Marcas del Ritmo en la Música y en la Metrica Antiguas. Granada: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Granada, 1994. PLAUTO, Tito Mácio. As Bacanas. Tradução Newton Belleza. Rio de Janeiro: Emebê, 1977. PLAUTO. Comédias, vol.I. Tradução Aires Pereira do Couto et al. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006. QUESTA, Cesare. Introduzione alla metrica di Plauto. Bologna: R. Pàtron, 1967. QUESTA, Cesare. Titti Macci Plauti Cantica. Urbino: Edizioni Quattro Venti, 1995.

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A CONSTRUÇÃO DO FEMININO EM TRÊS CONTOS FANTÁSTICOS: “LOS OJOS VERDES” (1861), “MI VIDA COM LA OLA” (1949) E “HISTORIA DEL LAGARTO QUE TENÍA LA COSTUMBRE DE CENAR A SUS MUJERES”(1995) Joyce Conceição Gimenes Romero Maria Dolores Aybar Ramirez Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP/FCLAr O objetivo principal desse projeto é a realização de uma análise mitocrítica da construção dos arquétipos femininos sob o aspecto do “feminino terrível” presente em três contos sendo um deles espanhol “Los Ojos Verdes” de Gustavo Adolfo Bécquer, (1861), e os outros dois Hispano-americanos: “Mi vida com la ola” de Octávio Paz, (1949) e “História del lagarto que tenía la costumbre de cenar a sus mujeres” de Eduardo Galeano, (1995). Nessa linha investigativa trataremos sobre a representação simbólica e mítica da mulher-sereia, imagem convergente e saturada de sentidos, que se manifesta nos três contos nos contornos da figura arquetípica de mulher sedutora e atraente, mas causadora de danos, perigosa e por vezes, maligna. De fato, verificamos que o fenômeno meta empírico constituinte das modalidades literárias do sobrenatural, sejam elas o fantástico, o maravilhoso e o realismo mágico, se perfaz nessas narrativas pela manifestação insólita materializada na personagem feminina detentora de tais caracteres e que se mostra mesmo, como dínamo e ponto de intersecção de tais atributos. Estes paralelismos entre as citadas obras tão significativos merecem um olhar mais atento de nossa parte, bem como as discordâncias igualmente significativas entre os três textos. Sondaremos as repercussões dessa construção mítica e simbólica que nos traz a imagem do monstro sedutor e fatal que conduz o homem a perdição, a loucura ou a morte e ecoa nessas narrativas na sugestão da mulher que manifesta este caráter e natureza. Desse modo, refletiremos sobre a composição estética desses contos enfocando a contribuição do mito como importante referencial para a construção do arquétipo feminino, sustentando, para tanto, nossa análise nos devidos subsídios e instrumentos teóricos pertinentes.

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Ainda dentro da perspectiva mitológica serão analisadas as manifestações simbólicas adjacentes ao mito e diretamente conectadas à questão da configuração desse arquétipo feminino. Dentre os elementos que compõe esta simbologia destacamos a água como componente rico em simbologia ampla, tradicionalmente relacionado ao feminino além de recorrente nas três narrativas. Gilbert Durant em sua obra As Estruturas Antropológicas do Imaginário (1997) classifica este elemento como símbolo nictomórfico e o caracteriza como símbolo da feminilidade noturna e terrível. O que constitui a irremediável feminilidade da água é que a liquidez é o próprio elemento dos fluxos menstruais. Pode-se dizer que o arquétipo do elemento aquático e nefasto é o sangue menstrual. (DURANT, 1997, p.

101) A partir dessas análises, pretendemos, em última instância, analisar a construção desses mitos, também construídos e perpetuados pelo discurso literário, que alicerçam uma construção misógina nas sociedades ocidentais. Para tal, recorremos às teorias que abordam a questão da mulher nos mitos, nas religiões e na literatura de uma perspectiva metodológica que perpassa o pensamento de Simone de Beauvoir (1967), Betty Friedan (1971) ou de Kate Millet (1974). Atentaremos, deste modo, para a questão da composição da modalidade literária que, nos referidos contos, é construído através de suas personagens femininas. Em cada um dos referidos contos verifica-se uma construção particularmente expressiva do horror, com especificidades que serão devidamente analisadas no decorrer do pretenso trabalho, partindo, para tanto, das leituras da teoria crítica que delineia a definição conceitual do fantástico e as problemáticas do gênero e construindo, segundo nosso propósito, as leituras possíveis e as reflexões adequadas. Observamos assim, as diferentes configurações de estilo literário nos três contos de modo comparativo preservando, porém nessa análise suas peculiaridades e particularidades. Na narrativa de Octávio Paz, por exemplo, encontramos indícios que comprovam que sua obra antecipa a instauração do realismo mágico, pois esta encontra-se permeada de fenômenos e nuances expressivos que caracterizam essa modalidade literária tais como a naturalização do irreal sem a existência de ambiguidade e da incerteza que caracterizam o fantástico. Essa recorrência não é ocasional, haja vista que o realismo mágico assim como o

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maravilhoso mantêm com o fantástico, do ponto de vista da distinção dos gêneros expressivos na literatura, uma constante dialética, sendo freqüentemente com eles confundido. (FURTADO, p. 18, 1980). Autores como Tzvetan Todorov em seu livro Introdução à literatura fantástica (1970) e a já citada obra de Filipe Furtado (1980), serão de grande importância para nossas análises, além de outros diversos críticos como Chiamp (1980), Tritter (2001) ou Vax (1965) que se debruçaram sobre a pesquisa da caracterização e definição das variações existentes dentre as modalidades literárias que tem como temática o evento sobrenatural. O termo a que se pretende este trabalho delineia-se numa reflexão da problemática do fantástico na poética de Galeano, Bécquer e Paz através da análise descritiva de suas obras e procurando explicitar as relações da figurativização do fantástico com as dimensões mitológicas instauradas nas narrativas. Bibliografia ALTAMIRA, Rafael. Psicología del pueblo español. Madrid: Biblioteca Nueva, 1902. AMORÓS, Celia; MIGUEL, Ana de (eds.). Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización – del feminismo liberal a la posmodernidad. 2. ed. Madrid: Minerva Ediciones, 2007. BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. R. Buongermino, P. de Souza e R.Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo II: a experiência vivida. Trad. Sérgio Milliet.2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. BÉCQUER, Gustavo Adolfo. Rimas y Leyendas. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1979. BESSIÈRE, Irene. Le récit fantastique. Larousse: Paris, 1974. BRANDÃO, Ruth Silviano; CASTELLO BRANCO, Lucia. A Mulher Escrita. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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A DRAMATURGIA DE DEA LOHER NA PEÇA INOCÊNCIA: A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA ESTÉTICA TEATRAL Júlia Mara Moscardini Miguel (CNPq) Elizabete Sanches Rocha Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A dramaturga alemã Dea Loher (n. 1964) nascida no país de Bertolt Brecht (18891956) trabalha com o desencanto dos personagens consigo mesmos, com o outro e com a sociedade, dando forma assim ao teatro político. Em sua peça Inocência1, a autora cria uma ciranda de culpas, de quadros de angústia apresentando personagens que vivem em um completo niilismo em busca de sentido para a vida. São trágicos destinos em um cotidiano banal no qual cada ação, segundo a autora, implica uma reação, um efeito físico ou espiritual sobre si e sobre o outro. Dea Loher pertence a uma nova fase do drama alemão que difere dos seus antecessores modernos. Ela não se rende a formas tradicionais assim como recusa papéis de ordem moralizante, uma tendência da literatura alemã contemporânea, na qual os autores assumem uma postura de provocação ao leitor/espectador. A autora utiliza elementos brechtianos ao mesmo tempo em que retoma o texto estrutural, hierárquico e mimético criando uma multiplicidade estética que dá uma especificidade à dramaturgia da autora. Com os elementos épicos ocupando o pano de fundo da obra, Loher retrata as pessoas e suas condições de vida inseridas no capitalismo tardio. A pesquisadora Birgit Haas em seu livro 2 dedicado à estética de Loher afirma que a obra da dramaturga apresenta um campo de tensão entre o épico e o dramático. Os efeitos de distanciamento brechtianos não são meramente reproduzidos, mas objetivam a formação da plateia, posicionando-a em um lugar social e crítico para assim pensar em melhorar o mundo. A injustiça do mundo, segundo Haas (2006), não é somente exposta, mas é aberta 1

A peça já foi traduzida em diversos idiomas. A tradução que objetivamos analisar pela presente pesquisa é uma versão em português feita pelo dramaturgo e diretor teatral Rodolfo Garcia Vázquez, idealizador e fundador do grupo de teatro “Os Satyros”. No entanto, esta versão ainda não foi publicada, por isso utilizaremos o material cedido pelo grupo. Apesar da pesquisa se basear na tradução de Vázquez, há uma outra feita em Portugal a qual poderá ser útil também e se encontra listada na página de referências. Uma terceira tradução autorizada, em inglês, não publicada, mas cedida pelos detentores oficiais dos direitos autorais de Loher nos Estados Unidos será utilizada em termos comparativos. HAAS, B. Das Theater von Dea Loher: Brecht und (k)ein Ende, 2006. 2 HAAS, B. Das Theater von Dea Loher: Brecht und (k)ein Ende, 2006.

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ao público como forma de reflexão crítica. Apesar da modernização do teatro épico apresentado nas peças de Loher, não é possível afirmar que a mesma é adepta à desconstrução pós-dramática minuciosamente definida por Hans Thies Lehmann3. De um lado está Brecht e o seu teatro épico, didático, mas com ênfase ainda na fábula, de outro lado, Heiner Müller (1929-1995), inicialmente discípulo e seguidor de Brecht, mas posteriormente um dos principais representantes da estética pós-dramática, fragmentada. Dea Loher não pode ser inserida em nenhuma dessas duas formas, mas ao mesmo tempo se relaciona com as duas, assumindo certos elementos e transformando-os. Loher não se apega às formas teatrais já existentes, propondo um teatro independente, uma obra crítica, social e engajada que engloba a forma formal, o teatro épico e o pós-moderno. Tal mistura é o que Haas (2006) chamou de “teatro híbrido”, termo adaptado dos estudos pós-coloniais do professor e pesquisador indo-britânico Homi Bhabha (n. 1949). O estudo de Bhabha influenciado pelas ideias pós-coloniais de Edward Said (1935-2003) transferido ao drama de Loher significa a reinvenção do teatro político através do drama tradicional colocando ênfase na interação humana. Loher, segundo Haas (2006), opta por temas como desemprego, prostituição, terrorismo, guerra, xenofobia, e os coloca não de forma mistificada, mas como obra do próprio homem, causados pelas pessoas e não como uma violência intrusa, fantasmagórica e fantástica na vida cotidiana. Além dos temas, a forma utilizada por Loher também contribui para o teatro político através dos recursos épicos como monólogos, narração na terceira pessoa, coro e música. Apesar de todos esses elementos brechtianos aparecerem na obra de Loher, os mesmos são uma mera duplicação do que Brecht fazia, não há também uma busca pela exatidão e autenticidade documental, mas uma consciente e intencional representação da confusão da realidade como um verdadeiro show. O objetivo da dramaturga alemã é a hibridização da política, da história, dos estereótipos de gênero através do que Haas (2006) chamou de “distanciamento do distanciamento”, conquistado através da artificialidade da forma teatral de Brecht, que para Loher é de cunho moralizante. Quando Loher aposta na artificialidade desse drama, ela cria um teatro político pós-brechtiano não no sentido de Lehmann (2007), mas seguindo uma arquitetura estritamente dramática. O teatro pós-dramático acentuado por Lehmann (2007) não é o que 3

LEHMANN, H.T., Teatro pós-dramático, 2007.

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Loher busca, já que prioriza um drama poético que incide sobre as histórias, as ações e as interações, ou seja, ainda é fabular como Brecht. Loher em uma conversa com Haas em junho de 2005 afirmou que as histórias são sempre as mesmas, o que muda é a forma de contá-las, tendência da escrita pós-moderna. O teatro político que Loher ambiciona fazer tem o teatro épico como pano de fundo em luta contra a volatilidade e autodissolução da situação política. Ainda de acordo com Haas (2006), suas peças se encontram no meio, em um third space entre o passado e presente, entre a verdade e a mentira, entre sujeito e objeto, moderno e pós-moderno. Essa definição se aproxima mais uma vez das ideias de Bhabha (1994), que pontua que qualquer arte que reivindica ser arte, é uma estrutura híbrida do inbetween que inova e interrompe o desempenho do presente4. Loher, em seus dramas, não apresenta a política de forma abstrata, mas através da experiência das pessoas, a mistura de diferentes estilos e falas abre uma nova visão de drama sobre a situação política. As interações particulares e as políticas públicas são contraditórias e ao mesmo tempo dependentes rompendo com as esferas do privado e do público provocando na plateia uma consciência política originária de uma desorientação inicial. Em Inocência (2003), Loher propõe uma reflexão da sociedade pós-moderna através da descentralização, da simulação e da descontinuidade passando uma alta exigência filosófica acerca do sentido da vida, a função das artes, a filosofia da história, a existência de Deus. Para tal, a dramaturga lança mão das técnicas híbridas juntando ainda ao teatro moderno brechtiano, a expressão cinematográfica. Na peça, Loher escancara os mecanismos narrativos do teatro épico questionando, além dos aspectos formais do teatro, aspectos ideológicos. Em uma estrutura desenvolvida em cenas curtas como filmes, os cortes duros, as quebras e lacunas mostram os olhares limitados de cada personagem que vão se cruzando pelo caminho. As trocas de perspectivas entre as cenas, o diálogo repetitivo das personagens e a vida das mesmas exposta em excertos faz com que o público não seja o “senhor dos saberes”5, mas um espectador que domina a totalidade dos fatos ocorridos, que vai descobrindo cena a cena relações antes opacas e, ainda assim, chega ao

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BHABHA, H. The location of culture, 1994, p. 7. HAAS, B. Das Theater von Dea Loher: Brecht und (k)ein Ende, 2006.

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final sem conclusões e interpretações inteiras e certificadas. Essa visão esfumaçada do espectador é mantida pelos recursos épicos de quebra. Loher prioriza um teatro formalmente construído, ao mesmo tempo em que aplica técnicas de desfoco baseadas no Unschärferelation (Princípio da Incerteza), teoria do físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976). A teoria de Heisenberg, rejeitada por vários cientistas, inclusive Einstein, ia contra os princípios imóveis da física newtoniana, sendo um princípio que diz quanto mais se busca a medida precisa de uma grandeza, mais imprecisa a mesma será já que o lugar e a velocidade da partícula não podem ser determinados ao mesmo tempo. Assim, no drama de Loher, não se pode apresentar e perceber a história no palco nitidamente ao mesmo tempo, por isso o desfoco, a opacidade. Segundo Brigitte Barilley6, atriz e diretora francesa responsável por uma das montagens de Inocência, Loher não se preocupa em nos dar uma solução, mas convoca seu público a despertar com pragmatismo, poesia e um humor negro, que pode até causar a sensação de vertigem. Bibliografia BARILLEY, B. Une fable cruelle et merveilleuse. Projet dirigé par Brigitte Barilley / Cie Les Travaux et Les Jours. Disponível em: . Acesso em: 04 jun. 2012. BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos; Lisboa: Edições 70, 1995. Tradução de Artur Morão. BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. Tradução: Plínio Dentzien. ______. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. Tradução: Mauro Gama e Claudia Martinelli Gama. ______. Magia e técnica, arte e política; ensaios sobre literatura e história da cultura. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras Escolhidas, 1). Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. BHABHA, H. The location of culture, Londres: Routledge, 1994. BORNHEIM, G. Brecht: a estética do teatro. São Paulo: Graal, 1992.

6

BARILLEY, B. Une fable cruelle et merveilleuse.

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ERA CONSTRUÇÃO, JÁ É RUÍNA? NACIONALIDADE, IDENTIDADE E OS IMPASSES DA MODERNIZAÇÃO NA LITERATURA BRASILEIRA Julio Cezar Bastoni da Silva (CAPES) Wilton José Marques Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr

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O tema desta pesquisa surgiu de uma intuição formal lançada à literatura brasileira. Na verdade, essa intuição perpassa grande parte da produção literária brasileira, sobretudo aquela vinculada ao projeto nacional. Entendido de maneira ampla, queremos dizer por projeto nacional o tipo de literatura comprometida com a formação ou intervenção nas questões nacionais, sobretudo relativas à edificação do país enquanto uma nação moderna, construindo e redefinindo identidades para a sociedade brasileira. Essa literatura, nos parece, possui uma espécie de dualidade formal, isto é, reproduz formalmente estruturas reconhecíveis na sociedade brasileira, vincada entre os aspectos ligados à modernização e os arraigados ao passado histórico, isto é, uma oscilação entre aspectos modernos e arcaicos, civilizados e bárbaros, assim entendidos dentro de uma concepção de desenvolvimento ligada à formação dos Estados-Nação modernos. A dualidade formal, ou forma dual, nesse sentido, constituem nossa hipótese central, a ser investigada como uma regularidade dentro do corpus definido para a pesquisa, a saber, um trajeto do romantismo – período central para a definição da nacionalidade, relacionado à construção do Estado nacional brasileiro – ao romance de 30. Deverão ser estudados, nesse sentido, romances que nos parecem centrais para a definição dessa especificidade formal: O guarani (1857), de José de Alencar; O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo; o romance cíclico inacabado de Oswald de Andrade, Marco Zero (1943-1945); e, por fim, Cacau (1933) e Suor (1934), de Jorge Amado. Esses romances nos parecem centrais por aliarem a preocupação com a formação da sociedade brasileira com as questões de identidade nacional, reportando, assim, um interesse por questões não resolvidas pelo processo histórico brasileiro. Como se percebe, este projeto tem por base as propostas lançadas por Antonio Candido na Formação da literatura brasileira, sobretudo o que o crítico define como literatura empenhada (2007, p. 19-20; 28-29). Esta literatura, vinculada ao projeto nacional, não se restringe às produções românticas: antes, grande parte da série literária brasileira possui um fio de ligação que une as diversas manifestações estéticas a uma preocupação constante com a edificação da nação brasileira, o que não se dá, evidentemente, de maneira una, ideologicamente ou formalmente falando. No entanto, certas regularidades persistem, e estas nos parecem relacionadas ao processo de desenvolvimento de uma nação que ainda não se deu por concluído, uma intuição, manifestada estruturalmente na produção literária, de que a comunidade nacional não 248

encontra seu termo de maneira adequada, no sentido de uma integração social que fica a meio passo. As questões de desigualdade, dualidade econômica e social, contrastes entre setores da sociedade brasileira, são evocados amiudadamente, talvez até atualmente, ainda que se afirme que, em nível de prioridade ou de visibilidade, “nos dias atuais [se] supõe o fim do paradigma moderno que atrelava o novo ao nacional, considerados fatores prioritários na definição do cânone literário do país (MIRANDA, 2011, p. 204). Concordamos em parte com esta colocação: a definição do caráter nacional não parece ter preeminência na literatura brasileira hoje; no entanto, a preocupação com o processo inacabado ou precário de formação da sociedade brasileira nos parecem ainda prementes. Romances como Leite derramado (2009), de Chico Buarque, Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato, e ainda os ligados ao movimento da literatura periférica, por exemplo, nos parecem formas de pensar a nação fora de seu substrato ideológico de caráter nacional como premissa, talvez, mas retomam uma forma de abordar a sociedade desigual que remonta ao processo de constituição da literatura brasileira. Essa incompletude de formação da nação brasileira nos sugeriu o título do trabalho, extraído principalmente da canção “Fora da ordem”, de Caetano Veloso. A dualidade entre construção e ruína é a imagem estética retirada pelo compositor brasileiro do livro Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, que, em determinada parte da obra, quando descreve suas impressões sobre a capital paulista, no caso a Praça da Sé, “a meio caminho entre o canteiro de obras e a ruína” (1996, p. 93). Para além da arte, contudo, a questão dos contrastes brasileiros tem longa história na tradição das ciências sociais e do ensaísmo brasileiro. Uma de suas obras principais, um híbrido entre a literatura e o pensamento social brasileiro, Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, relata os ambientes à parte da civilização propugnada pela jovem República brasileira, o contraste entre litoral e sertão, civilização e barbárie, retomando argumento utilizado pelo escritor e político argentino Domingo Faustino Sarmiento em Facundo, ou civilização e barbárie (1845). Entre as duas obras, além da semelhança estrutural – por exemplo, a disposição terra-homem-luta que norteia o livro, bem como o caráter híbrido entre texto literário e de reflexão social –, há a representação da dualidade na formação da sociedade dos dois países: a oposição civilização versus barbárie, a distância entre o aspecto progressista e o arcaico no processo social, representado de um

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lado pelo gaúcho e pelo sertanejo, em seus respectivos espaços, o pampa e o sertão, e as cidades ligadas à imagem de progresso e aos modelos europeus. Esse caráter híbrido das duas obras nos sugere não só que a preocupação com os rumos da sociedade em um país em formação é compartilhada pela produção intelectual, sem prioridade seja da forma estética ou da análise social, mas também que representações semelhantes podem realizar-se tanto na forma estética, artística, quanto na narrativa histórica. Se considerarmos, com Barthes, que o discurso histórico – da historiografia, e nela também poderíamos incluir as ciências sociais em geral – é “essencialmente elaboração ideológica” ou “imaginária”, no sentido de que o “(...) imaginário é uma linguagem pela qual o enunciante de um discurso (...) preenche o tema da enunciação (...)” (1972, p. 48, tradução nossa), isto significa que o “real”, para além da noção de fato histórico ou de verdade factual, permanece como “sentido”, revogável segundo as exigências históricas (BARTHES, 1972, p. 50). Nesse sentido, a abordagem da história e, no caso que vimos apontando, da representação da realidade dos contrastes brasileiros na literatura, bem como sua significação formal e sociológica, guarda em si uma fonte que poderíamos chamar de estética: esta não parece estar apenas nas artes, portanto, mas representa uma imagem de país construída – o que não quer dizer falsa –, que põe e repõe a questão dos problemas brasileiros em formulações representativas, que guardam um sentido social de grande interesse para a série de imagens construídas sobre a sociedade brasileira. Nossa pesquisa, portanto, realiza-se em uma interface com as ciências sociais e o ensaísmo brasileiros, não necessariamente apenas com base em uma comparação entre o que se neles se produziu que tenha relação com o tema em questão: a interface deve se relacionar de maneira mais ampla, notando uma presença estruturante, na representação da sociedade brasileira, de um dualismo formal que perpassa as obras, como andamento de análise ou como forma literária. Em Sentimento da dialética, Paulo Arantes (1992), a partir da crítica de Antonio Candido e Roberto Schwarz, analisa a experiência intelectual brasileira, marcada pelo “senso dos contrastes”, como Antonio Candido a chamaria (1995, p. 12). Paulo Arantes afirma que “o dualismo (...), antes de se tornar modelo econômico, tipologia sociológica ou chave de interpretação histórica, foi sobretudo uma experiência coletiva” (1992, p. 22). Essa experiência encontra-se, portanto, como expomos, não apenas no pensamento social, mas na própria “(...) experiência social de todos os dias”, e completa

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Arantes, “sobretudo quando filtrada pela forma estética (...)” (1992, p. 37). Nesse sentido, pensamos ser plenamente possível a passagem da representação social dual da sociedade brasileira para a representação propriamente estética que encontramos na literatura, sobretudo quando esta se vinculava a um projeto nacional. Não raramente, veremos que a literatura antecipa, e mesmo atina, com problemas e soluções de ordem sociológica que seriam trabalhados pelas ciências sociais muito posteriormente; neste sentido Octavio Ianni afirmou que “(...) a narrativa realiza uma espécie de desvendamento. Seja sociológica ou literária, ela ‘elucida’ o narrado, seja este real ou imaginado” (1999, p. 40). A pesquisa, até o momento, apresenta mais largamente reflexões relacionadas ao que foi exposto acima, sobretudo em seu primeiro capítulo. Nele, é realizada a discussão do ensaio “As ideias fora do lugar”, de Roberto Schwarz, publicado em Ao vencedor as batatas (2000a). Este ensaio, largamente discutido desde sua publicação, contém uma intuição interessante, embora diversa do sentido que lhe é comumente atribuído. As ditas ideias “fora do lugar” representam a prática do pensamento liberal no Brasil, um liberalismo que se permite conviver com a dominação rígida dirigida pelo Estado levado a reboque pela economia agrário-exportadora, em suma, uma ideologia liberal sem participação popular e sustentada pelo braço escravo. O complemento mais importante deste ensaio está na análise de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, empreendida em Um mestre na periferia do capitalismo (2000b). A análise formal deste romance empreendida por Schwarz nota a característica do progresso brasileiro, que mescla e reproduz as disparidades – visto do ângulo da ideologia liberal, as dualidades – presentes na sociedade brasileira: “(...) a concomitância regular dos traços moderno e colonial não representa atraso nem disparate, como fazem crer a análise e o sentimento liberais, as o resultado lógico e emblemático da feição que tomou o progresso no país” (2000b, p. 127). Assim, a percepção, a experiência social e a representação do dualismo se revelam como uma resultante de um tipo de progresso peculiar, local, embora semelhante a de outros países periféricos, que conjuga o desenvolvimento à reprodução dos traços de atraso. Contrariamente a Schwarz, contudo, adotamos a expressão “dualidade” ou “dualismo”, por nos parecer ser fértil retomar uma tradição longamente estabelecida nas ciências sociais e no ensaísmo brasileiro, ainda que esta expressão se refira, antes de tudo, à representação do processo na expressão literária, não na sua verdade analítico-científica, tal

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como seria o interesse de um estudo das ciências sociais. O ganho em adotar essa interface com o pensamento social brasileiro é, sobretudo, a possibilidade de estabelecer uma relação entre essas representações além de, como é óbvio, possibilitar a abordagem de uma intuição estética recorrente na literatura nacional. A pesquisa também propõe uma discussão de importantes textos para a compreensão do projeto nacional em literatura. Assim, já trabalhamos largamente na análise da crítica romântica e naturalista no século XIX, centrada sobretudo em Ferdinand Denis, Gonçalves de Magalhães, Araripe Júnior, Sílvio Romero e José Veríssimo, dando ênfase aos chamados “impasses da modernização” da sociedade brasileira e às preocupações da literatura com este problema. A crítica romântica e a naturalista representaram, respectivamente, o período de formação do Estado nacional brasileiro pós-independência, no qual já não faltavam os incômodos, mais tarde recorrentes, da disparidade entre a norma da civilização burguesa dos países centrais e a prática local, e a crítica mais direta à formação social brasileira e suas implicações literárias, aspectos trabalhados com maior ou menor acuidade, embora sempre significativos da situação social da época. Esta análise da crítica oitocentista se complementa com a leitura realizada do romance O guarani, que lança mão deste importante romance definidor de nossa simbologia nacional como uma espécie de alegoria de nosso desenvolvimento histórico. A dualidade presente na narrativa – entre raças, entre civilização e barbárie – parece apontar para a idéia de uma nação mestiça, escondendo, porém, insuspeitadas arestas formais que indicam uma submissão não apenas dos elementos locais ao estrangeiro – do indígena Peri ao português D. Antonio de Mariz –, mas a um projeto que, socialmente, significa uma tendência permanente à dependência, isto é, a articulação de um projeto de nação, a reboque dos centros dinâmicos do capital e da civilização ocidental, no qual os traços distintivos locais – que oscilam entre uma valorização e uma tácita inferiorização – significariam um aspecto a ser superado, ao mesmo tempo que manifestação de orgulho identitário; trata-se, em suma, da articulação entre o esquema dual e a representação ideológica da identidade nacional. Por fim, a pesquisa inicia agora a análise do romance O cortiço, sobre o qual retoma a sugestão de Antonio Candido, que identifica como um princípio formal do texto o que ele chama de dialética do “espontâneo e do dirigido” (1993, p. 135-136). Esta significa a passagem de um processo de acumulação precário e semibárbaro para a acumulação com

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base em uma racionalidade capitalista, tendo como foco a ascensão social de João Romão esteada na exploração da camada miserável que habita o cortiço de sua propriedade. Nossa análise, ainda em formulação, retoma inicialmente os pontos sugeridos por Candido para embasar a leitura do romance sob a ótica de uma forma dual, uma representação alegórica do país que a percebe enquanto uma civilização vincada pela distância entre as classes, percebidas, à maneira do tempo, como uma cisão entre raças. A pesquisa, portanto, ainda em curso, se esforça em definir essa peculiaridade e recorrência da forma de representação do país, jogando luz sobre estes aspectos, sejam na literatura, sejam no pensamento social brasileiro. Bibliografia ARANTES, P. E. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. BARTHES, R. El discurso de la história. In: BARTHES, R. et alli. Estructuralismo y literatura. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1972. CANDIDO, A. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. ______. O significado de ‘Raízes do Brasil’. In: HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 9-21. ______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 11. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. IANNI, O. Sociologia e literatura. In: SEGATTO, J. A.; BALDAN, U. Sociedade e literatura no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 1999. LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. MIRANDA, W. M. Ficção brasileira 2.0. In: BOTELHO, A; SCHWARCZ, L. M. Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 202-213. SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas. 5. ed. São Paulo: Duas cidades; Editora 34, 2000. ______. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000b.

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ASPECTOS IMPRESSIONISTAS EM BEL-AMI DE GUY DE MAUPASSANT Kedrini Domingos dos Santos (CAPES) Guacira Marcondes Machado Leite Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP/FCLAr A proposta desta pesquisa de Mestrado é desenvolver uma comparação entre o romance do escritor francês Guy de Maupassant (1850-1893), Bel-Ami, e a expressão artística impressionista. Ela partiu do desejo de propor um novo olhar sobre o romance, publicado inicialmente em folhetim em 1885. A partir de seu estudo, do fazer artístico do escritor e da estética impressionista, percebemos que o artista, assim como o individuo, constrói-se a partir de sua relação com o outro e essa relação se afigura de diferentes maneiras, quer seja por identificação, quer seja por oposição e as referências adquiridas (intencionalmente ou não) ao longo da vida marcam profundamente um individuo, seja ele artista ou não. Até o presente momento, constatamos que Maupassant, conhecido também por ter sido discípulo de Flaubert, surge em uma época em que o romance se destaca dentre as formas artísticas. Surgindo em um universo que já conhece Victor Hugo, Balzac, Flaubert e Zola, para não citarmos outros igualmente importantes, como Rousseau e Nerval, Maupassant compreende a inelutabilidade da influência, tendo em vista que tudo já foi dito e, por isso, o escritor acreditava que o grande artista, o gênio é, justamente, aquele que consegue, a partir das referências existentes, criar o seu estilo pessoal, segundo seu próprio temperamento. Assim, Maupassant desenvolverá uma arte que, embora apresente aspectos que permitem associá-lo às escolas Realista e Naturalista, possui aquilo que ele mesmo reclama para o artista: temperamento e estilo. Os pintores que integraram o movimento artístico conhecido como Impressionismo também são um exemplo dessa questão. Enquanto jovens pintores, esses artistas tiveram contato com grandes mestres da pintura de seu tempo, como Delacroix e Ingres; conviveram, também, com artistas que buscavam desenvolver uma arte pessoal, como os pintores de Barbizon; uma arte realista, como Courbet, ou uma arte que captasse o momento, como Jonking. Mas, também conheceram, uns mais do que outros, a cultura clássica e a arte que os precedeu, principalmente as pinturas expostas no museu do Louvre. 254

Diante de tantas e grandes influências, os artistas impressionistas tiveram a coragem de buscar seu próprio caminho, o que gerou para eles, à época, grandes infortúnios e decepções, mas que possibilitou o desenvolvimento de obras que possuem grande relevo na história da arte. Ao buscarem uma arte pessoal, esses artistas, assim como Maupassant, precisaram fazer escolhas, dentro do leque de possibilidades artísticas existentes, mas, mais do que seguir uma orientação definida, com princípios estéticos já determinados, tanto os pintores como o escritor souberam desenvolver uma arte pessoal, uma arte que, embora apresente aspectos datados, pode ser compreendida como arte universal. Essa questão da construção individual marca o romance Bel-ami, na medida em que o personagem Georges Duroy, buscando afirmar-se na sociedade parisiense, construirá sua personalidade a partir de sua relação com os outros personagens. Percebemos que, para que isso ocorra, é fundamental a presença do olhar, através do qual os personagens são percebidos, analisados, julgados e, por sua vez, repreendidos ou aprovados. O olhar também tem grande importância dentro da estética impressionista, já que é por meio dele, juntamente com a sensação do observador, que o objeto é percebido. Esses pintores queriam representar em suas telas a realidade tal como a percebiam e, para eles, os objetos reais não podiam ser definidos a priori, como possuidores de características já prédeterminadas, mas se definiam a partir de sua relação com os outros objetos com os quais interagiam, mesmo que estáticos. Desse modo, os pintores, em geral, não se preocupavam com o contorno definido do objeto, seu desenho, pois acreditavam que as cores o evidenciariam. Nessa perspectiva, o objeto, para eles, não possui apenas a cor - e a característica - que comumente lhe é atribuída, como o vermelho para uma maça, mas, tendo em vista que os objetos mudam de aspecto conforme o momento, dependendo de condições externas a ele, como a luminosidade e o ponto de vista, os impressionistas priorizaram, ao compor os objetos em suas telas, as nuanças das cores, cuja combinação criará a atmosfera tão cara a esses artistas. Como o objeto não pode ser definido a priori, mas apresenta-se, ao contrário, distinto a cada momento, sendo definido, antes, não pelo que é, mas por elementos externos a ele, ou seja, o que ele não é, então, a indefinição constitui, fundamentalmente, esse objeto e, embora ele assuma um aspecto a partir de sua

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relação com os outros objetos, não poderá ser definido, mesmo que o observador da pintura componha o todo ali exposto com o distanciamento necessário para visualizar a obra. Acreditamos que esses aspectos da arte impressionista podem ser pensados, também, no romance Bel-ami de Guy de Maupassant, principalmente no que tange ao olhar, ao movimento, às imprecisões, à relação com os outros e à presença de cores e, embora se trate de linguagens artísticas diferentes, tais princípios norteadores da estética impressionista possibilitam-nos perceber o romance com um outro olhar. Assim, embora ele apresente características que tornam possível vê-lo pelo viés realista/naturalista, como é comumente assumido, acreditamos que se constitui, antes de tudo, como a expressão artística de um grande temperamento, cujo estilo permite-nos revisitar constantemente sua obra, sem, no entanto, esgotar as leituras e as relações possíveis, já que, tanto para Maupassant, quanto para os impressionistas, as coisas mudam (assim como nós mesmos), conforme o momento e o lugar de observação. Bibliografia BAYARD, P. Maupassant, juste avant Freud. Paris: Les Éditions de Minuit, 1994. DUMESNIL, R. Guy de Maupassant. Paris: Librairie Jules Tallandier, 1979. GONÇALVES, A. J. Laokoon revisitado: relações homológicas entre texto e imagem. São Paulo: EdUSP, 1994. HERVOT, B. Tagarelice espirituosa: as cartas de Maupassant. São Paulo: EdUNESP, 2010. ______. O olhar em Bel-Ami. Revista de Letras, São Paulo, v. 35, p.129-148, 1995. MALRIEU, J. Bel-Ami de Guy de Maupassant. Paris: Gallimard, 2002. MAUPASSANT, G. de. Bel-ami. Paris: Gallimard, 2007. ______. Le roman (1888). Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2012. ______. La vie d’un paysagiste. Gil Blas, 28 sept. 1886. Disponível em: Acesso em: . Acesso em: 28 nov. 2011.

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DA LITERATURA AO CINEMA: A CONSTITUIÇÃO DO PERSONAGEM E DO FOCO NARRATIVO DE “A QUEDA DA CASA DE USHER”, DE EDGAR ALLAN POE, NA ADAPTAÇÃO FÍLMICA Laura Lopes de Oliveira Fabiane Renata Borsato Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O exame mais minucioso do corpus da pesquisa favoreceu a utilização da teoria da narrativa de Gérard Genette para a análise da focalização e, por meio desta, da construção do espaço tanto no conto “The fall of the house of Usher”(1839), de Edgar Allan Poe, como na adaptação fílmica “La chute de la Maison Usher” (1928), de Jean Epstein, pois é fortemente mostrado em ambas as obras. Dessa forma, o espaço também passa a ser considerado no trabalho, e terá entre as bases teóricas específicas a abordagem de José Luiz Fiorin na obra “As astúcias da enunciação” (2001). No tocante ao corpus, houve a exclusão de um filme que constava no projeto inicial, a saber, “O mistério da casa dos Usher” (2006), dirigido por Hayley Cloake, pois constatamos que o filme “La chute de la Maison Usher”, dirigido por Epstein, poderá trazer resultados mais profícuos ao estudo das linguagens fílmica e literária enquanto artes. Literatura e Cinema

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A adaptação fílmica pode ser considerada um ato criativo que transforma, de alguma forma, alguns elementos do texto literário – como a descrição, a ordem dos eventos, a narração etc – em equivalentes do cinema: o close-up, a edição, o plano de câmera etc. Podemos considerar que essas transformações conectam a teoria do cinema à da narrativa, pois no plano narratológico a configuração do enredo fílmico é similar à do enredo textual. Sobre essa questão, Jacques Aumont, na obra A estética do filme (1995), afirma que “Por definição, o narrativo é extra-cinematográfico, pois se refere tanto ao teatro, ao romance quanto simplesmente à conversa cotidiana [...]” (AUMONT, 1995, p. 96). Mas, conquanto os procedimentos de narração tenham surgido antes do advento do cinema, o teórico ainda sustenta que “Esses sistemas de narração operam com outros nos filmes [...]” (AUMONT, 1995, p. 96). A partir dessa relação e atentando para a questão do modo como se arquiteta um relato, pretendemos fazer uma análise do conto “The fall of the house of Usher”, de Poe (cuja tradução de José Paulo Paes, em 1958, é “A queda da casa de Usher”), e de sua adaptação fílmica, “La chute de la Maison Usher”, de Epstein, verificando os tipos de transformações narratológicas que essa adaptação produz e a construção do espaço em ambos os meios. Narrador e Espaço No conto “The fall of the house of Usher” o relato do narrador é uma característica que se destaca, pois este se apresenta no enredo como testemunha e amigo de Roderick Usher, sem revelar seu nome próprio. Esse personagem recebe um convite de Roderick para passar alguns dias em sua casa. O motivo da permanência é o pedido de Usher pela presença do narrador, seu amigo, a quem diz sofrer de um mal físico e de uma perturbação mental, agravados pela suposta morte da irmã gêmea, Lady Madeline. De acordo com as descrições dessa testemunha, o espaço é triste e sombrio. Nos primeiros dias em que permanece por lá, o narrador nos revela as excentricidades da doença de seu amigo de infância, como a intolerância a certos sons e a sensibilidade extrema do paladar, e o aparente falecimento de Madeline, cujo corpo é colocado em um caixão localizado na parte subterrânea da casa. Com o passar dos dias, o estado de saúde mental de Roderick se agrava ao mesmo tempo em que o narrador tem a impressão de que fatos

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estranhos acontecem naquele lugar. Essa sensação aumenta quando o dono da residência declara ao visitante que Madeline foi enterrada viva e permanece em pé, atrás da porta, como se voltasse dos mortos. Nesse momento, Madeline entra no aposento onde estão os outros personagens e desfalece sobre seu irmão. Percebendo que os dois corpos caídos estão sem vida, o narrador, assustado, foge da residência, até que esta desmorona e desaparece no fundo do pântano. No decorrer dessa diegese, tomamos conhecimento dos eventos por meio da percepção desse narrador, já que este expõe suas impressões acerca da aparência moribunda de Roderick, da doença de Madeline: “Um rosto de cor cadavérica” (POE, 1958, p. 149), “O mal de lady Madeline desafiara por muito tempo a habilidade dos médicos.” (POE, 1958, p. 151), do caráter sombrio do cenário, entre outros aspectos. Percebe-se, então, que o espaço é construído, predominantemente, a partir da focalização do homodiegético, o qual sugere que a descrição da residência de Roderick seja “melancólica Casa de Usher” (POE, 1958, p. 145). Isso seria mais pelo fato de o narrador ser o detentor de um sentimento que o faz enxergar o objeto dessa maneira do que pelo aspecto “real” da casa, que poderia ser outro. Dessa forma, esse personagem teria organizado o discurso para evidenciar suas impressões, como acontece quando este compara as janelas da casa a dois olhos possivelmente humanos: Olhei para a cena que se abria diante de mim – para a casa simples e para a simples paisagem do domínio – para as paredes frias – para as janelas paradas como olhos vidrados – para algumas moitas de junças – e para uns troncos alvacentos de árvores mortas – com uma enorme depressão mental [...]. (POE, 1958, p. 145)

O que indicaria o aspecto particular do relato, isto é, a aparência das janelas é descrita de acordo com a percepção do amigo de Roderick, que desde o início insere as próprias divagações e sentimentos nas descrições. Na narrativa cinematográfica, diferentemente, o amigo de Roderick Usher não ocupa lugar decisivo no enredo. Essa distinção é visível em razão da predominância da focalização da câmera a captar o personagem Usher, a casa e a natureza que circunda o local, dividindo o ponto de vista com o amigo de Usher. Na cena final (considerada a partir do tempo 1:02:17) os três personagens – Roderick, Madeline (aqui, esposa de Usher) e o amigo – tentam abandonar o solar que começa a desmoronar. Durante a fuga, Roderick

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parece arrastar Madeline para fora do lugar, uma vez que esta, como no conto, havia ressurgido de um estado que a deixou aparentemente morta. Juntos e já na parte externa, o casal e o amigo lutam contra as rajadas violentas, ao mesmo tempo que observam a destruição da casa. Há nessa sequência a presença constante de uma fumaça como índice de um incêndio provocado pela queda de um raio, misturada à neblina que envolve o ambiente. Tomando como exemplo a cena final, no primeiro fragmento o plano geral expõe a casa e o que a cerca: árvores mortas, galhos secos, a nevoa e as sombras que a envolvem; em seguida, temos a escadaria imponente e suas correntes grossas em plano médio, sugerindo o domínio do local sobre as ações dos personagens. Os elementos que compõem esse cenário contribuem para a formação do aspecto lúgubre do longa, e reitera que o espaço muitas vezes torna-se um personagem na trama. As tomadas internas e externas começam a se interpor, isto é, em um momento vemos o solar sendo destruído por dentro, em outro, por fora: o plano médio mostra a escadaria pegando fogo; em primeiro plano, vemos alguns galhos de árvores mortas e a fumaça/neblina que começa a impedir a visão plena do espaço; Roderick e Madeline, em plano de conjunto, tentam, com dificuldade, abandonar o local. Nota-se que não é possível distinguir as expressões do casal, fator que evidencia o espaço e a ação da natureza em detrimento dos personagens. Ademais, a imagem externa da casa, em plano de conjunto, acentua a relevância do solar de Usher no enredo. Tem-se, dessa maneira, um plano secundário para os personagens. Pode-se dizer, também, que o solar ganha o protagonismo nessa cena, pois os personagens se misturam ao espaço: Madeline está vestida de branco e Usher, seu marido, em uma considerável parte da sequência, está com uma blusa branca. Dessa forma, o branco das roupas é similar ao da fumaça/neblina, camuflando-os no cenário e colocando-os em igual situação de destruição, isto é, cai o solar, cai, metaforicamente, o casal. Vê-se que alguns recursos técnicos utilizados por Epstein também são estilísticos, o que o coloca na vanguarda do impressionismo francês. Como exemplo, tem-se em plano médio e no canto direito da tela os três personagens que descem a escadaria. Por meio dessa ação, começam a se aproximar da câmera, entretanto, se confundem na fumaça branca antes que o espectador possa perceber suas expressões. Há então um corte para mostrar

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novamente, e em primeiro plano, o quadro tomado pelo fogo. Através desses planos, podese dizer que os componentes visuais, como os objetos e o cenário, se sobrepõem aos personagens e suas ações: a fumaça não apenas esconde os personagens, mas os iguala aos componentes visuais por meio de uma camuflagem, dando a impressão de que estes, como o solar, começam a ruir. Pode-se dizer que essa impressão surge em razão da montagem, visto que a fumaça, se exposta isoladamente, não comporia um sentido, mas, quando vemos os personagens encobertos por essa fumaça, dá-se inicio à revelação de um sentido, pois a junção desses dois detalhes gera um resultado, um produto. Sobre a montagem, Eisenstein diz: [...] cada fragmento de montagem já não existe mais como algo nãorelacionado, mas como uma dada representação particular do tema geral, que penetra igualmente todos os fotogramas. A justaposição desses detalhes parciais em uma dada estrutura de montagem cria e faz surgir aquela qualidade geral em que cada detalhe teve participação e que reúne todos os detalhes num todo, isto é, naquela imagem generalizada, mediante a qual o autor, seguido pelo espectador, apreende o tema.

(EISENSTEIN, 2002, p. 18) Nesse sentido, as imagens desse modo de fazer cinema contam mais que as palavras: os intertítulos são raros, mas o que se destaca é o significado do componente visual e a exteriorização dos sentimentos por meio de recursos cinematográficos, como o retardamento do movimento (slow motion) utilizado para demonstrar o sofrimento no momento em que Usher e Madeline tentam se afastar da destruição. Nos fragmentos finais reconhecemos mais os personagens, e embora haja uma identificação, os componentes do espaço interferem no reconhecimento pleno dos personagens, pois estes se mesclam com a fumaça/neblina, com os móveis, com as árvores. Ademais, há o trabalho de iluminação: a obscuridade prevalece por meio de um jogo de luz que coloca as figuras na contraluz e sempre com um nevoeiro as torna menos importantes que o espaço, o qual ganha maior relevância, afinal, é tema da obra a queda da casa de Usher. Nesse filme, os efeitos de imagem e o enquadramento, em maior grau que os personagens, são elementos fundamentais para gerar a impressão de angústia e o aspecto obscuro. O contrário se vê no conto, em que o narrador imprime essa dramaticidade por meio das próprias impressões.

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Bibliografia AUMONT, J. et al. A estét ica do f ilme. 3a.ed. Trad. Mar ina App enzeller. Camp inas: Pap ir us, 1995. DIMAS, A. Espaço e ro mance. São Pau lo : Át ica, 1994. EISENSTEIN, S. A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. ______. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. GENETTE, G. Discurso da Narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, [19]. ______. Figuras. Trad. Ivonne Floripes Mantoanelli. São Paulo: Perspectiva, 1972. LA CHUTE de la maison Usher. Direção: Jean Epstein. França: Films J. Epstein, 1928. 1 DVD (66 min), son., color. LEITE, S. U. Crítica de ouvido. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves ; revisão técnica Sheila Schvartzman. São Paulo: Brasiliense, 2003. POE, E. A. Histórias extraordinárias. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1958. STAM, R. Introdução à teoria do cinema. Trad. Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2010. VANOYE, F.; GOLIOT-LÉTÉ, A. Ensaio sob re a nálise f ílmica. Trad. Mar ina Ap penzeller. Camp inas: Pap iru s, 1994. XAVIER, I. A experiência do cinema. Rio de Janeiro : Graal, 1983.

UMA POÉTICA SOBRE NADA: O NIILISMO EM AUGUSTO DOS ANJOS Leonardo Vicente Vivaldo (CNPq) Antônio Donizeti Pires Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O atual projeto de mestrado vem dando continuidade à iniciação científica e monografia final de conclusão de curso que o mestrando Leonardo Vicente Vivaldo iniciou

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durante a graduação sobre a supervisão do mesmo orientador – o Prof. Dr. Antônio Donizeti Pires. A proposta da pesquisa que vem sendo feita parte da considerável recorrência do termo “niilismo”, ou mesmo da sua contraparte semântica, o “Nada”, pelos mais variados estudos críticos do poeta paraibano – especialmente quando esses buscaram definir, ou adjetivar, de alguma forma, a poesia de Augusto dos Anjos. Desta maneira, a ideia básica do trabalho proposto consiste na busca de subsídios (teóricos – através da bibliografia consultada; práticos – através de análises) que possibilitem uma melhor apreciação crítica/temática do que viria a ser, realmente, o “niilismo” por dentro do amplo universo poético de Augusto dos Anjos. Sendo assim, e de modo geral, tal repetição do termo niilismo nos vem fazendo crer numa

pista

que,

aparentemente,

poderia

denunciar

uma

nova

cosmovisão

“organizada/sistemática” da poética de Augusto dos Anjos – algo que nada teria haver, necessariamente, com “intenção consciente”, mas, sim, com o resultado de manifestações outras, apesar de, obviamente, não descartar a anterior, e que perscrutariam de maneira mais “sintomática” do que “performática” no poeta/homem sensível ao seu tempo – aquele que é a “Antena da Raça” (nos dizeres do poeta-crítico Ezra Pound). Deste modo, vem parecendo necessário (re)definir e/ou enquadrar, primeiramente, o niilismo dessa crítica sobre Augusto dos Anjos antes de confrontá-lo com a poesia do mesmo – assim como, posteriormente, as próprias problematizações que o niilismo sofreu, e sofre, dentro da história e da crítica filosófica. Entretanto, o que, num primeiro momento, pode ser visto como uma aproximação entre abordagens e críticas diversas, também acabou servindo como afastamento, pois o termo niilismo parece sofrer, em cada crítico, de certa pluralização, ou banalização?, pois muitas vezes ele [o niilismo] é utilizado de forma pejorativa e, na maioria dos casos, como sinônimo de pessimismo (além de, como já fora dito, (con)fundido com a categoria filosófica do Nada). Sendo assim, brevemente, algumas das questões básicas deste trabalho está consistindo em pensar o que seria, mais precisamente, o niilismo? Ou melhor: qual seria esse niilismo que se aproximaria, de uma forma ou de outra, da poética de Augusto dos Anjos?

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Para as respostas de tais indagações está sendo seguido o percurso histórico do termo [niilismo] indicado pelo filósofo Italiano Franco Volpi no livro O niilismo: que dá atenção ao surgimento do termo desde suas manifestações primitivas, na Grécia antiga passando pela Idade Média, até sua popularização no século XVIII – sobretudo na sociedade russa, com os romancistas Ivan Turguêniev e Fiódor Dostoievski. Contudo, embora o termo, ao menos em suas aspirações filosóficas, surja também nas “controvérsias que marcaram o nascimento do idealismo alemão, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX” (VOLPI, 1999, p.7), e que talvez exista uma história provavelmente muito mais antiga se levarmos em consideração algumas exposições acerca do Nada, é impossível não chegarmos ao nome do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844–1900) que surge de maneira quase que natural como o referencial teórico para compreensão do niilismo, pois, novamente, segundo Volpi, Nietzsche seria o “maior profeta do niilismo” (VOLPI, 1999, p. 102). É essa primeira concepção moderna de niilismo, que começa a desenvolver-se no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, principalmente, depois das teorizações de Nietzsche, que vem interessando para este trabalho: a ideia de que o homem contemporâneo estaria vivendo em um período de constante decadência e de crise de valores (sobretudo metafísico e moral) e onde o niilismo seria, portanto, um mediador entre conceitos ultrapassados e modernos: um estado intermediário que exporia a fratura entre uma velha e uma nova visão de mundo – refletida posteriormente no “niilismo passivo” e no “niilismo ativo” teorizados por Nietzsche. O primeiro niilismo, o niilismo passivo, que Nietzsche via em Arthur Schopenhauer, seria a primeira luta contra a decadência da realidade. Entretanto, persistiria uma ação para se preencher o vazio decorrente da “morte de Deus” e das categorias que regiam nossa realidade – em seu lugar, o homem passaria a crer no progresso, na razão moral, na democracia, na ciência, etc. –, pois sentiria uma necessidade incontrolável de entrega. Contudo, depois de abolidos os pilares que sustentariam essa realidade, não seria mais possível parar o processo. Quando o homem tomasse conta de que nenhum desses “novos deuses” possuiriam a salvação, só existiria uma direção a seguir: o Nada. Já no niilismo completo, ou niilismo ativo, por outro lado, o homem alcançaria uma nova consciência: sobre si próprio e sobre a “morte de Deus”. O niilismo ativo não

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almejaria mais mascarar, através de ideais e ficções, a vontade de Nada – aceitaria essa condição, mas, nem por isso, iria se prender em outros ideais (mas buscaria recriá-los, incessantemente). Estaria ligado, intimamente, à criação (em seu sentido mais amplo). Não seria apenas o mundo supra-sensível que seria abolido, mas também a oposição entre ambos. É difícil, ao menos por ora, esquematizar a poesia de Augusto dos Anjos em um ou outro niilismo – e senão nos dois. Mas é impossível não sentirmos a força de tais problematizações emanando de sua poesia (vide, por exemplo, a sua problemática classificação em nossas letras). Além do mais, afora toda a citação de biólogos, pensadores, literatos e outros filósofos, é justamente para “Frederico” Nietzsche que Augusto dos Anjos dedica um soneto (ANJOS, 1995, p.468) – o que denunciaria o conhecimento, e admiração, do filósofo alemão por parte do poeta paraibano (e é importante notarmos que, neste caso, a proximidade cronológica entre Nietzsche e Augusto dos Anjos talvez reforce a ideia de que ambos sentiram, cada qual ao seu modo, os sintomas do niilismo que emanava do final do século XIX): SONETO A Frederico Nietzsche Para que nesta vida o espírito esfalfaste Em vãs meditações, homem meditabundo?! – Escalpelaste todo o cadáver do mundo E, por fim, nada achaste... e, por fim, nada achaste!... A loucura destruiu tudo que arquitetaste E a Alemanha tremeu ao teu gemido fundo!... De que te serviu, pois, estudares, profundo, O homem e a lesma e a rocha e a pedra e o carvalho e a haste?! Pois, para penetrar o mistério das lousas, Foi-te mister sondar a substância das cousas – Construíste de ilusões um mundo diferente, Desconheceste Deus no vidro do astrolábio E quando a Ciência vã te proclamava sábio, A tua construção quebrou-se de repente! (ANJOS, 1995, p.468)

265

Misterioso (e problemático) soneto! Augusto ter reconhecido em versos o “profeta maior” do niilismo, “Frederico” Nietzsche, ao mesmo tempo em que colabora para reforçar a tese aqui defendida, imputa também um problema: pode-se correr o risco de “forçar” coincidências entre seus pensamentos e acabar “arrancando” desse soneto mais do que a figura ou a filosofia de Nietzsche possa ter chegado a Augusto – além de uma “arte poética” que, se o niilismo permeia mesmo a obra de Augusto dos Anjos, este soneto poderia bem ser a sua “pedra filosofal”. Não é, evidentemente, o caso: é um soneto do começo da produção de Augusto e que nem mesmo fez parte da primeira edição do “Eu” (organizada pelo próprio poeta – e que posteriormente acabou a cargo do crítico e amigo Óris Soares). A importância deste soneto faz-se na medida em que demonstra o conhecimento, por parte de Augusto dos Anjos, da filosofia de Nietzsche, ainda que não se possa supor até que ponto foi tal conhecimento, e, sobretudo, pela suposição que deixa transparecer da figura que Augusto fez de Nietzsche como aquele que “– Escalpelaste todo o cadáver do mundo/ E, por fim, nada achaste... e, por fim, nada achaste!...” (ANJOS 1995, p.468), pois reafirmar a postura demolidora (niilista) do filósofo alemão e de sua filosofia que encontrou e soube lidar com o “nada” sem, contudo, ter descoberto “Deus no vidro do astrolábio” (ANJOS, 1995, p.468) – assim como Augusto (?). Esse declínio do espírito, e impossibilidades do conhecimento, inclusive, ou, sobretudo, metafísico, é o que parece reverberar da filosofia do niilismo e na crítica sobre Augusto dos Anjos – e que tentaremos endossar com esta pesquisa. A primeira crítica de Augusto dos Anjos – a crítica dita, posteriormente, “impressionista”: onde obra e homem se misturam (para justificar a poesia ou justificar a vida). Apesar desta visão questionável, é importante ressaltar que tal crítica foi de suma importância para a manutenção do interesse sobre a poesia de Augusto dos Anjos, assim como a indicação de pontos fundamentais de sua poética – como o “pessimismo cósmico” (Órris Soares); o “niilismo moral” (Agripino Grieco), etc. Em seguida, numa breve análise de textos de críticos consagrados como Alfredo Bosi, vemos desfilar de maneira mais organiza todas as características principais do poeta ou, como é o caso do texto “A costela de prata de Augusto dos Anjos” 1, de Anatol Rosenfeld, se focar em aspectos estilísticos, mas também filosóficos – no caso do Nirvana e

1

ROSENFELD, Anatol. A costela de prata de A. dos Anjos. In: Augusto dos Anjos – Obra Completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1996, p. 186-190.

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do Budismo –, além de outros críticos como José Escobar Faria e Eudes Barros. Aprofundam-se, aqui, nessa crítica mais “madura”, as questões próprias da poesia (e não da vida do poeta) fazendo salientar a importância de Augusto dos Anjos dentro de nossas Letras – pela qualidade e não apenas singularidade. Também vale destacar aqui os seguintes livros (que muito estão contribuindo para o adensamento da tese): A CosmoAgonia de Augusto dos Anjos, da professora Lucia Helena; O Evangelho da podridão, do professor Chico Viana; e A melancolia da Criatividade na Poesia de Augusto dos Anjos de Sandra S. Fernandes Erickson. Por fim, outra voz que caminha junto com a da crítica de poesia sobre Augusto dos Anjos, é a dos próprios poetas: como o breve comentário de Manuel Bandeira sobre o poeta paraibano; o lúcido prefácio que Alexei Bueno realiza na edição crítica da obra completa de Augusto dos Anjos (edição esta que, inclusive, serviu de referência para os principais textos teóricos); o profundo artigo “Morte e Vida Nordestina” 2 de Ferreira Gullar (que ressalta a ligação com o nordeste e a possível divisão da poesia de Augusto dos Anjos em três fases), além de dos textos de José Paulo Paes que fazem aproximar a estética do poeta paraibano com o Art Nouveau – pouca estudada manifestação artística que teria tido certo Nietzsche como a de suas inspirações (fechando-se, quem sabe, um ciclo: Niilismo – Nietzsche – Art Nouveau – Augusto dos Anjos – Niilismo, etc.). Portanto, o trabalho de pesquisa se desdobrou em três frentes: a compreensão do que seria o fenômeno do niilismo, partindo de suas ambiguidades com o Nada e mais ainda: as diversas visões de niilismo por entre pensadores e épocas diversas – até chegar-se, finalmente, a Nietzsche; o estudo do poeta Augusto dos Anjos, visando gotejar por dentre os mais variados pontos de vista da crítica o que seria, até agora, caracterizado como niilismo em sua poesia; Por fim, através das análises da poesia de Augusto dos Anjos, buscar-se confrontar a visão histórico-filosófica (primeira parte) com a visão críticaliterária do niilismo (segunda parte): abstraindo do choque dessas visões, e das análises da poesia propriamente dita, uma percepção mais geral do que poderia ser, realmente, o niilismo em Augusto dos Anjos. Bibliografia 2

GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina. In: ANJOS, A. Toda a poesia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

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CINEMA HOLLYWOODIANO E CULTURA DE MASSA CONTEMPORÂNEOS – ESTUDO SEMIÓTICO DO SEU ESPECTADOR E DE SUAS EXPECTATIVAS Levi Henrique Merenciano

(CAPES) Renata M. F. C. Marchezan Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa – UNESP / FCLAr RESUMO Os filmes hollywoodianos são um fenômeno de bilheteria. Mesmo o sendo, parece haver pouco interesse pelo estudo de sua organização discursiva e pela descrição das estratégias que os tornam objetos de significação tão procurados. Para tanto, propõe-se descrever os elementos semióticos desses textos sincréticos (seu conteúdo e sua expressão), a fim de lançar hipóteses sobre a estrutura fílmica e a construção de seu espectador. Pretende-se examinar os filmes mais consumidos na última década (Box Office Mojo: www.boxofficemojo.com). Inicialmente, serão analisados os três filmes de maior bilheteria, entre 2001 e 2010: Avatar (2009), Batman: o Cavaleiro das Trevas (2008) e Shrek 2 (2004). Introdução 1. A pesquisa de graduação. Durante a graduação e o mestrado, pesquisei a relação dos livros mais vendidos com o leitor brasileiro contemporâneo. Ao examinar os mais vendidos nas últimas décadas (relacionados nos rankings da revista), desenvolvi hipóteses sobre os motivos que levaram o leitor – projetado no discurso – a se identificar com esses textos de massa. Nesse projeto de I. C., examinei a organização discursiva dos livros mais vendidos nesse período, nas listas "ficção", de Veja. A partir dos rankings, organizei um corpus que pôde dar uma visão global dos livros mais vendidos nas últimas décadas no Brasil. Observei que o conteúdo dos mais vendidos refletiam as escolhas do leitor, pois alguns livros relacionavam-se aos fatos históricos de então ou dialogavam com tendências de comportamento da época em que foram escritos. Nesse caso, sugeri um perfil de leitor para os anos 70 e outro, para a década seguinte. De acordo com a recorrência das narrativas, os mais vendidos em exame tendiam a ser cada vez mais intimistas, sobretudo

270

no final dos anos 80. Com isso, refletiam a escolha dos leitores e, desse modo, a busca social pela literatura que envolvia assuntos de realização pessoal e dicas práticas para o dia a dia. Assim, o tipo de livro mais consumido nas duas últimas décadas do século XX no Brasil (tendência que segue até hoje), segundo as listas de Veja, foi o da categoria autoajuda. 2. A pesquisa de Mestrado. Segundo os resultados obtidos com a pesquisa da graduação, estudei no Mestrado os livros de autoajuda mais consumidos a partir dos anos 90. Nesse trabalho, formulei hipóteses para explicar como a sua organização discursiva agradava o leitor e, dessa maneira, também dizer como poderia ser construída no interior da autoajuda uma imagem do leitor-enunciatário. Em resumo, a autoajuda constrói a imagem de um leitor carente, que, a partir da relação de fidúcia com o destinador do texto, deve construir a própria competência (obtendo autoconhecimento), a fim de conseguir o bem-estar físico e mental (MERENCIANO, 2009a). O exame final da organização narrativa e discursiva dos mais vendidos levou-me a indicar os componentes semióticos recorrentes na maioria dos livros examinados. Isso ajudou a entender a sua estrutura, bem como suas estratégias discursivas, com vistas à doação de competências específicas ao leitor, projetado como enunciatário. A dissertação de

mestrado

pode

ser

consultada

online

em:

. Os resultados desse trabalho também podem ser observados em um artigo em que analiso os três livros de autoajuda mais vendidos no período 1991-2006, publicado

na

revista

do

GEL:

. Definindo o projeto de Doutorado: contemporaneidade, cultura e cinema de massa. Após esse estudo do perfil de leitor brasileiro, constituído em textos verbais, passei a refletir sobre o texto sincrético audiovisual (continuando no contexto da cultura de massas), mais especificamente, sobre a linguagem do cinema comercial. A partir do seu estudo, 271

objetivo explicar a construção da imagem discursiva do seu espectador – como se dão as identificações –por meio do exame dos filmes mais vistos (de 2001 até 2010), de acordo com levantamento em site especializado. Após consulta no site www.imdb.com, segue o corpus com os filmes mais vistos anualmente de 2001 a 2010, de acordo com valores totais de arrecadação:

Filmes hollywoodianos mais vistos de acordo com a bilheteria, de 2001 a 2010 Fonte: www.boxofficemojo.com

Ano

Título

Salas exibidas

Estúdio

Arrecadação total

2001

Harry Potter e a pedra filosofal

3672

WB

U$ 317.575.550

2002

Homem-aranha

3615

Sony

U$ 403.706.375

2003

O Senhor dos anéis: o retorno do rei

3703

NL

U$ 377.027.325

2004

Shrek 2 (3)

4223

DW

U$ 441.226.247

2005

Star wars: episódio 3 – a revolta dos Sith

3663

Fox

U$ 380.270.577

2006

Piratas do Caribe: o baú da morte

4133

BV

U$ 423.315.812

2007

Homem-aranha 3

4324

Sony

U$ 336.530.303

2008

Batman: o Cavaleiro das trevas (2)

4366

WB

U$ 533.345.358

2009

Avatar (1)

3461

Fox

U$ 749.766.139

2010

Toy story 3

4028

BV

U$ 415.004.880

A leitura de um mundo de significações Ler um mundo de sentidos implica qualificar a leitura, inicialmente, como processo de reconhecimento de letras e sua concatenação em enunciados. Por extensão, a noção de leitura pode ser ampliada, no sentido de traduzir diferentes formas de expressão (ou linguagens). Enquanto reconstituição do significante textual, a leitura é essencialmente uma semiose (GREIMAS & COURTÉS, 1979, p. 251), portanto, uma decodificação de signos, sejam lingüísticos ou não. No que diz respeito à sociedade contemporânea, saber ler de diversas formas é relevante tanto à interpretação do atento analista quanto ao olhar despretensioso do cidadão, em seu dia a dia.

272

No interior da cultura contemporânea, é possível analisar, discursivamente1, como se constituem segmentos de público específicos, bem como as formas como são representados no interior de suas práticas discursivas. Vários são os tipos de público, a quem se destinam os diversos produtos de massa, como o leitor de romances, o telespectador de novelas, o ouvinte de rádio, o espectador de cinema, entre outros. Esses diversos objetos de significação podem ser considerados “textos”. Segundo Greimas e Courtés (1979, p. 251), eles estão vinculados a diferentes procedimentos de leitura, pois o ato de ler (em sentido lato) vai além da interpretação do escrito. Enquanto manifestação de sentidos, um texto pode ser organizado por diferentes linguagens, a exemplos dos textos sincréticos pictórico do tipo: publicitário, audiovisual, da charge, etc. Nesses casos, imagem, som e texto estruram-se por meio da aglutinação de elementos pertencentes a diversos (PEÑUELA CAÑIZAL, 2008, p. 147). Enquanto formas de representação, os textos também podem ser estudados dentro de sua estrutura e de sua historicidade, permitindo maneiras de leitura ligadas a um determinado contexto e a sujeitos situados historicamente, fato que demanda estabelecer as relações entre os discursos e a história. Em torno desses alcances, as teorias do discurso descrevem a forma como os textos (verbais ou sincréticos) organizam-se e produzem significação. Buscam também compreender a relação entre textos, tanto imersos no contexto em que são produzidos, como para quem o são. Como a prática de ler, neste estudo, possui uma direção semiótica, ela abrange a compreensão dos objetos culturais em geral, sendo um processo de decodificar diferentes manifestações de sentido. No contexto dos estudos semióticos, Fiorin diz que essas manifestações podem ser interpretadas à luz de teorias gerais da significação. Nessa direção, observa que as semióticas modernas analisam as diferentes manifestações do sentido, não estando alheias a nenhuma forma de exprimi-lo (FIORIN, 2008, p. 78). Por isso, o estudo semiótico de um determinado discurso oferece suporte para a compreensão

1

A noção de discurso está relacionada à prática social de produção de textos, inscritos, pois, no contexto social e histórico, ou seja, no interior de suas condições de produção. Em suma, discurso é o texto lido e interpretado no seu próprio contexto, sendo entendido didaticamente pela relação: texto(s) + contexto = discurso.

273

de seu sentido, da relação que mantém com sua forma de expressão e, enfim, com outros textos. Relevância do tema O meu interesse pelos filmes comerciais foi impulsionado, inicialmente, pela história da repercussão da cultura de massas na sociedade, assunto que abordo em um dos capítulos do mestrado, ao discutir socialmente a constituição da autoajuda. Dentre os trabalhos sobre o audiovisual, pesquisadores brasileiros como Peñuela Cañizal (2004) e Balogh (1996; 2002) analisam diferentes objetos sincréticos. O primeiro estuda filmes do segmento mais “Cult”, como Buñuel e Bergman. Balogh examina produções relacionadas à tevê no Brasil e a seus subprodutos (séries, novelas, etc). Afirma Cañizal (2004, p. 19) que a diferença entre o cinema poético e o comercial reside em que o primeiro constrói-se em função de rupturas inerentes ao processo poético, enquanto o segundo prioriza a obediência às normas de continuidade exigidas pela lógica de concatenar enunciados narrativos, relegando o poético para o segundo plano (isso não quer dizer que todo filme feito para multidões não possua veio poético). De acordo com as referências que venho pesquisando via internet e literatura impressa, observo que há uma carência de estudos que tratam do cinema comercial quanto ao seu conteúdo linguístico e expressivo relacionados à imagem criada do espectador. O fato de estudar cinema hollywoodiano já parece despertar uma certa curiosidade sobre a validade desse objeto de estudo. Mascarello (2006, p. 334-5) alerta sobre a inevitabilidade de estudar o cinema de Hollywood sem recorrer a aproximações negativas, porque Entre as consequências da abordagem segregativa do cinema hollywoodiano na universidade brasileira, está o seu descompasso para com a evolução internacional dos chamados “estudos de Hollywood”, ocorrida ao longo dos últimos 25 anos [...]. Em particular, a estratégica área de pesquisa do cinema hollywoodiano contemporâneo, tão privilegiada desde então, segue desconhecida no país (ibid. p. 334).

Afinal de contas, o cinema é uma mídia oscilante entre os campos de sua constituição ontológica e da indústria do cinema, o que parece tornar difícil reconhecer um campo de estudos homogêneo para ele (LYRA, 2002, p. 116). Assim, ao estabelecer um critério para os objetivos, Lyra (idem, p. 116) sugere que a natureza das análises do cinema deve passar:

274

pelo processo de produção tecnológica; pela sua história; pela estrutura do código fílmico; e pela relação com o espectador. De acordo com esses critérios, será preciso contextualizar o cinema atual e as suas tendências por meio de uma breve descrição de como funciona essa indústria, a sua produção de massa, o seu mercado e os possíveis fatores que influenciam o comportamento do público espectador no âmbito das mídias de massa e da comunicação. O foco nos fatores socioculturais e midiáticos é importante, pois explica culturalmente como esses objetos são difundidos e recebidos e serve para sustentar as análises pretendidas da organização discursiva dos mais vistos. A proposta principal é a de investigar o porquê da tamanha procura pela linguagem audiovisual, materializada nas telas do cinema comercial. Estudarei a organização de conteúdo e expressão dos filmes selecionados, para, assim, definir e explicar as estratégias discursivas e expressivas do cinema, responsáveis por atender as expectativas do enunciatário-espectador, ou, na definição de Jauss (1979), o espectador-receptor. O objetivo será, portanto, descrever um perfil de espectador de cinema pop contemporâneo, partindo do exame da organização do conteúdo e da expressão dos filmes selecionados, por meio de uma abordagem semiótica do discurso e do plano da expressão, segundo Greimas & Courtés (1979), Fontanille (2007), Floch (1985; 1990; 1995) e Pietroforte (2004; 2007). Bibliografia AUMONT, J & MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução de Eloisa A. Ribeiro. Campinas (SP): Papirus, 2003. AVATAR. Direção: James Cameron. Estados Unidos: Twentieth Century Fox, 2009. 1 DVD (171 min), color., sonor. BALOGH, A. M. Conjunções, disjunções, transmutações: da literatura ao cinema e a TV. São Paulo: Annablume, 1996. BALOGH, A. M. et al (Org.). Mídia, cultura, comunicação. São Paulo: Arte e Ciência, 2002. BATMAN. Direção: Christopher Nolan. Estados Unidos: Warner Bros, 2008. 1 DVD (152 min), color., sonor.

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A QUESTÃO DA AUTORIA NA CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM DOIS ROMANCES HISTÓRICOS CONTEMPORÂNEOS Ludmila Giovanna Ribeiro de Mello (FAPESP) Wilton José. Marques Programa de Pós-graduação e Estudos Literários – UNESP / FCLAr Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos. (TELLES apud COELHO, 1993, p.14)

Ao se deparar com essa afirmação de Lygia Fagundes Telles, e usada aqui como epígrafe, sobre a emancipação literária feminina, pode-se questionar se realmente existe hoje liberação das mulheres, como personagens ficcionais, dos estereótipos pertencentes principalmente à ótica masculina. E se tal libertação passou a existir, como a literatura reflete esse processo, ou seja, como as personagens femininas seriam representadas nas narrativas ficcionais e, mais especificamente, se essa representação se daria de forma diferente quando feita por autores ou autoras. Por meio da literatura que produzem, as mulheres vêm tentando resgatar sua própria história, reivindicando para si a condição de sujeito. Desse modo, assumem uma função política implícita, na medida em que procuram, por meio das mais diferentes formas de representação, desconstruir noções estereotipadas de sexo e gênero, reconstruindo, revalorizando e revitalizando aspectos que são sempre escamoteados pelas estruturas sociais conservadoras (Pellegrini, 2008). Se a mulher escritora “invadiu” de forma ampla apenas recentemente o meio literário, pois elas aparecem na historiografia literária somente a partir do século XX, todas as

278

representações femininas deixadas pela literatura ao longo da história foram criadas por olhares masculinos, então, é importante entender qual a diferença na representação que homens e mulheres dão à questão. Primeiramente, se essa diferença realmente existe e quais são suas características escritas nos textos. Por essa razão, buscou-se estudar e comparar as representações femininas entre escritores de sexos distintos. Dentre as marcas que podem ser citadas é a da própria experiência feminina transfigurada esteticamente que funciona como base nos textos femininos. Toda representação do mundo feita pelas mulheres se faz, necessariamente, a partir de ótica feminina, portanto, de uma perspectiva diferente da masculina. Nesse sentido, cabe determinar como a mulher representa a si mesma e como vêm sendo representadas as personagens femininas na ficção de autoria masculina e estudar se efetivamente há um olhar feminino sobre a personagem mulher, diferente do olhar masculino. E, além disso, é importante ressaltar como seriam esses olhares na contemporaneidade. Pretende-se, portanto, contribuir, por meio do confronto de dois textos de autores canônicos da literatura brasileira contemporânea, para o entendimento das coordenadas históricas e sociais que engendraram a construção do “sujeito mulher”, enquanto personagens ficcionais, em todas as suas implicações e se pode ser constatada alguma diferença na escritura. Para atingir tais objetivos, buscou-se verificar como se dá a representação das personagens femininas nos romances históricos Videiras de Cristal (1990) de Luiz Antonio de Assis Brasil e Amrik (1997) de Ana Miranda, analisando-os por meio da arquitetura narrativa e do tratamento que cada um dos autores dá ao tema, baseando as análises nas teorias feministas de duas correntes críticas desse campo de estudo, a angloamericana e a francesa, utilizando dessas, seus aspectos mais relevantes; bem como, usouse das teorias que envolvem a análise histórico-literária. Foram analisados os aspectos referentes às linhas teóricas que envolvem este trabalho, fazendo uma breve explanação sobre as teorias feministas e as especificidades do romance histórico, bem como questões do âmbito da autoria, questionando, a partir desses conceitos, se realmente existe hoje liberação das mulheres, enquanto personagens ficcionais, dos estereótipos pertencentes principalmente à ótica masculina, pois se “excluídas do processo de criação cultural, as mulheres estavam sujeitas à

279

autoridade/autoria masculina” (TELLES, 2006, p. 408). Se tal libertação passou a existir, discutiu-se como a literatura reflete esse processo, isto é, de que forma as mulheres são representadas nas narrativas ficcionais e se essa representação mudou com a mudança dos tempos. Até o momento, apenas o romance Videiras de Cristal foi completamente analisado, estudando seus aspectos históricos, as fontes utilizadas pelo autor, o tipo de narrador (ou narradores) que se apresenta, uma vez que nesta obra prevalece a terceira pessoa enquanto em Amrik o narrador é homodiegético, além, é claro, de uma ampla análise das personagens femininas criadas (ou reinventadas, pois se trata de um romance histórico) por Assis Brasil. O que foi possível depreender do texto de Assis Brasil é que ele não consegue transpor a barreira da tradição no que diz respeito às personagens femininas, uma vez que elas1, ao não seguirem os padrões estabelecidos pela sociedade da época, têm o final comum às “mulheres monstros” (aquelas que rompem com o esperado), ou seja, a loucura e a morte prematura. O autor não consegue propor uma saída para essas mulheres que não essa, que aparece muito mais como punição do que como saída do conflito que as cerca, com isso, a mulher continua sem outras possibilidades de “destino”: ou segue os padrões estabelecidos pelos homens para elas, ou são “apedrejadas” até a morte. Bibliografia BARBOSA, Fidelis Dalcin. Os fanáticos de Jacobina (Os Muckers). Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1976. BARRETO, Eneida Weigert Menna. Demônios e Santos no Ferrabrás: uma leitura de Videiras de Cristal. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2001. BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 65-70. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética – a teoria do romance. Equipe de tradução do russo Aurora Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Hucitec - Annablume, 2002.

1

As personagens femininas analisadas foram Jacobina Maurer, protagonista do romance, Ana Maria Hofstätter e Elisabeth Carolina Mentz.

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UMA NOÇÃO PLURAL: A ÁTE NA TRAGÉDIA GREGA Marco Aurélio Rodrigues (CAPES) Fernando Brandão dos Santos Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Justificativa Da mesma forma que as duas Grandes Guerras transformaram a sociedade atual e, ainda hoje, é possível sentir os impactos que tais eventos tiveram na comunidade mundial, os acontecimentos bélicos na Antiguidade não eram diferentes. Se por um lado as guerras antigas moldaram, de certa forma, a organização espacial do mundo, por outro, foram as principais responsáveis por sólidas mudanças de pensamento, significativas para a reflexão do homem moderno. Valores outrora colocados à mostra por Homero e Hesíodo passam a agregar novos significados na sociedade grega, muitos deixam um plano estritamente mítico para serem incorporados ao novo ideal de mundo dos helenos nas diferentes poleis. Para Adkins (1972, 59), areté (virtude) encabeça inúmeras outras noções que estavam presentes na sociedade grega. No ínicio do século V a.C., poetas líricos como Baquílides e Píndaro, seguidos pelo tragediógrafo Ésquilo e, mais tarde, por Sófocles e o historiador Heródoto, passariam a valorizar em suas criações e retomar conceitos já estabelecidos, porém, com um novo campo semântico. Areté, no século V a.C. passa a representar o ideal alcançado pelas Guerras Médicas, qualidades próprias do homem grego, defensor da liberdade e de uma virtude que ultrapassa apenas o âmbito da aristocracia guerreira de Homero, em que o termo ligava-se diretamente às qualidades de Aquiles, por exemplo. Corrobora Vernant (2009, p. 87) que as mudanças do século V apresentam, também, uma efervescência religiosa que contribuiu a um processo de reflexão moral, orientado por especulações políticas. Nesse âmbito, a hybris (desmedida, soberbia), por exemplo, em oposição a Dike (Justiça) instaura-se no espaço jurídico. O homem que almeja riqueza de forma descontrolada, hybristés, precisa passar por um processo de reequilíbrio e, assim, sua arrogância será eliminada.

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Entretanto, se algumas noções passam a assimilar novas definições, outras como sophrosyne (prudência) passam por uma renovação. Segundo Vernant (2009, p. 92), em Homero, o termo não possui um valor específico, é o bom senso, que os deuses restituem a quem o perdeu. Todavia, mesmo passando por um sentido religioso, a palavra sophrosyne assume uma significação moral e política, distinguida em duas correntes, uma relacionada aos aspectos da salvação individual e outra que está ligada à vida pública, uma forma positiva de política. Assevera Vernant (2009, p. 97) que o papel dos Sábios em traduzir na arte valores sociais da vida grega, passou a apresentar noções novas e modificadas em diversas camadas da vida pública: […] Envolvidos nas lutas civis, preocupados em pôr-lhes um termo por sua obra de legisladores, é em função de uma situação social de fato, no quadro de uma história marcada por um conflito de forças, um choque de grupos, que os Sábios elaboraram sua ética e definiram de maneira positiva as condições que permitem instaurar a ordem no mundo da cidade.

A tragédia e a comédia tornaram-se, ao longo do século V, o centro do debate de questões próprias da cidade democrática grega. O uso do tema mítico ou não, tornava-se o veículo condutor para os poetas exporem também uma nova forma de pensamento. O mote escolhido pelo autor acaba por ser moldado de acordo com a intenção desejada. Ésquilo, por exemplo, ao escolher os momentos derradeiros das Guerras Médicas como tema de sua tragédia Os Persas, em 472 a.C., não deixou de elevar o tom mítico da trama, mas fez uso de um particular momento histórico para falar à audiência sobre aspectos da guerra, tal como o massacre de muitos, o saque da cidade e a destruição dos templos. O discurso inflamado do espectro de Dario aponta alguns ideais que surgiam no pensamento do homem grego, e que faziam parte do cerne da sociedade: O excesso, de fato, desabrochando, produz espiga de desgraça, donde colhe-se o mais sofrível estio.1 (ÉSQUILO, Os Persas, 820-822)

A exposição do Grande Rei marca a discussão central do drama. Ao repreender a forma como Xerxes conduziu sua jornada às terras gregas, Dario cita a hybris (excesso) 1

Traduções de minha lavra.

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como o motivo que cega o homem e o leva à áte (desgraça). Esta noção presente em Os Persas aproxima a ação de Zeus sobre este homem hybristés. O vínculo ocorre em comunicação com a deusa Áte (Ἄτα), fazendo cumprir a vontade divina, vontade de Zeus, que ao grego encontra-se em todas as dimensões, não só religiosas, mas, também, políticas e sociais. Não são poucas as definições que a palavra áte admite nos mais variados contextos, ao longo dos anos. Para Saïd (1978, p. 75-76) existe uma dificuldade em traduzir a palavra que, muitas vezes, está ligada a uma condição de erro mas, também, passa a designar toda sorte de infortúnios. Completa Dawe (1968, p. 95) que o sentido mais comum de áte é ruína, destruição, desastre, podendo, todavia, admitir uma definição mais restrita, mais especializada. A acepção de áte, proposta por Bailly, traz o termo como a cegueira, a confusão, uma punição divina para o mau comportamento humano. Segundo Chantrâine (2009, p. 3), que admite também erro e ruína, como possíveis significados para o vocábulo, o verbo άω, que significa “conduzir ao erro”, por contração, dá origem à palavra ἄτη, vocábulo pouco corrente na prosa ática, porém de grande presença na tragédia, onde significa o erro, a ruína, o dano causado. Homero, na Ilíada, introduz a falta de Agamêmnon como “estado de espírito” (state of mind), segundo Dodds (1963, p. 03-05), um período onde a consciência passa por uma confusão, uma turvação (clouding): “Ó senil, não detalhas minhas falhas com mentira. Estando confuso, eu mesmo não desdenho.” [...]" (HOMERO, Ilíada, Canto IX-115-116)

A noção de áte, apresentada por Ésquilo, torna-se muito próxima à apresentada por Homero e Hesíodo. Entretanto, para Dodds (1963, p. 38), o termo passa a deixar de significar apenas um “estado de espírito”, para ser aplicado também aos desastres decorrentes da ação da áte sobre o homem. Saïd (1978, p. 79) acrescenta que, em Homero,

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a vítima da áte não compreende como sua forma de agir possa resultar em fatalidades, avultando a ideia de um fenômeno de ordem psíquica que, em Ésquilo, adquire uma extensão muito mais ampla. Uma percepção mais concreta do termo áte, possui contornos mais definidos em Sófocles, cujo mote político é evidente. Sendo assim, instaura-se uma nova forma de se conceber o vocábulo. O discurso inicial de Antígona já demonstra que a áte não possui mais a ligação com as divindades como em Ésquilo. Não trata-se mais de uma Justiça que se legitima pela punição de um ato, como o da hybris de Xerxes, mas de uma punição que cai sobre os Labdácidas e causa a degradação, tornando-se apenas mais um dos muitos males que se abatem sobre a família: “Ó de igual paternidade, Ismene querida, ainda conheces alguma coisa que Zeus executará a ambas de tal sorte da maldição edipiana? De fato, não há dor, nem desgraça, nem ainda desonra, que eu não tenha visto de maldades para os meus e os seus. (SÓFOCLES, Antígone, 01-06)

A mudança que ocorre entre os dois poetas, Ésquilo e Sófocles, ainda é sutil perto do valor que o vocábulo áte assume em Eurípides. Primeiramente, o fato da palavra ser atestada apenas 34 vezes em todas as suas tragédias remanescentes, sendo que em algumas o vocábulo não aparece, difere das 53 vezes em que encontramos o termo nas 7 tragédias de Ésquilo. A esse fato, deve-se uma nova forma de pensamento do homem grego. É perceptível que o conceito deixa de possuir a mesma importância de Ésquilo a Eurípides. Segundo Saïd (1976, p. 76), após a tragédia, o termo assume um sentido ainda mais enfraquecido e passa a designar “um temor próprio do homem supersticioso”. Este fato ganha maior vigor no drama euripidiano, cujo pensamento recebe contornos racionais mais evidentes, influenciados pela contemporaneidade da reflexão socrática. Eurípides (480-406 a.C.) não conhece mais o mundo de Ésquilo, o mundo em que homens e deuses convivem em igual medida, em um equilíbrio mantido pela Justiça divina. No mundo de Eurípides a guerra entre “compatriotas” é um fato real, a tragédia passa a vivenciar um princípio de decadência e o homem passa a tentar compreender o mundo de

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maneira lógica, mais racional, sem a preocupação constante de que os deuses são agentes modificadores do ambiente. Embora Aélion (1983, p. 387) conclua que Eurípides é um herdeiro da obra de Ésquilo, a autora também ressalta que em Eurípides os conceitos racionais tornam-se mais evidente e o que distinguirá Eurípides de Ésquilo e Sófocles é o engajamento dos conflitos humanos, que serão diferentes daqueles onde os deuses estariam envolvidos. Em Electra, tragédia euripidiana com uma única ocorrência da áte, encontra-se o distanciamento de sentido da noção que havia para Ésquilo. Não trata-se mais de um sentido relacionado à punição divina, mas da maldição de família:

Comuns as ações, comuns os destinos que a ambos espedaça uma maldição paterna. (EURÍPIDES, Electra, 1305-1307)

Cástor, um dos Dióscuros, ao se referir à maldição refere-se às desgraças que há muito tempo atingem os Atridas. A áte (maldição), assim, é tida como uma influência dos infortúnios de antigos ancestrais, tal como Antígone cita os males de sua família. Dessa forma, a áte distancia-se da penalidade divina para ser o resultado de um infortúnio, ao qual eles estavam destinados e que foge, inclusive, da competência dos deuses. Sendo assim, o vocábulo demonstra a ausência de um sentido mais específico, como outrora havia em Ésquilo. Objetivos A pesquisa tem por objetivo defender a tese de que o conceito de áte, ao longo da tragédia clássica grega, no século V a. C, passa por mudanças, assumindo diferentes acepções de acordo com a ideologia apresentada, podendo, inclusive ter perdido seu sentido original. Ao estar unido a outros termos, visto que o vocábulo não aparece isolado, ganha novos contornos e sentidos diferentes, o que talvez o impeça de ser classificado em um único campo semântico. Daí a proposta, também, de pontuar que sua tradução respeite o uso adequado feito em cada uma das tragédias por seus autores.

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O nome dado ao projeto refere-se à forma como o termo se apresenta nas tragédias de que possuímos, ou seja, com sentidos diversos. A maior parte dos estudos realizados até o momento acerca de áte são feitos a partir de Homero, Hesíodo e até mesmo em autores tardios, como é o caso de Apolônio de Rodes. A escolha pelo estudo do vocábulo na tragédia ática dá-se pelo interesse no estudo do drama mas, também, porque é nos tragediógrafos clássicos que se nota a variação nítida da noção. Metodologia Por ser tratar de um termo próprio do pensamento grego, a proposta de trabalho foca sua atenção nos autores que discutem a áte, bem como os aspectos da vida moral, religiosa e política da sociedade antiga em que o termo se insere. Para tanto, os estudos de JeanPierre Vernant, Pierre Vidal-Naquet, Arthur Adkins, Louis Gernet, E. R. Dodds e outros, serão de grande valia. Vale ressaltar que, atualmente, são inúmeros os artigos que abordam o tema. Ainda, alguns autores com publicações recentes, que estudam questões relacionadas a conceitos gregos, como é o caso de Belfiore (2000), serão incluídos e investigados. Todavia, alguns autores serão imprescindíveis, como um retorno a Hesíodo e Homero, os poemas de Baquílides e Píndaro, Apolônio de Rodes e outros autores clássicos que possam contribuir com diversas acepções que a áte assuma na Grécia antiga. Faz-se necessário também uma investigação nas obras de Platão e Aristóteles, que apresentam detalhes do pensamento grego e colaboram na compreensão do declínio do termo. No mais, outros textos devem ser incluídos para complementar a pesquisa no decorrer de seu desenvolvimento. A redação final da tese será resultado das análises das tragédias, da argumentação acerca das diversas teorias sobre o pensamento grego e da fundamentação da proposta, de acordo com a pesquisa semântica e as noções que o termo assume ao longo do tempo. Bibliografia ADKINS, A. W. H. Moral values and political behavior in Ancient Greece: from Homer to the end of the Fifth Century. New York: Norton & Company, 1972. AÉLION, R. Euripide hériter d'Eschyle. Tome I. Paris: Les Belles Lettres, 1983.

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A POESIA RETÓRICA DE OVÍDIO: RELAÇÕES ENTRE ARGUMENTAÇÃO E CONOTAÇÃO EM AMORES (LIBER SECUNDUS, IV; LIBER TERTIUS, VII); TRISTIAE (LIBER PRIMUS, ELEGIA PRIMA); EPISTULAE EX PONTO (LIBER TERTIUS, EPISTULA OCTAVA) E HEROIDAE (EPISTULA I) Marcus Vinícius Benites (CAPES) João Batista Toledo Prado Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O corpus selecionado para a pesquisa (Amores – Liber Secundus, IV; Liber Tertius, VII; Tristiae – Liber Primus, Elegia Prima; Epistulae ex Ponto – Liber Tertius, Epistula Octava e Heroidae – Epistula I) abrange produções de fases distintas de Ovídio. O motivo para tal seleção dá-se pela intenção máxima do estudo proposto, que é a de descortinar um estilo ovidiano que perpasse sua obra e, a partir dessa definição, apresentar análises pertinentes a respeito de sua poesia. O corpus proposto, por representar fases tão diferentes

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da produção poética do poeta de Sulmo, com partes de sua obra jovem e de temática amorosa, como os poemas de Amores, e também partes de sua obra madura e dita do exílio, como os poemas dos Tristes, por exemplo, permanecendo no âmbito da elegia, dá, intentase, embora se admitindo que não se possa alcançar a dimensão completa da poesia de Ovídio por meio de corpus que, embora passível de abordagens factíveis dentro do tempo do curso de Doutorado, admite-se ainda seja restrito, a possibilidade de uma percepção daquilo que permanece em Ovídio, independente da época – fase da vida – ou motivação dos escritos. De acordo com o projeto inicial de pesquisa e com os desdobramentos oriundos dos estudos já feitos durante o curso de Doutorado, foram traduzidas e analisadas, até o momento, as elegias IV do Livro II dos Amores e VII do Livro III, bem como a epístola VIII do Livro III das Epistulae ex Ponto, textos pertencentes ao corpus proposto. Durante o processo tradutório procurou-se identificar e estabelecer relações plausíveis de interpretação conotada a partir, sobretudo, de recorrências fonéticas. Tais recorrências, generalizadas sob a classificação de figuras de linguagem, mas especificadas como epístrofes, aliterações, assonâncias, paranomásias ou anáforas, são abundantemente presentes no texto ovidiano – motivo de um juízo crítico corrente na tradição literária, como atestado na Historia de la Literatura Latina, de Ettore Bignone (Buenos Aires: Losada, 1952), para a qual o poeta é visto como exagerado– e contribuem, de modo metafórico, para que ligações entre partes do texto, no que diz respeito ao plano da expressão, fiquem nítidas. Assim, pelo princípio jakobsoniano do paralelismo, mas partindo-se da premissa saussureana de arbitrariedade do signo lingüístico, realizaram-se, nos textos acima citados – o que se propõe também para os demais textos do corpus – leituras em que a noção de motivação entre plano da expressão e plano do conteúdo, ou seja, a construção do semi-símbolo ovidiano (o signo lingüístico em estado artístico, com forjada noção de não arbitrariedade) fosse investigada, de modo a poder ser vista como possibilidade de conotação, o que aprofunda a leitura de primeiro nível e mais superficial dos textos, aquela denotada e que tenda à simples decodificação. Semelhante abordagem também foi realizada, em nível de Mestrado, na pesquisa que resultou na dissertação “Aracne e Palas: uma Trama de Sentido – estudo semiótico de Ovídio, Metamorfoses (Liber VI, 01-145)”, defendida em 2008 na FCLAr – UNESP pelo presente doutorando e

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sob orientação do Prof. Dr. João Batista Toledo Prado. Sendo assim, a proposta de tradução do texto latino e análise de recursos expressivos que possibilitem conotação já foi desenvolvida em trabalho anterior de pós-graduação, tendo continuidade no estudo que ora se realiza. Na leitura de Amores II, IV, já desenvolvida e apresentada em artigo (A Retórica Ovidiana: procedimentos conotativos (Amores, II, IV). In: Anais da XXV Semana de Estudos Clássicos/ V FAEC: Dioniso – Travessias e Transmutações – 25 anos!. Araraquara: Laboratório Editorial da FCL-UNESP, 2011.), as recorrências fonéticas, por exemplo, foram analisadas como especialmente selecionadas e organizadas por meio de escolhas paradigmáticas e de relações sintagmáticas por elas contraídas, de modo a, expressivamente, reproduzirem também naquele nível a significação mais imediata da elegia, depreendida denotativamente mesmo através do contato com uma tradução não poética. Como hipótese inicial, a pesquisa não se propôs, no entanto, somente verificar recorrências fônicas no texto ovidiano, mas, dentro do corpus selecionado, também conferir em que contextos e de que modo tais expedientes fonéticos, que podem gerar leituras em um nível conotado, reforçam argumentativamente a tese/ideia central de cada passagem dos poemas em que ocorrem. Ovídio foi comumente classificado, pela crítica tradicional, como um poeta excessivamente retórico, como citam, por exemplo, os escritos de Giulio Davide Leoni, em A Literatura de Roma (8ª ed. São Paulo: Livraria Nobel, 1967). De fato, seus textos, principalmente os elegíacos, apresentam uma defesa constante de uma causa – que pode ser tanto a defesa da inocência por “amar tanto”, como a por não merecer o “exílio”. Dos dois defeitos apontados no poeta de Sulmo pela crítica tradicional, o excesso retórico e o exagero expressivo, busca-se, na pesquisa, tecer uma relação em que este reforce aquele, não havendo, pois, nada que seja desnecessário, mas, ao contrário, somente indispensável à construção de um estilo deflagrador, até mesmo, de uma proposta poética em grande medida pessoal. Se no trabalho realizado durante o curso de Mestrado tal marca do eulírico ficou aparente, não se pôde, no entanto, considerá-la como característica ovidiana de fato, uma vez que restrita a um trecho de uma produção específica – os 145 versos que dão conta do mito da transformação de Aracne, dentro de Metamorfoses – ao contrário do que se busca definir a partir da tradução e análise do corpus da presente pesquisa, por ser mais

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abrangente. Para a continuidade do projeto propõe-se, ainda, empreender a tradução e verificação de figuras de linguagem relacionadas ao extrato sonoro no restante dos textos que serão abordados, bem como a análise dos recursos métricos utilizados em todos os textos. Tal expediente pode fornecer substrato para que se evidenciem diferenças quanto ao uso dos pés – unidades métricas – que sejam, talvez, descortinadoras de possibilidades de leituras. Em suma, buscam-se plausibilidades semânticas por meio de marcadores expressivos. O que diferencia, no entanto, o atual projeto daquele levado a cabo no Mestrado, e que justifica a busca por um estilo ovidiano, é não somente a proposta de uma verificação de recursos fonéticos e interpretações de conotação a partir deles, mas também a possibilidade de revisar o eu-lírico ovidiano – de início apontado como retórico – o que, no limite, talvez seja capaz até de promover questionamento sobre a célebre questão do exílio do poeta, em geral tomado como fato biográfico. Afinal, uma vez que se verifique que a escrita de Ovídio apresenta singularidades que são recorrentes tanto no jovem poeta amoroso, como no maduro poeta exilado, passa a ser possível que se ponha alguma dúvida na veracidade do exílio enquanto dado biográfico, se não com a mesma ausência de cautela com que se afirma ser Corina uma personagem meramente fictícia, ao menos com a mesma pertinência. Para tanto, há que se tomar como evidência o texto poético do poeta sulmonense, em particular as elegias e epístolas escolhidas, fixando-o dentro da tradição literária latina e dos gêneros específicos citados. Nesse sentido, não só a definição de gênero se faz indispensável, bem como o trabalho com o dialogismo – nas acepções bakhtinianas desse conceito. Por questões de ordem prática, tal verificação dialógica será feita através de uma fixação teórica para o fenômeno textual e, a partir daí, de uma aplicação da maioria dos conceitos selecionados aos textos de Ovídio. De início, intenta-se a determinação do conceito de cânone literário. Dentro da literatura, há aquilo que é invariável, ou seja, que pertence ao gênero, mas também o que é variável, ou seja, que diz respeito ao autor e suas características composicionais particulares. Este estabelece um cânone, enquanto aquele uma tradição. A partir do estabelecimento de um cânone, o novo passa a ser o modelo a ser imitado e superado. Assim, há que se atentar para o dialogismo atuando na relação inquestionável entre textos

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dentro de uma tradição literária. Os textos são dialógicos em relação a seus contextos, mas todo contexto é, também, texto. Especificando, Ovídio dialoga com o próprio gênero elegíaco, com os textos elegíacos de outros poetas, também com seus próprios textos elegíacos, imitando, superando ou desenvolvendo o próprio gênero, a partir de qualidades estéticas comuns ou singulares. No caso do poeta de Sulmo, vê-se a evolução – não tomada aqui como melhora, mas como variação – da própria elegia, mas não só com relação a outros poetas modelares, embora se admitam, obviamente, as relações dialógicas naturais entre Ovídio e Tibulo, Propércio, e mesmo Catulo, mas sim com relação a sua própria produção poética. O eu-lírico ovidiano traz à elegia o tema do padecimento do exílio, em resposta ao fato do tema do padecimento amoroso já estar, dentro de uma análise pertinente, saturado, inclusive através dos textos de Ovídio – sem, necessariamente, que se mude um estilo de composição poética. Se a tensão permanente entre o variável e o invariável literários, mais recentemente apresentada por Harold Bloom (O Cânone Ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010) é conceito que serve à literatura de todos os tempos, não difere, senão em intensidade – no caso menor – da própria noção de emulação, base para a constituição e estabelecimento de toda a literatura latina – o variável e o invariável como uma nova forma de conceber o engenho e a arte –, a partir do que se possa admitir confluência entre o próprio fazer poético dos romanos e a busca por um Ovídio que, ao mesmo tempo em que se afirme com um eu-lírico bastante singular, encontre-se situado e dialogue com gêneros e tradições. Dentro da crítica e análise dos textos latinos, a concepção do dialogismo textual, bem como da recepção do texto, foram desenvolvidas por Paul Veyne no já clássico A Elegia Erótica Romana (São Paulo: Brasiliense, 1985), por Francisco Achcar em Lírica e Lugar Comum (São Paulo: EDUSP, 1992) e, mais recentemente, por Paulo Martins em Elegia Romana: construção e efeito (São Paulo: Humanitas, 2009). A partir da perquirição dos vieses e escolhas metodológicas desses trabalhos, propõe-se que o estudo do gênero seja necessário a uma mais completa análise literária, pois um texto constrói-se sobre outros que o precederam – no caso dos textos emulando-os – e se distingue em face deles. A busca de um interdiscurso é importante para que se definam as bases de análise, não necessariamente dando importância excessiva ao contexto de época, com elevada atenção ao políticohistórico, mas ao contexto que é texto, ou seja, um contexto literário, formado por outras

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obras literárias e seus leitores. A partir de uma definição do que seja elegia, retórica (para a verificação de como ela aparece no texto poético ovidiano), epístola, pode-se empreender um estudo ovidiano amplo, através da análise de um estilo próprio – variável – em que seu texto tenha lugar dentro de um interdiscurso. A relação dialógica que se almeja descobrir é, principalmente, a existente entre os poemas de amor de Ovídio e os poemas do exílio, em que uma comparação entre as elegias dos Amores e dos Tristes, uma vez que partilham o mesmo gênero, presta-se a um estudo profícuo – mas também as análises dos outros poemas contidos no corpus – objetivando-se, através de análises textuais que apontem semelhanças de estilo – dentro da própria escrita ovidiana – e de temas – dentro da tradição literária latina – levar a efeito uma revisão do exílio ovidiano tomado como fato biográfico – aceito inconteste mesmo atualmente, em que, a título de exemplificação, pode-se citar o basilar A Literatura Latina (CARDOSO, Zélia de Almeida. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p.86). Assim planeja-se, durante o restante do curso de Doutorado, além das etapas tradutórias já mencionadas, que serão realizadas em todo o corpus, e das verificações e análises das recorrências fonéticas configuradoras de um estilo retórico de Ovídio, em que o plano da expressão reforça conotativamente o plano do conteúdo, em defesa de uma causa, o estudo dos textos latinos a partir dessas inflexões teóricas. Bibliografia ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar Comum. São Paulo: EDUSP, 1992. ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A Poética Clássica. São Paulo: Cultrix, 1997. ASSIS SILVA, Ignacio. Figurativização e Metamorfose: o mito de Narciso. São Paulo: Editora da UNESP, 1995. BARROS, Diana Luz Pessoa. Teoria do Discurso: fundamentos semióticos. 3ª ed. São Paulo: Humanitas, 2002. BERTRAND, Dennis. Caminhos da Semiótica Literária. Bauru: EDUSC, 2003 (Coleção Signum). BIGNONE, Ettore. Historia de la Literatura Latina. Buenos Aires: Losada, 1952. BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

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BANQUETES DE PALAVRAS: PRÁTICAS GASTRONÔMICAS NA LITERATURA CLÁSSICA LATINA Mariana Bravo de Oliveira

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(CAPES) João Batista Toledo Prado Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A cultura é construída a partir de informações organizadas por um paradigma que rege os sistemas semióticos que a constituem. A língua não é apenas um desses sistemas, mas também condição para que eles existam como códigos, hierarquias e ordenação das diversas linguagens neles presentes. Lévi-Strauss considerava a linguagem fortemente análoga à cultura: [...] Situando-se de um ponto de vista mais teórico, a linguagem aparece também como condição da cultura, na medida em que esta última possui uma arquitetura similar à da linguagem [...]. Tanto que se pode considerar a linguagem um alicerce destinado a receber as estruturas às vezes mais complexas, porém do mesmo tipo que as suas, que correspondem à cultura encarada sob diferentes aspectos. (LEVI-STRAUSS, 2008:86)

Sabe-se que para o antropólogo essa relação se constituía principalmente entre os sistemas de oposições e correlações fonológicas e aqueles destinados à formação da cultura, de modo que, se diferentes culturas possuíssem características diversas, mas princípios organizacionais comuns, elas aproximar-se-iam de alguma forma. Dessas oposições e correlações emerge o caráter semântico que dá vida tanto à língua como à cultura. É na significação que se instaura o valor, tanto do signo linguístico, quanto das práticas cotidianas estabelecidas pela cultura. Portanto, para que a intelecção da língua se dê de forma plena, é imprescindível conhecer a cultura subsistente. Sendo a cultura um processo a que apavora o esquecimento, já que é pautado na memória coletiva de um grupo presente nos mais diversos textos culturais, em que coexistem mecanismos de seleção e rejeição de informações (LOTMAN apud FERREIRA 1994/95:117), pode-se inferir que o léxico que lhes dá suporte, de alguma forma, encerra as práticas culturais, na medida em que sua significação é dada pela própria experiência cultural empírica, ou seja, os signos que circulam numa comunidade linguística em uma dada sincronia são investidos do valor a eles atribuído culturalmente. A construção de um texto a partir da linguagem específica de um setor qualquer da realidade implica codificar as informações, organizá-las de uma maneira e não de outra, e, por fim, introduzi-las na memória coletiva de um grupo. Lotman (apud FERREIRA

300

1994/95:117) afirma que “somente aquilo que foi traduzido num sistema de signos pode vir a ser patrimônio da memória”. No âmbito deste projeto, o objeto de atenção é a língua latina, apreendida na elaboração de textos por aqueles que a tinham como língua materna, a saber, os romanos copartícipes do universo cultural vigente à sua época. Constata-se, porém, que existem tanto nas informações, quanto na sua codificação, lacunas referentes ao significado, que instaurava o valor das práticas cotidianas daquela coletividade, e, também, o dos signos linguísticos. Dessa forma, para ler, ou ainda, para traduzir um texto latino – já que o presente estatuto do latim obriga a que ler seja também traduzir – não é necessário apenas que se domine a gramática da língua, mas ainda que se tenha um conhecimento amplo de dados de cultura gerais, concernentes à história, à organização política, à filosofia, à mitologia, e etc., com a dificuldade de que, muitas vezes, esses dados são bastante específicos e não podem ser encontrados em nenhuma das obras modernas sobre tais temas. Essa defasagem espaço-temporal entre os mundos antigo e moderno torna íngreme, portanto, o caminho que leva à compreensão dos signos presentes na literatura latina, fato que empece não somente a leitura/tradução em si, mas também a compreensão dos efeitos estéticos pretendidos pelo autor, tais como as escolhas léxicas e a forma como esse léxico é organizado de modo a causar tais efeitos; as relações semânticas estabelecidas com base em características próprias do cotidiano; o valor simbólico de determinados lexemas abarcando significados diversos daqueles conhecidos pelos leitores modernos. Para que se dê, então, a compreensão dessa cultura da forma como os próprios romanos a entendiam e organizavam – projeto exequível somente até certo ponto – propõese a leitura (sc. tradução) de textos latinos, tendo como fonte outros textos latinos. O tema eleito no âmbito desta pesquisa é a gastronomia romana, em seus aspectos mais cotidianos, mas também na sofisticação dos banquetes, que se tornaram célebres com o advento do Império. Por ser esse um universo referencial fortemente enraizado na cultura, foi ele o escolhido para delimitar o tema da investigação no córpus1.

1

Essa grafia está de acordo com a postura preconizada por PRADO, J.B.T. Para não perder o latim. Análise total. Observatório da Imprensa on-line (11/05/2004): http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=276JDB005, acesso em 12/10/09; e também:

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Segundo Montanari (2008: 71) “a cozinha é o símbolo da civilização e da cultura” e também um dos fatores mais marcantes entre aqueles que diferenciam o homem dos outros animais. O ato de comer cozido, assado, e não mais cru, alia-se a um quadro de intensas mudanças no modo de vida dos povos, que vão desde o estabelecimento de um espaço fixo para se viver, com a prática da agricultura e da caça, até o surgimento das relações comerciais e de conquista causadoras de múltiplas influências (MONTANARI 2008:69). O ambiente urbano, palco das relações políticas e comerciais que caracterizavam as antigas civilizações, foi, por excelência, o lugar das influências linguísticas e culturais que se deram no período de apogeu do Império Romano. Com a comida não foi diferente. Na urbs Roma, centro político e institucional de todo o território conquistado, foi observada uma mudança na alimentação, resultante das muitas influências estrangeiras: No apogeu, a culinária romana foi a primeira cozinha internacional na história da Europa Ocidental e era praticada, com variações regionais, de um lado a outro do Império, das areias da África do norte à fortaleza das ilhas bretãs. O que começou como culinária rústica e vegetariana no tempo da república tornou-se, sob o Império, cada vez mais sofisticado, em resposta primeiro às influências etruscas e depois às gregas. Estas últimas filtraram-se através da Sicília e do sul da Itália. Depois, através de Cartago, veio o impacto do oriente. (STRONG, 2004: 26)

Essas muitas trocas culturais fizeram de uma alimentação, até então muito frugal, uma prática muito mais sofisticada e fundamentada na ideia do artifício. Quanto mais se mudavam o aspecto e o gosto dos alimentos, de mais prestígio eles gozavam. A distância do natural, nesse caso, indicava o quão civilizado se era. Sobre isso, diz Montanari: A ideia do artifício, que transforma a natureza, preside por séculos a atividade do cozinheiro. Formas, cores, consistências são modificadas, plasmadas, “criadas” com gestos e técnicas que subentendem uma distância programática da “naturalidade”. (MONTANARI, 2008:57)

PRADO (2008). Por uma normalização ortográfica de palavras latinas incorporadas ao português. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e identidade, no 35, p. 37-48, 2008.

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Os gestos e técnicas aplicados nessa arte da cozinha estão intimamente ligados à memória coletiva de um dado momento histórico-cultural, que conta com significados e práticas particulares e muito diversas das contemporâneas. Portanto, considerando que a “língua como sistema acompanha de perto a evolução da sociedade e reflete de certo modo os padrões de comportamento, que variam em função do tempo e do espaço” (MONTEIRO, 2000:16), um trabalho que relaciona léxico e cultura é de interesse não apenas para os estudiosos da área específica dos estudos clássicos da Roma antiga, mas também para aqueles que mergulham no universo clássico, buscando uma visão mais crítica, tanto dessas antigas sociedades, como de sua própria. Partindo do material coletado durante o trabalho de Iniciação científica, intitulado “Confluências entre o De Re Coquinaria, de Apício e a Naturalis Historia, de Plínio”, estruturou-se um “Glossário de Culinária latina”, em que foram traduzidos trechos da Naturalis Historia que pudessem, nos mais variados contextos, esclarecer os significados culturais e usos cotidianos de termos retirados de algumas das receitas do Livro I do De Re Coquinaria. O intuito deste Glossário é ajudar a desvendar o significado de termos que têm sua significação inserida em uma cultura distante e que, além disso, são parte de um conjunto de lexemas próprios do ambiente semântico pertencente às práticas gastronômicas da Antiguidade. Já por volta do século V a.C., Artemidoro, filósofo grego, teria escrito um glossário com essa finalidade, segundo Soares (2010:46) “a obra que lhe vem atribuída, um Glossário de Culinária, atesta que ao nível do saber culinário se aplicava um método próprio do logos científico em geral, a definição de terminologia própria”. Com um “vocabulário culinário próprio de uma cultura há muito desaparecida” (PRADO, 2007:3), Apício também se utiliza, em suas receitas, de toda a sorte de ingredientes, condimentos e modos de preparo, próprios da cultura gastronômica romana e que, portanto, em muitos casos não encontram equivalentes modernos em língua portuguesa, como se pode observar na tradução das receitas apresentada a seguir:

V. VINVM EX ATRO CANDIDVM FACIES:

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Lomentum ex faba factum vel ovorum trium alborem in lagonam mittis et diutissime agitas. Alia die erit candidum. Et cineres vitis albae idem faciunt. 5. Faça vinho branco a partir do tinto: Coloque sabão feito de farinha de fava ou a clara de três ovos numa moringa e agite por um longo tempo. No outro dia ele estará branco. As cinzas da videira branca produzem o mesmo efeito. VI. DE LIQVAMINE EMENDANDO: Liquamen si odorem malum fecerit, vas inane inversum fumiga lauro et cupresso, et in hoc liquamen infunde ante ventilatum. Si salsum fuerit, mellis sextarium mittis et moves, picas, et emendasti. Sed et mustum recens idem praestat. 6. Como purificar o linquâmine: Se o liquâmine adquirir odor forte, defume uma vasilha vazia, de pontacabeça, com louro e cipreste, e derrame nela o liqüâmine previamente arejado. Se estiver muito salgado, coloque meio litro2 de mel, mexa, tampe e já o recuperou. Mas o mosto3 fresco se presta ao mesmo uso.

(De Re Coquinaria, Liber I: Epimele, Trad. e notas João Batista Toledo Prado4) É fácil observar que muitos termos já traduzidos continuam trazendo significados estranhos ao nosso universo sêmico-cultural, o que se justifica pela distância espaçotemporal entre o momento em que circulavam e o momento presente, como já se assinalou aqui. Na receita de número 5, por exemplo, tem-se a palavra fava, uma planta nativa da região do mar Cáspio e do Norte da África, cultivada desde a antiguidade como fertilizante do solo; além de figurar no ornamento das casas, apesar de ser comestível (PRADO, 2004: 74). Na receita seguinte, a de número 6, temos a palavra linquâmine, por exemplo, que não conta nem com um vocábulo nem com um conceito em língua portuguesa que a definam precisamente, e que, portanto necessita de explanações para tanto. Os sentidos

2

Sextarius: medida volumétrica equivalente a 1/6 côngio ou duas heminas ou 5,4 decilitros, o que dá, aproximadamente, meio litro. 3 Mustum: trata-se do vinho novo, forma doce e ainda não complemente fermentada da bebida. Aqui, provavelmente, trate-se de sua forma ainda não fermentada, porque o autor acrescentou o qualificativo recens, “fresco”. 4 PRADO, 2004:74.

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latinos para o termo indicam uma espécie de mistura líquida, um molho, ou mesmo gordura derretida à base de miúdos de pescado (PRADO, 2004: 75). Ainda na receita 6, aparece a palavra mel, que apesar de ser comum ao nosso léxico, conta com valores culturais e significados sumplementares e diversos daqueles atribuídos por nossa cultura. De posse dessas reflexões, este trabalho elegeu como córpus cenas de banquetes presentes na literatura latina, como por exemplo, as Sátiras II, 4 e II, 8 de Horácio, a famosa ceia de Trimalquião, de Petrônio, entre outras e procurará traduzir e analisar, com base no Glossário de Culinária latina já referido, a significação cultural de termos recorrentes nessas cenas e, com base nessa análise, investigar de que maneira esses termos contribuem para a expressão poética dos textos em que ocorrem. Ainda que o trabalho dialogue com áreas afins como história, antropologia, arqueologia, entre outras, cabe justificar que sua finalidade está essencialmente situada no campo das Letras, na medida em que propõe restaurar as significações presentes numa dada sincronia e, mais ainda, sob crivo estético. Ao esmerilhar os signos presentes nas cenas literárias de banquetes que constituem o córpus e buscar a reconstituição de seus significados por meio de comparações com as obras anteriormente mencionadas, de modo que se possa chegar ao contexto em que eles se ressignifiquem enquanto matéria-prima do fazer literário, a pesquisa tem em seu cerne a ânsia pela pluralidade semântica que só a práxis proporciona. Bibliografia FERREIRA, J. P. Cultura é memória. Revista USP, São Paulo (24): dezembro/fevereiro 1994/95, p. 114-120. LEVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2008. LOTMAN, I. M. Sobre o problema da tipologia da cultura. In: SCHNAIDERMAN, B. (org.) Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979. MONTANARI, M. Comida como cultura. Trad. Letícia Martins de Andrade. São Paulo: Senac, 2008. MONTEIRO, J. L. Para compreender Labov. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

305

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(11/05/2004): acesso em

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DIALOGISMO FRENTE À QUESTÃO IDENTITÁRIA NO DISCURSO FICCIONAL DE MARÍA ZAMBRANO EM “CLAROS DEL BOSQUE” – A MULHER EXILADA Mariana Funes María Dolores Aybar-Ramírez Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Por volta dos anos trinta do passado século, produziram-se na Espanha momentos de grande turbulência histórica. Da ilusão modernizadora e transformadora passou-se ao mais sangrento período vivido pela Espanha, e depois, pelo mundo. Começou com o fim da ditadura militar comandada pelo general Miguel Primo de Rivera e terminou com o mais longo regime ditatorial vivido pelo país – de quarenta anos – comandado agora pelo general Francisco Franco. Entremeio a estes dois regimes a Espanha viveu a II República. Logo, os anos iniciais do século XX foram de extrema confusão e irracionalidade, tanto por terem despertado ilusões e expectativas, como por quebrá-las por completo, devido à dramática realidade que se sucedeu. A Europa vivia uma verdadeira cultura de crise, e tais experiências totalitárias marcaram indelevelmente a obra de María Zambrano. A obra da autora compreende a narrativa, o relato autobiográfico e se centra no 306

impulso em harmonizar o metafísico com o místico, buscando com este fim propor a razão poética como uma possível solução à crise existencial instaurada pelos motivos supracitados, estes que encaminharam a autora para um exílio de 45 anos. A razão poética surge pela necessidade em levantar pontos sobre a relação existente entre poesia e filosofia. O método proposto por Zambrano busca um novo olhar à origem, “[…] se mueve como en espirales constantemente sobre el fondo metafísico y primordial del que brota la palabra y el anhelo de plenitud del ser” (PIÑAS SAURA, 2005, p. 133). Segundo a autora, em algum momento do desenvolvimento da linguagem nasceram os dois gêneros literários, que se separaram como manifestação de um rompimento interior, todavia, as duas manifestações, tanto a poética quanto a filosófica são imprescindíveis para se construir a significação do mundo. A palavra poética seria anterior à palavra racional (filosófica) – portanto esta manteria uma relação de dependência com aquela – e por meio da reconstrução de significados de palavras gastas e sem mais sentido, haveria o reencontro entre essas duas instâncias, “Busca en el nacimiento del pensar, no una abstracción que aísle, sino alimento para lo humano. De ahí su deslizarse por los laberintos de la historia, descubriendo la necesidad de respuesta para una inocencia sepultada a la que no se le deja la posibilidad de transparencia” (PIÑAS SAURA, 2005, p.134). Assim a palavra poética busca deslindar o mais profundo da existência humana, “la poesía ha sido en todo tiempo, vivir, según la carne, dentrándose en ella, sabiendo de su angustia y de su muerte” (Zambrano, 1971, p.159). Desta feita, percebemos que a autora tentou recuperar as categorias religiosas em suas origens, quer dizer, a linguagem poética que pretendia dar conta da ordem do mundo – considerando aqui as liturgias e as fórmulas sacras – recuperando o intento inicial do pensamento onde inexistia a separação entre poesia, religião e filosofia. “¿Qué es lo que eleva el oscuro ímpetu de la vida al alma, y el alma a la razón sustentando la separación entre filosofía y poesía?” (Zambrano, 1971, p.159). A partir de “Claros del bosque” a autora promove um aporte à literatura, e não somente acentua o caráter fronteiriço e limiar de seu discurso. Sua poética se aproxima da mística, por registrar experiência extremas que, como tais “tienden a formas análogas de lenguaje (o de suspensión de lenguaje) y a formas análogas de expresión” (Goytisolo,

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1999, não paginado). Somente é possível referir-se ao nada de maneira metafórica, por meio da poesia, circunscrevendo uma ausência, esta que “No puede ser pensada en función del ser, sino desde la revelación o lo poético” (PIÑAS SAURA, 2005, p. 132). E o poético orbita no omitido “en círculos reiterados y obsesivos, en un incesante ritual de ocultaciones y descubrimientos” (p.133) Desta feita, a razão poética de Zambrano surge como uma antítese à razão vigente naquele momento, esta que havia aprisionado a vida, completamente cega pelas paixões, Debía ser terriblemente amargo haber descubierto el orden, La figura, de los últimos elementos de la realidad, haberla hecho transparente, encontrado su medida, su razón, para vivir luego en un mundo sin razón y sin medida, para vivir en un mundo absurdo en el que el delirio era la realidad diaria. “La vida era de nuevo una pesadilla”. (Carrasco, 2010,

não paginado). Sob a condição de mulher exilada, María Zambrano concebe e publica suas melhores obras. O exílio, sobretudo como experiência metafísica, promoveu mudanças substanciais na visão que a autora tinha, primeiramente da Espanha e da Europa e, por conseguinte, do mundo, fato que transforma sua obra filosófica e seu texto literário. A busca pela reconciliação entre o pensar e o ser, como uma solução frente à crise pessoal da autora, promove a introspecção como escapatória para o jugo vivido pelo sujeito exilado. Em “Claros del bosque” Zambrano nos apresenta decisivamente este questionamento metafísico, esmiuçando a dor e a saudade sentidas de maneira profunda, impulsionada pela criação poética, gerando um sentimento místico que pretende recuperar o sentimento religioso como base para a meditação, a fim buscar a compreensão da vida no seu mais amplo sentido. É nesta obra que nos é apresentado na prática o conceito de razão poética, esta que “[…] se deslizará a plena luz por la sombra” (PIÑAS SAURA, 2005, p. 131). Zambrano (1990, p.42) considerara que sua pátria limitava-se em ser para ela “el lugar de la historia que se sembró” e que interrompeu seu crescimento, como uma “sepultura sin cadáver, una arquitectura de la historia”. A pátria somente reaparecerá quando o desterrado deixe de buscá-la e consiga somente contemplar o vazio. Considerando Piñas Saura (2005, p. 138), ao nascer “se inicia el duro camino de separaciones y orfandades, que alumbran toda la trayectoria de lo humano. Opacidad de un corazón atravesado por las huellas o fracturas de la pérdida”. Assim o exílio seria a

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alternativa que o ser humano encontra para não perder sua liberdade, esta que está intrinsecamente atrelada a uma exigência, a de despertar para a razão, processo que engendra a criação da própria pessoa. É possível observar a obra de María Zambrano, de maneira dialógica, mas, sobretudo, criativa, ao passo que a autora primava por buscar o seu próprio pensamento, sua própria razão, fato que, por vezes refletia nas obras de grandes autores contemporâneos ou não a ela. A transcendência presente na obra de Zambrano propicia o estudo intertextual, considerando o discurso filosófico – ensaístico – e o discurso literário. O conflito e a consonância entre os discursos presentes em suas obras são possíveis de serem estudados sob uma perspectiva dialógica, fato que encaminha o presente projeto pelas vias de estudo da intertextualidade. Este trabalho pretende, portanto, abordar o discurso ficcional de maneira a identificar, pelas vias do dialogismo bakhtiniano, as vozes recorrentes que tratam sobre a condição agônica de mulher exilada na narrativa de María Zambrano, especificamente na sua obra “Claros del bosque”. Pretende-se, ao longo da pesquisa, investigar a representação da razão poética, enquanto fenômeno dialógico e propulsor de dissonâncias e tensões, sob a perspectiva da crítica dialógica de Mikhail Bakhtin (2008). Esta pesquisa encontra-se em fase de levantamento da fortuna crítica referente ao tema exposto, bem como de aprofundamento nos estudos da obra “Claros del bosque” e dos escritos da autora que aportem à explanação da obra para a constituição do corpus pertinente. Ademais, no momento estão sendo cumpridos os créditos referentes às disciplinas. Outrossim, os objetivos específicos deste projeto são:  Pontuar o conceito de razão poética, no intento de se chegar à conceituação pretendida pela autora, quer dizer, por meio do dialogismo encontrar de que maneira ela promove o reencontro entre a palavra originária – poética – e a palavra dissidente – filosófica.  Contextualização dos fatos históricos e culturais concernentes à evolução do pensamento no tempo e no espaço de María Zambrano, sobretudo no que

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concerne ao sentimento agônico espanhol e à agonia européia, respectivamente instaurados pela guerra fratricida espanhola, e pela II Guerra Mundial Análise das relações intertextuais na construção da representação identitária do sujeito na obra escolhidas da autora, sob o viés da dupla condição de exilada e de mulher, que se constrói no discurso literário e mais concretamente no texto de natureza confessional. Para tal recorreremos ao texto narrativo “Claros del bosque”, mas também a textos filosóficos e meta-poéticos da autora, estipulando um diálogo entre os mesmos. Bibliografia ANDÚJAR, M. Actualidad y proyección de la narrativa del exilio español. In: PÉREZ ALCALÁ, E.; MEDINA CASADO, C. (org.) Cultura, historia y literatura del exilio republicano español de 1939. In: CONGRESO INTERNACIONAL “SESENTA AÑOS DESPUÉS”, 1999, Andújar –Jaén. Actas. Jaén: Associaciò d´Idees & Universidad de Jaén, 2002. p. 33-51. AYBAR RAMÍREZ, M. D. Literatura exilada: o espaço em L’agneau carnivore de Agustin Gomez-Arcos. 2003. 235 p. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Araraquara, 03 dez.2033. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. BRAIT, B. As vozes Bakhtinianas e o Diálogo Inconcluso. In: FIORIN, J. L.; BARROS, D. L. P. (org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1999. p. 11-27. CARRASCO, D. S. (2010). Historia y violencia: Walter Benjamin y María Zambrano. Universidad de Murcia. Thémata. Revista de Filosofía. Número 43, págs. 417-434, 2010. DUEÑAS, B. S. Literatura e feminismo: Una revisión de las teorías literarias feministas en el ocaso del siglo XX. Sevilla: Arcibel, 2009. FIORIN, J. L. Polifonia Textual e Discursiva. In: FIORIN, J. L.; BARROS, D. L. P. (org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1999. GENETTE, G. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982. GÓMEZ CAMBRES, G. El camino de la razón poética. Málaga: Ágora, 1990.

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TEATRO E TEATRALIDADE NA OBRA DE MANOEL DE OLIVEIRA Mariana Veiga Copertino Ferreira da Silva (CAPES) Renata Soares Junqueira Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O cinema de Manoel de Oliveira tem a marca da resistência ao cinema comercial que se vende para a indústria cultural. Por conta disso, este cineasta é considerado um revolucionário do cinema, e não só quando se trata do âmbito do cinema português. Com 103 anos de idade, dos quais 77 são dedicados ao cinema, Oliveira tem 26 filmes de curta e média-metragem e 30 de longa-metragem, produzidos em Portugal, França, Itália, Suíça e Brasil. Tendo dado início à sua carreira em 1931 com o documentário Douro, Faina Fluvial, Manoel de Oliveira atravessou o século XX, realizando pelo menos um filme por ano desde o princípio da década de 1980, quando lançou Francisca (1981). Adentrou ainda o século XXI, tendo produzido diversos filmes, longas e curtas-metragens, até o ano de 2012. Um dos aspectos mais interessantes da produção de Oliveira é a sua relação intrínseca com as outras artes como a pintura, desenvolvida em filmes como O pintor e a cidade, de 1956; a escultura, que pode ser vista em As estátuas de Lisboa, de 1932; a música, que é 312

bastante explorada em Os canibais, de 1988, e principalmente a literatura e o teatro. Renata Soares Junqueira, na apresentação do livro Manoel de Oliveira: uma presença afirma o seguinte: Leitor obstinado, com efeito, de textos filosóficos, literários e dramatúrgicos de variado quilate, inscritos num quadro autoral de grande envergadura[...], Oliveira derivou de tentativas de adaptação cinematográfica da literatura e do teatro quase todos os seus grandes filmes, que são sempre ostensivamente teatrais. (JUNQUEIRA, 2010, p.

xx) Considerando que a teatralidade presente na obra de Manoel de Oliveira não é sem propósito, esta pesquisa se propõe a analisar esses aspectos teatrais, com a intenção de identificar a estética própria do cineasta e analisar esse método de criação que se vale da teatralidade para mostrar ao espectador aquilo que ele vê como o que realmente é: um filme, uma obra de ficção. Isto se revela a partir do uso de técnicas do teatro épico, que determinam claramente o distanciamento entre o espectador e aquilo que ele assiste, rompendo qualquer possível ilusão de realidade. Para análise, o filme que escolhemos é O Meu caso (ou Mon cas no título original), produzido em 1986, na França, que tem sua origem na peça O Meu Caso de José Régio. O texto de Régio, por si só, já é absolutamente teatral, primeiramente por ser um texto de dramaturgia, mas também e principalmente por se tratar de um texto metateatral, ou seja, é uma peça em que se interpreta uma peça. Manoel de Oliveira se vale disso e acaba produzindo um de seus filmes mais herméticos, no qual o espectador assiste na tela do cinema à interpretação desta peça de José Régio, porém em uma releitura tipicamente oliveiriana. Para essa composição, o cineasta ainda faz uso de textos extraídos de Pour finir encore et autres foirades, de Samuel Beckett, e do livro de Jó, do Antigo Testamento, que subsidiam o desenvolvimento do tema da incomunicabilidade humana neste filme. A relação entre Régio e Oliveira foi sempre bastante estreita – não por acaso o cineasta adaptou várias obras do dramaturgo para o cinema. Régio chegou a mencionar o trabalho de Oliveira algumas vezes na Revista Presença, em Portugal, no inicio do século XX. O escritor modernista distinguia dois tipos de cinema: um industrial, dedicado a agradar o público, e um artístico, que buscava fazer uma pesquisa estética, e era neste

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segundo que se incluía Manoel de Oliveira. Para Régio, seu amigo cineasta tinha uma poderosa visão de poeta que se expressava através do cinema.1 Desta forma, é possível notar a presença de uma teatralidade essencial, privilegiada na estética de Manoel de Oliveira. Esta pesquisa tem como objetivo, além de verificar essa “teatralidade cinematográfica”, contribuir para a ampliação dos estudos sobre Manoel de Oliveira, sobretudo no Brasil, uma vez que este cineasta se destaca no cenário mundial até hoje, com os seus quase 104 anos de idade, com uma produção artística que resiste veementemente ao cinema comercial. Tendo como base obras literárias, Oliveira procura fazer releituras, criando novas obras que, através do culto dos chamados planos fixos, parecem querer romper o ritmo frenético da vida moderna e, por sua complexidade e importância, merecem ser estudadas. Pretendemos identificar no filme “O meu caso” aspectos de teatralidade, buscando verificar a hipótese de que Manoel de Oliveira preza o uso de elementos teatrais – à maneira de Brecht, ainda que não com o mesmo grau de engajamento – como forma de, com intenção didática, chamar o leitor a refletir sobre as formas da linguagem cinematográfica e os seus sentidos possíveis. A pesquisa encontra-se ainda em estágio inicial, no qual está sendo feita uma fundamentação teórica para realização da análise proposta, que resultará na dissertação de mestrado desta pesquisadora. Esse embasamento consiste, sobretudo, em estudos teóricos e críticos sobre a produção de Manoel de Oliveira e estudos sobre a linguagem teatral, sobre a linguagem cinematográfica e também sobre a metalinguagem, elemento tão importante em O meu caso. Dentre as teorias estudadas para embasar a análise, destacam-se a leitura da fundamentação sobre Opacidade e Transparência do discurso cinematográfico, proposta por Ismail Xavier, no intuito de compreender o funcionamento da linguagem cinematográfica; as teorias sobre montagem do renomado cineasta Sergei Eisenstein, através das quais busca-se elucidar o funcionamento da construção discursiva no cinema; e a teoria sobre o Drama Moderno, de Peter Szondi, a fim de compreender melhor as relações que o cinema de Oliveira estabelece com o teatro. Na bibliografia básica da pesquisa, destacam-se ainda nomes como António Preto, Patrice Pavis, Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, dentre outros. 1

Informação retirada do ensaio Manoel de Oliveira/José Régio: as correntes de ar, presente no catálogo da exposição Manoel de Oliveira/José Régio releituras e fantasmas ocorrida em Vila do Conde, Portugal, entre os anos de 2009 e 2010.

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Bibliografia ALFRADIQUE, Julio, LIMA, Carla. Da literatura para o cinema. Rio de Janeiro: Mirabolante, 2010. ANDREW, J. Dudley As principais teorias do cinema: uma introdução. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. AUMONT, Jacques, MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. Campinas: Papirus, 2003. BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasilinse, 1991. BAECQUE, Antonio de. Cinefilia. São Paulo: Cosac Naify, 2011. (Coleção Cinema, Teatro e Modernidade). BRITO, João Batista de. Literatura no cinema. São Paulo: UNIMARCO, 2006. BRITO, José Domingos de. Literatura e cinema: mistérios da criação literária. São Paulo: Editora Novatec, 2007. CEGARRA, Michel. “Cinema e Semiologia”. In: SEIXO, Mª Alzira (org.), Análise semiológica do texto fílmico. Lisboa: Editora Arcádia, 1979, p..65-165. (Colecção Práticas de Leitura). CHALHUB, Samira. Metalinguagem 3 ed. São Paulo: Ática, 1998 EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Apresentação, notas e revisão técnica de José Carlos Avellar. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Apresentação, notas e revisão técnica de José Carlos Avellar.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. FERREIRA, Carolin Overhoff (org.). O cinema português através dos seus filmes. Porto: Campo das Letras, 2007. (Campo do Cinema, 5). GOLIOT-LETE, Anne e VANOYE, Francis. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 2002. JUNQUEIRA, Renata Soares (Org.).Manoel de Oliveira: uma presença. Estudos de literatura e cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. MACHADO, Álvaro (org.). Manoel de Oliveira. São Paulo: Cosac Naify, 2005. MAGALDI, Sábato. O texto no teatro. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. (Estudos, 111).

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NOS RASTROS DA BARATA, NOS PASSOS DE G.H.: CIRANDA DE TEXTOS CLARICEANOS Mariângela Alonso (CNPq) Guacira Marcondes Machado Leite Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A pesquisa proposta neste projeto de doutorado delineou-se a partir de estudos desenvolvidos anteriormente. Durante o mestrado, o estudo realizou-se a partir do processo de escrita moderna de Clarice Lispector, tendo como objetivo a compreensão da teoria da narrativa poética e sua discussão no romance A paixão segundo G.H. O estudo de teóricos como Jean-Yves Tadié (1978), Ralph Freedman (1963), Michel Raimond (1966), Tzvetan Todorov (1980), entre outros, permitiram a leitura analítica da narrativa de Clarice Lispector, acentuando nela um olhar lírico. Diante da complexidade da obra clariceana, este estudo visa dar continuidade à pesquisa desenvolvida na dissertação de mestrado, propondo investigar as articulações entre os textos Meio cômico, mas eficaz; Receita de assassinato (de baratas); A Quinta História e A paixão segundo G.H. A pesquisa insere-se nos estudos de intertextualidade, processo definido como a retomada de um texto por outro, ou seja, as relações entre diferentes textos de autores 316

diversos. Porém, esta investigação centra-se em textos de um mesmo autor, pautando-se no que o teórico Gérard Genette concebeu como autotextualidade ou intratextualidade, fenômeno caracterizado pela remissão à própria obra. Em Meio cômico, mas eficaz1, Lispector lança mão de uma linguagem despojada, adotando um discurso construído em um tom de conversa íntima. Todavia, é exatamente nessas páginas que se concentraram alguns embriões de contos e romances, espécie de conjunto de textos que se complementam em vários sentidos, conforme abordado pela crítica. A crônica apresenta-se na forma de uma receita para matar baratas e acaba por revelar a gênese do que seria o conto A quinta história e do romance A paixão segundo G.H., ambos publicados em 1964. A pesquisa encontra-se no segundo ano de doutorado. As análises desenvolvidas até o momento objetivaram discutir e esboçar o procedimento de mise en abyme presente no conto “A quinta história”. O resultado desta análise culminou na publicação do artigo “Um enredamento de baratas: a mise en abyme em A quinta história, de Clarice Lispector”2. A disciplina “Manifestações do cômico na literatura”, ministrada pela profa. dra. Sylvia Tellaroli, possibilitou a discussão e o entendimento de aspectos grotescos e cômicos presentes na poética clariceana. A monografia final do curso foi apresentada no 60º Seminário do GEL (Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo), realizado na cidade de São Paulo (FFLCH/USP), nos dias 04, 05 e 06/07/2012. Como complementação para a pesquisa, a aluna cursou a disciplina “Prosa brasileira: literatura e fortuna crítica de Clarice Lispector” (IBILCE/São José do Rio Preto), ministrada pelo prof. dr. Arnaldo Franco Júnior. O curso forneceu elementos para a publicação de outro artigo, “Entre o grotesco e a comicidade: a via crucis do conto clariceano”3. Bibliografia

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Este mesmo texto aparece, com pequenas modificações, em 16 de Agosto de 1960 na página “Só para mulheres” com o título de Receita de assassinato (de baratas). Esta página fazia parte do jornal Diário da Noite em que Clarice Lispector era ghost writer da atriz e modelo Ilka Soares. Evidentemente em nosso estudo, trabalheremos com as duas versões. 2 cf. ALONSO, Mariângela. Um enredamento de baratas: a mise en abyme em A quinta história, de Clarice Lispector. Estação Literária. V. 07, p. 57-67, 2011. 3 cf. ALONSO, Mariângela. Entre o grotesco e a comicidade: a via crucis do conto clariceano. Revista Escrita. V. 3, p. 81-94, 2012.

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DO DORSO À CAUDA DO TIGRE: TRILHANDO A LINGUAGEM DE CLARICE LISPECTOR Marília Gabriela Malavolta Luiz Gonzaga Marchezan Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Resumo de tema e corpus da pesquisa, seguido de figura sintetizadora: O projeto de pesquisa proposto tem como tema as narrações sobre forma feitas pelos narradores de A Paixão Segundo GH (PSGH), Água Viva (AV) e A Hora da Estrela (HE), de Clarice Lispector. Propõe-se uma análise de tais narrações ancorada na crítica de Benedito Nunes e na concepção chinesa de arte expressa no I Ching – O Livro das Mutações. Sendo esse conjunto o seu principal corpus, a pesquisa visa a perseguir o

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significante pathos de “paixão” (em PSGH), “compaixão” (em HE) e “empatia” (em AV) e a analisar, em conjunto, a metáfora presente no início de PSGH constituída por “nebulosa de fogo” e “terra”, bem como sua implicação, a de “aderência”, também identificada em HE e AV. Nestas duas obras, a aderência não surge através da citada figuração, mas por uma via que lhe é correlata, bem como ao pathos, e comum às três obras: a narração da dificuldade e da necessidade de se dar forma ao que é apresentado como inexprimível. No início de PSGH, a dificuldade e a necessidade da narradora autodiegética em encontrar forma para narrar a experiência ascética pela qual passou predominam; e o instante de rendição a alguma forma é narrado como devendo ser “nebulosa de fogo que se esfria em terra”, “crosta que por si mesma endurece”, a fim de que a forma se forme sozinha. Há equivalência desta figuração (somada a seu efeito de aderir) com outras que constam no I Ching como representações do processo artístico. “Rendição” é a colocação de Nunes sobre o pathos da escrita de Clarice como sendo um novo modo de dizer alcançado pela via do padecimento, processo que, segundo ele, inicia-se e se conclui em PSGH e, depois, reconfigura-se em HE, onde o crítico identifica a transmutação da “paixão” em “compaixão”. Assim, e havendo em HE imagens de aderência, pretende-se que narrações sobre o dar-lhe forma também componham material de pesquisa no cotejo com as colocações chinesas. Pretende-se expandir a análise de Nunes ao se interpor AV, publicado entre PSGH e HE, com vistas à “empatia” ali narrada, o que irá compor material a ser cotejado com a concepção chinesa de arte, uma vez também identificada a imagem de aderência.

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Análise

integrada objetivada pelo projeto de pesquisa proposto

Estágio atual da pesquisa: Até o presente momento, a pesquisa conta com as seguintes realizações: leituras de livros e ensaios de Benedito Nunes que abordam o fracasso da linguagem em Clarice Lispector, principalmente em PSGH; análise estruturalista acerca da narração sobre forma presente no capítulo inicial de PSGH; identificação das narrações sobre esse mesmo tema em HE e AV; identificação da passagem do I Ching – O Livro das Mutações que versa sobre as etapas da elaboração artística, a começar por sua instauração; identificação da pertinência em trazer à análise o conto “Os desastres de Sofia”; identificação da pertinência em também trazer à análise estudos de Jacques Lacan. Tendo-se como premissa o minucioso trabalho de Nunes, o que de fato se depreende das citadas leituras de Clarice é a linguagem fazendo-se também tema das narrativas e configurando-se como “fracasso”, uma vez impossível traduzir em palavras os conteúdos essencialmente buscados pelos citados narradores, segundo eles próprios nos contam, reiteradamente. Deste fracasso, chegou-se, por sua vez, à imagem de “aderência”, que, conforme o presente trabalho visa a propor, sugere significativas contribuições à fortuna crítica que trata do interlocutor evocado em PSGH bem como à análise de transmutação da “paixão” em “compaixão” a qual Nunes evidencia haver entre PSGH e HE,

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respectivamente. Viabilizadores da imagem de aderência foram o I Ching e, mais uma vez, o preâmbulo de PSGH, conforme se verá abaixo. Neste introito, de 47 parágrafos, GH narra repetidamente a necessidade e a dificuldade em contar algo que lhe acontecera durante algumas horas do dia anterior. Ao longo desse trecho, o leitor fica sem pistas mais factuais acerca do episódio, que nos vai sendo lacunarmente posto como narrativa principal. No 13º parágrafo, após abundantes intransitividades, relações de repetição, indefinições, figurações e interrogações, a narradora autodiegética narra sua rendição, submete-se ao contar. Muito embora não o faça até o final do capítulo, tem-se a partir desse instante as importantes narrações sobre as duas condições da rendição: a de que a forma forme-se sozinha e a de fingir que alguém lhe segura a mão. O ato da forma formar-se sozinha é narrado com o uso de metáfora equivalente a uma do I Ching que responde, nele, pela instauração do processo artístico. Tributária dessa metáfora – constituída por fogo e terra – é a aderência entre corpos, sem o que, conforme a concepção chinesa, não se tem o fogo. Em HE e em AV, momentos nos quais se narra sobre a forma não trazem a imagem de fogo e terra, mas sim a de uma aderência entre personagens. Rodrigo SM, por exemplo, em meio à dificuldade de narrar, anuncia tanto que Macabéa se lhe grudou na pele quanto que ele terá de se transformar nela para poder contar; a narradora de AV, assim como a de PSGH, interpela um seu interlocutor. De volta à PSGH, os trechos em que rendição e condições ocorrem, respectivamente, são: “Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada – então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma”. (LISPCETOR, C., 1996, p. 11) “Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém.” [...] “Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a mão.” [...] “Enquanto escrever e falar vou ter

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que fingir que alguém está segurando a minha mão”. (LISPECTOR, C., 1996, p. 11 e 13)

No I Ching – O Livro das Mutações, o hexagrama que responde pela materialização do conteúdo artístico, de acordo com o estudioso alemão Richard Wilhelm, tem como imagem o fogo na base da montanha, e surge a partir da mutação expressa na transcrição abaixo: “E para que a obra de arte tome corpo, também é preciso uma incubação. Veni creator spiritus: em certa ocasião, Goethe definiu esse canto como o processo mais perfeito de criação artística. O espírito vem, e se situa abaixo da alma e, ao descer, subordinando-se à alma, ele a penetra, incutindo-lhe suas forças; e assim a alma pode conceber, receptiva, e forma-se a obra de arte. Este processo é representado pela mutação do hexagrama T’ai no hexagrama P’i” . (WILHELM, R., 1995, p. 43)

Hexagramas: Ta’i

P’i

No hexagrama P’i, o trigrama superior formado é K’en, que designa a Quietude, e que tem como atributo e imagem o “Repouso” e a “Montanha”, respectivamente; já o trigrama inferior formado é Li, que designa a Claridade ou o Aderir, e que tem como atributo e imagem o “Luminoso” e o “Fogo”. Segundo Wilhelm, o hexagrama P’i, com estes atributos e estas disposições, “demonstra o conceito chinês do espírito da arte”. Sobre o modo como a criação artística fica representada por essa imagem, Wilhelm sintetiza: “Vemos então a luz que adere aos corpos como símbolo de uma atividade artística, como a claridade, a luz, o brilho. E, por outro lado, vemos o símbolo do que modela a forma, a possibilidade de dar estabilidade à forma, o elemento espacial, que deve ser dominado pelo espírito. Essa é a parte representada pela quietude, é a montanha, é K’en, o trigrama do repouso. A singularidade do quadro consiste justamente em que há um momento em que o fluir do tempo foi captado, e revestido de forma” . (WILHELM, R.,1995, p. 46)

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Em HE, o narrador Rodrigo SM, enquanto se prepara para contar sobre Macabéa, identifica-se em tal narração instaurando imagem similar à do referido quadro abordado por Wilhelm: “Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo” . (LISCPECTOR, C. 2006, p. 18)

Em resumo, e mais uma vez de volta à PSGH, ao expor as condições necessárias a fim de revestir de forma a sua experiência mística, a narradora refere-se a aderências entre corpos, trata-se tanto da nebulosa de fogo esfriada e cristalizada em terra quanto da artificiosa condição ou facilitação de se segurar a mão de um alguém. Este segurar a mão, por um outro lado, sugere avizinhar-se da abordagem de Nunes sobre a compaixão, presente em HE, como sendo reconfiguração de um processo que teria se em iniciado PSGH. Conforme já se adiantou, em HE o narrador Rodrigo SM anuncia que Macabéa se lhe grudou na pele, aspecto que tornaria imprescindível a narração, por sua parte, da vida da nordestina. Em HE, portanto, a personagem toda adere ao narrador, o que abriria caminho para a enformação de sua história: “A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto. Sim, e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó” . (LISCPETOR, C., 2006, p. 22)

Antes, em AV, ao buscar narrar algo inexprimível, surge assim a evocação da narradora por uma espécie de aderência, que vem de alguém precisar sentir algo junto com ela: “[...] Não sei explicar assim como não se sabe contar da aurora a um cego. É indizível o que me aconteceu em forma de sentir: preciso depressa de tua empatia. Sinta comigo. Era uma felicidade suprema” . (LISPECTOR, C., 1998, p. 79)

Com a pesquisa em andamento, encontrou-se, no final do enredo de “Os desastres de Sofia”, narrações sobre “arder” e prender” que compõem o tema do conto, a saber, a dificultosa gênese da escritura e da escritora, assunto correlato, por sua vez, às narrações

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sobre forma buscadas pela presente pesquisa. Desse modo, esse conto de A Legião estrangeira passa a fazer parte do trabalho. Como outro resultado da pesquisa, pretende-se incorporar a ela estudos de Jacques Lacan, a serem mais precisamente identificados. Isto devido aos seguintes fatores: à possibilidade de aproximar o fracasso da linguagem, abordado por Nunes, do Real, tal qual formalizado por Lacan; à recente descoberta, por parte da pesquisadora, de que Jacques Lacan não só estudou ideogramas chineses como colheu no pensamento chinês (mais especificamente em texto de Lao-tsé que aborda o Yin e o Yang, constitutivos também das linhas do I Ching) contribuição para formalizar a sua tópica do real, do imaginário e do simbólico. Bibliografia GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Lisboa, Arcádia, 1979. LACAN, Jacques. O Seminário: de um discurso que não fosse semblante. Livro 18. Tio de Janeiro, Zahar, 2009. LAO TSÉ. Tao te king. Versão integral e comentário, São Paulo, Attar Editorial, 2001. LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G. H. (edição crítica coordenada por Benedito Nunes). 2ª. ed. Madrid/Paris/México/Buenos Aires/São Paulo/Rio de Janeiro, ALLCA XX, 1996 (Coleção Archivos). ______. Água Viva. Rio de Janeiro, Rocco, 1998. ______. A Hora da Estrela. Edição especial com áudio-livro, Rio de Janeiro, Rocco, 2006. ______. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro, Rocco, 1999. NUNES, Benedito. A clave do poético. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. ______. Dois ensaios e duas lembranças. Belém, Secretaria da Cultura, Universidade Amazonas, 2000. ______. Introdução à filosofia da arte. São Paulo, Ática, 1989. ______. O dorso do tigre. São Paulo, Editora 34, 2009. ______. O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Ática, 1995.

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O FANTÁSTICO BALZAQUIANO NO SÉCULO XIX: DE ‘LA PEAU DE CHAGRIN’ À ‘L’ÉLIXIR DE LONGUE VIE’ Marli Cardoso dos Santos (CAPES) Maria Dolores Aybar Ramírez Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Os narradores balzaquianos percorreram caminhos insólitos em grande parte de La Comédie humaine. O leitor é conduzido nesses percursos, em que ora ou outra encontra personagens como Napoleão, espaços como La rivière Seine, movimentos como a Revolução Francesa e para analisar esses componentes da narrativa na obra de Honoré de Balzac é necessário ultrapassar fronteiras da imaginação; é chegar ao passado com os pés no presente; é encontrar antiquários, museus e figuras reais dentro de espaços e tempos de convergências. Nosso estudo parte dessas questões para analisar o conto L’elixir de longue vie de 1830 e o romance La peau de chagrin, escrito em 1831. Nos anos 1830 Balzac saía do frenético para engajar uma literatura ‘do diabo’. Ou seja, grande parte das narrativas do escritor, esteve intrinsecamente relacionada aos pactos, ao satanismo funesto dos personagens, ou como diria Milner (1960), ao campo vasto e limitado do diabo. Limitado, porque a manifestação material de Satã ocorre apenas em Melmoth réconcilié, de 1835; vasto, pelo fato de que Satã aparece como um arquétipo modulando vários personagens de La comédie humaine.

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Balzac, além de expor de forma peculiar os caracteres e situações da sociedade francesa do século XIX, contribuiu para que o leitor da época percebesse a natureza humana através de personagens medíocres, como Raphaël de Valentin e Don Juan de Belvidero, representados nessas narrativas pela busca de poder, por meio do auxílio de forças ocultas à ‘realidade’. É visando esse arquétipo maléfico que analisamos as narrativas balzaquianas, buscando compreender nos personagens e nos espaços narrativos a presença dos elementos fantásticos que corroboram para uma visão mais ampla da sociedade do século XIX. Na presente pesquisa, não focalizamos apenas o que há de sobrenatural, mas o insólito como elemento questionador do real e para isso, Albert Béguin, Max Milner e Pierre-Georges Castex, críticos da obra de Balzac e, Louis Vax, Remo Ceserani e Michel Foucault, teóricos do fantástico e do espaço, são nossas principais fontes para o desenvolvimento da pesquisa. Sabemos que a extensão de A comédia humana não nos permite fazer uma análise aprofundada de todas as narrativas que têm o insólito como pano de fundo. Por essa razão, continuamos nossa pesquisa em L’elixir de longue vie e La peau de chagrin, duas narrativas significativas e com elementos semelhantes. Os personagens dessas duas histórias têm em comum a busca pela imortalidade e pela realização de desejos, mesmo que essa busca acabe de modo indesejado para os dois. Basicamente, já fizemos uma análise do conto L’elixir vislumbrando os procedimentos narrativos e discursivos do conto, além de realizar um percurso nessa narrativa, para perceber o arquétipo satânico do personagem Don Juan de Belvidero. Don Juan é um dos grandes mitos do Romantismo, essa figura aparece como protagonista em muitas obras de escritores conceituados, como o caso de Tirso de Molina e Molière. No entanto, a relação do Don Juan de Balzac com El Burlador de Sevilla de Tirso de Molina é modificada em alguns detalhes. O Don Juan balzaquiano chega a ser mais cruel que o Don Juan ‘burlador’; apesar de não fazer nenhuma menção a esse resgate do escritor espanhol, Balzac constrói um personagem que possui características bem próximas a um dos primeiros Don Juan: a busca pelo poder através da mediocridade e do egoísmo. O Don Juan de Balzac é um jovem que vive em meio a orgias e festas. Certa noite, um criado surge dizendo que seu pai, Bartoloméo, está morrendo, para certa alegria do rapaz que já estava preocupado com a longevidade do pai. Contudo, para a surpresa de Don

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Juan, Bartholoméo guardou em um frasco de cristal um líquido muito raro, o elixir da imortalidade que conseguiu no oriente há muitos anos. Para Castex (1962), o velho Bartholoméo sempre quis e buscou o poder, sobretudo quando ele conseguiu riquezas preciosas no oriente, sendo uma das mais importantes aquela que o permitiu ressurgir dos mortos, o elixir. A busca pelo poder é constante nos personagens balzaquianos; assim como Bartholoméo, Castenier em Melmoth e Raphäel de Valentin em La peau de Chagrin também quiseram realizar seus desejos e ter poder, mesmo que esse gesto lhes custasse a alma e a vida. É como se esses personagens pretendessem ocupar o lugar de Deus, esse seria um dos desejos do velho Bartholoméo, que fez de tudo para aumentar a sua longevidade e depois quis a eternidade. Além disso, assim como os contos de fadas apresentam objetos mágicos, que fazem a mediação para a magia do conto, nessa narrativa balzaquiana, o elixir corresponde a esse objeto mágico, a um elemento mediador entre o real e o sobrenatural. Se nesse conto o elixir não tivesse o poder esperado por Bartholoméo, as peripécias do texto terminariam ali, mas não é isso o que ocorre, pois os efeitos desse bálsamo milagroso estendem-se, não no pai, que foi privado, mas no filho, depois de um longo tempo. Desse modo, o conto balzaquiano nos envolve causando as mais diversas sensações. Desprezamos o herói, mas ao mesmo tempo, não deixamos de ler o conto. Ainda mais porque o jovem rapaz manda fazer uma estátua bem pesada do pai para colocar sobre o túmulo, talvez com receio de que ele possa voltar a viver. Essa possibilidade não ocorre, mas todos os cuidados são necessários nesse enredo insólito em que tudo pode acontecer. E, assim, como o Don Juan de Molina, o nosso herói volta às origens e vai para a Espanha, onde se casa com Dona Elvire, retomada de uma das personagens do Don Juan de Molière. São muitas intertextualidades com vários textos clássicos e vemos que esse diálogo é fundamental para a construção do personagem por meio de um fantástico jocoso, em que o horror está presente ao lado do riso. É nesse ponto que procuraremos trabalhar com o teórico Bergson. Além do mais, se pensarmos na articulação dessa narrativa, veremos que se trata de um movimento espacial e temporal em que há uma pluralidade de sentidos – outra característica essencial do conto, segundo Jolles (1976). A história de Don Juan atravessa quilômetros, de um palácio de Ferrara, na Itália, aos mais diversos países do mundo, até

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chegar à Espanha. O espaço percorrido pelo personagem corresponde ao tempo da narrativa, que se estende por muitos anos, demonstrando a longevidade de Don Juan. Podemos então situar o personagem fisicamente, pelo espaço geográfico percorrido no conto e, temporalmente, pelos longos anos que passou em uma vida repleta de prazeres, pela conquista do mundo, como bem observou Castex (1962). O poder está agora nas mãos de Don Juan, ele pode percorrer o mundo, assegurado pelo elixir que um dia será sua fonte da juventude. Com isso, em uma empreitada de viagens, compras, mulheres, Don Juan, diferentemente do burlador, resolve se casar aos sessenta anos com Elvire e desse casamento nasce sua esperança, o meio para que ele também reviva, uma vez que será Philippe o encarregado de ungir o liquido mágico em seu pai. O próximo passo na análise desse conto é tecer um perfil comparativo do personagem don Juan na história da Literatura para demonstrar que o don Juan, antes herói conquistador como o que vemos em Molina e Molière, é agora ridicularizado pela posição em que se encontra depois do uso do elixir. Nesse momento, buscaremos investigar como as partes deslocadas do corpo constituem motivos fantásticos dentro do conto e, além do mais, exploraremos as origens do elixir ou bálsamo mágico a partir de seu uso na literatura. No romance La peau de chagrin, analisamos a forte influência de Satã nos personagens, com o auxílio dos críticos Max Milner e Pierre Georges Castex e, ainda, abordamos a construção do tempo e do foco narrativo nesse romance, por meio das teorias de Gérard Genette. Como se trata de um texto de longa extensão, priorizamos alguns fragmentos mais significativos, que possam dar suporte as pretensas análises temporais e as relacionadas à focalização. Assim, justamente na página inicial do romance, o narrador inicia o enredo como entidade exterior à narrativa; ele não faz parte da história, narra os acontecimentos de fora, sem saber tudo sobre a vida do personagem. O narrador se apresenta nesse trecho como extradiegético, pelas definições de Gérard Genette (1995), pois não faz parte da história. Essa particularidade do narrador faz com que o leitor vá descobrindo a história aos poucos, pela construção do personagem. O narrador vai levantando conjecturas por meio de uma ironia refinada, como se não estivesse preocupado com o destino do personagem. Narrativas ulteriores como La peau de chagrin são intemporais, marcam épocas, contam fatos relacionados ao comportamento e à natureza humana, não apenas de um

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século, já que apresentam características universais do ser humano. O jovem que entra naquela casa é, segundo Genette (1995, p. 189), visto pela focalização externa. Genette chega a dizer que o narrador balzaquiano de La peau de Chagrin assemelha-se a um narrador onisciente, aquele que sabe tudo da história e dos personagens, mas segundo o próprio teórico, essa afirmação seria negligenciar a parte da focalização externa. Para Mieke Bal (1977, p. 119), « Si l’histoire est racontée en focalization externe, elle est racontée à partir du narrateur, et celui-ci a un “point de vue”, dans le sens primitif, pictural, sur les personnages, les lieux, les évenements. »; Por essa razão, priorizaremos a focalização do romance como externa e vamos fazer a análise de acordo com o desenrolar da história e do discurso. Além disso, ainda precisamos investigar com maior ênfase a espacialidade dessas narrativas para entender como se produzem os elementos espaciais e sua transição e diálogo entre o fantástico carregado de realismo e o realismo carregado de elementos insólitos. Em La peau de chagrin, as imagens espaciais estão bem presentes, como o antiquário, espaço heterotópico, segundo as definições de Michel Foucault (2006a). Esse espaço no romance carrega uma confluência de tempos, espaços e histórias, e é nele que Raphaël de Valentin se refugia para encontrar o grande talismã (a pele), que será o objeto mágico responsável pelo seu sucesso e seu fracasso, por sua vida e sua morte. Em L’elixir, os elementos espaciais estão ainda mais evidentes. O casarão, com seus corredores e quartos escuros, lembra os castelos góticos e, por isso, são também esses espaços responsáveis pelo clima sombrio que o enredo apresenta. É necessário ainda, explorar de forma mais sistemática as relações do pacto de poder com o comportamento dos personagens, para isso torna-se fundamental resgatar romances como Fausto de Goethe e Melmoth de Maturin, não com o intuito de comparação, mas como meios literários que possam iluminar nosso trabalho, uma vez que o diálogo com essas narrativas é nítido. Sendo assim, a pesquisa encontra-se em fase intermediária, muitas fontes foram resgatadas, e o que resta no momento é fazer uma articulação mais esquematizada entre as duas narrativas com todos os elementos semelhantes, para que com isso compreendamos o insólito balzaquiano não como simples artificio literário, mas como meio de visualizar o ser humano em sua complexidade.

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Esse trabalho procura abordar a ‘realidade’ na obra balzaquiana pela análise dos objetos mágicos, o elixir e a pele do chagrin, relacionados a uma influência diabólica e, ainda, por meio dos aspectos filosóficos, que envolvem um estudo aprofundado do homem e sua busca pelo poder e pela realização de desejos mundanos. O crítico Gaëton Picon (1965) afirma que a experiência de Balzac está ligada ao sobrenatural; quer dizer que suas narrativas possuem muito mais que o objetivo de mostrar as várias facetas do psicológico humano e social, esses textos se alicerçam no sobrenatural filosófico, que como afirma Picon, possuem influências divinas ou demoníacas, como o que ocorre nas narrativas propostas para análise. Para Milner (2006, p. 10), « Les héritiers du pacte, en tout cas, ne tardent pas à ceder à la seconde raison, la médiocrité de leurs désirs les empêchant d’imaginer toute forme d’au delá, même ici-bas, une fois assouvi le désir que les tourmante ». Raphaël e Don Juan são esses herdeiros do pacto, que com sua mediocridade e com o auxílio dos objetos mágicos, assinam o pacto diabólico, inconscientemente, pacto que, por sua vez, assegura-lhes a imortalidade e o poder, até o momento em que tudo é desfeito por um sentimento de ambição. Ainda há um longo caminho a ser percorrido em virtude da extensão da obra balzaquiana e pela quantidade de teorias a serem desmembradas. Todavia, os maiores passos já foram dados, uma vez que já houve a delimitação dos pontos a serem analisados em ambas as narrativas. Esperamos assim contribuir para uma visualização mais ampla da obra fantástica balzaquiana no século XIX, que havia sido esquecida por um tempo, em razão da importância dada ao estudo da sociedade no grande museu que é a La comédie humaine. Bibliografia BAL, M. Narration et focalisation. Pour une théorie des instances du récit. In : _ Poétique revue de théorie et d’analyse littéraires. N. 29. Paris, 1977. BALZAC, H. de. La Peau de chagrin. In : __ La comédie Humaine. Paris: Gallimard, 1979. BALZAC, H. de. L’elixir de longue vie. In : __ La comédie Humaine. Paris: Gallimard, 1980. BARBERIS, P. Balzac et le mal du siècle. Paris : Gallimard, 1970. 332

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O ROMANCE DE JOSÉ CÂNDIDO DE CARVALHO E O REGIONALISMO BRASILEIRO Naiara Alberti Moreno Juliana Santini Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A presente pesquisa tem por interesse central analisar os romances Olha para o céu, Frederico! (1939) e O coronel e o lobisomem (1964), do escritor brasileiro José Cândido de Carvalho (1914-1989), buscando compreender o modo como essas obras relacionam-se com a vertente regionalista da literatura brasileira. Embora os textos literários tomados como corpus da pesquisa não possuam uma vasta bibliografia crítica, a discussão sobre o regionalismo na literatura brasileira é bastante polêmica e de larga repercussão, motivo pelo qual há uma fortuna crítica ampla sobre o assunto, disseminada em artigos específicos e livros de história da literatura brasileira, desde os primórdios da crítica literária nacional. A despeito dos esforços de uma crítica recente empenhada em redimensionar a discussão, a controvérsia sobre o regionalismo é tamanha que se questiona, ainda hoje, a legitimidade da utilização do termo nos estudos literários. Diante disso, tornou-se forçosa, inicialmente, a realização de um amplo levantamento bibliográfico a fim de verificar o atual estado da questão, para então chegar, na medida do possível, a uma definição minimamente consensual sobre o regionalismo. Em função da abrangência do termo – utilizado para tratar de obras que vão desde o sertanismo romântico, o pré-modernismo, o ciclo de romances do nordeste até o chamado “superregionalismo” –, foi também necessário delimitar estudos críticos que se concentrassem em um dado período de manifestação do regionalismo. Para tanto, levando-se em conta a natureza dos romances e o momento em que foram publicados, privilegiou-se os estudos que tratam da configuração e transformação da tendência regionalista entre as décadas de 1930 e 1960. Essa delimitação do universo bibliográfico da pesquisa foi realizada visando a atender seu objetivo principal: definir a posição que os romances Olha para o céu, Frederico! e O coronel e o lobisomem – publicados por José Cândido de Carvalho em 1939 e 1964, respectivamente – ocupam no conjunto das produções regionalistas brasileiras, procurando

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determinar em que medida essas obras filiam-se – ou não – às tendências proeminentes em suas épocas. Pode-se considerar que ambas as obras, distanciadas no tempo por um intervalo de 25 anos entre suas publicações, dialogam com a tradição regionalista, assumindo direcionamentos e contornos distintos: enquanto a primeira aproxima-se do ideário estético predominante nos anos 30 – sendo por isso frequentemente associada pela crítica à produção ficcional do ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego –, a segunda parece orientar-se sobretudo pela renovação representacional e estilística inaugurada com a prosa de Guimarães Rosa. Desse modo, busca-se compreender se a modificação do paradigma de representação observado no interior da produção romanesca de José Cândido pode funcionar, em parte, como metonímia de um processo pelo qual passa a própria literatura brasileira, ao transitar de um regionalismo de inclinação mimético-realista (uma constante do romance de 30) para outro de dimensão mítico-popular, característico dos anos 50. Averiguar a sustentação dessa hipótese constitui uma das inquietações propulsoras desta pesquisa. Nesse mesmo sentido, são objetivos específicos do trabalho: averiguar a pertinência dos paradigmas de interpretação aplicados pela crítica na apreciação dos romances de José Cândido de Carvalho, sobretudo no que diz respeito à análise das relações de sua obra com o regionalismo literário; realizar uma leitura comparativa dos romances do autor com o intuito de compreender, tanto em termos temáticos quanto formais, se o processo de transformação do paradigma de representação em sua obra está em consonância com as modificações estéticas que se operam, de um modo geral, na vertente regionalista brasileira; analisar o processo de representação estética das conjunturas sociais brasileiras operado pelos romances em estudo, averiguando como as escolhas formais (foco narrativo, enredo, linguagem, caracterização das personagens, do espaço e do tempo) mimetizam identidades, e dimensões espacio-temporais específicas, transformadas em regiões literárias. Para a consecução dos objetivos propostos, as atividades de pesquisa foram planejadas de acordo com as seguintes etapas: 1. Ampliação e estudo do suporte crítico-teórico a respeito do regionalismo literário brasileiro, referente, sobretudo, à produção ficcional posterior à década de 30 (04 meses – ago. a nov./2012);

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2. Levantamento da fortuna crítica e sistematização dos conceitos críticos estabelecidos sobre os romances de José Cândido de Carvalho (04 meses – dez./2012 a mar./2013); 3. Averiguação da pertinência dos aspectos e modelos de interpretação utilizados pela crítica para compreensão das obras do autor em relação ao regionalismo literário (05 meses – mar./2013 a jul./2013); 4. Análise dos romances Olha para o céu, Frederico! e O coronel e o lobisomem, com base na bibliografia crítico-teórica levantada e definição do processo de transformação do paradigma de representação do autor (05 meses – jun./2013 a out./2013); 5. Redação do relatório parcial para o exame de Qualificação (05 meses – jun./2013 a out./2013); 6. Exame de Qualificação (out./2013) 7. Revisão da análise a partir das sugestões apresentadas pela banca e redação final do trabalho (05 meses – nov./2013 a mar./2014); 8. Defesa (abr./2014) Dessa forma, está em curso atualmente a etapa inicial da pesquisa que consiste na ampliação e estudo, por elaboração de resenhas, do quadro de referências críticas sobre o regionalismo literário brasileiro, do período delimitado. Quanto a isso, convém assinalar que a tese de doutorado de Juliana Santini (2007) dedica-se, parcialmente, ao estudo da fortuna crítica do regionalismo. Assim, a pesquisa parte desse panorama, priorizando textos críticos não contemplados pela autora e concentrando sua atenção especialmente naqueles que discutem os contornos assumidos por essa tendência nos períodos de publicação dos romances de José Cândido. Posteriormente, os traços apontados pela crítica como predominantes da ficção regional nesses diferentes períodos de manifestação serão analisados em relação aos romances em questão. Por isso, paralelamente, realizou-se o levantamento da fortuna crítica desses romances, a fim de definir os paradigmas de interpretação utilizados até o momento para a sua análise. Em vista da relativa escassez de estudos sobre o autor – especialmente em relação a seu primeiro romance –, essa etapa inicial, que está em desenvolvimento, compreende um panorama geral dessas leituras críticas, sintetizando suas questões centrais e demonstrando o modo como abordam a problemática do regionalismo. Essa leitura dos

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textos críticos busca, portanto, ser questionadora, no sentido de averiguar a pertinência dos conceitos e critérios de análise aplicados na apreciação das obras do autor. A etapa seguinte consistirá na análise dos romances que compõem o corpus de trabalho. Esse processo de leitura e interpretação deverá contemplar a observação de aspectos temáticos e estruturais dos romances em relação a sua confluência – ou divergência – com os traços detectados pela crítica como característicos de obras regionalistas nos diferentes períodos. A partir disso, será elaborado um estudo comparativo desses dois romances com o intuito de compreender a mudança que se opera no paradigma de representação da matéria regional pelo autor. Esse processo de revisão dos conceitos críticos constitui uma tentativa de saldar as lacunas e impasses que ainda se entreveem entre as apreciações da crítica e a fatura do texto de José Cândido de Carvalho, atingindo, assim, um conhecimento mais preciso e consistente de seu processo formativo e da configuração estética de suas obras. Para atender à natureza desses romances e dos objetivos propostos, faz-se adequada uma análise dos textos ficcionais que congregue a forma literária e o contexto social esteticamente representado por cada narrativa. Conforme se observou nos resultados parciais obtidos até o momento, os trabalhos mais profícuos sobre a problemática do regionalismo literário amparam-se nessa articulação. Nesse sentido, este estudo parte de uma fundamentação teórica preconizada por Antonio Candido e a qual se filia a maioria dos pesquisadores consultados, como Ligia Chiappini, Juliana Santini e Tânia Pellegrini. Antonio Candido, no clássico Literatura e sociedade (1965), defende que a orientação sociológica para os estudos literários é “sempre possível e legítima” e não deve ser confundida com o socialismo crítico, “a tendência devoradora de tudo explicar por meio de fatores sociais” (CANDIDO, 1965, p.8). Em sua perspectiva, o aspecto social (“externo”) importa “não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (1965, p. 4). Nesse sentido, interessaria não apenas determinar se o fator social fornece a matéria da obra, mas principalmente averiguar se “é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto obra de arte” (1965, p. 5). Assim, a crítica que considera o elemento social como fator da própria construção artística deixa de ser

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puramente sociológica e passa a ser literária, pois se utiliza de “uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte” (1965, p. 7). Nessa mesma esteira teórica, importam a esta pesquisa as contribuições de Ligia Chiappini, especialmente pela noção que desenvolve do regionalismo como “movimento compensatório” (1994, p. 670) diante dos impactos da modernização do país. Tal perspectiva mostra-se conveniente para a abordagem dos romances, já que ambos tratam da trajetória de decadência de personagens que não se adaptam às transformações econômicas, sociais e culturais de suas épocas, marcadas pelos signos da industrialização e da urbanização. Finalmente, busca-se manter em perspectiva a noção de região literária, outro direcionamento que se mostra instigante para a abordagem teórica da literatura regionalista, e que, advinda de estudos críticos alemães, tem sido difundida no Brasil por pesquisadores como Tânia Pellegrini (2008) e João Cláudio Arendt (2011). Bibliografia ARENDT, João Cláudio. Contribuições alemãs para o estudo das literaturas regionais. Pandaemonium, São Paulo, n. 17, Julho/2011, p. 217-238. Disponível em: www.fflch.usp.br/dlm/alemao/pandaemoniumgermanicum . Acesso em: 10/04/2012. BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp; Campinas: Ed. da Unicamp, 2006. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. 2.ed. São Paulo: Ática, 1989. ______. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Edusp, 1965. CARVALHO, José Cândido de. O coronel e o lobisomem. 41.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. ______. Olha para o céu, Frederico! : romance acontecido em Campos dos Goitacases nos dias do gramofone. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, p.153-159, 1995.

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O OLHAR DO NARRADOR E O FLUXO DA CONSCIÊNCIA EM MENALTON BRAFF Natali Fabiana da Costa e Silva (CAPES) Luiz Gonzaga Marchezan Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Introdução:

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Após o cumprimento das disciplinas1, período que durou até junho de 2012, nossa pesquisa inicia a etapa da divisão dos capítulos e da redefinição do recorte teórico, aspectos ainda em discussão com o orientador. Além disso, estudos preliminares e introdutórios foram realizados com vistas ao aprofundamento das leituras realizadas nos primeiros três semestres do curso de doutorado. O intuito desses estudos é incorporar o conteúdo oferecido pelos professores das disciplinas cursadas de forma a colaborar para o processo de amadurecimento da pesquisa no que tange a seu referencial teórico. Desses estudos, foram produzidos dois artigos (um deles no prelo) e uma resenha, publicados no ano de 20122. Descrição do estágio atual da pesquisa Nosso trabalho investigará o olhar do narrador como construtor de uma mundividência na qual a resignação orquestra as relações das personagens nos romances Que enchente me carrega (2000) e Bolero de Ravel (2011) e contos “Crispação” da coletânea À sombra do cipreste (1999) e “Os sapatos de meu pai”, da coletânea A coleira no pescoço (2006) do escritor Menalton Braff. Para a elaboração do trabalho, basear-nosemos nos estudos de Mieke Bal acerca da focalização, na narratologia de Gérard Genette, mais especificamente em sua abordagem sobre o tempo e a voz, e nos estudos de Robert Humphrey acerca do fluxo da consciência. Em comum no corpus selecionado, encontramos narradores que sofrem com o utilitarismo do mundo contemporâneo e seus compromissos, uma vez que estes lhes tolhem a liberdade. A sociedade que pode ser vista nos romances e contos é aquela a que Benjamin, em Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história, 1994, diz estar passando por uma modificação no modo pelo qual as experiências são apreendidas 1

As disciplinas cursadas são: História, cultura e identidade nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (Unesp/Araraquara) Mulher e literatura: da revisão do cânone à revisão do conceito de literatura feminina (Unesp/Araraquara) Procedimentos Narrativos e Discursivos do Conto (Unesp/Araraquara) Aspectos da Narrativa (Unesp/Araraquara) Teorias Críticas I (UFSCar) 2 Os artigos e a resenha publicados são: A resenha: “Tapete de Silêncio, de Menalton Braff” – jornal O imparcial, de Araraquara, em 11/03/2012 O artigo: “Conflitos nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e suas reverberações na literatura” – revista Mundorama, em parceria com Paulo Gustavo Pellegrino Correa, em 15/03/2012 O artigo: “A relação entre texto e contexto em “A coleira no pescoço”, de Menalton Braff” – no prelo – Revista Hispeci & Lema e Revista Fafibe On Line.

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e divulgadas - daí a epopeia burguesa que é o romance, a mostrar não mais um narrador em consonância com seu meio, com a comunidade e com seus valores atemporais, como na epopeia clássica, mas um narrador em crise, em tensão com seu mundo. É responsável por isso a sociedade capitalista que, ao estimular a distância entre os homens - devido ao enraizamento da noção de propriedade privada e da competição - ou proporcionar o fracionamento da totalidade - por causa do meio de produção que lhe é próprio -, cria indivíduos isolados e presos em mundos particulares. Autor de uma escrita em que o tempo é interiorizado, os heróis braffianos estão em permanente conflito nos seus locais de trabalho, nos seus relacionamentos, com sua família e consigo mesmos, no entanto, nem sempre são capazes de agir em prol de uma resolução e, assim, a inércia do homem frente a uma realidade problemática é tema constante em sua obra, que descortina seres solitários cujos sentimentos, sensações, impressões e memórias nos são mostrados por meio de descrições oniscientes ou monólogos interiores. As reflexões apontadas pelos narradores (autodiegéticos nos romances e heterodiegéticos nos contos, mas com focalização interna fixa na protagonista) discorrem acerca da inutilidade das ações diante da impossibilidade de se mudar o mundo. Tais reflexões conduzem ao questionamento da finalidade das atitudes e, em última instância, da finalidade da vida. Perante tais pensamentos as personagens acomodam-se em uma postura apática diante de seu desencontro com o mundo, a resignação instaura-se e o sujeito tornase frágil, desarticulado, solitário. As reflexões são força motriz do conflito das personagens. O fluxo da consciência é a maneira pela qual esse processo reflexivo toma forma, buscando plasmar o movimento incoerente e descontínuo da mente da personagem, evidenciando sua debilidade e revelando sua descrença na existência. Para o estudo do fluxo da consciência guiar-nos-emos pelos conceitos de Humphrey (1976). Esse estudo visa perquirir – para além de uma simples enumeração das técnicas de elaboração do fluxo da consciência nos textos em questão – o movimento do pensamento de fluxo em si, isto é, será analisado como o movimento de livre associação de ideias se processa; quais recursos são utilizados para a criação da descontinuidade e incoerência presentes na tessitura da mente; em que medida o monólogo interior ou descrição feita por um narrador onisciente estão organizados a ponto de

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alcançarem a consciência pré-verbal da personagem e imprimirem um significado dentro da estrutura do texto. Além disso, para a análise do corpus também optamos por empregar como método a narratologia de Genette (1995), bem como os estudos de Bal (1987), pois esses teóricos incorporam a tendência do estruturalismo ao enxergarem nos textos narrativos determinadas estruturas cujas relações entre si compreendem o significado da obra. Desse modo, é por meio da articulação das estruturas textuais, especificamente narrador, focalizador e tempo que se dará a elaboração do significado da obra, a qual se reveste do discurso onde os serem humanos (re)criam seu universo exterior. A narratologia de Genette (1995) analisa o discurso literário dividindo-o em três categorias: Tempo (que abrange Ordem, Duração e Frequência), Modo e Voz. Cada qual, por sua vez, engendra uma série de subcategorias que serão basilares em nossa análise. Mieke Bal coaduna com os estudos de Genette presentes em seu Discours du récit, saúda suas considerações sobre o tempo e, quanto à focalização, endossa a ideia genettiana de que o termo ‘foco narrativo’ separa essencialmente o sujeito que percebe o acontecimento daquele que o narra, enfatizando o feito do teórico francês por tal diferenciação, uma vez que não havia até o momento “ninguna distinción explícita entre la visión a través de la cual se presentan lós elementos por una parte, y la identidad del cuerpo/grupo que verbaliza esa visión por la outra” (BAL, 1987, p.108) 3, ou ainda em suas palavras, que não havia até então nenhuma diferença entre “los que ven y los que hablan” (Op. cit., p.108)4. Contudo, faz-se mister esclarecer que no que se refere à focalização, nossa escolha incidirá no uso do termo empregado por Bal, pois a teórica problematiza a nomenclatura engendrada por Genette: para ele, denomina-se “personagem focalizada” a personagem por meio da qual enxergamos os acontecimentos. Para Bal, “personagem focalizada” denota ideia de passividade e prefere, portanto, o termo “personagem focalizadora”. Para finalizar, Bal considera que é necessário analisar a relação entre a personagem focalizadora e o objeto focalizado. Isso é importante, pois a imagem que recebemos do objeto focalizado – quer seja ele um objeto mesmo, outra personagem ou um acontecimento 3

Tradução nossa: “nenhuma distinção explícita entre a visão através da qual se apresentam os elementos, do corpo/grupo que verbaliza essa visão”. 4 Tradução nossa: “os que veem e os que falam”.

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– diz também respeito às características da personagem focalizadora, ou seja, o modo como ela se posiciona ao encarar o objeto, a atitude com a qual o contempla é igualmente fonte de informação sobre a personagem focalizadora: “la forma en que se presenta um sujeto comunica información sobre el objeto mismo y sobre el focalizador” (Op. cit., p.114)5. No romance Bolero de Ravel pretendemos construir a mundividência do herói por meio da relação entre o olhar do observador e o objeto focalizado. Se tomarmos como exemplo seus romances, tanto Adriano, de Bolero de Ravel, quanto Firmino, de Que enchente me carrega, são donos do discurso e não cedem a palavra às demais personagens. Mostram seus pontos de vista, mas como narradores autodiegético e não oniscientes é de maneira totalitária e parcial que discorrem acerca de suas opiniões. É especialmente a partir dessa postura que buscaremos analisar suas relações com o mundo e a construção da mundividência buscando perceber na estrutura do texto literário a ordenação simbólica do real. Bibliografia BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. BRAFF, M. À sombra do cipreste. Ribeirão Preto: Fábrica do livro, 1999. ______. Que enchente me carrega? Ribeirão Preto: Palavra mágica, 2000. ______. A coleira no pescoço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. ______. Bolero de Ravel. São Paulo: Global, 2010. BAL, M. Teoría de la narrativa: una introducción a la narratologia. Trad. Javier Franco. Madrid: Catedra, 1987 BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. BERGSON, Henri. Matéria e momória – De senectude e outros escritos autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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Tradução nossa: “a forma como se apresenta um sujeito comunica informação sobre o objeto e sobre o focalizador”

344

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MEMÓRIA E MORTE: UMA INTERSECÇÃO ENTRE SER E ESCREVER EM LES RÊVERIES DU PROMENEUR SOLITAIRE, DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU Natália Pedroni Carminatti Adalberto Luis Vicente Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A finalidade da presente pesquisa é estudar, pelo viés literário, o último volume que compõe a trilogia das obras autobiográficas do filósofo Jean-Jacques Rousseau, Les Rêveries du promeneur solitaire. Tal trilogia composta pelas obras Les Confessions; Les Dialogues, ou Rousseau juge de Jean-Jacques e Les Rêveries du promeneur solitaire concedem ao autor a primazia no que tange aos ideais que posteriormente servirão de base para os românticos. Rousseau redige as Rêveries durante sua última estada em Paris, entre o outono de 1776 e abril de 1778, vindo a falecer nesse período sem terminar essa obra, cuja publicação ocorreu, postumamente, em 1782. O autor apresenta Les Rêveries du promeneur solitaire como um apêndice das Confessions, «[...] ces feuilles peuvent donc être regardées comme un appendice de mes

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Confessions»1 (ROUSSEAU, 1972, p.41), uma vez que oferecem um estudo do eu, além do exame de consciência sincero e severo. O filósofo esclarece que não tem mais nada para confessar, por isso, não mais nomeia os devaneios de confissões. Afirma não existir mais entre os homens, pois não estabelece com eles relações reais e verdadeiras, abstendo-se assim da sociedade. O autor de Les Rêveries du promeneur solitaire está definido pelo próprio título, pois trata-se de um homem solitário, que se entrega ao devaneio, uma vez que fora abandonado pelos antigos amigos. Assim, Rousseau acreditava que ao se exilar conseguiria salvar sua alma da paranoia que comandava sua mente. A natureza era para o filósofo o lugar ideal para conhecer-se, pois envolvido no círculo natural, poderia realizar um exame de sua existência, que é um dos objetivos das Rêveries, como lembra Ourida Mostefai em The Nature of Rousseau’s Rêveries: physical, human, aesthetic (2008, p. 202) «le retour sur soi, sur ses origines, sur le déroulement de sa vie et de sa carrière, redouble ainsi le mouvement de la promenade». O sentido primordial exposto nas Rêveries é o da compreensão, ou seja, é preciso compreender a vida e aceitar o destino. Rousseau demonstra que só conseguiu encontrar-se quando a morte se aproximava, logo, seu projeto autobiográfico é entendido como uma recapitulação de toda sua vida. É evidente a insistência de Rousseau em proclamar que as caminhadas dos Devaneios foram escritas para ele mesmo e que, ao fazer a leitura das mesmas, reviveria a sensação de felicidade que experimentou quando as escreveu. É como se o filósofo pretendesse reviver o tempo passado, duplicando sua existência. A ideia que se obtém ao fazer a leitura da obra na íntegra é que o autor pretende convencer-se de que sozinho encontraria consolo, esperança e paz. Consagra seus últimos dias a estudar a si mesmo, a refletir sobre suas disposições interiores e conhecer-se. Além disso, desenvolve uma retórica temporal, pois volta constantemente ao passado e dessa maneira faz renascer as lembranças que outrora lhe permitiram experimentar momentos de felicidade. Esse transporte ao tempo passado, ao tempo não linear e não contínuo, faz o autor revisitar momentos soberbos de prazer, frutos de sua fantasia criativa. Ao se colocar como

* Os exemplos tirados à obra Les rêveries du promeneur solitaire aparecem aqui na tradução de Fúlvia Maria Luiza Moretto, 2.ª ed., Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1986. 1 “[...] essas folhas podem ser consideradas como um apêndice das minhas Confissões [...]”.

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observador de si mesmo, esse tempo de recordações é decorado com alegrias, emoções e sensações de pura felicidade, numa harmonia perfeita entre o corpo e alma. No entanto, nesse processo, deparamo-nos também com as contradições rousseunianas, haja vista que o próprio Jean-Jacques Rousseau refere a si mesmo como “homem de paradoxos”. Essas contradições fazem o filósofo genebrino se interrogar sobre as mais diversas falhas de sua memória e reconhece que cometeu erros ou omitiu detalhes, pois a idade lhe enfraquecera a memória. É provável que as lembranças que conta em suas caminhadas não sejam, na íntegra, verdadeiras. São ficcionalizações da vida, ou seja, produto da imaginação criativa. Isso fica evidente na 4ème promenade, em que Rousseau confirma essa hipótese: «J’écrivais mes Confessions déjà vieux [...] Je les écrivais de mémoire; cette mémoire me manquait souvent ou ne me fournissait que des souvenirs imparfaits»2 (ROUSSEAU, 1972, p.88). A fraqueza ou o desvio constante de memória é um dos componentes de sua obra. Para não perder as lembranças das caminhadas diárias, das contemplações encantadoras que provocavam, decide fixar, por meio da escrita, as recordações que ainda lhe vinham à mente. É pertinente notar, ao longo da narrativa, essas contradições, pois o autor nos esclarece que houve falhas em sua memória, mas com grandiosidade retórica, afirma que a mesma memória que falhou, soube purificar o passado, retendo unicamente os momentos de contemplação. Mesmo que os desvios de memória o condenaram, eles o levaram a desfrutar o gozo de uma vida repleta de jouissances. O filósofo acreditava que os momentos esparsos de alegria fossem os que mais o atingiam. Desse modo, a memória prefere armazenar as experiências de felicidade estável aos lances descontínuos do prazer. Ademais, ela é capaz de restaurar o passado no presente com mais intensidade. Ao fixar, pela escrita, esses momentos de felicidade plena, sempre se recordaria dos momentos de encantamento e êxtase, quando as relesse. Jean-Yves e Marc- Tadié, em Les sens de la mémoire ( 1999, p. 237), esclarece o sentido da memória: La mémoire et l’oubli sont comme vie et mort l’un pour l’autre. Vivre, c’est se souvenir, et se souvenir c’est vivre. Mourir est oublier, oublier, c’est mourir. De même que la mort est un processus de vie, et la vie un

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“Escrevia minhas Confissões já velho [...] Escrevi-os de memória; essa memória me falhava muitas vezes ou somente me fornecia lembranças imperfeitas [...].”

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processus de mort, de même la mémoire pour l’oubli. Il n’y a ni mémoire absolue ni oubli absolu.

A memória permite criar a identidade pessoal do homem, visto que a própria construção do ser humano dá-se por meio da mesma e, ainda, é através dela que se desvendam as lembranças de outrora para a constituição do tempo presente. Assim, como foi apontado por Jean-Yves e Marc- Tadié, viver é recordar, e a vida humana não existe sem a memória (TADIÉ, 1999, p.237, tradução nossa). O sentido mais enigmático da memória diz respeito à sensação afetiva que as recordações carregam. Os seres humanos necessitam da memória para reviver as sensações do passado. Não se imagina a sensação anteriormente vivenciada, mas se concede ao homem a oportunidade de fazê-la ressurgir. O tema da morte também serve como base para a compreensão dos Devaneios, uma vez que, só com a proximidade do fim, o ser humano consegue ter uma visão plena da vida, podendo identificar-se, reconhecer-se, já que ela permite um conhecimento mais puro do homem. Desse modo, por meio da morte explicam-se os mais variados comportamentos humanos, pois o homem, ao se deparar com ela, sente medo e acaba revelando-se totalmente. Rousseau discorre sobre a morte sem angústias e sem medo de deixar esse mundo, pois, para o narrador, a morte serve de consolo, já que foi vítima de um complô universal. Tal tema vem aliado à velhice do filósofo, uma vez que na época da escritura de Les Rêveries du promeneur solitaire, o autor já sentia a velhice e a morte seria talvez a alternativa mais plausível para um homem que sofrera durante toda vida. Seria a luz, o fim das trevas. A morte representa, ainda, um relaxamento do corpo e da alma atormentada pela ideia do complô. Diante da própria morte, Jean-Jacques Rousseau encontra sua individualidade. Ourida Mostefai no ensaio para a obra The Nature of Rousseau’s Rêveries: physical, human, aesthetic (2008, p.202) demonstra a importância do saber morrer, pois a morte vai fornecer entendimento e significado à vida do autor. Para Rousseau filosofar é aprender a morrer. Assim, passa a reviver toda sua existência ao se encontrar com a morte, pois só com ela conseguiria compreender o significado definitivo da própria vida. Separar os temas de Les Rêveries du promeneur solitaire para estudá-los isoladamente é tarefa difícil, visto que toda obra é construída na congruência de tais temas.

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O desvio constante de memória, a aceitação da proximidade da morte, o gosto pelo devaneio e o exílio físico em lugares solitários configuram a imagem de um homem abandonado, entretanto, sonhador. De fato, a solidão não é uma escolha livre e natural de sua vontade, pois é apresentada, no início, como resultante do complô universal. Além disso, de um lado corresponde a um desejo ardente e vital «alors pour ne les pas haïr il a bien fallu les fuir»3 (ROUSSEAU, 1972, p.126) e de outro representa a condenação imposta pelas atitudes dos outros e não uma escolha natural de conduta. A união dos temas da memória e da morte confere à última obra da trilogia autobiográfica do autor o suporte para a compreensão de sua vida, restando somente ao filósofo fixar-se na escrita para que, dessa forma, consiga desfrutar dos momentos de solidão do passado. Centrada no eu, a narrativa demonstra que o estudo do ser é destinado a ele mesmo. A escrita satisfaz a uma necessidade pessoal estimulada pelas oscilações de humor e pelas circunstâncias biográficas julgadas estranhas e singulares. Trata-se de um autor que escreve para si mesmo e, pretensamente, para ser lido por si próprio. A escrita desinteressada tão evocada por Jean-Jacques Rousseau problematiza a questão da veracidade em sua obra. O filósofo diz, ao longo do texto, que não pretende publicar Les Rêveries du promeneur solitaire e nem explicar aos leitores certas alusões a que fez referência, uma vez que já não precisa ser reconhecido pela humanidade por meio dos seus textos. Deste modo, a intenção do autor se problematiza, ou seja, apesar de suas afirmações, não se pode determinar com precisão se Rousseau escreveu para ele mesmo ou para os outros. É importante salientar que a dialética da verdade e da mentira encontra aqui a perfeita realização. Ao resgatar através da escrita, a felicidade e o prazer, o filósofo demonstra que, com os próprios recursos, é capaz de encontrar a felicidade plena, não necessitando satisfazer a vontade alheia. A escrita tem o poder de exteriorizar a interioridade, beneficiando o próprio eu. Ao fixar os conhecimentos pelos textos, o autor poderá dispor deles e, a qualquer momento, poderá ir ao encontro do que desejar.

Vive-se, revive-se e encontra-se a

felicidade sempre que for procurada.

3

“Então, para não os odiar, foi realmente necessário fugir-lhes [...]”.

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A escrita torna-se, portanto, instrumento de criação em Rousseau, o reconhecimento, a consciência de um eu que está em busca de si mesmo. Ao ser marginalizado pela sociedade, por suas ideias, recolhe-se e aprofunda a caminhada em busca da realização do próprio eu interior. O interesse deste trabalho é mostrar que, com a obra, objeto central de estudo desta pesquisa, nasce uma retórica, em que certos temas aliados ao centramento no eu, propiciam o surgimento, na literatura francesa, de um novo tom que repercutirá nas gerações futuras. Desse modo, a escrita tem o poder de eternizar, uma vez que ela fixa os acontecimentos que poderiam ser esquecidos pelos constantes desvios de memória do autor. Portanto, JeanJacques Rousseau representa muito mais que um filósofo iluminista, precursor do Romantismo, torna-se um dos autores mais significativos do século XVIII pela sua retórica egocêntrica. A pesquisa encontra-se em fase de desenvolvimento. Através das disciplinas cursadas no primeiro semestre, obtivemos uma visão mais ampla dos diferentes gêneros que se entrelaçam na obra. A necessidade de delimitação do corpus resultou da influência de dois grandes temas – memória e morte – e da dimensão que eles representam na prosa poética de Rousseau. Dedicamos-nos nesse início, ao levantamento bibliográfico bem como ao afunilamento do corpus, anteriormente, muito extenso para ser desenvolvido em nível de Mestrado. Bibliografia ADAMY, Paule. Les corps de Jean-Jacques Rousseau. Paris : Honoré Champion Éditeur, 1997. ARIÈS, Phillipe. História da morte no Ocidente. Trad. de Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro : Ediouro, 2003. ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966. BARGUILLET, Françoise. Rousseau ou l’illusion passionnée. Les Rêveries du promeneur solitaire. Paris: PUF, 1991. BEGUIN, Albert. L’Âme romantique et le rêve. Paris: J. Corti, 1963. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembrança de velhos. 10a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 350

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ESPAÇO E EPIFANIA EM THE AMBASSADORS E THE BEAST IN THE JUNGLE, DE HENRY JAMES. Natasha Vicente da Silveira Costa Guacira Marcondes Machado Leite Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Objetivo A finalidade primeira desta pesquisa é analisar as relações entre o espaço literário e a epifania no romance The ambassadors (1998) e na novela The beast in the jungle (1915), ambos publicados em 1903 por Henry James (1843-1916). O autor nova-iorquino produziu uma obra fértil que engloba peças teatrais, contos, novelas, romances, relatos de viagem, ensaios e crítica literária – esta é considerada um documento basilar para o estudo sistemático do romance e da focalização por autores e teóricos como Ezra Pound (1963), Mieke Bal (2001), Wayne Booth (1983), Richard Blackmur (1934) e Gérard Genette (1995). Com relação ao contexto literário, vale esclarecer que James é considerado ora representante do Realismo – devido a The portrait of a lady (1881) e Roderick Hudson (1875) –, ora precursor do Modernismo – por What Maisie Knew (1897), The ambassadors (1903) e a novela The Turn of the Screw (1898). Por isso, preferimos a concepção de 352

Marcelo Pen Parreira (2007), que chama de “crepuscular” a circunstância histórica e literária em que se localizam Machado de Assis e James. Parreira afirma que ambos romperam com os padrões artísticos em voga fazendo a ponte com a modernidade. O escopo de nossa pesquisa se origina, é forçoso destacar, da dissertação Espaço e focalização em The ambassadors, de Henry James, que possibilitou tanto o exame da articulação inerente entre o espaço e a focalização oscilante do romance quanto desvendar como a espacialidade antecipa e concorre para a crescente autoconsciência e culminância da epifania do protagonista Lewis Lambert Strether. Para analisar o espaço, foi utilizado como embasamento Lima Barreto e o espaço romanesco, de Osman Lins (1976), que define o espaço literário como tudo que está intencionalmente disposto, enquadra a personagem e pode ser absorvido ou acrescentado por ela. Ademais, essa obra contribuiu para a identificação das diferentes modalidades de instauração do espaço e para a interpretação da natureza dúbia e sub-reptícia do espaço europeu. Já A estrutura do texto artístico, de Iuri Lotman (1978), conduziu nosso estudo dos conceitos de “verdade” e “revelação” e seu vínculo com o espaço exterior iluminado pela luz natural e, dicotomicamente, da concepção de “falsidade” associada ao escurecimento com base na teoria da modelização espacial. Paralelamente, o estudo da focalização embasado em Discurso da narrativa (1995), do teórico francês Gérard Genette, serviu-nos de amparo no discernimento da constante ratificação da metáfora subjacente ao regulamento da focalização em Henry James, indicativa do processo de cognição humana, individual e intransferível. Além disso, tal investigação direcionou nossa atenção ao inesperado subtema da epifania, que assumirá um destaque central – adjacente ao espaço – nesta pesquisa de doutoramento. Ao estudar a epifania, voltamo-nos aos princípios teóricos esboçados no romance Stephen Hero, de James Joyce (1882-1941), publicado postumamente em 1944. O protagonista Stephen redefine em três etapas (integridade, simetria e esplendor) a apreensão da beleza desenvolvida por Santo Tomás de Aquino (1225-1274) para explicar o alcance da epifania, definida por uma manifestação espiritual repentina em que a essência do objeto é desprovida das vestes da aparência. Foi possível verificar pontualmente que The ambassadors (1998) apresenta tais fases epifânicas ao expor o despertar metafórico de Strether.

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Nas narrativas jamesianas, pululam momentos variados e difusos em que o ser cognoscente toma consciência de qualquer fenômeno anteriormente ignorado, mesmo que o objeto de atenção seja o mais trivial possível. Conforme nossa interpretação de sua literatura, a matéria-prima condicional para essa aquisição paulatina de experiência é integrada pelas dimensões exteriores da realidade que emolduram a personagem, figurativizadas pelo espaço. Entretecido de matérias diversas e complementares, o propósito desta pesquisa atual é aprofundar o estudo prévio da relação entre espaço literário e epifania em The ambassadors (1998) acrescentando a análise da novela The beast in the jungle (1915), com a qual o romance porta semelhanças estruturais e temáticas, concernentes à epifania, à busca pela verdade e pelo sentido da vida. Em uma abordagem periférica, será feita uma revisão bibliográfica dos prefácios de Henry James, republicados por Richard Blackmur em The art of the novel (1934), a fim de verificar se o autor comentou precisamente sobre os elementos estruturais da narrativa cujo estudo direciona este trabalho: o espaço e a epifania. Justificativa O presente trabalho é motivado pela coincidência entre a iluminação retratada na obra jamesiana e a epifania teorizada por Joyce, fundamentada nas condições para a apreensão da beleza de Tomás de Aquino. Considerando a instigante anterioridade da publicação de The ambassadors em relação às pesquisas de Joyce sobre a epifania, entrevê-se um fecundo e aparentemente inédito campo de pesquisa concernente à introdução da mesma no romance de língua inglesa no século XX sem, entretanto, paralisar as indissociáveis questões espaciais. Em The ambassadors (1998), Lewis Lambert Strether, o embaixador da família Newsome, viaja a Paris a fim de fazer com que o jovem Chadwick Newsome retorne à cidade de Woollett, Massachusetts, para assumir os negócios da família e romper com um possível relacionamento amoroso malvisto pelos Newsome. A permanência na Europa, entretanto, desencadeia a autoconsciência, a percepção de Strether e sua adoção de uma postura mais autêntica que favorece o desenvolvimento de sua liberdade pessoal.

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Os deslocamentos do protagonista e o sentido de busca da espacialidade – das existências concretas exteriores ao próprio ser – representam de modo figurativo a ideia de perquirição sobre a verdade e a experiência. A relevância da categoria narrativa do espaço para que tais representações metafóricas sejam o fio condutor do romance é ratificada pelo conceito de embaixada explícito no título do romance, que exprime a situação de um emissário ocupando o lugar de outra pessoa em um sítio alheio. Para reforçar a conexão entre a espacialidade e a epifania, é interessante lembrar a existência de uma cadeia de metáforas espaciais construída com o elemento da água ao longo da narrativa. As variações dessa figura de linguagem atuam como um artifício avaliador das relações de distanciamento ou aproximação entre Strether e a Europa, apontando para seu grau de engajamento ou afeição com as possibilidades de experiência que esse sítio alheio lhe proporciona. Ratificam-se os valores ambivalentes e instáveis atribuídos ao espaço europeu, figurativizados pelos aspectos de transparência, fluidez e suscetibilidade da água. Na constituição desse fugaz momento de revelação, a metáfora espacial é reforçada pela presença do rio diante de Strether e manifesta o preenchimento total do recipiente de sua consciência. Transfigurada imageticamente em receptáculo, sua mente acolhe todo o conteúdo necessário para a gota d’água epifânica, constituída pela aproximação do barco com os amigos Chadwick Newsome e Madame de Vionnet e a ratificação do relacionamento romântico de ambos nessa cena iluminada: “He too had within the minute taken in something, taken in that he knew the lady whose parasol, shifting as if to hide her face, made so fine a pink point in the shining scene.”1 (JAMES, 1998, p. 389). Tais características de claridade são reforçadas pelo topônimo da pousada Cheval Blanc, onde Strether tem sua epifania. Por sua vez, em The beast in the jungle (1915), o protagonista John Marcher vive à espera de um evento estranho que mudaria sua vida e decide aguardar esse ataque da fera ao lado de sua amiga May Bartram. Afinal, após vários anos e a morte de May, sua epifania o faz perceber que, na verdade, o ataque já fora executado, pois Marcher vivera como uma testemunha passiva e angustiada, dominado unicamente pelo sentimento de expectativa: 1

Ele também tinha, naquele minuto, compreendido algo, compreendeu que conhecia a senhora cuja sombrinha, deslocada como se fosse para ocultar-lhe o rosto, constituía tão belo ponto rosado na cena iluminada. (JAMES, 2010, p. 503).

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“Now that the illumination had begun, however, it blazed to the zenith, and what he presently stood there gazing at was the sounded void of his life.”2 (JAMES, 1915, p. 84). Com o acréscimo da novela, visamos avultar nosso embasamento literário a fim de esclarecer possivelmente se Henry James teria reinterpretado as especulações de Aquino anteriormente a James Joyce ainda que destituído do ímpeto teorizador demonstrado pelo autor irlandês. Metodologia A fim de verificar como o espaço e a epifania se correlacionam em The ambassadors (1998) e The beast in the jungle (1915), será realizada uma atualização da bibliografia sobre as teorias do espaço abarcando sobremodo os agentes perceptivos e as modalidades de instauração dessa categoria na narrativa. De forma semelhante, renovaremos o conceito literário de epifania acrescendo aos pressupostos teóricos estudados obras como The poetics of epiphany (1987), de Ashton Nichols, e Epiphany in the Modern Novel, de Morris Beja. Atualizaremos também a fortuna crítica jamesiana para averiguar a existência de novas pesquisas que abarquem, principalmente, a questão da epifania – aparentemente ainda não abordada. Ademais, por meio da leitura da coletânea dos prefácios de Henry James, buscaremos verificar secundariamente se, dentre os 18 textos selecionados, o autor tece comentários sobre a relevância da espacialidade literária ou do momento de iluminação que constitui a epifania. Estágio atual da prequisa e etapas a serem realizadas O percurso inicial desta pesquisa encontra-se previamente trilhado e, entretanto, buscaremos esquadrinhá-la em maior grau e de modo consciente e imparcial para não constranger uma temática – a epifania – já ratificada literária e teoricamente. Deteremos nossa atenção, afinal, nos questionamentos acerca da relação intrínseca entre o espaço e a epifania e na possibilidade de ser creditada também ao nova-iorquino a inserção da epifania na esfera romanesca anglo-saxônica devido à aparente reinterpretação do estudo do padre italiano. 2

Agora que a iluminação começara, contudo, ela resplandecia em seu grau máximo, e o que ele ficou ali contemplando foi o absoluto vazio da sua vida. (JAMES, 2007, p. 77).

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A MAGIA DO SERTÃO DE ROSA Olívia Dias Queiros Ana Luiza Silva Camarani Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O realismo mágico, como tendência literária, é comumente associado a escritores latino-americanos, porém o termo foi utilizado pela primeira vez em 1925, na Alemanha, pelo crítico e historiador Franz Roh, num livro publicado pela Revista do Ocidente, intitulado O realismo mágico, onde do ponto de vista artístico a proposta “[...] era atingir uma significação universal exemplar, não a partir de um processo de generalização e abstração, como fizera o expressionismo de ante-guerra [que pregava a supremacia da personalidade humana, com as forças desconhecidas da alma destruindo a superfície lógica], mas pelo reverso, representar as coisas concretas e palpáveis, para tornar visível o mistério que ocultam”. (CHIAMPI, 1980, p.21). O primeiro a incorporar o termo à critica do romance hispano-americano foi Arturo Uslar Pietri, em Letras y Hombres de Venezuela, em 1948, onde dizia que se a realidade é considerada misteriosa, ou “mágica”, cabe ao narrador “adivinhá-la”; se a realidade é considerada “prosaica”, cabe a ele “negá-la”. Contudo, Irlemar Chiampi alega que Uslar Pietri hesita com relação à atitude do narrador, pois este ou procura de modo realista o mistério (“adivinhar”), ou consiste em negar a realidade. Em 1949, o historiador cultural cubano Alejo Carpentier batizou o termo no prefácio do seu livro, El Reino de este mundo, como realismo maravilhoso: “[...] tudo isso ficou particularmente evidente durante minha permanência no Haiti, quando vivi em contato diário com aquilo que poderíamos chamar de Realidade Maravilhosa” (CARPENTIER,

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1985, p.6). Dissidente do surrealismo, Carpentier considerava o maravilhoso como princípio ordenador de sua narrativa. Para ele, o artista extrai dos fragmentos do mundo a matéria a ser transformada. Assim, o realismo maravilhoso buscava evidenciar a realidade alterada pelos mitos e pelas lendas, ao invés de examinar uma realidade separada e oculta do cotidiano, como acontecia no surrealismo. Dessa maneira, para Carpentier, o real maravilhoso se origina da exuberância da realidade latino-americana, do seu abundante exotismo, do místico, da presença da mestiçagem. Porém, o realismo mágico, como categoria literária, só veio a crescer durante a década de 1950, e, em 1954, Angel Flores popularizou o termo na conferência “Magical realism in Spanish American fiction”, lida no Congresso da “Modern Languages Association” em Nova Iorque. Assim ele pôs em voga a nova designação. Em um estudo mais recente, o inglês Willian Spindler com base nas teorias dos críticos hispano-americanos sobre o conceito de realismo mágico, expõe dois usos para o termo: o original e o atual. O uso original se refere ao tipo de obra literária ou artística que mostra a realidade de um ponto de vista incomum sem ultrapassar os limites do natural, mas que induz o leitor a um senso de irrealidade. O uso atual, que substituiria o primeiro, descreve textos em que duas visões de mundo contrárias – uma “racional” e outra “mágica” - são expostas como se não fossem opostas, lançando mão de mitos e crenças de grupos etno-culturais para os quais não se manifesta tal contradição. Todavia, o teórico inglês acredita que os dois usos são dois lados da mesma moeda, e propõe três tipos diferentes de realismo mágico: o metafísico, o antropológico e ontológico. Aqui nos cabe mais especificamente enfocar o realismo mágico antropológico que foi definido por Spindler como aquela narrativa em que o narrador normalmente tem “duas vozes”, ora retratando acontecimentos de um ponto de vista racional (componente “realista”), ora do ponto de vista sobrenatural (elemento mágico). Esse contraste é resolvido pelo autor quando este adota ou se refere aos mitos e à historia cultural de um grupo étnico ou social. Nesse tipo de realismo mágico existe uma “consciência mágica” nas personagens, que é observada pelo autor como igual ou superior ao racionalismo ocidental. É essa a característica que liga o realismo mágico antropológico à cultura popular.

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É o que acontece no conto “São Marcos”, em que o narrador-protagonista José, inicia o conto dizendo não acreditar em feitiços e mitos religiosos, presentes na cultura popular do sertão mineiro: “Naquele tempo eu morava no Calango Frito e não acreditava em feiticeiros.” (ROSA, 1976, p.244); e zomba de quem os pratica ou neles acredita; contudo, mesmo negando essas lendas, sempre carrega consigo uma reza de proteção (consciência mágica). Um dia, de repente, surpreende-se completamente cego, no meio da mata: “E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau – um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite... e escureceu tudo.” (ROSA, 1984, p. 261). Ainda na mata, descobre que tal fato se deu por meio de um feitiço que lhe fora lançado, e usa a reza de “São Marcos e São Manço” para se livrar do malefício. “E, pronto, sem pensar, entrei a bramir a reza brava de São Marcos”. (ROSA, 1976, p.253). Ao mesmo tempo em que simboliza a consciência mágica da personagem, essa reza irá representar o poder que a palavra “mágica” possui dentro do texto, livrando o personagem de algo em que ele nem mesmo acreditava. Em “Corpo Fechado” acontece algo parecido, embora aqui não haja uma descrença em feitiçaria tão evidente por parte do protagonista. Manuel Fulô está noivo de Das Dor e, Targino, o valentão da cidade, exige que a primeira noite da noiva seja com ele, valendo-se de sua força para garantir o cumprimento de sua ordem. Manuel possui uma mula, também cobiçada, só que pelo feiticeiro Antonico das Pedras Águas, pois este possui uma bela sela mexicana e deseja a mula de Manuel para usá-la. Quando o valentão exige passar a noite com sua noiva, Manuel resolve fazer um acordo com o feiticeiro e entrega-lhe sua mula para ter seu “corpo fechado”. Aqui a presença da magia altera a realidade, já que Manuel passa de frouxo e fraco à valente e forte, pois não só consegue impedir que Targino durma com sua noiva, como o mata com uma faca do tamanho de um canivete, livrando a cidade do valentão e de suas ações desmedidas. Manuel Fulô transforma-se no novo valentão de Varginha por meio do feitiço feito por Antonico para fechar seu corpo. Em ambos os contos temos espaços ficcionais que desenvolvem plenamente o realismo mágico: aquilo que Alejo Carpentier chamou de lo real maravilloso, ou o que para Spindler se enquadra na categoria de realismo mágico antropológico. A presença do feiticeiro nos dois contos também se torna importante para essa caracterização, uma vez

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que essa figura antropológica está presente na cultura popular brasileira desde os tempos da sua colonização, adquirindo um papel importante na formação dos seus mitos e lendas. Lévi-Strauss (1996, p. 194) em seu livro sobre o estudo da magia e do feiticeiro acredita que não se pode duvidar da feitiçaria, porém sua eficácia vai depender diretamente de se acreditar ou não nessa magia. Embora já seja possível enxergar esses elementos característicos do realismo mágico nos dois contos a serem analisados, a pesquisa ainda está no meio do caminho. Nesse momento, estamos efetuando a leitura da bibliografia proposta no projeto, assim como a busca de outras bibliografias de apoio, além das contribuições advindas das disciplinas que foram e serão cursadas ao longo do curso. Bibliografia ALEGRÍA, F. Alejo Carpentier: realismo mágico. In: Literatura y revolución. México: Fondo de Cultura Económica, 1976. BRANDÃO, C. R. Memória sertão: cenários, cenas, pessoas e gestos nos sertões de João Guimarães Rosa e de Manuelzão. São Paulo: Editorial Cone Sul, 1998. CANDIDO, A. Sagarana. In: COUTINHO, E. F. (Org.) Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. CAMARANI. A. L. S. O realismo mágico nas estórias de Guimarães Rosa e Mia Couto. Anais do X Congresso ABRALIC. Rio de Janeiro: UERJ, 2006. CARPENTIER, A. Literatura e consciência política na America Latina. São Paulo: Global, [19--]. ______. El reino de este mundo. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1972. CHIAMPI, I. O Realismo Maravilhoso: Forma e ideologia no romance hispanoamericano. São Paulo: Perspectiva, 1980. COELHO, N. N., VERSIANI, I. Guimarães Rosa (dois estudos). São Paulo, Instituto Nacional do Livro, 1975. DELBAERE-GARANT, J. Psychic Realism, Mythic Realism, Grotesque Realism: Variations on Magic Realism in Contemporary Literature in English. In: ZAMORA, L. P.; FARIS, W. (Edit) Magical Realism. Durham e London: Duke University Press, 1995, p. 249 – 263.

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DA INDISTINÇÃO DOS ATOS: POESIA E CRÍTICA EM MURILO MENDES E FRANCIS PONGE Patrícia Aparecida Antonio (CAPES) Antônio Donizeti Pires Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Objetivos O presente trabalho tem por objetivo observar como opera a indistinção entre poesia e crítica da poesia na obra de Murilo Mendes (1901-1975) e Francis Ponge (1899-1988). O brasileiro e o francês procedem à fusão de discurso da obra e discurso sobre a obra num movimento em que sujeito lírico e crítico (eles mesmos ficcionais) se encontram em permanente tensão. Entendendo poesia e crítica como atividades reflexivas fundamentadas na linguagem, as questões principais às quais pretendemos nos lançar são: a) Como se configura e opera a indistinção entre discurso poético e crítico em Murilo Mendes e Francis Ponge? b) Como se configura a voz poético-crítica para se adequar a um ato de dupla face como esse? c) O que se depreende da aproximação ou do distanciamento da conduta líricocrítica, levando-se em consideração subjetividade e objetividade? Nesse sentido, esta tese busca ler comparativamente os dois poetas tendo por horizonte poesia e crítica enquanto atos indistintos, de caráter inacabado, em que autor e leitor participam ativamente. Assim, os poemas aparecem como atos que configuram uma prática literária, que é lírica, crítica e criativa, a um só tempo. No centro dessa prática, os sujeitos lírico-críticos manipulam a criação partindo de um corpo-a-corpo com o texto, como fica claro com as obras que selecionamos para este estudo: de Murilo Mendes, O discípulo de Emaús (1945), Convergência (1970), Poliedro (1972) e Retratos-relâmpago (1973); de Francis Ponge, Proêmes (1948), Méthodes (1961), Pour um Malherbe (1965) e La table (1981). Poesia e crítica, então, podem ser compreendidadas no sentido da poiesis, de uma construção que 363

coloca em crise (cuja raíz etmológica é a mesma que a da palavra crítica) o lírico, o crítico, a prosa, a poesia, bem como uma ideia fechada de literatura e de gêneros literários. Descrição do Estágio Atual da Pesquisa Conforme o cronograma estipulado no início do curso, encontra-se em andamento a releitura crítica do corpus, tendo em vista nosso objetivo, e ampliação do levantamento bibliográfico acerca da Teoria geral da Poesia e da Crítica, bem como da fortuna crítica dos poetas. Vale ressaltar que o presente trabalho é fruto de dois projetos de pesquisa anteriores: uma Iniciação Científica centrada na poesia de Murilo Mendes; e um Mestrado que leu comparativamente o Poliedro (1972) muriliano e o Le parti pris des choses (1942) de Francis Ponge. Pode-se afirmar que as reflexões até aqui estabelecidas deixam entrever o modo específico como os dois poetas lidam com a questão da indistinção entre a poesia e a sua crítica. Partimos, portanto, do que distancia Murilo e Ponge. Desse distanciamento (contextual, teórico, literário), surge a aproximação e a possibilidade de reflexão sobre a prática poética e crítica. Ao final de seu indispensável estudo sobre a obra do poeta brasileiro, intitulado Territórios/conjunções: poesia e prosa críticas de Murilo Mendes, Júlio Castañon Guimarães (1993) sugere esta aproximação. Segundo ele, Murilo Mendes e Francis Ponge procedem (guardadas as singularidades de cada poeta) a um movimento de “não-distinção entre gêneros” – prosa, poesia e crítica. Quando se trata do cosmopolita Murilo Mendes, é mais do que sabido o quanto as suas relações com poetas, pintores e artistas, inserem-se em suas obras. Não só sob a forma de uma temática, mas por meio de um verdadeiro impulso crítico desempenhado por Murilo. Da parte de Ponge, o resenhista Heitor Ferraz Mello (2000) diz do livro de Leda Tenório da Motta, Francis Ponge: o objeto em jogo, “sentir falta de uma análise detida de alguns de seus poemas [de Francis Ponge]”. A réplica da autora, também publicada pelo caderno Mais! da Folha de S. Paulo, é definitiva: 1. O poeta Francis Ponge (1899-1988), ainda que não sem angústia, não faz qualquer distinção entre prosa e poesia, o que aliás, entre outras coisas, o leva a chamar o poema de “proema” ou “proêmio” (“proême”). Assim, quando eu comento longamente, no capítulo três, um dos mais extensos e torturantes textos de Ponge, o texto intitulado “Tentativa Oral” (inteiramente traduzido por mim noutra parte: “Francis Ponge, Métodos”, Imago, 1997), acho que estou fazendo bem aquilo que o

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resenhista diz que eu não faço, a saber: análise do... poema. (MOTTA, 2000a, aspas do autor, negrito nosso).

Ora, ao chamar de poema o longo texto de Francis Ponge intitulado “Tentativa oral”, transcrição de uma célebre conferência feita em Bruxelas, em 1947, a autora nada mais faz que designar a potência lírico-crítica desse texto. Octavio Paz (1984, p.85, grifo do autor), em seu Os filhos do barro, diz que os poetas do Romantismo “[...] concebem a experiência poética como uma experiência vital, na qual o homem participa totalmente. O poema não é apenas uma realidade verbal: é também um ato. O poeta diz e, ao dizer, faz. Este fazer é sobretudo um fazer-se a si mesmo: a poesia não é só autoconhecimento, mas também autocriação.” Do modo como foi tomada, a citação deixa ler, na poesia moderna de Murilo e Ponge, uma certa inclinação à função romântica do poeta-crítico. Em outras palavras, como operador da linguagem que quer transmutar a realidade. Mistura de arte e vida, são estes mesmos os resquícios da vanguarda nos dois autores (o Surrealismo, mais especificamente). Mas, o que nos interessa é pensar em poesia e crítica como atos que, embora tenham um fim em si mesmo (são poesia, afinal) têm caráter totalmente inacabado e criador. A crítica é também um ato que demanda o diálogo, o posicionamento, o julgamento, a subjetividade. Portanto, em primeiro lugar, pode-se afirmar que poesia e crítica em ambos os poetas devem ser entendidas como atos indistintos, porque invadem-se um ao outro, sempre em tensão e que se configuram enquanto conjunto de teor eminentemente contínuo e criador. Ora, o próprio Murilo “[e]ncara a poesia como fenômeno diário, constante, permanente, eterno e universal. Considera seus poemas como ‘estudos’ que outros poderão desenvolver.”1 Mas, ao contrário de Ponge, o que se tem com Murilo Mendes é tanto mais o movimento de extroversão do que o voltar-se sobre si. Daí se depreende a noção de um grande tecido, de uma continuidade que se estabelece especialmente nas obras finais do brasileiro por meio de um intenso diálogo com o que vem de fora – literatura, personalidades, artes plásticas, cultura. Estes “estudos”, portanto, “[...] dão a impressão do ‘inacabado’ e tendem a se explicar uns pelos outros. Vinculadas a isso estão algumas características de sua criação: a produção por séries, o improviso e o escrever muito. Tudo isso provoca uma impressão fortíssima de homogeneidade da obra, como se esta se 1

Num auto-retrato da década de 40 citado por Murilo Marcondes de Moura (1995, p.59).

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construísse em torno de um assunto único.” (MOURA, 1995, p.60, grifo do autor). Muito importante é o movimento de inacabamento e a noção de homogeneidade, inclusive ao redor de um único assunto. Porque, de fato, tal movimento permite depreender uma série de atos poéticos que se aproximam de uma prática literária que é lírica, crítica e criativa. Daí porque, ao se voltar à literatura, por exemplo em poemas como “Murilograma a Baudelaire”, ou nos aforismos de O discípulo de Emaús (que dialogam de modo intenso com Ismael Nery), ou nos vários poemas dedicados a “Graciliano Ramos”, vemos que o que ali se instaura na obra de Murilo Mendes não é pura homenagem. Há diálogo, juízo, construção, criação, claramente explícitos. A forma é atuante, os discursos se sobrepõem: do poeta, do crítico, do criticado, do homenageado, do lido. É este caráter de prática literária e indistinção de gêneros e posturas que permite aproximar de maneira sui generis Murilo Mendes e Francis Ponge. Num estudo intitulado Francis Ponge: actes ou textes, Jean-Marie Gleize e Bernard Veck (1984, p.19, grifo do autor) afirmam que « [...] Ponge récusait, quant à lui, la distinction trop marquée entre ce qu’il appelle ses ‘moments critiques’ (les proêmes) et ses moments lyriques » (les poèmes). »

Daí aparece a « [p]ratique, donc, comme notion

désignant un texte, et non simplement un poème ; c’est-à-dire un travail, un acte, ou plutôt, car le pluriel est ici important, une série d’actes qui sont à la fois, simultanément ou indissolublement liés les uns aux autres, critiques et lyriques, proématiques et poétiques [...]. Vejamos que o Pour um Malherbe se debruça sobre a obra e a herança do mestre francês de modo que o empenho do juízo crítico ali estabelecido recai sobre a língua francesa (e não somente, frise-se). O ato, então, configura-se por meio da manipulação de uma matéria linguística que é viva, que continua, na leitura do leitor e do crítico Francis Ponge. Mas, assim como na obra de Murilo Mendes, há uma reverberação do material, desse ato, disseminado por toda a obra e que se constitui enfim numa prática literária que assume os foros quase que de um novo gênero literário. Nesse sentido, a prática pongiana é um tanto mais matizada que a muriliana. Coisa que não se dá de modo diverso com o longo livro-poema La table, em que as provas, os rascunhos, os erros do processo de escrita, ali estão, como se a todo momento o texto se criticasse a si próprio, como se vacilasse no seu ato de construção, que se torna inclusivo porque pressupõe o leitor (que imagina e compõe o livro) e ainda uma voz crítica que faz dialogar o texto com o seu avesso.

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Interessante é notar que, se Murilo Mendes procede com muito mais frequência a um posicionamento crítico externo, Ponge vai numa direção em que a crítica se internaliza. O poeta francês se volta ao literário muito mais no sentido de uma auto-crítica, ou metacrítica. Os textos incluídos em Méthodes, bem como os Proêmes, são grande prova de uma prática indistinta de poeta e crítico dobrado quase que exclusivamente sobre si mesmo, empenhando-se numa atividade que toma ares de preparação, proemática, de proêmio. Leda Tenório da Motta (2000, p.40, itálico do autor, negrito nosso) é taxativa nesse sentido: Todos os seus escritos realizando, ao mesmo tempo, um discurso da obra e um discurso sobre a obra, que nos volta a dupla face da poesia e da crítica, da performance e da autocrítica. Toda a obra é, nesse sentido, rigorosamente meta. “Metalógica” [...] Voltando a Métodos, tudo é portanto aí, de alguma maneira, poesia. A poesia possível: uma espécie de prosa linear e estranha. E tudo se destina a responder à delicada pergunta sobre o que seria a poesia.

No caminho que esses poetas empreendem, cabe observar a intensidade do trânsito e da indistinção da forma e do estatuto dos textos, bem como do posicionamento da voz (seja lírica, crítica, biográfica ou todas elas a um só tempo). Acaba se rarefazendo o vão que temos entre o poeta e o crítico, que é não só crítico de literatura, mas também de artes plásticas, de música e de cultura. Assim, cabe também investigar de que modo se posicionam essas vozes lírico-críticas. Enquanto críticos, Murilo Mendes e Francis Ponge procedem também como leitores-críticos da própria obra e de outras. O ato da leitura guarda em si o da recriação, da possibilidade de estabelecer uma variação do texto lido porque começa com a posse – é um ato de criação e doação ao mesmo tempo. O poetacrítico se situa também numa zona eminentemente criativa em que estabelece juízos, avaliações, em que age de acordo com uma experiência que é tanto literária, quanto individual. Nesse caso, o embaralhamento de posições é um tanto mais complexo já que dispõe, num mesmo centro, uma voz ficcional, mas que se quer analítica e por vezes imparcial. Então, é que estes sujeitos poetas-críticos se encontram no centro de uma prática criativa da literatura, à qual se chega pela via de vários atos (poéticos e críticos), manipulando a gestação da própria criação literária, a sua análise e a sua crítica. Ambos os sujeitos estabelecem um corpo-a-corpo criativo com o texto (próprio e de outros). Isto sempre num mesmo corpo literário, que surge da palavra e é palavra. Poderíamos nos perguntar: que espécie de sujeito é este? Crítico, biográfico, poético? 367

Evidentemente que à despeito de uma sensível inclinação ao científico, este sujeito é sempre ficcional e age de modo dialético, ocupando uma posição privilegiada, que lhe confere a capacidade de tudo agenciar – a lógica, a palavra, as coisas, o objeto poéticocrítico. Nesse sentido, sobressai-se a ficcionalidade do eu-lírico e do eu-crítico. Volta a questão: o que se depreende da aproximação ou do distanciamento entre Murilo Mendes e Francis Ponge? A ideia principal é a de poesia e crítica como práticas cuja função é totalmente criadora. Do modo como operam as poéticas do brasileiro e do francês, o que se sobressai é a prática literária enquanto atividade de criação. E não só a literatura, mas ainda as artes plásticas e o cinema (que, de fato, não são nosso objetivo). É então que podemos afirmar que poesia e crítica se juntam, irmanam-se, no sentido de uma poiesis, de um movimento de construção que é eminentemente criador. Nessa tensão, cujo lugar se encontra sempre na palavra, na linguagem, no texto, está implicada a crise do estatuto lírico e do crítico, justamente porque se trata de uma literatura que tem viés criador. Nesse caminho criativo, a crise é inerente ao poético, sua força está em produzir a poesia ao mesmo tempo em que se produz a si mesma – crise do lugar do sujeito lírico e do crítico, crise do estatuto da poesia e da prosa. Esse, o nosso horizonte de perspectivas, cuja relevância está, não na novidade da proposição, mas na execução (que se quer mais detida e profunda por meio das análises) de uma aproximação muitas vezes ensaiada pela fortuna crítica de Murilo Mendes e de Francis Ponge. Uma relevância que se sobressai, ainda, ao observar os poetas a partir de uma postura lírica e crítica disseminada em toda a obra completa (e que pontuaremos em livros determinados) e que coloca em questão não só a figura do poeta e do crítico, mas do ato e da prática da literatura. Bibliografia ARAÚJO, L. C. de. Murilo Mendes. Petrópolis: Vozes, 1972. (Poetas Modernos do Brasil, 2). BARBOSA, J. A. A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1986. (Debates, 105). BARTHES, R. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007. ______. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BERNARD, S. Le poème en prose de Baudelaire jusqu’à nos jours. Paris : Nizet, 2004.

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ANNA SEGHERS E A VATERLAND: PATRIOTISMO E RESISTÊNCIA Patrícia Helena Baialuna de Andrade (CNPq) Karin Volobuef Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Durante o período em que o nacional-socialismo esteve no poder, a Alemanha assistiu a uma maciça emigração de cidadãos que, de alguma forma, sentiam-se ameaçados pelo Reich. Judeus, ativistas políticos de esquerda, intelectuais, artistas; muitos foram os que, ameaçados pelo confinamento em campos de concentração, viram no exílio sua única opção de sobrevivência. A forte censura e a intolerância que marcam o período nazista – à semelhança do que vemos nos regimes de ultradireita de modo geral – tiveram como consequência uma lacuna nas artes alemãs da época. Com exceção de alguma produção nazista realizada na Alemanha, como literatura ou cinema de apoio a Hitler (ou de claro teor propagandístico), os nomes realmente expressivos da arte alemã, como Bertold Brecht, Thomas Mann, Fritz Lang, Stefan Zweig, entre muitos outros, estavam asilados em terras estrangeiras. As obras literárias produzidas no exílio passaram pelo crivo de estudiosos que questionaram seu status de Literatura de Exílio. O termo, hoje aceito e comumente encontrado nos tratados de história literária, já existia na década de 1930 e foi discutido por muitos pesquisadores. Seu principal argumento era o de que, pela enormidade da lista de artistas exilados e as diferentes vertentes de suas produções artísticas, não havia uma

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unidade de estilo ou tema que caracterizasse a Literatura de Exílio como movimento literário (FEILCHENFELDT, 1986, p.11-37). Contudo, o fato de esses escritores e poetas terem sido considerados subversivos de alguma forma e sofrido perseguições e banimento associa-os no rol de indivíduos malquistos pelo regime (RIEGEL; RINSUM, 2000, p.3435). Se os estilos presentes na Literatura de Exílio são os mais diversos, há temas que reaparecem com frequência: o próprio exílio é amiúde tematizado, bem como a repressão e a violência impostas pelo nazismo ao cidadão alemão, as condições de vida sob a égide do nacional-socialismo, a guerra, a relação do homem com sua terra natal e outras questões presentes na vida daqueles autores. Grande parte deles engajou-se na criação de obras voltadas à denúncia dos desmandos que ocorriam em seu país natal, buscando, através de sua arma – a literatura – voltar os olhos do mundo ao problema e conquistar apoio na luta pela liberdade tirada dos alemães desde 1933. Uma das autoras de maior destaque e mais ativo engajamento no período é Anna Seghers. Nascida em Mainz em 1900, ao final da década de 1920 já era reconhecida e premiada pela escrita de obras de temática social como Aufstand der Fischer von Sta. Barbara. Filiada ao KPD (Partido Comunista Alemão), viu seu nome já nas primeiras listas divulgadas pelo governo de obras e autores proibidos de serem publicados em solo germânico. Exilou-se na França e depois no México, nunca deixando de publicar e de participar de associações e periódicos junto com outros autores exilados (HILZINGER, 2000, p.13-27). Sua bibliografia é extensa, pois escreveu da década de 1920 ao início da de 1980, quando faleceu, e entre suas obras de maior sucesso figuram as que Seghers produziu no período 1933-1945, como Das siebte Kreuz [A sétima cruz] e Transit [Em trânsito]. Terminada a Segunda Guerra, Seghers voltou com a família para a Alemanha, e por sua clara orientação socialista optou por viver, até o fim da vida, em Berlim oriental. Os romances de Seghers, assim como os de muitos outros autores do período, expõem de forma crítica o que o nazismo significou para o modo de viver dos alemães: o medo inspirado pela Gestapo, o fantasma dos campos de concentração, o assédio à juventude pela ideologia nazista nas escolas, a fuga desesperada da Europa, e, principalmente, a posição do cidadão alemão diante dos acontecimentos a que assistia. A autora mostra uma sociedade dividida, entre a aceitação conformada do indivíduo que não

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se sentia diretamente ameaçado por não ter conduta “reprovável”, e aplaudia a melhoria da economia nacional promovida pelo governo do Führer, e a ousadia daqueles que chegavam a colocar a própria vida em risco para ajudar alguém perseguido, pela simples consciência da truculência da Gestapo e pela crença em um ideal democrático de liberdade individual. As personagens de Seghers enfrentam esses questionamentos, devendo se posicionar diante dos fatos à medida que o nazismo e a guerra se tornam inelutavelmente presentes em sua vida. Para a autora, a função social da obra artística era parte essencial da mesma, opinião que deixou registrada em artigos e cartas que trocou com companheiros como Georg Lukács (MAIER-KATKIN, 2007, p.22-36). Enquanto os autores exilados mais engajados procuravam expor em suas obras uma Alemanha assolada pela violência, pelo autoritarismo, pelo medo e, com o avanço da guerra, pela miséria, o partido nacional-socialista contava com um eficiente ministério da propaganda liderado por Joseph Goebbels, que se encarregava de inundar os lares alemães e as escolas com a ideologia nazista – como o culto ao Führer e o desprezo pelas raças ditas inferiores. É desnecessário dizer o quanto essas duas visões são conflitantes. O nazismo mostrado em A sétima cruz difere diametralmente daquele mostrado em “O triunfo da vontade”, documentário propagandístico dirigido por Leni Riefenstahl em 1934. Considerando essas condições acima relacionadas, nosso estudo pretende abordar diversos aspectos. Assim, o primeiro capítulo, mais breve que os demais, será dedicado ao aspecto histórico do nazismo e do exílio; seus antecedentes, os pilares de sua ideologia, ascensão, desenvolvimento e declínio; suas consequências para a população e para as artes de modo geral. O segundo capítulo terá como foco a Literatura de Exílio, procurando estabelecer algumas linhas mestras da produção do período, mostrando, através do exemplo de algumas obras

de

autores

renomados,

pontos

de confluência

e

divergência,

questões

sistematicamente discutidas, orientação político-ideológica aparente ou não nas obras. Estas ainda não estão estabelecidas. A terceira parte terá como núcleo a obra de Anna Seghers, em especial os romances produzidos no período 1933-1945. Procuraremos mostrar de que modo a autora se coloca enquanto pertencente à Literatura de Exílio, suas contribuições com discursos e artigos

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publicados em periódicos da época e a ligação entre esses textos não-literários e a realização de seus ideais artísticos nos romances. Finalmente, em caráter de conclusão do estudo, procuraremos discutir alguns aspectos da propaganda nazista – realizada através de romances, filmes, documentários ou panfletos – e seu embate com a visão do nazismo oferecida pela Literatura de Exílio. Atualmente (julho de 2012) está sendo elaborado o primeiro capítulo do trabalho descrito acima, de viés histórico. Estamos discutindo, nesse texto preliminar, os antecedentes históricos do nazismo, desde a Primeira Guerra Mundial; as punições impostas pelo Tratado de Versalhes à Alemanha após a derrota, e suas consequências econômicas para o país, considerando ainda a Grande Depressão e a crise monetária no início da década de 1930, o expressivo aumento do eleitorado do NSDAP de 1924 a 1932, a ascensão do nazismo e os pontos centrais de seu programa de governo, como a teoria racial e a política expansionista, as medidas de censura às artes, a propaganda, a perseguição aos judeus e as ondas migratórias; a eclosão da Segunda Guerra e a ruína do governo nazista. Esse texto tem por objetivo compreender um pouco melhor como o nazismo chegou ao poder e conquistou massivo apoio popular, traçando um panorama das condições de vida do cidadão alemão no período e introduzindo o estudo da Literatura de Exílio. Bibliografia BEUTIN, Wolfgang. Sozialistischer Realismus. In: ______ (Hrsg.). Geschichte der deutschen Literatur. Von den Anfängen bis zur Gegenwart. Stuttgart: Metzler 2001. FEILCHENFELDT, Konrad von. Deutsche Exilliteratur 1933-1945. Kommentar zu einer Epoche. München; Winkler Verlag, 1986. FEUCHTWANGER, Lion. Arbeitsprobleme des Schriftstellers im Exil. In: ARNOLD, Heinz Ludwig (Hrsg.). Deutsche Literatur em exil: 1933-1945. Band I: Dokumente. Frankfurt am Main: Athenäum Ficher Verlag, 1974. HEISE, Eloá. E RÖHL, Ruth. História da Literatura Alemã. São Paulo: Editora Ática, 1986. HILZINGER, Sonja. Anna Seghers. Stuttgart: Reclam, 2000. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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VOZ NARRATIVA E MEMÓRIA: A BUSCA DE IDENTIDADE PELAS PROTAGONISTAS DE FELICIDADE CLANDESTINA, DE CLARICE LISPECTOR E DE LIVES OF GIRLS AND WOMEN, DE ALICE MUNRO Patricia Magazoni Gonçalves (FAPESP) Maria das Graças Gomes Villa da Silva Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP/FCLAr A pesquisa está em fase de desenvolvimento, tendo em vista o exame de qualificação, e tem como objetivo analisar como ocorre a representação da memória no discurso ficcional da escritora canadense Alice Munro e de Clarice Lispector. Para tanto, foram selecionadas, respectivamente, as narrativas “The Flats Road”, “Heirs of the Living Body”, “Princess Ida” e “Epilogue: the Photographer”, do volume de 1971 Lives of Girls and Women1, e “Felicidade clandestina”, “Restos do carnaval”, “Os desastres de Sofia” e “A legião estrangeira”2, do volume também de 1971 Felicidade clandestina. Até o presente momento, foi feita uma redação preliminar dos capítulos da dissertação, com base no estudo da teoria, bem como na leitura das narrativas e de parte da fortuna crítica acerca das escritoras. Os trabalhos freudianos sobre o funcionamento da memória, conjugados à questão da identidade e da voz narrativa, dão suporte teórico à análise dos contos. Serão consideradas as releituras de Jacques Derrida (1995), Paul Ricoeur (2007), Garcia-Roza (2004) e Stuart Hall (2006). Neste estudo, não serão abordados os conceitos de memória-lembrança ou de 1

O volume apresenta histórias sequenciais sobre a vida da narradora-protagonista, Del, agrupadas em ordem cronológica, o que não rompe com a noção de continuidade inerente ao romance, porém que podem ser analisadas de forma independente sem que o sentido seja prejudicado. 2 É importante notar que as duas últimas narrativas foram publicadas inicialmente em 1964, no volume A legião estrangeira, e reapareceram em 1971 em Felicidade clandestina.

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memória-souvenir bergsoniana, mas de memória inconsciente, elemento indispensável para a formação do aparelho psíquico. Com isso, o foco central é observar como o acontecimento resgatado do passado é representado na ficção e mostrar as estratégias empregadas para colocar em ação, no texto ficcional, o trabalho de condensação e deslocamento, por meio, principalmente, de uma voz narrativa que se movimenta pelo relato e por um discurso fragmentado. Historicamente, o processo de memória foi concebido como algo que promove a volta ao passado com o objetivo de identificar as experiências consumadas e trazê-las inteiramente para o presente. Santo Agostinho, ao propor a metáfora dos palácios da memória, afirma que os fatos vivenciados em períodos anteriores chegam ao presente sem quaisquer lacunas ou rasuras e à memória é concedida a tarefa de guardar intactas as lembranças: Quando lá [nos vastos palácios da memória] entro, mando comparecer diante de mim todas as imagens que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-me esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos ainda mais recônditos. [...] O grande receptáculo da memória [...] recebe todas estas impressões, para as recordar e revistar quando for necessário [...] Grande é realmente o poder da memória, prodigiosamente grande, meu Deus! É um santuário amplo e infinito. (SANTO AGOSTINHO, 1996, p. 267).

Contudo, conforme afirma Lúcia Castello Branco (1994), o sujeito, quando se volta ao passado, encontra-se diante de um distanciamento temporal que separa a experiência vivida da sua reconstrução atual. A retomada do passado é mediada pela linguagem, o que marca a impossibilidade de se recuperar os fatos tais como eles foram vividos originalmente. Tem-se, com isso, não um passado que, conservado integralmente, está pronto para surgir dos vastos palácios da memória, mas que se constitui a partir da falta, da ausência da experiência original, por meio de fragmentos mesclados a fantasias e deformações. Segundo Freud (1996a), as lembranças sofrem um deslocamento espaciotemporal e são modificadas por forças que reorientam o modo de evocar o passado. O material que surge na mente não corresponde com fidelidade ao que ocorreu, mas apresenta associações e combinações entre a memória, os contextos externos e as fantasias inventadas. Os diferentes elementos se organizam por meio dos processos de condensação e deslocamento,

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originalmente descritos ao se pensar o trabalho dos sonhos, e são submetidos à ação do recalque. Da mesma forma que a literatura foi definida, na Poética (1988) de Aristóteles, como imitação por meio de palavras e, portanto, representação não da experiência bruta, mas do fato modificado pelo processo de mimese, também a lembrança não apresenta os acontecimentos tal como eles ocorreram. Lembrar nada mais é do que um trabalho de criação e de mistura entre a experiência vivida e a sua reconstrução em um tempo presente. Um processo que não possibilita o resgate integral do fato consumado, mas que é regido por um tempo descontínuo e fragmentado, organizado por meio de saltos, rupturas e oscilações entre passado e presente. Dentre os processos característicos da prática psicanalítica, Freud (1996c) considera que o sujeito, ao se recordar de algo, repete o passado e, por conseguinte, recobre-o de elaboração. O evento, ao ser trazido para o presente, é atualizado e ressignificado. Consagra-se a ideia de um passado que já não é mais fechado e completo, porém que se modifica com o tempo, sendo impossível restituir ao fato anterior sua autenticidade. Ao compor o relato, as narradoras-protagonistas de Alice Munro e Clarice Lispector não só se recordam de uma experiência, como também a repetem através do discurso ficcional e, devido ao distanciamento temporal, reelaboram o passado, cobrindo-o com novos sentidos e com a ajuda da imaginação. Os contos selecionados para este estudo são compostos por narradoras-protagonistas ou, nos termos de Genette 19[--], autodiegéticas, que recorrem à memória para resgatar uma experiência já consumada e apresentam um passado que não é simplesmente transferido para o presente, mas reelaborado e lido a posteriori, com todas as suas falhas e lacunas. Por conseguinte, expõe-se o aparelho psíquico como uma máquina de escritura em pleno funcionamento à medida que se preenche o papel em branco com o próprio relato, deixando à mostra o trabalho criativo e a impossibilidade de recuperação da coisa perdida. “The Flats Road”, por exemplo, funciona como uma introdução aos demais contos e é marcado, sobretudo, pela evocação do espaço. A narrativa tem início em um tempo passado e descreve a menina-protagonista e seu irmão ajudando Uncle Benny, personagem central desta narrativa, a caçar sapos. Por meio de uma narração simples e de um tom infantil, é possível destacar, em um primeiro momento, a existência de uma única voz narrativa: a menina da infância que conta os fatos à medida que os vivencia: “We spent

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days along the Wawanash River helping Uncle Benny fish. We caught the frogs for him. We chased them […] in marshy hollows full of rattails and sword grass that left the most delicate, at first invisible, cuts on our bare legs.” (MUNRO, 2001, p. 3)3. É interessante observar a riqueza de detalhes e a descrição realista empregada por Del, aspectos que parecem ser utilizados não só para perpetuar a tradição do vasto deserto canadense como marca distintiva da literatura nacional, mas também para dar a impressão de ser narrado por meio da visão e da imaginação de uma criança. A narradora-protagonista relata os acontecimentos como uma menina, simultaneamente ao seu desenrolar. Contudo, no trabalho representativo da memória há alguns marcadores, tais como later on e at present, que deixam à mostra o jogo temporal e a existência de dois momentos distintos no narrar da protagonista: “Later on she [her mother] was to find she did not belong in Jubilee either, but at present she took hold of it hopefully […]” (MUNRO, 2001, p. 1011)4. A citação parece colocar o leitor frente a frente com Del adulta, representando o momento da escritura que, em sua condição de conhecedora do desfecho da história, pode admitir uma possível mudança do comportamento materno. A narradora-protagonista caminha de maneira fluida entre o passado reconstituído, dominante na narrativa e identificado pela expressão at present, e o presente para o qual o passado é transferido, marcado por sua condição de escritora. Ao refletir sobre o ato de rememoração, King (2000, p. 31-32) salienta não se tratar de algo que prende o sujeito ao passado, mas de uma re-tradução do fato consumado, processo complementado com situações do presente e que permite um movimento para adiante. Neste sentido, há a existência de uma voz narrativa duplicada. Há um “eu então”, que pertence ao passado, e um “eu agora”, que fala a partir do presente, ambos separados por um abismo temporal que torna impossível a recuperação integral da experiência. De acordo com Scott, “I then” and “I now” are foreign to each other in the memorial event. In getting what came before there is a loss of recognition: in this memory there is a forgetting. If I believe I now recognize him then, I do not 3

Nós passávamos dias à beira do rio Wawanash ajudando tio Benny a pescar. Pegávamos os sapos para ele. Nós os perseguíamos [...] em buracos pantanosos cheios de grama pontuda que deixava os mais delicados cortes nas nossas pernas descobertas e eram, em um primeiro momento, invisíveis. [Tradução nossa]. 4 Mais tarde ela [a mãe] descobriu que não pertencia a Jubilee, mas no momento ela esperançosamente acreditava nisso. [Tradução nossa].

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understand the memory. And if I believe that “I as a boy” recognizes me now, I now lose touch with myself in that experience. Only by knowing the losses and in the losses can I remember with some clarity of understanding. (1999, p. 7)5.

O ato de recordar possibilita não só a retomada simples de cenas do passado, mas também sua repetição e presentificação, que ocorrem por meio de fragmentos. As ações narradas no conto são resgatadas do passado e sua repetição, ao compor o relato, é o que permite a elaboração dos fatos, submetidos a filtros subjetivos e à imprecisão. Trata-se de um passado que se atualiza com o discurso ficcional e permite a complementação do que ocorreu. É através do distanciamento temporal que a experiência vivida é exposta, abrindo espaço para o presente e para os novos sentidos surgidos ou inventados a partir do trabalho com a memória. “Del agora”, embora pareça narrar dando a impressão de ser a personagem da infância, não consegue se esconder completamente por detrás de “Del menina”, uma vez que seu discurso ficcional não se constitui somente por meio da repetição da experiência passada, mas também da sua elaboração posterior. De maneira semelhante, “Os desastres de Sofia” inicia-se com o surgimento abrupto da figura do professor, que aparece sem preâmbulos nem apresentações. A impressão que se tem é de que a narradora-protagonista, com o intuito de acompanhar a rapidez com que as lembranças chegam à mente, inicia sua narração de forma repentina, sem nem ao menos tempo para explicar ou para introduzir o assunto. Quando a narração se inicia, o leitor já se encontra em um tempo passado, mais especificamente na época de infância da narradora-protagonista. Há a impressão de que os acontecimentos são expressos do modo como foram vistos e sentidos pela própria menina, na época de sua ocorrência, como se a experiência estivesse sendo resgatada de forma integral. São mencionados os sentimentos ambivalentes da aluna em relação ao professor, os desastres protagonizados por ela e sua postura atormentadora dentro da sala de aula. Até o momento não há nenhum sinal da protagonista no tempo do presente, como se sua presença tivesse sido anulada para dar lugar à menina da infância. Contudo, há um primeiro deslocamento temporal e a narração é conduzida ao momento atual de reconstrução da cena 5

No evento retomado pela memória, o “eu então” e o “eu agora” são estranhos um ao outro. Ao retomar o que aconteceu antes, há uma ausência de reconhecimento: nessa memória, há um esquecimento. Se eu acredito que o eu agora reconhece o “eu então”, eu não entendo a memória. E se eu acredito que o “eu enquanto menino” reconhece o eu agora, perco então o contato comigo mesmo naquela experiência. Apenas reconhecendo as perdas e nas perdas eu posso lembrar com certa clareza do entendimento. [Tradução nossa].

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passada, o que deixa à mostra o trabalho de escritura e a narradora-protagonista lançando sobre o papel as palavras que compõem seu texto. Sua escrita, não sendo totalmente acabada, esforça-se por captar a si mesma se fazendo, como ilustra a passagem: [...] eu estava sendo a prostituta e ele o santo. Não, talvez não seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se eu não tomar cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito. (LISPECTOR, 1998, p. 99).

O fato de a protagonista interromper seu relato do passado e voltar ao tempo presente, mostrando a dificuldade sentida na composição de sua narrativa, demonstra como o uso de uma estrutura fragmentada é essencial para representar o funcionamento mnêmico. As palavras que se antecedem e, simultaneamente, ultrapassam o relato deixam evidente não só a distância temporal que separa passado e presente, como também a fragmentação do eu, o que permite dissociar uma consciência que narra em um tempo presente da menina que é narrada pela primeira, mas no passado. A fim de se representar a experiência do indivíduo e o consequente desencadeamento de imagens e pensamentos, opta-se não por uma narração objetiva e distanciada dos acontecimentos, mas por acompanhar o fluxo da consciência da personagem, afastando a narrativa de uma organização linear, casual e ordenada. Observase um tempo psicológico e interiorizado que também contribui para representar o funcionamento da memória. As narrativas de Alice Munro e Clarice Lispector, portanto, contemplam a fragmentação como técnica central para representar o funcionamento da memória. As narradoras-protagonistas transitam entre passado e presente, configurando um discurso inacabado que atualiza os fatos ocorridos em tempos remotos. Dos vastos palácios da memória, utilizando as palavras de Santo Agostinho (1996), não é possível extrair o passado de forma intacta, senão por meio de fragmentos aliados ao trabalho criativo. O ato de rememorar é, com isso, mediado pela linguagem, pelas vivências pessoais e contingências históricas e culturais que interferem no processo. Há um movimento de reencontro da realidade perdida na memória, complementando-a com a imaginação. O mundo da infância surge a partir da lembrança e passa a ser narrado à luz da representabilidade. O eu narrativo constitui-se uma consciência rememorante que vê e ordena as camadas passadas, confrontando-as entre si e liberando-as de uma sequência

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temporal externa e “[...] o gesto de se debruçar sobre o que já se foi implica um gesto de edificar o que ainda não é, o que virá a ser” (CASTELLO BRANCO, 1994, p. 26), ou seja, o discurso ficcional. Além das disciplinas cursadas durante o primeiro ano, importantes para refletir sobre a questão do feminino, do conceito de memória tratado pelo viés psicanalítico e para uma análise mais aprofundada do gênero conto, a pesquisa contou, ainda, com um estágio de pesquisa no exterior, realizado na Universidade de Ottawa, de abril a junho de 2012. Financiado pela FAPESP, o estágio foi fundamental ao proporcionar o contato com uma fortuna crítica mais ampla e atual sobre Alice Munro e a questão da memória, além de proporcionar uma maior imersão no contexto cultural em que sua obra foi desenvolvida e, consequentemente, um melhor entendimento. Bibliografia Sobre Alice Munro BESNER, N. K. Introducing Alice Munro’s Lives of Girls and Women. Ontario: ECW Press, 1990. BLOOM, H. (Ed.). Alice Munro. New York: Bloom’s Literary Criticism, 2009. CARRINGTON, I. P. Controlling the uncontrollable: the fiction of Alice Munro. Dekalb: Northern Illinois University Press, 1989. CARSCALLEN, J. The other country: patterns in the writing of Alice Munro. Ontario: ECW Press, 1980. COX, A. Alice Munro. Tavistock: Northcote House, 2004. GRIEVE, M. Writing Women’s Lives: the Fictional Aesthetic of Alice Munro. 1997. 94f. Master Thesis – Department of English, Lakehead University, Thunder Bay (Ontario), 1997. HARTVEIT, L. Alice Munro and the Canadian Imagination. In: OLINDER, Britta. (Org). A sense of place: essays in post-colonial literatures. Göteborg: Gothenburg University Commonwealth Studies, 1984. HEBLE, A. The Tumble of Reason: Alice Munro Discourse of Absence. Toronto: University of Toronto Press, 1994.

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TUTAMÉIA: LABIRINTO DE IMAGENS E SÍMBOLOS Paula Aparecida Volante Guacira Marcondes Machado Leite Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O universo poético de Guimarães Rosa já foi alvo de pesquisa em dissertação intitulada A prosa poética de Tutaméia. Durante o desenvolvimento desse trabalho percebeu-se a importância de elementos como o símbolo, a imagem, a metáfora e a alegoria na constituição do universo rosiano. Desse modo, pretende-se uma leitura de Tutaméia pautada na presença e função dessas estruturas, objetivando compreender a relação que estabelecem com o texto na composição de sua tessitura perfeita. A partir de contos precisamente elaborados, caracterizados pelo sintetismo e condensação, que se aproximam dos mitos e lendas, é instaurado um regionalismo que ultrapassa qualquer fronteira espacial e adentra no universal, tudo para explorar um tema comum a qualquer ser: o homem em confronto com suas intempéries. Para Castro (1993), a universalidade de Guimarães está na sua preocupação com a essência da realidade e sentido último da existência, indo além da aparência superficial. Para viver toda essa universalidade, Rosa cria personagens que se distinguem dos demais seres. Estes, como afirma Brasil (1969), são sonhadores, mágicos e imaginativos; demiurgos, que criam seus próprios mundos, vendo além da realidade. Sem medo, viajam pelo próprio inconsciente em busca do conhecimento e do mistério. De acordo com Coelho (1975), são guiados por uma fé inabalável, sempre esperançosos num final feliz, ou seja, que o encontro com a transcendência, a poesia, o infinito, o “lá” poderá se realizar. Lages (2002) considera que Guimarães elava esses seres à condição de poetas, afinal, eles vêem e

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fazem ver, transformando o banal que os cerca. Podem ser considerados como símbolos do infinito, pois, guardam sempre novos enigmas em suas almas iluminadas. Garbuglio (1972) demonstra que o sertão, espaço onde habitam tais seres, é um universo ambíguo e perigoso, sem deixar de ser poético e autônomo; símbolo da luta terrestre dos homens. Galvão (2000) e Candido (2000) ressaltam o caráter universal e labiríntico desse sertão, possuidor de uma consistência psicológica e existencial, representante de toda a região escura do inconsciente. A linguagem sustenta toda essa realidade graças a sua capacidade de criação e renovação, carregada de significações duplas, palavras polifacetadas, regionalismos universalizados, neologismos, arcaísmos revigorados, entre outros. César (1968) afirma que Guimarães cria seu mundo através de uma língua inesgotável em significações, poética, simbólica, pura e universal. A palavra rosiana liberta e cicatriza o sofrimento humano, introduzindo a poesia no cotidiano. Em meio e este universo de lutas e batalhas, o símbolo surge como peça fundamental na construção da poeticidade. Chevalier (2000) considera-o como centro da vida imaginária, uma estrutura que rompe os limites e une os extremos. É a chave de um mistério que não pode ser explicado completamente; diz o indizível, ou seja, acrescenta à realidade outras dimensões, fazendo esta ser gerida por um sistema de assimilações e correspondências. Tadié (1978) e Lefebve (1980) destacam a relação do símbolo com o espírito, bem como sua capacidade de fazer uma obra de arte explodir em ambigüidade e polissemia. Jung (1977) afirma que todo símbolo tem algo de familiar, mas ocultado pela consciência. Todorov (1996) considera o significado simbólico como sendo algo vivo e inesgotável. Durand (2002) destaca o caráter criador do símbolo, além de organizador do universo. A imagem, ao lado do símbolo, também constrói a estrutura poética de Tutaméia. Entendida por Paz (1995) como entidade criada pela imaginação, que pode criar verdades e unir opostos, explicando-se na sua incompletude. Bachelard (2003) considera que a imagem deve envolver o leitor através dos sentidos e resgatar aquilo que está em seu interior, numa comunhão entre sonho e realidade. Conforme aponta Bosi (2000), elas são as palavras articuladas, um todo que pode presentificar na ausência.

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Segundo Eliade (2001), o símbolo, a imagem e o mito têm uma função primordial: revelar aquilo que há de secreto no ser humano. Além disso, também potencializam e renovam a língua a partir de estruturas que colocam o homem diante de contrários e desafios. A metáfora e a alegoria são os outros componentes fundamentais para o fortalecimento do poético. A metáfora é entendida por Candido (1996) como a transposição de significado de uma palavra para outra, ou melhor, uma relação de semelhança, no qual um termo afeta e é afetado pelo outro, adquirindo uma gama de significações amplas e densas. A alegoria é convencional e arbitrária segundo Todorov (1996), tendo sua interpretação caráter obrigatório, por isso afirma-se que seu significado é finito. Kothe (1986) considera a alegoria como uma representação concreta do abstrato; do alegórico nasce a insegurança de sua aparência de certeza, já que seu significado pode não ser tão claro como pode parecer. Tais elementos são responsáveis por compor a trama de Tutaméia e aparecem sob diferentes aspectos ao longo dos contos, entrelaçando-os. Um exemplo dessa ligação é o símbolo da água, recorrente, de modo direto ou indireto, em várias histórias, como Lá, nas campinas, Ripuária, Azo de almirante, Hiato e Desenredo . Nesses contos, a água é fonte de vida, sinônimo de purificação e renascimento; mergulhar nas águas é morrer simbolicamente, retornar às origens e recuperar a energia vital. Representa a pureza, a sabedoria, a graça e a virtude, mas encerra em si valores positivos e negativos, de criação e destruição, vida e morte. Em Lá, nas campinas..., a água aparece nas lembranças de Drijimiro, jorrando de sua memória para purificá-la, refletindo sua identidade, colaborando para o reencontro com um passado ignorado. Lioliandro, em Ripuária, é outro personagem ligado à água, deixando-se guiar por ela e pelo desejo de atravessar o rio e chegar à outra margem, vislumbrando o desconhecido. No conto Azo de almirante, Hetério tem seu destino regido e transformado pela água, que o aproxima da morte, quando mata sua família, e o conduz ao renascimento, no momento em que o coloca no rumo da transformação. Em Hiato, tal elemento surge para indicar a atemporalidade e identificação, visto que, como um espelho, reflete o mundo. Desenredo concretiza a água indiretamente, através dos barcos, que seguem seu caminho, como as águas. Em todos esses textos, homens simples, marcados pela diferenciação,

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vivem em meio às intempéries do destino, lutam contra tudo que os afasta da poesia do mundo, para permanecer no caminho que os conduz ao lá. Eles possuem dentro de si uma chama que os ilumina nos momentos de escuridão, uma fé que os sustenta e sabedoria para criar um mundo ou aceitar seus mistérios. O triângulo e o número três são outros símbolos encontrados nesse tecido. Encerram em si a ligação entre o terrestre e o divino. Neles, nada pode ser acrescentado ou tirado, pois concretizam a perfeição, união e harmonia, por isso guardam em si a representação das fases da vida: nascimento, crescimento e morte. Entretanto, também apontam para o superior, onde se encontra o renascimento e a renovação. Assim, o triângulo/três pode ser o indicador do percurso natural do homem, que parte das imperfeições da base para atingir o cosmo do topo. No conto Tresaventura, o personagem é uma menina caracterizada pela fragilidade e pequenez, mas sua aparência esconde a grandeza da alma. Ela deseja conhecer um arrozal, localizado próximo à sua casa e visto como um lugar sagrado, onde a comunicação com o superior pode acontecer. Tal personagem é dona de três nomes: Maria Euzinha, Djá e Iaí. Todo o caminho até o arrozal, bem como determinados acontecimentos, tem como função fazer a menina encontrar-se consigo mesma, definindo sua identidade e, como conseqüência, escolhendo definitivamente um nome. A personagem do conto Reminisção também é caracterizada por possuir três nomes: Nhemaria, Drá e Pintaxa. Esta é dona de identidade incerta, pois, na concepção popular é ressaltada negativamente pela sua aparência física, enquanto Romão, o marido, vê sua essência e verdadeiras qualidades interiores. A morte é, nesse caso, o início para uma nova vida, já que o fim desse homem é a chave para o renascimento de Nhemaria. Em outros textos figuram esses mesmos símbolos, como no conto Se eu seria personagem, O três homens e o boi, Desenredo e Presepe, nos quais, a tríade é a base que sustenta a trama, possibilitando seu desenrolar. Além desses elementos simbólicos, outros se fazem presentes, como as formas geométricas do círculo e do quadrado; certos animais como o boi/touro, cavalo e aves; determinadas cores, amarelo e azul; além dos rios, lagoas e do sol. Todos juntos constroem a tessitura dos contos, fazendo-se presentes de formas diversas, ora destacando seu aspecto positivo, ora ressaltando sua face negativa, mas sempre ampliando e rompendo os limites da narrativa, renovando-a constantemente.

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Esse trabalho objetiva, portanto, analisar número significativos de contos de Tutaméia, visando compreender detalhadamente a função desempenhada pelo símbolo e a imagem nas histórias narradas; as relações que estabelecem com os personagens; como colaboram na construção da unidade da obra, vista pelo próprio Guimarães como um “todo perfeito”; de que forma se relacionam, entre outros questionamentos. Tendo em vista a amplitude que possuem esses quatro elementos – o símbolo, a imagem, a alegoria e a metáfora -, optar-se-á por trabalhar detidamente com o símbolo e a imagem, mais abundantes nos contos e, de modo mais superficial, com a alegoria e a metáfora. Essa escolha foi feita levando em consideração a maneira como se definem e por serem elementos que se encontram interligados desde sua origem, na medida em que um surge a partir do desdobramento do outro. Por isso, a impossibilidade de suprimir qualquer um deles numa pesquisa. A escolha dos contos que serão analisados será feita com base na presença de tais estruturas, visando selecionar aqueles em que aparecem com maior ênfase, ou ainda, contos que se relacionam com outros pela recorrência de temas ou de qualquer um dos elementos estudados, tudo para alcançar o objetivo proposto. Tal método de escolha já foi colocado em prática com os contos que seguem: Azo de Almirante, Barra da vaca, Curtamão, Reminisção, Lá, nas campinas..., Presepe, Quadrinho de história, Ripuária, Se eu seria personagem, Tresaventura, Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi, Esses Lopes, Hiato, Desenredo, Grande Gedeão e Orientação. A contribuição que se pretende dar aos estudos das obras de Guimarães Rosa é a de mostrar como o símbolo, a metáfora, a alegoria e a imagem estão presentes nesses contos rosianos e o papel que desempenham na sua composição. Bibliografia BACHELARD, G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução de Antonio Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Coleção Tópicos). ______. A psicanálise do fogo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999 (Coleção Tópicos). ______. A Terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (Coleção Tópicos).

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DE HOLMES A POIROT: RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA NA NARRATIVA POLICIAL BRITÂNICA Pollyanna Souza Menegheti Márcia Valéria Zamboni Gobbi Programa de Pós-graduação em Estudos Literários Araraquara O romance policial surgiu em meados do século XIX, impulsionado pelo escritor americano Edgar Allan Poe que, em meio a sua vasta obra, concebeu três histórias de mistério protagonizadas pelo detetive Auguste Dupin, sendo que a mais conhecida delas é, certamente, “The Murders in the Rue Morgue (1841)” 1. Porém, apesar de ter partido das mãos de um autor americano, foi na Europa que a literatura policial se consolida, 1

Conto de Edgar Allan Poe, traduzido no Brasil com o título de “Os Assassinatos da Rua Morgue”

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principalmente devido a fatores como o advento da sociedade burguesa e a primazia do cientificismo e do uso da razão. Da mesma forma, o uso da razão pode ser facilmente percebido na própria estrutura narrativa do romance policial, visto que este é impulsionado pela noção de adivinha 2, ou seja, há um enigma proposto e o adivinhador - neste caso o detetive - se dispõe a desvendar e elucidar o mistério - normalmente um assassinato ou um roubo de algo muito precioso. Desta forma, esta pesquisa tem como objetivo analisar o estabelecimento do romance policial enquanto gênero literário, bem como a historicidade deste gênero. Os acontecimentos históricos não podem ser ignorados quando tratamos da narrativa policial, visto que a personagem do detetive, que busca solucionar o mistério por meio da lógica, pode ser entendida como uma representação do movimento cientificista que percorria a Europa durante o século XIX. O Positivismo, a Escola Metódica, e o desenvolvimento da própria ciência foram, sem dúvida, impulsionados pela mesma noção de método, lógica e ordem que guia a narrativa do romance policial. A ciência do detetive encontra paralelos no cientificismo dos séculos XVIII e XIX. Isto pode ser bem observado no método empregado por Sherlock Holmes para desvendar os enigmas propostos em suas histórias: ele faz uso da química, da medicina, de conhecimentos práticos sobre tipos de tabaco, pegadas, etc., enquanto Poirot, que atua já no início do século XX, tem como seu principal método analisar os aspectos psicológicos do crime, pensando na motivação do criminoso, bem como nos métodos que podem ter sido utilizados para cometer o crime. Poirot mostra-se, portanto, mais ligado à psicologia, que também se consolidava enquanto ciência praticamente no mesmo período. O romance policial mostra-se, então, intimamente ligado à mudança ocorrida no estatuto de ficção. A ficção, desde a metade do século XVIII, mas principalmente durante o século XIX, depois do surgimento do novel, ganha um novo significado, não mais sendo entendida como um “fingimento” ou “falsidade”, como nos séculos anteriores, mas sim ser pensada como uma “composição inventada” 3, algo que foi composto pelos ficcionistas, e que não deve ser entendido como a realidade, mas que acabou se tornando um fenômeno literário. 2

JOLLES, Andre. Formas simples. São Paulo: Editora Cultrix, 1976 GALLAGHER, Catherine. Ficção. In: MORETTI, F. (org.). O romance 1: A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 631. 3

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Não é difícil associar esta mudança do estatuto de ficção com a aceitação do romance policial por parte da sociedade, afinal as mesmas mudanças históricas que modificaram estatuto de ficção, proporcionaram a consolidação da narrativa policial enquanto literatura. Uma destas mudanças certamente foi a ascensão de uma nova classe social, a burguesia. A burguesia provoca um sem-número de reestruturações na organização social, influenciando também na cultura, o que deixa claro o motivo por detrás da aceitação da literatura policial neste período, afinal, sua estrutura ficcional, porém verossímil e impulsionada pela noção de lógica e método, certamente alcançaria sucesso na sociedade. Postos estes problemas, o principal objetivo desta pesquisa se constitui em analisar, por meio das obras selecionadas dos escritores Arthur Conan Doyle e Agatha Christie, a historicidade do romance policial, o desenvolvimento das estruturas de sua narrativa, partindo do papel do narrador no romance policial e englobando o enredo e as tramas trabalhadas pelos autores, o desenvolvimento dos personagens, e, também a construção da figura do detetive e como esta se alterou neste período de tempo, levando em consideração a possível influência do contexto de produção histórico na constituição dessa narrativa. As obras de Conan Doyle selecionadas para realizar este estudo são, portanto: “The Adventure of the Speckled Band” (1892), “The Adventure of the Dancing Man” (1903), e “The Adventure of the Lion’s Mane” (1926) 4, todas contendo Sherlock Holmes como protagonista. Em “The Speckled Band”, Holmes tem como cliente uma moça, herdeira de uma grande fortuna, que vive em uma casa misteriosa, no interior da Inglaterra com seu padrasto e sua irmã gêmea, que morreu em circunstâncias misteriosas. Este conto é sempre lembrado por sua ambientação e também por sua resolução bastante original e curiosa, bem como pela crueldade do assassino em questão. Em “The Dancing Men”, o cliente, um homem do interior, traz ao conhecimento de Holmes uma série de desenhos representando homenzinhos dançando e que parecem estar ligados ao passado da esposa deste senhor. Justamente pela presença destes desenhos, este conto se torna um dos mais agradáveis à leitura, apesar de possuir um desfecho dramático e violento, embora fascinante, devido à simplicidade e genialidade do processo dedutivo de Holmes.

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Os títulos foram traduzidos no Brasil como “A Faixa Manchada”, “Um Escândalo na Boêmia”, “O Homem do Lábio Torcido”, “Os Dançarinos” e “A Juba do Leão”, respectivamente.

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Já em “The Lion’s Mane”, somos apresentados a uma situação diferente, pois está é a única de todas as histórias envolvendo Sherlock Holmes que não é narrada por Watson, sendo que este nem mesmo participa desta aventura. Holmes, após retornar da morte, decide se mudar para o interior e criar abelhas, porém acaba se envolvendo em um mistério envolvendo a morte de um professor universitário. Este conto evidentemente se destaca por possuir Holmes como narrador e ao mesmo tempo manter as regras do romance policial, não revelando os pensamentos do detetive ao leitor. Quanto a Agatha Christie, foram também selecionadas três obras: a já mencionada “The Mysterious Affair at Styles” (1924), “The Murder of Roger Ackroyd” (1926) e “Curtain” (1975) 5. O primeiro e o último livros marcam, respectivamente, o início e o fim da carreira do detetive Hercule Poirot, bem como se passam no mesmo lugar: a mansão Styles, fechando o círculo de aventuras deste detetive. O fato de as duas histórias ocorrerem no mesmo lugar, propicia também uma discussão sobre as diferenças de ambientação e as mudanças que ocorreram nestes cinquenta anos que separam as duas histórias. É claro que ao falar de Agatha Christie não é possível deixar de mencionar a obras “The Murder of Roger Acroyd” (1926), que é certamente a mais polêmica da autora, visto que neste livro ela desrespeita uma das leis fundamentais dos romances policiais, não dando ao leitor a mesma chance dada ao detetive para descobrir o mistério, já que o assassino é o narrador da história. Nota-se, então, que uma especificidade deste trabalho é o foco no papel do narrador no romance policial. O narrador, nesta primeira fase do romance policial, tem, na maior parte das vezes, um papel secundário na história, visto que sua função é narrar as aventuras do detetive. No entanto, em algumas das narrativas que compõe este corpus, o narrador possui um papel mais especial e até mesmo central. É, então, com base nestas diferenças e em como elas atuam na organização da história que se quer contar para atingir a classe leitora, bem em como nas possíveis representações que possam ser encontradas no corpo do texto, que esta pesquisa procurará se estruturar. No que concerne ao instrumental teórico, há alguns conceitos que serão amplamente utilizados neste trabalho, sendo que o principal deles é a teoria de composição de Edgar

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Os romances foram respectivamente traduzidos com os títulos de “O Misterioso Caso de Styles”, “O Assassinato de Roger Ackroyd” e “Cai o Pano”.

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Allan Poe sobre a “unidade de efeito” 6. Para Poe, duas características necessárias na composição de uma história são o efeito e a originalidade, sendo que estes dois estão intrinsecamente relacionados. A construção do efeito, em uma narrativa que envolve mistério e suspense é essencial. Apesar de Poe ter se dedicado mais ao suspense, sua teoria pode ser estendida à narrativa policial, visto que nela o mistério principal “quem é o criminoso?”, deve permanecer oculto até que o detetive revele a solução, e as pistas devem ser espalhadas pela trama de modo a fornecer ao leitor as mesmas chances que o detetive possui para solucionar o mistério. A solução deste, porém, não deve nunca ser óbvia. Se isto ocorrer é porque o enredo não foi bem desenvolvido e a unidade de efeito não funcionou. Por se relacionarem com a criação das unidades de efeito, serão também utilizados alguns conceitos que Gerard Genette

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aponta ao realizar seu estudo sobre o discurso da

narrativa, como os de elipse e paralipse, sendo que estes indicam, respectivamente, a omissão temporal presente no texto e a omissão de ações, sendo que as duas são extremamente comuns no romance policial, e auxiliam na criação das unidades de efeito. Outro conceito que será utilizado nesta pesquisa é o de duplicidade da estrutura narrativa do romance policial, proposto por Tzvetan Todorov.

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Para Todorov, a estrutura

do romance policial é composta por duas tramas distintas, sendo que a primeira (a do crime) não faz parte da narrativa principal, pois o leitor e o detetive tomam conhecimento dela depois da ocorrência do delito. A segunda trama é a contada pelo narrador, a que está acontecendo no tempo presente da historia, na qual o detetive busca encontrar a solução para o enigma proposto, ou seja, a investigação. São, portanto, estas duas partes que compõe a estrutura da narrativa policial, sendo que a primeira é a responsável pela existência da segunda. Outra questão relevante apontada por Todorov é a natureza do narrador do romance policial: ele é normalmente representado por um amigo próximo ao detetive (o eterno Watson, de Holmes e o bom amigo Hastings de Poirot) e este personagem quase sempre começa sua narrativa informando ao leitor que está escrevendo um livro sobre a ação 6

POE, Edgar Allan. The philosophy of composition. Graham’s Magazine vol. XXVIII, nº 4, April 1846, 28:163-167. 7 GENETTE, Gerard. O discurso da narrativa. Lisboa: Vega, 19[?]. 8 TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. IN___ As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 93-104

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empreendida pelo seu amigo detetive. O narrador, como já mencionado, possui um papel curioso na narrativa policial, estando sempre na função de observador. Da mesma forma, sua presença na trama é clara: com a existência de um narrador observador, não há necessidade - e nem possibilidade - de narrar-se os pensamentos do detetive, uma vez que estes devem permanecer ocultos para compor a unidade de efeito. O estudo do papel do narrador é, como já apontado, um dos objetivos centrais deste trabalho. As questões de plausibilidade e credibilidade levantadas pelo realismo formal e pela verossimilhança, que foram provocadas pela mudança no estatuto de ficção, só tornam-se possíveis de serem pensadas quando associadas à consolidação do novel enquanto gênero literário dominante. Questionar a credibilidade do narrador, bem como a plausibilidade da trama ficcional só é possível então com esta mudança indicada acima, visto que anteriormente ao surgimento do novel, a ficção para ser considerada boa, devia ser algo extremamente inventivo e inverossímil. Se a obra apresentava certa verossimilhança, era considerada um embuste, algo falso, ou mesmo entendida como uma história verídica. Portanto, se o romance policial foi capaz de se consolidar enquanto gênero literário e somos capazes de questionar algo que anteriormente seria considerado inquestionável - a credibilidade do narrador e a plausibilidade da trama - isto se deve a esta modificação proporcionada pelo novel. Como serão analisadas questões referente ao contexto histórico, livros que tratem do período já mencionado também serão utilizados, como as obras de Eric Hobsbawm e Marshall Berman. 9 Assim sendo, são estes os objetivos deste trabalho, que buscará estudar a narrativa policial por meio de seu viés histórico, pensando nas questões de representação e verossimilhança, mas também nas questões estruturais, levando-se em consideração que no caso da literatura policial, estas estão intrinsecamente ligadas, uma vez que, para que a unidade de efeito se prove efetiva, a história que se conta deve conter verossimilhança, bem como incluir aspectos da sociedade com que a classe leitora se identifique. A posição do narrador e a figura do detetive também serão trabalhadas, especificamente a maneira como aquele retrata o detetive e as tramas presentes na narrativa. 9

Historiadores renomados que concentram suas pesquisas no período que vai do século XIX ao início do XX.

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VIAGEM À RODA DOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS EM DOMÍNIO LATINO Priscila Maria Mendonça Machado João Batista Toledo Prado Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr O estudo de Machado de Assis pelo viés da intertextualidade tem-se consolidado como uma forte tendência atual. O recorte proposto, como córpus da pesquisa, foi a análise da presença da Literatura Latina em alguns contos machadianos. Dentre a grande variedade de contos produzidos pelo autor, selecionou-se vinte, tendo em vista a forte e definida presença de referências latinas neles. O estudo proposto para essa etapa novamente pode ser percebido desde o título, “Viagem à roda dos contos de Machado de Assis em domínio latino”. Buscou-se um título de alcance intertextual, uma vez que ele retoma o conto machadiano “Viagem à roda de mim mesmo”, que, por sua vez, também dialoga intertextualmente com os livros Viagem à roda do Meu Quarto, de Xavier de Maistre (de 1794) e Viagem à roda do Meu Jardim, de Alphonse Karr (de 1845). O termo “domínio” remete ao estudo de Jean-Michel Massa que, ao coletar a biblioteca de Machado de Assis, dividiu-a em domínios linguísticos. Busca-se a análise de vinte contos: “Virginius”, publicado no Jornal da Família (1864); “Felicidade pelo casamento”, Jornal das Famílias (1866); “Uma excursão milagrosa”, Jornal das Famílias (1866); “Onda”, Jornal das Famílias (1867); “Linha reta e linha curva”, em Contos Fluminenses (1870); “Rui de Leão”, Jornal das Famílias (1872); “Decadência de dois grandes homens”, em Jornal das Famílias (1873); “Tempo de Crise”, Jornal das Famílias (1873); “Muitos anos depois”, Jornal das famílias (1874); “Um cão de lata ao rabo”, em O Cruzeiro (1878); “O Alienista”, publicado em A Estação (1881) e depois em Papéis Avulsos (1882), “Último capítulo”, em Gazeta de Notícias (1883) e Histórias sem data (1884); “O Lapso”, em Gazeta de Notícias (1883) e Histórias sem data (1884); “A causa secreta”, publicado na Gazeta de Notícias (1885) e depois em Várias histórias (1895); “Anedota pecuniária”, na Gazeta de Notícias (1888) e Várias histórias (1895); “Como se inventaram os almanaques”, Almanaque das Fluminenses (1890); “Vênus! Divina Vênus”, Almanaque da Gazeta (1893); “Um erradio”, em A Estação (1894) e Páginas recolhidas (1899); “Papéis Avulsos”, em Páginas recolhidas (1899); “Marcha Fúnebre”, em Relíquias da casa velha (1906). 402

No momento busca-se o cumprimento dos créditos exigidos e iniciam-se alguns estudos tendo em vista as disciplinas cursadas. Continua-se a leitura e levantamento de mais bibliografia. A análise efetiva do córpus proposto será de fato iniciada em 2013. Bibliografia ALBRECHT, M. Historia de la Literatura Romana. Tradução para o espanhol Dulce Estefanía e Andrés Pociña Pérez. V1. Barcelona: Herder, 1997. ASSIS, J. M. M. Obra Completa. V. I. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1962. ASSIS, J. M. M. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 2008. 4 v. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 8ªed. São Pauolo: Hucitec, 1997a. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio Paulo Bezerra. 2ª ed. ver. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997b. BARTHES, R. Mitologias. Tradução Rita Buongermino e Pedro de Souza. 2ªed. São Paulo: Difel, 1975. BIZZARRI, E. Machado de Assis e a Itália. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro. Caderno n. 1, 1961. BOSI, A. Machado de Assis. São Paulo: Publifolha, 2002. BOSI, A. et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982. BOSI, A. “Um nó ideológico – sobre o enlace de perspectivas em Machado de Assis”. In:____Ideologia e contraideologia: temas e variações. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. BRANDÃO, J. L. “A Grécia de Machado de Assis”. In: MENDES, E. A. M.; OLIVEIRA, P. M.; BENN-IBLEL, V. O novo milênio: interfaces lingüísticas e literárias. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2001. CANDIDO, A. “Esquema de Machado de Assis”. In:____Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970. CHEVALIER, J. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Tradução Vera da Costa e Silva et al. 9ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.

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METROS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM LÍNGUA PORTUGUESA Rafael Trindade dos Santos Brunno V. G. Vieira Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP/FCLAr Introdução

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O presente projeto pretende esboçar uma história dos experimentos de inserção de metros clássicos em língua portuguesa. Sabe-se que a métrica utilizada por poetas e tratadistas da Antiguidade baseava-se em características fonológicas e prosódicas das línguas latina e grega que não se encontram mais nas línguas românicas. Assim, toda tentativa de inserção desta métrica em português — uma língua românica — é um problema que exige algum artifício poético como solução. O que se entende por metro clássico em cada época e círculo literário define as condições de recepção dos poemas gregos e latinos nos mesmos círculos; influi, por consequência, na elaboração dos sentidos que vão ser atribuídos à estrutura formal dos poemas. Uma história deste problema deve abranger, assim, suas condições tanto quanto seus resultados: não apenas quem se propôs, mas por que se propôs, ao que atenderia tais propostas, qual o contexto das tentativas de continuação da métrica clássica. Logo, esta pesquisa interessaria principalmente a uma história da recepção da poesia antiga em comunidades de língua portuguesa. Além disso, também contribuiria para uma história da tradução, para uma história do verso e para um estudo comparativo de sistemas de versificação. Nesse sentido esse trabalho se propõe a contribuir com um campo de investigação que tem merecido um interesse crescente no Brasil, qual seja os estudos de história da tradução e da recepção dos clássicos, o que tem condicionado também um aumento de interesse na história das estratégias formais em tradução de poesia antiga (cf. FLORES, 2011a; OLIVA NETO, 2007; VASCONCELLOS, 2011; VIEIRA, 2010; 2009). Dividimos as tentativas históricas de inserção em dois subtipos conforme já apontara Attridge (1993, p. 202): tentativas de verso propriamente quantitativo; substituições simples de quantidade por intensidade, mantendo o padrão métrico em estruturas diferentes. O corpus mínimo estabelecido para o presente projeto dá preferência aos chamados versos estíquicos (como o hexâmetro e o pentâmetro), e estabelece como poetas e tradutores centrais Carlos Alberto Nunes (1897-1990), Carlos Magalhães de Azeredo (1872-1963), Vicente Pedro Nolasco da Cunha (1774?-1844), procurando ampliar a pesquisa até o século XVI, com o Auto da Paixão de Fr. Antônio de Portalegre. Metodologia 407

Entendemos que os processos envolvendo a transposição de metros clássicos são em última instância práticas de tradução. Para estabelecer uma história de tradução dessa transposição, partiremos de uma pesquisa empírica de coleta de dados diante dos quais procuraremos estabelecer uma interpretação histórica dessas práticas, segundo as perguntas propostas por Burke (2009, p. 17): “Quem transpõe esses metros? Com que intenção? O quê? Para quem? De que maneira? Com que consequências?” Tentaremos fugir dos quatro equívocos de pesquisas em História da Tradução apontados por Pym, ou seja, evitaremos: 1) uma acumulação arqueológica de dados que respondem a problemáticas não explicitamente formuladas; 2) a dependência de evidências indiretas ou anedóticas; 3) a periodização arbitrária; e, por fim, 4) a relutância em ver as traduções como agentes e não apenas como expressões de mudanças históricas (2004, p. p. 7). O trabalho ora proposto se interessa pelas intenções de comunidades históricas – a saber, círculos literários de língua portuguesa – ao aproximar práticas métricas antigas em uma dada sincronia. Para isso, requer um conhecimento do que se imagina, em cada época, que tenham sido tais práticas métricas antigas. Esse é um dado de contexto fundamental para entender sua aplicação à poética portuguesa. Segundo os pressupostos de Pym (2004),

pergunta-se, ainda, sobre as tentativas de continuidade do metro antigo: que estratégias

estão sendo utilizadas? Com que fins? Movidas por que pressupostos? O trabalho conta com uma coleta dos testemunhos em bibliotecas e arquivos. Os resultados serão abordados com as perguntas acima referidas, e catalogados de forma a se entender as intenções e pressupostos dos sujeitos históricos. Estágio atual da pesquisa Desde o ingresso no Programa, o projeto sofreu modificações em função do que se descobriu desde então. A maior mudança por ora tem sido a centralização da pesquisa na produção de Magalhães de Azeredo. Este autor cita predecessores — Domingos Tarroso e Alberto Ramos — e entende que sua tentativa terá sucessores (AZEREDO, 1904, p. viii),

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criando uma expectativa de tradição, posteriormente esquecida e novamente requisitada por leituras atuais de Carlos Alberto Nunes (cf. CARDOSO, 2011; CONTO, 2008; FLORES, 2011a; 2011b, p. 145-6; GONÇALVES, 2011; GONÇALVES et al., 2011). Os autores citados estão sendo procurados para leitura e análise. Foram também importante descobertas as declarações de Jorge de Sena acerca do que, segundo ele, fora a primeira tentativa em português de inserção de metros clássicos — a saber, o Auto de Fr. Antônio de Portalegre (SENA, 1966, p. 408, n. 3). Enquanto isso, os versos do corpus estão sendo analisados a fim de se estabelecer hipóteses sobre as intenções formais de cada autor, bem como sua recepção imediata e posterior. Bibliografia ATTRIDGE, Derek. Classical meters in modern languages. In: BROGAN, T.V.F., PREMINGER, Alex (org.). The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. Princeton: Princeton University Press, 1993. p. 202-4. AZEREDO, Carlos Magalhães de. Odes e Elegias. Roma: Tipografia Centenari, 1904. BURKE, Peter. Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna. In; ________; HSIA, R. Po-Chia. A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. Trad. R. Maioli dos Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 13-44. CAMPOS, Haroldo de. ΜΗΝΙΣ: a ira de Aquiles. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. CARDOSO, Leandro Dorval. A “Apocoloquintose do Divino Cláudio”, de Sêneca. Scientia Traductionis, v. 10, p. 151-71, 2011. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/22052. Acesso em: 02 de abr. 2012. CONTO, Luana de. Carlos Alberto Nunes, tradutor dos clássicos. In: SEMANA DE ESTUDOS CLÁSSICOS, 23., 2008, Araraquara. Anais... Araraquara: FCL-Unesp, 2008. p. 60-7. Disponível em: http://ufpr.academia.edu/LDeConto/Papers/470367/Carlos_Alberto_Nunes_tradutor_dos_cl assicos1. Acesso em: 02 abr. 2012. FLORES, Guilherme Gontijo. Apresentação — “Dossiê tradução de poesia”: poéticas da tradução de obras clássicas. Scientia Traductionis, v. 10, p. 108-9, 2011a. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/22052. Acesso em: 02 de abr. 2012.

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FLORES, Guilherme Gontijo. Tradutibilidades em Tibulo. Scientia Traductionis, v. 10, p. 141-50, 2011b. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/22052. Acesso em: 02 de abr. 2012. GONÇALVES, Rodrigo Tadeu. Traduções polimétricas de Plauto: em busca da polimetria plautina em português. Scientia Traductionis, v. 10, p. 214-29, 2011. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/22052. Acesso em: 02 de abr. 2012. GONÇALVES, Rodrigo Tadeu et alii. Uma tradução coletiva das “Metamorfoses” 10.1297 com versos hexamétricos de Carlos Alberto Nunes. Scientia Traductionis, v. 10, p. 110-32, 2011. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/22052. Acesso em: 02 de abr. 2012. OLIVA NETO, João. Ângelo. A Eneida em bom português: considerações sobre teoria e prática da tradução poética. In: II Simpósio de Estudos Clássicos, 2007, São Paulo. II Simpósio de Estudos Clássicos. São Paulo : Humanitas, 2007. v. 1. p. 65-89. PYM, Anthony. Complaint concerning the lack of History in Translation Histories. In: HISTAL, jan. 2004. Disponível em: http://usuaris.tinet.cat/apym/online/research_methods/complaint_history.pdf. Acesso em: 02 abr. 2012. SENA, Jorge de. Uma canção de Camões: interpretação estrutural de uma tripla canção camoniana, precedida de um estudo geral sobre a canção petrarquista peninsular, e sobre as canções e as odes de Camões, envolvendo a questão das apócrifas. Lisboa: Portugália, 1966. ______. Resenha de: PAES, José Paulo; MOISÉS, Massaud. Pequeno dicionário de Literatura Brasileira, biográfico, crítico e bibliográfico. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin, v. 5, n. 2, inverno 1968, p. 114-117. VASCONCELLOS, Paulo Sérgio. A tradução poética e os estudos clássicos no Brasil de hoje: algumas considerações. Scientia Traductionis, v. 10, p. 68-79, 2011. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/22048. Acesso em: 02 de abr. 2012. VIEIRA, Brunno V. G. Um tradutor de latim na corte de D. Pedro II: perspectivas para a História da Tradução da literatura greco-romana em português. Revista Letras (Curitiba), v. 80, p. 71-87, 2010. ______. Recepção da poesia erótica latina no séc. XIX: José Feliciano de Castilho e sua edição dos AMORES, de Ovídio. Nuntius Antiquus, v. IV, p. 71-81, 2009.

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MULHERES NO PODER: FORMA DE VIDA DA MULHER EXECUTIVA CONTEMPORÂNEA NA REVISTA VOCÊ S/A Raíssa Medici de Oliveira Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa – UNESP / FCLAr Obedecendo às etapas previstas para a realização da pesquisa conforme constam em nosso cronograma de execução do projeto, até o presente momento procedemos ao cumprimento de créditos em disciplinas e iniciamos processo de revisão bibliográfica e de coleta de dados. Cursamos as disciplinas “Estudos do Círculo de Bakhtin: aspectos sobre subjetividade a alteridade” e “Tópicos de Semiótica Narrativa”, que muito contribuíram para a ampliação da nossa visão no âmbito das ciências humanas. Conhecer uma abordagem filosófica da relação Eu/Outro, como nos apresentam os estudos do Círculo de Bakhtin, e compreender as contribuições de disciplinas aparentemente distintas como a antropologia cultural e a filosofia na construção do modelo teórico da semiótica, principalmente em relação aos estudos de Wladimir Propp, Claude Lévi-Strauss, T. Todorov, C. Brémond, R. Barthes e P. Ricouer, para citar apenas alguns dos autores estudados durante a disciplina “Tópicos de Semiótica Narrativa”, foi de extrema valia na consolidação do nosso conhecimento sobre “o que é, como surgiu e qual(is) a(s) finalidade(s)” da disciplina de que nos ocupamos durante o curso de mestrado. Atualmente, encontramo-nos cursando a disciplina “Semiótica do Discurso”, que, acreditamos, possibilitará nosso aprofundamento em questões que implicam diretamente nosso objeto de estudo. Para o processo de revisão bibliográfica constam as obras que são referências no estudo da semiótica francesa dita standard, tal como se desenvolveu ao longo dos anos 60/80: Sémantique Structurale. Recherche de méthode (1966), Du Sens. Essais sémiotiques (1970), Sémiotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage (1979) e Du Sens II. Essais sémiotiques (1983).

Constam também obras que refletem alguns dos

desdobramentos recentes da semiótica greimasiana: na denominada sociossemiótica, cujo principal expoente é Eric Landowski, temos A sociedade refletida: Ensaios de sociossemiótica I (1992), Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica II (2002), Les interactions risquées (2004); na semiótica tensiva, cujo representante é Jacques Fontanille,

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temos Significação e visualidade: exercícios práticos (2005); Semiótica do Discurso (2007) e, em autoria conjunta com Claude Zilberberg, Tensão e significação (2001). Em interessante ensaio intitulado Le papillon tête-de-Janus: à propôs de Sémantique structurale, quarante ans après, publicado em 2007, Landowski refaz os caminhos percorridos pela semiótica ao longo do seu desenvolvimento e reconhece, no conjunto da obra do autor, três “Greimases” e, consequentemente, três grupos de pesquisadores que hoje desenvolvem suas pesquisas amparados no modelo greimasiano: o primeiro é o semanticista que, como um epistemólogo da linguística, procede a um laborioso trabalho de descrição do discurso, refletido na obra Semântica estrutural. No outro extremo, vinte anos mais tarde, refletido no seu último livro, intitulado Da Imperfeição (De l’Imperfection (1987)), um ensaísta ao tom quase literário que parece se colocar do lado de uma hermenêutica do texto e mesmo de uma fenomenologia da experiência vivida. A parte propriamente semiótica da obra do pesquisador corresponderia a uma fase pré-intermediária da sua vida intelectual, depois de Semântica estrutural e antes de Da Imperfeição, um período marcado pela aparição dos dois volumes de Du Sens e que culmina com a publicação do Dicionário de semiótica em coautoria com J. Courtés. Amparados nessa linha e buscando enriquecê-la, objetivamos proceder ao estudo da forma de vida da mulher executiva contemporânea construída no periódico VOCÊ S/A, tendo como arcabouço teórico os estudos pioneiros de A. J. Greimas e as concepções de J. Fontanille e E. Landowski. É grande a quantidade de periódicos impressos destinados exclusivamente ao público feminino. Em geral, atendem a classes sociais específicas e tratam de temas tidos como próprios às mulheres – beleza, elegância, moda principalmente -, o que corrobora a sua grande quantidade e variedade no mercado midiático. Instigou-nos o fato de VOCÊ S/A destinar-se a um público-alvo misto e abordar temas do âmbito executivo/empresarial. VOCÊ S/A é um periódico mensal brasileiro cujo público-alvo é formado por homens e mulheres que pertencem às classes sociais A e B, com faixa etária a partir dos 20 anos. Apresentada em seu primeiro número, publicado em abril de 1998, como uma revista nova para os tempos novos, a VOCÊ S/A foi a primeira – e continua sendo a única – publicação totalmente dedicada a ajudar os executivos brasileiros a cuidar da sua empregabilidade. Traçando como objetivo principal verificar como está configurada a forma de vida da

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mulher contemporânea nesse periódico que é dirigido a um público misto, decidimos, então, delimitar nosso corpus à verificação das principais seções da revista ao longo dos anos 2000 a 2011. Assim, matérias, entrevistas, artigos e propagandas estão sendo selecionados em duas ou três revistas de cada ano, de forma a condensar textos em que a mulher esteja figurativizada. A pesquisa se atém à descrição dos modos pelos quais se discursivizam as condições de produção e apreensão do sentido. Para tanto, utilizamos o instrumental básico da semiótica greimasiana que é o percurso gerativo do sentido. Objetivando chegar à depreensão dos meios de construção da imagem da mulher, enquanto simulacro discursivo construído por uma revista voltada a um co-enunciador, público específico, procederemos ao estudo dos regimes de interação entre enunciador e enunciatário. Analisaremos, dessa forma, como o enunciador de VOCÊ S/A constrói em seus textos a imagem de seu enunciatário mulher, tendo por base questionamentos que circundam a vida da mulher executiva contemporânea, como a capacidade de liderança em ambientes corporativos majoritariamente masculinos, o equilíbrio físico e psicológico exigido por altos postos de trabalho, a conciliação entre família e carreira, vida pessoal e trabalho. Por meio dos textos verbo-visuais inseridos no periódico, reconstruiremos as imagens do enunciatário mulher criadas pelo enunciador com base em figurativizações que reproduzem ou ressignificam estereótipos. A (re)construção do texto midiático nos permitirá, portanto, depreender as práticas sociais que configuram a forma de vida da mulher executiva contemporânea. J. Fontanille e C. Zilberberg (2001, p. 203) nos chamam a atenção para o termo “formas de vida”, empregado por Wittgenstein nas suas Investigações Filosóficas para generalizar os “jogos de linguagem”. Em conformidade com os referidos autores, interpretamos a significação de uma expressão em seu “uso”, tal “uso” pertencente a um “jogo de linguagem”, que por sua vez configura uma “forma de vida”. Fontanille comenta na “Apresentação” da revista Recherches Sémiotiques. Semiotic Inquiry, intitulada Les formes de vie, que “a variação semiótica das figuras de discurso e de enunciação é vista como reflexo da variação histórico-cultural das formas de vida, processo que toma sua forma do movimento mesmo da vida (do “sentido” da vida concebido como direção)” (1993, p.16, tradução nossa). A partir dessa conceituação, entendemos que as formas de vida são o resultado da integração da significação em uma rede conceitual que, em

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consonância com Portela (in DINIZ; PORTELA (orgs.) 2008, p. 107), “parte da materialidade dos enunciados linguísticos, passa pela realização social de seus usos e chega a enunciados mais gerais que os condensam na forma de um jogo codificado de linguagem potencial, característico da práxis enunciativa”. Conforme pontua Fontanille, na já citada “Apresentação”, “é a práxis enunciativa que engendra protótipos e estereótipos, mas a práxis enunciativa não é uma instância de geração espontânea: ela explora estruturas semionarrativas enquanto continuamente as reelabora e completa” (1993, p. 17, tradução nossa). Nascimento (2011, p. 118) explica, a partir de Greimas, que “uma forma de vida está aliada a um comportamento esquematizável mais profundo que representa não o estilo individual, mas uma filosofia de vida de um determinado grupo cuja ruptura provoca uma mudança radical de forma de vida”. Nesse âmbito, a semiótica focaliza o movimento, o sentido da própria vida e, ao buscar significações para o mundo, o (re)constrói como um universo articulado, um universo de relações no qual as semelhanças são depreendidas a partir da eleição de uma diferença. Assim sendo, o sujeito – eu ou nós – tem necessidade de relacionar-se com um ele – os “outros” (eles) – para construir-se a si mesmo. Nesse movimento, um sujeito individual /EU/ parte em busca daquilo que o define e percebe isso acontecer de duas maneiras: mediante a imagem que o outro lhe envia de Si, e mediante o reconhecimento das diferenças que o separam do Outro. Portanto, à noção de “identidade” pressupõe-se a construção de uma “alteridade”. Segundo pontua Landowski, em Presenças do Outro: ensaios de sociossemiótica II (2002), não é necessário muito esforço para constatarmos que em nossa sociedade, desde há muito, existem grupos denominados “de referência” que se definem em contraposição aos grupos denominados “estrangeiros”. Seguindo a reflexão do autor, o grupo “de referência” não rejeita ninguém e se pretende, ao contrário, acolhedor ao que vem de fora. No entanto, tal tolerância irrefletida do Outro no interior do Um acabaria por provocar tamanha heterogeneidade que não seria mais possível reconhecer a identidade do grupo. Assim sendo, por meio de um gesto explicitamente passional que tende à negação do Outro, exclui-se os sujeitos cujas atitudes e comportamentos são vistos como puros acidentes da natureza – e não como elementos que teriam sentido no interior de uma (outra) cultura. Landowski então valida que à relação de contraposição entre as políticas de assimilação e

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as políticas de exclusão, surge um novo curso que impele alguns sujeitos à migração de um grupo a outro, permitindo à semiótica a depreensão de formas de vida complementares: a segregação – que revela a impossibilidade de assimilar e a recusa de excluir, e a admissão – não mais disjungir (exclusão), mas não ainda conjuntar (assimilação). Nesse sentido, a sociossemiótica de Eric Landowski volta-se para as práticas sociais e, ao analisar os discursos produzidos na sociedade, considera-os não somente numa perspectiva comunicacional, mas, principalmente, como ato de geração de sentido, ato de presentificação. Sua proposta não se reduz mais ao sentido imanente do texto, mas centrase na construção desse sentido por meio da interação entre os sujeitos enunciador e enunciatário e entre esses sujeitos e o “mundo”. É pensando nessas definições que objetivamos a depreensão da forma de vida feminina euforizada pelo enunciador da revista, mostrando no que ela difere das formas de vida da mulher de “outros tempos”. Também objetivamos verificar se o enunciador da revista padroniza a figura feminina em relação à masculina e se essa padronização é uma constante ou sofre variações no período selecionado. Dessa forma procederemos à reconstrução, por meio de marcas textuais implícitas ou explícitas, da(s) forma(s) de vida feminina que é(são) passível(is) de marginalização social. Bibliografia DINIZ M. L. V.; PORTELA J. C. (orgs.) Semiótica e mídia: textos, práticas, estratégias. Bauru: UNESP/FAAC, 2008. FONTANILLE, J. Significação e visualidade: exercícios práticos. Tradução de Elizabeth B. Duarte e Maria Lilia D. de Castro. Porto Alegre: Sulina, 2005. FONTANILLE, J. Semiótica do discurso. Tradução de Jean Cristtus Portela. São Paulo: Contexto, 2007. ______.; ZILBERBERG, C. Tensão e significação. Tradução de I. C. Lopes, L. Tatit e W. Beividas. São Paulo: Discurso Editorial: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. GREIMAS, A. J. Semântica estrutural: pesquisa de método. Tradução de Haquira Osakabe e Izidoro Blikstin. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1973. ______. Sobre o sentido. Petrópolis: Vozes, 1975.

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______. Du sens II. Paris: Seuil, 1983. ______. Da imperfeição. Tradução de Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2002. ______.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, s.d. LANDOWSKI, E. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica I. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992. ______. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica II. Tradução de Mary A. L. de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2002. ______. Les interactions risquées. Limoges: PULIM, 2005. NASCIMENTO, E. M. F. S. Prudência e aventura: Revista O Cruzeiro e formas de vida da mulher da década de 40. ALFA, 2009.

O APOLÍNEO E O DIONISÍACO N’A MONTANHA MÁGICA DE THOMAS MANN Regina Alves Mendes Wilma Patrícia Marzari Dinardo Maas Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Seguindo a proposta do projeto de Mestrado, que tem por objetivo traçar um paralelo entre as relações textuais e conceituais de duas obras da literatura e filosofia alemã: O nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo (Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und Pessimismus – 1872) de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) e A Montanha Mágica (Der Zauberberg – 1924) de Thomas Mann (1875-1955), demos início à leitura da bibliografia fundamental, apresentada oportunamente ao programa. Deste modo, com o intuito de analisar uma das principais questões que permeia a obra e que se fará elementar para o entendimento do objetivo proposto, procurou-se analisar a ideia de tempo no romance manniano, que além de ser um de seus temas centrais, é também possível chave de leitura. Assim, tomando como base as teorias sobre o romance moderno, momento em que se registra na literatura a mudança quanto ao tratamento temporal nas narrativas, utilizamonos inicialmente dos ensaios Posição do narrador no romance contemporâneo de Adorno (1903-1969), Reflexões sobre o romance moderno, de Rosenfeld (1912-1973) e Narrar ou

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descrever de Lukács (1885-1971). A partir da leitura destes textos procuramos avaliar as estratégias narrativas utilizadas pelo autor para trabalhar o aspecto temporal n’A Montanha Mágica, verificando de que modo, ao contrapor o tempo cronológico ao tempo subjetivo, consegue instaurar na obra o tempo mítico, revelando a tentativa de criação de um novo humanismo através da relação dialética (harmonia e caos), que reflete por um lado a nostalgia da distância e do paraíso perdido, e, por outro, a busca por uma nova época de ouro. Para investigar de modo mais sistemático o tempo do narrar e o tempo da narrativa, elegemos como suporte teórico as teorias contidas em Ricoeur, em Tempo e narrativa (1994), uma vez que toma A Montanha Mágica de Mann para demonstrar o contraste existente no romance entre estes dois planos da narrativa. Sendo assim, a partir do aspecto temporal, passaremos a vislumbrar o objetivo central deste trabalho, que pretende verificar de que modo o apolíneo e o dionisíaco, sob o ponto de vista de Mann e Nietzsche, permitem relacionar intrinsecamente a vida e arte. Como ponto de partida, para a investigação do tempo no romance manniano, tomamos o primeiro subcapítulo do capítulo I, intitulado “A chegada”, para observar que, desde o início da construção de sua trama, Mann procurará despertar no leitor, quer no plano do enunciado (na sucessão dos acontecimentos), quer no plano da enunciação (o discurso através do qual conta-se a história), uma desconfiança acerca da definição do conceito de tempo. Tal questionamento será trabalhado em toda a obra através de uma oposição fundamental existente entre o “tempo da planície” e o “tempo da montanha”. Além do subcapítulo mencionado, analisamos também “Digressão sobre o sentido do tempo”, “Sopa eterna e clareza repentina”, “Liberdade”, “Transformações”, “Neve” e “Passeio pela praia”, visto ambos abordarem de modo mais profícuo a questão do tempo na obra. Com intuito de investigar e compreender as estratégias utilizadas por Thomas Mann para transformar a questão do tempo não só em tema d’A Montanha Mágica, mas também em chave de leitura para a inteligibilidade do romance, procuramos analisar os subcapítulos selecionados a fim de verificar como o tratamento dado ao elemento temporal pode conferir à obra uma atemporalidade: ao ler este romance, o leitor, assim como o protagonista, sente-

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se perdido no tempo cronológico e imerso na circularidade dos fatos – sempre vistos sob a ótica subjetiva de Hans. Verificamos como o narrador manniano constrói astutamente o clima espaçotemporal do sanatório e faz com que o leitor participe desta suspensão de tempo em Berghof: ao mesmo tempo em que discute as questões relativas à progressão ou circularidade do tempo, introduzindo a ideia de ação para conceitualizar o transcorrer cronológico, transmite a superficial intelectualidade do herói que, de início, ao viver na planície, não possuía maturidade suficiente para desvendar os grandes mistérios da montanha – este lugar profundo no qual todas as concepções são colocadas à prova. Através dessas reflexões, conseguimos identificar a intencionalidade do narrador em fazer do tempo subjetivo do protagonista, Hans Castorp, o próprio tempo do romance, uma vez que a narração é estendida ou comprimida conforme a percepção do transcorrer do tempo pelo jovem rapaz. É este romance um verdadeiro Zeitroman (Romance de tempo): uma obra que não pretende apenas discutir o tratamento do tempo, mas integrá-lo a sua própria constituição, guiando a leitura conforme o modo subjetivo com que o protagonista percebe o tempo: assim, o tempo mágico das montanhas equivale ao tempo circular/mítico, dum eterno retorno – ao mesmo tempo Apolo e Dioniso. Em conformidade com o Nietzsche d’O Nascimento da Tragédia, Mann dará início a construção deste novo humanismo que agora, em vez da Grécia, teria a Alemanha como fundação, um país cujo declínio proveniente da guerra carece de uma ascensão estética: é no caos, quando se está nas trevas do dionisíaco, que se é possível perceber e vislumbrar a harmonia, a luz apolínea que pode conduzir a nação para uma ressurreição. Sendo assim, este pêndulo existente nas obras citadas, que oscila ora entre a destruição da vida (DIONÍSIO), ora entre o restabelecimento da unidade (APOLO), será utilizado, futuramente, para a discussão de como a aparente oposição de valores representa, na verdade, sob o ponto de vista destes autores, uma ligação intrínseca entre o processo natural (a vida), e o produto estético (a arte). Esta relação dialética, uma vez baseada na idéia de complementação dos princípios opostos, refletindo, por um lado, a nostalgia da distância e do paraíso perdido e, por outro, a busca por uma nova época de ouro, faz com que o caráter tempo na obra seja o veio

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propulsor para a incursão do autor num romance que busca ser o reflexo deste tempo mítico num tempo presente, ou seja, que busca a harmonia de tempos remotos para construir a arte em sua própria época. Ora, é neste sentido que poderemos operar a confluência com a outra obra a ser abordada na dissertação: O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche, filósofo que, neste seu primeiro livro, aludiria ao tema do trágico, cuja tentativa seria resgatar aquele sentimento que, no passado, no período áureo do povo grego, conseguiu fornecer uma base histórica ao produto artístico produzido no helenismo. Assim, Nietzsche trabalhará as contraposições entre música e arte representativa (auditivo versus visual) e entre o pessimismo e a existência (morte versus vida), propondo ao leitor a idéia do Ur-Eine, isto é, de um Uno-Primordial, organismo cujo funcionamento só poderia existir através da pluralidade e individualidade dos seres viventes. Há, então, no romance, inúmeras oposições que nos remetem à questão fundamental do livro: o conflito necessário entre o apolíneo e o dionisíaco, ou, nos termos de Nietzsche, entre o “princípio de individuação” e o “princípio de destruição”. É exatamente da oposição Apolo versus Dioniso, base de O nascimento da Tragédia, que encontramos reflexos em elementos presentes n’A Montanha Mágica. Por este motivo, como objetivo principal da dissertação de mestrado, tentaremos realizar e estabelecer a conexão entre as obras, a ponte entre a literatura e a filosofia, utilizando estas duas chaves de leitura, as quais foram empregadas pelo filósofo para construir a idéia defendida em seu livro: os conceitos de apolíneo e dionisíaco serão as terminologias com que buscaremos elaborar uma análise da formação moral, política e estética do protagonista construído por Mann, que sobe às montanhas para decidir-se por qual lado lutar: se pela vida ou pela morte. Assim como o filósofo, que defendia a necessidade de heroísmo frente às novas circunstâncias, isto é, uma reconciliação entre espírito e vontade, Mann também ansiava por transcender os conflitos responsáveis por essa cisão entre o mundo burguês (material, indiferente à arte) e o mundo estético (questionamento desta visão materialista), característica que colocava o autor em comum acordo com o pensamento moderno. Observaremos assim, em ambos os livros, o intuito de seus autores em compreender as questões acerca da existência, fato que englobará o racional e o irracional, a ciência e o

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mito, valores constitutivos do homem enquanto sujeito ambivalente e predisposto ao misticismo e ao fundamentalismo científico da existência. Tratar-se-á do impasse entre o ser e o devir, o querer e o representar, a vida e o espírito, mostrando-nos, ironicamente, que é possível encontrar na decadência a sublimação da vida: é no abismo entre morte e vida que se encontra a superação. Bibliografia ADORNO, T. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: _____. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2003. p. 55-63. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 BARROS Jr., Antonio Walter Ribeiro de. Dornbusch, Claudia Sibylle (orient). Tristão: entre a vida e a arte – a filosofia da arte de Nietzsche na obra de Thomas Mann. 2002. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo. BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2002. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução de S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994 BRADBURY, Malcom. Thomas Mann. In: __. O mundo moderno: dez grandes escritores. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Imagens da espera: um ensaio sobre as representações da morte em Thomas Mann. Matraga – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras. Rio de Janeiro (Editora Caetés), v. 18, p. 123-151, 2006. CARPEAUX, Otto Maria. Thomas Mann. In:__. Novelas alemãs. São Paulo: Cultrix, MCMLXIII. FONTANELLA, Marco Antonio Rassolin. A Montanha Mágica como Bildungsroman. 2000. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas. HAMILTON, Nigel. Os irmãos Mann: as vidas de Heinrich e Thomas Mann, 1871-1950 e 1875-1955. Tradução de Raimundo Araújo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. HEISE, Eloá. Thomas Mann: um clássico da modernidade. Revista de Letras. Curitiba (UFPR), v. 39, p. 239-246, 1990.

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A TRAVESSIA RIOBALDIANA PELO TEMPO Renata Acácio Rocha (FAPESP) Maria Célia de Moraes Leonel Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Grande sertão: veredas (ROSA, 1965), como se sabe, é a história de um jagunço aposentado que passa em revista sua vida para um ouvinte que permanece, do princípio ao fim, invisível para os leitores. Por meio de um monólogo retrospectivo – com roupagem de diálogo −, Riobaldo tenta descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos. Nesse romance, verifica-se que a relação entre tempo e memória faz-se indispensável, entre outros aspectos, para o processo de busca de entendimento do narrador, para a construção da identidade da personagem que relata e para o desenrolar da narrativa. A memória depende diretamente do tempo para se constituir e o tempo depende da memória para poder permanecer. É por intermédio da relação do indivíduo com o tempo que ele constrói a memória, possibilitando a preservação da sua identidade e a constituição da sabedoria. Paul Ricoeur (1994, v.1, p.15), em Tempo e narrativa, vê na narrativa um meio privilegiado pelo qual configuramos a nossa experiência temporal. Para o teórico, tudo o que se conta acontece no tempo, toma tempo, desenvolve-se temporalmente e o que se desenvolve temporalmente pode ser contado: o “[...] mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal.” Em Grande sertão: veredas, essa experiência temporal é-nos apresentada e veiculada com o auxílio da rememoração do narrador. O retorno ao passado feito por ele é a forma encontrada para reconstituir sua história, buscar significado para sua existência e, assim, construir a sabedoria, ações alcançáveis pelo uso da memória. 422

O objetivo da pesquisa é examinar como ocorre a relação entre tempo e memória em Grande sertão: veredas e qual sua importância para a narrativa, para o processo de reconstrução do vivido e para a constituição da identidade do narrador-protagonista. Para alcançar tais objetivos, a metodologia adotada baseia-se no levantamento, na seleção, na leitura e no fichamento de dois tipos de textos: a obra de Guimarães Rosa, em especial o romance escolhido, e estudos que compõem o embasamento teórico da pesquisa, agrupados em três dimensões: a) ensaios críticos sobre a obra rosiana em geral, como os de Antonio Candido (1991), Cavalcanti Proença (1959), Davi Arrigucci Júnior (2010, 1994), Walnice Nogueira Galvão (1972), e sobre o tema em pauta, como os de José Carlos Garbuglio (2005), Donaldo Schüler (1991), Jean-Paul Bruyas (1991), Flávio Aguiar (2001), Eduardo de Faria Coutinho (1993) e Márcio Seligmann-Silva (2009); b) proposições sobre as categorias narrativas, especialmente sobre o tempo, como os estudos de Gérard Genette ([197-]) em Discurso da narrativa e Paul Ricoeur (1994) em Tempo e narrativa; c) proposições filosóficas e/ou psicológicas sobre a memória e o tempo, tendo como base a obra de Henri Bergson (1999), Matéria e memória e a de Martin Heidegger (2005), Ser e tempo. “No meio do redemoinho” da narrativa Até o momento da pesquisa, dentre outros pontos, temos verificado com a análise do corpus que tais temas, tempo e memória, estão configurados na própria forma da romance, refletindo e reforçando essa relação temática, um dos motivos pelos quais podemos considerá-la como um dos eixos por onde move a narrativa. Em Grande sertão: veredas, o narrador-protagonista, Riobaldo, passa em revista sua história para tentar entender o que se passou em sua vida. O exame crítico do passado, que obceca o narrador, nasce da tentativa desesperada de encontrar a chave da vida, dar-lhe unidade e fazer dela um julgamento uno, pois Riobaldo sente-se como um estranho para si mesmo. O jagunço reflexivo que narra a história precisa retornar ao passado, recuperar o antigo Riobaldo e construir a sabedoria por meio da memória dos fatos vividos. O romance surge da consciência de Riobaldo voltado para sua interioridade e para o mundo que o cerca. Refletindo sobre o mundo, ele é levado a refletir sobre si mesmo (SCHÜLER, 1991, p.364).

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Grande sertão: veredas inicia-se por um travessão que apenas se fecha ao fim das suas 460 páginas1. O relato ininterrupto de Riobaldo, entretanto, possui um interlocutor implícito – como se pode notar por algumas marcas no texto: “O senhor ri certas risadas...” (ROSA, 1965, p.9) –, cujas palavras nunca temos acesso direto. Nessa conversa, Riobaldo, ao retornar ao passado recorrendo à memória para contar sua vida ao “senhor da cidade”, configura-se, ao mesmo tempo, como narrador e como personagem protagonista da intricada forma narrativa elaborada por Guimarães Rosa (1965), que recorre ao diálogo entre Riobaldo e o “senhor” para reconstruir a travessia espacial e interior do ex-jagunço (MARQUES, 2008, p.2). Esse esquema de narração, segundo Davi Arrigucci Júnior (2010, p.115), permite que o narrador-protagonista fale “[...] do centro de sua própria história; sua voz nasce de dentro da própria matéria que tem para contar, o que lhe garante autenticidade e uma relação orgânica entre o que conta e o como conta.” Torna-se possível, dessa forma, uma perfeita adequação entre o conteúdo das especulações do narrador e a forma de expressá-las, ou seja, os questionamentos feitos por Riobaldo só adquirem a dimensão universal que possuem por conta de tal esquema, que congrega simultaneamente a estrutura dialética do diálogo e a ênfase sobre a perspectiva de um só indivíduo, própria do monólogo (COUTINHO, 1993, p.63). Por conta de Grande sertão: veredas ser romance de voz única, pois somente a voz de Riobaldo é ouvida, nenhum ser, nenhum fragmento de realidade se torna perceptível para o interlocutor e para os leitores se não for por ela expresso. Riobaldo-narrador é uma personagem que se observa de longe e que por isso conhece o interior da personagem de quem fala, ele mesmo anos atrás, como ninguém. Riobaldo-personagem vive por meio da memória de Riobaldo-narrador e este faz da memória seu instrumento de perquirição. Tudo o que rodeia o narrador de Grande sertão: veredas e por ele é relatado é interferido por seus sentimentos. Os eventos que formam o universo criado por ele no presente da narração estão sob a luz da sua consciência atual e não da passada, o que implica em uma nova versão e interpretação do que é contado. Toda visão no universo do romance é filtrada pela consciência atual do narrador-protagonista e, por conta disso, o que se oferece ao interlocutor, e obviamente também ao leitor, é o resultado dessa filtragem.

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Na edição de 1965 da qual fazemos uso.

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Todo sujeito que lembra enfrenta a dificuldade, senão a impossibilidade, de reviver o passado tal e qual foi. Posto o limite fatal que o tempo impõe ao sujeito, não lhe resta senão reconstruir, no que lhe é possível, a fisionomia dos acontecimentos. Nesse esforço, exerce um papel condicionante todo o conjunto de noções passadas e presentes que, involuntariamente, leva-o a alterar o conteúdo das memórias. Assim, ao ser remanejado pelas ideias e ideais passados e presentes do sujeito, o passado sofre um processo de desfiguração, de desmontagem e remontagem, de superposição, de concessão de privilégio, pois [...] a função da lembrança é conservar o passado do indivíduo na forma que é mais apropriada a ele. O material indiferente é descartado, o desagradável, alterado, o pouco claro ou confuso simplifica-se por uma delimitação nítida, o trivial é elevado à hierarquia do insólito; e no fim formou-se um quadro total, novo, sem o menor desejo consciente de falsificá-lo. (STERNE apud BOSI, 1999, p.68).

Apesar do que diz o narrador – “Mas, eu, lembro de tudo.” (ROSA, 1965, p.112) –, a passagem do tempo, carregando novas incontáveis e diversificadas experiências, faz com que as memórias remotas e as não tão remotas sejam suscetíveis à inclusão de informação adicional que as melhora, as falsifica, ou, até mesmo, as ficcionaliza. Naturalmente, ocorre também o esquecimento e a extinção de determinados elementos da memória. No decorrer do discurso, Riobaldo dá-se conta disso e afirma que pode estar falseando as memórias, mentindo involuntariamente, selecionando passagens: Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não são. São tantas horas, de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado. (ROSA, 1965, p.143).

O narrador possui a sua ordem que foi estabelecida não pelo fluir dos sucessos, mas pela marca que os fatos deixaram em sua memória. Escolhendo os acontecimentos, a sua memória os hierarquiza por uma ordem interna e particular de valores, segundo os impactos causados e as modificações provocadas em seu comportamento. (GARBUGLIO, 2005, p.14). Para o narrador, o fundamental não é apresentar os acontecimentos, mas estabelecer níveis possíveis de percepção a fim de que estes lhe permitam descortinar as razões

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prováveis que os determinaram. Por conta disso, os fatos aparecem conturbados, deslocados e assistematicamente relacionados. No discurso, o narrador confunde-se, diz uma coisa e logo após a contradiz. Empreendendo uma verdadeira travessia dentro de si mesmo, depara-se com as dificuldades da tarefa à qual se propôs. Walnice Nogueira Galvão (1972, p.86) faz uma comparação entre o leitmotiv da narração – “Viver é muito perigoso...” (ROSA, 1965, p.16) – com o “Contar é muito, muito dificultoso.” (ROSA, 1965, p.143): frases de sintaxe paralela que se iluminam, pois “O existir e o narrar dão-se ambos como empresas árduas, que a cada instante podem assumir as formas do falso, desencaminhando a prática do sujeito.” (GALVÃO, 1972, p.86). A quebra da sequência cronológica – que, com outros recursos como a retomada, cria a ilusão de resultado de rememoração e, ao mesmo tempo, de naturalidade coloquial, de não premeditação do monólogo – obedece a um plano rigorosamente elaborado. A desorganização temporal discursiva é, do ponto de vista psicológico, fortemente coesa e organizada no todo indivisível de uma narrativa maciça, sem intervalo, entremeada de divagações, de histórias marginais, de incidentes episódicos: “Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo.” (ROSA, 1965, p.77). A ordem – ou a desordem – temporal espontânea, a associação livre, a aparente ausência de deliberação e a lógica interna da memória são os efeitos produzidos pela narrativa. Tais características favorecem a representação dos processos da memória e a atualização de conteúdos mentais implícitos, atraem e aglutinam os fragmentos dispersos da história de Riobaldo (GERSEN, 1991, p.352). Grande sertão: veredas, segundo Márcio Seligmann-Silva (2009, p.132-133, grifo do autor), pode ser visto como “uma performance da memória e do ato de recordação”. A matéria do livro, a memória de Riobaldo, é apresentada ao seu ouvinte, o homem da cidade para quem relata sua história, de forma não linear, fragmentada e saturada de emoções. “Seu fio narrativo executa saltos, assim como o universo de nossa memória o faz, comandada tanto pelo princípio das afinidades eletivas, como por exigências emocionais.” (SELIGMANN-SILVA, 2009, p.135). O tempo do narrador não é o do relógio e nem obedece a uma cronologia ordenada; na narrativa produzem-se muitos volteios de que o narrador tem consciência:

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A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. (ROSA, 1965, p.77-78).

A distância temporal, emocional e moral que separa Riobaldo-narrador de Riobaldojagunço concede ao narrador a oportunidade de observar tudo com olhar desperto e indagador. Do presente, o jagunço aposentado, o homem recluso retoma o passado para reconstruir a sua história e alcançar a sabedoria. As indagações sobre o mundo e a vida visam desvendar a própria existência, dar sentido à vida e ao que dela foi feito e também entender o significado do ser e do viver humano. Produto do tempo, o homem de hoje tenta entender o homem de ontem e, assim, encontrar o saber sobre o mundo e a própria identidade. Passado o tempo da ação, da jagunçagem, do amor incontornável e impossível, chega o tempo da reflexão, da reclusão, da indagação, da criação, momento que apenas é possível por meio do exercício da memória. É devido a essa incessante busca do verdadeiro eu do narrador-protagonista e do entendimento da existência humana, que tempo e memória se relacionam, o que nos permite afirmar que esse vínculo constitui um dos eixos que move a narrativa. O questionamento que buscamos responder até o final da pesquisa é: quanto e como a relação apontada entre tempo e memória funciona, auxilia e, até mesmo, confunde Riobaldo na construção da narrativa, da sua identidade e na reflexão sobre o homem? Antes de mais nada, podemos dizer que Grande sertão: veredas é a história de um homem em busca de si mesmo e dos outros. Os inúmeros questionamentos que dessa afirmação surgem (e que movem o estudo), a continuidade e o aprofundamento da pesquisa nos ajudarão a responder. Bibliografia AGUIAR, F. Grande sertão em linha reta. In: DUARTE, L. P.; ALVES, M. T. A. (Org.). Outras margens: estudos da obra de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.61-76.

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A TRADIÇÃO DE REBELDIA NA LITERATURA NORTE-AMERICANA Renato Alessandro dos Santos Maria Clara Bonetti Paro Progroma de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr On the road, de Jack Kerouac, é um bom exemplo de romance que pertence ao que podemos chamar de “tradição de rebeldia”. Todos os elementos estão lá: o propósito aguçado, determinado e receptivo, sempre renovado, diante da nova experiência que se anuncia na estrada aberta; o espírito juvenil que move os personagens de um lado a outro do país, inesgotável – coberto de primeiras impressões e de novas imagens que surgem a todos os personagens que se põem a vadiar estrada afora; a liberdade atiçada pelo vento; a viagem não como roteiro turístico, mas como uma experiência reveladora e positivamente individual. A tradição de rebeldia é capaz de amalgamar autores distantes no tempo (dois séculos), mas muito próximos no que diz respeito ao sentimento em comum que experimentaram e que, grosso modo, soa desgastado hoje: liberdade. Liberdade de expressão. Liberdade em relação à vida que se leva. Liberdade que rima com originalidade, quando a linguagem vai cada vez mais longe, buscando uma voz própria, uma voz que, muitas vezes, confunde-se com uma voz infantil, como se a literatura norte-americana fosse uma estante de livros infantis, ideia que, hoje, parece absurda, mas que durante muito tempo insistiu em permanecer no imaginário de um número impreciso de leitores. Temos o hábito de pensar nos antiquados clássicos norte-americanos como livros infantis. Pura infantilidade nossa. A velha fala literária norteamericana contém uma qualidade exótica que corresponde ao continente americano e a nenhum outro lugar no mundo. Só que, claro, enquanto

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insistirmos em ler tais livros como se fosse histórias para crianças, deixaremos de perceber tudo isso. (LAWRENCE, 2012, p. 11)

Lawrence não está sozinho, como veremos adiante, e vai mais longe: É difícil ouvir uma voz nova; tão difícil quanto ouvir uma língua desconhecida. Simplesmente não ouvimos. Há uma voz nova nos velhos clássicos norte-americanos. O mundo preferiu não ouvi-la e veio com essa conversa de histórias infantis (2012, p. 11).

Lawrence, caso estivesse vivo hoje, não perderia seu tempo com esse questionamento, mas antes de morrer, em 1930, era essa a forma como muita gente olhava para a literatura americana. Hoje, ninguém mais pensa assim, mas décadas e décadas depois de Lawrence julgar que a literatura dos EUA era pouco apreciada por causa dessa aproximação com a literatura infanto-juvenil, outro autor, Ronald Weber, em O romance americano, ressaltou o mesmo problema: Quando começamos a estudar os romances clássicos da nossa literatura notamos imediatamente algumas características invulgares. Por um lado alguns dos romances mais famosos podem integrar-se na secção de livros para crianças ou para jovens — como é o caso de The adventures of Huckleberry Finn, de The Leatherstocking tales e até de The scarlet letter e de Moby Dick. (1969, p. 14)

Ronald Weber também não se conforma com a suposição de que certos romances da literatura americana sejam tomados como infanto-juvenis, uma vez que a literatura daquele país está impregnada de rebeldia, num sentido único, e acima de tudo verdadeiro, digna de uma experiência enriquecedora, muitas vezes terrível, muitas vezes simbólica. Essa experiência simbólica está no centro ao redor do qual gravitam não só muitos dos personagens mais ousados da literatura dos EUA, Holden Caulfield, Dean Moriarty, Huckleberry Finn, Tom Sawyer, como escritores que, impulsionados vida afora, souberam encontrar tempo para escrever e, partilhando dessa confraria imaginária de autores, conseguiram escrever a tradição de rebeldia da literatura norte-americana. De certa maneira, tudo começa no século 19 e, para lá, devemos seguir. Mas, antes, quais seriam esses autores? Além de Walt Whitman e H. D. Thoreau, poderíamos incluir Emerson, Edgar A. Poe, Emily Dickinson, Jack London, Ernest Hemingway, F. S. Fitzgerald, William S. Burroughs, Allen Ginsberg, Jack Kerouac. E outros.

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Segundo Robert E. Spiller, algo realmente importante à literatura dos EUA aconteceu no exato momento em que Henry David Thoreau resolveu deixar a vida na cidade para viver livre e literalmente longe da civilização: Fui para os bosques porque eu desejava viver com deliberação, enfrentar somente os fatos essenciais da vida e verificar se não podia aprender o que tinha ela a me ensinar em vez de descobrir, ao aproximar-se a hora de minha morte, que eu não tinha vivido (THOREAU apud SPILLER, s. d., p. 21).

Esses versos nos levam à tradição de rebeldia que pretendemos verificar. “A alegria que se deriva da aceitação dessa fé simples ou o desespero que a sua negação acarreta”, comenta Spiller, ainda a respeito dos versos de Thoreau, “constituem as duas correntes fundamentais da tradição norte-americana” (p. 21). Se nos aproximarmos e chegarmos bem perto do que essa afirmação aponta talvez seja possível constatar que há (ao menos) duas vertentes opostas a serem adotadas pelos escritores americanos. Nada demais: quem conhece a história da literatura dos EUA pode concordar com Spiller; afinal, não há outro país no mundo que mais fácil promova essa imagem apoteótica e demagoga de liberdade (mesmo que a qualquer custo); não por acaso, ela está enraizada à própria maneira de ser e de viver dos americanos; ou seja, se a muitos eles mais parecem os “donos do mundo”, é porque dividem o ethos de um povo que sempre lutou por democracia e liberdade de expressão. Por mais desgastadas que, pelo uso, tais palavras soem hoje. Ao olhar para o passado, o que a literatura americana nos apresenta é uma corrente em que se enfeixa uma série de poetas e escritores que sempre demonstraram o porquê de se buscar essa liberdade de expressão, seja na própria criação, isto é, na forma como se apresentam seus textos, seja na maneira de ser e de agir como seres humanos libertários. A gênese dessa questão reside nessa postura libertária. Simples assim. Ou nem tanto, se considerarmos que a proposição de Spiller alcança também os fracos de espírito, exatamente os que atendem à corrente que vai de encontro a essa tradição de rebeldia. Poderíamos, então, confirmar a presença dessa tradição de rebeldia na literatura norte-americana? Acreditamos que tal tradição está associada à própria formação da sociedade norte-americana, que inicia seu processo de colonização com um grupo de puritanos que queria liberdade, a fim de praticar sua fé religiosa sem a perseguição

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anglicana. Na literatura, essa tradição inicia-se, na prosa, com o Thoreau de Civil Desobedience (1849) e Walden (1854) e, na poesia, com Leaves of grass, de

Walt

Whitman (1855), estendendo-se e passando por Jack Kerouac e outros autores do século 20. Mas, com base no que afirma Spiller, é possível que essa tradição se perpetue até hoje? Acreditamos que sim, também, mas o que interessa encontrar na literatura dos EUA é se essa tradição pode ser o fio capaz de guiar o leitor ao longo de uma viagem repleta de autores e de obras da literatura norte-americana e se, especialmente, ela pode ser capaz de atar as duas pontas: Thoreau e Whitman a Ginsberg e Kerouac. Bibliografia BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007. BIVAR, A. Jack Kerouac: rei dos beatniks. São Paulo: Brasiliense, 2004. BLAKE, W. O matrimônio do céu e do inferno e O livro deThel. São Paulo: Iluminuras, 2000. BORGES, J. L. Introducción a la literatura norteamericana. Buenos Aires: Emecé, 1997. BUENO, E. et al. Beats e a estrada. In: Alma Beat. Porto Alegre: L&PM, 1984. ______. A longa e tortuosa estrada profética. In: KEROUAC, J. On the road: pé na estrada. Porto Alegre: L&PM, 2004. CANDIDO, A. Dialética da malandragem. In: ______. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. CANDIDO, A. et al. A personagem do romance. In: A personagem de ficção. 9ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. CASSADY, N. O primeiro terço. Porto Alegre: L&PM, 1986. CHARTERS, A. (ed.) The portable Jack Kerouac. New York: Penguin Books, 1995. ______. Beat poetry and the San Francisco renaissance. In: PARINI, J. (ed). The Columbia History of American Poetry. New York: Columbia University Press, 1993. ______. Introduction. In: Kerouac, J. On the Road. New York: Penguin Books, 1991. ______. Kerouac: uma biografia. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990.

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O BILDUNGSROMAN, A MEMÓRIA E A CIRCULARIDADE NOS ROMANCES DE LYGIA FAGUNDES TELLES Rosana Munutte da Silva Luiz Gonzaga Marchezan Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A criação de um romance pode ser descrita por uma sequência de três etapas: primeiro se tem a empiria, que é o contato do escritor com o mundo, depois essa experiência passa pela forma literária, resultando no livro, e, por fim, chega novamente à empiria ao passar pelo leitor, pois este pode encontrar elementos da obra dispersos no mundo real. Desse modo, uma obra clássica, que supera gerações e fronteiras, constitui-se da costura de elementos externos e internos, ou seja, os fatores externos agem e afetam o interior da personagem, uma vez que o contexto não pode ser eliminado, assim como o sujeito não pode se desligar do contexto. De acordo com Aristóteles (1980, p. 448), a ficção coloca em cena ações e vivências, objetivando representar determinados comportamentos humanos e não pessoas específicas. Compagnon (1999, p. 136) se mostra adepto da mesma ideia do filósofo grego ao dizer que “a literatura mistura continuamente o mundo real e o mundo possível: ela se interessa pelos personagens e pelos acontecimentos reais [...] e a personagem de ficção é um indivíduo que poderia ter existido num outro estado de coisas.” A literatura, desse modo, não deve ser vista como uma imitação do real, mas sim como uma representação de suas regras e códigos, os quais são apreendidos pela observação do homem, sendo este capaz de produzir uma arte que faça parte do mundo e

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consiga ser decodificada e compreendida por outrem. Assim, a verossimilhança pode ser entendida como o reconhecimento de uma determinada ordenação e não mera cópia. A arte, assim como a filosofia, é um modo de conhecer o mundo, apresentando os elementos necessários para a compreensão do real. Diante de uma mesma situação pessoas diferentes tem experiências e emoções diversas, por isso uma obra literária expressa uma impressão intima e pessoal, embora haja possibilidade de visões similares de um mesmo acontecimento, uma vez que não se perde a ligação entre o artístico, o mundo e os questionamentos humanos. Expressão é uma impressão interior que é devolvida ao mundo, assim, quando lemos obras que se mostram engajadas com as questões do seu tempo, temos ali expressa a impressão do autor sobre esses fatos, seria uma forma, de acordo com Beatriz Sarlo (2005, p.83), de ficcionalizar a própria experiência, promovendo um testemunho mais rico e interessante para a literatura, uma vez que “a verdade do texto se desvincula da experiência direta de quem escreve, que indaga na experiência alheia aquilo que poderia imaginar que sua própria experiência lhe ensinou.” A partir das considerações acima, a obra de Lygia Fagundes Telles pode ser considerada introspectiva e engaja, pois a autora brasileira concebe romances com características e aspectos próprios de seu tempo, mostrando seu comprometimento com os desejos e anseios do homem contemporâneo, produto dos questionamentos e transformações ocorridos nas décadas póstumas à Segunda Guerra Mundial. As mulheres, em sua obra, refletem a complexidade de lidar com situações que fogem ao padrão social e requerem do indivíduo um determinado grau de equilíbrio para a própria aceitação. Em inúmeras entrevistas, Lygia Fagundes Telles deixa evidente o seu comprometimento em registrar o seu testemunho sobre os anseios do homem contemporâneo diante de mudanças tão significativas para a sociedade, ressaltando, assim, a ligação dos seus romances com o contexto em que são concebidos, embora não retratem uma verdade absoluta. As obras aqui estudadas, nas palavras de Gallagher (2009, p. 635), “não falam de ninguém em particular”, são construções textuais e literárias que representam aquilo que poderia ter acontecido, ou seja, não há a presença de personagens reais, mas sim de figuras com características de determinada sociedade e momento histórico que se tornam verossímeis tanto dentro quanto fora da obra. Virgínia, Raíza, Lorena, Ana Clara, Lia e

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Rosa Ambrósio não são personagens históricas que podem ter suas histórias verificadas em livros ou no testemunho de outros, mas foram espelhadas em seres reais, frutos de uma época que ficaram marcados na memória da ficcionista. Nas obras Ciranda de pedra (1954), Verão no aquário (1963), As meninas (1973) e As horas nuas (1989) temos personagens em busca de si mesmas e colocadas diante de seu passado. As lembranças, principalmente da infância, e no caso de Rosa Ambrósio também da juventude, auxiliam as protagonistas no reconhecimento do verdadeiro EU e no equilíbrio de suas emoções, fazendo-as reconsiderar suas vidas e o momento presente, pois “no confronto entre presente e passado, o tempo impõe suas marcas, e o protagonista costuma ser levado a considerar criticamente sua vida, a fazer uma avaliação de si mesmo” (SILVA, 2009, p. 198). A memória, de acordo com Aristóteles (apud RICŒUR, 2007 p.34), pertence ao passado, pois é preciso que tenhamos vivido, presenciado um fato para podermos lembrá-lo mais adiante. Sendo assim, é de uma imagem ausente no presente que nos recordamos: lembrar é buscar reconhecer uma imagem já vista, um acontecimento previamente vivido. Pelo fato de a memória ser pessoal, podendo o indivíduo selecionar os fatos de maior relevância para si e apagar outros, ela encontra, assim como o tempo, sua melhor expressão nas narrativas que apresentam, segundo os estudos de Genette, um narrador autodiegético (Verão no aquário, As meninas, As horas nuas) ou heterodiegético onisciente (Ciranda de pedra), pois o adentramento do leitor no mundo interior da personagem permite captar as oscilações das lembranças e os seus efeitos sobre a personagem. Quando me lembro das coisas lembro-me de mim mesmo, das minhas ações e das minhas impressões. Desse modo, o objetivo das personagens em penetrar na própria memória e revisitar o seu passado reside em reencontrarem a si mesmas, uma vez que a busca pelas lembranças traz a esperança do reencontro e isso significa reconhecer o que se aprendeu anteriormente. A reflexão da memória culmina no reconhecimento do EU devido à particularidade e pessoalidade das vivências de cada um. Nas obras de Lygia Fagundes Telles estudadas, a memória das personagens torna-se essencial para o autoconhecimento, transformação e construção das protagonistas. A recorrência à memória, juntamente com o ressaltamento dos efeitos das mudanças interiores sentidos pelas personagens, torna-se a ligação mais forte entre os quatro

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romances. Virgínia, Raíza, Lorena, Lia, Ana Clara e Rosa se voltam para o passado na tentativa de compreenderem sua situação atual e conseguirem a harmonização entre o seu interior e o meio social. Percebemos, desse modo, a grande influência exercida pela infância na organização das emoções dessas protagonistas, sendo esta uma das características do Bildugsroman feminino proposto por Cristina Ferreira Pinto. O termo, para a estudiosa, abarca os romances escritos por mulheres e que possuem protagonistas também femininas diante de conflitos de gerações, limitação social, busca do autoconhecimento, abandono do meio de origem e a tentativa de equilibrar as próprias emoções e alcançar um determinado grau de harmonização com o seu interior e o meio exterior. Nesse tipo de narrativa O passado adquire [...] uma importância fundamental, porque o dilaceramento das personagens geralmente se justifica pela infância reprimida ou mal-amada. O resgate da memória é um dos caminhos para o autoconhecimento; a volta às origens, através do tempo passado, faz parte da busca da identidade, pulverizada em diferentes papéis sociais. (XAVIER, 1991, p.13)

A diferença apontada por Ferreira Pinto entre o Bildungsroman feminino e o tradicional, que considera masculino, está no modo como o feminino pode apresentar outro desfecho na narrativa. Enquanto com o primeiro paradigma a personagem alcança a integração social e um grau de coerência, no segundo, o processo resulta no fracasso ou na desintegração do eu diante da sociedade. O Bildungsroman (romance de formação) nasce no final do século XVIII e é definido como uma forma diretamente ligada às circunstâncias históricas, culturais e literárias européias do período. O termo pode ser entendido, segundo Maas (2000, p.13), como uma instituição social-literária que tem, de um lado, a formação da burguesia e, de outro, o gênero literário do mundo moderno, pois, para a estudiosa “a formação do jovem de família burguesa, seu desejo de aperfeiçoamento como indivíduo, mas também como classe, coincidem historicamente com a ‘cidadania’ do gênero romance”. Vista a ficção conforme E.M. Forster (1998), o autor escreve sobre aquilo que conhece, sendo as personagens e ações espelhadas na experiência e vivência mundanas. Assim, o estudo da temática da formação do indivíduo na literatura auxilia no conhecimento do ser humano e proporciona um maior contato com a história de uma

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sociedade, uma vez que retrata, de certa forma, determinada época, os medos e anseios de uma geração. As obras de Lygia Fagundes Telles estudadas têm seus enredos calcados na realidade brasileira e refletem na caracterização das personagens e nas relações que estabelecem entre si os valores da época. A leitura cronológica dos romances nos permite ter um panorama gradativo da negação e contestação de alguns valores e a ascensão de outros, apresentando relacionamentos familiares conturbados que refletem nas relações sociais dos indivíduos em cena, os quais parecem não se comprometer verdadeiramente com o outro. Lygia Fagundes Telles, segundo Ferreira Pinto, como escritora [...] tem registrado em sua ficção as transformações por que a sociedade brasileira passa, mostrando o modo pelo qual as personagens reagem frente a tais transformações. Deixando-se afetar nas suas relações intelectuais, afetivas e sexuais, rompendo com valores e padrões de comportamento tradicionais e adotando novos, suas personagens refletem mudanças que para muitos representam o processo de decadência de um determinado grupo social. (PINTO, 1990, p.117)

Assim, acentua-se a ligação com o Bildungsroman, uma vez que este objetiva, também, retratar a formação de um determinado grupo social. Os romances da autora observados focalizam o processo de (trans)formação feminino ao longo das décadas brasileiras às quais pertencem (50, 60, 70 e 80 do século XX). Tal ligação nos possibilita verificar outro ponto relevante para o desenvolvimento da pesquisa: a atuação da memória da ficcionista na elaboração de sua obra. Se o escritor ao escrever fala sobre aquilo que conhece, espelhando-se na realidade ao seu redor, ocasionando certa recorrência de características específicas em diferentes textos do mesmo autor, além da utilização de fatos históricos necessários para a construção dos seres fictícios, Lygia Fagundes Telles, assim, parece indagar no outro sua própria experiência, promovendo um testemunho mais rico e interessante para a literatura das mudanças acontecidas na segunda metade do século XX, especialmente na relação da mulher com a sociedade, o que acarretou significativas alterações na estrutura familiar. A leitura cronológica das obras nos permite ter um panorama gradativo da negação e contestação de alguns valores e a ascensão de outros. Percebemos, ao longo dos anos, que a maior mudança ocorrida na vida familiar, deu-se exatamente no seu seio, assinalada pelas conquistas femininas que alteraram a posição da mulher em relação aos outros membros e 440

na sociedade, ocasionando o surgimento de novos modelos familiares que ainda sofrem com o preconceito. Das seis protagonistas observadas, apenas Lião tem a família nos moldes tradicionais. Temos nos três romances o afastamento da figura paterna, começando com um mero isolamento e culminando em seu total desaparecimento. Os dois extremos são formados por Natércio, em Ciranda de pedra, e pelo pai de Ana Clara, em As meninas. Na primeira situação temos a figura do pai fechada em seu escritório e pouco comprometido com a vida familiar; ele transita entre as filhas, mas não se comunica com elas. Na segunda, o pai é desconhecido, a moça não conhece seu progenitor e não tem sua imagem como chefe de família. Entre um caso e outro, observamos a presença espiritual do pai nas lembranças da personagem Raíza, em Verão no aquário. Os relacionamentos familiares são conturbados e refletem as relações sociais desses indivíduos, que parecem não se comprometer verdadeiramente com o outro, acarretando, assim, em um problema de comunicabilidade entre as personagens, apresentado em maior ou menor escala. O contato e a relação que as protagonistas estabelecem com os demais personagens influenciam no desenvolvimento da personalidade de cada uma delas, mostrando pontos de vista diferentes diante de uma mesma situação. Bibliografia ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Abril Educação, 1980. (Literatura Comentada) COMPAGNON, A. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes Barreto mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. 305 p. FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Tradução de Maria Helena Martins. 2.ed. São Paulo: Globo, 1998. GALLAGHER, C. Ficção. In: MORETTI, F. (org.) O romance I – A cultura do romance. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 629-658. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, 19[?] MAAS, W. P. M. D. O cânone mínimo: o Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

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O ROMANCE HISTÓRICO FRANCÊS NO SÉCULO XIX: HUGO, ÉLÉMIR, FLAUBERT E BALZAC Rosária Cristina Costa Ribeiro (CAPES) Sidney Barbosa Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Nosso trabalho de pesquisa iniciou-se ainda na graduação com um estágio departamental que frutificou e tornou-se nossa iniciação científica, com apoio do CNPq. Naquele momento, o trabalho resumia-se em analisar a categoria da espacialidade no último romance escrito pelo autor francês e publicado em 1874, Quatrevingt-treize, com o intuito de classificá-lo em algumas categorias inerentes ao texto e relacionar esses diversos espaços às funções sociais das personagens. Ainda na iniciação científica, o gênero textual romance histórico tornou-se imperativo em nossos trabalhos, conduzindo o passo seguinte: a pesquisa na pós-graduação. No mestrado, nosso corpus constituía-se do mesmo Quatrevingt-treize; entretanto, buscávamos as relações existentes entre o gênero romance histórico e as categorias da narrativa, buscando determinações intrínsecas entre o gênero e as categorias. No que diz respeito ao instrumental teórico, além daqueles que vinham sendo analisados para o trabalho com a espacialidade, buscamos outros que melhor definiam o gênero escolhido por Hugo para escrever sua última obra romanesca. Assim, a partir das teorias expostas na Disciplina História e Ficção, ministrada pela Profa. Márcia Valéria Zamboni Gobbi, selecionamos uma teoria que melhor atendesse nossas necessidades de pesquisa, Le roman historique de George Lukács, publicado em 1936. Já no doutorado, inicialmente, desejávamos simplesmente continuar o trabalho expandindo o corpus para os demais romances históricos hugoanos. Segundo Philippe Van Tiegham (1985), o espírito arquitetural de Hugo levou-o a visualizar uma trilogia na qual

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Quatrevingt-treize representaria a Revolução e as outras duas partes seriam compostas por L’homme qui rit (1869), representante da Aristocracia (Inglaterra anterior a 1688) e por fim um romance que representasse a Monarquia (França anterior a 1789), romance que acabou não sendo escrito. Naquele primeiro projeto, esse ‘lugar vazio’ seria preenchido por Notre-Dame de Paris (1831), devido a sua importância no conjunto da obra romanesca de Victor Hugo e aos aspectos culturais e, sobretudo, arquiteturais que ele engloba numa perspectiva histórica. Durante os primeiros semestres, nos anos de 2009 e 2010, dedicamo-nos a obtenção dos créditos e às disciplinas cursadas no próprio Campus da FCL – Araraquara, conciliando sempre nossa vida acadêmica com a profissional. Todas as disciplinas e eventos dos quais participamos foram de grande valia para nosso crescimento como pesquisador, mas a grande alteração pela qual a pesquisa passou deu-se no momento em que ingressamos, com o auxílio financeiro da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -, no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior. A experiência em uma universidade estrangeira nos fez repensar a bibliografia e os rumos do trabalho de pesquisa. Nesse momento, no qual nossa pesquisa aproxima-se do final, esperamos contribuir com o Ensino Superior e Pesquisas em nosso país, tanto quanto pudemos usufruir dessa estrutura e conhecimento. Durante nosso estágio na Université de Montpellier III, foi verificada a fragilidade do mesmo, uma vez que o corpus apesar de muito grande não continha, contudo, um micro-gênero1 bem definido. Depois de várias tentativas de acerto para se determinar quais os romances a serem estudados, a pesquisa teve, finalmente, seu corpus definitivamente estabelecido após entendimentos e sugestões da Profa. Dra. Corinne Saminadayar-Perrin e do Prof. Dr. Sidney Barbosa, que muito nos ajudaram a definir as linhas que balizam nosso presente projeto. Assim, atualmente, nosso corpus compreende os seguintes romances históricos do século XIX, a saber, Les Chouans de Honoré de Balzac, Salammbô de Gustave Flaubert, Quatrevingt-treize de Victor Hugo e Sous la hache de Élémir Bourges. Para compor esse corpus, um ‘microgenre’ foi estabelecido.2 A primeira característica que limita nossa

1

Molino, 1975. Segundo Molino (1975), um ‘micro-genre’ é um conjunto « d’œuvres proches par le temps et par le lieu, qui appartiennent à un même ensemble culturel et entre lesquels existent de nombreux liens de filiation, influence, ressemblance, etc. ». 2

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pesquisa é a influência de Walter Scott sobre esses romancistas e romances. O segundo critério é o do tema da Revolução Francesa, ou o dos seus reflexos sobre a história narrada, como é o caso de Salammbô. Dessa forma, após seis semestres de trabalho, o ponto que mais nos chama a atenção é a corroboração da ideia presente já em nosso trabalho de mestrado: o romance histórico francês do século XIX possui uma espacialidade em sistema. Esse sistema consiste na oposição entre os espaços monárquicos e revolucionários, ou mais amplamente, em espaços selvagens e espaços urbanizados. Tratamos aqui dos romances históricos que seguem o modelo proposto por Walter Scott, e teorizado por George Lukacs, sem, entretanto, nos prendermos demasiadamente à teoria proposta por este, nos quais a História é exposta por meio da ideologia contida na criação das categorias narrativas, e não simplesmente o romance baseado em fatos históricos ou com um pano de fundo histórico. Os romances por nós estudados apresentam, dentro do sistema de oposição espaços monárquicos/

espaços republicanos,

constituições

muito

parecidas,

na

verdade,

praticamente idênticas: Deslocamento espacial: em todos os romances há o deslocamento entre cidades. No caso de Sous la hache, esse deslocamento é o pré-texto, uma vez que o romance passa a ser narrado quando a escolta da guilhotina está em vias de atingir a pequena cidade de SaintJudicaël. Entretanto, para todos os romances, o fim do romance é também o fim da marcha. O deslocamento espacial termina com o último capítulo, em geral, devido à morte do ‘condutor’.

Por

vezes,

acompanhando

o

sistema

monárquico/republicano,

esse

deslocamento é paralelo, ou seja, existem dois deslocamentos, mas que, na verdade, servem ao mesmo propósito. Espaços tipicamente monárquicos, revolucionários ou mistos: Os romances analisados apresentam, em uma análise um pouco mais circunscrita, espaços tipicamente monárquicos, como florestas, bosques, marais, mar, ou seja, espaços selvagens ou incultos como um todo; espaços tipicamente republicanos, este tipo, em especial, restrito aos romances Quatrevingt-treize e Salammbô, romances nos quais a cidade como ‘capital’, como um símbolo de um regime político, se faz presente (Taverne de la Rue du Paon, por exemplo); e por fim, espaços que passam de monárquicos (ou clericais – ligados ao Antigo Regime de alguma forma) a republicanos (ou revolucionários – ligados aos novos regimes

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implantados), como as igrejas em Sous la hache, os prédios públicos em Quatrevingttreize, os edifícios aristocráticos em Les Chouans e os jardins do palácio de Amílcar em Salammbo. Mulheres como metáforas da espacialidade romanesca: A trajetória das personagens femininas nesses romances é fundamental. Em primeiro lugar, essas personagens não possuem vínculos com a espacialidade, ou seja, em geral, são de lugar nenhum, ou são seres totalmente excluídos de seu local de origem. Normalmente, possuem também origem controversa, transitando entre os lados da guerra sem muitos problemas, ou conforme lhes convém (exceção feita aqui a Salammbô). Marie de Verneuil, Rose-Manon, Michèle Fléchard e Salammbo percorrem os trajetos do enredo e dominam ambas as espacialidades. A falta de participação política da mulher durante o século XIX permitiu aos romancistas uma maior liberdade quanto a sua expressão. Entretanto, elas, na verdade, acabam tornando-se peças fundamentais no decorrer das respectivas tramas (exceção feita à Michèle Flechard: a personagem hugoana interfere, sim, na trama, mas não tem o poder de alterá-la como nos outros romances). Outras personagens marginais representam esse deslocamento irrestrito como o mendigo Tellmarch (Quatrevingt-treize), o louco feiticeiro Coathgoumarch (Sous la hache) e o camponês Gallope-Chopine (Les Chouans). O romance histórico dito tradicional do século XIX teve importância fundamental para a reconstrução da identidade francesa no período pós-revolucionário. Ora, devido a grande instabilidade política advinda dos acontecimentos revolucionários, a população não mais entrevia seu próprio futuro escrito em seu passado. A Monarquia de Julho (período no qual surgiu o romance Les Chouans) manifestava, apesar de parecer contraditório, algum apreço pela Revolução de 1789. Entretanto, já durante a Terceira república e a ditadura de Napoleão III, com todas as suas imposições em forma de lei e enfrentamentos entre a população e o governo, a Revolução passou a ser uma mancha de Terror na história francesa. É nesse momento que surgem a maioria dos romances resgatando um vigor que há muito já se acreditava perdido. Não podemos deixar de apontar aqui a influência desse tipo de romance e dos movimentos surgidos na Europa, sobretudo na França, em nossa literatura brasileira. Nosso século XIX também foi aquele da construção da identidade. Mas, diferentemente do que

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ocorreu na França, o romance histórico ficou preso ao Romantismo, e foram nossos romances de costumes que acabaram proporcionando essa ‘construção’. Bibliografia Corpus: BOURGES, Elémir. Sous la hâche. Paris: Klincksieck, 2003. BALZAC, Honoré de. Les Chouan. Paris : Le livre de Poche, 1983. FLAUBERT, Gustave. Salammbô. Paris : Flammarion, 2001. HUGO, Victor. Quatrevingt-treize. Paris: Gallimard, 2002. Referências AMALVI, Christian (dir.). Les Lieux de l’histoire. Paris: Armand Colin, 2005. ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966. AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na Literatura Ocidental. Tradução Suzi Frankl Sperber. São Paulo: EDUSP/ Perspectiva, 1971. BACHELARD, Gaston. ‘A poética do espaço’. In: _____. A Filosofia do não; o novo espírito científico; a poética do espaço. Tradução Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 181-349. (Os Pensadores). BAKHTINE, Mikhaïl. Esthétique et théorie du Roman. Paris : Gallimard, 2004. Tradução Daria Olivier. BARBOSA, Sidney. O patrimônio arquitetônico francês, a modernidade e o romance Notre-Dame de Paris de Victor Hugo. In: Polifonia, n° 6. Cuiabá: UFMT, 2003, p. 87101. BARTHES, Roland. O discurso da História. In: O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 163-180. ______. O efeito de real. In: O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 158-165. (Idem aqui,mesma editora e tradutor, p. 181-190) BERNARD, Claudie. Le passe recomposé: le roman historique français du dix-neuvième siècle. Paris : Hachette, 1996. ______ . Le Chouan romanesque. Paris : PUF, 1989.

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A MALDIÇÃO DE EVA: VOZES FEMININAS NO ROMANCE DE CARLOS HERCULANO LOPES Roseli Deienno Braff María Dolores Aybar Ramírez Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Introdução No final do século XX, cai o Muro de Berlim, o mais emblemático modelo do mundo bipolar, em que capitalismo e socialismo mediam forças. O mundo assiste à “vitória” do capitalismo, agora globalizado. Na esteira dessas transformações políticas e sociais, numa rapidez espantosa, desenvolve-se a tecnologia da informação: hoje, um terço da

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humanidade conecta-se à rede mundial de computadores, os aparelhos celulares já ultrapassaram os limites das cidades e alcançaram o campo, o mundo virtual invade os lares e as consciências. Os arautos da globalização, apocalípticos, anunciam: o tempo é agora. A pressa tornou-se condição para a sobrevivência. Há espaço para a literatura de qualidade ética e estética nesse cenário, em que os textos encurtam-se cada vez mais para acompanhar a lógica da urgência desenfreada e a linguagem de que são feitos banaliza-se? Na contramão dessa ditadura da velocidade urbana, o escritor Carlos Herculano Lopes desconstrói o passado e vasculha a memória de seus personagens, revelando relações pautadas pela violência no interior de Minas Gerais. Único irmão homem de sete mulheres, o jornalista mineiro Carlos Herculano Lopes (1956 – Coluna-MG) é contista, cronista e romancista. Atualmente vive em Belo Horizonte, mas sua principal veia ficcional – o romance – alimenta-se dos dramas e conflitos do interior, onde nasceu. Trágico, aproximase dos ficcionistas, também mineiros, Autran Dourado e Lúcio Cardoso (1912-1968) na preferência pelos temas da loucura, vingança, disputa de terras, além das sempre conflitantes relações familiares que descortinam um opressivo e violento universo patriarcal. O autor estreou na literatura em 1980 com a publicação do volume de contos O sol nas paredes; com Memórias da sede, segundo livro de contos, venceu o Prêmio de Literatura Cidade de Belo Horizonte em 1982. O romance A dança dos cabelos (1984), ganhador do Prêmio Guimarães Rosa, da Secretaria de Cultura de Minas Gerais, concede ao ficcionista merecido reconhecimento da crítica. Sombras de julho (1990), romance traduzido na Itália, venceu a Quinta Bienal Nestlé de Literatura Brasileira. Em 2004, vem a público O vestido. Baseado numa proposta do cineasta Paulo Thiago, que queria transformar em linguagem fílmica um dos mais conhecidos poemas do poeta (também mineiro) Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Caso do vestido”, Herculano escreveu, para o roteiro do filme, um argumento que acabou transformando-se em romance. Sombras de julho e O vestido foram levados ao cinema pelos diretores Marco Altberg e Paulo Thiago, respectivamente. Jornalista de formação, Carlos Herculano Lopes transita, também, entre a crônica e o conto, textos geralmente mais curtos que imprimem certa leveza à sua produção literária; a prosa romanesca, no entanto, pela estruturação às vezes insólita, que cria um mosaico de

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narrativas, e multiplicidade de vozes (sobretudo femininas) nela entremeada, é que lhe confere o estatuto de um dos mais sólidos talentos de sua geração. Propomos, com este trabalho, estudar as vozes femininas nos romances A dança dos cabelos, Sombras de julho e O vestido, investigando como as narradoras mulheres denunciam, cada qual a seu modo e segundo sua dramática experiência, o violento e trágico universo de dominação masculino. Justificativa A globalização e sua lógica perversa atingiram, também, o mercado editorial, que se rendeu definitivamente ao best-seller de consumo fácil e rápido e à enxurrada de manuais de autoajuda, cujas vendas vêm crescendo vertiginosamente. Tal fato, aliado à exiguidade do espaço destinado à literatura na imprensa, praticamente baniu a crítica literária dos jornais e revistas de grande circulação, que, em geral, limitam-se a publicar uma lista dos “mais vendidos”. O julgamento crítico da produção ficcional contemporânea ficou restrito a escassos suplementos literários e revistas especializadas que atingem um público cada vez mais reduzido. A crítica acadêmica militante dos jornais cedeu seu espaço a apressadas resenhas de conteúdo muitas vezes duvidoso visto que produzidas por pessoas, em geral, não especializadas na área. O comentário da professora Walnice Nogueira Galvão (2010, p.12) confirma o exposto:

Observa-se frequentemente que a crítica literária se encastelou na universidade. Mas não foram os universitários que disseram: “Vamos fechar as portas para o resto do mundo”. O que aconteceu foi que as portas do resto do mundo foram sendo progressivamente fechadas para os críticos. A imprensa acabou com o lugar da crítica literária nos jornais e revistas. Foi um processo que levou 30, 40 anos, mas já está concluído. O que temos hoje são press releases [textos enviados aos veículos de imprensa e que divulgam o lançamento de um livro, CD, filme, exposição ou de qualquer outro bem cultural]. Até eu me engano com eles de vez em quando e penso: “Preciso comprar esse livro”. Mas não correspondem à verdade, é pura propaganda. Enfim, a própria evolução do jornalismo foi expulsando a crítica literária de suas páginas para dar espaço à notícia candente, à comunicação imediata.

Nesse sentido, avulta o papel da universidade como detentora de um saber (teórico/histórico/crítico) capaz de separar o joio do trigo, promovendo a divulgação, por 453

meio do trabalho acadêmico, de autores contemporâneos (ainda não canonizados), cuja produção merece ser estudada. O autor, objeto de nossa proposta de pesquisa, recebeu, até o momento, pouca atenção da crítica especializada ou acadêmica. Rastreamos apenas duas dissertações de mestrado: “O trançado da morte nas tramas do tempo” (2008) e “Três isauras e uma identidade em Carlos Herculano Lopes” (2007). Acreditamos que estudar um autor, ainda pouco reverenciado pela academia, a partir do modo como ele cria e articula a ausência ou presença do discurso feminino, disseminado em múltiplas vozes, às quais confere identidade, mesmo que fragmentada, ou seja, a focalização como centro gerador da narrativa romanesca, é a contribuição que julgamos poder acrescentar aos trabalhos sobre o ficcionista mineiro. Objetivos Geral Pretendemos, ao longo da pesquisa, investigar como se materializa textualmente a relação dialógico-polifônica entre as vozes femininas dos romances A dança dos cabelos, Sombras de julho e O vestido, e de que modo as vozes masculinas, que se encarnam em personagens e em narradores desse gênero, vão construindo a imagem de um autor implícito, ou seja, aquele que “[...] não desaparece mas se mascara constantemente atrás de uma personagem ou de uma voz narrativa que representa [...] extremamente útil para dar conta do eterno recuo do narrador e do jogo de máscaras que se trava entre os vários níveis da narração.” (LEITE, 1991, p. 18). Esse autor implícito (BOOTH, 1980) posiciona-se diante desse sonoro coro e denuncia o universo trágico do patriarcado mineiro, cuja engrenagem frequentemente subjugou a mulher. Específicos 

A dança dos cabelos – romance tecido como uma colcha de retalhos de memórias: de Isaura-avó, de Isaura-mãe e de Isaura-filha. Três mulheres que narram, em fluxo de consciência, suas agruras, dores e paixões, em busca de uma identidade que lhes foi amputada. Analisar como numa narrativa de estrutura complexa, porque aparentemente desarticulada, as três isauras, em fluxo de consciência, contam, na verdade, a história de uma só mulher – a voz vingativa.

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

Sombras de julho – As vozes, aqui, multiplicam-se, e a progressão narrativa se dá por meio do ponto de vista de cada uma delas, em primeira pessoa. Helena e Ione contam a história da vingança desencadeada por um conflito por posse de terras. Evidenciar que o medo e a dor que as duas narradoras sentem revelam a paixão (também vingativa) que ambas nutrem pelos filhos – a voz incestuosa.



O vestido – romance em que uma única voz dá voz às demais personagens por intermédio de seu quase monólogo interior. A mãe, mulher simples de uma pequena cidade do interior mineiro, cuja única opção é o casamento e a maternidade, narra às filhas (e ao leitor) como uma mulher “do demo” enlouqueceu de desejo seu marido e destruiu sua vida. Verificar de que modo foi construída a representação da mãe, protagonista, que narra às filhas como e por que se dispôs a suplicar a outra mulher que levasse seu marido com ela para que ele não sofresse mais – a voz resignada. Metodologia Estrutura dos capítulos Em razão da ainda pouca visibilidade do autor objeto desta pesquisa, o primeiro

capítulo apresentará informações, pautadas sobretudo em fortuna crítica extraída de textos jornalísticos, sobre Carlos Herculano Lopes, bem como sua contextualização na História e na literatura brasileira. Em seguida, será realizada a apresentação das obras do corpus anteriormente mencionado, em sequência cronológica de publicação, além de uma síntese das principais linhas teóricas utilizadas no trabalho. O segundo capítulo será dedicado à análise das vozes em perspectiva dialógica, qual seja, como se constrói a polifonia nos diferentes romances a partir da voz e da percepção (focalização) dos diferentes narradores e focalizadores. O terceiro capítulo versará sobre um universo ficcional essencialmente masculino, conjugando a violência de classe, aquela que derrama sangue pela posse da terra; e a violência de gênero, a posse do corpo feminino. No quarto capítulo, a análise recai sobre um universo essencialmente feminino: a violência contra a violência: ação e reação – a vingança e a submissão; o direito à voz e à escrita, bem como o direito à memória, e o ato dessacralizador das tradições ficcionalmente construídas – traição conjugal, lesbianismo e incesto.

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Finalmente, o quinto capítulo discutirá os liames entre a “realidade” e a ficção, a presença do autor implícito, bem como a representação como confirmação e denúncia de uma violência instituída, aqui tornada matéria ficcional. Nessa proposta de estruturação do trabalho, das análises formais às interpretações significativas colhidas com base nos estudos de gênero das três obras, procuramos confirmar nossa hipótese de que a multiplicidade de vozes presentes nas narrativas estudadas concretiza-se no que Bakhtin (2005) batizou de romance polifônico. Embasamento teórico Esta pesquisa terá como fundamentação teórica básica os conceitos de dialogismo e polifonia desenvolvidos por M. Bakhtin essencialmente em Problemas da poética de Dostoievski (2005). Com tal alicerce teórico, pretendemos analisar três romances que se constroem como uma sinfonia de vozes ora exclusivamente femininas, ora masculinas e femininas, em diálogos repletos de tensões também de gênero. A voz do narrador e a percepção do focalizador serão analisadas com base no Discurso da narrativa, de G. Genette (1995). A regulação informativa, mas também o ponto focal da mesma, pauta a presença e as estratégias de mascaramento do autor implícito no texto, seguindo a nomenclatura de Booth (1980), mas resulta igualmente fundamental para analisar a voz da mulher personagem, focalizadora e/ou narradora das diferentes histórias. Devido à escolha do corpus, que recorta três obras cujas narradoras são mulheres, serão utilizadas algumas teorias dos estudos de gênero aplicados ao discurso literário. Para desenvolver essa proposta no bojo dos estudos de gênero, analisamos textos fundadores da crítica feminista, particularmente aqueles vinculados aos estudos literários, mas também aos estudos filosóficos, históricos e culturais de modo geral. Entre eles, cabe enfatizar as obras de Beauvoir (1967) e de Woolf (1994). À hora de realizar um levantamento diacrônico da história das mulheres paralelamente ao desenvolvimento da crítica feminista, utilizamos a brilhante obra de Isabel Morant (2006), pautada pelas reflexões teóricas de Amelia Valcárcel (2005) e de Constância Lima Duarte (2003), que apresenta uma proposta de compreensão do movimento feminista no Brasil.

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Já para justificar nossa proposta metodológica de cunho anglo-saxão, trabalhamos com autores como Blas Sánchez Dueñas (2009) e Toril Moi (2006), que refletem acerca das diferentes tendências dos estudos culturais de gênero na literatura. Finalmente, elaboramos conceitos oriundos das teorias anglo-saxãs aplicadas ao nosso corpus literário, tais como a noção de gênero e de patriarcado a partir do pensamento de Kate Millet (2010), Elaine Showalter (1994) e Joan Scott (1990). Os trabalhos anteriormente citados constituirão uma base que julgamos fundamental para alicerçar a compreensão e a consequente interpretação das obras estudadas nesta pesquisa. No momento, estamos cursando as disciplinas exigidas pelo Programa de PósGraduação para a integralização dos créditos. Bibliografia ARISTÓTELES. Arte poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Tradução de Jaime Bruna. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. BAKHTIN, Mikhail. Discurso na vida e discurso na arte. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, exclusivamente para uso didático e acadêmico. [S.l.:s.n.], [1926]. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernadini et al. 4. ed. São Paulo: Ed. da UNESP; Hucitec, 1998. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra, 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo II: a experiência vivida. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. BLOOM, Harold. O cânone literário: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. BOOTH, W. C. A retórica da ficção. Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Minerva/Arcádia, 1980.

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O UNIVERSO IMAGINÁRIO EM MARIO QUINTANA: UMA EXPERIÊNCIA PARA LEITORES DE TODAS AS IDADES Rosilene Frederico Rocha Bombini Guacira Marcondes Machado Leite Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr “O universo imaginário em Mário Quintana: uma experiência para leitores de todas as idades” é o título da presente pesquisa que se apresenta em fase de redação da tese e preparação para o Exame Geral de Qualificação em setembro de 2012. Os objetivos propostos para a realização deste trabalho estão divididos em gerais e específicos. É objetivo geral desta pesquisa mostrar, por meio da análise de textos presentes na obra Poesia completa (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, 1.022p.), como a poesia de Quintana evoluiu ao longo de sua carreira possibilitando a formação de uma consciência poética do autor. São objetivos específicos desta pesquisa: 1) Levantar aspectos da poética quintaneana,

apoiando-se nas teorias da poesia moderna e de crítica literária; 2)

reconstituir o itinerário do poeta por meio dos textos que tratam de seu ofício, analisando poemas selecionados de 15 livros, publicados de 1940 a 1990; 3)Analisar o papel do imaginário e do jogo em duas obras para crianças O Batalhão das Letras e Pé de pilão; 4) Analisar o processo de reescritura e revisão dos textos como uma forma de autocrítica do próprio trabalho. O corpus desta pesquisa está focado na obra de Mário Quintana cuja poesia chama a atenção de leitores adultos e crianças. Serão estudados poemas de quinze livros publicados de 1940 a 1990 excetuando-se as antologias, por serem publicações de livros anteriores. Esta delimitação de corpus permitir-nos-á aprofundar o estudo sobre a visão do poeta acerca do fazer poético, uma de suas principais temáticas e objeto de interesse de nossa discussão. Justifica-se nosso interesse pelo tema porquanto observa-se, com frequência, a

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reflexão sobre a natureza da poesia e a função do poeta, como se vê, por exemplo, em O aprendiz de feiticeiro (1950), expressando no texto “O Poema” o seguinte verso: “Um poema sem outra angústia que sua misteriosa condição de poema”. Dessa forma, entendemos ser possível reconstituir o itinerário do poeta por meio do estudo dos poemas que tratam de seu ofício, percorrendo toda sua produção poética. Far-se-á a análise de textos das seguintes obras: 1. A Rua dos Cataventos (1940); 2. Canções (1946); 3. Sapato Florido (1948); 4. O Aprendiz de Feiticeiro (1950); 5. Espelho Mágico (1951); 6. Caderno H (1973); 7. Apontamentos de História Sobrenatural (1976); 8. Esconderijos do Tempo (1980); 9. A Vaca e o Hipogrifo (1977); 10. Baú de Espantos (1986); 11. Da Preguiça como Método de Trabalho (1987); 12. Preparativos de Viagem (1987); 13. Porta Giratória (1988); 14. A Cor do Invisível (1989); 15. Velório sem Defunto (1990). Mario Quintana publicou também cinco livros de poemas para a infância: O Batalhão das Letras (1948), Pé de Pilão (1975), Lili inventa o mundo (1983), Sapo Amarelo (1984) e Sapato Furado (1994). Destes, somente O Batalhão das Letras

e Pé de Pilão são

compostos exclusivamente de poemas inéditos, os demais resultam de agrupamento de poemas anteriormente publicados em outros livros, com outros que ali se editaram pela primeira vez. Sendo assim, neste trabalho dedicaremos nossa atenção para o estudo das duas primeiras obras infantis do autor. Conhecer o acervo literário do poeta - seus originais, rascunhos e manuscritos permitiu-nos ter uma visão do processo de criação, da revisão e da correção de inúmeras produções, demonstrando uma constante insatisfação com o trabalho realizado que merecia sempre uma possibilidade de melhoria no texto. Esse contato com o material evidenciou o processo criativo do poeta e, por sua vez, as variações sobre sua escritura, sempre demonstrando a necessidade de encontrar a expressão mais adequada. A reunião da poesia de Mario Quintana permite a percepção com bastante clareza de sua constante preocupação com o fazer poético. Os poemas em que reflete sobre a função do poeta e a natureza da poesia são muitos. Desde o primeiro livro identifica-se o cuidado com a escrita, a atenção para com a linguagem, a própria definição de poesia várias vezes tratada em seus textos em verso e/ou em prosa. Essa consciência poética, traduzida na reflexão sobre a poesia, sua natureza e seu fazer, o acompanha em toda sua obra. É possível identificar vários poemas que abordam a figura do poeta, outros que tratam o poema como

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o próprio tema da escritura e ainda outros textos que pensam e refletem sobre a poesia e sua função. Entretanto, segundo Carvalhal (2005, p. 14), “[...] talvez a maior comprovação da consciência artesanal de Quintana seja a ordem de publicação, não cronológica, de seus primeiros cinco livros”. Nos cinco livros iniciais, o poeta faz suas experimentações e se afirma. Na produção que vem posteriormente ele desenvolve os motivos e temas exercitados, atribuindo-lhes uma nova organização, articulando-os com outras idéias e elaborando um imaginário bem próprio de Quintana, que o torna reconhecível nas particularidades de sua obra. Destacando o constante universo dos jogos de palavras e imagens nos textos do poeta, ressaltamos a importância desse elemento criativo e irreverente – o jogo – em sua obra. Explorando esse aspecto lúdico presente em inúmeros textos de Quintana, aproximamos essas considerações ao estudo desenvolvido por Huizinga (1999), na obra Homo Ludens, na qual discute a necessidade de se compreender a poesia com alma de criança, admitindo a sabedoria infantil ser bem maior que a do adulto. Analisar e cotejar as obras tão diversificadas de Quintana – os primeiros quinze livros e as duas obras infantis – será um grande desafio a ser revelado nesta pesquisa. Diante desse universo tão espetacular, pergunta-se: que recepção poderá determinar a leitura de suas obras? Que percurso o leitor fará ante a obra quintaneana? De que maneira a leitura do texto poético pode se tornar um jogo? Como os aspectos lúdicos da obra de Quintana podem ser captados pelo leitor de diferentes idades? Como foi construída a consciência poética de Quintana e como evoluiu? Essas reflexões sobre a obra do poeta Mario Quintana parecem justificar a pertinência em se estudar e cotejar os textos de sua obra adulta e sua obra infantil, o que aparentemente nos forneceria grande material de pesquisa para o trabalho aqui proposto: O universo imaginário em Mário Quintana - uma experiência para leitores de todas as idades. A metodologia para a realização da pesquisa em proposição deverá delinear teoricamente os aspectos caracterizadores do texto poético moderno; para tanto, serão estudadas obras e autores que enfoquem a poesia moderna, em especial, da lírica poética moderna. Foi desenvolvida pesquisa de cunho bibliográfico, tendo como ponto de partida o método dedutivo e ainda utilizando-se o método comparativo, quando nos referirmos aos estudos das diversas obras. Além disso, uma pesquisa no acervo do poeta também fez parte

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de toda a preparação para a redação final deste trabalho. O acervo do poeta Mario Quintana está sob a guarda do Instituto Moreira Sales, no Rio de Janeiro. Para a conceituação do poético e para a análise das obras de Mário Quintana, faremos uso, sobretudo, de publicações sobre a teoria da poesia de autores tais como Antonio Cândido, Octavio Paz, Mario Faustino, João Cabral de Melo Neto, Alfredo Bosi, Massaud Moisés, Bachelard, Hamburger, Friedrich entre outros. Ressaltamos, no entanto que, com o desenvolvimento da pesquisa, a bibliografia ora apresentada poderá ser ampliada com o objetivo de fazer uma melhor descrição do problema. Quanto à teoria da poesia infantil, esta pesquisa será norteada por obras e estudos de pesquisadoras renomadas como Nelly Novaes Coelho, Regina Zilberman, Diana Maria Marchi entre outros. Far-se-á importante definir o estilo e as marcas de Mário Quintana por meio de levantamento dos procedimentos literários e, principalmente, poéticos que caracterizam seus textos,

para

estabelecermos parâmetros de comparação

a fim de servirem de

instrumento de análise da evolução de sua obra. Tendo como apoio a fundamentação teórica da pesquisa, será apresentada uma análise das obras infantis O Batalhão das Letras e Pé de pilão, nas quais serão apontados os aspectos de construção e revisão dos textos como características fundamentais das marcas do autor e de sua poesia voltada aos mais diversos públicos. Espera-se comprovar, com o desenvolvimento deste trabalho, que nada é aleatório na poética de Quintana, mas é construída ao longo de um trabalho exaustivo na busca da precisão. Além disso, pretende-se contribuir para a produção de material que sirva de subsídios para outros estudos a respeito da obra do poeta. Bibliografia ALVES, José Édil deLima (org.) Mario Quintana: cotidiano, lirismo e ironia. Canoas: Ed. ULBRA, 2006. ALVES, José Helder Pinheiro. Convite à dança. Revista do Centro de Estudos Portugueses, Belo Horizonte, v. 26, n. 36, p. 73 – 90, jul.- dez. 2006. BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade (notas sobre a historicidade da lírica moderna) São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986.

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O MITO E O RITO: A QUESTÃO DA PERFORMANCE NA 1ª. OLÍMPICA DE PÍNDARO Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero Fernando Brandão dos Santos Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A presente pesquisa se propõe a abordar a poesia de Píndaro considerando, do ponto de vista da execução de seus epinícios, o caráter performático das odes pindáricas, tomadas em sua dimensão de poesia-ritual. Para tanto debruçamo-nos sobre a Olímpica I com vistas a identificar a dinâmica que nela se estabelece entre mito, ritual e performance, bem como entre estes e a sociedade receptora dos mesmos no contexto de sua performance original. A problemática da performance surge como eixo central de nosso estudo por quanto é nela que se atualizam os sentidos e representatividades do discurso pindárico. Desse modo, interessa-nos particularmente considerar, na construção de nossa leitura da ode pindárica, a especificidade sócio histórica da performance bem como o modo pelo qual a religiosidade é através dela vivenciada pela coletividade. Nesse sentido objetiva-se um aprofundamento teórico da relação de mito, ritual e performance, e de como ambos operam em conjunto sobre a sociedade, moldando-a e a modificando, analisando para tanto, alguns dos pontos da Olímpica I que sugerem a presença da dinâmica mito-ritual e do caráter performático vinculados ao contexto da enunciação que a partir da tradução e da análise do texto podem ser melhor explicitados. O mito em Píndaro constitui o substrato mais denso e importante na composição de suas odes de vitória aos vencedores dos jogos atléticos, convém, no entanto, que se pontue, que a percepção destes mitos enquanto material de leitura está aquém de sua perspectiva original performatizada, articulada dentro de um contexto de celebração e nele engajada. Com efeito, segundo Claude Calame (1997), o mito, na tradição cultural da Grécia antiga, só toma forma na instância na qual é enunciado.

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De acordo com Calame, o mito: existe somente nas formas poéticas que tornam as narrativas eficazes junto a um público ativo em dadas circunstâncias rituais, sociais e culturais. Ou seja, todo enunciado mítico depende de regras (verbais e sociais) do gênero poético que o corporifica em enunciação, em condições particulares.(CALAME, 1997, p. 52).

A eficácia do mito, no contexto da poesia mélica grega, se apresenta irrevogavelmente vinculada à sua orquestração ritual (KOWALZIG, 2007), e é justamente através de sua inerente teatralidade que a narrativa mítica performatizada atua no contexto social. O mito surge assim, como uma potencialidade que se atualiza a cada performance e é por meio deste processo que a comunidade vivencia a sua religiosidade. Segundo Barbara Kowalzig (2007), o tipo de mito que mais intrinsicamente se relaciona com o ritual é o mito etiológico (do grego aitía: origem, razão). Os mitos etiológicos eram vitais para a vivência religiosa diária da comunidade, contavam a origem de ritos, costumes, cultos, templos, objetos de devoção e espaços sacralizados. A etiologia validava a prática religiosa local ao mesmo tempo em que a enquadrava em um quadro mitológico mais abrangente. Compreende-se modernamente que o mito etiológico não emana de um passado absoluto moldando a partir deste a realidade presente, mas, inversamente, manipula uma tradição flexível e renovável dispondo dela segundo as demandas sociais, culturais e estéticas do hic-et-nunc de sua enunciação. Deste modo, a etiologia se vale da manipulação do tempo como estratégia (KOWALZIG, 2007) para validar-se enquanto autoridade tradicional e atuar no contexto social. Esta tradição remodela-se segundo as circunstâncias particulares de tempo e espaço. O mito é sensível ao que o transcorrer do tempo e à especificidade do espaço lhe apresentam e, em uma perspectiva diacrônica, acompanha o presente apesar de projetar-se como algo essencialmente situado no passado. Por outro lado, o epinício de Píndaro tomado enquanto performance enquadra-se perfeitamente no âmbito do ritual no que tange à sua dinâmica social. O coro é a representação por excelência de uma voz coletiva (CAREY, 2009, p. 23) que se insere em uma conjuntura particular de normas sociais e de gênero em um espaço-tempo específico. Assim, na celebração da vitória de um príncipe em um dos Jogos Pan-helênicos, o canto projeta-se como uma representação da coletividade aristocrática, com seus valores e papéis

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sendo atualizados em relação à comunidade por meio da autoridade de um passado mítico que se quer sagrado. Com efeito, quando relacionamos um mito contado por Píndaro em uma ode de vitória com aquele a quem esta se dedica, é difícil definir em que medida a figura do herói mítico recuperada da tradição define os contornos da figura do vencedor ou vice-versa. Pois, porquanto seja fato que as circunstâncias definam a tradição convém pontuar que esta é uma via de mão dupla e o presente também tem de ceder espaço à “tradição” e ao que nela se deposita de valores e formas de pensamento. Assim, neste embate de perspectivas, ambos, presente e passado, têm de fazer concessões: o presente tende a harmonizar-se com a tradição passada representada pelo mito e o passado mítico é remodelado de acordo com as exigências do presente. Destarte, mito e ritual estabelecem uma relação de interação em que a tradição existe, mas é maleável. Enfim, convém atentar para aquilo que constitui a principal característica do ritual: o fato de que ele não é lido ou falado, mas encenado em uma performance (KOWALZIG, 2007). É no contexto da “performance ritual do canto” (CALAME, 1997, p. 62) que mito e ritual interagem e é desta situação performativa que advém seu poder social. A apresentação do canto pindárico, recuperada analiticamente a conjuntura que lhe é própria, conjuga uma série de linguagens (a poesia, a música e a dança), com vistas a comunicar, dentro do espaço cultural específico a que pertence, valores e sentidos alicerçados em sua tradição mítica e compartilhados pela coletividade. Assim, a dinâmica estratégica já proposta de transcendência de tempo opera sobre a sociedade permitindo a acomodação de suas transformações históricas e sua afirmação enquanto identidade social específica e capaz de se perpetuar através das transformações que sofre sem perder o seu sentido de continuidade. Assim sendo, o espaço da performance parece constituir, por excelência, um espaço dialético entre a coletividade humana e a dimensão religiosa do sagrado ou seja, entre o presente ritual e o passado mítico. Veja-se, neste sentido, o que diz Vernant: “Enquanto a cidade permaneceu viva, a atividade poética continuou a exercer esse papel de espelho que devolvia ao grupo humano sua própria imagem, permitindo-lhe apreender-se em sua dependência em relação ao sagrado, definir-se ante os Imortais, compreender-se naquilo que assegura

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a uma comunidade de seres perecíveis sua coesão, sua duração, sua permanência através do fluxo das gerações sucessivas”. (VERNANT, 2006, p. 16).

Contudo, convém ressaltar que esta imagem espelhada e articulada pelo canto permanece enquanto continuum só porque se modifica, não por ser estática. Mitos e ritos vão se atualizando no contexto performático e fornecendo assim uma imagem coesa da própria coletividade que os compartilha. A Primeira Ode Olímpica de Píndaro foi composta para celebrar a vitória que Hierão, tirano de Siracusa, obteve com seu cavalo Ferênicos (literalmente “portador da vitória”) na corrida de cavalos dos Jogos Olímpicos de 476 A.E.C. Em Alexandria, Aristófanes de Bizâncio escolheu-a como a primeira das odes pindáricas dedicadas a vencedores olímpicos pelo fato de o poema contar o mito de Pélops, o primeiro vencedor de uma corrida de bigas (carros tracionados por cavalos) em Olímpia e inaugurador lendário dos jogos (RACE, 1997). A ode situava-se assim na abertura do livro das Olímpicas organizado pela biblioteca de Alexandria, da qual Aristófanes era diretor. Sobre a vitória celebrada de Hierão, o canto projeta o mito de Pélops (etiologia dos Jogos Olímpicos) que, trabalhado pela linguagem poética, diga-se ritual por excelência, surge como paradigma que justifica e sacraliza a ocasião, que se perfaz como reatualização cíclica de um modelo primordial. A título de análise das questões propostas, convém que se observe a maneira como Píndaro refere-se a Hierão e ao banquete organizado em seu palácio que na verdade remetenos ao próprio evento em que o epinício é performatizado: ao rico de Hierão ditoso lar, o qual detém da justiça o cetro na fecunda Sicília, colhendo os píncaros de todos os êxitos, e gloria-se também na fina flor da música, com que folgamos, varões, amiúde em sua mesa amiga.. (v. 11-17 - Tradução própria1).

Esta referência, com efeito, transmite duas caracterizações complementares de Hierão: fala-se de seu poder (político) e de sua hospitalidade. Hierão é aquele que “detém o 1

A edição utilizada para os trechos traduzidos aqui citados foi: PINDAR. Olympian Odes, Pythian Odes; edited and translated by William H. Race. Cambridge: Harvard University Press, 1997.

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ceptro da justiça na Sicíla”, assim como na Pítica II dir-se-á: “ó chefe soberano de tantas fortificações e de tão numeroso povo” (v. 58), mas também é aquele que oferece continuamente a generosidade de sua “mesa amiga”. Píndaro elogia príncipes como seus iguais, é um louvor de aristocrata para aristocratas. Isso parece significativo em relação à conjuntura da performance: o epinício era muitas vezes performatizado em grandes simpósios públicos (CAREY, 2009, p. 32-38), criava-se uma moldura ritual que demarcava o espaço “sacralizado”, leia-se, social e simbolicamente significativo e a partir deste o canto operava sobre a realidade coletivamente compartilhada. Embora esta situação ritual possa ser entendida como secular, verifica-se um entrelaçamento entre os símbolos religiosos e sociais através dos quais o poder da performance opera sobre os ânimos da coletividade. Este poder que a performance estabelece sobre aqueles que compartilham da situação ritual vale-se da experiência estética e dos múltiplos meios de comunicação para persuadir a comunidade dos ideais que são veiculados. Não se trata de um processo retórico racional, mas da capacidade que a performance tem de abarcar a coletividade participante e conduzi-la a um estado de aceitação. A incontestabilidade da autoridade do mito performatizado dá-se em duas instâncias: em primeiro lugar porque o mito e a tradição ritual vinculam-se ao “tempo das origens” e a dimensão deste “passado sagrado” que estabelecem os paradigmas religiosos que definem a sociedade e, em segundo lugar, porque as inovações introduzidas nesta tradição são efetuadas na performance, percebidas esteticamente e endossadas não pelo aspecto racional mas pela dimensão sensorial-emocional. A vinculação entre Hierão e Pélops na ode é elaborada de forma tão natural que parece decorrer de uma dedução óbvia da realidade, mas configura, no entanto, uma estratégia narrativa capaz de conduzir do presente ritual para o passado mítico quase que imperceptivelmente aqueles que se encontram imersos no contexto performático: de Siracusa o cavaleiro rei. Lampeja-lhe a glória na colônia farta em heróis do lídio Pélops. (v. 23-25 – Tradução Própria).

Segundo Maria de Fátima Sousa e Silva (2006):

472

É sob um fulgor comum que a celebração do atual vencedor encontra réplica no seu paradigma mitológico que, como é tradição em Píndaro, ilustra o epinício. Em palavras breves, mas eficazes, Hierão e Pélops confluem no que são as linhas do retrato de um vencedor olímpico. (SOUSA E SILVA, 2006, p. 14-15).

O mito assim projetado no canto parece contagiar a figura secular de Hierão com a sacralidade de Pélops. É claro que a eficácia social e política do tipo de celebração que uma canção de louvor a um tirano constitui não pode ser ignorada, pois está intrinsecamente aliada ao sentido religioso de que o canto poético se mostra investido e, ao estabelecer uma vinculação do hic et nunc da conjuntura histórica em que está inserido com a realidade mítico-religiosa, o canto-ritual parece atuar também como mecanismo social de manutenção e de justificação. A presente pesquisa busca construir uma base teórica mínima e uma reflexão inicial acerca da articulação do mito e do ritual na poética pindárica e de como ambos se atualizam e se manifestam no contexto performático inerente à poesia lírica coral. A relação de uma composição cuja característica mais proeminente reside em sua performatividade com a conjuntura sócio histórica que lhe é própria abre novas perspectivas de trabalho e amplia os horizontes metodológicos de pesquisa sobre o autor. Pensar a poesia de Píndaro enquanto ritual parece-nos ser uma porta de entrada para a construção de novas leituras críticas e problematizações teóricas. Bibliografia CALAME, Claude. “Entre narrativa heróica e poesia ritual: o sujeito poético que canta o mito”. Letras Clássicas/ Dep. de Letras Clássicas e Vernáculas/ n. 1 (1997) – São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP, 1997. CAMPOS, Haroldo de. “Píndaro hoje”. In: ______. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. São Paulo: Editora Perspectiva: 1975. CAREY, Christopher. “The Victory Ode in Performance: The Case for the Chorus”. Classical Philology 86 (1991). The University of Chicago Press. (p. 192-200). DUCHEMIN, J. Pindare, poéte et prophéte. Paris: Lês Belles Lettres, 1955.

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VISÕES DO BRASIL: ANÁLISE DE REPRESENTAÇÕES POÉTICAS E PICTÓRICAS EM TRÊS MOMENTOS DA HISTÓRIA BRASILEIRA Sílvio Fávero João Batista Toledo Prado Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr 475

O trabalho pretende analisar as visões sobre o Brasil por meio de representações poéticas e pictóricas em três momentos fundamentais de sua história: o período colonial – século XVII – tomando como base o poema de Gregório de Matos (“Descreve o poeta a cidade do Recife em Pernambuco”) e a pintura de Frans Post (“Vista da Cidade Maurícia e do Recife”); a independência política no século XIX, por meio do poema “Caxias”, de Gonçalves Dias (presente em Primeiros Cantos) e de uma tela de Rugendas (“Paisagem na Selva Tropical Brasileira”); e a modernização sócio-econômica no século XX, como poema “Paisagem nº 2”, de Mário de Andrade (Pauliceia Desvairada) e a tela São Paulo, de Tarsila do Amaral. Pretende-se, por meio do levantamento dos aspectos estruturais e temáticos dessas seis obras, identificar as contribuições desses criadores não só na construção de um repertório de “imagens” sobre o Brasil, bem como nas diferentes concepções de uma brasilidade. Desde o advento do Romantismo, na literatura brasileira, tornou-se questão premente para nossos autores e, por extensão para a historiografia literária, aplicar a noção de nacionalidade à nossa produção artística, ou seja, buscar explicações, exemplos ou justificativas que sustentassem o emprego do gentílico “brasileira” ao nos referirmos a nossa literatura e a nossa arte. E mais, que pudessem tornar coerente um conceito de nacionalidade aplicado ao nosso caso específico: Nação periférica – em relação à Europa – recém-fundada nos trópicos, ao mesmo tempo, herdeira da cultura e história europeias e ávido por diferenciar-se delas. Sucessivamente, a partir do Romantismo, os movimentos literários e as correntes teóricas ligadas a eles procuraram estabelecer os parâmetros que determinariam a origem e a forma de nossa literatura. Seus critérios variaram: estético-temático (a identificação de elementos de estilo e de linguagem ou a enumeração de índices de nacionalidade); histórico-ideológico (a construção de instituições nacionais); étnico-antropológico (a definição do surgimento de um “homem brasileiro”, formado a partir da miscigenação entre brancos, índios e europeus, que representaria em sua origem o “espírito brasileiro”). Como representantes dos primeiros, aparecem os europeus que, em seus esboços históricos e críticas, marcaram os aspectos da nova literatura. Procuraram estabelecer relações entre o fazer poético, e a própria função do poeta, e a natureza que o cerca e 476

fornece ao mesmo tempo o tema, a inspiração e a fonte – em sentido denotativo e não metafórico – de sua poesia. Toma-se o termo natureza como aquilo que tem existência objetiva, externa ao sujeito que a conhece e, portanto, independente de suas ações. E, em um sentido mais restrito, paisagem ou cenário natural que serve não apenas como pano de fundo sobre o qual se desenrola o drama humano, mas também como fator determinante na constituição desse drama. Cabe ao poeta, portanto, uma dupla função: de representar o que se definiria como poesia ou literatura brasileira por meio da natureza que se impunha e, ao fazer isso, construir o mito de nossa origem nacional cujos esteios seriam, além da citada natureza, o índio e a língua nacional, esta devidamente oposta à portuguesa pela contribuição do léxico indígena. Movidos por essa convicção a respeito do papel da natureza na constituição de nossa arte e de nossa literatura, esses mesmos estrangeiros buscaram nas obras do período colonial exemplos dessa tendência que justificassem seus argumentos. Como faz Ferdinand Denis ao analisar a obra de Santa Rita Durão - Caramuru . Ou negativamente Garrett ao lamentar sua ausência na obra de Tomás Antônio Gonzaga. Eles serão seguidos pelos poetas da 1ª. geração do Romantismo (Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães) que, tanto em seus poemas quanto nos prefácios que escreveram para eles, procuram definir nossa identidade nacional pelos elementos que a constituiriam. Quando, a partir do Realismo/Naturalismo no final do século XIX,

buscou-se

estabelecer uma explicação social ou etnológica para a origem de nossa literatura, ainda assim a natureza permanece como índice fundamental na definição do caráter brasileiro e, por isso mesmo, na definição de nossa nacionalidade. Elemento formador, inspirador, direcionador ou mesmo fator mesológico a ser corrigido, a natureza está presente em poemas e quadros desde o mais remoto período colonial. O que nos interessa é, em primeiro lugar, a partir da constatação da importância atribuída a ela dentro de nossa literatura, analisar como foi representada, e com que função, nas paisagens que constituem os temas dos poemas e das telas analisados no trabalho. Porém, embora a visão romântica tenha predominado seja na construção de um retrospecto que privilegiava, na seleção de obras do período colonial, aquelas que confirmassem o caráter positivo de uma paisagem exuberante , seja no estabelecimento de um parâmetro que se repetiria nos movimentos artísticos posteriores, optamos pela escolha

477

de poemas e pinturas que representassem algum tipo de inflexão em relação à visada nacionalista. O critério de seleção das obras para a pesquisa foi, a princípio, histórico-temático. Sua coincidência, dentro de cada um dos três pares de obras, facilita a comparação entre as duas diferentes formas de representação artística (poesia e pintura), mas impõe a necessidade de uma abordagem teórica que aprofunde tal comparação para que se ultrapasse a simples constatação de convergências e divergências dentro do plano históricotemático. Não há entre os autores selecionados uma inspiração mútua, apesar da proximidade entre Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, ou qualquer citação, retomada, homenagem de um pelo outro. Não se nota também qualquer tentativa de fugirem ao campo e procedimentos específicos de cada uma das artes, criando-se, por exemplo, um “poema plástico” ou uma “pintura discursiva”. As teorias que nortearão a análise serão: as relações entre mito e linguagem estabelecidas pela obra de Cassirer; as relações entre signo, significado e significante na construção do mito, presentes na obra de Barthes; os conceitos de iconografia e iconologia da obra de Panofsky; e os conceitos de espaço genético e espaço plástico de Francastel. Bibliografia ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1970. ALDRICH, Virgil C.. Filosofia da arte. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar , 1969. ANDRADE, Mário de. Poesias completas. São Paulo: Círculo do Livro, sd. ARGAN, Giulio C. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. Tradução de Denise Bottman e Frederico Carott. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ______. A Arte Moderna na Europa: de Hogarth a Picasso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ______. Clássico anticlássico: o Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. Tradução de Lorenzo Mammi. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.

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A REPRESENTAÇÃO DA VOZ DA MULHER NA POESIA DE ROSALÍA DE CASTRO Tais Matheus da Silva (CAPES) María Dolores Aybar-Ramírez Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A instauração do novo paradigma mental proposto pelas ideias Ilustradas no século XVIII, fundamentado na oposição Natureza/Razão, gerou uma série de dicotomias não paritárias, inclusive no que diz respeito às relações entre os sexos feminino e masculino, como articuladores de outros pares dicotômicos como coração/razão, passividade/atividade, abstrato/concreto. A falsidade dos conceitos de liberdade e independência e os desequilíbrios internos da lógica ilustrada propiciaram o surgimento de discursos marginais. Ignorada pelos ideais burgueses, a voz feminina ecoa como um canto marginal, pois às mulheres, principal sustento de legitimação do paradigma ilustrado, foi imposta a condição de subordinação, de reclusão social, e sua atuação, limitada à esfera do privado. Contudo, por meio da escrita literária, algumas escritoras puderam transitar na esfera do público, e assim adquirir uma posição de respeito e destaque na sociedade, o que lhes permitiu reivindicar, ainda que timidamente, a obtenção das promessas e princípios ilustrados de cidadania, liberdade, igualdade e legalidade. (DUEÑAS, 2009, p.41). Na Espanha, a produção literária feminina durante os séculos XVIII e XIX é objeto de um debate fundamentado em discursos misóginos. Por um lado, esgrimia-se o argumento da virtude para rechaçar as ambições literárias das escritoras; por outro lado, aceitava-se a escritura feminina desde que se respeitassem certos limites (OCAÑA, 2009). Evidentemente, tais limites eram marcados pelas paredes do lar. Um exemplo claro da condição da mulher escritora em meio a essa efervescência social é Rosalía de Castro. Nascida em Santiago de Compostela em 1837, na condição de bastardia, tornou-se um símbolo galego em virtude das obras publicadas em língua galega e da reprodução literária do imaginário e da condição do povo galego. 481

A produção literária de Rosalía de Castro transita entre prosa e poesia, sendo esta última sua obra mais significativa. A popularidade alcançada por sua primeira publicação em língua galega, Cantares gallegos (1863), posicionou-a entre os grandes nomes do Rexurdimiento cultural gallego 1, haja vista o caráter folclórico da temática dos poemas. Em 1880 publica Follas novas, também em língua galega, porém muito distante dos Cantares, e mais próximo ao estilo agressivo e triste que assume na publicação de En las orillas del Sar (1884), em língua castelhana. As duas últimas obras poéticas, Follas novas e En las orillas del Sar, carregam uma dissonância provocada tanto pelo tratamento formal de alguns eixos temáticos recorrentes, como pelo diálogo que promove entre vozes masculinas e femininas. Representação de consciências autônomas, na poesia de Rosalía de Castro as vozes femininas e masculinas são intercaladas e contrapostas na entoação de uma temática intensa. Tal dissonância, evidentemente, custou-lhe críticas ferrenhas, pois a escrita rosaliana corrobora a articulação da voz feminina fora dos paradigmas ideológicos e estéticos permitidos às mulheres do século XIX. Hoje, são possíveis leituras desvinculadas da tradição patriarcal monologizante, que propiciam a revisão do lugar ocupado por esta escritora no cânon da literatura universal e a divulgação da sua obra como uma escrita autônoma e feminina. Com este trabalho, propomos, pois, integrar o coro de vozes que numa dupla tarefa, arqueológica e estética, tenta debruçar-se sobre a lírica de Rosalía para dela desentranhar aspectos pouco estudados, como o discurso da mulher do século XIX, construído dialogicamente a outros discursos, dentro do universo poético da escritora. Segundo Caballé (2004, p. 12) “la literatura fue el espacio mental desde el cual [as mulheres] pudieron luchar por su autonomia”. Deste modo, nosso intento justifica-se pela necessidade de estudos sistemáticos acerca dos procedimentos de criação literária, que permitam a mulher integrar o grande coro social, seja como objeto da escrita, seja como sujeito independente na produção literária, como Rosalía de Castro, cuja obra “tiene dos proyecciones cardinales: el contenido social y el vital y existencial”. (RICO, 1983, p. 246).

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Movimento tipicamente romântico, de cunho nacionalista, reivindicava uma identidade galega a partir da revalorização da cultura popular e folclore galego.

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Nestes termos, no âmbito dos Estudos Literários, a obra de Rosalía de Castro é, comumente, estudada sob três perspectivas: a) Inovação métrica e rítmica: Durante um período em que as inovações métricas eram raras em relação ao uso de formas fixas como o soneto, Rosalía de Castro usava versos de quatorze, dezesseis, dezenove sílabas. Esta quase liberdade formal fez da obra de Castro um precedente para as inovações introduzidas pelos artistas do modernismo espanhol (CERNUDA, p. 323, 2003); b) Recorrência de símbolos da cultura galega: Os poemas de Cantares gallegos e outros textos escritos por Castro fazem referências diretas à região da Galícia, seja pelas paisagens, seja pelo resgate da tradição oral galega, seja pela expressão do sentimento do povo galego frente à ordem liberal que se impôs ao longo do século XIX. Por este viés crítico, explora-se a posição de Rosalía de Castro no Rexurdimiento gallego. O aspecto regionalista da poesia de Castro também é uma construção desta crítica que, de modo involuntário, reduz a obra rosaliana à temática regional ao mitificá-la, torná-la símbolo do imaginário galego, criando, portanto uma convenção de leitura e interpretação fundamentadas na tradição oral e folclore galego; por fim, c) Ginocrítica: baseada nos estudos de gênero, este viés crítico recupera questões sócio históricas relativas à condição da mulher, a partir das estratégias estéticas utilizadas na obra rosaliana para representar a mulher e seu universo. Vale destacar que esta proposta de reflexão encontra, ainda hoje, obstáculos no âmbito dos Estudos literários em decorrência do chamado território selvagem da crítica feminista (SHOWALTER, 1994) e as dificuldades de travar diálogos com as teorias e metodologias de análise do texto literário. Com o propósito de suplantar os obstáculos impostos aos estudos de gênero, a aproximação entre literatura e as correntes oriundas do feminismo ocasionou não apenas uma autentica revolução nos estudos literários e demais correntes humanistas, senão que também abriu novos horizontes desde os quais é possível conhecer a literatura, seja produzida por homens ou mulheres. Neste contexto, projetamos integrar os esforços coletivos de recuperação da produção literária feminina, que vem se consolidando a partir da década de 1980, visando a investigação da obra poética de Rosalía de Castro. Assim, nosso objetivo é construir um diálogo entre os estudos feministas constitutivamente dialógicos, o dialogismo bakhtiniano e as constribuições da crítica rosaliana no que tange as inovações da sua poesia, na pesquisa da representação da voz da mulher materializada nos

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poemas da escritora galega. Com efeito, o corpus deste trabalho é composto por poemas selecionados dos livros Cantares gallegos, Follas Novas e En las orillas del Sar, nos quais se torna patente a voz da mulher em diálogo com outras vozes, ambas histórica e poeticamente construídas. Entendemos que a representação do diálogo entre vozes femininas e masculinas – considerando que o discurso religioso, científico e do Estado eram, exclusivamente, de domínio e constituição masculina –, como consciências não convertidas em objeto umas das outras cria uma tensão dissonante na poesia de Rosalía de Castro, tensão esta confirmada pelas inovações formais da sua obra, porém pouco mencionada pela crítica. Deste modo, a originalidade desta pesquisa não resulta apenas da aplicação da crítica literária feminista em sua vertente mais dialógica no estudo da obra rosaliana, como também se mostra necessária à divulgação da escrita de Rosalía de Castro como materialização textual de uma experiência feminina, sócio-econômica, histórica e literária. Esta pesquisa encontra-se em fase de redação do texto para qualificação, de modo que em nossas análises buscamos investigar a representação da voz da mulher nas poesias de Rosalía de Castro, enquanto fenômeno dialógico e propulsor de dissonâncias e tensões, sob a perspectiva da crítica dialógica de Mikhail Bakhtin aliada aos estudos feministas em sua vertente mais dialógica. Ademais, os objetivos específicos deste projeto são: - Analisar as relações intertextuais na construção da representação de vozes independentes nos três momentos de produção da escritora galega; - Verificar a possível influencia do fator linguístico no modo de representação dessas vozes, visto que Cantares gallegos e Follas novas são escritos em língua galega e En las orillas del Sar, em língua castelhana; - A partir das análises, explicitar o lugar ocupado na poética rosaliana pelo debate acerca da condição da mulher e seus direitos, ancorando sua produção no momento histórico. Bibliografia ALBERT ROBATTO, M. Rosalía de Castro y la condición femenina. Madrid: 1981.

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FIGURATIVIDADE NA POESIA BUCÓLICA DE VIRGÍLIO

Thalita Morato Ferreira (CAPES) Márcio Thamos Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP/FCLAr 1.

Introdução e Justificativa

Com o contínuo desenvolvimento da Ciência Semiótica, os estudos sobre a linguagem têm se difundido rapidamente. Cumpre-nos, assim, a tarefa de utilizar os recursos oferecidos por essa moderna análise metodológica, a fim de que os estudos sobre a língua e literatura, da cultura em sentido amplo, continuem se expandindo. No que diz respeito à Língua e à Literatura Latinas, nota-se que um texto escrito nessa língua antiga, antes mesmo de se ponderarem suas qualidades literárias, costuma ser valorizado pelo simples fato de ter sido escrito na língua dos antigos romanos, especialmente se o autor tiver pertencido ao chamado “Período Clássico”. Esse conceito de uma “superlíngua” capaz de, quase por si mesma, fazer de todo enunciado um monumento perene, certamente não mais se justifica face à ciência da linguagem em seu estágio atual. Esse entendimento sobre a língua latina acaba mesmo por prejudicar a recepção dos próprios textos nela produzidos, pois, como observa Alceu Dias Lima, o ensino tradicional marginaliza os fatos da linguagem conotativa em latim, sem poupar os da métrica, nunca suficientemente apreciados em seu papel primordial no engendramento do sentido. Do sentido poético, em particular. (1995, p. 55).

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Por outro lado, a Ciência Semiótica que, primeiro, preocupou-se com a análise do plano do conteúdo, sob a forma de um percurso gerativo do sentido, encontra-se interessada em rever essa questão. Hoje, ao reconhecer os sistemas semissimbólicos que se atualizam com freqüência nos textos poéticos (aqueles que procuram obter efeitos de recriação da realidade), a Semiótica passa a se interessar pelos procedimentos da expressão. Nesse sentido, com a análise dos recursos da figuratividade sob a perspectiva de uma poética da expressão, tem-se os procedimentos da iconização, etapa final da figurativização do texto, que têm como objetivo criar uma ilusão ou impressão referencial, quando levados às últimas consequências na manipulação artística da linguagem. Trata-se da construção de imagens capazes de fazer alusão ao mundo cultural a que pertencem, provocando no leitor a sensação de que a palavra, construída e rearranjada em um enunciado, pelo jogo aliterativo e melódico, se aproxima da “realidade”, de modo que a palavra coincida de todo com os recursos atualmente considerados como próprios do semissimbolismo ao “tentar ser”/ “tentar parecer” o objeto do mundo natural. Com base nessas considerações, o presente trabalho procura analisar a figuratividade poética no texto latino, valendo-se do arcabouço teórico que nos oferecem a Linguística, a Poética, a Semiótica Literária, enfim, a Estilística em sentido amplo. Para tanto, a pesquisa está fundamentada numa bibliografia razoavelmente ampla, constituída sobretudo de obras tradicionais e consagradas, sem, no entanto, deixar de interessar-se por trabalhos de investigação acadêmica mais recentes que possam ser úteis para o rendimento das análises. Algumas delas constam da Bibliografia Básica (cf. item 4.). Dentre as obras que fornecem uma orientação básica para o andamento do projeto, devem-se destacar: a) Uma estranha língua?: questões de linguagem e de método (1995), em que Alceu Dias Lima desenvolve uma reflexão verdadeiramente profunda e original sobre a língua e a cultura em geral. Nesse livro, a visão estereotipada do latim como “língua morta” é tratada de forma contundente, e avanços da Linguística, da Poética e da Semiótica Literária harmonizam-se de modo a abrir caminho para um entendimento atualizado do latim como língua viva do passado, vale dizer, língua materna dos antigos romanos, sem nunca dissociá-la da produção literária de seus falantes legítimos. b) Caminhos da semiótica literária (2003), em que Denis Bertrand, unindo desenvolvimento de métodos e análise de textos, identifica na obra literária quatro grandes

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dimensões, a saber, a enunciativa, a figurativa, a narrativa e a passional (ou afetiva). Nesse livro, as noções tradicionais da análise literária, da retórica à estilística, são discutidas a partir da perspectiva de uma teoria global do discurso; sendo de interesse direto para o projeto em questão principalmente a “Parte 3”, que trata da figuratividade em seus vários aspectos. c) Dicionário de Semiótica (2008), de Algirdas-Julien Greimas e Joseph Courtés, que, tendo-se tornado já um clássico da ciência da linguagem, permanece inteiramente atual, pois constitui “um instrumento ainda não superado de compreensão das aquisições da semiótica e também de apresentação de possibilidades e perspectivas de trabalho”, de acordo com José Luiz Fiorin, no prefácio à recente edição aqui referida (p. 9). d) As armas e o varão: leitura e tradução do canto I da Eneida (THAMOS, 2007), tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/CAr, que aguarda publicação pela EdUSP. O trabalho é composto de ensaios originais que analisam o poema de Virgílio do ponto de vista da expressão, ampliando a percepção da leitura da poesia clássica para além dos limites tradicionais ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto. 2.

Corpus:

Publius Vergilius Maro, autor do período clássico (século I a.C), aproximadamente entre 41 e 37 a.C, compôs uma coletânea de dez poemas pastoris sob o título de Bucólicas. Nesta obra, inspirado por Teócrito (século IV a.C), poeta siracusano responsável pela criação do gênero bucólico ou pastoril, o poeta latino constrói personagens e ambientes campestres, valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos e contornos estilísticos. Neste projeto, procura-se averiguar os recursos da figuratividade poética da expressão nesses poemas pastoris, notadamente, as bucólicas de número dois, quatro, seis, oito e dez. A seleção do corpus se justifica pelo aspecto formal que esses poemas apresentam. Caracterizam-se, de acordo com a tradição dos Estudos Clássicos, como “monódias”, enquanto os poemas de numeração ímpar são chamados de “cantos amebeus”, pela inserção de diálogos entre pastores, de um modo geral ausentes nas bucólicas pares. Além disso, a escolha desses textos e, portanto, a opção por um “recorte” da obra de Virgílio, se faz com

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vistas à necessidade de se traduzir, como trabalho inicial, os cinco poemas tomados para análise, a fim de que se possa averiguar os aspectos da poeticidade e figuratividade ali engendrados. 3. Metodologia: O desenvolvimento do projeto tem procedido da seguinte forma: a) A partir de leituras reflexivas acerca das noções de poeticidade e figuratividade, busca-se uma introdução aos conceitos fundamentais da Semiótica, destacando aqueles que têm relevância para o andamento da pesquisa, ou seja, para análise dos poemas pastoris de Virgílio. b) A partir dos conceitos levantados, tem sido investigada a estrutura semiótica dos textos (as Bucólicas de numeração par), com o intuito de colocar em destaque os recursos da figuratividade poética então reconhecíveis. A figuratividade, como se sabe, Sugere espontaneamente a semelhança, a representação, a imitação do mundo pela disposição das formas numa superfície. Ultrapassando porém o universo particular da expressão plástica que o viu nascer, o conceito semiótico de figuratividade foi estendido a todas as linguagens, tanto verbais quanto não-verbais, para designar esta propriedade que elas têm em comum de produzir e restituir parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais concretas. (BERTRAND, 2003, p. 154).

3.

PLANO DE TRABALHO E CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO DO PROJETO:

No primeiro semestre de 2012 foram realizadas as análises dos cinco poemas selecionados, com destaque para os efeitos de sentido que contribuem para a formação do sentido poético e estético de um texto literário. Assim, com vistas à dimensão enunciativa e figurativa dos poemas pastoris de Virgílio, esta etapa concentrou-se na descrição metalingüística dos recursos básicos da figuratividade poética. Além disso, esta etapa destinou-se à elaboração da redação preliminar do exame geral de qualificação, que deverá acontecer até o final de outubro. Bibliografia BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Trad. Grupo Casa. Bauru, SP: EDUSC, 2003 CARDOSO, Zélia A. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989.

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GREIMAS, Algirdas Julien & COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Contexto, 2008. GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 4a ed. Trad. Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. HASEGAWA, Alexandre Pinheiro. Os limites do gênero bucólico em Vergílio. 2005. 262 f. Dissertação (Mestrado em Letras (Letras Clássicas)) - Universidade de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 18.ed. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2001. LIMA, A. Dias. Uma estranha língua ?: Questões de linguagem e de método. São Paulo: UNESP, 1995. MARTINS, Nilce Sant’anna. Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa. 4a ed. São Paulo: Edusp, 2008. MENDES, João Pedro. Construção e arte das bucólicas de Virgílio. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica: cultura romana (vol. II). 3a ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. SAUSSURE, F. de. Curso de linguística geral. 25.ed. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2003. THAMOS, Márcio. As armas e o varão: leitura e tradução do canto I da Eneida. 318f. Tese (Doutorado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007. THAMOS, Márcio. Poesia e imitação: a busca da expressão concreta. 145f. Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 1998. THAMOS, Márcio. Figuratividade na poesia. Itinerários, Araraquara, n.20, p.101-119, 2003 VIRGILE. Bucoliques. Texte établi et traduit par Henri Goelzer. Paris: Les Belles Lettres, 1956.

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VIRGÍLIO. Bucólicas. Trad. e comentário Raimundo Carvalho, em apêndice tradução de Odorico Mendes. Belo Horizonte: Tessitura: Crisálisa, 2005.

REFLEXÕES SOBRE A POÉTICA DA VISUALIDADE Thiago Buoro (CAPES) Fabiane Renata Borsato Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Nossa pesquisa tem como objetivo aprofundar a reflexão sobre a Poesia Visual em sua natureza de linguagem marcada pela convergência dos domínios literários e plásticos. A Poesia Visual está presente em diversos momentos estéticos – sobretudo em nossa atual modernidade múltipla – e se consolida como uma espécie de literatura fora do cânone, praticada por poetas que buscam experimentar a potencialidade da língua. Sob a denominação de poesia experimental, no início do século XX, muitas pesquisas novas foram feitas com a palavra: além das que exploraram o substrato fônico, as mais frequentes são aquelas que enfatizaram o caráter visual dos signos verbais. E essa visualidade ganha cada vez mais intensidade: atinge os matizes de cor, as texturas, a tridimensionalidade e até o movimento. Logo, a poesia visual, inevitavelmente, encontra as Artes Plásticas, que também agregam em suas experiências a linguagem verbal, como demonstra o estudo de Wilcon Joia Pereira (1976). O termo “Poesia Visual” é usado de maneira indiscriminada para designar uma vasta produção de textos que associam signos verbais e signos visuais, textos de tessitura diversa, cruzamento de códigos e linguagens. São várias as tentativas teóricas de defini-lo claramente, tomadas de campos disciplinares distintos, pois que, uma vez situado no limite de linguagens, interessa tanto à literatura quanto às artes visuais. O conflito é da ordem, inclusive, da terminologia: poesia e visual. Devemos entendê-la como a fusão de duas semioses, poesia de expressão verbal voltada naturalmente para o olhar. E o visual aqui parece adjetivar a poesia, não o contrário. Isso significa que o domínio literário do poema empresta uma atribuição própria do domínio visual. Mas esse empréstimo do visual não é nada que a poesia, ela mesma, não possua desde que a língua passou a ser escrita, materializada num suporte. A língua, então, além da

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oralidade, ganhou uma dimensão pictórica. Para ser apreendida, deveria ser visualizada. E é natural que essa dimensão fosse explorada ao longo de toda história. Registram-se textos poéticos visuais desde a Grécia Antiga, com os conhecidos Símeas de Rodes e Dosíades de Creta, passando pela Idade Média, pelo Renascimento, pelo Barroco, pela modernidade na qual se destacam os concretistas brasileiros e pós-concretistas, até nossos dias. John M. Bennett (2008) investiga esse assunto na introdução da antologia de poemas visuais contemporâneos: É bem possível que a poesia começou antes de ser escrita, num contexto social mnemônico de histórias, notícias e mitos e, portanto, uma forma oral. Mas logo que começou a ser escrita, tornou-se também uma forma visual. (p.1)

Se a língua escrita já possui visualidade, é no gênero da poesia, particularmente, que essa visualidade será levada ao extremo. A narrativa comumente não explora o espaço em branco do suporte em que é gravada. A poesia, pelo contrário, através da versificação, organiza-se espacialmente na página, integrando significadamente os espaços vazios. Todo poema, portanto, possui uma marcada visualidade. Basta olharmos rapidamente um soneto, para reconhecermos seu proeminente caráter figural, não sendo necessário sequer contar seus versos. Essa diferença entre a prosa e a poesia, aliás, é uma das mais fundamentais em suas distinções. Importa lembrar que estamos tratando exclusivamente do poema em verso, aquele que explora o estrato fônico da língua, realizando as cesuras conforme as razões métricas ou rítmicas. Não estamos considerando, portanto, o poema em prosa, que Jean Cohen (1966) caracteriza como “poema semântico”, ou seja, mais afeito ao discurso retórico que a construções sonoras. Visualmente, o poema em prosa é idêntico a qualquer texto em prosa. Mas a diferenciação entre oralidade e visualidade não é suficiente – senão numa abordagem simplificadora – para compreendermos a verdadeira natureza do poema visual, na medida em que este, nas línguas ocidentais, emprega signos lingüísticos de base fonética. O poeta português E. M. de Melo e Castro (1993) discorre sobre a relação inevitável entre som e imagem em qualquer manifestação poética: os poemas discursivos que tendem para a musicalidade atingem o visual uma vez que constroem figuras imagéticas e os poemas experimentais da visualidade atingem a musicalidade ao explorar

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os valores fonéticos dos signos. Os dois sistemas semióticos, o oral e o visual, interpõem-se na estrutura do poema, como formularam, por exemplo, sob o termo verbovocovisual, os poetas do grupo Noigandres. Em termos linguísticos, um poema é composto de signos verbais, que possuem basicamente um significante e um significado, em relações sintático, semântica e fonológicas complexas. A função poética, conforme Jakobson (1995, p.128), ao “[...] promover o caráter palpável dos signos, aprofunda a dicotomia fundamental de signos e objetos.” Isso quer dizer que a dicotomia divide, de um lado, o signo em sua integridade forma-conteúdo e, de outro lado, a referência ao contexto. A função poética, portanto, não fragmenta o signo, ela simplesmente atesta o afastamento da intenção de referência a um dado contexto – papel da função referencial. O trabalho com o signo é tão fundamental a ponto de percebemos, nos poemas, as relações intrincadas entre a expressão e o plano semântico: as rimas e aliterações (significante) em pleno acordo com seus sentidos (significado). Do outro lado da dicotomia está o objeto, que possui importância secundária. No caso do poema visual, o “caráter palpável” dos signos assenta-se, especialmente, sobre a relação visual que o significante mantém com o significado. A mensagem que o poeta visual quer passar está determinada no plano expressivo da visualidade dos signos. Todo signo verbal, quando escrito, possui sua porção de significante visual. Para usarmos a terminologia de Pierce, todo símbolo verbal tem sua qualidade iconográfica, conservada desde os primórdios da escrita pictográfica, em que as unidades representacionais configuravam-se de acordo com a forma das coisas representadas. Todo símbolo verbal, por mais arbitrário que seja, é também um elemento visual e pôde ser incluído por Donis A. Dondis (2003, p.91) no “nível simbólico” das composições visuais. Quando o poeta experimental explora o caráter visual do signo linguístico, motivado pelo jogo signficante-significado, criando a figuratividade do poema, compreendemos claramente o efeito poético. O problema aparece quando o poeta abdica de obter a visualidade por meio da relação entre os componentes do signo e passa a investigar a carga visual da palavra do mesmo modo como fazem os artistas plásticos. Mais ainda, quando passa a convocar para o texto elementos visuais que, a princípio, não dispõem da mesma lógica simbólica dos signos verbais.

Os

poemas

semióticos,

os

poemas-processos

e

muitas

composições

493

contemporâneas consideradas poemas visuais utilizam-se somente de figuras geométricas – signos iconográficos, por natureza, sem qualquer significado pré-estabelecido –, portanto não “promovem o caráter palpável dos signos”. Se se perde a dimensão significativa do signo verbal, chega-se a um traçado tipográfico, cuja apropriação estética interessa mais aos artistas plásticos, habilitados a investigar a forma, que aos poetas dotados da capacidade de articular unidades simbólicas. Essa é a conclusão a que chega Philadelpho Menezes (1991, p.161-162). Logo, poemas como “LIFE” e “ORGANISMO”, de Décio Pignatari, os poemas do concretismo dos anos 50, os logogramas de Pedro Xisto, poemas de Melo e Castro, Joan Brossa, e de muitos artistas da Mail Art, como Clemente Padín, e John Bennett, são exemplos de como essa materialidade verbal se sustenta no poema pela carga semântica que possui, num elo inseparável de signo-sintaxe-semântica. Porém, se, com Melo e Castro (1993, p.223), apurarmos nossa investigação no campo do signo icônico, observamos que este também possui carga semântica, não na mesma medida que os símbolos linguísticos, pois que se relacionam menos arbitrariamente com o referente. Mesmo as formas não miméticas, como o quadrado, o retângulo e o círculo, investem-se de valor semântico ao serem absorvidas pelo espectador. Considerando Peirce, os signos icônicos empregados nas obras plásticas podem se tornar símbolos, de modo que sua propriedade representativa perca a referência direta por semelhança e passe a ganhar um significado convencional ou interpretativo. A fundamental característica da poesia visual, a relação intersemiótica – relação entre códigos com a equivalência de signos interpretantes – dissolve a fronteira de linguagens. Quando o ícone é atraído para o poema, ocorre um processo inevitável de contaminação: a palavra torna-se figura e a figura assimila o estatuto verbal. Para empregarmos os termos de Jakobson (1995, p.149), “a similaridade superposta à contiguidade” gera a fusão entre o ícone e a palavra aproximados no texto: é o que entendemos por totalidade da imagem poética, que aqui é a própria imagem plástica, ou o que Décio Pignatari (1968, p.36) denomina “signo-síntese”. A significação nasce do resultado dessa fusão. Mas mesmo a possibilidade de informação de significados, pela correspondência entre a expressão e o plano do conteúdo, parece não bastar a uma designação de poesia ao trabalho estético que se nos apresenta como naturalmente visual, principalmente os que

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dispensam em absoluto os signos verbais. Teríamos que saber até que ponto a intersemiótica

autoriza

a

transposição

de

termos

conceituais.

Ou

assumimos

definitivamente a existência de uma categoria artística em que a poesia visual tenha suas próprias leis. Sólo falta discutir si la connotación “poesia” incluye la determinación de lo semántico en la obra literaria. Este es um punto crucial sobre el cual no hay acuerdo. Para unos, si el poema no es capaz de significar o expresar literariamente um sentido, cualquiera sea la forma que assuma, no es poesia. Para otros, reducir el poema exclusivamente a lo literario es limitar torpemente sus possibilidades de expresión. (PADÍN, 1993, p.64).

Wilcon Joia Pereira (1976) oferece-nos razões para confiarmos um novo domínio de investigação à poesia visual. Partindo da análise das inscrições de signos verbais nos trabalhos de artistas plásticos, chega praticamente aonde os estudos literários da poesia visual chegaram: ao lugar do inter-código, cuja recepção perceptiva dá-se de maneira dupla, pelo ler e pelo ver. Sente, inclusive, necessidade de criar um termo, escritema – escrita que é tema do trabalho visual –, para designar essa espécie de figura composta de signo verbal, a palavra explorada na sua dimensão plástica, estritamente visual, que remonta à inscrição vigorosa dos pictogramas e ideogramas da escrita hieroglífica. Exatamente aquilo que manifesta a palavra do poema visual: seu poder de matéria trabalhada, forjada, gravada na pedra e no papel, por meio da ferramenta bruta, da caneta ou através da impressão à máquina, mas sempre palavra-coisa capaz de seduzir e comunicar pela beleza e energia de sua forma. Diante dessa indefinição dos atributos estéticos e comunicacionais do conjunto de experimentos plásticos e literários com a palavra, conjunto esse que indistintamente denominamos Poesia Visual, reconhecemos a relevância de nosso proposta de pesquisa. Entendemos necessário prosseguir na rica investigação que poucos, como Wilcon Joia Pereira, empreenderam em torno da palavra-imagem. A metodologia que estamos adotando neste trabalho de natureza teórica baseia-se no processo de raciocínio indutivo-dialético, no qual se realizam basicamente as seguintes etapas: seleção, comparação, abstração e generalização. Com a finalidade de estudarmos as teorias da poesia visual e as leis gerais que dinamizam essa arte, o método inclui pesquisa: a) histórica: pesquisa das origens passadas e evolutivas para compreensão da natureza e 495

função do fenômeno; b) comparativa: verificar semelhanças, divergências entre as artes, analisar as relações intersemióticas e explicá-las; c) Interpretativa: relações e ajustamentos entre os componentes artísticos. Quanto às obras teóricas que devem sustentar a pesquisa, estamos utilizando essencialmente dois tipos de fonte: a) as referências sobre a história e a linguagem específica da poesia visual; b) as teorias gerais sobre os códigos linguístico e visual em composições estéticas, tal como a intersemiose. No que se refere ao primeiro, estamos considerando a fortuna crítica de nossos poetas concretistas: Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari; do grande nome do concretismo em Portugal: Melo e Castro; dos brasileiros contemporâneos que se dedicaram e continuam se dedicando ao assunto, como Philadelfho Menezes, Antonio Miranda, Claudio Daniel, Omar Khouri, Sheila Maués; de tantos nomes internacionais reunidos, por exemplo, nas edições da revista brasileira Dimensão, como o uruguaio Clemente Padín; dos poetas visuais contemporâneos com os quais podemos ter contato direto através da Mail Art, como é o caso do norte-americano John M. Bennett e do francês Rémy Pénard. Já o segundo tipo compreende as teorias lingüísticas e literárias de Roman Jakobson, Tzvetan Todorov, Gérard Genette, Jean Cohen, Ezra Pound, Paul Valéry, Alfredo Bosi, Antônio Cândido, entre outros; as proposições semióticas como as de Charles Sanders Peirce e daqueles que hoje empregam sua teoria em abordagens da imagem, Lúcia Santaella e Winfried Nöth; assim como as investigações em torno da teoria da comunicação de Marshall McLuhan; as teorias da imagem de Doris Dondis, Fayga Ostrower, Serguei Eisenstein e Wilcon Joia Pereira. No primeiro semestre, cursamos três disciplinas ministradas por professores de nossa unidade, as quais nos forneceram importantes discussões em torno do tema de nossa pesquisa, resultando na elaboração de monografias. Em Poesia e suas formas, a professora doutora Guacira Marcondes Machado Leite, valendo-se de autores como Octávio Paz, Todorov, Genette e Tadié, abordou os gêneros híbridos da modernidade: o poema em prosa, a prosa poética, a narrativa poética e o poema visual. Na disciplina pudemos explorar a noção de espaço na literatura – característica determinante dos poemas visuais. O professor doutor Antônio Donizeti Pires, em Poesia brasileira contemporânea: questões crítico-

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teóricas, levou-nos a refletir sobre a constituição da atual lírica brasileira, em cuja multiplicidade estilística encontramos a tendência para a visualidade, herdeira direta do laboratório concretista. Muitos autores foram estudados, dos poetas aos críticos, dentre os quais: Haroldo de Campos, Paulo Franchetti, Alfredo Bosi, Célia Pedrosa, Marcos Siscar, Benedito Nunes e Michel Déguy. Por fim, a disciplina Palavra e imagem, do professor doutor Márcio Thamos, pôs-nos em contato com o problema central da poesia visual, o intercódigo, através da leitura de, entre outros, Sierguéi Eisenstein, Wassily Kandinsky e Ernest Cassirer. Atualmente, exploramos criticamente toda essa bibliografia – que naturalmente se expande – e, ao lado da professora orientadora, sistematizamos os conceitos a fim de construirmos hipóteses para nossa dissertação. Bibliografia ADORNO, T. W. Notas de literatura. Tradução e apresentação de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. v.1. (Coleção espírito crítico). AGUIAR, F. Poesia experimental portuguesa. Dimensão, Uberaba, a.XII, n.22, p.105-129, 1992. ARGAN. G. C. Arte moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BARBOSA, J. A. Metáfora critica. São Paulo: Perspectiva, 1974. _____. “As ilusões da modernidade”. In _____. As ilusões da modernidade. São Paulo: Perspectiva, Coleção Debates 196, 1986, p.13-38. BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. Trad. de M.S. Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007. BLEUS, G. Una introducción sobre arte e intercambio. . Acesso em: 1 set. 2010.

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“LE REVE QU’ON APPELLE NOUS”: SUJEITO E LINGUAGEM EM L’HOMME APPROXIMATIF DE TRISTAN TZARA Thiago dos Santos Jerônimo Adalberto Luis Vicente Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Neste trabalho, pretende-se analisar o livro-poema L’Homme approximatif (1931), de Tristan Tzara (1896-1963), a partir da fragmentação do sujeito lírico como “référence dédoublée” (COMBE, 1996) e dos recursos poéticos mobilizados pela linguagem do autor. Consideramos o processo de criação poética a partir dos procedimentos surgidos nas Vanguardas do início do século XX. Para tanto, o trabalho apoia-se em reflexões teóricas sobre a modernidade e a vanguarda, como as desenvolvidas por Matei Calinescu e Marjorie Perloff; proposições a respeito das características da produção poética de Tristan Tzara e suas reflexões sobre poesia e arte; reflexões sobre as características do Dadaísmo e do Surrealismo. Por fim, as proposições teóricas sobre poesia e sobre o sujeito lírico, apresentadas em estudos como os de Anne Elaine Cliche e Dominique Combe permitirão o aprofundamento da análise dessa que é uma das obras mais importantes do autor. Desse modo, o trabalho visa contribuir com reflexões acerca da poesia, e de como se dá a manifestação do sujeito por meio dela. Assim, a pesquisa discutirá as ideias sobre sujeito e linguagem propostas pelas vanguardas, partindo da análise desta obra que é um dos exemplos mais significativos dessa poesia. Trata-se de revelar aspectos importantes de um

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autor cuja poesia lírica, ofuscada pelo caráter provocador de seus manifestos e por sua atuação no movimento Dadá, ainda é pouco conhecida e estudada. Com isso, pretende-se aprofundar os estudos sobre as vanguardas artísticas, suas características, variações e transformações, a fim de compreender sua repercussão sobre a poesia moderna e, sobretudo, na obra de Tzara. Tristan Tzara é sem dúvida o nome mais importante do movimento dadá – e, posteriormente, figura de destaque do Surrealismo –, por representar mais profundamente aquele espírito do Cabaret Voltaire que ajudara a construir. De origem judaica, Tzara (cujo verdadeiro nome é Samuel Rosenstock) nasceu em Moinesti, uma província de Bacau, na Romênia, mas logo se muda para Zurique, ponto de encontro de pacifistas de todo o mundo e lugar ideal para o surgimento de uma das manifestações artísticas mais desafiadoras e emblemáticas do século XX, cujas influências e arestas são difíceis de serem delimitadas. Mas o papel dinâmico e de liderança de Tzara surge ainda na Romênia, em Bucareste, onde juntamente com Marcel Janco e Ion Vinea cria a revista Simbolul (1912), publicando ali seus primeiros poemas. Já em Zurique, o Cabaret Voltaire permitirá a Tzara adquirir um profundo conhecimento das teorias dos mais importantes e diversos movimentos artísticos da vanguarda. A revista criada por Ball, Cabaret Voltaire, recebe textos dos fundadores do Expressionismo, do Futurismo e do Cubismo. Além disso, Tzara exerce uma atuação centralizadora, mantendo contanto por correspondência ou através de viagens com os principais nomes dos movimentos que se desenvolviam, sobretudo de Paris. Assim, entre 1916 e 1919, Tzara troca correspondências com poetas como Apollinaire, Max Jacob, Pierre Reverdy, além de Francis Picabia, Paul Éluard e Raoul Hausmann. Posteriormente, estabelece contato com André Breton, Louis Aragon e Philippe Soupault, grupo que cria a revista Littérature (cujo primeiro número é de 1919), e que posteriormente se torna o núcleo parisiense do movimento dadá, junto com Paul Éluard, Georges RibemontDessaignes e Francis Picabia: Son estos contactos epistolares, en gran parte, los que permiten un flujo recíproco entre las obras dadaístas y de otros artistas (materializado em exposiciones y revistas), además de impulsar la internacionalización del movimiento dadá. (LUPIÁÑEZ, 2002, p. 28)

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Passados os momentos iniciais de experiência com a linguagem, em que o poeta imprimiu um tom destrutivo ao seu trabalho poético, para libertar a linguagem de suas limitações convencionais, Tzara se revela um poeta inventivo. Como observa Marcel Raymond (1960), de todos os poetas do grupo surrealista, Tzara foi o que levou mais tempo para descobrir sua natureza: Extraño espectáculo el de un poeta que parecía dedicado a los juegos humorísticos y al culto del desorden más loco, y que se encamina poco a poco, sin abandonar ninguna de sus exigencias y simplemente profundizando en ese desorden, hacia creaciones macizas cuya incoherencia lógica permite presentir no ciertamente un orden interior, sino un dinamismo intenso, una vis poetica, una potencia que se esfuerza en “modelar la ráfaga” y engendrar grandes conjuntos verbales todos crepitantes de imágenes. (RAYMOND, 1960, p. 267-268)

Entretanto, essa transição não se dá a partir de uma ruptura. Como observa Henri Béhar (1975), em sua produção ou no estudo das obras de outros escritores, Tzara pretendia encontrar as fontes da poesia na expressão coletiva dos povos, para além de toda convenção literária. Segundo Béhar, toda a obra de Tzara carrega uma dialética, sugerida nos títulos de L’Antitête, L’Homme Approximatif e De mémoire d’homme. Temos, como observa o estudioso, três momentos de uma obra orientada no sentido de uma conquista de “soimême”. Nesse sentido, não há ruptura na produção de Tzara, que não renega nada do passado, de modo que se podem rastrear influências dadaístas em suas últimas obras, além de ser possível compreender sua relação instável com o grupo de Breton: C’est pourquoi il refusa d’identifier, comme le faisaient alors lês Surréalistes, la poésie à l’automatisme seul. Pour lui, la poésie ne saurait s’écrire sans une certaine part de réflexion sur l’acte en cours comme em témoignent les admirables pages de Grains et issues où se définit, par la pratique, la notion de rêve expérimental. (BÉHAR, 1975, p. 8)

Assim, para Tzara, a poesia é um meio de conhecimento, como a ciência e a filosofia, e sendo uma maneira de existir, resulta daí que a imagem poética é necessariamente vivida. Há em sua obra, portanto, uma combinação entre o momento poético e o reflexivo. Este projeto visa dar continuidade a um trabalho inicial de estudo, desenvolvido durante o curso de graduação, em que se procurou identificar as influências dadaístas e surrealistas em L’Homme approximatif. A partir da leitura e análise da obra em questão e 503

de alguns textos fundamentais do poeta, observou-se que L’Homme approximatif, muito além de um produto das Vanguardas históricas, traz uma profunda reflexão acerca da linguagem e da condição do sujeito no início do século XX. Embora seja um texto pouco conhecido e estudado, L’Homme approximatif é a obra maior de Tzara e é, antes de tudo, uma contribuição surrealista – na avaliação de Marcel Raymond (1960), trata-se do único poema de grande envergadura que se pode atribuir legitimamente ao surrealismo. Entretanto, é preciso fazer algumas considerações sobre estas afirmações. Escrito num período de cinco anos (de 1925 a 1930), a elaboração do poema acompanha a trajetória do poeta em relação ao grupo surrealista. Uma dedicatória a Paul Éluard, numa versão preliminar de 1928, deixa entrever sua adesão ao Surrealismo, embora sua prática e sua compreensão dos ideais surrealistas tenham se dado de modo um pouco distinto. Tzara recusava o automatismo prescrito por Breton, e em sua obra, embora extremamente crítica e provocativa, evita o discurso político e panfletário. Em L’Homme approximatif – e em toda a poesia de Tzara a partir da segunda metade da década de 1920 –, o “niilismo destrutivo” dos primeiros anos dá lugar a uma crítica mais construtiva sobre a condição do homem na sociedade moderna. Trata-se de um longo poema, organizado e divido em dezenove partes, na forma de cantos, visto a recorrência, ao longo do poema, de alguns grupos de versos que estruturam e dão ritmo ao texto, constituindo seu eixo de discussão: [...] les cloches sonnent sans raison et nous aussi nous marchons pour échapper au fourmillement des routes avec un flacon de paysage une maladie une seule une seule maladie que nous cultivons la mort (TZARA, 1968, p. 21) Temos, na verdade, um poema que busca um rigor em sua elaboração e coloca em evidência o próprio processo criativo, tornando-se, como observa Hubert Juin (1968, p. 11), um empreendimento poético, “plus encore, et mieux, qu’un poème”. “Orgia linguística”, o poema se distingue por sua linguagem autenticamente primitiva, selvagem e elementar. Há ali um sonho caótico, mas também um esforço da matéria para dominá-lo.

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Dominique Combe (1996), traçando a história das concepções do sujeito lírico a partir do Romantismo, observa que, contrariamente ao que se concebia até meados do século XIX, com o desenvolvimento da linguística textual, o questionamento sobre a presença do eu referencial não seria mais válido, prevalecendo a partir de então a análise do funcionamento do texto poético e a presença textual do sujeito. Como observa o autor, essa mudança de apreensão reflete a crise filosófica que atinge o homem na virada do século e as transformações do pensamento científico. O eu lírico moderno é marcado por uma “double vue”, o da obra criada e, simultaneamente, da filosofia da composição, num processo de progressão do eu em direção ao outro – do sujeito ao objeto, ao exterior –, e o trabalho da poesia seria justamente o do questionamento da constituição do sujeito. O sujeito lírico seria, portanto, um sujeito problemático, em busca de sua identidade e cuja autenticidade reside na própria busca (BENN apud COMBE, 1996, p. 46). Assim, partindo da noção de metonímia, o autor observa que o eu lírico se estende a um Nós inclusivo ou, ainda, assumiria um valor de ele ou outro, em que o sujeito faz de si mesmo seu próprio objeto. O fazer poético se constrói, assim, através dessa tensão interna entre o eu e o outro. A essa dinâmica do sujeito lírico, voltado ao mesmo tempo ao particular e ao universal, ao eu e ao mundo, o autor denomina “référence dédoublée” (referência desdobrada). Trata-se de uma tensão insolúvel. O eu lírico nunca é determinado e, loin de s’exprimer comme un sujet déjà constitué que le poème représenterait et exprimerait, est en perpétuelle constituition dans une genèse constament renouvelée par le poème, et hors duquel il n’existe pas. Le sujet lyrique se crée dans et par le poème, qui a valeur performative. (COMBE, 1996, p. 63)

O sujeito lírico não existe, mas é construído. Em L’Homme approximatif, questiona-se a constituição do sujeito na linguagem e, como observa Anne Elaine Cliche (1987), a percepção da própria realidade. A ruptura que se estabelece em relação ao pensamento clássico, de que há um eu invariável em oposição a outro também permanente, marca o surgimento de um sujeito dividido, cuja consciência é uma instância que se move e é constantemente reconstruída pelo “outro”. Trata-se de um

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homem incapaz de definir a si mesmo, reflexo da instabilidade do mundo moderno. Clichê observa que: Lire l'Homme approximatif sera donc se mettre au lieu de cette altérité qui troue la parole tout en la refermant sur une prise qui ne peut jamais être la bonne puisque le sujet est ce qui, par sa constitution, échappe à la définition. [...] Lire sera reconnaître que la parole est affirmation, c'est-àdire certitude dans l'abolition de toute référence à une conscience autonome, ou encore, hantise de la présence dont l'évocation se perd. (CLICHE, 1987, p. 211-212)

Visto que o sujeito não pode mais ser compreendido sem seu oposto – que não se resume a um só – o eu da consciência trabalha como mediador, no que a autora entende por “échos de conscience”, “le fondement même de la subjectivité se voyant ainsi délogé dans um lieu démultiplié, radicalement hétéronome” (CLICHE, 1987, p. 212). O eu já não é mais um ponto fixo central e impassível; mas é a linguagem que estrutura o sujeito a partir de uma ausência de definição, de um eu fixo. O eu é algo incerto. [...] homme approximatif te mouvant das les à-peu-près du destin avec un coeur comme valise et une valve en guise de tête (TZARA, 1968, p.26) Nesse sentido, a linguagem ocupa um lugar de destaque na formação do sujeito. A linguagem e seu sentido são realidades instáveis no trabalho de elaboração e constituição do sujeito. Ainda segundo Cliche, Le centre vide, le « mystère », 1'« inconnu », comme altérité, ordonnent la structuration de ce langage toujours livré à ses déplacements métonymiques. Pour le sujet de ce langage, les transpositions, les noeuds où la signifiance se condense et d'où elle se déplace dans l'ensemble du réseau, actualisent un discours où se trouvent concernés la carence et le vide qu'il tient de sa constitution. Ainsi se trame le langage mouvant de l'Homme approximatif, toujours fuyant dans les amas de sens éphémères et momentanés. (CLICHE, 1987, p. 216)

O sujeito se constitui na própria linguagem, que o estrutura. Trata-se de uma obra que coloca em prática as discussões e contribuições próprias da poesia moderna:

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[...] je parle de qui parle qui parle je suis seul je ne suis qu’un petit bruit j’ai plusieurs bruits en moi un bruit glacé froissé au carrefour jeté sur le trottoir humide aux pieds des hommes pressés courant avec leurs morts (TZARA, 1968, p. 22) Temos nesta obra, como se vê, uma profunda discussão sobre o fazer poético e seu caráter representativo, tornando-a um exemplo significativo do que chegaram a produzir as Vanguardas artísticas e, sobretudo, o poeta romeno. A poesia lírica da segunda fase da produção de Tzara, desenvolvida a partir de 1920, é pouco explorada pela crítica, permanecendo totalmente ignorada no Brasil, apesar da posição de destaque que o autor ocupa na história das vanguardas europeias. Assim, este estudo pretende ser uma contribuição à leitura de uma obra que faz da poesia um meio de conhecer a condição humana no século XX. Bibliografia ALQUIÉ, Ferdinand. Philosophie du surréalisme. Paris: Flamarion, 1977. AUDOIN, Philippe. Les surréalistes. Paris: Seuil, 1973. BÉHAR, Henri. Tristan Tzara. Paris: Oxus, 2005. ______. Les enfants perdus: essai sur l’avant-garde. Paris: L’Age d’Homme, 2003. BÉHAR, Henri; CARASSOU, Michel. Dada, histoire d’une subvertion. Paris: Fayar, 1990. BÉHAR, Henri. “Préface”. In: TZARA, Tristan. Ouevres complètes. Paris: Flammarion, 1975. Tome I (1912-1924) BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 1973. BUOT, François. Tristan Tzara. L’homme qui inventa la Révolution Dada. Paris: Grasset, 2002. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993.

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AS MARCAS DA MEMÓRIA EM AS MENINAS, DE LYGIA FAGUNDES TELLES Vanessa Aparecida Ventura Rodrigues Guacira Marcondes Machado Leite Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr Pretendemos trabalhar os conceitos de memória na estrutura narrativa do romance da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, intitulado As meninas, publicado em 1973, texto que utiliza procedimentos discursivos caracterizadores da narrativa moderna e contemporânea. Por meio do estudo dessa obra de Lygia, é possível desenvolver estudos, pesquisas fundamentais para o conhecimento do gênero. A narrativa, como objeto, é alvo de uma comunicação: há um doador e um destinatário da narrativa. Até hoje, ainda se estuda o autor de um romance sem se perguntar se ele é também narrador ou não. Em As meninas, como já dito anteriormente pela crítica, a autora controla sua narrativa por meio de quatro vozes de personagensnarradoras, fazendo com que o leitor tente encontrar e identificar cada uma delas. Pensando justamente nessa complexidade narrativa, este trabalho visa estudar a intercalação dessas vozes, procurando perceber o quanto sua estrutura e linguagem perpassam pelo sonho e pela memória, pois temos a impressão, muitas vezes, de estar lendo o devaneio de uma lembrança, graças, por exemplo à falta de pontuação, à mistura de temas numa única frase, frases incompletas, intercalando assim devaneios e realidade. Com o surgimento do romance moderno, procurou-se criar personagens com alto nível de complexidade, ou seja, o romance moderno tomou o rumo de uma complicação crescente da psicologia das personagens. Através de seu romance, Lygia busca mostrar a complexidade do ser humano, ela transpõe em suas personagens os diferentes estratos sociais abordados, para mostrar suas grandes facetas, levando o leitor a participar de suas experiências. Nesse romance, temos três vozes narrativas, representantes de três estratos de nossa sociedade: Lorena, representante da classe burguesa decadente, Lia, da jovem militância da época que lutava por ideais anti-militares, ou seja, contra o regime da época, através de greves e outras manifestações, e Ana Clara representando a classe alienada e esquecida, é a personagem que vive à margem de tudo, vive em seu mundo

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de prostituição, drogas e álcool, é a personagem mais explorada pela autora, pois vive imersa em suas memórias amargas e devaneios. Se formos buscar na história, a prosa romanesca muda de situação na literatura brasileira na década de 20. De acordo com Bakthin (1998), hoje o romance caracterizase como um fenômeno pluriestilístico, plurilíngüe e plurivocal. O discurso do autor, dos narradores, os gêneros intercalados, os discursos das personagens não passam de unidades básicas de composição com a ajuda das quais o plurilinguismo se introduz no romance. Esse complexo romance de Lygia apresenta uma intensa preocupação em transmitir ao leitor, através da linguagem e dos recursos citados, típicos do romance contemporâneo, o que se passava nas mentes contraditórias de jovens que presenciaram o Regime Militar. Esse intercalar das vozes leva-nos a conhecer a vivência de cada uma delas por meio dos quatro olhares distintos. É por meio de suas visões, memórias, divagações, reminiscências, monólogos interiores, fluxos de consciência que tudo se organiza; é através desses olhares que os espaços, as impressões que cada uma tem das outras e suas rememorações são vistos. Halbwachs, em seu livro Memória e Sociedade (1994), nos diz que lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. Para ele, se lembramos, é porque os outros, ou a situação presente nos fazem lembrar; ele trata a memória como um fator social, e constrói a idéia de que a memória pessoal se prende à memória do grupo que, por sua vez, está inserida numa esfera maior da tradição, na memória coletiva de cada sociedade. A técnica narrativa de Lygia neste romance remete à grande importância da relação dialética do sujeito com a sociedade, do olhar desse mesmo sujeito sobre aquilo que por ele é focalizado. Sua obra nos dá a ideia da importância do olhar e das imagens dele decorrentes. É, portanto, pela pluralidade de olhares que se dá essa forte e envolvente narrativa. Suas historias de vida e experiências se entrecruzam, uma completando a outra. Busca-se, portanto, perceber em que medida a memória se faz presente nos discursos dessas três protagonistas, e em que contribui para a evolução dos estudos dos romances contemporâneos envolvendo esses temas. A obra de Lygia se passa essencialmente na mente das protagonistas, portanto, não temos como precisar o tempo em que o discurso está inserido, a linguagem metafórica juntamente com as expressões metafóricas presentes na narrativa fazem com

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que enxerguemos essa mistura entre presente, passado e futuro. Atentemos para a seguinte reflexão de Lorena. Lembro da ampulheta quebrada, entrei no escritório do pai para pegar o lápis vermelho e esbarrei no vidro do tempo. Fiquei em pânico, vendo o tempo estacionado no chão: dois punhados de areia e os cacos. Passado e futuro. E eu? Onde ficava eu agora que o era e o será se despedaçara? Só o funil da ampulheta resistira e no funil, o grão de areia em trânsito, sem se comprometer com os extremos. (TELLES, 1998, p.224).

Através do trecho acima, comprovamos em que medida se dá esse jogo com o tempo, por meio das lembranças das personagens. Pensemos aqui no que o filósofo alemão Walter Benjamin fala sobre os vários tipos de narradores que temos, e a importância dos vários olhares, pontos de vistas ao mostrar a sociedade em que está inserido: A Experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. (BENJAMIN, 1994, p.198).

Para Benjamin (1994), a melhor narrativa escrita é aquela que traz traços da narrativa oral, carregada de certa experiência. Ele opõe dois sujeitos, um camponês e um marinheiro em seu texto. Vindo ao encontro das ideias citadas acima, temos a relação da distância temporal, ou seja, o homem que viveu sempre no mesmo lugar e a distância espacial, o homem que trouxe histórias de lugares distantes. Como observa Benjamin, podemos ter dentro de uma obra, uma troca de experiências sejam elas vindas de dentro ou de fora de seu contexto. Em As meninas, temos visivelmente essa troca de experiências, vindas muitas vezes de uma busca no passado, em uma memória revisitada e revivida. Lorena traz suas experiências de um mundo burguês, e se coloca como espectadora dos conflitos sociais que estão acontecendo, Ana Clara traz suas experiências desse mundo obscuro de drogas e prostituição, e Lia, suas experiências de militância e envolvimento político com a luta armada.

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Essas experiências podem ser relacionadas ao que José Paulo Paes (1998) chamou de desencontros, em seu ensaio Ao encontro dos desencontros, das personagens de Lygia, que de acordo com o autor “...abrem-se num leque que cobre áreas fundamentais da experiência humana: desencontros entre dever e prazer, desejo e objeto do desejo, expectativa e consecução, sonho e realidade...”. Lygia vem registrar em seus romances a sucessão de etapas da construção de “eus”, não do eu da ficcionista, mas sim dos eus da sua imaginação, colhidos da sua vivência no mundo e em seu tempo. O desencontro de Lorena vem a ser a mortificação por uma virgindade que insiste em manter, numa época de liberação sexual, guardando -se para um amor impossível com M.N.; o de Lia, é sua vivência entre a utopia (seu sonho revolucionário de mudar o mundo) e a realidade, ser mantida pelos favores da burguesa Lorena, e por fim a morte por overdose que abre ao máximo o leque de desencontros da vida de Ana Clara, personagem esta que se sente inferior na sua condição de mulher, e vê em sua beleza física, e em sua “raça branca”, sua única esperança de um futuro melhor .O trecho a seguir, pronunciado por Lorena, exemplifica de maneira sucinta esses desencontros: “Se eu não falasse tanto em fazer amor, se Ana Clara não falasse tanto em enriquecer, se Lia não falasse noite e dia em revolução...” (TELLES, 1998, p. 34). Enfim, pensamos que é de grande importância compreendermos as possíveis especificidades da literatura, e aprofundarmos nossos estudos sobre o trabalho com a memória no romance contemporâneo expresso através da fragmentação do discurso, dessa busca de uma identidade; esse constante retorno em busca dessa memória (que também é invenção), pela reminiscência, esse discurso bastante intimista, que é uma das marcas da obra de Lygia, em geral marcado pelo uso da primeira pessoa, a intensa oralidade, realmente uma luta contra esse silenciamento marcado pelo regime, nossa intenção, portanto, é mostrar em que medida essa memória é trabalhada pela autora, de que forma esse trabalho com as vozes narrativas torna-se uma forma de contestação estética e social ao contexto vigente, pregando o reconhecimento não somente de uma memória individual, mas sim de uma memória coletiva. Bibliografia ARISTÓTELES. Poética. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO.A poética clássica. Intr. Roberto de Oliveira Brandão. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985. p. 1752. 513

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UM ESTUDO DA TRADUÇÃO DE PRIMEIRAS ESTÓRIAS PARA O INGLÊS Vanessa Chiconeli Liporaci (CAPES) Maria Célia de Moraes Leonel Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A proposta do nosso trabalho é analisar a relação entre Primeiras estórias, de Guimarães Rosa e sua tradução para a língua inglesa, ainda pouco explorada pela crítica, intitulada The third bank of the river and other stories, de Barbara Shelby. Para tanto, realizamos o levantamento e análise de três tipos de frases que, a nosso ver, consistem em uma das principais características do fazer poético rosiano e foram cuidadosamente trabalhadas no intuito de revestir a temática metafísico-religiosa tão cara ao autor de Sagarana. Nossa hipótese é de que essas frases são estrategicamente inseridas em momentos-chave das narrativas de Primeiras estórias e, se modificadas ou omitidas no processo de tradução, podem vir a prejudicar a construção do sentido mais profundo desses contos, fazendo com que o valor metafísico-religioso dos mesmos se perca. Além dessas nossas sugestões, buscamos na correspondência que Guimarães Rosa trocou com seus tradutores - principalmente com o italiano Edoardo Bizzarri (1981), com o alemão Curt Meyer-Clason (2003) e com a tradutora norte-americana Harriet de Onís (apud VERLANGIERI, 1993) -, posições do autor quanto ao fazer tradutório – e também literário – que, quando somadas a outras informações advindas dos quatro prefácios de Tutameia, constituem uma espécie de poética rosiana da

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tradução e da construção literária, capaz de iluminar o estudo do processo tradutório em questão. Não ignoramos que a possibilidade de perda – principalmente no plano da expressão, que, por sua vez, pode afetar o do conteúdo – que se dá na passagem de um idioma para outro é inquestionável. Todavia, muitas traduções, resultantes de atividade criativa, compensam essas possíveis perdas em diferentes níveis. Ademais, cremos que o estudo da tradução pode enriquecer as análises da obra original e que a contribuição contrária também é verdadeira uma vez que o cotejo possibilita o estudo de uma série de elementos que talvez não teriam sido discutidos não fosse a diferença ou mesmo o contraste entre os textos. Em uma carta enviada a seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, datada de 25 de novembro de 1963, Guimarães Rosa, ao tratar da essência de seus livros, estabelece pontos para os elementos que julgava serem primordiais em sua obra: “a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos.” (ROSA apud BIZZARRI, 1981, p. 58). Tal apreciação do autor leva-nos a considerar que, para ele, em primeiro lugar, estava o sentido transcendental de sua produção e, em segundo, a qualidade estética, o que se alia ao trabalho meticuloso com a linguagem, em geral poética, e ao tratamento dos demais níveis da narrativa – narrador/narração, focalização, tempo, espaço, personagens e ação. É preciso considerar, porém, que é a união desses níveis que resulta em uma ponte capaz de conduzir os leitores ao sentido metafísico-religioso encontrado em suas narrativas, aspecto do qual trata boa parte da crítica rosiana. Tentamos, portanto, no exame da correspondência e dos prefácios, privilegiar essa pontuação e buscar o que Guimarães Rosa escreve a respeito desse valor e do modo como ele é inserido em seus textos. Partindo dos resultados obtidos no estudo da correspondência e dos prefácios, efetivamos a análise de quatro narrativas de Primeiras estórias (1968) a saber: “A menina de lá”, “A terceira margem do rio” e “A benfazeja” e “Partida do audaz navegante” e de suas traduções para o inglês, intituladas, respectivamente: “The girl from beyond”, “The third bank of the river” e “A woman of good works” e “The aldacious navigator” de Barbara Shelby (1968). O cotejo entre texto original e tradução é realizado a partir do levantamento e análise desses três tipos diferentes de frases, as quais denominamos de antecipatórias, incisivas e caracterizadoras. Primeiramente, o levantamento é feito a partir do estudo do texto de partida. Em seguida, esses elementos 516

são buscados e analisados no texto em inglês e, em um terceiro momento, fazemos sugestões diante dos fragmentos cuja tradução não nos parece estar de acordo com o efeito de sentido produzido no texto original. O trabalho com as frases segue uma das direções que escolhemos para a realização da dissertação de Mestrado intitulada A providência nos interstícios das histórias rosianas (LIPORACI, 2008)1. Todavia, naquele momento, trabalhamos apenas com as frases antecipatórias, que sugeriam ou antecipavam momentos cruciais das narrativas estudadas. Para o presente trabalho, ampliamos os tipos de frase devido à abrangência da proposta para a tese. Acreditamos que tanto a elaboração poética dessas frases quanto sua inserção em momentos específicos da narrativa são elementos essenciais para o estudo das mesmas e, consequentemente, para o estudo da respectiva tradução. Com relação aos diferentes tipos, as antecipatórias adiantam o que está por vir, sugerem uma leitura atenta dos fatos narrados e, sobretudo, dos detalhes; as incisivas são breves, precisas e primorosas, portadoras de mensagens fundamentais que, muitas vezes, levam o leitor a refletir a vida além dos eventos constituintes da narrativa; enquanto as caracterizadoras descrevem lugares e personagens de forma sugestiva, como que a situá-los em uma atmosfera de mistério que contribui para o caráter metafísico dos textos em questão. Quando associadas, essas frases formam o que Antoine Berman denominou de sistematismos do texto e dão à narrativa um tom de verdade encoberta, de aprofundamento daquilo que é dito na superfície. Elas atuam como pontos-chave da obra que, pelo fato de nem sempre claros, exigem esforço maior por parte do tradutor para encontrar correspondentes adequados, uma vez que a clarificação dos mesmos pode pôr a perder o que existe de essencial em cada uma delas. Buscamos, portanto, não o que há de certo ou errado no texto de chegada – mesmo porque tal julgamento não cabe e nada acrescentaria ao objetivo do trabalho – mas suas peculiaridades e diferenças em relação ao texto de partida, sobretudo no que diz respeito ao que o próprio autor considerava como sendo mais relevante para sua obra. Acreditamos que os elementos apontados são de suma importância no que diz respeito à construção do valor metafísico-religioso da obra analisada e que, quando identificados pelo tradutor e trabalhados como marcas textuais da significância do texto, 1

Curso de Mestrado realizado no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Unesp Araraquara sob orientação da Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel.

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ou seja, do seu modo específico de produzir sentido, esse valor passa a produzir efeitos mais próximos daqueles sugeridos na poética rosiana da tradução. Vê-se, portanto, que a tradução mais adequada dos textos em questão está diretamente relacionada à tradução da letra do original, do modo como a entendem os teóricos Antoine Berman (2007), Mário Laranjeira (2003) e, cremos, o próprio Guimarães Rosa, como pretendemos mostrar com a poética elaborada. A escolha do corpus deve-se ao encantamento que Primeiras estórias nos despertou no decorrer do Curso de Mestrado, quando desenvolvemos a dissertação sobre a providência nos interstícios de quatro estórias rosianas: “Sequência” e “Substância” de Primeiras estórias, “Arroio-das-Antas” de Tutaméia e “A estória do Homem do Pinguelo” de Estas estórias. É constantemente retomado pela crítica o fato de que os contos que compõem essa obra, a um só tempo belíssimos e exatos, fazem transbordar aos nossos olhos elementos poéticos que constituem uma das maiores riquezas da obra rosiana, resultado do trabalho árduo e, ao que tudo indica, prazeroso, do escritor que pensava e repensava quantas vezes possível cada um dos vocábulos e cada uma das construções sintáticas, das macroestruturas narrativas inseridas em seu texto, em vista dos efeitos de sentido que provocariam. Provas disso são os originais pertencentes ao Arquivo Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.2 O embasamento teórico do trabalho é composto de estudos de quatro tipos: teoria da tradução; ensaios críticos sobre a obra rosiana de modo geral; ensaios referentes às Primeiras estórias e trabalhos sobre narrativa e linguagem poética. Com relação aos estudos sobre tradução e recepção, teremos como apoio, principalmente, Antoine Berman – A tradução e a letra ou o albergue do longínquo (2007); Mário Laranjeira – Poética da tradução (2003); André Lefevere – Tradução, reescrita e manipulação da fama literária (2007); Boris Schnaiderman – Tradução, ato demedido (2011); Piers Armstrong – Third World Literary Fortunes: Brazilian Culture and its International Reception (1999) e Irene Rostagno – Searching for recognition: the promotion of Latin American Literature in the United States (1997). Já em relação aos ensaios sobre a obra rosiana de modo geral, recorremos a textos como os de Antonio Candido, “O homem dos avessos” (1978); Benedito Nunes, “A

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Consultamos esse arquivo por ocasião da dissertação de Mestrado e iremos consultá-lo novamente.

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viagem” (1969); Alfredo Bosi, “Céu, inferno” (1988); Franklin de Oliveira, “Revolução rosiana” (1983); Paulo Rónai, “Os prefácios de Tutaméia (1969), entre outros. Os principais ensaios consultados referentes às Primeiras estórias são: “Nenhures” de Leyla Perrone-Moisés (1990) e “Cirandas da morte – ‘Nenhum, nenhuma’” de Ana Paula Pacheco (2006); “Às sombras frouxas da maternidade” de Cleusa Rios Pinheiro Passos (2000); “Do lado de cá” de Walnice Nogueira Galvão (2008) e “O sentido do trágico em ‘A terceira margem do rio’” de Consuelo Albergaria (1983); “Ser/tão... somente linguagem” de Sérgio Vicente Motta (1992) e “‘A menina de lá’ e “Um moço muito branco’: um diálogo mítico” de Vera Lucia Rodella Abriata (2003), entre outros. Quanto aos trabalhos sobre linguagem poética, teremos como apoio Alfredo Bosi, O ser e o tempo da poesia (2004); Ricardo Piglia, Teses sobre o conto (1994); Denis Bertrand, “Figuratividade” (2003), entre outros. Até o momento analisamos a correspondência trocada com os tradutores, os prefácios de Tutameia e três das narrativas que constituem o corpus mencionado. A análise da quarta está em andamento, bem como o está o estudo de cartas que encontramos no acervo de Alfred Knopf, localizado no Harry Ransom Center, na Universidade do Texas – Austin, coletadas durante estágio realizado na Universidade da California - Davis de setembro de 2011 a março de 2012. Esse material consiste em correspondência trocada entre o proprietário da editora – Alfred Knopf – os editores responsáveis pela tradução de Primeiras estórias para o inglês, Harriet de Onís, Barbara Shelby e Guimarães Rosa. Acreditamos que a análise dessas cartas contribuirá imensamente para as reflexões que pretendemos fazer acerca do processo editorial pelo qual passou essa tradução e o modo como a relação entre autor-tradutor e editor refletese no produto final. Bibliografia ABRIATTA, V. L. R. “A menina de lá” e “Um moço muito branco”: um diálogo mítico. Itinerários – Revista de Literatura, Araraquara, n. especial, p. 217-226, 2003. ABRIATTA, V. L. R. Histórias primeiras em Primeiras estórias. 2001. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Araraquara.

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A FIGURAÇÃO DA MORTE NA POÉTICA DE MANOEL DE BARROS Waleska Rodrigues de M. O. Martins (CAPES) Luiz Gonzaga Marchezan Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – UNESP / FCLAr A descrição do estágio é apresentada em etapas, visando melhor disposição da estrutura do projeto. A primeira etapa, inicializada ainda no primeiro semestre de 2011, constitui-se na “Pesquisa Bibliográfica”. Consiste no levantamento, seleção e fichamento das obras necessárias ao embasamento teórico-metodológico da pesquisa. As obras inicialmente selecionadas dialogam com o propósito do projeto. No entanto, vale ressaltar que outras literaturas ainda serão inventariadas e utilizadas, caso sejam adequadas ao tema. 1 Pesquisa Bibliográfica Philippe Áries (História da Morte no Ocidente e O homem diante da morte); Jean Baudrillard (A Troca Simbólica e a Morte); Ernest Becker (A Negação da Morte); Edgar Morin (O Homem e a Morte); Gilles Lipovetsky (A era do vazio); Alfredo Bosi (O ser e o tempo da poesia); Jacques Derrida (Mal de arquivo); Emil Staiger (Conceitos fundamentais da poética); Márcio Thamos (Figuratividade na poesia); Michel Vovelle (As almas do purgatório); Jacob Goldberg (A clave da morte); Simone Beauvoir (Uma morte muito suave); Tzvetan Todorov (Memória do mal, tentação do bem); Ecléa Bosi (Memória e sociedade); Fausto Colombo (Arquivos Imperfeitos); John Ziegler (Os vivos e a morte), Arthur Schopenhauer (texto A morte e a dor, Metafísica do Amor e Metafísica da Morte), Martin Heidegger (A época das imagens do mundo), Jacques Aumont (A imagem), João Miguel Moreira Auto (Morte, alma, corpo e homem na

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poesia homérica), Regina Zilberman (Autores entre o testemunho e o arquivo), Ernst Cassier (Linguagem e Mito), Elizabeth Loftus (Criando memórias falsas), Guy Debord (A sociedade do espetáculo), Mircea Eliade (Imagens e símbolos), Eric Hobsbwan (A era dos extremos – parte 3), Martine Joly (Introdução à analise da imagem), Alberto Manguel (Lendo imagens), Lúcia Castello Branco (O mais sublime dos meninos), Mário Perniola (Pensando o ritual: sexualidade, morte e mundo), André Borges Meyerewicz (Poesia, morte e contemporaneidade), Jean-Claude Schmitt (Os vivos e os mortos na sociedade medieval), Henri Bergson (Matéria e Memória), Cristiane Suzart Cop Guimarães (Corpo, morte e memória), Paul Ricouer (Memória, história e esquecimento), Harald Weinrich (Lete: arte e crítica do esquecimento), GAGNEBIN, Jeanne-Marie Gagnebin (Sete aulas sobre linguagem, memória e história), Márcio Seligmann-Silva (Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção; História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes). 2 Seleção e análise das obras de Manoel de Barros Nesta etapa, realizou-se uma seleção das obras de Manoel de Barros em que a questão da Morte, preferencialmente relacionada com a Memória, estivesse intensamente representada. Ao final do primeiro semestre de 2012, chegou-se aos livros Poesias (1956, retirado da obra Gramática Expositiva do Chão: poesia quase toda – 1996) e Menino do mato (2010). No entanto, ao reler as obras selecionadas, outros fichamentos temáticos, interligados com a Morte e a Memória, foram observados e ampliam os temas primários do projeto, tais como: arquétipo, mito da origem. A proposta da pesquisa não é de aprofundar tais questões, mas apenas de apresentar possíveis entrecruzamentos. Os trechos selecionados são comentados para, em tempo posterior, estabelecer-se um quadro de oposições. O “mapeamento” das representações da Morte e da Memória é seguido de análises de como essas figurações se apresentam no contexto da obra. 3 Metodologia de análise das obras de Manoel de Barros O método, previamente selecionado, para análise dos textos poéticos de Manoel de Barros parte da Semiótica, por entender que seu objeto, descrita no livro Caminhos da Semiótica Literária (2003), de Denis Bertrand, é considerar o texto literário como um discurso que encontra em si mesmo seu “código semântico” (p. 23) e seu próprio

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contexto. Há, nesse sentido, uma espécie de autonomia textual que lhe proporciona condições, mesmo que parcialmente, de apresentar um desdobramento do mundo (em termos de significante e significado) que se revela no ato da leitura. A metodologia semiótica privilegia, especificamente no discurso literário, quatro dimensões significativas (2003, p. 27) que incorporam e dão sentido à análise: dimensão narrativa, a dimensão passional, a dimensão figurativa e a dimensão enunciativa. De maneira sucinta, cada dimensão corresponde a uma face do texto, contemplando um aprofundamento minucioso das estruturas textuais. Dessa maneira, devido a complexidade do método e seus inúmeros caminhos, adequar-se-á ao procedimento que melhor explore o objeto desta pesquisa. 4 Análise parcial (à título de exemplificação) Em 1956, ainda sob as consequências do fim da Segunda Guerra Mundial (19391945), estreia no cenário das Letras o livro Poesias. O projeto estético do poeta Manoel de Barros é explícito: o sentimento do fragmentário. Como na obra “Da Imperfeição”, em que Greimas nos convida à fratura imperfeita do continuum através dos sentidos, Manoel de Barros irrompe os fragmentos com o sentido da visão. É o “ver”, e não o olhar, que o poeta privilegia. É o “ver” platônico diretamente relacionado com o conhecer, num movimento cíclico de ação e passividade do sujeito. O conhecimento da verdade só é possível através da conjugação do ver da inteligência com a alma. A palavra “ver”, em sua extensão curta (apenas três letras), também proporciona mais veracidade ao ato de perceber a dimensão sensível. O passeio das fragmentações sensoriais continua também nos títulos: “Olhos parados”, “A boca”, “Na enseada de Botafogo”, “Ode Vingativa”, “Lembranças”. Este último título é o que antecede “A voz de meu pai” e apresenta uma passagem interessante: “Subitamente o palco alterou-se./Eu estava com dezessete anos, diante do mar!/Lia Knut Hamsun./Meu vagabundo tocava surdina.../Um grande rio de poesia/Atravessava-me, doce...” (BARROS, 1996, p. 103). O discurso escorre de um poema para o outro e nem mesmo o título fratura o caminho. A liquidez transfigura-se em voz e continua atravessando o enunciatário, o enunciador e a enunciação. No poema “A voz de meu pai” (BARROS, 1996), a imagem presentificada do pai atravessa a memória do sujeito-enunciador através de percepções sensoriais e sinestésicos diversas, e a morte, elemento que nasce no próprio ser, espreita,

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de dentro, o vazar do discurso, como se pode perceber no trecho da seguinte passagem: Sou um sujeito magro/Nasci magro./Estou nos acontecimentos/Como num vendaval: dobrado/Recurvo de espanto/E verdes.../Circulo sob arranha-céus./Vivo debaixo de cubos:/Na direita, na esquerda/De lado, ao sul/Pelo norte... Vou no meio assustado./Um pequenino ser com a sua morte dentro,/Com seu ombro desabado/E seus braços descidos pelo caos do corpo./(...)/À noite, porém, (ò cidade tentacular!)/Me rendo./Resfolegante como um boi, paro./Vasta campina azul de água me olha, me contempla, me aglutina/E suja-me de iodo a roupa.../- É o mar!/Meu rosto recebe a brisa do mar./Fecho os olhos./Descanso./Os ventos levam-me longe.../Longe.../Entro na casa onde nasci./(...)/Lembro-me bem./Era um casarão baixo./Crianças lambiam o barro das paredes./Na solidão rondavam cavalos./(...)/Abro os olhos e sinto/E sei/Que a força que me inclina hoje para a terra/Essa avidez que as minhas mãos possuem/E a frescura que minha alma adquire quando as chuvas molham estas plantas,/A vontade de sair sozinho, de noite, e de chorar copiosamente sobre as ruínas – /Sei bem/Que todas essas coisas têm raízes na casa/(...)/Fecho os olhos de novo./Descanso./Logo sinto fluir em mim/Como um veio de água saindo dos flancos de uma pedra,/A imagem de meu pai./Ouço bem seu chamado./Sinto bem sua presença./E reconheço o timbre de sua voz:/- Venha, meu filho,/Vamos ver os bois no campo e as canas amadurecendo ao sol,/Ver a força obscura da terra que os frutos alimenta,/Vamos ouví-la e vê-la:/(...)/Abro os olhos./Não vejo mais meu pai./Não ouço mais a voz de meu pai./Estou só./Estou simples./Não como essa poderosa voz da terra com que me estás/chamando, pai –/Porque as cores se misturam em teu filho ainda/E a nudez e o despojamento não se fizeram em seu/canto; mas, simples/Por só acreditar que com meus passos incertos eu/governo a manhã/Feito os bandos de andorinhas nas frondes do ingazeiro. (BARROS, 1996, p. 103 – 107)

As figuras que se cristalizam em imagens ou nas próprias palavras que remete à ideia da morte, no contexto discursivo posto acima, são: “morte”, “vivo debaixo de cubos”, “desabado”, “descidos”, “Os ventos levam-me longe”, “inclina hoje para a terra”, “a frescura que minha alma adquire quando as chuvas molham”, “ruínas”, “caídos”. São elementos ou aspectos que indicam e se comunicam com a ideia da morte. Embora não tenha, como em outros poemas do poeta, a forte presença da transmutação neste texto, a memória como presentificação da vida apresenta-se de maneira intensa. Há, nesse sentido, comparações que elidem o humano metaforizando-o em outro ser, tem-se uma anulação do homem através da famigerada cosmopolita cidade, o ser é devorado e devolvido em elemento integrante do cenário, morto para o mundo, sisudo em si, incomunicável com outros homens, pedra. Em outra passagem, o enunciador pulveriza seu ser e se torna em algo tão magicamente leve que o vento o leva (“os ventos levam-me longe”). A elisão do homem empírico reforça a dimensão de nulidade

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que o sujeito enunciador sente diante da magnitude da cidade. Sendo assim, a morte pela transmutação acontece de maneira sutil, mas registra seu poder transformador. Contudo, a memória apresenta-se como reação à morte e seus limites. O pai é voz, imagem, sentido, nascimento e morte. Para Nismária Alves David (2005), no artigo “A poesia de Manoel de Barros e o mito da origem”, ao se presentificar o passado através da memória, instaura-se o tempo mítico, “no qual se tem a negação do tempo histórico e, consequentemente, do processo inexorável de decadência humana que culmina na morte” (p. 18). Assim, a presentificação se integraliza em imagem audível, visual e tátil. O “pai”, presentificado em sentidos, passeia pelas lembranças infantis do menino Barros. A morte, no caso do pai, é viagem de retorno ao filho que descansa da jornada atribulada da cidade grande, resgatando sua imagem e a tornando presença. Segundo Bachelard (1997, p. 77), “[a] Morte é uma viagem e a viagem é uma morte. Partir é morrer um pouco: Morrer é verdadeiramente partir, e só se parte bem, corajosamente, nitidamente, quando se segue o fluir da água, a corrente do largo rio.”. A figura líquida do pai é elemento de resistência que, mesmo diante de obstáculos (“pedra”), se torna presença viva. O recorte desse instante sinaliza a possibilidade do reencontro, intensificando a profusão sinestésica dos sentimentos. No entanto, a trajetória memorialística começa e passa pela casa paterna, lugar de acolhimento e que engendra a força gerativa da poética manoelina. É para a seguridade da casa que o enunciador é “levado” pela brisa do mar. O enunciador apresenta no discurso um movimento temático de morte-vida-morte. Aparentemente há uma gradação de elementos ora mais relativos com a morte ora com a vida, voltando para a morte, para a solidão do ser. Em termos de sintaxe discursiva, o poema é todo escrito em primeira pessoa, dando a voz apenas para a própria poesia, na figuração do pai. A debreagem enunciativa de tempo (passado e agora) aproxima o enunciatário da proposta do enunciador e provoca um fingimento discursivo que aparenta “uma concomitância entre o tempo da narração e o dos acontecimentos narrados” (FIORIN, 1996, p. 63). No discurso, a recorrência do presente do indicativo (“entro”, “abro”, “sou”, “estou”) fomenta o plano da veracidade. Quem diz o que viu e sentiu é o sujeito da enunciação. As lembranças no discurso manoelino sugerem um renascimento, tanto da palavra quanto do sujeito. A escrita, nesse rastro, também é Morte. É através daquela que o poeta morre aos pedaços. Para Medeiros (1996), o eu-lírico de Manoel de Barros 526

despedaça-se continuamente inclusive na tentativa de reunificar seus eus perdidos, que por sua vez também se dispersam em muitos outros. A perdição indica morte das faculdades direcionais e conscientes. Em certo momento, o poeta desabafa: “Minha poesia é hoje e foi sempre uma catação de eus perdidos e ofendidos” (BARROS, 1996, p. 308). O ser, na leitura manoelina, é diluído no cenário textual, na paisagem, uma implosão que tenta um espaço aberto de conciliação entre o mundo real e o imagético, através da troca mútua, entre o ser e a linguagem. No entanto, paira na atmosfera textual um novo cosmo que espreita e se torna presença sentida. O cenário envolve todos os seres da natureza numa dança que, ao mesmo tempo, se equilibra na morte e na vida. Bibliografia BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação. Trad. de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru/Sp: EDUSC, 2003. DAVID, Nismária Alves. A poesia de Manoel de Barros e o mito da origem. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. Londrina: UEL, v. 5, 2005, pp. 17-32. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol5/v5_2.pdf. Acesso em: 17 nov. 2011. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo, 1996. GREIMAS, Algirdas Julien. Da Imperfeição. Trad. e pref. Ana Cláudia de Oliveira. São Paulo: Hacker, 2002. MEDEIROS, Sérgio. Os vários duplos de Manoel de Barros. O Estado de SP, São Paulo, 14/12/1996.

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II – COMUNICAÇÕES

AS METAMORFOSES GÓTICO-ROMÂNTICAS NO DISCURSO NARRATIVO DE WUTHERING HEIGHTS, DE EMILE BRONTË Alessandro Yuri Alegrette (FAPESP) UNESP/FCLAr Karin Volobuef UNESP/FCLAr Após o imenso sucesso do romance gótico na Inglaterra do séc. XVIII, o gênero ganhou novo alento no séc. XIX, com a publicação de obras, que souberam ampliar e renovar a própria noção dessa vertente literária. Dentro desse espectro, o objetivo da presente pesquisa é tratar do romance Wuthering Heights – O Morro dos Ventos Uivantes (1845), de Emily Brontë. A espinha dorsal de nossa abordagem é propor a discussão sobre a configuração gótica específica explorada pela autora no enredo de sua narrativa. Para grande parte da crítica literária, o romance de Brontë é uma obra híbrida: a primeira parte é gótica e a segunda realista. Por outro lado, outros estudiosos afirmaram que existe uma tendência mais forte dessa obra ser plenamente inserida no gótico, pois neste romance, Brontë além de ter retomado temas recorrentes nessa modalidade literária, tais como, o conflito entre o bárbaro e o civilizado, a dissolução entre as fronteiras entre o eu e o outro, o natural e o sobrenatural e motivos que a caracterizam (o duplo, fantasmas, criaturas sobrenaturais), também promove sua inserção no ambiente cotidiano da localidade inglesa de Yorkshire, onde ela morou grande parte de sua vida. Assim, o principal objetivo de nossa pesquisa é demonstrar que, apesar das descrições verossímeis dos costumes e valores da sociedade vitoriana, e de personagens que, fogem de esquemas maniqueístas, o discurso narrativo de O morro dos ventos uivantes se destaca, principalmente, por sua configuração “gótica específica”, estabelecendo assim pontos de intersecção com outros textos que remontam ao início do século XVIII, onde se inicia a tradição gótico-literária e, com obras que evocam elementos góticos. Além disso, o romance de Brontë também mantém uma ligação com um gênero que mantém uma certa proximidade com o gênero gótico: o romantismo. Do ponto de vista da construção da narrativa, a obra combina a atmosfera gótica com uma vertente romântica que, pode ser definida como “Byroniana”, onde se

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destaca a presença do herói romântico condenado a um pathos trágico e, que se caracteriza por suas intensas demonstrações de sensibilidade. Dessa forma, O morro dos ventos uivantes, a exemplo de Frankenstein, de Mary Shelley, pode ser considerada uma obra que faz uma síntese do chamado “gótico-romântico” no século XIX. Além disso, a autora em seu discurso narrativo também faz alusões ao plano metafísico, remetendo assim a vários conflitos de oposição, que são sempre destacados no discurso narrativo dos romances góticos: o bem e do mal, o céu e o inferno, o natural e o sobrenatural. Assim, apesar dessa obra ter sido analisada criticamente em ensaios dentro de diferentes abordagens teóricas, mesmo após tanto tempo de sua publicação, O morro dos ventos uivantes continua suscitando questionamentos dentro do meio acadêmico sobre seu processo de criação, sua configuração gótica específica, que se diferencia de outras narrativas inseridas nesse tipo de literatura, seus pontos de intersecção com textos inseridos no gótico ou, com outras obras que mantêm uma relação de proximidade com esse gênero literário, dentre elas, Frankenstein de Mary Shelley publicada também no século XIX. Essa proposição encontra suporte nos comentários do pesquisador Radu Floresco em seu livro Em busca de Frankenstein e outros mitos, que recorrendo a um estudo de Lowry Nelson Jr, procura demonstrar a existência de alguns pontos de intersecção, não somente entre a criatura de Victor Frankenstein e Heathcliffe, mas também nos recursos de narração usados pelas autoras em suas obras: No personagem de Heachcliffe, Brontë remodela o monstro de Frankenstein. Heatchcliffe tem origens metafóricas idênticas ao ossário de Mary Shelley, ou de algum canto infernal da alma humana. A semelhança entre as pregações morais de Heatchcliffe e as do monstro de Frankenstein também foi notada por Lowry Nelson Jr. Como o monstro, que responde violentamente quando o mundo lhe é hostil, Heatchcliffe torna-se mau e vingativo quando seu amor por Cathy é obstinado e, adotando retaliação brutal e calculada, ele decai e torna-se uma “assombração errante”. Embora de menor significado, outro ponto de semelhança pode ser observado entre Mary e Brontë: ambas usam um suposto narrador como uma espécie de terra de ninguém entre o mundo do leitor e o incrível mundo da narrativa. (FLORESCO, 1998, p. 161)

Assim, a demonstração de muitos pontos de intersecção entre O morro dos ventos uivantes e Frankenstein no que refere a semelhança de personagens, temas e,

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principalmente, a construção da narrativa, sugere que o texto de Brontë tem sua origem no texto de Mary Shelley. Essa relação de proximidade entre as duas obras também, é apontada por Ellen Moers, em seu ensaio Female gothic, que também insere a autora Emile Brontë dentro da tradição gótico-literária: What Mary Shelley actually did in Frankenstein was to transform the standard romantic matter of incest, infanticide, and patricide into a phantasmagoria of the nursery. Nothing, quite like it was done in English literature until that Victorian novel by a woman which we also place uneasily in the Gothic tradicion: Wuthering Heigths. (MOERS, 1979, p.87)

Também pude atestar por meio de abrangente estudo de Fred Botting sobre o romance gótico e as transformações de seu discurso, que as duas narrativas apesar de destacarem em seus enredos a presença de elementos góticos, também estão inseridas no romantismo, em sua vertente que pode ser chamada de “Byroniana”, que se caracteriza pela presença de um personagem definido como herói romântico. Sobre ele, Botting comenta: Usually male, the individual is outcast, part victim, part villain. Older Gothic figures and devices, overused to the point of cliché, are transformed into signs of aristocracy tyranny, leftovers from an unenlightened world. The disturbing and demonic villain, however, retains a dark attractive, if ambivalent, allure as a defiant rebel against the constraints of social mores. The sympathies for suffering, doomed individuals find in Romantic identifications with Prometheus and Milton’s Satan, regarded as heroes because of the their resistance to overpowering tyranny. (BOTTING, 1996, p.92)

É importante enfatizar que, a rebeldia, uma característica recorrente no chamado herói romântico, em O morro dos ventos uivantes não se manifesta apenas em Heatchcliff, mas também aparece no comportamento tempestuoso, de Catherine, principalmente, quando ela se recusa a aceitar casar-se com seu pretendente Linton, que pertence a uma família tradicional e de posses, preferindo assim demonstrar seu desejo de unir-se de forma plena a Heatchcliffe, a ponto de fundir-se completamente nele, o que a torna um personagem atípico da literatura vitoriana. Além disso, a forte ligação que é estabelecida entre o casal (Catherine e Heatchcliffe) remete ao tema mítico do duplo, que aparece também assume grande importância em Frankenstein e outras narrativas góticas:

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My great miseries in this world have been Heatchcliffe’s miseries, and I watched and felt each form the beginning: my great thought in living is himself. If all else perished, and he remained, I should still continue to be; and if all else remained, and he were annihilated, the universe would turn to mighty stranger: I should not seem part of it. My love for Linton is like the foliage in the woods: times will change it, I ‘m well aware, as winter changes the trees. My love for Heatchcliff resembles the eternal rock beneath: a source little visible delight, but necessary: Nelly, I am Heatchcliffe. (BRONTË, 1950 [1847], p. 100)

Também entre as peculiaridades do romance de Brontë, que o difere dos demais textos inseridos no gótico inglês da metade do século XIX, é se essa obra pode ou não estar complemente inserida dentro do gênero. Segundo a Profa. Dra. Ramira Siqueira da Silva Pires, especialista nesse tipo de literatura, em seu ensaio intitulado “Pelas fendas da Razão: a ficção gótica inglesa”, publicado no livro Mito e Magia, organizado pela também Profa. Dra. Karin Volobuef, grande parte da crítica literária afirma que “O morro dos ventos uivantes” é uma obra híbrida, sendo sua primeira parte gótica e a segunda realista (2011 p.84). Contudo, em seu ensaio, Siqueira demonstra não concordar com esse argumento. Em sua análise do romance, ela afirma que a tendência mais forte é inseri-lo no gótico porque nele, questiona-se, transgride-se ou tenta-se dissolver as fronteiras do eu e do outro, a natureza e a sociedade, o bárbaro e o civilizado, o natural e o sobrenatural. Alem disso, para Siqueira, o sentimento que une Catherine e Heatcliffe é tão intenso e a ânsia de unidade, pelo cruzamento de fronteira entre eu e outro é tão grande que, diante da impossibilidade da fusão, só a morte pode trazer paz. Esse aspecto “realista” atribuído ao romance de Brontë pelos críticos literários suscita um questionamento pertinente para este projeto de pesquisa: como poderia ser “realista” uma obra onde são usados vários artifícios da escrita gótica, que criam uma contínua atmosfera sobrenatural e uma tensão permanente até seu desfecho? Assim, é provável que a noção de “realismo” de O morro dos ventos uivantes se configure em seu discurso narrativo, por meio da descrição verossímil feita pela autora do contexto social e histórico de sua época, na qual predominavam os rígidos costumes e valores da sociedade vitoriana, que na obra, em muitos momentos, provocam violentos conflitos familiares. Além disso, Brontë também descreve seus personagens com aspectos mais negativos que positivos, fugindo de esquemas maniqueístas, que estavam presentes na literatura desse período. Ou seja, a escrita de Brontë não se caracteriza por um estilo específico, que pode vinculá-la a determinada escola literária,

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mas procura criar no enredo do romance uma ilusão de realidade, que dá veracidade aos eventos narrados. Dessa forma, a autora, provavelmente, utiliza-se da representação mimética, para o mesmo tempo em que descreve de forma “realista” o cotidiano da localizada de Yorshire, local onde morou grande parte de sua vida, também reforçar a importância dos elementos góticos, que permeiam sua narrativa até o desfecho. Assim, na obra, é criada uma constante relação de contraste entre a razão e a emoção, o bem e o mal, o civilizado e o selvagem, o sobrenatural e o natural que invade a esfera do gótico. Contudo, diferenciando-se de outros textos inseridos nesse tipo de literatura, em O morro dos ventos uivantes o quê pode ser chamada de “maquinária gótica” não aparece todo o tempo em seu discurso narrativo de forma explicita, e, muitos elementos que a integram parecem estar aludidos no texto, principalmente, no que se refere ao protagonista do romance, Heathchciffe. Segundo Fred Botting em seu desejo de transgredir todas as regras esse personagem se torna semelhante a um ser demoníaco ou, vampiro e também aparece associado à natureza selvagem, pois seu temperamento “espelha” o ambiente hostil e tempestuoso que ele ocupa (1996 p. 129-130). Além disso, esse personagem, na segunda parte do romance, após a morte de Catherine, adota um comportamento que o assemelha ao dos vilões góticos descritos nas narrativas Ann Radcliffe, que se dedicam a impor sofrimentos físicos as suas vítimas, tais como, o confinamento em lugares fechados, todas elas do sexo feminino. Dentre suas atitudes cruéis, Heatchcliffe mantém Catherine Linton prisioneira em sua casa, impedindo-a de sair enquanto ela não aceitar unir-se ao seu filho em matrimônio: Silence! said the ruffian. “To the devil with your clamour! I shall enjoy myself remarkably in the thinking your father will be miserable: I shall not sleep for satisfaction. You could have hit on no surer way of fixing your residence under my roof, for next twenty-four hours, than informing me that such an event would follow. As your promise to marry Linton, I’ll take care you shall keep it; for you shall not quit this place until it is fulfilled. (BRONTË, 1950 [1847], p. 338)

É importante enfatizar que, apesar de Brontë em seu romance retomar elementos do romance gótico “explicado”, a exemplo dos textos de Radcliffe, que remetem à metade do século XIX, ela também não deixa de inserir no enredo dele uma atmosfera “sobrenatural”, que em uma de suas configurações, destaca o motivo do fantasma, o que pode ser outra característica que diferencia essa obra de outros romances inseridos no

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gênero. É a partir do momento em que Catherine aparece sob a forma de espectro para Lookwood, que esse elemento gótico é instaurado no discurso narrativo com grande intensidade, principalmente, no momento em que esse personagem entra em contato físico com a menina morta. Nessa cena, o terror de Lookwood se manifesta de forma tão intensa, que o obriga a praticar um ato terrível: empurrar os pulsos de Catherine contra o batente danificado da janela, de modo a machucá-la e, assim afastá-la definitivamente de Wuthering Heights: (…) my fingers closed in the fingers of a little, ice-cold hand! The intense horror of nightmare came over me: I tried to draw back my arm, but the hand clung to it, and most melancholy voice sobbed “Let me in- let me in! Who are you? I asked struggling, meanwhile, to disengage myself. “Catherine Linton”, it replied shiveringly (why did I think of Linton? I had read Earshaw twenty times for Linton). “I’m come home: I’d lost my way on the moor! As it speak, I discerned, obscurely, a child’s face looking thought the window. Terror made me cruel: and, finding it usells to attempt shaking the creature off, I pulled its wrist on the broken pane, and rubbed it to and fro till the blood ran down and soaked the bedclothes: still it wailed, “Let me in! and maintained its tenacious gripe, almost maddening with fear. (BRONTË, 1950 [1847], p. 28-29)

Ainda de acordo, com Fred Botting, os fantasmas, não são apenas vistos por Lookwood em sua primeira visita a Wuthering Heigths e, reaparecem em todo o discurso narrativo do romance até seu desfecho, quando Heatchcliffe também sob a forma de espectro é visto por um pastor passeando na companhia de uma estranha mulher, que se supõe ser Catherine. Para Botting esses estranhos efeitos, que sugerem a existência do sobrenatural na narrativa sinalizam um retorno ao passado. Botting enfatiza que no encerramento da obra, Lookwood como um Graveyard poet do século XVIII imagina a tranqüilidade após a morte, um retorno apropriado dos mortos em união com a terra, que remete ao plano metafísico, evocando assim a nostalgia romântica (1996 p.130). Também em O morro dos ventos uivantes, a exemplo de Frankenstein se destaca a noção de sublime, dentro de seu aspecto romântico, capaz de proporcionar uma experiência estética, que oscila entre o prazer e o medo e, voltada para os aspectos extraordinários e grandiosos da natureza. Assim, os cenários naturais constituem um ambiente hostil e misterioso que desperta no indivíduo forte reações emocionais, que no romance se projetam no casal de protagonistas: Catherine e Heatchcliffe:

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Wuthering Heights is the name of Mr. Heatchcliff’s dwelling. “Whutering” being a significant providencial adjective, descriptive of the atmospheric tumult to which its station is exposed in stormy wheater. Pure, bracing ventilation they must have up there at all times, indeed: one may guess the power of the north wind blowing over the edge, by the excessive slant of a few stunted firs at the end of the house; and by a range of gaunt thorns all stretching their limbs one way, as if craving alms to the sun. (BRONTË, 1950 [1847], p. 02)

Foi a partir dessas descobertas, principalmente, as peculiaridades dessa obra de Emile Brontë, que o difere demais romances inseridas no gótico, que surgiu meu interesse em aprofundar a análise de seu enredo, temas, elementos composicionais, de modo atestar a existência de sua configuração gótica específica, seu diálogos intertextual com textos da literatura gótica ou obras que mantém uma relação de proximidade com ela. Assim, é provável que O morro dos ventos uivantes tenha estabelecido pontos de intersecção não somente com Frankenstein, mas também com narrativas que remontam o surgimento do romance gótico durante a metade do século XVIII. Mas, além desses textos, a obra de Brontë também pode ter sua origem associada a outro gênero literário: o drama em prosa, onde também se destacam elementos góticos. Segundo Sandra Gilbert e Susan Dubar, em seu ensaio Looking Oppositely: Emile Brontë’s Bible of Hell, em O morro dos ventos uivantes a abordagem do tema do amor que, apesar de irrecuperável se torna tão forte a ponto de superar a morte, remete a Manfred (1817), uma das obras-primas de Lord Byron, um dos expoentes de romantismo inglês e, por quem a autora assumidamente nutria grande admiração. Gilbert e Dubar em seu ensaio também afirmam que a obra de Brontë de forma simbólica, ao evocar a queda de Adão e Eva, estabelece uma relação de proximidade com outro drama em prosa, que apesar não estar inserido no romantismo, exerceu grande influencia nos autores românticos: Paraíso Perdido, de John Milton. Ainda de acordo com Gilbert e Dubar, Heatcliffe em sua inveja e revolta contra a sociedade, se assemelha ao Satã Miltoniano, um personagem que de acordo com Mario Praz estabeleceu as bases para a criação do vilão gótico. Dessa forma, provavelmente, de modo semelhante a Frankenstein, o romance de Brontë também tem seu surgimento a partir de um processo de “tessitura literária”, onde o texto é criado a partir de outros textos, os quais podem fazer parte da tradição góticoliterária, ou somente manter uma relação de proximidade com ela, a exemplo de Paraíso Perdido.

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Alçado ao longo do tempo ao status de clássico da literatura inglesa, o que contribui para sua popularidade e influencia dentro do cenário cultural, se torna necessário comentar um pouco sobre a recepção de O morro dos ventos uivantes quando foi publicado pela primeira vez em 1847. Segundo as pesquisadoras Renata Maria Parreira Cordeiro e Eliana Gurjão Silveira Almabert, que analisam criticamente o romance de Emile Brontë, sua publicação somente foi possível em parte devido ao sucesso de Jane Eyre, escrito pela irmã da autora, Charlotte Brontë. Além disso, quando foi lançado O morro dos ventos uivantes provocou reações hostis e sua autoria foi falsamente atribuída a Ellis Bell, um pseudônimo masculino usado pela autora, para esconder sua verdadeira identidade. Os críticos literários se declaram chocados e, até mesmo indignados com o que definiram ser imoral no romance. Além disso, eles também ficaram desorientados com o que chamaram de estranho método narrativo empregado pelo suposto autor e pelo cruel linguajar de seus personagens. Dentre as críticas à época, o resenhista do jornal inglês Quarterly Review atribuiu a seguinte avaliação sobre a obra: “muito abominavelmente pagão e odioso”. Também nos Estados Unidos os protestos contra O morro dos ventos uivantes foram veementes. O repúdio foi ainda mais violento porque nos Estados Unidos o livro de Brontë obtivera sucesso imediato, muito maior do que no país de origem. Em junho de 1848, um dos críticos literários da American Review fez o seguinte comentário sobre a obra: “Se não o soubéssemos, que esse romance já foi lido por milhares de moças deste país, julgaríamos um dever nosso demovê-las a tal intento.” Após a publicação da notícia biográfica sobre Ellis e Acton Bell por Currer Bell (pseudônimo masculino usado por Charlote Brontë), em 1850, que esclarecia trata-se de escritoras e não escritores, a opinião segundo a qual Charlotte era a mais talentosa das três irmãs Brontë permaneceu praticamente unânime até meados da década, quando uma nova escala de valores começou a surgir, sobretudo, quando o talento de Emile para elaborar textos poéticos começou a ser reconhecido, principalmente, por meio de um de seus poemas, que é considerado uma das grandes obras da literatura inglesa: Eu não tenho a alma covarde. Mas a verdadeira mudança de opinião com relação ao romance aconteceu a partir de 1880, quando o crítico literário Algernon C. Swinburne declarou que “O morro dos ventos uivantes tinha páginas trágicas e mágicas”, invertendo assim a ordem de importância entre a obra de Emile e de sua irmã, Charlotte. 535

É importante enfatizar que, ao longo do tempo o romance teve sua importância reconhecida por autores respeitados, tais como Virginia Wolf e E. M. Foster, enfatizando-se o comentário de Wolf que admira “a grandiosa ambição” de Emile Brontë como romancista de lutar contra “a gigantesca desordem” do mundo. Dessa forma, por seus temas, enredo e, principalmente, emprego da linguagem que em muitos momentos se torna lírica-poética, O morro dos ventos uivantes se tornou, o que pode ser definido como um “mito literário”. Sua apreciação entre os críticos literários e seu sucesso junto a leitores pode ser comprovada, por meio de sua bibliografia, em que constam seis edições em inglês, cinco em francês, uma em espanhol, uma em italiano e cinco em português do Brasil. Pelo que vimos, o tempo passa, mas a obra-prima de Emile Brontë continua mantendo sua áurea de imortalidade intacta. De algum modo, ela é sempre lembrada, seja por meio de releituras dentro da literatura, ou adaptações para o cinema, ou outras formas de expressão artística. Assim, a importância de O morro dos ventos uivantes se configura, principalmente, por seus elementos que o diferenciam dos demais romances góticos escritos durante os séculos XVIII e XIX, demonstrando assim a potencial riqueza investigativa de alguns de seus aspectos, o que constitui a mola propulsora deste projeto de pesquisa. Referências BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. Tradução Aurora F. Bernardini et ali. São Paulo: Editora da UNESP, 1988. ______. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ensantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BRAVO, NICOLE. Duplo. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Tradução Carlos Sussekind e outros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e escola do tempo. Tradução Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. BOTTING, Fred. Gothic. London: Routledge, 1996. BRONTË, Charlote. Jane Eyre. Oxford: Oxford University Press, 1998 [1847]. BRONTË, Charlote. Jane Eyre. Oxford: Oxford University Press, 1998 [1847].

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MITO E METÁFORA NA OBRA DE MANOEL DE BARROS Alexandre Silveira Campos UNESP / FCLAr

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É possível pensar a partir dos problemas de construção da imagem e do contato com a poesia manoelina, como o uso do recurso da metáfora serve, não só para a construção e elaboração de formas próprias da poesia, ou tradicionalmente ligadas a ela, mas também pode estar relacionado com a abordagem de temáticas e conceitos variados. Um caso bastante elucidativo sobre esse aspecto da metáfora pode ser observado em como a filosofia, tal qual representação de um pensamento metafísico ocidental, desde os seus textos primordiais – pensemos, como exemplo, nos diálogos de Platão – utiliza recursos metafóricos. E, sendo assim, busca no “mundo irreal” o qual tem sua instauração irremediavelmente ligada a tais recursos, respostas para o “mundo real”. Essa é uma das razões que justifica a análise da presença do mito, em sentido latu, em um texto poético. Uma outra razão justifica-se pelo fato do mito, ou da sua abordagem, aparecer como um dos recursos dentro do arcabouço temático da poesia de Manoel de Barros. É recorrente na sua poesia o “buscar” na memória, o que já é na verdade um procedimento de leitura ou, no mínimo, de interpretação, imagens ligadas à infância, sendo que ela própria pode ser vista como uma temática “mítica”, ou estar ligada diretamente a mitos que encontrem nesse período da vida do homem explicações, respostas ou somente representações – nesse caso, talvez fosse melhor tratar dessas representações como reflexos – na determinação do seu futuro e na construção da sua história. Assim, o recurso da metáfora, transita e ao mesmo tempo cria uma espécie de ligação entre esses dois posicionamentos, aparentemente opostos, frente ao homem: o da poesia que trata do homem essencialmente como sujeito, subjetivando aquilo que lhe é próprio, e o da filosofia que trata do como homem como evento, historiando aquilo que lhe é próprio. Para eleger essa função é preciso refletir sobre a metáfora não só como procedimento estrutural ou mero jogo de palavras, mas é preciso vê-la como uma categoria de expressão, em outras palavras, como um pensar metafórico. Na opinião de E. Cassier, tal forma de pensamento seria não só uma espécie de ponte entre o mito e a linguagem, mas estaria ligado a eles desde a sua essência, desde uma supostamente origem comum comprovativa, segundo suas palavras:

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“Só se pode entender verdadeiramente, em última instância, que o mito e a linguagem estejam submetidos às mesmas ou à análogas leis espirituais de desenvolvimento, se se consegue apontar uma raiz comum de onde ambos tenham surgido. O caráter comum dos resultados, das configurações que produzem, indica, aqui também, que deve haver uma comunhão última na função do próprio configurar. Para reconhecer essa função como tal e expô-la em sua pureza abstrata, cumpre percorrer os caminhos do mito e da linguagem, não para frente, mas sim para trás – cumpre retroceder até o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes. E este ponto comum parece ser realmente demonstrável, já que, por mais que diferenciem entre si os conteúdos do mito e da linguagem, atua neles uma mesma forma de concepção mental. Trata-se daquela forma, que para abreviar, podemos denominar o pensar metafórico. Portanto, parece que devemos partir da natureza e do significado da metáfora, se quisermos compreender, por um lado, a unidade dos mundos mítico e lingüísticos e, por outro, sua diferença. (...) Ressaltou-se, amiúde, que a metáfora é o vínculo intelectual entre a linguagem e o mito.” (CASSIER, 2000, p. 101-102)

Portanto, a ligação entre mito e poesia (ou linguagem) tem na metáfora um ponto de contato que pode ser descoberto tanto em uma como em outra forma de pensar. Justifica-se assim, a procura pela afloração da expressão mítica na poesia de Manoel de Barros, em um primeiro momento sem nos preocuparmos se ela é intencional ou não, mas simplesmente para ao observarmos as formas, as maneiras e determinadas nuances que o mito, propriamente dito ou a conseqüência de suas releituras e significados, aparece nos poemas através da construção e do jogo metafórico. Aparecem na poesia manoelina momentos em que a expressão ou temática mítica encontram nas formas de construções metafóricas uma possibilidade de realizar-se, não só como leitura ou releitura, mas como própria instauração do mito. E é possível, a partir da possível comprovação dessa leitura – da instauração do mito através de procedimentos metafóricos no texto poético de Manoel de Barros –, levantar questões a cerca da relação poesia e mito. Como por exemplo, a própria dicotomia “mito/poesia”, pensando-se na possibilidade encontrarmos aí alguma maneira de oposição, desloca o mito para um lugar que normalmente não é o seu, ou seja, o afasta do pensamento lúdico e parabólico para o aproximar, por contraposição à linguagem poética, ao pensamento linear e denotativo. Porém, ao invés de observarmos isso, pejorativamente, como uma forma de enfraquecimento do mito, podemos ver tal fenômeno como um descortinamento de uma das faces da expressão mítica, a qual revela a presença – e a importância que deve ser melhor analisada – do logos como elemento, quiçá fundamental, na construção do mito.

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Assim, uma outra questão a ser pensada é como o mito dentro de um arcabouço predominantemente poético realiza o papel de “voz da razão”, aproveitando-se da sua ligação com a metáfora e trazendo para o poema a representação do “mundo real”. Em alguns casos, essa aparição do logos no poema será realmente um choque gerador de tensões dentro do texto, em outros será o pano de fundo para, mais ainda, destacar (ou, até mesmo, criar) a “desconcertância” do mundo irreal. No nosso caso, o mundo do irreal-poético manoelino. Todo poeta tem, necessariamente, uma atitude ativa diante da palavra, pelo menos diante da palavra-comum, ou, se for ele bem sucedido, diante da palavra-poética. Porém, estará sempre o poeta no controle da sua obra? Ou estará sempre ele consciente do “processo”? Ou, quiçá, estará ao menos consciente da sua posição dentro desse processo? Ao analisar uma das tarefas do poeta, dentre tantas possíveis, já se observou que ele precisa “limpar” a palavra dele mesmo, ou seja, na sua relação com a palavracomum, é preciso que ele identifique a si próprio no momento da execução da palavra poética. Esse seria apenas o primeiro passo e, assim mesmo, passível de não ser realizável. Entretanto, ao propor-se tal tarefa, o poeta já se demonstra consciente da sua posição e, no mesmo ato, confidente da sua incapacidade de realizá-lo. O poeta está, nesta altura, a meio caminho, e a consciência do “processo” só lhe revela que não existe mais a possibilidade de retorno o que, normalmente, gera a angústia, não da influência, mas da criação. Se é que essas duas angústias não são uma mesma. Estar a caminho é precisamente o ato de execução da palavra. É o ato que transforma a palavra-comum em palavra-poética. E Manoel de Barros sabe, portanto, que não pode ser condutor, nem sequer dar os ditames do curso a ser seguido; sua posição é, exclusivamente, de passageiro, quando muito – ou seja, quanto maior for sua preocupação metalingüística – sua posição será a de acompanhante. Seria, então, melhor dizer que ele abandona-se ao caminho? Ao contrário, muitas vezes ele o cria, abre novas trilhas, inventa desvios e perde-se em atalhos traiçoeiros. Porém, mesmo ao criar o caminho, tal via não lhe pertence, nunca, nem na primeira fração de segundo imediata após a criação. Pois, se lhe pertencesse, talvez ele não seguisse por ela, se soubesse dos seus percalços e armadilhas; no mínimo, ele a “mandaria ladrilhar”. Lembre-se, aqui, daqueles não raros seguidores do caminho da palavra-poética que deixaram a história como suicidas. Talvez, por isso, tenhamos a tendência de ver 542

algo de poético nos japoneses que foram pilotos “kamikazes” na Segunda Grande Guerra e algo de heróico e altruístico nos poetas. Seria, talvez, interessante um trabalho que demonstrasse as origens dessas formas no imaginário atual, tanto a imagem do “guerreiro-poeta” quanto a do “poeta-herói” (BOSI, 2000, p. 163). É interessante apontar que momento em que se trata do percurso do criador das imagens, nota-se como ele próprio, o poeta, é transformado, ou absorvido pelas suas imagens. O poeta-herói nada mais é, a princípio, do que uma imagem resultante do reflexo das imagens que ele próprio produziu, ou seja, das imagens da sua obra. Nada mais é do que ele próprio transformado em obra, em imagem. O caminho de Manoel de Barros, o jogo das imagens, com algumas das características já aqui apontadas, tem um fim, que é o mesmo objetivo comum a todo processo de linguagem: o outro. Como já alertou o pesquisador russo Mikhail Bakhtin, “toda a vida da linguagem, seja qual for seu campo de emprego (a cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.) está impregnada de relações dialógicas” (BAKHTIN, 1981, p. 122). O teórico da linguagem refere-se tanto às múltiplas vozes que impregnam todo discurso (polifonia), como também, o que poucas vezes se tem notado, à voz que impregnará múltiplos discursos, ou seja, a característica dialógica tanto da linguagem usual, como também da linguagem poética, que é a continuidade do ato de execução da palavra, comum ou poética. Eis, então, o objetivo de Manoel de Barros, que é comum a qualquer processo da linguagem e, ao mesmo tempo, o que o diferencia dos outros processos pela sua característica fundamental: livrar a palavra do seu peso, seja o peso do poeta, como já se disse, seja o peso do destinatário, seguindo a pista dada por Bakhtin. Ainda assim, não parece possível definir, com precisão e rigor discriminativo, toda a seqüência de procedimentos, incluindo-se as variações possíveis, que o poeta executa na transformação ou transmutação da palavra-comum em palavra-poética. Manoel de Barros se assemelha ao “semeador”, como na metáfora universal do pregador, que lança suas sementes – neste caso, a palavra-poética – à estrada e, não tendo a preocupação do cultivo, joga-as em todo o tipo de terreno, dependendo, assim, o seu sucesso do tipo de terreno em que caíram as palavras. Só se caírem em terreno fértil – que equivaleria, aqui, a um leitor exemplar, se se pudesse pensar em um tipo de leitormodelo – é que virão a ser palavras-poéticas. Porém, Manoel de Barros distancia-se do semeador, na medida em que requer do “outro” não só uma atitude, como aquela da semente em relação ao solo a que foi destinada, mas também, um valor. 543

Barros depende de uma aceitação não natural do seu interlocutor, depende de uma grande variedade de processos de valoração: análise, crítica, interpretação, aceitação/rejeição (é preciso lembrar que muitos poetas foram instituídos como tais por vários tipos de rejeição; Oswald de Andrade, por exemplo) etc. Todas essas formas de valor, que podem ser chamadas apenas de interpretação, deslocam todo poeta, primeiramente da sua aparente solidão, mas, principalmente, da indiferença provocada pela tarefa de livrar a palavra de seu peso. Esse deslocamento não depende da postura do autor, mesmo aquele que mandou que queimassem seus versos teve como primeiro e mais destrutivo crítico, a própria leitura. O poeta haveria de esquecer a todos, as outras vozes, para estabelecer a relação “sua”, que transformaria a palavra-comum em palavra-poética. Mas essa indiferença necessária não o torna imune, principalmente se feita por si próprio, ao efeito de uma simples leitura. Se é que é possível separar escrita e leitura. Portanto, Manoel de Barros não é só um ingênuo semeador lançando sementes ao vento; ao contrário, ele grita e espera o maior lance. Ele apregoa o valor do seu produto e o seu próprio valor. Ele apregoa a imagem. Trata-se aqui da imagem poética, a qual pode ser realizada por uma série de procedimentos, dentre eles a metáfora. Referências BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense, 1981. BARROS, Manoel de. Arranjos Para Assobio. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. ______. Compêndio Para Uso dos Pássaros. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. ______. Ensaios Fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000. BARTHES, Roland. O Grau Zero. São Paulo: Ed. Cultrix, 1993. BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1995 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 36ª Ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1994. ______. Poesia e Resistência. In: O Ser e o Tempo da Poesia. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CASSIER, E. Linguagem e Mito. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

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ENTRE O DEVER E A AMIZADE: UM CAMINHO EM DIREÇÃO À VERDADE Amauri Faria de Oliveira Filho UNESP / FCLAr Eisenstein aponta com fundamental a “necessidade da exposição coerente e orgânica do tema, do material, da trama, da ação” (EISENSTEIN, 2002, p. 13) em qualquer obra de arte. Nesse sentido, a montagem das cenas, seja no cinema, seja na literatura coloca-se como um poderoso elemento articulador na construção dos aspectos lógicos e emocionais de uma narrativa. Em Campo Geral de Guimarães Rosa, passagem de intensa densidade lírica que faz uso profícuo desse recurso é aquela na qual o protagonista é abordado por seu tio Terêz ao levar o almoço para o pai que trabalhava na roça. O tio fora expulso de casa pela Vó Izidra depois de um episódio, classificado pela avó como do tipo que resulta em “questão de brigas e mortes, desmanchando com as famílias” (ROSA, 2001, p.41), que sugere uma possível relação extraconjugal entre ele e Nhanina, mãe de Miguilim. O surgimento do tio, entre as árvores, de surdina, e seu pedido para que o menino levasse um bilhete escondido à mãe corroboram aquilo que é aventado pela avó. A incerteza a respeito de qual atitude tomar perante o pedido, de como ser leal ao pai e ao mesmo tempo não desapontar o tio, leva Miguilim a questionar vários membros da família sobre o que é o certo e o errado. Agravante é a sua relação com o pai, cujas expectativas em relação ao seu papel como filho e às tarefas da roça, ele parece sempre falhar em atender. “A coisa mais difícil que tinha era a gente poder saber fazer tudo certo, para os outros não ralharem, não quererem castigar.” (ROSA, 2001, p. 88) No momento mais fecundo do episódio, quando Miguilim questiona alguns parentes acerca do imbróglio que está vivenciando, há várias mudanças de cena,

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representando as interpelações a cada membro da família, intercaladas de cenas cotidianas. Eisenstein aponta que imagens distintas colocadas juntas “inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposição”, pois é natural e muito forte a tendência a tecer uma “síntese dedutiva definida” (EISENSTEIN, 2002, p. 14) quando isso acontece. No caso dessa passagem de Campo Geral, além de servir como marcadoras da passagem do tempo entre um questionamento e o próximo, a montagem assim disposta pode também sugerir que o dilema que está vivendo restringe-se ao universo interior da personagem – o ramerrão da família continua o mesmo. A construção sintática da pergunta se dá, por parte de Miguilim, de variadas formas, com períodos fragmentados marcados pelo uso de hipérbatos, elipses, repetições e eufemismos. Essa característica remete à confusão mental que a criança se encontra deparada com a dúvida moral de trair ou não a confiança do pai, e ao mesmo tempo, é um modo linguisticamente astuto de esconder a verdade de todos os outros, já que Tio Terêz lhe pedira que guardasse segredo. Apesar desse esforço, o irmãozinho Dito desconfia de todas aquelas perguntas e, ao contrário de acusar o irmão mais velho, tem sensibilidade de respeitar seu segredo apenas aconselhando-o: “Escuta, Miguilim, esbarra de estar perguntando, vão pensar você furtou qualquer trem de Pai”. (ROSA, 2001, p. 87) É importante destacar que as perguntas são dirigidas ao irmãozinho Dito, “menor, muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma certeza, descarecia de perguntar” (ROSA, 2001, p. 98), e aos adultos, aqueles que supostamente, de acordo com o que a criança imagina, deveriam já ter resolvidas questões morais como fidelidade e honestidade. No universo de Rosa, sertão que é microcosmo de mundo, o caminho da probidade, no entanto, nem sempre se apresenta como o mais claro seja na infância, seja em outros períodos da vida. Os adultos não têm respostas esclarecedoras. Cada um tem uma visão diferente sobre o certo e o ‘malfeito’ e nenhuma resposta o ajuda no difícil transe de resolver o dilema “cuja gravidade não podia aquilatar mas já deslumbrava” (LISBOA, 1994, p. 138). A disposição sequencial das cenas, em que são expressas as opiniões de cada um, evoca um imbróglio moral universal: como ser sincero e fiel às regras que norteiam a honra e a probidade? A aplicabilidade dessa dúvida a todos os indivíduos, seu caráter existencial e atemporal, é reforçada na repetição da estrutura “a gente” por parte do protagonista:

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Dito, como é que a gente sabe certo como não deve de fazer alguma coisa, mesmo os outros não estando vendo? (...) Rosa, quando é que a gente sabe que uma coisa que vai não fazer é malfeito? (ROSA, 2001, p. 86) (...) Mãe, o que a gente faz, se é mal, se é bem, ver quando é que a gente sabe? (ibid, id, p. 87) (...) Vaqueiro Jé: malfeito como é, que a gente se sabe? (ibid, id, p. 87) (grifo nosso)

O resultado dessa montagem resgata os ensinamentos de Eisenstein segundo o qual “a justaposição de dois planos isolados através de sua união não parece a simples soma de um plano mais outro plano – mas o produto.” (EISENSTEIN, 2002, p. 16). A união dos vários fragmentos nessa passagem da vida de Miguilim resulta, como que de forma sinergética, no destaque de um momento decisivo da vida do menino míope, obrigado a encontrar, de modo quase intuitivo, seu próprio norte moral ao tomar a decisão no dia seguinte. É patente o valor de adensamento do significado na montagem da cena descrita, pois cada representação particular concorre para que o tema do amadurecimento, - no período da infância, fase de sofrimentos, incertezas e grande tormentos durante a qual aprende-se sobre o que é, o que não é, o que se pode, o que não se pode - , emerja como uma imagem profundamente emocional e, por esse mesmo motivo, comunicativa ao leitor. De acordo com Eisenstein: Na verdade, para conseguir seu resultado, uma obra de arte dirige toda a sutileza de seus métodos para o processo. Uma obra de arte, entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador. É isto que constitui a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital e a distingue da inanimada, na qual o espectador recebe o resultado consumado de um determinado processo de criação, em vez de ser absorvido no processo à medida que este se verifica. (EISENSTEIN, 2002, p. 21)

Guimarães Rosa é desses escritores que não abre mão da participação do leitor nesse processo. Ao lado de recursos como o da montagem, sua constante reinvenção da língua, na busca da combinação perfeita entre plano de conteúdo e plano de expressão, exige total comprometimento do leitor que é levado a aceitar o jogo linguístico, a abandonar a familiaridade da língua cotidiana na busca de toda a potencialidade do verbo, de forma a compreender e desvendar as armadilhas do texto, transformando-se, assim, em parte do processo da criação poética. É assim que as personagens rosianas são capazes de produzir impressões tão reais e universais, apesar de tão remotas e 547

circunscritas a um mundo tão peculiar como o sertão. Cada uma delas é construída num trabalho mútuo e cooperativo entre narrador e leitor ao longo do curso da narrativa, não como simples títeres com características determinadas a priori. Eisenstein realça a importância, no caso do cinema, dessa participação do espectador: A força da montagem reside nisto, no fato de incluir no processo criativo a razão e o sentimento do espectador. O espectador é compelido a passar pela mesma estrada criativa trilhada pelo autor para criar a imagem. O espectador não apenas vê os elementos representados na obra terminada, mas também experimenta o processo dinâmico do surgimento e reunião da imagem, exatamente como foi experimentado pelo autor. (EISENSTEIN, 2002, p. 29)

A infeliz situação na qual Miguilim se encontra o obriga escolher entre o pai, com quem tem um elo de sangue e cuja afeição busca incansavelmente conquistar, e o tio, com quem tem natural empatia e que o considera, mesmo sendo criança, um amigo, “é a luta entre o dever e a amizade” (LISBOA, 1994, p. 138). O encadeamento das cenas com perguntas e respostas cria um senso de gradação, de urgência à busca da criança a respeito de como agir – inclusive porque há uma diminuição no número de sílabas poéticas, criando o efeito de perguntas cada vez mais curtas –, já que o tio marcara um novo encontro, no qual esperaria a resposta da mãe, logo no dia seguinte. Sua total inadequabilidade para lidar com os aspectos prosaicos da vida no Mutum é também traço da falta de maturidade, da trajetória do crescimento desse menino. Assim, quando falham em obter respostas conclusivas exteriormente as perguntas voltam-se para o mundo interior, num processo de autoexaminação que culmina numa decisão movida pela intuição sensível da criança em detrimento das regras do mundo empírico. Ao concluir os questionamentos, a última fala do irmão Dito provoca em Miguilim uma reação que beira a impaciência. Por meio do discurso indireto livre, o narrador dá voz à frustração do protagonista diante da quase certa impossibilidade de se descobrir, de uma vez por todas, como agir de forma correta. “O Dito, porque não era com ele. Fosse com ele, desse jeito não caçoava.” (ROSA, 2001, p. 87) Essa cena encaixada ao fim da sequência de cortes promove um adensamento emocional conferindo profundidade ao estado de desalento e angústia do menino. Ela só pode ter esse comportamento geral emocionalmente correto, correto no sentido de que é apropriado a um estado ou sentimento verdadeiramente vivenciado (EISENSTEIN, 2002, p. 32), nessa posição final, resultado da combinação das situações anteriores. Os grupos individuais de diálogos se transformam numa sensação geral da experiência

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vivida por Miguilim. No percurso traçado pela montagem e percorrido pelo leitor, ele é convidado a experimentar essa mesma sensação, essencial para o crescimento emotivo da criança. Para Eisenstein: A montagem tem um significado realista quando os fragmentos isolados produzem, em justaposição, o quadro geral, a síntese do tema. Isto é, a imagem que incorpora o tema. (EISENSTEIN, 2002, p. 28)

O episódio remete a um tema recorrente nos textos de Guimarães Rosa. Frequentemente institui-se em suas narrativas outra ordem que não aquela da racionalidade empírica, negando a dicotomia do “discurso hegemônico da lógica ocidental” (COUTINHO, 1994, p. 21) que propõe como as únicas possíveis escolhas o ‘sim’ ou o ‘não’, elegendo uma terceira possibilidade: o ‘ou’. A adaptação da novela rosiana para o cinema, intitulada Mutum e dirigida por Sandra Kogut, que ao lado de Ana Luiza Martins Costa também é responsável pelo roteiro, data de 2007. Em entrevista publicada no site oficial do filme, a diretora afirma: o filme não é exatamente uma adaptação, acho que é mais uma conversa com o livro. Sua obra destaca adequadamente o caráter atemporal do texto rosiano e das questões que levanta, pois há vários elementos da modernidade presentes nas cenas como camisetas e objetos de plástico, que evidenciam que o filme foi produzido nos dias de hoje, sem prejuízo para a história. A questão do bem e do mal, exemplificado pelo episódio em questão neste trabalho, é preocupação da cineasta: Quando você é criança, as regras são com frequência a coisa mais misteriosa do mundo, e é difícil entender o que é certo e o que é errado. A gente passa muito tempo se debatendo com isso e tem a sensação presente de que as regras são diferentes para os adultos e para as crianças. Quando você é criança, isso pode ser difícil de entender e muitas vezes parecer uma grande injustiça.

Na visão da diretora a cena em que o protagonista faz indagações aos diferentes membros da família não contém os cortes do texto de Guimarães Rosa. Ao contrário disso, a câmera fixa-se no rosto do protagonista, principalmente no seu olhar interrogativo, enquanto ele pergunta e ouve as respostas de apenas dois membros da família, Rosa e a mãe. O elemento cotidiano foi recriado no fato das duas personagens femininas estarem envolvidas com afazeres domésticos relacionados à alimentação e

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não pararem o trabalho para tratar da interrogação proposta pelo menino, que por sinal é requerido a auxiliar nas tarefas durante a conversa. Apesar da ausência da ausência de cortes, a montagem do episódio como um todo, desde o encontro com o tio na mata até o desenlace com o choro no reencontro do dia seguinte, é responsável pelo adensamento lírico e emocional. Devido ao caráter mais dinâmico do cinema, e da necessidade de recortes (alterar, simplificar, comprimir ou eliminar material) na adaptação de um texto literário para o cinema, a cena, apesar de curta em duração, é extremamente comunicativa da dúvida e angústia vividas por Miguilim. David Howard e Edward Mabley apontam para essa dificuldade em uma adaptação: Quem escreve uma adaptação tem de contrabalançar constantemente esses dois lados: a fidelidade à fonte original e a necessidade dramática de intensidade e compressão – questões difíceis por natureza. (HOWARD, D. & MABLEY, E., 2002, p. 37)

Outro desafio é transpor para o cinema a voz do narrador que, em Campo Geral, é modalizada pelo olhar míope do protagonista Miguilim ao contar sua história. Um aspecto essencial do narrador rosiano de recriação e reinvenção da linguagem, de profundidade comunicativa espessa e polissêmica simplesmente não pode ser recriada. Na cena em estudo, no entanto, o mais importante é alcançado: não uma autêntica recriação do texto original, que certamente não teria o mesmo impacto dramático, mas uma adaptação que se manteve “fiel ao espírito da história original” (HOWARD, D. & MABLEY, E., 2002, p.38). Referências COUTINHO, E. F. Guimarães Rosa: um Alquimista da Palavra. In: João Guimarães Rosa, Ficção Completa em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 1124. EISENSTEIN, S. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 13-50. HOWARD, D. & MABLEY, E. Teoria e prática do roteiro: um guia para escritores de cinema e televisão. 3a ed. Trad. Beth Vieira. São Paulo: Globo, 2002. LISBOA, H. O motivo infantil na obra de Guimarães Rosa. In: João Guimarães Rosa, Ficção Completa em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 133-141. MARTINS, N. S. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: EDUSP, 2001.

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RICHARDS, I. A. Princípios de crítica literária. 2ª ed. Trad. Rosaura Eichenberg, Flávio Oliveira e Paulo Roberto do Carmo. Porto Alegre: Globo, 1971. ROSA, G. Manuelzão e Miguilim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

OBSERVAÇÕES SOBRE A DIMENSÃO PATÊMICA DO DISCURSO EM O ATENEU DE RAUL POMPÉIA Ana Carolina de Picoli de Souza Cruz [email protected] RESUMO O presente trabalho tem por objetivo tecer algumas reflexões sobre a dimensão patêmica do discurso no romance O Ateneu de Raul Pompéia. Nessa obra, o narradorpersonagem reconta a experiência de sua infância em um internato por meio da memória. O discurso - composto por observações do narrador Sérgio já adulto e pelas descrições de suas ações ainda criança no internato - é impregnado de impressões nas quais se observa o ressentimento. Esse afeto dá o tom da enunciação que é a leitura adulta da emoção infantil de Sérgio no internato. As “crônicas de saudades” (subtítulo da obra) revelam a decepção com o outro – representado pelo microcosmo social do internato – e com ele mesmo, prisioneiro ainda de um pretérito sacralizado na memória e atualizado pelo discurso. Se há um discurso apaixonado que determina o desenvolvimento da narrativa, é possível observar-se o discurso da paixão no romance, uma vez que os afetos citados são representados, principalmente pelo fogo. Greimas, Fontanille, Bertrand, Fiorin são os teóricos nos quais as observações a serem tecidas neste trabalho sustentam-se.

PALAVRAS-CHAVE: discurso apaixonado, discurso da paixão, memória, narrador, fogo. Introdução

Antes de iniciarmos nossas observações acerca da dimensão patêmica do discurso em O Ateneu de Raul Pompéia, é importante retomarmos a diferença entre o discurso da paixão e o discurso apaixonado, adotada por Greimas. Segundo o linguista francês, o discurso apaixonado é aquele que dá o tom da enunciação, ou seja, há na enunciação expressões que modulam o discurso. Já o discurso da paixão apresenta-se no enunciado; é, portanto, a representação de um afeto, de uma paixão figurativizada pelas ações das personagens e por elementos concretos que representam esses afetos. Desde o início do romance O Ateneu de Raul Pompéia, pode-se notar o caráter de recordação, que é comprovado pela distância temporal entre o passado do enunciado e o presente da enunciação. Sérgio (narrador-personagem) reconta a experiência de sua

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infância no internato, demonstrando o alto grau de subjetividade da narrativa, bem como o conhecimento da totalidade da história que narra. É a leitura adulta da vivência infantil repleta de juízos de valor, sem nenhuma ingenuidade. “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico; diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, [...] Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora, e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam. Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. [...] Eu tinha onze anos. (POMPÉIA, 1993, p. 21)

A distância temporal entre Sérgio adulto e Sérgio criança, marcada pelo uso do pretérito e pelo advérbio “depois”, reafirma o tom de avaliação do presente da enunciação, bem como o tom de decepção e ressentimento expressos na valoração irônica da experiência infantil: “Bastante experimentei depois a verdade deste aviso [...]”, “saudade hipócrita, dos felizes tempos; [...]” (POMPÉIA, 1993, p. 21). A carga de afetos presentes no parágrafo que abre o romance percorre-o até o final. A enunciação é o testemunho do enunciador sobre um período de sua vida, apresentando ao leitor suas relações com esse passado e suas reflexões sobre as consequências por ele deixadas. É o discurso apaixonado flagrado no uso da memória, na valoração das sensações das experiências vividas, no uso do tempo psicológico, como se observa no trecho a seguir, em que as observações de Sérgio adulto mesclam o passado vivido e o presente reflexivo. Nessa reflexão, o leitor é também convidado a “avaliar” as sensações do menino de onze anos: É fácil conceber a atração que me chamava para aquele mundo tão altamente interessante, no conceito das minhas impressões. Avaliem o prazer que tive, quando me disse meu pai que eu ia ser apresentado ao diretor do Ateneu e à matrícula. O movimento não era mais a vaidade, antes o legítimo instinto da responsabilidade altiva, era uma consequência apaixonada da sedução do espetáculo, o arroubo de solidariedade que me parecia prender à comunhão fraternal da escola. Honrado engano, esse ardor franco por uma empresa ideal de energia

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e de dedicação premeditada confusamente, no cálculo pobre de uma experiência de dez anos. (POMPÉIA, 1993, p. 30) (Grifos nossos)

Mas se há o discurso apaixonado, é possível observar-se também o discurso das paixões. O medo, a desilusão e o ressentimento são afetos expressos em vários capítulos do romance. Do início até o fim da obra, há uma gradação na apresentação dessas paixões. Em um primeiro momento, o medo é o sentimento que acomete Sérgio. Essa paixão tem como principal característica uma intensa sensação de angústia diante de um perigo real ou imaginário. O primeiro medo de Sérgio é o de deixar o lar:

[...] Destacada do conchego placentário da dieta caseira vinha próximo o momento de se definir a minha individualidade. Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste os meus brinquedos, antigos já! Os meus queridos pelotões de chumbo! espécie de museu militar de todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos estados, em proporções de microscópio, que eu fazia guerrear em desordenado aperto, − massa tempestuosa das antipatias geográficas, encontro definitivo e ebulição dos seculares ódio de fronteira e de raça, que eu pacificava por fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo sabiamente as pendências pela concórdia promíscua das caixas de pau. Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido reclame, [...] (POMPÉIA, 1993, p. 22) (Grifos nossos).

Deixar o “conchego placentário”, sua infância com seus brinquedos e brincadeiras, e ir ao encontro da individualidade é amadurecer e esse processo causa, em um primeiro momento (que é o do mundo imaginado) uma euforia para depois, vivendo a realidade do internato, tornar-se uma disforia. Das ilusões e imaginações da criança, surge uma mescla entre medo e desilusão, pois Sérgio é destituído do lar acolhedor, da “dieta caseira” e passa a sentir-se incompleto. À medida que a falta do “conchego placentário” vai se instaurando, aumentam os temores e concretizam-se as desilusões, como exemplifica a passagem: “Onde meter a máquina dos meus ideais naquele mundo de brutalidade que me intimidava, com os obscuros detalhes e as perspectivas informes escapando à investigação da minha inexperiência?” (POMPÉIA, 1993, p. 47). O garoto inexperiente, agora no regime do internato, vê-se diante um mundo antes idealizado e que, aos poucos, vai se revelando como um espaço atemorizante, que reforça a sensação de perda. Além do medo instaurado pelo ambiente de adversidades, há também o medo em relação ao grande diretor do Atheaneum, o Dr. Aristarco Argolo de Ramos, comparado à austeridade da figura mitológica de Júpiter.

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Medo e desilusão vão gradativamente aumentando no discurso construído por Sérgio tanto na intensidade, quanto na extensão. As paixões e a construção da claustrotopia Ao início do capítulo sete, Sérgio começa a descrever o tédio e, com primazia, traça uma ponte entre medo e desilusão, cujo alicerce é a sensação do cárcere. Nas horas longuíssimas do recreio, os rapazes passeavam calados, destruindo a comunhão usual dos brincos, como se temessem estragar mais alegria naquele cativeiro, certos de melhor emprego em breve. Pelas paredes a carvão, pelas tábuas negras a traços brancos, arranhada na caliça, escrita a lápis ou a tinta, por todos os cantos viase esta proclamação: Viva às férias! [...] Eu, solitário, ia e vinha como os outros, percorrendo o pátio, marcando a bocejos os prazos alternados de impaciência e resignação, vendo pairar por cima do recreio um papagaio que soltavam meninos da rua para as bandas do Ateneu. Invejava-lhe a sorte, ao papagaio cabeceando alegre, ondeando a balouçar, estatelando-se no vento, pássaro caprichoso, dominando vermelho o vasto retângulo azul que as paredes cortavam no firmamento, solitário, solitário como eu, cativo também – mas ao alto e lá fora. (POMPÉIA, 1993, p. 127) (Grifos nossos)

Já não há mais o menino inocente, sonhador, cheio de anseios por “encontrar o mundo”, mas sim um sujeito repleto de tédio; o espaço - antes intimidador apenas - é elevado à ordem de cativeiro; o garoto de onze anos não é mais um interno, mas um “solitário, cativo”. O movimento metafórico de “encontrar o mundo” transforma-se em um paradoxo, uma vez que o encontro com o espaço tão vasto, amplo, cheio de possibilidades, como é o do “mundo”, dá-se em um espaço restrito, cercado por paredes “caiadas de tédio”, limitado. Quanto mais o tempo passa, mais é reiterada a evolução negativa com que Sérgio desvenda o internato. Quanto mais reflete sobre a experiência do colégio, mais Sérgio deixa transparecer a intensidade das paixões medo e desilusão que, aliadas à sensação de cárcere, com o decorrer da enunciação, passam a gerar o ressentimento. No ano seguinte, o Ateneu revelou-se-me noutro aspecto. Conhecera-o interessante, com as situações do que é novo, com as projeções obscuras de perspectiva, desafiando curiosidade e receio; conhecera-o insípido e banal como os mistérios resolvidos, caiado de tédio; conhecia-o agora um intolerável como um cárcere, murado de desejos e privações. [...] Desesperava-me então ver-me duplamente algemado à contingência de ser irremissivelmente pequeno ainda e colegial. Colegial, quase calceta! marcado com um número escravo dos limites da casa e do despotismo da administração. (POMPÉIA, 1993, p. 141)

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A reflexão de Sérgio é de ordem claustrosófica, termo usado por Vecchi (2008) para designar a “possibilidade de fundar a partir do cárcere o que chamaria de uma claustrosofia, isto é, um saber que surge da experiência de ‘abandono’ (filosoficamente) do detento na cela, [...].” (VECCHI, 2008). A claustrosofia reafirma a sensação de falta do sujeito que enuncia, por isso discurso apaixonado e discurso da paixão caminham juntos no romance, entrelaçados, contribuindo para a instauração da claustrotopia, entendida não apenas como lugar de clausura, mas como um topos no qual se disseminam discursos específicos, um topos de discursos modeladores (CRUZ, 2010, p. 91-92). A claustrotopia gera paixões, mas é, ao mesmo tempo, construída por elas. A grande paixão gerada por ela é a do ressentimento. Em seu texto intitulado “Semiótica das paixões: o ressentimento”, Fiorin (2007) afirma acerca desse estado passional que ele é fruto da decepção, da falta fiduciária. Para o autor: Esse estado passional é imperfectivo, ou seja, inacabado e, por conseguinte, durativo. O prefixo re- indica que se trata de uma duratividade descontínua, é como se o ressentido sentisse outra vez a ofensa ou o mal sofrido como no momento em que eles foram cometidos, é um eterno retorno, é uma reiteração incessante do sentimento. Aspectualizado pela iteratividade, a temporalidade do ressentimento é o presente. Além disso, esse estado passional é modulado pela intensidade. Seu andamento é lento. No entanto, a questão central não é a ofensa em si que dói, mas é o fato de que o sujeito que deveria fazer alguma coisa não o fez. [...] O ressentimento é a paixão dos impotentes, dos fracos. (FIORIN, 2007, p. 15-16).

Observa-se, no romance, exatamente a questão destacada por Fiorin sobre o tempo do ressentimento e a impotência do ressentido. A memória traz à tona o vivido que passa a ser (re) vivido no presente da enunciação. Quanto mais as lembranças afloram no discurso de Sérgio adulto, mais emerge no plano semântico a análise, a avaliação, a valoração dessas experiências da infância. Isso equivale a dizer que a leitura adulta da experiência infantil é toda pautada no ressentimento. A gradação das paixões medo, desilusão, tédio, ressentimento revela o aumento da intensidade passional e, ao mesmo tempo, a duração (ou permanência) do ressentimento. Podemos afirmar, então, que o esquema tensivo é o da amplificação. A questão da aliança entre o ressentimento e os “fracos” é comprovada pelas atitudes de Sérgio criança que, ao contrário de rebelar-se, esconde-se, cai em estado febril, apresenta-se, enfim como passivo durante todo o romance. Outro fato que reitera

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essa posição é o de que é Américo, rapaz há pouco matriculado no internato, quem ateia fogo ao colégio de Aristarco. Fogo e Discurso da paixão Assim como o fogo arde e oscila em suas chamas, também os sentimentos que movem os discursos e as ações o fazem. Se a dimensão passional nos discursos trata a paixão enquanto “efeito de sentido inscrito e codificado na linguagem” (BERTRAND, 2003, p. 358), é possível relacioná-la aos ímpetos que movem as personagens em suas subjetividades. Ao analisarmos três grandes figuras do romance em questão: Aristarco, Américo e Sérgio, encontrar-se-á o indício do fogo que reforça (e revela) seus respectivos discursos da paixão. No caso de Aristarco, há uma ligação entre o discurso e o fogo presentes em sua retórica, uma retórica de chamas que, naturalmente, não purificam e elevam, mas ao contrário, obscurecem, sufocam, corroborando a questão da claustrotopia enquanto espaço de discursos que confinam. A cena na qual se fala de fogo pela primeira vez na obra de Pompéia é o momento da distribuição de prêmios. E ele surge exatamente dos olhos do diretor. Seu filho Jorge, na distribuição dos prêmios, recusara-se a beijar a mão da princesa, como faziam todos ao receber a medalha. Era republicano o pirralho. [...] Aristarco, porém chamou o menino à parte. Encarou-o silenciosamente e – nada mais. E ninguém mais viu o republicano! Consumira-se naturalmente o infeliz, cremado ao fogo daquele olhar! Nesse momento as bandas tocavam o hino da monarquia jurada, última verba do programa. (POMPÉIA, 1993, p. 28-29) (Grifos nossos)

Aristarco, naquele momento, carrega em si o fogo da destruição e é movido pela contrariedade à sua vontade. É capaz de dominar o outro pelo olhar, é capaz de cremar com o olhar que oprime, incendeia, consome. Aristarco é o legítimo representante daquele que detém o conhecimento, afinal era um pedagogo renomado, mas o exerce autoritariamente, para punir. Ele representa o paradoxo do fogo que, segundo Bachelard (2008), é um elemento que contém em si a bipolaridade bem e mal: Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno. É doçura e tortura. Cozinha e apocalipse. É prazer para a criança sentada ajuizadamente junto à

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lareira; castiga, no entanto, toda desobediência quando se quer brincar demasiado de perto com suas chamas. O fogo é bem-estar e respeito. É um deus tutelar e terrível, bom e mau. Pode contradizer-se, por isso é um dos princípios de explicação universal. (BACHELARD, 2008, p. 12)

A paixão que rege o discurso de Aristarco é a da prepotência. Oposto a ele, mas não menos prepotente, está Américo que ocupa o outro lado da mesma linha semântica de Aristarco, já que as características comuns a eles são a trapaça e a adulação. Américo é a “fera respeitável” (POMPÉIA, 1993, p. 206), vinda da roça, que se deixa dominar muito facilmente para, então, revelar-se. Aristarco encontra, finalmente, um rival à sua altura, capaz também de lidar com o fogo, capaz de trapacear como Prometeu. A paixão de Américo é a cólera, resultado da frustração de um sujeito em relação à privação de um objeto do qual ele crê ter direito. Essa paixão intensifica, segundo Bertrand (2003), o estado de disjunção. O resultado dela é a vingança. Em Sérgio, o fogo aparece como um indício, um aviso. No último capítulo, que trata do incêndio, o narrador-personagem descreve o ambiente da enfermaria em que se encontra devido ao seu estado febril. Enquanto Sérgio arde em febre, Américo arde em sua atitude e o internato de Aristarco arde em chamas. É nesse momento, talvez mais evidente que em outros, que ele assume o papel do ressentido, aquele incapaz de agir ou reagir, o impotente; reitera-se, portanto, a paixão que permeia o discurso de Sérgio: o ressentimento. As paixões, ao mesmo tempo em que modulam os discursos, manifestam-se por meio deles e criam em “O Ateneu” de Raul Pompéia o mote do enunciador para reviver a experiência do passado sacralizada na memória, numa tentativa (talvez) de discursivizando-a, dela se libertar. Referências BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. 3ª ed. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2008. BERTRAND, Denis. Caminhos da Semiótica literária. Tradução do GRUPO CASA, sob a coordenação de Ivã Carlos Lopes, Edna Maria F. S. Nascimento, Mariza B. T. Mendes, Marisa Giannechini de Souza. Bauru: EDUSC, 2003. CRUZ, Ana Carolina de Picoli de Souza. O Ateneu de Raul Pompéia: uma claustrotopia – espaço de discursos modeladores. Dissertação de Mestrado em Estudos Literários – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara, 2010.

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FIORIN, José Luiz. Semiótica das paixões: o ressentimento. Alfa, São Paulo, 51 (1): 922, 2007. FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Tradução Jean Cristtus Portela. São Paulo: Contexto, 2007. POMPÉIA, Raul. O Ateneu; apuração do texto em confronto com o original e introdução por Therezinha Bartholo, ilustrações do autor. Rio de Janeiro: Francisco. Alves, 1993. VECCHI, Roberto. Alegorias claustrosóficas: o pensamento confinado, a exceção e a história literária. In: CONGRESSO INTERNACIONAL ABRALIC, 11, 2008. São Paulo, USP. Confinamento e deslocamento na criação literária: escalas do tempo histórico. Disponível em Acesso em 27/09/09.

ESTAVAS, LINDA INÊS, POSTA EM QUADRINHOS: AS QUADRINIZAÇÕES DE OS LUSÍADAS Ana Cláudia da Silva O poema épico de Camões foi objeto de três diferentes processos de quadrinização: no Brasil, em 1973, elaborado por Anísio e Rosso, surge a primeira adaptação, como edição comemorativa dos 400 anos da obra camoniana; Ruy, em Portugal (1983), faz a primeira quadrinização portuguesa de Os lusíadas, em três volumes; o ilustrador Fido Nesti responde pela segunda transposição brasileira da obra para quadrinhos, publicada em 2006. Neste estudo, refletimos sobre as diferenças entre essas diferentes transposições, tomando, para isso, como recorte, o episódio de Inês de Castro. Nosso ponto de partida é uma reflexão sobre as adaptações de textos literários para a linguagem dos quadrinhos; em seguida, discutimos a relevância do episódio selecionado e, por fim, apresentamos os diferentes trabalhos de quadrinização da história de Inês de Castro, apontando os diálogos intertextuais que se inserem nas diferentes produções. Literatura em quadrinhos A adaptação de obras literárias para outras linguagens foi, por muitos anos, um objeto de estudo de importância secundária nos estudos acadêmicos, pela sua característica de facilitação da leitura de obras que deveriam sem lidas no original; a substituição da leitura literária pela leitura das adaptações (filmes, quadrinhos, teatro)

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tem sido prática corrente entre estudantes de todos os níveis de ensino. Há pesquisas, porém, que mostram que a fruição das obras adaptadas estimula pouco mais da metade dos leitores a ler a obra original. 1 Em seu ensaio “Literatura e subdesenvolvimento”, Antonio Candido elenca a história em quadrinhos como uma das manifestações da cultura de massa; para ele, essas manifestações estão no domínio das pessoas alfabetizadas; ser alfabetizado, contudo, não significa ser leitor de literatura. Há, no pensamento do crítico, uma grande distância entre o leitor de quadrinhos e o leitor literário. Embora alguns autores considerem os quadrinhos como parte de um conceito mais amplo de literatura (cf. CIRNE et al., 2002), estudos mais recentes vêm desfazendo essa aproximação. Para Paulo Ramos, Chamar quadrinhos de literatura [...] nada mais é do que uma forma de procurar rótulos socialmente aceitos ou academicamente prestigiados [...] como argumento para justificar os quadrinhos, historicamente vistos de maneira pejorativa, inclusive no meio universitário. (RAMOS, 2010, p. 17).

Ramos defende a ideia de que os quadrinhos constituem uma linguagem autônoma, com características próprias. O leitor dos quadrinhos pode observar seus elementos constitutivos (personagens, enredo, sequência temporal, espaço), as imagens, o título, os balões como recursos de fala/pensamento, a presença ou ausência d eum narrador e de legendas explicativas. (HIGUCHI, 1997, p. 147): [...] seus elementos constituintes (personagens, sequência temporal, trama/enredo), disposição dos recursos gráfico-visuais, título e sua relação com a narrativa, balão como recurso gráfico indicaçãod e fala ou de pensamento da personagem), narrador (presença/ausência de texto), legenda [...].

Contudo, crescem, no mercado, as adaptações da literatura para os quadrinhos; situadas na interseção entre dois domínios textuais diversos, elas oferecem ao leitor um aporte para a leitura do texto literário. Segundo Eisner, “[ao] escrever apenas com palavras, o autor dirige a imaginação do leitor. Nas histórias em quadrinhos, ele imagina pelo leitor.” (p. 127) 1

Em pesquisa recente, a pesquisadora Patrícia Montanholi Kassab (2012) estudou a interação entre teatro e escola, tendo por objeto as adaptações literárias promovidas pelo grupo de teatro Ria, em São Paulo. Kassab apurou que 57,37% dos estudantes do ensino médio que assistem a adaptações teatrais de obras literárias sentem-se estimulados a ler a obra original; a literatura adaptada aos palcos também estimula a leitura em geral: 53,42% dos alunos que vão ao teatro sentem-se motivados para ler outros livros e não apenas os adaptados.

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Para Will Eisner, a função dos quadrinhos é “comunicar ideias e/ou histórias por meio de palavras e figuras” (2010, p. 39). Nos quadrinhos tradicionais, temos um escritor que é também artista; há casos, porém, de trabalho conjunto de duas ou mais pessoas na composição de um mesmo produto. Quando isso ocorre, é imprescindível, para o resultado final, que ambos estejam em boa sintonia. Para Eisner, “[o] escritor deve se preocupar desde o início com a interpretação da sua história pelo artista, e o artista deve aceitar submeter-se á história ou à ideia” (1020, p. 127). A maior parte dos textos literários adaptados para quadrinhos pertence ao conjunto de textos já canonizados, cuja leitura é considerada fundamental na formação dos leitores de um dado sistema literário; no Brasil, obras de Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Manuel Antonio de Almeida e Lima Barreto já ganharam mais de uma adaptação para quadrinhos. Como a consolidação da obra no cânone literário se dá, via de regra, após a morte do escritor, o trabalho do adaptador se torna um desafio maior, para o qual ele recebe, por vezes, o apoio de um adaptador ou roteirista. A obra que abordamos neste estudo é Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões. Publicada em 1552, a epopeia tem comparecido em todos os manuais de literatura, nos tópicos dedicados à literatura portuguesa. Sua importância advém não apenas da arquitetura monumental, mas do engenho do poeta, ao associar, para a construção do tema, motivos da mitologia romana à história de Portugal no período áureo dos descobrimentos. Vasco da Gama, no Canto III, narra ao Rei de Melinde os feitos gloriosos de Portugal, desde sua origem e constituição como nação independente até o presente da narrativa, ou seja, o ano de 1497. Nessa narrativa comparecem todos os reis de Portugal, apresentados conforme seus feitos: Solicitado pelo rei de Melinde a contar a história de Portugal, Gama a narra de Luso a Viriato, passa pelos reis desde o conde D. Henriques até D. Manuel I, e descreve os episódios mais significativos que entre um e outro ocorreram: a batalha de Ourique, a batalha do Salado, o episódio de Inês de Castro, a batalha da Aljubarrota, a conquista de Ceuta, o sonho profético de D. Manuel. Quando da largada da armada do Gama, em Belém, é o presente heroico que se abre às aventuras vividas pro eles até a chegada a Melinde (o fogo-de-santelmo, a tromba marítima, a aventura de Veloso e o episódio do Gigante Adamastor). (CUNHA, 1993, p. 29)

Dentre os episódios da epopeia, selecionamos o de Inês de Castro para nosso estudo comparativo. O relato inicia no Canto III e tem a duração de oito estrofes e meia

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(da 118 à 136). Ele se destaca não somente por ser, tal como outros, um episódio lírico dentro do poema épico, mas porque nele confluem fatos e fantasias. Em seu ensaio “A pátria de Inês de Castro” (1998), Osakabe nos apresenta um estudo em que Carolina Michaëlis de Vasconcelos elucida para o leitor o que, nesse episódio, pertence à tradição histórica e o que lhe foi acrescentado pela fantasia popular. Para a filóloga, o amor de perdição de D. Pedro I por Inês de Castro, o assassinato desta e a vingança operada nos executores da sentença são fatos históricos, bem como o cortejo fúnebre de Coimbra a Alcobaça, o juramento do príncipe sobre o seu casamento clandestino e a representação de Inês como rainha na estátua sepulcral; Ester fatos encontram-se narrados na crônica de Fernão Lopes (1735). A veracidade do relato do cronista real é explicada por Vasconcelos: São factos [...] narrados com eloqüência, mas sem exageros por esse patriarca dos historiadores portugueses que, pela sua vez, se baseia em escritores mais antigos e em documentos coevos. A narração dele tem, portanto, “fundamento sobre a verdade”, mesmo se a tradição popular houver começado, quer na vida de Inês, quer na noite do seu enterro, a envolver os factos no seu manto diáfano. (VASCONCELOS apud OSAKABE, 1998, p. 106)

Ao contrário, a exumação e coroação do cadáver seis anos após sua morte e a cerimônia do beija-mão pertencem, segundo a filóloga, à fabulação de origem popular: “Transformação de resto quase inevitável, e de tal intensidade poética que foi sobretudo ela que se vulgarizou dentro e fora do país, e inspirou poetas e pintores.” (VASCONCELOS apud OSAKABE, 1998, p. 106). Okasabe lembra que sobre Inês de Castro há fatos e fantasias, e que as fantasias têm o poder de se transformar em fatos (idem, p. 107). A narrativa camoniana da tragédia de Inês de Castro termina com a sua morte; depois dela, apenas a vingança exercida por D. Pedro I é brevemente mencionada no poema. A ela Camões dedica a última estrofe do episódio (Canto III, estrofe 136): Não correu muito tempo que a vingança Não visse Pedro das mortais feridas, Que, em tomando do Reino a governança, A tomou dos fugidos homicidas. Do outro Pedro cruíssimo os alcança, Que ambos, inimigos das humanas vidas, O concerto fizeram, duro e injusto, Que com Lépido e António fizeram Augusto. (CAMÕES, 1979, p. 182)

Neste estudo, apresentaremos três propostas de quadrinização desenvolvidas a partir do épico camoniano; duas delas no Brasil e uma em Portugal. 561

Pedro Anísio e Nico Rosso (Brasil, 1973) No ano de 1973, em comemoração aos 400 anos de publicação de Os lusídas, Pedro Anísio e Nico Rosso elaboraram uma quadrinização da obra: Anísio adaptou o texto e Rosso o desenhou. A empreitada foi considerada pelos autores um “atrevimento necessário”; embora a necessidade seja justificada pela presumida dificuldade na leitura do poema; a adaptação, segundo os autores, tem o objetivo de despertar o desejo de ler a obra original. O trabalho de Anísio e Rosso é desenvolvido em um único volume, com capa colorida e desenhos em preto e branco. Inicia-se esta adaptação com um prefácio apenas textual, seguido da biografia de Camões – já em quadrinhos; em seguida são focalizados os principais episódios da narrativa, precedida, esta, de rápida apresentação da obra. A adaptação não apresenta as subdivisões do poema, ao contrário, os fatos são narrados numa sequência ininterrupta que ocupa 37 páginas. Mais do que diálogos, as vinhetas trazem legendas narrativas com o resumo dos fatos, algumas ocupando todo o espaço do quadrinho. O episódio de Inês de Castro inicia-se à página 32 e insere-se numa sequência em que os fatos são narrados por Vasco da Gama; sua fala é colocada entre aspas e a moldura das vinhetas é tracejada, indicando fato ocorrido no passado. A abertura do episódio, em quadro especialmente emoldurado, é dada pela transcrição de parte da estrofe 118 (Canto III): O caso triste, e digno de memória Que do sepulcro os homens desenterra, Aconteceu da mísera em mesquinha Que despois de ser morta foi rainha. (CAMÕES, 1979, p. 176)

A mesma vinheta traz uma nota referente ao léxico: “A palavra ‘mesquinha’ está empregada com o sentido de infeliz.” (CAMÕES, 1973, p. 32, grifo dos adaptadores) Na adaptação de Anísio e Rosso, o episódio de Inês de Castro é apresentado em nove quadros, com texto resumido. Os autores explicitam no trecho uma informação que não está dada no poema: a implicação política do casamento de D. Pedro e D. Inês, motivo real que levou à execução da dama; na adaptação, a explicação é dada pelos conselheiros reais, em dois quadros e quatro balões: — Senhor, o Príncipe rejeitou as mais ilustres damas em casamento, por causa dessa castelhana! — Ela exerce má influência sobre Dom Pedro.

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— Tende certeza, Dom Afonso, de que, no dia em que teu filho for o Rei, Inês de Castro será a Rainha! — E, com uma espanhola no trono, Portugal perderá a independência! Passará ao domínio de Castela! (CAMÕES, 1973, p. 33)

Além dessa interferência, encontramos na adaptação de Anísio e Rosso uma outra: a cerimônia do beija-mão de Inês morta é representada na última vinheta do episódio, tanto pela imagem, quanto pela legenda, que explica: O Príncipe D. Pedro, ao saber de tudo, jurou vingança. Esta não demorou muito, pois, ao subir ao trono, perseguiu os assassinos de Inês, prendendo os dois e matando-os. Depois, retirou a amada da sepultura, vestiu-a com trajes reais e colocou-a no trono, com a coroa na cabeça. Em seguida, ordenou a todos que lhe beijassem a mão. Inês de Castro, depois de morta, foi rainha. (CAMÕES, 1973, p. 33)

Os adaptadores explicam, assim, o fragmento da estrofe apresentada na vinheta de abertura do episódio. Valorizam, também, a estética do macabro, que, segundo Osakabe, tinha, nos anos finais da Idade Média, o objetivo de “[...] subsidiar o discurso moral e catastrófico com que uma visão de mundo declinante pregava o menosprezo do mundo, o desapego a uma matéria casa vez mais atraente.” (1998, p. 111). No caso de Inês de Castro, o macabro está a serviço do sublime: “[...] o corpo morto de Inês é, por obra da saudade, reposto na forma definitiva que o amor lhe plasmou. O macabro dá lugar ao sublime, ou melhor, o macabro, no caso, está a serviço do sublime.” (OSAKABE, 1998, p. 111). Assim, ao introduzir na representação quadrinística a tradição da oralidade, Anísio e Rosso ampliam a matéria literária e oferecem ao leitor informações complementares, que ajudam a entender a relevância do episódio. Em adaptações de obras literárias, o procedimento de cercar o leitor de informações complementares à obra é bastante comum2. Haja vista a biografia de Camões que antecede, no trabalho de Anísio e Rosso, a obra propriamente dita, integrando-a no contexto da obra adaptada e não como apêndice. José Ruy (Portugal, 1983) A adaptação portuguesa de Os lusíadas para quadrinhos (em Portugal, “banda desenhada”) desenvolvida em 1983 por José Ruy foi uma edição especial, em três

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No estudo anteriormente apontado, Kassab (2012) apurou que o debate sobre as obras literárias que sucedeu a apresentação da adaptação teatral da mesma, dirigido por integrantes do Grupo Ria, foi muito valorizado pelos estudantes: 71,23% deles afirmam que o debate ajudou a esclarecer as obras, ampliando a discussão temática sobre elas.

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volumes, feita sob encomenda para a Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Uma advertência dos editores antecede a leitura da obra: Os textos antecedidos de asterisco * são da responsabilidade do adaptador e destinam-se a uma melhor compreensão do original de Camões. Todos os outros são extraídos do próprio poema, cuja leitura no texto integral a presente adaptação não pretende dispensar. (RUY apud CAMÕES, 1983, p. 4)

Demonstra-se aqui a preocupação, existente também entre os educadores portugueses, de evitar que as adaptações substituam a leitura das obras originais. Segundo os editores, trata-se da primeira adaptação portuguesa da obra. No posfácio, afirmam: “É esta a primeira vez que se adapta a banda desenhada o poema épico de Camões” (RUY, 1983, p. 49); tal afirmação aponta para a dificuldade de circulação dos quadrinhos, visto que no Brasil essa adaptação já fora realizada. Sendo a mais extensa das adaptações encontradas da obra, esta de José Ruy tem seu andamento de leitura prejudicado pela grande quantidade de textos verbais apresentada ao leitor: as legendas superam, em quantidade, os diálogos, tornando mais lenta a leitura e subtraindo, de certa forma, a agilidade de leitura característica dos quadrinhos. Os editores justificam a profusão de legendas com o argumento de fidelidade à obra original: [...] é a primeira vez que uma adaptação de epopeia em banda desenhada aposta na manutenção do próprio texto do poeta. [...] em todos os casos que conhecemos, extraiu-se da epopeia a história que ela conta e construiu-se com esta a banda desenhada. No caso presente, a banda desenhada utiliza as próprias palavras do poeta, arranjando, a seu modo, maneiras de as tornar inteligíveis à generalidade dos leitores. É por isso que, embora não reproduzindo o texto integral de “Os Lusíadas”, este trabalho pode perfeitamente servir para o seu estudo e, mais do que isso, despertar a curiosidade pelo conhecimento do poema na sua versão integral. (RUY, 1983, p. 49)

De fato, todos os cantos encontram-se representados nessa adaptação: o primeiro e o terceiro volume trazem os três cantos iniciais e finais, respectivamente; o volume dois apresenta os quatro cantos centrais da epopeia. Os cantos são antecedidos por uma estrofe de João Franco Barreto, poeta lusitano do século XVII; suas oitavas resumem cada um dos cantos d’Os lusíadas. Após cada estrofe, segue-se também um texto de

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Joaquim Ferreira, extraído da obra “Os lusíadas de Camões: textos escolhidos”, em que é apresentado o argumento do canto. Situado, pois, no Canto III e no primeiro volume, o episódio de Inês de Castro é apresentado também em nove quadros, tal como na adaptação de Anísio e Rosso, com predominância de legendas narrativas; os balões de diálogo comparecem somente na fala de Inês em súplica a D. Afonso. O texto integral do poema é apresentado com cortes: nove das dezenove estrofes que compõem o episódio comparecem na íntegra, enquanto dez delas são parcialmente reproduzidas, suprimindo o adaptador, neste episódio, as referências à mitologia. Por sua força expressiva, a segunda vinheta, que apresenta Inês e os filhos em seu palácio, é reproduzido na contracapa do volume I; este traz, no interior, uma faixa-título que anuncia: “Morte de Inês de Castro”; na contracapa, contudo, suprime-se dessa legenda a palavra “morte”, ficando intitulado o quadro apenas como “Inês de Castro”. Supomos que a exclusão da morte na contracapa, bem como a escolha da cena mais pacífica dentre as desenhadas por Ruy para o famoso episódio tenha relação com a ideia de que a violência deve ser amenizada para o público-leitor da obra (adolescentes e crianças em fase de escolarização); visto que capa e contracapa são relativamente determinantes para a sedução dos compradores do livro – em geral, os pais – a violência estampada não serviria, possivelmente, de boa propaganda. Fido Nesti (Brasil, 2006) A primeira inovação da adaptação do ilustrador brasileiro Fido Nesti para Os lusíadas (2006) diz respeito á autoria: no quadro de catalogação editorial da obra, o adaptador e ilustrador é apresentado como autor e a obra é referida, nas orelhas do livro, como sendo um livro de Fido Nesti: “Um mapa dos episódios mais marcantes da obra Os Lusíadas, de Luís de Camões, abre a rota de leitura deste livro de Fido Nesti.” (NESTI, 2006, orelha 1). Assim como a adaptação de Anísio e Rosso, também esta inicia com uma sumária biografia de Camões; a ausência desta na adaptação portuguesa dispensa explicações.

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Dedicado ao cartunista Laerte, “mestre absoluto das caravelas” (NESTI, 2006, p. 1), o volume abre-se com um prefácio de Denyse Cantuária3, que explicita a ideia de que a obra transposta para quadrinhos é uma obra nova, independente da obra adaptada: Do encontro traçado entre o autor mítico de Os Lusíadas e o autorpersonagem das HQs, nasce uma nova história, um novo livro, que busca inspirar o leitor a olhar com humor para os eventos narrados [...]. Um livro que estimula e transforma nossas possibilidades de leitura dos textos clássicos. (CANTUÁRIA, 2006, p. 3).

A despeito dessa consideração, o autor se refere à própria obra como adaptação: “[...] eu nunca poderia imaginar, nem em meus sonhos mais insanos, que um dia fosse assinar uma adaptação d’Os Lusáidas para os quadrinhos”. (NESTI, 2006, p. 47) Fido Nesti explica, no posfácio, que extraiu da obra original os trechos que julgou mais relevantes e populares, a saber: a história de Inês de Castro, o episódio do Velho do Restelo, o do Gigante Adamastor e o da Ilha dos Amores; o epílogo da epopeia também comparece. Cada um desses episódios é apresentado como um capítulo isolado. A história de Inês de Castro é aqui representada mais longamente do que nas outras adaptações, em 37 vinhetas. Nesti usa nelas tons, cores e sombras, criando uma atmosfera “trágica” para os eventos narrados. O episódio abre-se com um título que ocupa um quadro inteiro, com os dizeres “Inês de Castro” e a representação do corpo morto de Inês, amparado por anjos, em cores sombrias; Inês morta, aqui, segura as luvas de dama e encontra-se coroada. O texto camoniano é reproduzido na íntegra, em legendas, cada uma correspondendo, em média, a quatro versos do poema. Embora use também muitas legendas, elas aqui não causam o efeito de ralentamento da leitura que observamos na adaptação de José Ruy, pois Nesti apresenta quadro vezes mais vinhetas que Ruy para o mesmo episódio. Tal como na adaptação portuguesa, os balões aparecem somente na súplica de Inês ao Rei. Trata-se de uma vinheta que ocupa uma página inteira, em que temos o rei, em plano superior, sentado ao trono; toda a sua figura é representada em tons acinzentados e enegrecidos. Inês, à sua frente, fica de pé e traja um vestido rosa, como a indicar a sua inocência e o caráter amoroso de seu delito; os carrascos, representados em preto, com silhuetas difusas e de contornos borrados, portam os machados que

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Denyse Cantuária é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, docente da Universdade Presbiteriana Mackenzie e integra da equipe editorial da Editora Peirópolis.

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decapitarão a condenada; agarradas à mãe e a um dos carrascos estão duas crianças, pequenas e idênticas, trajando vestes vermelhas com adornos rosados. A cor vermelha, sanguínea, comparece nas vestes dos meninos, no tapete – este, emoldurado em negro, com arabescos – e nas cortinas, que oscilam como se um vento as levantasse, imprimindo movimento à cena; nela predominam linhas curvas, como a indicar a falta de retidão do julgamento que se operava. A proposta de Nesti de apresentar apenas alguns episódios permite o uso de recursos expressivos que não tiveram lugar nas outras adaptações. Um deles é o uso de quadros silenciosos nos momentos mais dramáticos, como o que antecede a morte sangrenta. A morte é também mais explorada, e a sequência narrativa apresenta um corolário que não comparece no poema original, com o objetivo de estabelecer uma intertextualidade gráfica enriquecedora: Nesti evoca a famosa representação pictórica de Ofélia afogada, do pintor John Everett Millais (1851-2). Após o assassnato, os carrascos tiram o corpo de Inês do castelo; nessa cena, outro elemento gráfico sugere intertextualidade: o corvo que no primeiro quadro paira numa distante torre do castelo, de bico aberto, depois sai voando, na vinheta seguinte, parece emitir as palavras “Nunca mais!”, do célebre poema de Edgar Allan Poe. O corpo de Inês é jogado ao rio e ali fica depositado, “arrastando a infortunada do seu canto suave / à morte lamacenta.” (SHAKESPEARE, 2009, p. 95) Os versos shakespeareanos bem traduzem a imagem com que Nesti ilustra Inês morta, evocando a representação anterior de Millais e diferindo dela na contemporaneidade do traço e na fronte da dama, coroada conforme depois de morta. Considerações finais É preciso considerar, a par das preocupações demonstradas por todos os adaptadores, que as transposições da literatura para os quadrinhos resultam em obras novas, independentes daquela que lhe deu origem. Nesse sentido, a fidelidade em relação à obra literária é um critério simplista de avaliação dessas adaptações, pois os níveis de transposição são muito diversificados: há obras que mantém as mesmas figuras da obra literária; outras há que traduzem o sentido da obra original para elementos presentes na vida contemporânea, estabelecendo relações intertextuais com outras obras, não apenas literárias.

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Nas adaptações que tomamos por base neste estudo, os adaptadores encontraram soluções diferentes para tratar o mesmo episódio: Anísio e Rosso sumarizaram o épico camoniano; Ruy também, prosificando o texto poético; Nesti, por sua vez, manteve os versos de Camões e estendeu a narrativa. Com relação às imagens, podemos dizer, de forma suscinta, que, ao ganhar cor – o que ocorre a partir da segunda adaptação –, os artistas lançam mão também de recursos que ampliam a tragicidade/dramaticidade do episódio. Empreitada sem dúvida ambiciosa, as quadrinizações de Os lusíadas vêm se emancipando da obra original, constituindo novas obras que têm por público-alvo não apenas os leitores do épico camoniano, mas leitores contemporâneos, consumidores cada vez mais vorazes de produtos que primam pela visualidade, velocidade e virtualidade. Adaptar clássicos da literatura aos quadrinhos é, pois, ampliar a gama de leitores dessas obras, tornando-as acessíveis ao novo perfil de leitor que se vem formando com o desenvolvimento das novas mídias e tecnologias que viabilizam, atualmente, a circulação de textos. Não se trata, então, de reduzir obras complexas, literárias, mutilando-as em adaptações de qualidade duvidosa, mas de desenvolver novos referenciais teóricos que dêem conta das novas linguagens, híbridas, complexas e fascinantes por natureza. Referências CAMÕES, Luís Vaz de. Os lusíadas. Adaptação em banda desenhada por José Ruy. 2. ed. Lisboa: Notícias, 1985. 3 v. ______. Os lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto: Padrão; Figueirinhas, 1979. ______. Os lusíadas: quadrinização do poema de Luís de Camões. Quadrinização do texto: Pedro Anísio; desenhos: Nico Rosso. Rio de Janeiro: Brasil-América, 1973. CANTUÁRIA, Denyse. Uma obra para ser mais do que lembrada... In: NESTI, Fido. Os Lusíadas em quadrinhos. São Paulo: Peirópolis, 2006. p. 3. CHINEN, Nobu. Linguagem HQ: conceitos básicos. São Paulo: Criativo, 2011. CIRNE, Moacy et al. (Org.). Literatura em quadrinhos no Brasil: acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. CUNHA, Maria Helena Ribeiro da. Classicismo. A poesia. In: MOISÉS, Massaud (Dir.). A literatura portuguesa em perspectiva. São Paulo: Atlas, 1993. V. 2: Classicismo, Barroco, Arcadismo. p. 25-52. 568

EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial: princípios e práticas do lendário cartunista. Tradução de Luís Carlos Borges e Alexandre Bloide. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. HIGUCHI, Kazuko Kojima. Super-Homem, Mônica & Cia. In: CHIAPPINI, Ligia; CITELLI, Adilson (Coord.) Aprender e ensinar com textos não escolares. São Paulo: Cortez, 1997. p. 125-154. KASSAB, Patrícia Montanholi. O trabalho educativo de estímulo à leitura do Grupo Ria: literatura e teatro no ensino médio. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Nove de Julho, São Paulo, 2012. LOPES, Fernão. Chronica Del Rey D. Pedro I deste nome, e dos reys de Portugal o oitavo cognominado o Justiceiro na forma em que escreveo Fernão Lopes.../ copiada fielmente do seu original antigo... pelo Padre Jozé Pereira Bayam. Lisboa Occidental: Na Offic. de Manoel Fernandes Costa, 1735. Disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/16633. Acesso em: 11 out. 2012. NESTI, Fido. Os Lusíadas em quadrinhos. São Paulo: Peirópolis, 2006. OSAKABE, Haquira. A pátria de Inês de Castro. In: IANNONE, Carlos Alberto et al. (Org.) Sobre as naus da iniciação: estudos portugueses de literatura e história. São Paulo: Unesp, 1998. p. 105-117. RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2010. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2009. Disponível em: http://www2.uol.com.br/millor/teatro/03_hamlet.htm. Acesso em: 17 out. 2012.

MELVILLE E BRESSANE: PELA ESPIRALIZAÇÃO DO SENTIDO Ana Claudia Rodrigues [email protected] UFSCAR RESUMO Ainda que irrevogável, o passado permite-nos contemplá-lo, revisitá-lo com uma nova roupagem, para tanto, bastar-nos-ia um leitor-espectador atento aos mistérios do mundo, ou melhor, uma humanidade apta àquilo que não estaria, em rigor, como objeto de observação, mas como sugestão. Portanto, pretende-se nesta comunicação uma análise intersemiótica entre o livro Moby Dick (1851) de Herman Melville e Filme de Amor (2003) de Júlio Bressane. O cachalote branco de Melville e a irrefutável perseguição do protagonista (Ahab) dialogarão com as três graças de Vênus materializadas no filme em três personagens que, em meio a citações de obras literárias, deparar-se-ão com excertos de Moby Dick, à luz da representação da baleia por meio de lençóis brancos. É inegável que Filme de Amor não traz à tona somente uma relação intersígnica, então, nesse caso, Moby Dick encadeia-se a outros símbolos que põem em xeque o cerne da condição

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humana: a constante luta contra as opressões recorrentes por “leis” fossilizadas pelo tempo; no caso de Ahab, há a baleia branca que outrora mutilara sua carne, no caso de Filme de Amor, há a linha tênue entre o “certo” e o “errado”, tabus estabelecidos por um sistema de valores paradoxais: na medida em que há a pretensão de se livrar do anátema (baleia e regras morais), mais o homem chafurda-se nesse jogo de tensão há muito mitificado. Distante das regras sociais, Ahab estabelece suas próprias leis frente ao seu deslocamento rumo ao mar, nem por isso menos opressor; em Filme de Amor os três amigos isolam-se em um apartamento no qual se despem dos moldes morais para depois tudo voltar ao normal, valendo em ambos os casos as tentativas, as experiências dos limites. Por conseguinte, tem-se entre Moby Dick, de Melville, Filme de Amor, de Bressane e os espectadores - transeuntes espácio-temporais -, uma tríade de cunho intersemiótico, o que vale dizer que a arte desafia ao estar sempre à espera de novas leituras e da ‘educação’ dos sentidos. PALAVRAS-CHAVE: Melville, Bressane, Moral, Tempo, Função da arte E Borges diz: “Modificar o passado não é modificar um único fato; é anular suas consequências, que tendem a ser infinitas. Por outras palavras: é criar duas histórias universais.” (BORGES, 1999, v.1, p.240). Tendo em mente o excerto borgiano, inferese que estamos diante de duas histórias universais (Moby Dick e Filme de Amor); seriam tais histórias o verso e o anverso de uma mesma moeda, prestes a se decodificarem no âmago da condição humana: todos nós temos uma história semelhante, que ora deciframos, ora cedemos ao seu domínio; tornamo-nos servos involuntários de seu mando e desmando, somos conforme diz Nietzsche: “... esse animal que querem ‘amansar’, que se fere nas barras da própria jaula...” (NIETZSCHE, 2001, p.73). Mas o que a história de um cachalote branco tem de similaridade com as três graças de Vênus em Filme de Amor, e, sucessivamente com a nossa história de hoje e com as que estão por vir? Para tanto, Júlio Plaza diz: Passado, presente e futuro criam os possíveis sentidos da linguagem onde as falas individuais se integram e perdem a sua privacidade para o enriquecimento coletivo do sentido. Tanto para Peirce quanto para Bakhtin, ‘a linguagem é inalienavelmente social. Qualquer ato individual na produção de sentido para Bakhtin, não cabe em uma só consciência – unitária ou fechada em si mesma (PLAZA, 2003, pp. 19-20).

E Júlio Plaza reitera: “A linguagem é o principal instrumento da recusa humana em aceitar o mundo como ele é.1 Sem possibilidade da translação ficaríamos pra sempre no presente.” (Idem). Portanto, “Moby Dick a qual, tendo existido antes de todo tempo,

1

Cf. GEORGE STEINER, op. cit., p. 218.

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necessariamente deve existir depois de terem acabado todas as idades humanas.” (MELVILLE, 1981, v.2, p.167); vê-se então, que, segundo Plaza: Todo signo existe no tempo: ... se o signo não-estético caminha no tempo porque precisa completar-se num outro signo, caminhando, portanto, (para utilizarmos a expressão de Jakobson), metonimicamente, o signo estético, quando é traduzido por um outro signo estético, mantém com este uma conexão por similaridade e contiguidade por referência. A tradução mantém uma relação íntima com o seu original, ao qual deve sua existência, mas é nela que a vida do original alcança sua expansão póstuma mais vasta e sempre renovada2 (PLAZA, 1981, pp.31-32). À luz contextual de uma matriz, O romance Moby Dick (1831) de Herman Melville é narrado em terceira pessoa. Ismael é o nome do narrador, o qual cansado de seu confinamento na cidade, mediado por padrões estabelecidos e por princípios morais, procura uma nova vida: o mar. O oceano para Ismael seria a soma de possíveis futuros, nos quais as relações rasas e de aparências – propícias à vida na cidade – revelar-se-iam inócuas, desnecessárias, isso tudo, claro, na sua opinião, e confirmando suas palavras: “... é preciso um sólido princípio moral para impedir-me de sair deliberadamente para rua e metodicamente surrar as pessoas.” (MELVILLE, 1981, v.1, p.23). E mais: “... mas são todos os homens da terra, confinados, nos dias de semana, entre ripas e reboco – presos em balcões, pregados em bancos, seguros, em escrivaninhas. Por que sucede isso então?” (Idem, p.24). E como Ismael estava convicto de que sua vida em terra firme era a constatação de uma prisão, o mar poderia devolver-lhe os princípios de uma natureza instintiva. Ele precisava do socorro daquilo que ainda era só uma ilusão, comum a todos nós, quando na idealização de um objeto, suplantamo-lo ao pedestal de mais puro prazer e de alegria. A ilusão daquilo que nos falta emerge como uma salvação, frente ao vazio da vida, isso é confirmado pelo narrador que diz: “... e como eu desprezava aquela terra cheia de postos e pedágios, aquela estrada comum, toda denteada pelas marcas servis de calcanhares e cascos! E pus-me a admirar a magnanimidade do mar que não tolera vestígios.” (Idem, p.87). Por conseguinte, Ismael estaria, de acordo com seus critérios, apto a embarcar na tripulação do navio Pequod do capitão Ahab.

2

WALTER BENJAMIN, “A Tarefa do Tradutor, pp. 38-44.

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Ahab é o protagonista da obra Moby Dick de Herman Melville. É para a tripulação do navio Pequod que Ismael narrará a história de um homem (Ahab) cuja perna fora dilacerada por uma baleia branca de nome Moby Dick. A viagem da qual Ismael faria parte era aquela em que Ahab, convicto de seus intuitos, vingar-se-ia da baleia branca. Ainda que sua tripulação dependesse da viagem para o próprio sustento, Ahab houvera inflado o coração de todos ao cravar no mastro do navio uma moeda de valor considerável, a qual pertenceria àquele que avistasse o cachalote branco e consequentemente o ajudasse em sua captura. A ilusão do prêmio colocou a tripulação em delírio – a embarcação comportava menos uma viagem trivial do que uma vingança de Ahab em sua busca por Moby Dick. É fato que a perseguição de Ahab a uma baleia branca fora por uma questão de acidente; quem indubitavelmente o ferira fora uma baleia branca, portanto, a monocromia o havia afetado em demasia, ao ponto de ele se tornar monomaníaco – tudo lhe chegava de forma turva, obtusa, menos a ideia do cachalote branco –; esta imagem era-lhe vívida e única e o branco corpóreo da baleia ganhara forma e: “... todos os sutis demonismos da vida e do pensamento; todo mal para o doido Ahab, personificava-se visivelmente e podia ser atingido em Moby Dick.” (Idem, p.227). E a se acrescentar: Ahab nutria a feroz sede de vingança contra o cachalote, tanto mais terrível quanto, em sua frenética morbidez, chegara ultimamente a identificar com ele não só todas as suas desditas terrenas, como também a suas iras intelectuais e religiosas (Idem, p.226).

Metaforicamente, a baleia branca eram os infortúnios de Ahab; quando diante de uma obstinação, dizemos metonimicamente: “carregamos a baleia branca nos ombros.” Metáfora e metonímia frente ao mesmo objeto – as duas afasias para Jakobson tratadas em Linguística e Comunicação: substituição e associação –, ambas permitindo-nos, como diz Júlio Plaza: “... o deslocamento constante dos signos à procura de sentido.” (PLAZA, 2003, p.35). “A baleia é o infortúnio de Ahab”, “carrega-se a baleia de Ahab nos ombros”, tudo isso vem a confirmar Júlio Plaza quando cita Borges: “o conceito de texto definitivo não corresponde senão à religião ou ao cansaço.” (Idem). Moby Dick transcende a obra de Melville à procura de novos interpretantes em sentidos diversos. Na própria narrativa de Melville, vê-se o sentido da baleia assumir contextos diversos. Prova disso é quando Ismael ao analisar Ahab, dimensiona o dilema da vida: Ismael procurou o mar a fim de fugir às regras da sociedade, mas, a todo instante, via

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Ahab diante de suas regras íntimas perante o destino da baleia branca, e assim constatou que o deslocamento geográfico não é, a rigor, o bastante para o homem se desprender daquilo que o oprime – para uma opressão que assume novas roupagens, há um efeito único de sofrimento diante do vazio da vida. Em sua obra O Aleph, Borges diz: “Eu havia compreendido há muitos anos que não existe coisa no mundo que não seja germe de um inferno possível; um rosto, uma palavra, uma bússola, um anúncio de cigarros poderiam enlouquecer uma pessoa se esta não conseguisse esquecê-los.” (BORGES, 1999, v.1, p.644). Ahab já não podia esquecer a baleia branca; a monocromia fossilizou-se na alma do capitão do navio Pequod. E a saber que: “...todos nós somos Ahabs.” (MELVILLE, 1981, v.2, p.228). E reiterando o saber: “...todas as coisas que mais exasperam o saber e ultrajam o homem mortal, todas essas coisas são incorpóreas, apenas como objeto, não como agente.” (Idem, p.283). E assim se fez que a alucinação de Ahab, a onça de ouro que Ahab fez cravar no mastro3, e esta a inflar os corações dos homens, o navio Pequod, tudo isso se destruiu e não se conquistou; restou-nos Ismael, o único sobrevivente a contar a história de Moby Dick e do capitão Ahab. Já como princípio de uma transcriação intersígnica, Filme de Amor é a história de três amigos que ao se isolarem em um apartamento, talvez no período de um final de semana, afrouxam suas roupas, tiram os seus sapatos, utilizam-se de seus respectivos narcóticos para, assim, enveredarem em discussões literárias e filosóficas – é quase uma encenação teatral acerca de fragmentos e citações de arte, entre tais, antecipada pela rarefação da tela que se faz branca, eis que surge Moby Dick, representada por um dos atores em meio a lençóis brancos, personificando o clássico romance de Herman Melville. E se de acordo com Borges: “...os períodos planetários são cíclicos, também o será a história universal; ao fim de cada ano platônico renascerão os mesmo indivíduos e cumprirão o mesmo destino.” (BORGES, 1999, v.1, p.484). Encerra-se, portanto, o ciclo em Melville para fazer renascê-lo nas Três Graças de Vênus. Referência à antiguidade greco-romana e mais tarde à história da arte, entre as quais pode se citar a Primavera de Botticeli, As Três Graças de Vênus em Filme de Amor são personificadas pela tríade de personagens a qual anuncia a história a ser narrada: duas das graças olham numa direção e a terceira na direção oposta; todas elas estariam prestes a se deleitar na beleza, no amor e no prazer ao fechar-se o ciclo do

3

JORGE LUIS BORGES, Obras Completas, 200, v.1, p.657

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“dar, receber e retribuir”, ciclo este que agrada a Deus, já que o número ímpar O agrada, a saber que estas informações são dadas no próprio espaço diegético dos personagens. Então as três graças se separam, para que cada uma delas sente-se à mesa para o deleite de se estar em estado de graça, sem opressões de trabalho, sem encenação, sem máscaras de polidez; restava-lhes o que se pode chamar de momento divino em detrimento ao que Nietzsche chama de “Moralidade de Costumes” 4. Segundo o filósofo: A moralidade não é outra coisa (...) do que obediência a costumes, não importa quais sejam... Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto menor é o círculo da moralidade. O homem livre é não-moral (NIETZSCHE, 2004, p.17). Mas a má consciência, o medo, o olhar e julgamento do outro impedem-nos de sermos livres e retos com nós mesmos, por isso, que, às vezes, buscamos um subterfúgio, um refúgio, “caminhos ocultos”,5 um apartamento, um navio, tudo serve de consolo

para nossa

condição: “...animal manso

e

civilizado,

doméstico...”

(NIETZSCHE, 2001, p.33). Júlio Plaza com respeito à Tradução Intersemiótica diz: “Não é senão o fato de que toda a tradução que se quer erigir sob o signo da invenção, tradução estética, portanto, está ancorada no ícone.” (PLAZA, 2003, p.33). Ou seja, é na similaridade, na semelhança e não na tão falada “fidelidade.”6 Portanto, em Filme de Amor, “o signo sugere, elide, aponta, delimita, indica, mas sempre dentro do sistema de relações analógicas de sua semiose.” (PLAZA, 2003, P.32). Daí o signo das três graças de referência helenística desmanchar-se em três amigos em Filme de Amor, para, posteriormente, sugerir a baleia de Melville – o momento de graça daqueles jovens estava ancorado em uma obstinação semelhante a de Ahab; enquanto este perseguia a baleia branca, aqueles engendravam-se, esbarravam-se no valor da valoração da pureza, do branco, e reiterando Nietzsche, a propósito dos ideais morais: “...no golpe de mestre desses nigromantes que produzem leite, brancura e inocência de todo negror.” (NIETZCHE, 2001, p.39).

4

FRIEDRICH NIETZSCHE, Aurora, 2004, p.17 FRIEDRICH NIETZSCHE, Genealogia da Moral, 2001, p.32 6 PAOLO VALESIO, apud HAROLDO DE CAMPOS, “Tradução, Ideologia e História”, in Cadernos do Man nº 1, Rio de Janeiro, dez. 1983. 5

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E Borges diz: “na figura que se chama oxímoro, aplica-se a uma palavra um epíteto que parece contradizê-la... luz obscura... sol negro...” (BORGES, 2000, p.657). Nietzsche, conforme já dito, usaria “brancura com todo negror”. Tudo isso em filme de amor consolida-se na própria atitude dos personagens que, em meio a um suposto diálogo, o qual não lhes pertence e sim à arte, encenavam-na na limpeza do apartamento, no esfregar da banheira, no varrer ritmado – domesticado e por costume, pertencente à mulher –, na limpeza do corpo mediante a extração dos pêlos, no comportamento semelhante ao macaco ao chacoalhar a cabeça para eliminar as impurezas, tudo isso, ao mesmo tempo em que ao som de um refrão diziam no espaço da diegese: “O certo é o que está errado e o errado é o que está certo.” E assim todo o louvor dado aos verdadeiros instintos e prazeres contrapunha-se à regra da tradição moral, ao controle dos desejos, tudo se desmanchava em prazeres de culpa e castração. E ainda que não bastassem os diálogos paradoxais entre o “certo” e o “errado”, entre o ser essência e ser um seguidor de regras amalgamadas pelo tempo, ainda sim o oxímoro da imagem e som vinha à tona como se a imagem não pertencesse ao som – era o som não da imagem da tela, ao contrário, a cada tomada de cena, ecoava o barulho do mundo externo, dos objetos cortantes pertencentes ao manuseio do trabalho diário: o drible da tesoura entre os cabelos dos clientes, a lixa de unha da manicure, o abrir e fechar da porta do elevador e a recepção mecânica de uma ascensorista, o metrô, ainda que vazio de forma humana, soava de forma mecânica e rotineira, como se tivesse vida própria. O som do mar invadia também o apartamento, a saber que o ressoar da idealização supera o próprio momento idealizado – o som da rotina e o da idealização, posto que esta esteja distante, exaspera o homem, impedindo-lhe, não raro, a fruição do que lhe poderia ser divino e aprazível naquele momento em questão. É indubitável que, ao final do filme, o som que vem de fora reincorpora-se às respectivas graças de Vênus, justificando a dicotomia da presença ausente do barulho de aço dos objetos – semelhante à comum revelação da trama aos finais de muitos filmes; cada personagem reveste-se de suas roupas discretas, cabelos arrumados e assim então estariam aptos a assumir seus ofícios, seus instrumentos de trabalhos: tesoura, lixa, metrô e elevador. E a todos esses ruídos reais em som e imagem alternavam-se o barulho da idealização do mar, como se este fosse mais um símbolo de um momento de graça concedido aos homens que se veem obstinados às regras, ao mesmo tempo em que à sensação de “falta” que modula suas esperanças e ilusões.

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Não obstante: “... qualquer lapso – um século, um ano, uma única noite, talvez o inapreensível presente – contém integralmente a história.” (BORGES, 1999, v.1, p.437). À semelhança do pensamento de Borges, há aquelas bonecas russas (Matrioshka) – aquelas que, segundo a lenda, contêm e são contidas de forma sucessivas por tantas outras –; sabe-se que cada uma delas pedia ao seu artesão sempre uma nova boneca, do que se infere que um nascimento estava sempre a despontar, conferindo um novo sentido infinitamente. Portanto, é inegável que a história do cachalote branco não se encerra e é encerrada em Filme de Amor, já que tantas outras obras traduzem a condição do homem frente às suas opressões e obsessões: Matrioshka seria apenas a matriarca de tantas outras Babushkas. O que valeria dizer sobre a arte a se recriar no tempo, a partir de uma matriz, vale também para uma obra de arte em si mesma, no âmago de sua própria criação. E o pensamento de Borges é pródigo em nos apresentar que: “...o todo não é maior que qualquer parte.” (BORGES, 1998, v1, p.698). À luz de um conceito similar, Haroldo de Campos diz: “Monadologicamente, em cada fragmento estão todas e cada uma das galáxias. Daí a possibilidade de sua livre leitura, a partir de qualquer página.” (CAMPOS, 2004, p.272). Júlio Plaza dirá sobre a história como Mônada: O que se flagra nas Teses de filosofia da história é a ideia de captura do passado como mônada em contraposição ao historicismo linear, pois que o “historicismo culmina justamente na história universal”. Em oposição ao historicismo linear, Benjamin propõe um princípio construtivo da história. Na oposição entre historiografia e historicidade, inclina-se para a segunda, pois é esta que pode representar uma historiografia inconsciente, o lado oculto da historiografia oficial e o registro da experiência humana. Benjamin vê, em cada momento da história, um presente que não é trânsito, mas que se encontra suspenso, imóvel, em equilíbrio no tempo, formando “constelações” com outros presentes e o presente atual do historiador (PLAZA, 2003, p. 4).

Então se em oposição à história retilínea há uma historicidade mônoda, infere-se que o termo monadologicamente é o universo em cada fragmento e cada fragmento é o universo. É a espiralização do sentido a universalizar-se em um processo de eternização. Fernando Pessoa, o qual sendo vários e também ele mesmo, conceitualiza o termo espiral: “Mas, desde de que nos lembremos que dizer é renovar definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se (...) direi

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melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar.” (PESSOA, 1997, p.140). Assim, Bressane, à semelhança de Haroldo, constrói uma obra labiríntica, a qual põe, lado a lado, em uma tríade, o personagem do tempo do filme, o espectador e o indivíduo do tempo universal. Portanto, o cachalote branco de Melville e as Três graças de Vênus em filme de amor, épicos por excelência, tornar-se-iam o tempo presente tal e qual o relógio de areia de Borges: “A areia dos ciclos é imutável,/A história da areia é infinita;/E, sob tuas venturas ou a desdita,/Se abisma a eternidade invulnerável.” (BORGES, 1999, v.2, p.210). Em Melville, ainda que a narrativa seja linear, o tema jamais o será, posto que Moby Dick, em seu caráter fossilizado “existiu séculos antes de Salomão ser levado ao berço” (MELVILLE, 1980, v.2, p.168). E reiterando: “O arpão de Ahab verteu sangue mais antigo do que do Faraó. Matusalém parece um escolar.” (MELVILLE, 1980, v.2, p.167). E agora por não sabermos mais o que pertence a Melville e o que pertence à linguagem, posto se tratar de uma gênese em espiral, Borges diria que: “a essa dificuldade feliz devemos a possibilidade de tantas versões, todas sinceras, genuínas e divergentes.” (BORGES, 1999, v.1, p.256). Por isso, enquanto a arte como signo de diversas linguagens persistir no contraponto entre a semelhança e a originalidade, restarnos-á a esperança de um observador disposto a percorrer o caminho da tradição e de sua herança, e de ambos tornar-se herdeiro. Quanto ao papel do observador ou leitor, Plaza cita um excerto de Goethe que diz o seguinte: Há três tipos de leitores: aquele que se deleita sem julgar, um terceiro que julga sem deleitar-se, e outro, o intermediário, que julga se deleitando ou se deleita julgando. Este realmente recria uma obra de arte. Os membros desta casta não são numerosos (PLAZA, 2003, p.33).

Constata-se, por obstante, que ao se recriar uma obra de arte, estar-se-ia recriando a própria vida, pois é no deleite da criação artística que o homem encena e é encenado por outros meios os quais o julgam em um tribunal cujo juiz é a própria consciência. Enxergar a si mesmo em qualquer obra de arte é poder transformá-la em infinitos significados. Mesmo que de forma hipotética, a humanidade dificilmente levará adiante

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aquilo no qual ela não se reconhece. Mas para se reconhecer é preciso conhecer; demanda-se, portanto, o material prévio, do qual se extrairá a analogia entre vida e arte. Em O Olho Interminável [Cinema e Pintura], Jacques Aumont nos fala: “Mal podemos imaginar outro modelo teórico do espectador além daquele em que, cativo, imobilizado em sua poltrona, ele é também ‘cativado’ pelo filme, preso à tela pelo jogo da sedução e da identificação.” (AUMONT, 2004, p.61). Identificar-se, seduzir-se diante da arte é já poder eternizá-la, é já poder subvertê-la à originalidade da recriação. Mas é mister que não nos esqueçamos que o espectador assume dois papéis: o de espectador do filme, o que valeria para o leitor, e o de espectador da vida no espaço público, aquele que nos observa do lado de fora da tela – o vizinho, o transeunte, o amigo virtual. É em virtude destes espectadores que Nietzsche disse que “o bicho ‘homem’ aprende afinal a se envergonhar de seus instintos.” (NIETZSCHE, 2001, p.57). E ao mesmo tempo em que nos envergonhamos do espectador na vida pública, é nele que buscamos a nossa representação no mundo: “Toda a humanidade antiga é plena de terna consideração pelo espectador, sendo o mundo essencialmente público...” (Idem, p.59). Refém e palco do espectador, o homem trilha um caminho a negar os instintos e a exaltar uma forma, um código de conduta que pouco tem a dizer sobre ele mesmo; por isso, frequentemente, ele busca no deslocamento geográfico ou onírico, ou ainda no transe, a restituição do que sobrou dele; busca na “desobediência” o milagre da liberdade. Decerto que o âmago de nossas duas “histórias universais” – Ahab e As Três Graças de Vênus –, enquanto mote do espetáculo a ser visto e lido, não difere de nossa condição de espetáculo aos olhos dos outros; muitas vezes, buscamos os bastidores com intuito de reverberar sobre as contradições da existência nas quais chafurdamos. Em Filme de Amor, no entanto, os personagens não se tornam espectadores de si mesmos, são, pelo contrário, espiados, espionados pelo “olho variável”7 do autor ou de um espectador à espreita, que cedo ou tarde, esbarrar-se-ia entre eles à procura de um campo- contra -campo, mas aí, a serviço da estética poética, opta-se pelo fora de campo – o lugar do “outro” que é geralmente o nosso lugar. É fato que esse “outro” existe, mas não é revelado a nós, dele só há nuances quando no início da narrativa, os três personagens ao entrarem no apartamento, conversam coisas triviais em um plano geral e a altura do som equivale à distância da

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JACQUES AUMONT, O Olho Interminável [Cinema e Pintura], 2004, p.42.

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câmera; por isso, não importa o que eles falam, e sim que alguém os espiona como se fosse necessário espichar os ouvidos para ouvi-los. Já no final da narrativa, esse “outro” flagra e é flagrado quando um dos personagens lixando a unha de um cliente é posto em primeiro plano, ao mesmo tempo em que ergue a cabeça e dá de cara com a co-presença daquele que filma ou daquele que observa, e assim vem a desmascarar a “graça de Vênus” que, com cara de espanto, talvez dissesse internamente: “eu fui descoberta”. Mas em um outro momento, o que deveria ficar fora do espaço ficcional não só se insinua no início do filme, ao contrário, revelam-se aos olhos do espectador o diretor e a claquete ao anunciarem o “um, dois, três, filmando”. Talvez estivesse aí um recurso estilístico a favorecer o espectador, confirmando Aumont que diz: “...os papéis são intercambiáveis porque aquele que filma é alguém ‘como-você-e-eu.’” (AUMONT, 2004, p.42). Sobre as barreiras entre aquele que filma e aquele que é filmado Aumont diz: Incessante enriquecimento mútuo do campo e do fora-de-campo, mas também incessante mutação da relação entre o conjunto campo + forade-campo e esse outro fora-de-campo mais radical que deveria se chamar o antecampo: aquele onde está a câmera, e que nem sempre pertence ao mesmo espaço ficcional que o campo (Idem, p.41).

E Aumont reitera: ...o quadro é o que institui um fora-de-campo, outra reserva ficcional onde o filme vai buscar, se for o caso, determinado efeitos necessários ao novo impulso. Se o campo é a dimensão e a medida espaciais do enquadramento, o fora-de-campo é sua medida temporal, e não apenas de maneira figurada: é no tempo que se manifestam os efeitos do forade-campo...: lugar do futuro e do passado, bem antes de ser o do presente (Idem, p.40).

Em síntese, se de acordo com Aumont, frente ao que já foi citado, o fora-decampo contém a dimensão temporal – passado e futuro antes do presente –, é porque o que se vê na tela não é somente uma sucessão de imagens ainda que conexas diante dos dispositivos utilizados, mas é a continuidade de uma história que se faz universal. É a história de Ahab para o qual o branco era a qualidade do animal que o feriu; é a história de Filme de Amor para o qual o branco era a castração moral abstrata, o conjunto de regras morais que se contradiz aos desejos dos personagens. Às duas histórias, o branco era o incômodo e ao mesmo tempo o objeto de fascinação, e à medida que Moby Dick e Filme de Amor caminhavam, cada uma ao seu tempo, para exorcizar o “mal,” mais vida

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“ele” ganhava, materializando-se, não raro, na forma como cada um de nós lida com as imposições, sejam elas morais, culturais ou ideológicas. Reitera-se que a esta questão do homem estar dividido entre a ilusão e a realidade, a originalidade de Bressane revela-se na alternância entre cenas em cores e cenas em preto e branco, o que comprova um recurso estético-cinematográfico disposto a embaralhar a visão, e, posteriormente, a imaginação do espectador de que a vida não é tão simples e dicotômica – de um lado um sonho, de outro, o real concreto –, a vida é um todo carregado de nuances das mais diversas tonalidades; é o rio de Heráclito,8 no qual nada permanece e tudo flui; é o livro Galáxias sem numeração de páginas de Haroldo de Campos, posto que parafraseando-o, a vida é “o estar aqui não-estandoaqui”, “é o nada que é tudo da folha ainda em branco.” (CAMPOS, 2004).9 Desta forma, em menor ou maior grau, a obra de arte ancorar-se-á no dilema humano, muitas vezes, indefinível, da sensação de nossas carências, sobretudo, as intrínsecas. O mundo contemporâneo sabe disso, e assim procura “suprir” as necessidades dos homens com meras extensões de seus corpos – automóveis, aparatos tecnológicos, idealizações de corpos perfeitos. Pouco ou quase nada é feito com relação ao preenchimento da subjetividade em prol de um espírito consciencioso e apto a discernir diante daquilo que lhe falta. Mas é de cunho relevante saber que a origem do debate acerca de nossas desilusões e angústias remontar-se-á aos gregos. Em O banquete de Platão, escrito por volta de 380 a.C, seis discursos são pronunciados em honra ao amor, mas é no discurso do personagem Aristófanes que se encontra o âmago de nossas expectativas e desejos: Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que de agora, mas diferente (...) três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora....10 Eram, por conseguinte, de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses (...) e Zeus: “acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança (...) eu os cortarei em dois...” Por conseguinte, desde que a nossa natureza se

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Heráclito (aprox.535-475 a.C.), filósofo pré-socrático. Théohar Kessidi, em As Origens da Dialética Materialista, trará à luz a filosofia pré-socrática, sobretudo, a de Heráclito, ao qual é dado o célebre pensamento intuitivo do vir a ser, a eterna mudança metaforizada pelo rio: “Tudo é e não é , tudo se encontra sem cessar em vias de se transformar, de vir a ser e de perecer.” (KESSIDI, 1976, p. 105). 9 Nas palavras de Haroldo de Campos:” As Galáxias começaram a ser publicadas na revista Invenção, São Paulo, nº 4, em dezembro de 1964...” O Livro Galáxias não possui numeração, portanto, os trechos citados foram retirados dos seguintes capítulos, seguindo a sequência: Como quem está no navio (13/16.7.69); O que mais vejo aqui (18.10.67). 10 PLATÃO, Diálogos [O Banquete, Fédon, Sofista, Político], 1972, p. 28

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mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade. 11 É então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois...12 E Sócrates dirá: “não é isso então amar o que ainda não está à mão nem se tem...?”13 Não está admitido que aquilo de que é carente e que não tem é o que ele ama?14 (PLATÃO, 1972).

E somando-se às várias definições de Eros15, O Banquete de Platão ressalta como um dos pontos primordiais o favorecimento concedido ao amor. Eros então é o símbolo do amor, o que para os latinos é Cupido. Então o que nos angustia é não ter encontrado o amor; o amor é a falta; ama-se aquilo que ainda está ausente. E Ahab preferiu morrer no mar a viver em terra firme e deixar livre o cachalote – já que Moby Dick, sem qualquer dúvida, era o seu maior desejo, ou seja, era Eros na representação instintiva de sua unidade primordial. Já em Filme de Amor, Filme de Eros, por assim dizer, faz transcender-se o sentido em detrimento às conotações desgastadas sobre a palavra amor; é como Borges diz sobre repetir noventa e nove nomes divinos até que eles nada mais queiram dizer. 16 Assim, a serviço da nossa história universal, similar a Ahab, as três graças de Filme de Amor assumem o outro sentido de Eros, e, à procura da metade que lhes faltava, ocorrelhes uma história semelhante a de Narciso: ..., que, por não poder pegar a imagem, atormentadora e suave que ele via na fonte, mergulhou nela e afogou-se. Mas essa imagem nós mesmos a vemos em todos os rios e oceanos. É a imagem do inagarrável fantasma da vida; e esta é a chave de tudo (MElVILLE, 1980, v.1, p. 25).

Mas ora ou outra, pegamo-nos à procura de uma tábua de salvação. Tentamos renovar o nosso estoque de esperança em busca da felicidade, da realização e da tranquilidade do espírito. Dizemos a nós mesmos, muitas vezes, que o importante é o que sentimos e não o que dizem e pensam que sentimos. Chegamos até a cogitar que a vida sendo breve, trabalharemos menos e viveremos o efêmero momento com qualidade. Em contrapartida, raríssimas vezes, damo-nos conta de que o que nos falta ou que nos entristece, muitas vezes, venha a fechar o ciclo de nossa condição existencial – 11

Ibidem, p. 29 Ibidem, p. 30 13 Ibidem, p.38 14 Ibidem, p. 39 15 Substantivo cujo sentido representava a força abstrata do desejo. Os seis discursos de O Banquete pronunciado em honra de Eros trazem respostas divergentes à questão de sua natureza. (BRUNEL, 1988, p. 319). 12

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um renovar-se sempre depois de se morrer um pouquinho, um pensar mais rigoroso no que se tem sem perder de vista desejos e idealizações. E então ficamos tristes, à semelhança de Ahab e das Três Graças de Vênus, por já não compreendermos que “Deus ao mar o perigo e o abismo deu/ mas nele é que espelhou o céu.” (PESSOA, 1981, p.24). Portanto, talvez nosso destino seja o “mar”, ainda que, frequentemente, estejamos em terra firme, fato cuja semelhança está em Filme de Amor, quando ao se alimentar religiosamente um gato, não se tem nunca a certeza, mas sim uma fagulha de esperança, de que ele virá ao nosso encontro. Referências AUMONT, Jacques. O Olho Interminável [Cinema e Pintura]. São Paulo: Cosac & Naif, 2004. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas, v1. São Paulo: ed. Globo, 1999. BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos Literários. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo: ed. 34, 2004. JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. 5ª ed. São Paulo: ed. Cultrix, 1971. MELVILLE, Herman. Moby Dick. São Paulo: ed. Abril Cultura, 1980. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: ed. Schwarcz Ltda, 2001. NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: ed. Schwarcz Ltda, 2004. PESSOA, Fernando. Mensagem. Rio de Janeiro: ed. Nova Fronteira, 1981. PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: ed. Perspectiva, 2003. KESSIDI, Théohar. As origens da Dialética Materialista. Lisboa: ed. Prelo S.A.R.L, 1976. CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem & Outras Metas. São Paulo: ed. Perspectiva, 2004. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: ed. Schwârcz Ltda, 1999. PLATÃO. Diálogos [O Banquete, Fédon, Sofista, Político]. 1ª ed. Trad. José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: ed. Abril S.A, 1972. BRESSANE,

Julio.

Filme

de

Amor.

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A RELAÇÃO ENTRE A ARTE LITERÁRIA E AS ARTES VISUAIS NAS OBRAS FICCIONAIS DE IRIS MURDOCH Ana Paula Dias Ianuskiewtz (FAPESP) Maria Clara Bonetti Paro UNESP / FCLAr

On the road between illusion and reality there are many clues and signals and wayside shrines and sacraments and places of meditation and refreshment. The pilgrim just has to look about him with a lively eye. There are many kinds of images in the world, sources of energy, checks and reminders, pure things, inspiring things, innocent things, attracting love and veneration. We all have our own icons, untainted and vital, which we, perhaps secretly, store away in safety. (MURDOCH, 1993, p. 496)

Mario Praz (1982), em seu livro Literatura e artes visuais, declara que a ideia das artes irmãs, como a arte literária e a arte visual, está tão enraizada na mente humana desde a antiguidade remota que deve nela haver algo mais profundo do que a mera especulação, algo que apaixona e que se recusa a ser levianamente negligenciado. No Modernismo essa relação das artes, principalmente da literatura com as artes plásticas tornou-se mais frequente nos movimentos de vanguarda, como o Futurismo e o Cubismo. Dessa forma, o texto poético passou a ser explorado visualmente e adquiriu características estruturais que o relacionavam ao texto pictórico. A escritora irlandesa Iris Murdoch (1919-1999), assim como muitos escritores do século XX, acredita na interdisciplinaridade das artes e utilizou, em vários de seus romances, obras de diversos pintores para complementar o sentido de suas narrativas, ou mesmo como um tema a mais na construção de suas tramas. Murdoch destacou-se como uma das escritoras mais prolíficas de seu tempo, publicando ao longo de sua carreira literária, vinte e seis romances, cinco peças teatrais, quatro livros sobre filosofia, um volume de poesias e vários ensaios sobre filosofia e estética. Essa alusão às artes plásticas tornou-se tão constante em seus romances, que apenas em um de seus livros, Bruno’s dream (1969), Murdoch omite referências à pintura. As obras que aparecem com mais frequência nas narrativas de Murdoch são as dos pintores italianos, Tiziano Vecellio (1490-1576), Bronzino (1503-1572) e Tintoretto

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(1518-1594), pintores que sempre estiveram entre os prediletos da autora. Ao ser questionada sobre a recorrência constante às imagens pictóricas em seus textos, Murdoch afirma: “when paintings or music are dealt with in my books there is always a definite reason in the storyline” (MURDOCH apud ROWE, 2002, p.4). Temos como finalidade deste trabalho a discussão da importância que a arte, mais precisamente a arte visual, possui no conceito de moral de Murdoch como também, abordaremos a maneira pela qual a autora utiliza em seu romance, The Bell (1958), a obra do artista inglês, Thomas Gainsborough (1727-1788), Chasing Butterflies, como propulsora de um aprimoramento moral por parte de uma das personagens do romance, Dora Greenfield. Analisaremos também, duas outras obras de arte inseridas no romance, as esculturas de Davi, de Donatello, e Moisés, de Michelangelo, para demonstrar que, da mesma maneira que Murdoch, esses dois artistas renascentistas fizeram da arte um meio de ressaltar os sentimentos, as paixões e conflitos humanos que sempre, junto com os valores morais, permearam a vida do homem. Murdoch várias vezes manifestou seu interesse pela pintura e ainda como estudante em Oxford, a autora chegou a cogitar a possibilidade de se tornar historiadora da arte renascentista. No entanto, certas circunstâncias, como o início da Segunda Guerra Mundial, fizeram-na partir para Londres em 1942, onde passou a trabalhar para o Ministério das Finanças como funcionária pública. Mais tarde, seu interesse pelas ideias de Sartre e de outros filósofos a conduziu para o estudo da filosofia e, durante quinze anos, Murdoch foi professora de filosofia no St Anne’s College, em Oxford. Mesmo assim, seu interesse pelas artes plásticas nunca se esvaneceu e em suas aulas sobre ética, Murdoch usava pinturas como referências de temas morais. Uma das contribuições mais significativas que Murdoch trouxe para o estudo da ética contemporânea foi o esforço para recuperar uma concepção metafísica da ética, quando tanto a filosofia analítica como o existencialismo eram as duas correntes norteadoras do pensamento filosófico do pós-guerra, período tão hostil a qualquer ideia que relacionasse o indivíduo com algo que o transcendesse. Segundo Peter Conradi (2001), a filosofia da moral de Iris Murdoch poderia chamar-se também de uma psicologia da moral, por incluir no estudo da moralidade os mecanismos interiores da mente humana, o conceito do Bem, a psicanálise, a analogia entre percepção estética e moralidade, considerando assim, todo o conceito de moral vinculado a uma estrutura muito mais ampla e complexa que envolve a realidade humana.

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Podemos encontrar na filosofia da moral de Murdoch várias analogias com as concepções éticas de Platão, principalmente no que diz respeito a sua ideia do conhecimento do bem. Em O Mito da Caverna, o filósofo discute o processo pelo qual o ser humano pode passar da visão habitual que tem das coisas, “a visão das sombras”, condicionada pelos hábitos e preconceitos que adquire ao longo da vida, até a visão do Sol, que consiste numa visão da realidade em seu sentido amplo e mais elevado. Murdoch várias vezes mencionou esse texto de Platão em suas concepções éticas, pois, segundo a autora, a moral está vinculada muito mais ao aprimoramento da percepção visual do que simplesmente aos atos de escolha. Sendo assim, a maneira pela qual cada indivíduo enxerga a realidade, ao invés de distorcê-la com suas fantasias, temores e tendências ao solipsismo é fundamental para todo o estudo da moral e a arte, com seus variados meios de expressão, favorece a apreensão do real por meio do aperfeiçoamento das percepções, principalmente da percepção visual: I think good art is good for people precisely because it is not fantasy but imagination. It breaks the grip of our own dull fantasy life and stirs us to the effort of true vision. Most of the time we fail to see the big wide real world at all because we are blinded by obsession, anxiety, envy, resentment, fear. We make a small world in which we remain enclosed. Great art is liberating, it enables us to see and take pleasure in what is not ourselves…Art is informative. And even mediocre art can tell us something, for instance about how other people live. But to say this is not to hold a utilitarian or didactic view of art. Art is larger than such narrow ideas. (MURDOCH, 1999, p.14)

Iris Murdoch deixou evidente a preferência pelo estilo de romance realista do século XIX encontrados nas obras de Walter Scott, Jane Austen, George Eliot e especialmente de Tolstoy. Segundo a autora, uma das principais qualidades que o romance pode oferecer ao seu leitor é a pluralidade de tipos humanos reunidos em um universo ficcional proporcionando assim, uma visão ampla da diversidade da natureza humana. Dessa forma, a presença da arte visual em suas narrativas potencializa a noção do real e faz com que as personagens vençam o solipsismo e alcancem uma consciência maior da realidade que as rodeia. Além disso, Murdoch (1999, p. 215), em The Sublime and the Good, declara que: “art and morals are one. Their essence is the same. The essence of both of them is love.” Suas essências são únicas porque a arte, vinculada a uma percepção mais efetiva da realidade, permite ao homem um entendimento maior da realidade e das necessidades alheias.

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O escritor norte-americano Henry James (1843-1916) foi também uma grande influência para Murdoch, pois ambos compartilharam o questionamento da relação entre a arte e a vida e a preocupação com a natureza ilusória da percepção: a maneira pela qual os seres humanos acreditam ver a realidade quando, na verdade, eles a constroem. Anne Rowe (2002), em seu livro The visual arts and the novels of Iris Murdoch, ao abordar a interdisciplinaridade entre a literatura e a pintura nos textos de Murdoch, afirma que: (…) in the novels, paintings figure significantly in this vision of salvation, in that characters can be simply stunned by the spiritual or emotional truth they display, and the experience allows them to glimpse, momentarily, their own delusions and the reality beyond. These characters begin to develop a clearer view of the world outside themselves and are slightly morally improved. (ROWE, 2002, p.14)

Em The Bell, a personagem Dora Greenfield vive constantemente dominada e submetida aos caprichos de seu tirânico marido Paul Greenfield. Além disso, vivendo levianamente, Dora não consegue refletir sobre as consequências de suas ações e de progredir espiritualmente ou moralmente. Após separar-se do marido por um tempo, ela reata seu relacionamento com ele e vai passar uns tempos em Imber Court, uma austera comunidade religiosa, plena de regras e convenções. No entanto, a vida nessa comunidade, privada dos prazeres mundanos que Mrs. Greenfield tanto valoriza a decepciona e ela decide retornar a Londres em busca de um sentido para sua vida, ou simplesmente, de algo que a fizesse se sentir mais feliz naquele momento. Caminhando pelas ruas agitadas da cidade, Dora decide visitar a National Gallery e naquele dia, diante de uma crise emocional, parece que, pela primeira vez, em meio às obras de Boticelli, Piero della Francesca, Rubens, Crivelli e outros pintores, ela dedica um olhar especial e mais atento a uma das telas de Gainsborough, Chasing Butterflies. Essa obra de Gainsborough, com seu poder de extrema beleza e magnificência, a conduz à reflexão de sua própria realidade. Consequentemente, ela tem, em um dos raros momentos no romance, a capacidade de tomar uma resolução em sua vida que a levará finalmente a um crescimento pessoal e moral. Tal aprimoramento consiste no fato de que, ao contemplar a beleza dessa obra de arte, Dora é capaz de ver outra realidade, diferente da sua, e definitivamente encara sua própria realidade de uma maneira mais objetiva e realista. Dessa forma, a pintura de Gainsborough em The Bell é um exemplo evidente da relação que Murdoch estabelece entre a ética e a arte, nesse caso, a arte

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visual, e de como o poder que emana da boa arte é capaz de promover mudanças benéficas na consciência daqueles que são capazes de fixar a atenção em tudo o que há de belo nas artes e na natureza. Assim, podemos observar esse momento de revelação espiritual e moral para Dora na seguinte passagem de The Bell: Dora was always moved by the pictures. Today she was moved, but in a new way. She marvelled, with a kind of gratitude that they were all still here, and her heart was filled with love for the pictures, their authority, their marvellous generosity, their splendour. It occurred to her that here at last was something real and something perfect. Who had said that about perfection and reality being in the same place? (…) But the pictures were something real outside herself, which spoke to her kindly and yet in sovereign tones, something superior and good whose presence destroyed the dreary trance-like solipsism of her earlier mood. When the world had seemed to be subjective it had seemed to be without interest or value. But now there was something else in it after all. These thoughts, not clearly articulated, flitted through Dora’s mind. She had never thought about pictures this way before, nor did she draw now any very explicit moral. Yet she felt she had a revelation. She looked at the radiant, sombre, tender powerful canvas of Gainsborough and felt a sudden desire to go down on her knees before it, shedding tears. (1999, p.175)

Se analisarmos a razão pela qual, Murdoch escolheu precisamente essa obra de Gainsborough, poderíamos pensar que somente sua beleza e perfeição já seriam motivos suficientes, mas, certamente, por meio desse quadro, Murdoch conduz o leitor a uma ampla reflexão das diversas questões relacionadas à vida da personagem Dora Greenfield. Esse quadro retrata as duas filhas de Gainsborough, Mary e Margaret, de mãos entrelaçadas em um bosque, ambas com os olhares focados em uma borboleta branca que voa enquanto a mais jovem, Margaret, com um dos braços estendidos, faz menção de querer agarrar essa borboleta. As crianças gozam de certa liberdade e coragem, pois elas estão em meio a um bosque escuro onde uma fonte de luz misteriosa e radiante ilumina seus rostos, acentuando a inocência ou vulnerabilidade delas. No entanto, elas nada temem, pois a infância, fase pueril e ingênua de todo o ser humano, as deixam indiferentes às ameaças, contradições e contrariedades do meio em que vivem e que a vida adulta, provavelmente, mais tarde as revelará. O momento efêmero da absorção das menininhas pela borboleta ecoa no texto como uma evocação que revela a evasiva natureza da felicidade e da liberdade. A personalidade e as atitudes de Dora

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Greenfield, tal como as meninas do quadro, tem algo de inocente e infantil e esta anseia pela mesma liberdade das crianças livres em meio à natureza, embora não tenha até então, coragem de lutar por sua liberdade. Tanto a clausura de Imber Court, como a dominação de seu marido a impedem de ser totalmente livre e de lutar por aquilo que ela deseja. Essas duas crianças, apesar de parecerem indefesas em um bosque escuro, não temem a escuridão que as rodeiam, pois tem seus olhares focados em algo belo e sublime, uma realidade externa a elas que é simbolizada pela borboleta. Dessa forma, elas representariam talvez toda a coragem e audácia que Dora necessita para seu crescimento pessoal e moral. Por outro lado, sem perder essa bravura e audácia das meninas do quadro, Dora precisaria também enxergar e enfrentar a realidade de sua vida como uma mulher adulta para conquistar e consolidar sua individualidade. Após essa experiência na National Gallery, tal como Murdoch afirma na sua filosofia da moral, a arte promove um aprimoramento moral da personagem Dora, pois esta vence o solipsismo e passa a ver melhor a realidade que a rodeia. Murdoch busca, em sua arte, o realismo para a abordagem de seus temas e é interessante notar que Chansing Butterflies é o retrato de duas personagens reais, as filhas do pintor Gainsborough, que são representadas nessa obra na doçura e no encanto da infância. Porém, na vida adulta, essas graciosas meninas também vivenciaram alguns dilemas que a personagem de Murdoch, Dora Greenfield, enfrentou na ficção. Embora filhas de um conceituado artista e mesmo tendo frequentado a alta sociedade londrina, Mary

e

Margareth

nunca

realmente

pertenceram

a

essa

classe

social.

Consequentemente, um bom casamento, no qual ambas vivessem sob o amparo econômico do marido, não lhes foi possível e finalmente, quando Mary se casou, ela foi infeliz em sua relação. Separada do marido, Mary foi morar com Margareth que sempre permaneceu solteira. As duas irmãs terminaram suas vidas juntas, mas Mary ainda teve a infelicidade de sofrer de doenças mentais no final de sua vida. Em The Bell, Murdoch também faz menção a outras duas obras de arte, as esculturas renascentistas Davi (1430), do artista italiano Donatello (1386-1466), e Moisés (1515), de Michelangelo (1475-1564), as quais, assim como a pintura de Gainsborough, revelam o entrelaçamento que Murdoch continuamente buscou entre o texto e a arte visual. A primeira escultura citada no romance é a de Davi, no capítulo V, quando Dora Greenfield e Michael Meade surpreendem o jovem Toby Gashe banhando-se nu no lago. A sensualidade e graciosidade da nudez do jovem trazem à Dora reminiscências de 588

suas viagens à Itália e a personagem acaba por comparar Toby Gashe à figura bela e sensual do jovem Davi de Donatello. Diferentemente das esculturas medievais, onde as figuras humanas eram encobertas por pesadas vestimentas que ocultavam suas formas e detalhes, as esculturas renascentistas exibem a beleza de corpos nus, realisticamente e harmoniosamente esculpidos. Davi, personagem bíblico, representa a virtude, a humildade e a exaltação da fé religiosa que o fez vencer a força bruta do gigante Golias liberando assim, Israel das garras de um tirano. Mesmo sendo um simples pastor, Davi era um amante da música e frequentemente, apaziguava os sofrimentos do rei Saul com a beleza do som de sua harpa. Michelangelo também representou Davi em uma esplêndida escultura em mármore e, embora Murdoch não faça menção a essa obra de Michelangelo em The Bell, é interessante compararmos as figuras humanas concebidas por Michelangelo e Donatello, pois elas são extremamente diferentes. O Davi de Michelangelo retrata um jovem, com o seu corpo plenamente desenvolvido, forte e tenso, como os atletas da Grécia, com seus músculos fortes e salientes e sua mão colossal, representa a mão de um homem trabalhador do povo. Seu olhar transmite certa sabedoria e sensatez heroica. Já o Davi de Donatello é uma escultura em bronze, considerado o primeiro nu artístico com inspiração helênica e retrata um rapaz adolescente, dotado de um corpo que, ao invés de expressar a força viril de um guerreiro, transmite toda a sensualidade de um corpo esbelto cujas formas, assemelham-se às de um corpo feminino. Desse modo, a personagem de Murdoch em The Bell, Toby Gashe, assim como a escultura de Donatello, evoca certos temas relacionados à questão da sexualidade e gênero e o moralismo da sociedade no que diz respeito a essas questões. A alusão à obra Moisés de Michelangelo ocorre no capítulo XV, quando Dora ao retornar de Londres encontra os membros da comunidade reunidos no salão principal de Imber Court, apreciando um recital de Bach. Ao observar todos juntos, ouvindo um tipo de música que não a agradava, Dora sente-se novamente excluída do grupo e a partir de então, o leitor passa a ter uma descrição de toda a cena. Nesse momento, um dos integrantes do grupo, o moralista Mark Strafford, ali sentado, remexendo sua barba é comparado à figura de Moisés de Michelangelo. Essa obra de mármore de Michelangelo encontra-se na Igreja de S. Pietro in Vincoli, Roma, e é considerada uma obra enigmática que constitui apenas uma parte do enorme mausoléu que o escultor deveria construir para o papa Júlio II. Vários críticos concordam que Michelangelo desejou representar por meio dessa obra a cena do monte 589

Sinai, na qual Moisés recebera de Deus as Tábuas da Lei, e se encontra sentado observando os hebreus que dançavam ao redor do bezerro de ouro que lembrava o boi Ápis. Seu olhar se volta para este quadro expressando sentimentos de indignação e desdém diante da cena que ele presencia. Assim, o escultor e artista, escolheu fixar para a eternidade, o instante em que ocorreu a última hesitação, a calma antes da tempestade e no momento seguinte, Moisés se levantará e arremessará as Tábuas no chão descarregando sua raiva sobre aqueles que renegam Deus para idolatrarem um ídolo. Além de chamar a atenção de vários críticos de arte, essa escultura despertou o interesse de Freud que a analisou minuciosamente em suas visitas à Igreja de S. Pietro e chegou à conclusão que Michelangelo retratou um Moisés diferente daquele dos textos bíblicos. O Moisés representado por Michelangelo, ao invés de levantar-se num súbito acesso de cólera, contém sua fúria, não arremessa as Tábuas no chão, de modo a despedaçarem-se. Michelangelo, segundo Freud, colocou no mausoléu do Papa outro Moisés, superior ao Moisés histórico ou tradicional. Assim, Freud (1994) declara em seu texto “O Moisés” de Miguel Ângelo, publicado na obra Textos essenciais sobre literatura, arte e psicanálise: (...) mais importante do que a falta de fidelidade ao texto sagrado é certamente a transformação que Miguel Ângelo, de acordo com a nossa interpretação, efetuou no caráter de Moisés. (...) ele conferiu algo de novo, de sobre-humano à figura de Moisés; e a poderosa massa corporal e a pujante musculatura da estátua são apenas os meios de expressão física da maior capacidade psíquica de que o ser humano é capaz, a fim de submeter a sua própria paixão em nome de princípios aos quais se consagrou (FREUD, 1994, p.134).

Em The Bell, a obra Moisés diz respeito a Mark Strafford, que é descrito no romance como um homem sarcástico que ostenta uma aparência viril e cuja presença é um constante incômodo para Michael Meade. No entanto, o senhor Strafford é um dos personagens que mais zela pelo respeito às regras da comunidade e tal como o Moisés de Michelangelo, é capaz de dominar suas paixões e impulsos em prol dos princípios aos quais acredita e se consagrou. Dessa maneira, Murdoch insere no romance uma obra de arte para simbolizar as questões morais e valores que envolvem cada indivíduo, fazendo com que essas duas esculturas e mais a pintura de Gainsboroug ultrapassem a solidez do bronze, do mármore e a representação fixa de uma tela para ressaltar o que é humano, revelador do caráter e do íntimo de cada um, expressando sentimentos e dilemas que se opõem à razão. Quando Dora Greenfield encontra-se perplexa diante da

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tela de Gainsborough, subitamente, esta é envolvida por uma sensação de que sua experiência fortuita na National Gallery deve ter tido alguma “conexão” e, finalmente, essa intuição lhe mostra que as coisas possuem um significado. Isso lhe proporciona a coragem de enfrentar seu futuro e buscar um significado para sua vida. Murdoch também parece dividir com Dora essa convicção em tais conexões e em Methaphysics as a guide to morals, declara: “good art explains truth itself, by manifesting deep conceptual connections. Truth is clarification, justice, compassion” (MURDOCH, 1993, p.321). As relações que foram representadas em The Bell entre texto e imagem são exemplos que Murdoch buscou em sua filosofia da moral para demonstrar seu encanto pela misteriosa e complexa interconexão entre a realidade e suas diferentes formas de expressão e percepção. Sendo assim, o diálogo entre as artes favorece aquilo que Murdoch considera fundamental para toda abordagem que envolve o estudo da moral, ou seja, a união entre intelecto e emoção, realidade e meta-realidade, o conceito do Belo e a ideia do Bem: (…) Art makes places and opens spaces for reflection, it is a defence against materialism and against pseudo-scientific attitudes to life. It calms and invigorates, it gives energy by unifying, possibly by purifying, our feelings. In enjoying great art we experience a clarification and concentration and perfection of our own consciousness. Emotion and intellect are unified into a limited whole. (MURDOCH, 1993, p.8)

Referências CONRADI, P. Iris Murdoch existentialist and mystics: writing on philosophy and literature. London: Penguin, 1999. ___________ The saint and the artist: a study of the fiction of Iris Murdoch. United Kingdom: Happer Collins Publisher, 2001. FREUD, S. Textos essenciais sobre literatura, arte e psicanálise. Portugal: EuropaAmérica, 1994. MURDOCH, I. The Bell. Londres: Penguin, 1999. ____________. Metaphysics as a guide to morals. USA: Penguin, 1993. ____________. Bruno’s dream. London: Chatto & Windus, 1969; New York: Viking Press, 1969.

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____________. The sublime and the good. In: CONRADI, P. Iris Murdoch existentialist and mystics: writing on philosophy and literature. London: Penguin, 1999, p.205-220. PRAZ, M. Literatura e artes visuais. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, Edusp, 1982. ROWE, A. The visual arts and the novels of Iris Murdoch. London: Edwin Mellen Press, 2002.

HOJE É DIA DE MARIA E A PEDRA DO REINO: CONJUNÇÕES, DISJUNÇÕES E APROXIMAÇÕES Andrea C. Martins [email protected] Lúcia Teixeira UFF Dentro de uma ampla rede de estudos semióticos que se têm produzido atualmente, as linguagens utilizadas nas comunicações de massa e de expressão artística vêm se destacando e ganhando espaço, especialmente com a multiplicação de veículos de comunicação, patrocinada pela tecnologia. Assim é que se ampliam os estudos sobre o sincretismo semiótico, presente na maioria absoluta das novas mídias; a semiótica tensiva, que procura analisar a produção de sentido a partir da afetividade; e sobre o hibridismo na arte contemporânea, prática que se acentua em ritmo acelerado. Dentre os meios de comunicação de massa, a televisão é, sem dúvida, o de maior alcance. Descendente do rádio e do teatro e influenciada pelo cinema, a televisão apresenta uma linguagem particular em relação a estes meios. Devido a sua preocupação em comunicar ao maior número possível de espectadores, a televisão, na visão de Umberto Eco (2006) é um mero serviço, e não um “gênero artístico” como, segundo ele, é muitas vezes equivocadamente definida. A ideia de que a TV só se (pre)ocupa com produtos de mercado é amplamente disseminada entre os estudiosos do meio. Isso, segundo Arlindo Machado, porque tais abordagens envolvem apenas o sistema político, econômico e tecnológico no qual se ditam as regras de produção e as condições de recepção, deixando de lado a análise do que realmente importa, que é o exame dos programas “e, sobretudo, o exame detalhado daquilo que, dentro de uma imensa massa indiferenciada de material audiovisual, se

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distinguiu, permaneceu e permanecerá como uma referência importante dentro da cultura do nosso tempo.” (MACHADO, 20005, P. 16). Na obra A televisão levada a sério, o pesquisador analisa o que ele elegeu como os “trinta programas mais importantes da história da televisão” e, ao lado deles, destaca quarenta programas produzidos pela televisão brasileira. Um deles é a minissérie Grande Sertão: Veredas , na qual o diretor Luiz Fernando Carvalho, diretor das obras objeto deste projeto, fez sua estreia em 1985, como assistente de direção. Não obstante ter iniciado seu percurso profissional num programa cujo formato, desde sua origem, esteve voltado para um público mais exigente e, portanto, apresenta uma estética diferenciada, pode-se dizer que Carvalho nunca foi um diretor convencional. Mesmo nas novelas que dirigiu, como Renascer (1993) e O Rei do Gado (1996), ele procurou ir além da linguagem meramente televisiva, inserindo tomadas e movimentos de câmera emprestados do cinema. Diante disso, pode-se dizer que Carvalho foge da “massa indiferenciada” veiculada pela TV, de que fala Arlindo Machado. Não por acaso: tratase de um profissional que, antes de atuar, buscou alimentar-se nas melhores fontes da teoria e da prática cinematográfica, como Eisenstein, Vertov, Pasollini e Visconti, por exemplo, além de manter uma constante aproximação com outras artes, como a pintura, o teatro e a literatura. Embora essa proximidade com outras manifestações artísticas esteja na raiz da formação do diretor, percebe-se que ela se manifestou de forma mais contundente a partir da minissérie Hoje é dia de Maria, onde se pode deparar com um mosaico linguístico e cultural até então inédito na linguagem televisual brasileira, fórmula que ele repete em A pedra do Reino (2007) e Capitu (2008), minisséries integrantes do Projeto Quadrante, cuja proposta era adaptar quatro obras da literatura brasileira para a televisão. Entretanto, embora esteticamente os recursos utilizados pelo diretor nas três obras sejam basicamente os mesmos – o hibridismo de linguagens -, o mesmo não se pode dizer quanto à recepção das obras. A baixa audiência e as inúmeras críticas negativas feitas a A pedra do Reino e Capitu fizeram com que o Projeto Quadrante fosse temporariamente suspenso pela Rede Globo. Diante disso, e considerando que a linguagem televisual tem sido objeto de muitas críticas e poucas pesquisas no que se refere a programas específicos, este projeto propõe investigar, à luz da semiótica, o que provocou resultados tão diferentes no contrato entre enunciador e enunciatário nas obras Hoje é dia de Maria e a Pedra do reino, escolhidas 593

em função da semelhança dos recursos de expressão e do conteúdo de cultura popular presentes em ambas. O objetivo geral do projeto, portanto, é analisar a relação enunciador/enunciado/enunciatário nas minisséries Hoje é dia de Maria e A pedra do reino, ou seja, apontar as estratégias de persuasão utilizadas pelo enunciador e o consequente “ritmo” do enunciado, responsável pela intelecção e aceitação deste pelo enunciatário. As hipóteses são de que, (1) apesar do conteúdo de cultura popular comum às duas obras, e que é fator de aproximação com o público, (2) o uso de elementos novos e já conhecidos é feito de maneira dissemelhante pelo enunciador, de forma que em HDM prevalece o já conhecido revestido de novidade, enquanto em APR prevalece o novo, obscurecendo o já conhecido; além disso, (3) a montagem, ou seja, as estratégias do enunciador na instauração das instâncias da enunciação (pessoa, tempo e espaço), na sincretização das linguagens auditivas e visuais e na hibridação de gêneros geram estabilidade na primeira obra e instabilidade, na segunda, segundo os conceitos de José Luiz Fiorim (2008). O resultado disso se reflete no ritmo e, consequentemente, na aceitação dos enunciados pelos enunciatários. Para quem acompanha em passant a programação televisiva, e se depara com novelas cheias de clichês, programas de auditório apelativos ou humorísticos repetitivos, não é difícil concordar com a opinião de Eco sobre certa falta de vocação da televisão - especialmente aquelas chamadas “abertas” - em produzir arte ou veicular produtos e informações de qualidade estética, cultural e educativa. Entretanto, o argumento de Machado nos faz refletir sobre tantas produções televisuais portadoras de conteúdo consistentes – e nesse aspecto a literatura tem feito importantes empréstimos – e recursos expressivos diferenciados. Portanto, é fácil concordar com este teórico quando ele diz que a televisão abrange um diversificado conjunto de programas que têm em comum apenas o fato de serem constituídos de sons e imagens (MACHADO, 2005). Não obstante isso, o termo “qualidade”, em se tratando de televisão, pode ter tantas acepções quantos forem os filtros pelos quais ela for julgada: técnico, mercadológico, estético, educativo, social, etc. Luiz Fernando Carvalho, cuja carreira foi quase toda construída na televisão, manifesta seu desejo de ver esse veículo mais comprometido com a educação, com a formação do gosto: “A televisão precisa formar espectadores, é certo, faz parte do trabalho dela, mas ela também precisa assumir uma missão mais nobre, maior, que é formar cidadãos. De

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minha parte, procuro um diálogo entre os que sabem e os que não sabem”. (CARVALHO, 2008b, p. 83)

Essa preocupação de Carvalho encontra eco nas pesquisas de Pierre Bourdieu das quais resultou a obra O gosto pela arte, em que ele conclui que “o acesso às obras culturais é privilégio das classes cultas” (BURDIEU, 2003, p.69). Para o pesquisador francês, o que ele chama de “necessidade cultural”, ou seja, a propensão em consumir arte, é produto da educação. Mas se a educação tem papel preponderante na formação dos gostos, Umberto Eco não está errado ao atribuir à própria televisão a capacidade de contribuir com o refinamento da apreciação estética. E o que se depreende da afirmação de Alceu Amoroso Lima, de que a formação do gosto “é fruto da educação e convivência”.( apud TAVARES, 2002, p.13) Segundo José Luiz Fiorin (2008), há diferentes graus de identificação do sujeito com o objeto artístico: há aqueles que se identificam com a substância do conteúdo, e os que buscam no objeto sua construção, sua arquitetura, sua forma, seja da expressão, seja do conteúdo. Essa identificação está condicionada à capacidade que cada indivíduo tem de ligar-se sensorialmente ao objeto e, de alguma maneira, compreendê-lo. Bourdieu aponta que a competência de leitura de uma obra de arte “depende da diferença entre o código, mais ou menos complexo e requintado, exigido pela obra e a competência individual.” (BOURDIEU, 2003, p.76) A semiótica tensiva, teoria originária da semântica estrutural de Greimas, embora possa abraçar todos os discursos, torna-se imprescindível para a análise da obra de arte, uma vez que coloca em evidência a importância do afeto na análise dos discursos. Para Claude Zilberberg (2010), a constituição do sentido está situada na junção entre uma dimensão intensa, sensível, e uma dimensão extensa, inteligível. De

acordo

com

modelo geral da semiótica, o sentido se constrói na articulação entre um plano de expressão e um plano de conteúdo, sendo que numa enunciação meramente informativa, o plano de expressão se aproxima mais do estável, pois quanto mais objetiva, maior o sucesso da comunicação. Na obra de arte, ao contrário, o plano de expressão é o portador do efeito estético. Assim, a exploração das potencialidades matéricas do significante é valorizada e a recepção do enunciado é submetida ao filtro das sensações e vivências individuais. Daí a importância do afeto, da experiência pessoal para a leitura de objetos estéticos. Fechine, ao propor uma metodologia para a análise dos textos audiovisuais, diz que “Na produção audiovisual, a preocupação com uma enunciação sincrética

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confunde-se com os processos de montagem”, (FECHINE, 2009, p. 326). Das correspondências sincrônicas ou assincrônicas entre o ritmo sonoro e o movimento visual vai depender o resultado agradável ou desagradável que a obra suscitará. E se por um lado o ritmo é a “’chave’ perceptiva do ‘efeito audiovisual’” (FECHINE, 2009, p. 348), por outro ele é uma propriedade comum tanto às linguagens sonoras quanto visuais e, portanto, analisar o ritmo resultante da sincretização dessas linguagens equivale a identificar as maneiras como ele – o ritmo - se manifesta nas duas formas de expressões. Para o desenvolvimento da tese, proponho-me fazer um percurso pelas áreas de conhecimento com as quais a pesquisa dialogará: as semióticas discursiva, sincrética e tensiva, a partir das postulações teóricas da semiótica francesa e seus diluidores no Brasil; a filosofia, a fenomenologia e outras áreas que lidam com a subjetividade na linguagem, assim como a narratologia e estudos sobre o estilo serão bem-vindas. Paralelamente ao percurso teórico proposto, serão feitas análises de recortes das obras, a fim de identificar o ritmo e as estratégias de persuasão. A estrutura da tese prevê quatro capítulos, além da introdução e considerações finais, a saber: um capítulo sobre a televisão e sua capacidade de comunicar e expressar, assim como sobre o percurso do diretor Luiz Fernando Carvalho por esse veículo; uma análise sobre as aberturas das duas obras; e dois capítulos dedicados à análise das minisséries propriamente. O atual estágio da pesquisa inclui a primeira escrita do segundo capítulo – a análise das aberturas – e alguns apontamentos referentes ao primeiro capítulo – sobre a televisão e o autor das obras analisadas. Referências BOURDIEU, Pierre, DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. (tradução de Guilherme João F. Teixeira). São Paulo: Edusp, 2003. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. (tradução de Heloiza Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa). São Paulo: Edusp, 2008a. CARVALHO, Luiz Fernando. Hoje é dia de Maria (minissérie e encarte). Rio de Janeiro: Globo Marcas, 2006. _________(et al). A pedra do reino (minissérie). Rio de Janeiro: Globo Marcas, 2008. _________(et al). Capitu (minissérie). Rio de Janeiro: Globo Marcas, 2009.

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ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. (Tradução Pérola de Carvalho). São Paulo: Perspectiva, 2006. FECHINE, Yvana. Contribuições para uma semiotização da montagem. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia, TEIXEIRA, Lúcia. Linguagens na comunicação. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 2008. GREIMAS, Algirdas Julien. Da imperfeição. Trad. Ana Cláudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2002. MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. 4. ed. São Paulo: Editora Senac S/P, 2005. MANCINI, R., TROTTA, M., SOUZA, S.M. Análise semiótica da propaganda Hitler, da Folha de São Paulo. XIII Colóquio CPS - Atelier estratégias enunciativas em textos sincréticos, p. 292-304, 2007. TATIT, Luiz. Musicando a semiótica: ensaios. São Paulo: Annablume, 1997. ZILBERBERG, Claude. Observações sobre a base tensiva do ritmo. (tradução de Lúcia Teixeira e Ivâ Carlos Lopes). In: Estudos Semióticos. V.6, nº 2, p. 1-13, 2010. Disponível em http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es/eSSe62/2010esse62_czilberberg.pdf. Acesso em 21/04/2011.

LITERATURA E MÚSICA NA MODERNIDADE: ECOS WAGNERIANOS NA OBRA DE JULES LAFORGUE. Andressa Cristina de Oliveira UNESP / FCLAr Na história da literatura europeia, cada vez que um escritor se encontra em crise de “inventividade”, ele se refugia nos mitos do passado. O fim do século XIX foi uma revivescência do helenismo. Sob a inspiração de helenófilos como Moréas, a paisagem helênica foi uma segunda fonte de símbolos, mas de modo diferente do que fora o dos parnasianos. Na poesia simbolista, os símbolos helênicos tiveram um emprego muito mais pessoal. Os simbolistas os transformaram na população ambígua de seus sonhos, enfatizando sua irrealidade no mundo diário, em vez de suas mensagens sempre retomadas. A eles foram acrescentadas outras figuras mitológicas, como Lohengrin, Elsa, Parsifal.

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Grande parte dos poetas simbolistas interessou-se pelos mitos antigos e medievais. Vemos, com Michaud (1947, p. 404, tradução nossa), [...] que se os Simbolistas herdam frequentemente brumas e florestas decadentes, herdam ainda mais o cenário de Wagner. É sempre a Idade Média, mas os heróis aí convivem com belas princesas, os cavalos com cisnes. Não se ouve mais somente a voz suave das violas e das flautas: são órgãos, orquestras, sinfonias. A exemplo da ‘quincalheria’ wagneriana, tudo é apenas tilintar, espelhamento, esplendor, encantamento [...]. Apesar da inexatidão dos cenários lendários, alguma coisa mudou: a confiança substitui o desespero.

O crítico ainda se questiona por que os simbolistas foram seduzidos pela Idade Média lendária dos unicórnios e das belas adormecidas, pelo mistério das florestas maravilhosas onde as bruxas cantam e os pássaros falam. Diz que, certamente, seria porque esses símbolos deixam o leitor na deliciosa incerteza da poesia e que nada é mais próprio para a sugestão que esse ambiente de devaneios, essas perpétuas alusões a esses cenários feéricos e movediços, que favorecem a evasão e a expressão de um estado de alma sutil e fugidio. E afirma que « c´est bien là le rôle du décor dans la poésie décadente. Verlaine, Laforgue [...] cherchent la plupart du temps à fixer les nuances de leur subconscient, c´est-à-dire, du plus individuel d´eux mêmes, et ils emploient les images pour leur valeur purement affective, pour la résonance [...] » (MICHAUD, 1947, p. 405). Os simbolistas, além do individual, aspiram ao universal e à volta ao cenário de fábulas, lendas primitivas, tradições folclóricas. Não recorrem mais ao subconsciente individual, mas ao inconsciente coletivo, à memória da raça e às lendas nas quais ele se exprime. Moretto (1989, p. 32, grifos nossos) nos ajuda a elucidar o motivo dessas escolhas, quando diz que: o Decadentismo torna-se uma nova época primitiva quando, tendo o artista renegado seus valores atuais, está à procura de uma nova forma [...]; é decadentista o fascínio pelas arquetípicas lendas antigas e medievais, pois, enquanto as lendas românticas eram temas medievais ligados à origem política dos povos europeus, a lenda fim-de-século é a própria poesia ‘manifestando-se num estado de alma intuitivo que chamamos inconsciente e que se assemelha às vezes a uma consciência superior” (apud NOËL, p. 11). Lendas bíblicas como a de Salomé (Moreau, Laforgue, Wilde) que foi chamada a “deusa da decadência”, a de Édipo, de Prometeu e tantas outras dos quadros de Gustave Moreau, a de Orfeu, da Esfinge, as lendas do Graal, percorrem os anos oitenta. Forma de evasão, de recusa do mundo contemporâneo por demais problemático. É decadentista, ainda, o gosto pela natureza petrificada e fria dos bizantinos e dourados

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reflexos de outono; pela refinada maquiagem das coisas, de proveniência baudelairiana; pela estranha flora da casa de Des Esseintes; é decadentista o tema do reflexo na água, transparente ou espelhada; o gosto pelas pedrarias (Huysmans, G. Moreau), pelos metais, pelos vegetais terrestres ou submarinos, que acabarão por tornar-se parte integrante da decoração art nouveau.

É preciso ressaltar que Laforgue usa todos esses motivos enumerados por Michaud e Moretto, porém, ele retoma esses temas de maneira irônica, paródica, o que vai contra a corrente de então, de certa forma. As Moralités Légendaires são povoadas de personagens variados, isto é, que provêm de diversas fontes. Como a poesia, essas moralidades baseiam-se, também, frequentemente, em mitos antigos, pintam paisagens e, além de tudo, visam evocar mais um estado de espírito que fazer uma simples narração. Oferecem uma constante troca entre o mundo físico e o das emoções, entre o concreto e o abstrato. No século XIX, enquanto a maioria dos parisienses rejeitava as obras de Wagner, Baudelaire escreve um artigo intitulado “Richard Wagner et Tannhaüser à Paris”, no qual expressa sua admiração estética pelo compositor alemão. Baudelaire afirma que nenhum músico sobressai-se como Wagner, ao pintar o espaço e a natureza materiais e espirituais. [...] Ele possui a arte de traduzir, por gradações sutis, tudo o que há de excessivo, de imenso, de ambicioso no homem espiritual e natural. Parece, às vezes, que ao escutar essa música ardente e despótica, encontramos as vertiginosas concepções do ópio pintadas no fundo das trevas, dilaceradas pelos devaneios (1996, p. 853, tradução nossa).

A guisa de comentário, sabe-se que Baudelaire foi uma das poucas pessoas na platéia que não vaiou a apresentação da ópera Tanhauser em Paris. A música de Wagner o excitou extremamente. Achou que ela estimulava a imaginação, lançando a mente em um estado de sonho como o que conduz à clarividência. Baudelaire, ainda, maravilhou-se com o uso que Wagner fez da lenda: ele misturou paganismo, lenda gótica e cristianismo, criando um plano de realidade que era místico sem ser religioso. Naquele mesmo artigo, o poeta francês ainda afirma que Lohengrin tem caráter sagrado e misterioso. Quando Elsa duvidou, quando quis saber quem era seu salvador, perdeu sua felicidade. O ideal desapareceu. Baudelaire associa esta lenda ao mito da Psique antiga, que também foi vítima da demoníaca curiosidade. Elsa dá ouvidos a Ortrud como Eva à serpente. Assim, a representação de Eva cai mais uma vez na cilada eterna. 599

Segundo Balakian (1985), Baudelaire descobriu em Wagner os usos místicos da música: um simbolismo que não é alegoria, desde que deixa um intervalo a ser preenchido pela imaginação de quem o ouve. Ela ainda acrescenta que “para Baudelaire, Wagner foi o verdadeiro artista, o artista completo que em sua combinação de drama, poesia, música e cenário exemplificou a realização da perfeita inter-relação das percepções sensoriais que deviam ser o ideal do poeta” (1985, p. 40). A música de Wagner, após muitas resistências, conhece, enfim, as acolhidas triunfais. Durante alguns anos, sua influência é profunda nos homens de letras e nos artistas. A Revue Wagnérienne é uma das revistas mais importantes do princípio do movimento simbolista. Ela vai propagar, a partir de 1885, o culto raisonné de Wagner. Será fácil colher nos escritos do mestre os convites para ouvir o poder da poesia, fazendo de seu ritmo uma verdadeira música. Vemos, com Moretto (1994, pp. 38-39), que Baudelaire admira em Wagner uma estética que se aproxima da sua, isto é, a busca do misticismo, do símbolo, da união das artes, das correspondências. O poeta transmitirá aos seus descendentes, os futuros decadentes e simbolistas (Jules Laforgue faz parte deste legado), o sentido do mistério, da sinestesia, o valor musical do verso, a aspiração a um mundo superior, e legará também o gosto pela obra de Wagner. A partir de 1870, realiza-se na França uma revolução musical e Wagner começa a inspirar os escritores. Assume-se, assim, a estreita relação entre a poesia e a música, o primado intelectual da poesia, o valor do símbolo como realização poética. Segundo Balakian (1985, pp. 43-44), ainda: ao falar de Wagner, Baudelaire traçou uma distinção entre história e lenda [...]. Em seu artigo sobre Wagner, Baudelaire enfrenta a noção da integração das formas artísticas e, deste modo, a possibilidade de uma mistura sinestésica mais ampla dos estímulos sensoriais, ele também refletiu sobre o poder da música para provocar, através do estímulo de um único sentido, um plano multisensorial de imagens. Se a música pode sugerir mais de um nível de imagens, isto implica para a poesia que as palavras podem assumir a mesma função das notas musicais estruturadas, criando além da descrição de uma sensação a própria sensação, e inclusive esta complexidade de sensações que chamamos ‘estado de espírito’. Através desta flexibilidade de comunicação, a poesia se tornaria uma forma artística muito mais próxima da música do que fora até então.

Vale lembrar, aqui, que Jules Laforgue é um poeta que busca a música, e sua poesia vai tentar retomá-la como seu bem. Sabe-se que ele teve o hábito de frequentar

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muitos concertos musicais e, portanto, sentiu qual prolongamento a música dá à expressão humana. As tentativas musicais são frequentes e variadas em sua obra em prosa. Em “Lohengrin fils de Parsifal”, a paródia visa, em primeiro lugar, o desvio burlesco de estereótipos da ópera de Richard Wagner, mas, depois, acaba mudando bastante o assunto e quase nem fala mais da mesma coisa. Na verdade, Laforgue servese do tema para suas colocações pessoais. Ele transforma o universo lendário – pedra angular da teoria wagneriana – em um espaço saturado de mitos, que se torna, desde o começo, excessivo, daí a ironia. Laforgue povoa a narrativa de mitos, mostra-nos como é erudito, dando-nos indícios de suas leituras da mitologia greco-romana, da mitologia judaico-cristã, de Wagner, da poesia medieval alemã. Ele constrói um novo texto, desvinculado da significação das fontes originais, dando outro sentido aos antigos mitos. Vemos o “novo animado com o velho”, criando uma novela de procedimentos paródicos, burlescos mesmo, e poéticos originais. Lembremos, ainda, com Campos (1978, p. 211), que, de acordo com o crítico E. Wilson, Laforgue não fez parte da linha “sério-estética” do Simbolismo, mas de outra linha, a “coloquial-irônica”, ou ainda “irônico-pungente”, “gírio-pomposa”, “chuloingênua”, que seria uma espécie de “primo pobre”, recessivo e desprezado daquela outra – a linha “nobre” da poesia Simbolista. O estudioso ainda afirma que a linha “sérioestética” do Simbolismo extremou a tal ponto a desidentificação da poesia, que acabou arrebentando os limites da língua e chegando, por via de uma superpoesia, a uma apoesia ou expoesia, no limiar de uma nova linguagem: “nada ou quase uma arte”. Assim, os poetas da linha “coloquial-irônica” começaram a reintroduzir no corpo superpoético do poema, artefato de luxo, todo um lixo semântico, vedado àquele tipo de poesia. Esses poetas, geralmente, filiavam-se ao gênero maldito do “humor”, da poesiacrítica, destinada, por equívoco, a não ser levada muito a sério pelos estetas da poesiapoética. Lohengrin, de Richard Wagner, é uma grande ópera visionária, uma epopeia grandiosa na qual o mito vem atravessar a história, como o cisne que desliza sobre o rio: a aventura desse anjo de figura humana que é Lohengrin tem por cenário a Alemanha medieval, cuja rudeza solene é mostrada por Wagner. Esta ópera situa-se numa encruzilhada da evolução wagneriana: conserva as características românticas do

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Tannhaüser, mas já antecipa muito do Tristão e Isolda em sua forma de colocar a música a serviço do drama. Neste conto lendário e mítico, a ação se passa no século X, no Brabante (Bélgica). Elsa de Brabante, filha do falecido duque de Brabante, é acusada por Frederico de Telramund de ter matado seu irmão, Gottfried de Brabante, para suceder seu pai. Instigado por Ortrud, sua mulher, Frederico reivindica o trono. Pressionada a explicarse, Elsa contenta-se em evocar um cavaleiro que vira em sonho e que o Céu vai lhe enviar para defendê-la. Frederico lança o desafio, convocando o cavaleiro imaginário para um duelo. Um milagre acontece e um cavaleiro resplandecente com armadura de prata aparece em uma canoa puxada por um cisne. O cavaleiro vem para defender Elsa, que em troca deve desposá-lo e jamais questioná-lo sobre seu nome e origem. Frederico é facilmente derrotado, mas o cavaleiro poupa-lhe a vida. Ortrud, valendo-se da magia negra, instiga Elsa a fazer a pergunta proibida ao cavaleiro. Frederico e Ortrud interrompem a cerimônia nupcial para intimar o cavaleiro a revelar a sua identidade. O cavaleiro aceita, contanto que seja Elsa que faça a pergunta. Após a celebração do amor, Elsa deseja conhecer a identidade de seu esposo. Pressentindo o funesto desenlace, o cavaleiro adia a resposta. Frederico aparece e tenta eliminá-lo, mas é morto pelo cavaleiro. Já que sua mulher rompera o juramento, ele revela seu segredo: chama-se Lohengrin, vem do castelo de Montsalvat, onde está guardado o Graal. O cisne reaparece, pois, agora que os homens conhecem seu segredo, deve partir novamente. Elsa tenta em vão retê-lo. Uma pomba aparece e toma o lugar do cisne, que se transforma em Gottfried, irmão de Elsa que fora vítima de um malefício de Ortrud. Elsa cai desfalecida nos braços de seu irmão, enquanto Lohengrin desaparece. Laforgue apropria-se do mito de Lohengrin, e o utiliza com uma voz e uma visão de mundo particulares. Desviando burlescamente a ópera de Wagner, o poeta dessacraliza esse mito, criando uma narrativa poética de procedimentos paródicos, repleta de Ennui, que “coloniza” a Lua e faz uma verdadeira “sinfonia em branco”. Nesse sentido, o mito convocado serve como um verdadeiro analisador ou revelador de universo particular e social daquele que se apodera dele. Se a paródia é uma transformação, a transformação operada por Laforgue busca, primeiramente, manter a intriga como secundária, mudá-la, onde lhe parece melhor, com uma desenvoltura total, inventar outras intrigas fantasistas, sobretudo com a finalidade de criar ironia e poesia. 602

O leitor, evidentemente, tem de mudar de postura: percebe que está lendo outro texto, que tem outra intenção – e deve procurar qual é ela. Assim, ele vai percebendo a ironia que não existia em Wagner: esta é, portanto, a diferença de tom de uma obra em relação à outra. Laforgue reescreve um mito e põe no primeiro plano um hipotexto, a ópera de Wagner, que, por sua vez, retoma a história de Wolfram von Eschenbach, para desviá-lo parodicamente. Essencial, nesse desvio, a parte que atribui ao narrador, pois é, sobretudo, em suas intervenções, que ocorrem a ironia e o humor. Como nos hipotextos, Elsa é uma Vestal, isto é, uma sacerdotisa de Vesta, a deusa do fogo dos romanos. No entanto, aqui, parece que é a Lua, a deusa de que é sacerdotisa. O Lohengrin de Laforgue, diferentemente daquele de Wagner, revela sua origem ao chegar. Nega ser Endimião e afirma ser filho de Parsifal. Ironicamente, ele afirma ser “o lírio das cruzadas futuras para a emancipação da mulher”. Aqui, já vemos como Laforgue moderniza uma lenda medieval, dando-lhe novos contornos, usando novos meios de expressões e associações inesperadas. Assim, o leitor constrói a significação por meio de deduções operadas a partir da superfície do texto, usando o “texto de fundo”. Je ne suis nullement Endymion. J’arrive tout droit de SaintGraal. Parsifal est mon père, je n’ai jamais connu ma mère. Je suis Lohengrin, le Chevalier-Errant, le lys des croisades futures pour l’émancipation de la Femme. (LAFORGUE, 1996, p. 145, grifos nossos).

Laforgue ironiza os excessos de um Simbolismo que usa a lua e o luar e cria paisagens artificiais frias, distantes da realidade – o personagem Lohengrin parece corresponder a isso. Sua Elsa não peca por ter querido saber, examinar, controlar; ela não é vítima de uma demoníaca curiosidade provocada por Ortrud; aliás, Orturd nem é mencionada na novela de Laforgue. Lohengrin, cavaleiro errante, lírio feito homem, o símbolo da pureza, esperava encontrar em Elsa – a Vestal – a epítome do Eterno Feminino. Porém, descobre que Elsa é uma “simples escrava secular e sem malícia”, aquela que canta canções “epitalâmicas”, a “libidinosa”. Enfim, o ideal desapareceu e o idealismo Simbolista é levado ao excesso, contrapondo o ideal ao real. Elsa não é aquela que representa o Ideal Feminino, pois Lohengrin diz detestar seus quadris secos, antimaternais e percebe que em seu pescoço de cisne há um protuberante pomo-de-

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adão, o que remete a imagem física da Vestal ao pecado original, à existência mundana da mulher que macularia toda a pureza e o caráter sagrado do cavaleiro. Até aqui, portanto, nesta leitura, é possível perceber, com Balakian (1985), que Lohengrin é a expressão de uma rejeição niilista da vida considerada como um desperdício de energia. Aqui, ele reprova Elsa por sua possível tendência libidinosa. E quando foge montado nas penas de um travesseiro, que se transforma em um cisne, ele atinge as altitudes metafísicas do amor, isto é, do Ideal, onde a respiração de nenhuma donzela pode manchar o puro espelho das geleiras. Comumente, as jovens são tomadas como símbolo de pureza, mas Laforgue vai além e se afasta do símbolo da pureza como de uma fonte de impureza (frieza) em potência, precisamente porque ele contém a força vital criadora. Oh! la fenêtre de la salle nuptiale éclata follement sous un cyclone de féerie lunaire! et voici que l’oreiller, changé en cygne, éploya ses ailes impérieuses et, chevauché du jeune Lohengrin, s’enleva et vers la liberté méditative, cingla en spirales sidérales, cingla sur les lagunes désolées de la mer, oh, par delà la mer! vers les altitudes de la Métaphysique de l’Amour, aux glaciers miroirs que nulle haleine de jeune fille ne saurait ternir de buée pour y tracer du doigt son nom avec la date!... (LAFORGUE, 1996, pp. 165-166, grifos nossos).

Na novela de Laforgue, o cavaleiro errante não desaparece por causa da curiosidade de Elsa. O mito da Psique antiga, que foi vítima da curiosidade1 como a Eva da Bíblia, que comeu do fruto proibido, como a Elsa da ópera de Wagner e de Wolfram von Eschenbach, não aparece na novela do poeta francês. Lohengrin põe-se a chorar, seu travesseiro torna-se um cisne, ele invoca Ganimedes para que seja levado além dos mares imaculados, para além das margens da via-láctea, ao Santo Graal, e parte em direção às altitudes Metafísicas do Amor. Segundo Kury (2001), Ganimedes era dotado de uma beleza extraordinária e apascentava os rebanhos de seu pai nas montanhas próximas a Tróia. Ora, quando Laforgue faz com que Lohengrin invoque Ganimedes e rejeite Elsa, talvez ele queira sugerir a androginia de seu personagem, visto que não havia se apaixonado por ela e apareceu somente para salvá-la da morte. É preciso não se esquecer, também, de que a imagem de Lohengrin está associada ao Graal, que é um símbolo da salvação, que representa, entre outras coisas, o equilíbrio entre o masculino e o feminino, ou, em outras palavras, o Ideal: 1 Eros havia pedido a Psique que nunca o olhasse para que não descobrisse sua verdadeira identidade, porém, um dia, tomada pela curiosidade, vai vê-lo enquanto dorme e deixa uma gota de óleo cair no rosto de Eros. Ela descobre, então, sua verdadeira identidade e é abandonada por ele. Assim, teve que recorrer aos favores de Vênus, que lhe impôs tarefas muito duras para reaver o direito de ficar com Eros.

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[...] emporte-moi par delà les mers immaculées; ravis-moi, pauvre Ganymède, en spirales, par delà les berges de la Voie Lactée, et les giboulées d’étoiles, et le cap fallacieux du Soleil, vers le Saint-Graal où Parsifal, mon père, prépare un plan de rachat pour notre petite soeur humaine et si terre-à-terre!... (LAFORGUE, 1996, p. 165, grifos nossos).

Até aqui, portanto, nesta leitura, é possível perceber, com Balakian (1985), que Lohengrin é a expressão de uma rejeição niilista da vida considerada como um desperdício de energia. Aqui, ele reprova Elsa por sua possível tendência libidinosa. E quando foge montado nas penas de um travesseiro, que se transforma em um cisne, ele atinge as altitudes metafísicas do amor, isto é, do Ideal, onde a respiração de nenhuma donzela pode manchar o puro espelho das geleiras. A paródia visa, em primeiro lugar, o desvio burlesco de estereótipos da ópera de Richard Wagner, mas, depois, acaba mudando bastante o assunto e quase nem fala mais da mesma coisa. Na verdade, Laforgue serve-se do tema para suas colocações pessoais. Ele transforma o universo lendário – pedra angular da teoria wagneriana – em um espaço saturado de mitos, que se torna, desde o começo, excessivo, daí a ironia. Observa Anne Holmes (2000) que “Laforgue queria ser original a qualquer preço”, e aproveitava o tom individual que o verso livre lhe dava. E aproveitava, como também queria Baudelaire, a aproximação das artes – música, pintura e poesia – que formavam a atmosfera intelectual do fim do século XIX. Rimbaud tinha escrito em sua “Lettre du voyant” a propósito de seu método poético, que ‘a sinfonia mexe nas profundezas’, e Laforgue, que conhecia bem as óperas de Wagner, achava que elas ofereciam ao seu ouvinte algo parecido com sua finalidade poética, a “psicologia em forma de sonho”. Na edição de dezembro de 1887 da Revue Générale, consta que o poeta francês fora comparado ao músico alemão Richard Wagner, pois se revoltara com toda a disciplina literária, inventando um tipo de prosa cadenciada, uma melopéia livre (NATHAN, 1974, p. 83). Se Wagner o conduziu em direção às profundezas, o Impressionismo ditava-lhe uma modernidade que era única a poder comover o espectador. E os dois, Wagner e o Impressionismo, proclamavam em alta voz aquilo em que Laforgue queria acreditar acima de tudo, isto é, que ‘todos os teclados são legítimos’ (BERTRAND, 2000, p. 5). No Impressionismo, os compositores visavam à dissolução de certas estruturas rígidas de algumas formas musicais. A música impressionista é aquela que não obedece a preceito algum, mas somente às leis da sensação, é uma música puramente auditiva.

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Na literatura impressionista, e vemos isto em “Lohengrin”, o escritor passa a lidar com ‘estados de alma’ e o enredo subordina-se a esses ‘momentos’. A sintaxe perde sua estruturação clara e é apenas esquematizada, levando em conta as necessidades expressivas para a captação do mundo subjetivo que o autor quer retratar: é o que explica, por exemplo, a ausência do verbo da oração principal, como nesse exemplo: “... une foule chuchotante entre ces deux institutions et toute cette assistance en demicercle, tous debout, et yeux bleus, verts, gris, effarés d’attente en vue de la mer surhumaine des beaux soirs” (LAFORGUE, 1997, p. 131). Em “Pan et la Syrinx ou l’invention de la flûte à sept tuyaux”, Jules Laforgue serve-se da tradição greco-romana para compor sua moralidade. O século XIX foi um período de revivescência do helenismo. Em crise de inventividade, muitos escritores refugiaram-se nesses mitos, porém, empregando-os de maneira pessoal. Segundo Rivière (apud BALAKIAN, 1985), “a Grécia dos poetas [de então] não tem nada de clássica. É uma terra de sonho aonde vão brincar com as ninfas”. Vemos, ainda, com Balakian (1985), que os simbolistas os transformaram na população ambígua de seus sonhos, enfatizando a irrealidade deles no mundo diário, em vez de suas mensagens sempre renováveis. Toda vez que aparecia uma dessas personagens era sinal de que o poeta havia abandonado o mundo em que respirava e se transportara para a paisagem imaginária e atemporal da mitologia, misturando aí seus sentidos mortais com os sentidos sobrenaturais dessas figuras.

Nessa novela, Siringe, que é perseguida pelo imortal Pã, é comparada às Valquírias, suas iguais, mulheres que se afastam do erotismo, que são puras e, por isso, sobretudo, é que a ninfa atrai Pan, o impuro. Lembremos que as Valquírias eram virgens guerreiras e divindades escandinavas que acompanhavam os guerreiros nos combates e designavam, de acordo com as ordens de Odin, aqueles que deviam morrer. No século XIX, o compositor Richard Wagner retoma o tema das valquírias na obra O Anel do Nibelungo – A Tetralogia, que é uma série de quatro óperas que retomam diversos mitos germânicos e escandinavos. Elas dividem-se em “O ouro do Reno”, “A Valquíria”, “Siegfried”, “O crepúsculo dos deuses”. Estrearam em conjunto em 1876, em Bayreuth. Lembremos que durante sua estadia na Alemanha, Laforgue frequentava muitos concertos musicais e pôde sentir, de acordo com Durry (1970, p. 115), “qual prolongamento a música dá à expressão humana”.

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Ainda,

Siringe

é

aproximada

das

Valquírias,

entoando

seu

canto,

anacronicamente, tal qual é descrito no libreto da ópera:

- En chasse! En chasse! clame Syrinx qui, divinisée à cet appel, a sauté sur pieds et reprend son galop vers la journée ! en poussant des clameurs de Walkyrie ! Hoyotho ! Heiaha ! Hahei ! Heiaho ! Hoyohei ! (LAFORGUE, 1996, p. 276, grifos nossos).

Laforgue povoa suas narrativas de mitos, mostra-nos como é erudito, dando-nos indícios de suas leituras da mitologia greco-romana, da mitologia judaico-cristã, da poesia medieval alemã. Ele constrói um novo texto, desvinculado da significação das fontes originais, dando outro sentido aos antigos mitos. Como pudemos ver, a influência de Wagner é ampla e variada, sobretudo nas novelas “Lohengrin filho de Parsifal” e “Pã e a Siringe ou a invenção da flauta de sete tubos”. Dessa forma, à guisa de conclusão, reforçando a presença do mito na obra de Jules Laforgue, conclui-se, com Eigeldinger (1978), que o mito, quando anexado pela literatura, se salva e perpetua-se ao tornar-se uma linguagem metafórica que, por meio da história dos deuses e dos heróis, traduz uma experiência do imaginário, correspondendo a uma realidade vivida. Enquanto escritura, ele é inspirado por um sentido de identidade perdida e deve recriar o tempo e o espaço do sagrado, prolongá-los num eterno presente pela virtude compensadora da imaginação. O mito torna-se esse valor arquetípico e dinâmico que inscreve seu significado na trama da narrativa, na argumentação do discurso ou no amálgama do discurso-narrativa. É uma linguagem psíquica e existencial, determinada pela riqueza de seu ‘conteúdo semântico’. O mito literário, quando reconciliado com o logos, transfigura o vivido e o imaginário pela escritura, celebra a plenitude da vida individual e coletiva com a emergência das forças elementares e cósmicas, propondo um deciframento da condição humana, uma elucidação no nível do universal da relação que o homem entretém com o mundo e com o outro. Por meio de sua coerência e força ordenadora, o mito figura o destino do homem em sua essência e em seu devir: é o possível explicitado pela escritura, o imaginário encarnado no espaço do discurso com uma representação arquetípica e polivalente, dotada da capacidade de abarcar as formas do concreto.

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Referências: BALAKIAN, A. O simbolismo. Tradução de José Bonifácio A. Caldas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985. BAUDELAIRE, C. Oeuvres complètes. Paris: Éditions Robert Laffont, 1980. CAMPOS, A. Verso, reverso, controverso. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. EIGELDINGER, M. J. J. Rousseau – Univers mythique et cohérence. Neuchatel: La Baconnière, 1978. KOHNEN, O.F.M. História da literatura germânica. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Mensageiro da Fé, 1960. KURY, M. G. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. LAFORGUE, J. Moralités Légendaires. Paris: Fleuron, 1996. MORETTO, F. M. L Letras francesas – estudos de literatura. São Paulo: Edunesp, 1994. VON ESCHENBACH, W. Parsifal. Rio de Janeiro: Melhoramentos, 1995. ZINK, M. O Graal, um mito de salvação. In: BRICOUT, B. (Org.) O olhar de Orfeu – os mitos literários do Ocidente. Trad. Lelita Oliveira Benoit. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

(RE)INVENTAR PARA (RE)CONTAR: A LEITURA CINEMATOGRÁFICA DE LA MALA HORA, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, POR RUY GUERRA. Ane Carolina Randig Tavares (CAPES) [email protected] UFSCAR Esta comunicação visa apresentar algumas considerações sobre a pesquisa, em andamento, no programa de Pós-Graduação (mestrado) em estudos de literatura - linha de pesquisa: literatura e outras linguagens, na Universidade Federal de São Carlos UFSCar, SP. A partir de uma perspectiva intersemiótica, pretende-se promover um diálogo entre o romance La mala hora (1962), escrito por Gabriel García Márquez, e o filme O Veneno da Madrugada (2006) baseado no romance, traduzido e dirigido pelo cineasta 608

Ruy Guerra. A análise volta-se para o processo de tradução ou recriação realizado pelo diretor Ruy Guerra, ao transformar em imagens/quadros em movimento, elementos oriundos do romance garcía-marqueziano. Tendo em vista as inúmeras maneiras possíveis de se abordar este diálogo, que tem como finalidade olhar para o processo de transformação de um signo que comporta uma materialidade verbal - essencialmente simbólica - como a literatura, para outro, com materialidades diversas, como o cinema, o estudo em questão, parte de uma perspectiva que busca uma aproximação do processo de criação de uma obra fílmica, realizada a partir de um texto literário. Trata-se de uma investigação que concebe a obra de arte “a partir de sua construção, acompanhando o seu planejamento, execução e crescimento, com o objetivo de melhor compreensão do processo de sistemas responsáveis pela geração da obra” (SALLES, 2011, p.22). Considerado seu mais evidente trabalho político, La mala hora é a terceira obra de Gabriel García Márquez. O romance foi premiado com o prêmio literário Esso, na Colômbia, em 1961, consagrando-se como o primeiro sucesso literário do autor, publicado oficialmente um ano depois, em 1962. Embora La Mala Hora seja uma obra política, idealizada, “García Márquez ainda é um narrador sutil e ainda usa uma abordagem obliqua a crítica política e social” (GILARD, 2006, p. 258). Não é especificado (explicitamente) o regime que realizava os atos repressivos descritos, embora qualquer um que conheça aquela realidade entenderia que se tratava do governo conservador da época. Temas como o efeito debilitante do corpo político, a corrupção, as interdições, a agressão física e moral, a violência, serão temáticas recorrentes nas obras posteriores do autor. No romance encontramos os mais distintos tipos que configuram o imaginário do autor, que, para ser compreendido, deve ser lido no todo, já que suas personagens transitam de uma história para outra, criando assim um universo labiríntico de encontros e desencontros. O romance conta a história de um povoado, de incerta localização geográfica, em que sua gente é assaltada pela violência verbal, física e psicológica. Há resquícios de um passado próspero que pode ser visto em algumas construções senhoriais que denotam ter havido, ali, momentos de progresso. Nesse contexto, García Márquez, dispõe, ao longo da narrativa, uma variedade de personagens ( ricas viúvas, videntes, donos de circo, dentista, músicos, ganadeiros, padres, soldados, donos de terras, os desvalidos) tipos que se circunscrevem e gravitam em torno dos dois pólos de autoridade tradicionais, a Igreja e o Estado. De um lado, o alcaide, o violento e corrupto tenente 609

(prefeito) que enriquece abusando do poder que detém para lograr os desvalidos, do outro, o padre Ángel, pároco que vive convicto que pode salvar seu “rebanho” enquanto procura instilar princípios morais num povoado tolhido pelo temor de terem suas “verdades” escancaradas. A luta vem simbolizada pelos pasquins - bilhetes anônimos - que surpreendem os moradores delatando traições, injúrias, corrupções, filhos bastardos, entre outras coisas, deixando o mistério em aberto, pois não é (são) revelado(s) o(s) responsável(is) pelos papeluchos, este(s): “es todo y no es nadie” (MÁRQUES, 2010, p.152). O anonimato do(s) autor(es), a profusão dos papeluchos que tornam públicos os fuxicos delatores e as maledicências trocadas em surdina, e o fato de todos os habitantes estarem vulneráveis aos impropérios e terem seus segredos mais sórdidos revelados, gera um medo descomunal. O fato é que, embora não seja revelado o autor(es), a função desses papéis, na narrativa, é mostrar ao leitor o que está por detrás da apática aparência em que vive o povoado. A partir deles temos contato com a hipocrisia e as mentiras que circundam a vida daquela gente. Revela-se aquilo que de certa maneira rompe com as interdições do corpo social, ou seja, aquilo que seria inadmissível perante a sociedade. “Não há herói individual; a coletividade é o protagonista, ou melhor, a violência, que aparece por detrás das mentiras em que vive mergulhada a cidade” (JOSEF, 2005, p. 278). Ao revisitarmos a extensa fortuna crítica sobre as obras do escritor, encontramos poucos estudos referentes ao romance em questão. Sendo assim, no que concerne aos estudos que exploram elementos do texto literário, recorreremos aos trabalhos realizados por de Lida Aronne-Amestoy (1982); Lydia D. Hazera (1973); Eric L. ReinHoltz (2010), e, para pensar o contexto histórico no qual a obra se insere, assim como aspectos da literatura hispano-americana, destacamos os estudos de Geithman e Landers ( 1992); Bella Jossef (2005), Donald L. Shaw (2005); Gerard Martin (2010). A versão cinematográfica, baseada no romance, levou o título O Veneno da Madrugada1. O filme foi realizado pelo cineasta Ruy Guerra, natural de Lourenço Marquez, atual Maputo, capital de Moçambique na África, que escolheu o Brasil para viver desde 1956. Ruy Guerra personalidade proeminente no Cinema Novo brasileiro – movimento dos anos 60 que modificou o cenário do cinema nacional – atuou ao lado de outros

1

Ruy Guerra manteve o mesmo título que o romance adotou em sua tradução para o português do Brasil.

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grandes cineastas, dentre os quais, entre outros, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos. Nesse período nascera uma nova mentalidade: a renovação da linguagem e experimentalismo estético, mantida por Guerra até hoje. Ruy Guerra já dirigiu filmes como Os cafajestes (1962), A queda (1976), Os Deuses e os mortos (1970) Os fuzis (1964), todos roteiros originais, e outros, fruto de adaptações literárias, tais como, entre outros, Ópera do malandro (1986), Estorvo (2000), ambos, adaptados dos romances (homônimos) de Chico Buarque de Holanda. A literatura, desde muito tempo, serve de inspiração a muitos roteiristas que vêem esta arte como um reservatório de estruturas narrativas que instigam a imaginação do leitor com as mais variadas tramas e personagens. Esta característica de recorrer à literatura, no intuito de recriar artisticamente as histórias literárias em audiovisual é uma tendência desde os primórdios com o cinematógrafo. Georges Méliés um dos precursores do cinema artístico - embora não seja possível registrar este marco com exata precisão - foi um dos primeiros artistas a recorrer à literatura, buscando nos livros de Júlio Verne inspiração para a composição do Le Voyage Dans la Lune (1902) – A viagem a lua, filme que revolucionou as telas, principalmente pelos arranjos ilusionistas utilizados para criar mundos fantásticos. A este respeito, o universo literário de García Márquez sempre despertou e desperta interesse de roteiristas e diretores de diversos países. Inúmeras de suas narrativas foram adaptadas para as telas de televisão e cinema. Esse não é o primeiro encontro de Gabriel García Márquez com Ruy Guerra em cinema. Trata-se de uma parceria que se realizou, com sucesso, em produções anteriores como Erendira (1983); A Fábula da bela Palomera (1988); Me alugo para sonhar (telessérie) em 1992. Muitos são os adjetivos de Ruy Guerra, e do seu cinema, apontados pela crítica, “afeito a experimentações”, “aquele que não faz concessões estéticas para atrair mais público”, “vitalidade física e criativa”, e principalmente, “a permanência de uma atitude política e de renovação estética até os dias atuais”. Político não mais no sentido contestatório dos anos 60, mas sim pela afeição que ele tem em trabalhar temas que de alguma maneira tocam em temáticas relacionadas a uma postura crítica frente a realidade. A leitura cinematográfica de Guerra difere muito daquela do texto literário. Personagens ganham contornos diferenciados, assim como alguns temas são trabalhados de formas distintas, outros são acrescentados, como por exemplo, o amor de Rosário (a mulher de Cezar Monteiro) e o Alcaide (no livro existem essas personagens, porém não 611

se relacionam amorosamente); e a sede de vingança daquele contra os Asís (poderosa família detentora de boa parte das terras da cidade), entre outros. A trama, diferentemente do romance (duas semanas), transcorre no período de 24 horas. Quebra-se a linearidade temporal, e esta é substituída por uma maneira nada convencional de se contar uma história. Ruy Guerra apresenta-nos três versões narrativas com tempos que se sobrepõem e se complementam, ou às vezes se negam. Sucessivas elipses são criadas, e cada vez que a história é contada, revela-se uma parte que havia sido omitida na versão anterior. No entanto, o que mais chama-nos a atenção no filme é a ousadia que o cineasta teve ao trabalhar com a forma. Transpor uma história para outro lugar, tempo, num novo formato de narrativa com um novo estilo, não descaracteriza um trabalho como sendo uma adaptação do texto-fonte. Conforme o autor Flávio Campos (2011, p. 299) “Adaptar implica recompor uma narrativa a partir de uma trama principal, manter as tramas secundárias mais importantes, manter tema e premissa, bem como a essência dos perfis de personagens”. Assim, faz-se necessário abrir um parêntese e deixar claro que o filme em questão não se trata de uma adaptação do texto originário. O filme sofre algumas deturpações, e estas extrapolam as premissas que regem a narrativa literária, porém, essas mudanças são totalmente justificadas, visto que, trata-se de uma história baseada, inspirada no romance de García Márquez. Contudo, mesmo com a nítida diferença existente entre as produções, tanto na forma como no conteúdo, e o filme sendo uma adaptação livre do texto-fonte é possível captarmos, no filme, ressonâncias poéticas do relato original. Nesse sentido, buscaremos averiguar os rastros do processo de transcriação da obra literária para a obra cinematográfica, e assim entender o que está em jogo nas escolhas do cineasta – os mecanismos de exclusão, inclusão e transformação da poética do relato original, que contribuíram na construção do projeto poético do diretor. (questões de estilo, as propriedades sensíveis da estética textual;

como questões

referentes aos eixos narrativos que sustentam as histórias). Adentrar no âmbito das “adaptações” significa olhar um corpus muito grande e com uma infinidade de questões relacionadas a ele. Conceber a literatura como o textofonte para a realização de um filme é uma operação que implica, da parte de seus realizadores, a necessidade de se fazer escolhas. Nesse processo, inevitavelmente, diversos elementos do texto-fonte são omitidos ou transformados, ao mesmo tempo em que outros elementos são (re)criados. Isso 612

ocorre não somente devido ao fato de que, em se tratando de mídias distintas, livro (verbal) e cinema (imagético, sonoro) obedecem cada qual às suas próprias convenções. Os próprios valores ético-estéticos do artista se cristalizarão em seus projetos poéticos. Cada artista se insere num tempo e num espaço, e estes passam a pertencer à obra. Logo, esperar encontrar na tela, a reprodução fiel daquilo que figurava o texto literário é quase impossível e não mais o esperado pelo espectador que busca encontrar o diferente no mesmo. Ao partirmos para uma análise que contemple dois meios de expressão artística, como a literatura e o cinema, e considerando o filme como uma expressão autônoma criada a partir do texto literário, encontramos no conceito de transcriação de Haroldo de Campos (2004) um suporte conceitual que possa definir melhor a relação entre as duas artes. Esse conceito dialoga com a proposição de Romam Jakobson sobre “tradução intersemiótica”. Jakobson (1977) defende que a poesia é, por definição, intraduzível, sendo possível apenas sua transposição criativa. A transposição entre sistemas de signos diferentes, como da arte verbal para o cinema, Jakobson denomina de tradução intersemiótica. No mesmo sentido, Haroldo de Campos (2004) entende que a “tradução” não é um termo adequado para tratar de poesia, ou de qualquer tipo de texto criativo. O autor prefere o termo “transcriação”. Para o autor, transcriar é “desmontar e remontar a máquina criativa” da obra, exigindo vivência do seu mundo e técnica, mas podendo acrescentar novos estratos criativos que o original permita em sua linha de invenção. Ruy Guerra, em entrevista, ao falar sobre o processo de criação do filme, diz se sentir a vontade para fazer as mudanças que julgar necessárias ao transpor o signo escrito para o signo cinematográfico. O cineasta ressalta ser um erro buscar correspondências diretas entre os signos, pois se tratam de linguagens de naturezas completamente distintas. Enfatiza que “ao adaptar um romance para o cinema, trabalhamos com um processo transemiótico (...) devemos encontrar a gênese da criação do escritor, a fidelidade se dá por ai” 2. Nesse sentido, propomos em nossas análises realizar uma aproximação entre os estudos de Tradução Intersemiótica, amparados, principalmente, nos estudos de Haroldo de Campos, Julio Plaza, e Roman Jakobson, e a Crítica de Processo. 2

Entrevista realizada por Júlio Bezerra. Revista de cinema v.06, n.63, fev. 2006, p. 28-31.

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A expansão sobre os estudos de processo de criação, ocorrida a partir da década de 90, do século XX, da literatura para as demais manifestações artísticas, como por exemplo: a pintura, o teatro, o cinema, abriu espaço para a análise de novos gêneros artísticos, dentre eles aqueles resultantes de traduções ou recriações intersemióticas. Desta forma, descrever com minúcia os meandros do processo de recriação, levado a cabo pelo idealizador do filme, Ruy Guerra, é, na verdade, analisar um processo de tradução intersemiótica. Sob o viés da crítica de processo, estudo fundamentado na Crítica Genética 3, o foco de interesse volta-se para o processo, o percurso criativo que lhe deu origem dentro de uma perspectiva que transcende o objeto final da criação. O suporte teóricometodológico de base será a Crítica de Processo desenvolvida por Cecilia Almeida Salles, autora que desenvolveu uma série de estudos e textos teóricos sobre a investigação do processo de criação artística para além da literatura. A fim de compreender a forma e o conteúdo em transformação, ao longo do processo de criação do filme O Veneno da Madrugada, transcriado a partir do livro La Mala Hora, recorreremos a outros teóricos para pensar as especificidades estéticas de cada meio. As principais referencias para as nossas leituras se darão no campo de estudo das narrativas literárias e fílmicas. Dessa forma, para compreender as buscas estéticas do cineasta ao longo do seu processo de criação, utilizaremos os estudos de Jacques Aumont, Ismail Xavier, João Batista de Brito, Georges Sadoul, André Gaudreault. E para as especificidades do fazer literário, nos valeremos, principalmente, dos estudos de Gérard Genette, e Barthes. Neste sentido, esse método de análise, permite-nos investigar o processo criador em sua mobilidade, desde a desconstrução do texto literário, perpassando pela reconstrução de um texto/roteiro, culminando no produto final, o filme. Vale ressaltar que na operação tradutora do livro, antes de a palavra escrita ser traduzida em imagem/quadro em movimento, é fundamental que se construa um estágio intermediário, um lugar de passagem do verbal para o imagético. Essa é a função do roteiro escrito, instrumento o qual, originado no literário, constitui-se em texto técnico que descreve o que deve ser posto em imagens fílmicas.

3

Disciplina/ teoria, que, na década de 70, ocupa um novo lugar na pesquisa literária francesa. Opondo-se ao fechamento textual do estruturalismo, do qual herdou, entretanto, os métodos de análise, e as reflexões sobre a textualidade, instaura um novo olhar sobre a literatura, interessa-lhe a literatura como um fazer, como atividade, como movimento.

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Sendo assim, nosso interesse recai sobre os procedimentos de construção adotados pelo diretor e de como tais alterações são verificadas a partir dos documentos de processo, termo cunhado pela teórica e professora Cecilia Almeida Salles. Segundo a autora, documentos de processo, é um termo mais adequando ao invés de manuscritos, tendo em vista a expansão dos estudos a partir da década de 90, discutido anteriormente. Para que um objeto possa ser abordado sob um viés processual é indispensável que haja documentos que registrem sua gênese e movimentos. Com as novas pesquisas, passam a serem considerados outros índices materiais, tais como roteiros, esboços, rascunhos, ensaios, storyboard, entrevistas, etc. Tudo passa a ser registro de percurso. Assim, entende-se por documentos de processo, “os registros materiais do processo criador. São retratos temporais de uma construção que agem como índices do percurso criativo” (SALLES, 2011, p.27). O que interessa ao pesquisador é procurar vestígios, rastros que flagram o trabalho criativo do autor. Enquanto material metodológico essa teoria busca mais que uma descrição dos documentos de processo. É preciso, a partir das complexidades que as informações oferecem uma organização dos dados. Conforme Cecília Salles (2011, p. 28-29) “ para se chegar a sistemas e suas explicações, descreve-se, classifica-se, percebe-se periodicidade e assim relações são estabelecidas. É feito, desse modo, um acompanhamento crítico interpretativo desses registros”. Até o presente momento da investigação, foram realizadas duas pesquisas de campo. A primeira ocorreu na Cinemateca Brasileira, localizada na cidade de São Paulo (onde consta um total de 25 materiais impressos sobre o filme: entrevistas e criticas) e, a segunda, foi uma visita à escola de cinema Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro - onde Ruy Guerra leciona - para a recolha do material do filme. Ruy Guerra, gentilmente nos viabilizou (para cópias) todo o dossiê do filme, desde os tratamentos de roteiros, fotografias, montagens, etc. Devido à vasta quantidade de materiais, tornou-se possível trilharmos o caminho da criação artística, mergulhar nos meandros labirínticos da criação e observar por esta fresta, a relação entre a literatura e o cinema. É neste cenário que esta pesquisa se insere, na medida em que analisa o processo de criação do romance La mala hora, de Gabriel García Márquez, para o roteiro escrito, e deste para o cinema. Assim, cumpri-se o objetivo desta exposição, que era discutir, brevemente, a proposta de análise de uma transcodificação, que é abordada a partir de índices materiais, vestígios, rastros criativos do artista que tem por objetivo atingir uma meta 615

estética. A crítica de processo conjugada a outros suportes teóricos aqui abordados pode ser uma ferramenta interessante - uma possibilidade de análise para se pensar a tradução intersemiótica - aos estudiosos empenhados em averiguar, como, diferentes linguagens podem mesclar-se num processo de criação artística durante a consolidação de um projeto poético. Referências AUMONT, Jacques. et al. A estética do filme. Tradução de Marina Appenzeller. 3. ed. Campinas, SP: Papirus, 1995. BARTHES, Roland. Análise estrutural da narrativa. Tradução de Maria Zélia Barbosa Pinto; introdução à edição brasileira por Milton José Pinto. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. BEZERRA, Julio. No veneno da madrugada. Revista de cinema. N.63, v.6, p.28-31. fev. 2006. CAMPOS, Flávio de. Roteiro de cinema e televisão: a arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004 GAUDREAULT, André; JOST, François. A narrativa cinematográfica. Tradução Adalberto Müller, Ciro Marcondes e Rita Faleiros. Brasília: ed. UnB, 2009. Geithman, D. T.; Landers, C. E. Political and Economic Forces in Colombian Society as Reflected in the literature of La Violencia. Ci. & Trop. Recife, v.20, n.2, p31 7-336, jul./dez., 1992. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. 3. ed. Lisboa: Vega, 1995. GILARD, Jacques. Textos andinos, obras jornalísticas 2, 1954-1955. tradução Remy Gorga, Filho e Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Record, 2006. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. 9ª ed. São Paulo: Cultrix, 1977. BRITO, João Batista de. Literatura no cinema. São Paulo: Unimarco, 2006. SADOUL, Georges. O cinema: sua arte, sua técnica, sua economia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. JOSEF, Bella. História da literatura hispano-americana. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Francisco Alves Editora, 2005. MÁRQUEZ, Gabriel García. La mala hora. 5.ed, Buenos Aires: Debolsillo, 2010. 616

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A ICONOFOTOLOGIA: ENTRE O LÓGOS POÉTICO, O EIKON E A TECHNÉ FOTOGRÁFICA ICONOFOTOLOGY: BETWEEN THE POETICAL LÓGOS, THE EIKÓN AND THE PHOTOGRAPHIC TECHNÉ Antônio Jackson de Souza Brandão (UNISA/SP) RESUMO O presente artigo propõe uma nova abordagem da leitura de textos de períodos extemporâneos e, para isso, fez-se necessário criar novos termos que correspondessem a essa expectativa: a iconofotologia e poemas fotográficos. Para que um leitor contemporâneo possa ler e compreender textos retóricos dos séculos XVI, XVII e XVIII, teria de ter acesso a uma chave sígnica a que somente seus leitores tinham acesso: as iconologias. No entanto, esse referencial se perdeu, por isso o substituímos por um outro, a partir do acervo imagético-fotográfico de que dispomos hoje e que chamamos de iconofotológico. A partir dele, será possível lermos, sob o ponto de vista contemporâneo (não sob o ponto de vista seiscentista, por exemplo), os poemas que denominamos fotográficos. PALAVRAS-CHAVE: iconologia

Iconofotologia,

poema

fotográfico,

poesia,

fotografia,

ABSTRACT The present article intends to give a new approach to the reading of texts from the untimely periods and, for that, it was necessary to create new terms that corresponded to this expectation: the iconophotology and photographic poems. In order to enable a reader to read and understand rhetorical texts from 16th, 17th and 18th centuries, he would have to have access to a signical key to which only readers of that moment had access: the iconologies. However, such reference has been lost; therefore, we have to replace it by another one, from the imagetic-photographic collection we have, which is 617

called iconophotological. With this premise, it will be possible to read, under the contemporary point of view (not under the baroque point of view), the so-called photographic poems. KEYWORDS: Iconophotology, photographic poem, poetry, photography, iconology, Introdução A relação entre a imagem pictórica e a poética já possui longa tradição. Ambas caminharam juntas durante séculos, apesar dos paragoni que buscavam ressaltar a predominância de uma sobre a outra. No entanto, o que se pretende com este artigo não é tratar dessa relação, mas tentar estabelecer outra entre a leitura de textos literários extemporâneos (dos séculos XVI, XVII e XVIII) – restritos à poesia descritiva – e a fotografia. É óbvio que a relação aqui proposta não se dará por meio dos pressupostos retóricos daquele período, já que hoje os empregamos de forma distinta, mas a partir da recepção que se faz daquelas imagens, aparentemente, descritivas. A partir do Modernismo, a arte pictórica e a literária ampliaram seus horizontes por meio de uma verdadeira revolução, cujo estopim teve ativa participação da incipiente fotografia. Esta, por sua vez, influenciará não só o mundo imagético (o campo das artes pictóricas), como também o da literatura (o mundo das palavras). Assim como no Renascimento, houve no período uma reaproximação entre palavra e pintura, como demonstraram alguns experimentos vanguardistas. Hoje, por sua vez, palavra e imagem (em sua grande maioria fotográfica) também são largamente empregadas na (e pela) linguagem publicitária. Diante do predomínio da imagerie que presenciamos, algumas questões são suscitadas, apesar de lugares-comuns: a imagem sempre vai superar o λόγος (lógos) na apreensão do mundo que nos cerca? Ou ainda: uma imagem vale por mil palavras? A imagem prescinde do λόγος? O λόγος (lógos, palavra) tem o poder de representar-se e de representar aquilo que está a nossa volta e, mesmo diante do assédio proporcionado pelo turbilhão imagéticofotográfico, continua demonstrando certa preponderância. Pode-se verificar isso quando, diante de uma fotografia – seja em revistas, jornais, outdoors – necessitamos, muitas vezes, da legenda para que, por meio desta, possamos explicar aquela e torná-la mais legível ou mesmo inteligível.

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Por mais estranho que seja falar em busca por inteligibilidade, não se deve esquecer de que ainda persiste a convicção arraigada por muitos de a imagem fotográfica representar uma cópia fiel da realidade, prescindindo de qualquer explicação, afinal, falaria por si mesma. No entanto, devido às inúmeras possibilidades auferidas pelos recentes softwares de edição de imagens, esse mito vem, pouco a pouco sendo desfeito: já se tem consciência de que a fotografia possa sofrer várias manipulações; e, acrescente-se a isso, sua propagação sem limites e a facilidade de sua obtenção. Atualmente, muitas pessoas já têm o hábito de desconfiar do que veem: realmente é a fulana que está aqui? Aquela foto não é uma montagem? 1 Esse desconfiar do fotográfico está se tornando constante2 (deve-se ter em mente que uma das funções da fotografia era, exatamente, o contrário, a comprovação), principalmente devido à infinita acessibilidade e dissiminação imagéticas proporcionadas pela internet, que demonstram, inclusive, a crescente idolatria (είδωλον + λατρεία – culto à imagem) de nossa sociedade. Diante dessa desconfiança incipiente, surge a necessidade comprobatória da legenda que negará ou afirmará uma possível manipulação efetuada numa imagem, naquilo que ela possa significar, ou naquilo em que queiramos (ou não) acreditar. Isso é auferível quando se vê que, apesar da constatação proporcionada por uma fotografia jornalística – comprovadamente sem montagem –, muitos ainda insistem em dizer que ela sofreu manipulação, preferindo acreditar naquilo que querem, ou seja, em sua verdade, afinal: cada fotografia é um fragmento, o seu peso moral e emocional depende do conjunto em que se insere. Uma fotografia muda em função do contexto em que é vista: por isso, as fotografias de Smith3 sobre Minamata parecerão diferentes numa prova de contato, numa galeria, numa demonstração política, num arquivo policial, numa revista de fotografia, numa revista de atualidades, num livro, numa parede da sala de estar. Cada uma destas situações sugere um uso diferente para as fotografias, mas nenhuma pode fixar seu significado. (Sontag, 1986, p. 99)

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Não se pode esquecer de que as montagens fotográficas sempre existiram, porém não havia consciência dela fora de seu meio profissional ou de seus aficionados. 2 Evidentemente, para aqueles que têm uma visão mais crítica daquilo que veem. 3 William Eugene Smith (1918-1978), fotojornalista estadunidense que retratou os horrores da Segunda Guerra Mundial por meio de sua lente. Minamata é uma vila da cidade japonesa de Kumamoto, onde Smith fotografou os nefastos efeitos ocasionados pela intoxicação de sua população por mercúrio.

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Devem-se estabelecer os limites sígnicos da fotografia e, para que isso seja possível, faz-se necessário o uso do λόγος: ele que certificará aquilo em que temos de acreditar; se houve ou não manipulação na fotografia; qual sua intenção; qual seu significado, pois Ocorre em relação a cada fotografia o que Wittgenstein afirmava sobre as palavras: o significado é o uso. E é por isso mesmo que a presença e a proliferação de todas as fotografias contribui para a erosão da própria noção de significado, para estilhaçar a verdade em verdades relativas, o que hoje é aceite sem reservas pela consciência liberal moderna. (ibidem: 99)

Isso faz com que acabemos sendo impelidos ou a acreditar em tudo o que temos diante de nossos olhos, ou a não acreditar em nada e ver tudo como mera ilusão, como se estivéssemos num deserto, cercados de miragens por todos os lados, até o momento de descobrirmos que elas não o eram totalmente: nós é que não conseguíamos tocar o que queríamos, as imagens-objeto fugiam a nosso toque. Isso se complica ainda mais, no entanto, não devido à imagem em si, mas às palavras que a explicam, já que quando estas se juntam àqueles somos obrigados a acreditar. Flusser comprova isso ao dizer que, já no século XIX, se verificava algo semelhante, quando os próprios textos haviam se tornado, naquele momento, inimagináveis diante do alto grau de complexidade alcançado pela textolatría: o deserto deixara de ser imagético e passara a ser lógico: En el sentido más estricto, este fue el fin de la historia, la cual, en este sentido estricto, es la transcodificación progresiva de las imágenes en conceptos, la explicación progresiva de las imágenes, el progresivo desencantamiento, la conceptualización progresiva. Donde los textos ya no son imaginables, no hay nada más qué explicar, y la historia cesa. Precisamente en esta etapa crítica, en el siglo XIX, se inventaron las imágenes técnicas a fin de hacer los textos nuevamente imaginables, para colmarlos de magia y, así, superar la crisis de la historia. (Flusser, 1990, p. 14-15)

Paradigmas podem (e devem) ser quebrados e aquilo que o senso comum afirma, pode ser contestado. Isso serve, sem dúvida, à afirmação de que nossa sociedade prefere, incontestavelmente, as imagens às palavras. No entanto, a imagem nem sempre pode prescindir da palavra e de sua logicidade para se clarificar; isso se faz necessário para que se possa depreender daquela muito mais do que pigmentação, incidência da luz, ou sua referencialidade, já que:

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O mundo das imagens não é, necessariamente, imagem de mundo, mas cópias mal-ajambradas de visões de mundo estereotipadas e tacanhas. Daí a facilidade com que a lógica do texto se impõe, inclusive nos forçando a olhar o mundo apresentado por imagens com desconfiança maior do que o mundo apresentado por textos. (Bonfiglioli, 2008, p. 7) Figura 1: Entre o luxo e o lixo: a publicidade sacraliza o consumo e diviniza a posse.

Fonte: Playboy, 05/1988

Logicamente, tal afirmação quebra, novamente, o lugar-comum que nos expõe a possibilidade de as imagens prescindirem do λόγος. Não se deve esquecer, porém, de que λόγος e είκών (eikón) – palavra e imagem – vindos de uma fonte comum, a natureza – via μίμησις (mimese) – acabaram se completando e imiscuindo-se durante a trajetória humana – como no gênero emblemático4, ou mesmo em alguns movimentos vanguardistas do século XX. Isso também pressupõe que a imagem deva ser lida e sua tessitura desmontada, à semelhança do texto escrito, a fim de que seja possível extrair o

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“Os emblemas possuíam uma estrutura tripartite constituída por uma imagem − seu corpo – que deveria ser fixada na memória dos leitores, pois ela passava preceitos morais que o autor desejava transmitir; um mote, normalmente uma sentença aguda escrita em latim, a partir do qual o leitor era direcionado a determinada leitura da imagem; e um epigrama, ou texto explicativo, que buscava relacionar o corpo com o mote do emblema, clarificando a relação existente; era, portanto, sua alma”. (BRANDÃO, 2008, p. 315).

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máximo de informação interpretativa do mesmo 5, quando se depreenderá todos seus elementos constitutivos – como na leitura iconológica de Panofsky, por exemplo. Para que isso seja possível, o papel do leitor é importante, pois à semelhança do texto logocêntrico, no imagético, também é o leitor que tem de se relacionar com a obra e, a partir de sua Weltanschauung ter a possibilidade, ou não, de depreender sua significação. Dessa forma, não é a aparente objetividade da imagem que atuará naquele que lê, facilitando ou não a leitura, mas a capacidade do leitor em fazê-la. Assim, para que seja possível a interpretação, bem como sua visualização racional, necessita-se da intermediação do eu observador, para que ele mesmo possa reconstruir a mesma imagem a partir de sua realidade. Para isso, tem de adequar seu olhar a essa leitura, não vista aqui como algo exclusivo do λόγος, mas a sua semelhança, quando se escaneia a imagem com o olhar e se busca depreender dessa as minúncias que se veem em seu todo. Pode-se dizer que essa leitura seja semelhante à linearidade textual, só que no texto, as imagens constroem-se linha a linha, enquanto nos não textuais (quadros, fotografias), vê-se de uma vez a totalidade significativa. Entretanto, essas significações explícitas, ou aquelas escondidas sob o velame da aparente totalidade sígnica, devem ser interpretadas, caso contrário, simplesmente se aceitará a pseudofacilidade interpretativa, minimizando o todo imagétco presente em uma obra, bem como o jogo da criação estabelecido por seu autor. Dessa forma, nossa leitura/interpretação deve, primeiramente, passar por um processo análogo àquele proporcionado pelo λόγος, para que se estabeleça a clareza sígnica, levando seu leitor aos meandros do texto imagético: por necessitarmos de esclarecimentos, o extracampo, parece que a imagem sente necessidade das palavras, não quer ficar alijada delas, seja na forma de legenda, de comentário, de subtítulo ou mesmo de diálogos. (BARTHES, 2005) Caso isso não ocorra, pode-se enxergar o que não existe, ver aquilo que se está propenso a ver, como na pareidolia, ou ainda ler, de forma adversa o que pretendiam informar. Exemplo dessa relação pode ser estabelecida a partir da figura 1, quando vemos um crucifixo posicionado sobre o capô de um carro de luxo (no lugar onde se costuma colocar o símbolo da empresa que o fabrica) numa atitude que pode suscitar algumas

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Evidentemente, temos de pensar isso nas pinturas codificadas culturalmente, ou seja, naquelas figurativas (inclusive as referenciais); o mesmo, pode ser aplicado nas fotografias referenciais. Isso, porém, seria mais difícil se pensarmos nas pinturas não figurativas.

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ponderações: alguns verão, na imagem, uma obra artística; outros, uma de mau gosto, de profanação da imagem religiosa. Essa leitura, porém, dependerá daquele que pretende decodificá-la, pois poderá enxergar nela ou a) uma obra genial e ilustrativa das novas divindades fabricadas por nossa sociedade atual (quando a própria Divindade, representada pelo Cristo crucificado, está a serviço do consumo e do dinheiro, cujo símbolo está sob a cruz: a marca Rolls Royce); ou b) uma propaganda de extremo mau gosto que pretende denegrir a imagem de Jesus, ou mesmo usá-la como amuleto. A legenda, nesse caso, é que será o diferencial entre o profanar e o moralizar, pode inclusive minimizar os ânimos referentes à utilização de um símbolo religioso em uma propaganda, a fim de demonstrar a que ponto chega a visão consumista de nossa sociedade, quando o mais importante não é o ser mas o ter. O eu lírico e o eu fotográfico: similitudes Como as palavras são imagens, estas podem evocar aquelas de modo particular na construição de poemas descritivos, devido à geminação entre os dois sistemas sígnicos, o lógico e o imagético. Houve inclusive um momento particular, os séculos XVI, XVII e meados do XVIII, em que os dois sistemas compartilharam um mesmo gênero, o emblemático. Entretanto, é possível verificar que essa relação ainda se mantém com duas grandes diferenças: a codificação social e a não estaticidade do signo linguístico. Hoje, por exemplo, é possível que um código seja empregado de diversas formas em um curto espaço de tempo e, mesmo que haja um direcionamento específico para um determinado estrato social, isso não indetermina que um outro não possa ter acesso a sua chave sígnica, o que não ocorria, plenamente, nos Seiscentos. O mesmo se dá em relação a sua mobilidade ou estaticidade: o signo hoje não é estanque, devido ao próprio dinamismo de nossa sociedade, que busca, continuamente, a inovação, o diferente. Relação bem diferente da que se verificava, nos séculos destacados, pois aquela sociedade vivia sob a marca da mίmesiς, ou seja, inexistia a inovação, mas a busca contínua pela imitação. Dessa forma, o novo para aquele momento eram as teorias advindas dos clássicos greco-romanos. Atualmente, modismos linguísticos são criados e modificados num espaço de tempo cada vez menor, quando são ignorados pelas novas gerações que não os conseguem mais decodificar. Isso porque todos os sistemas de comunicação vivem no

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mundo das referências e dos significados relativos, por isso que os conjuntos de signos são dotados de certa mobilidade. Além disso, as palavras possuem vários significados, mais ou menos conexos entre si, que se ordenam e se precisam de acordo com seu lugar na oração, enquanto outros desaparecem ou se atenuam. (PAZ, 2005) O mesmo se dá, evidentemente, com determinados empregos imagéticos, cujo significado também é relativo, assim como na linguagem verbal: Las imágenes son superficies significativas. En la mayoría de los casos, éstas significan algo “exterior”, y tienen la finalidad de hacer que ese “algo” se vuelva imaginable para nosotros, al abstraerlo, reduciendo sus cuatro dimensiones de espacio y tiempo a las dos dimensiones de un plano. A la capacidad específica de abstraer formas planas del espacio-tiempo “exterior”, y de re-proyectar esta abstracción del “exterior”, se le puede llamar imaginación. (FLUSSER, 1990, p. 11)

Como são dotados de significação, λόγος e είκών – palavra e imagem – são suscetíveis de interpretação, ou seja, não possuem existência sem que um olhar se detenha neles e decodifique a intenção que o eu lírico ou eu pictórico tinha em mente, apesar das possíveis distorções anacrônicas que tal ato possa suscitar. Dessa forma, o ato adentra na temporalidade: Mientras la mirada registradora se desplaza sobre la superficie de la imagen, va tomando de ésta un elemento tras otro: establece una relación temporal entre ellos. También es posible que regrese a un elemento ya visto y, así, transforme el “antes” en un “después”. Esta dimensión temporal – como se reconstruye mediante el registro – es por tanto, una dimensión de regreso eterno. La mirada puede volver una y otra vez sobre el mismo elemento de la imagen, estableciéndolo como centro de significado de la imagen, el registro establece relaciones llenas de significado entre los elementos de la imagen. (ibidem, p. 11-12)

Que fazemos, afinal, quando lemos um poema e nos vemos diante das imagens construídas pelo eu lírico? É próprio da linguagem poética esse ir e vir, o deter-se diante de suas imagens e ficar como que diante de um quadro, tentando depreender o que havía sido visto antes e o que se vê depois, para que se possa construir seu significado. Além disso, as imagens do poeta também têm sentido em diversos níveis e possuem autenticidade: o poeta as viu e ouviu, são a expressão genuína de sua visão e experiência do mundo (PAZ, 2005), mesmo que pertençam a seu próprio mundo, por isso pouco importa se a verdade do poeta seja apenas de ordem psicológica, correspondente ao ato

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criativo, à emanação de seu λόγος criador, porque, enquanto obra factível, torna-se real e objetiva: essas imagens constituem uma realidade objetiva, válida por si mesma: são obras. Uma paisagem de Góngora não é a mesma coisa que uma paisagem natural, mas ambas possuem realidade e consistência, embora vivam em esferas distintas. São duas ordens de realidade paralelas e autônomas. (...) o poeta faz algo mais do que dizer a verdade; cria realidades que possuem uma verdade: a de sua própria existência. (ibidem, p. 45)

O poeta, portanto, além de criar o tempo próprio do poema, adentra numa outra dimensão: a da espacialidade. Esta não pertence sequer ao próprio criador, nem ao eu lírico, mas tão-somente à própria realidade da obra enquanto obra. É nela que a realidade se funde com o tempo, mas essa realidade é mágica, pertence ao mundo feérico: tal relación espacio-tiempo reconstruida a partir de las imágenes es propia de la magia, donde todo se repite y donde todo participa de un contexto pleno de significado. El mundo de la magia difiere estructuralmente del mundo de la linealidad histórica, donde nada se repite jamás, donde todo es un efecto de causas y llega a ser causa de ulteriores efectos. (Flusser, 1990, p. 12)

A mágica maior, porém, é poder vislumbrar mundos novos sem que os mesmos tenham existido concretamente enquanto substância material, ou trazer mundos concretos e distantes para a palma da mão. Eis a magia que o λόγος nos propicia via literatura: tornar o virtual concreto, palpável, factível. Esse mesmo poder podemos, entretanto, conferir ao ato fotográfico, via τέχυη, quando se executa o ato de forma contrária: fazer da concretude, do tangível, do visível, virtual: seja no papel fotográfico, seja no écran de uma tela de computador. Eis que o fotógrafo também é poeta, na medida em que nos impele a ler suas metáforas imagéticas, na medida em que se torna um eu lírico-fotográfico: Aquilo que antes só podia ser visto por olhos inteligentes pode agora ser visto por todos. Instruída pelas fotografias, qualquer pessoa é capaz de visualizar este conceito que era puramente literário, a geografia do corpo: por exemplo, fotografando uma mulher grávida de modo a que pareça um monte, ou um monte de forma a parecer uma mulher grávida. (SONTAG, 1986: 94)

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Foto 1: Fotografia de Lewis Payne, de Alexaner Gardner, 1865.

Por isso, não basta dizer que só o poeta é um fingidor, sendo um criador; o mesmo podemos afirmar do fotógrafo, afinal ele não é apenas um meio de que se vale um instrumento tecnicista para, unicamente, captar a luz refletida pelos seres, pela natureza, ou ainda pelos homens: também ele é criador de realidades diversas, na medida em que sua criação leva os outros a outros mundos que não sejam mais o seu: seja nas viagens temporais por um tempo distante, seja numa viagem espacial, para locais desconhecidos. Esses, porém, permanecerão em nossas próprias memórias, mesmo que não tenham existido em nossa realidade concreta, mas virtual. Assim, podemos estabelecer relações entre a fotografia – enquanto expressão artística de um eu – e a literatura – que há muito já é considerada essa expressão –, levantando, inclusive, pontos de contatos entre as duas τέχυαι que poderão auxiliar na interpretação (recepção) literatura/fotografia, a partir da relação mimética com o mundo. Para tanto, faz-se necessário estabelecer uma relação entre a moldura fotográfica – como um fragmento da realidade percebida por esse eu – e a moldura estabelecida por um poema – um soneto, por exemplo – em que os quadros de palavras, fragmentados

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muitas vezes, estão delimitados pela métrica, ou simplesmente pelos espaços vazios do papel. O fazer do eu fotográfico coincide, dessa forma, com o do eu lírico na criação imagética, na medida em que aquele também utilizará subjetividade em sua criação, em suas fotografias, assim como este. Dentre vários ângulos e pontos de vista que poderiam ser empregados, por exemplo, apenas um foi o escolhido 6. À semelhança de um poeta que tem de escolher, no léxico oferecido pela língua, as palavras que melhor se encaixam para representar as imagens desejadas7 – como no ato de catar feijão, segundo João Cabral de Melo Neto –, o fotógrafo também procura em seu campo de visão, que é o mundo, as melhores tomadas, registrando aquilo que os outros não veem ou passaria despercebido. Dessa forma, a fotografia fixa o real, mas a partir de uma seleção subjetiva do conjunto de imagens que é o mundo, por meio de um eu individual, cuja visão também é única. Afinal, também não seria essa uma das prerrogativas da poética? A própria poesia depois de ter sido definida, durante muito tempo, como arte do verso, acabou sendo reconhecida, também, como arte da imagem. O poema não apenas carrega as significações que atuam sobre as palavras reunidas por ele, com também as organiza num assunto, numa cena, no sentido pictórico de ambos os termos. (DUBOIS, 1980) Mas, um dos pontos mais importantes tanto na criação poética quanto na fotográfica é o da recordação, pois as imagens construídas por ambas têm o poder de fazer-nos ir a um tempo que não é mais o nosso, de rever os que não estão mais conosco, de visualizar aquilo que não existe mais: A imagem reproduz o momento da percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido. O verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria ou, como dizia Machado: não representa, mas apresenta. Recria, revive nossa experiência do real. Não vale a pena assinalar que essas ressurreições não são somente as de nossa experiência cotidiana, mas as de nossa vida mais obscura e remota. O poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente. (PAZ, 2003, p. 46)

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Mesmo que para isso, tenha de ter tirado muitas chapas para considerar apenas uma. Mas, não é da mesma forma que trabalha o poeta ou o escritor? 7 Num poema, o poeta também dispõe de várias palavras que oferecem inúmeras possibilidades para dizer o que quer – isso quando quer dizer algo, ou seja, quando não deixa, simplesmente, que as palavras fluam de suas mãos –, entretanto a escolha é sempre aquela não uma outra.

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Assim, fotografia e poesia fazem ressurgir aquele presente que estava ausente tanto de nosso inconsciente quanto no da sociedade, o mesmo que, algumas vezes, queria permanecer oculto, apesar de sabermos que está ali, na memória, mas num passe da mágica poética e fotográfica, é despertada e ressurge das cinzas, fazendo com que aquele presente ressurja novamente. No entanto, esse ressurgir não se dá de forma clara e ordenada, é construído. O compromisso da poesia com o concreto e com a autonomia da linguagem é paralelo ao compromisso da fotografia com a visão pura. Ambos implicam descontinuidade, formas desarticuladas e unidades compensatórias: arrancar as coisas ao seu contexto (para que possam ser vistas de um modo novo), reuni-las elipticamente de acordo com as exigências imperiosas e por vezes arbitrárias da subjetividade. (SONTAG, 1986, p. 90-91)

É isso o que acontece quando nos deparamos com a fotografia de Alexander Gardner (foto 1), em que vemos Lewis Payne, à espera de seu enforcamento: A foto é bela8, o jovem também: trata-se do studium. Mas o punctum é: ele vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror um futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose, a fotografia me diz a morte no futuro. (BARTHES, 1984, p. 142)

Pelo fato de ser bela e de ele ser belo, essa fotografia foge ao lugar-comum daquilo que cremos ser um assassino, com isso somos desviados de seu intento – o de servir de exemplo para que outros não cometessem o mesmo crime, de mostrar o monstro a todos –, além disso podemos ser levados a pensar: como um jovem bonito assim poderia ter tentado tirar a vida a alguém? Que fatos concorreram para que praticasse atos desprezíveis? Ou ainda irmos mais fundo: não, ele não deve ter feito nada disso, basta olhar para dentro de seus olhos... Temos, no entanto, de subjugar nossa subjetividade, desviar nosso olhar dos olhos de Lewis e entrar na temporalidade/realidade que a fotografia retoma: ele vai morrer, mas já está morto e, a despeito de tudo o que dissermos ou especularmos, o ato já se concretizou, mesmo que tenhamos saído dos limites estabelecidos pela moldura. Formação do acervo iconofotológico

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A fotografia analisada por Barthes não é a mesma empregada na tese: quis mudar o ângulo, apesar de o condenado e seu fotógrafo serem os mesmos.

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Quando propomos fazer uma análise das imagens evocadas por poemas que abrangem os séculos XVI, XVII e XVIII, sempre vem a indagação: até que ponto podemos, ou não, utilizar uma imagem distinta daquela empregada por aqueles autores – a partir da ótica do século XXI –, já que não dispomos mais das preceptivas retóricas daqueles autores? É isso o que pretendemos discorrer com este artigo ao tentar apresentar como se dá a recepção des imagens poéticas extemporâneas em nossos dias, pois querer que as mesmas sejam decodificadas a partir do referencial daquele momento resultaria – para a maioria dos leitores de hoje – em anacronismo, afinal não dispomos mais daquelas determinações. Acreditamos que a recepção imagética das imagens formadas por aqueles poetas se dá, hoje, por meio do acervo fotográfico que criamos ao longo de nossas vidas, à semelhança de um álbum virtual dos acontecimentos que nos cercam, constituído por anos de bombardeamento de imagens técnicas via mídia. É como se esse corpus virtual e latente ficasse à espera de um estímulo externo – como uma imagem evocada num poema, por exemplo – para que pudesse reaparecer, pois Diante de uma experiência sensível (uma determinada variação do regime de luz, a percepção de um cheiro, o desenho formado por uma mancha de leite), atingimos um fragmento do passado que julgávamos esquecido ou perdido. (GUIMARÃES, 1997, p. 180)

A fotografia, portanto, passa a ter a importância de monumento, enquanto reminiscência do que foi, pois para nós, sua função é a de tornar sempre claro, frente a nossos olhos, determinado período, acontecimento, pessoa ou pessoas. É como se nos dissesse: você não pode esquecer isso! À semelhança de um totem – o monumento que religaria os dois extremos temporais de um grupo social, tornando-se uma ponte entre o presente e o passado –, não deixa as lembranças por ele evocadas serem destruídas. Por ser rocha, o totem duraria o suficiente para que aquelas pessoas ou fatos dos quais não se queria esquecer fossem lembrados por gerações, até que se extinguissem todas as lembranças do motivo primeiro que o originou; quando, finalmente, ninguém mais saberá quais pessoas ou fatos os autores do monumento quiseram perpetuar. Dessa forma, uma das particularidades do monumento é a ideia de perpetuação, por isso As sociedades antigas procuravam fazer com que a lembrança, substituto da vida, fosse eterna e que pelo menos a coisa que falasse da Morte fosse imortal: era o Monumento. Mas ao fazer da fotografia, mortal, o testemunho geral e como que natural ‘daquilo que foi’, a

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sociedade moderna renunciou ao Monumento (...) a Fotografia é um testemunho seguro, mas fugaz (...). (BARTHES, 1984, 139)

Perpetuar um acontecimento também é uma forma de evitar que ele se repita se for contraproducente; ou que será rememorado, se benéfico; daí a importância de seu registro, seja fotográfico ou mesmo poético. A fotografia, portanto, passa a ser o combustível que reaviva a chama não só de nossa memória, como também de nossas emoções, pois, apesar de sua fugacidade – daí sua dessemelhança em relação ao totem, cuja aparência dá testemunho de perenidade (enquanto existir) –, também existirá com ela a eternização de uma determinada realidade. O tempo pode passar, certas pessoas podem não ter vivenciado a cena retratada, mas, à vista de uma fotografia, há a extemporização do momento, semelhante a uma viagem no tempo, por meio das imagens por ela evocadas. Além disso, pode não só nos revelar aquilo que estava na cena, como o que havia, provavelmente, por trás da mesma. Mesmo as mais corriqueiras atitudes passam a ser dignas de crédito quando fotografadas, mesmo a posteriori, ou seja, o mais banal dos acontecimentos reveste-se de grande importância9, como se tudo girasse em torno de acontecimentos interessantes dignos de serem fotografados. Quando esses, porém, se extinguirem com o tempo, a fotografia estará lá, conferindo a eles não só importância como também imortalidade. (SONTAG, 1986) Justamente esse fato de que tudo vale a pena fotografar reforça seu aspecto trivial e fugaz, de algo sem importância, principalmente em uma sociedade repleta de imagens sem deferência. Todavia, essa falta de importância é uma demonstração de sua constante presentificação, ou seja, retrata o momento em que se está inserido e que corresponde ao presente retratado na fotografia: ambos se imiscuem num abraço envolvente, quando aquele presente passa a fazer parte deste presente, mesmo em seus aspectos mais rotineiros. Essa relação, porém, mudará com o passar dos anos, pois tal foto, ao ser visualizada certo tempo depois, não mostrará mais a banalidade de um instante congelado, mas a totalidade de um momento que não estará exposto naquele papelimagem, mas será reativado na memória de quem passou por aquele instante, ou mesmo por quem sempre ouviu falar dele; algo próximo da tradição oral de um povo, repetidas de geração em geração, ao lado do fogo. Quantas vezes pessoas ouviram histórias de um 9

Para compreendermos essa relação, bastaria lermos, por exemplo, fotos antigas da cidade de São Paulo, quando da colocação dos trilhos dos bondes pela Light. Aquilo que era uma trivialidade – operários trabalhando na colocação de trilhos na cidade (São Paulo já possuía bondes à tração animal) – transformou-se para nós em um documento histórico de grande importância.

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momento qualquer que fora retratado numa foto e ao vê-la, in loco, são capazes de enxergar além de seu enquadramento, sem ter estado lá, à semelhança de um déjà vu? Dessa forma, a fotografia impele-nos ao saudosismo, à rememoração, à busca de um elo perdido, à nostalgia: A fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maior parte dos temas fotografados são, pelo simples fato de serem fotografados, afetados pelo pathos. Um tema feio ou grotesco pode ser comovente por ter sido dignificado pela atenção do fotógrafo. Um tema belo pode provocar sentimentos de compaixão por ter envelhecido, perdido importância ou já não existir. (ibidem: 24)

Semelhante ao valor testemunhal evocado pela fotografia e seu propósito de perpetuar-se no tempo como um monumento, temos a linguagem poética. Esta, diferentemente da linguagem comum, tem como atributo próprio o fato de durar (LEVIN, 1975), enquanto aquela – centrada na função referencial – não se mantém, visto que, a partir do momento que compreendemos o que diz, “é substituída em nossas mentes pelo que significou” (ibidem, p. 103), torna-se, portanto, sem valor e é apagada. Na poesia, tanto a forma quanto sua disposição no papel permanecem, já que as mensagens poéticas desfrutam de uma permanência que a linguagem comum não possui. Não se quer dizer com isso que um poema possa perdurar por gerações ou séculos enquanto realidade palpável (representado pelo próprio papel), mas pelo fato de sua permanência – tanto na mente individual, quanto na coletiva – prescindir, inclusive, de elementos concretos, à semelhança da Idade Média em relação aos jograis, menestréis e trovadores. Assim sendo, o poema também teria uma função de monumento, religaria o presente ao passado e, sendo memorável, perpetuar-se-ia na memória, na recordação e na lembrança da posteridade. Dessa forma, tanto o poema quanto a fotografia poderiam ser indicadores de autenticidade de um tempo que já está distante do nosso e, à semelhança da Bíblia, ser de outro modo comunicadores históricos em meio à função retórica. Quantos não empregaram suas vidas para tentar provar que as imagens bíblicas eram uma cópia fidedigna da realidade passada? Entretanto, esses haviam se esquecido de que o Livro não é meramente histórico, mas poético e que nem todos seus poemas são, segundo nossa ideia, fotográficos. Um dos liames, por exemplo, que aproxima a fotografia da arte seiscentista e que suscitara, inclusive, minha Tese de doutoramento é a edificação da morte que se encontra nas duas. Contudo, a morte não em seu sentido de término, mas como 631

perpetuação, uma constante ressurreição daquilo que foi fotografado ou daquilo que foi descrito num poema. Ambas as imagens detêm o tempo, quando a “temporalidade do objeto separa-se daquela do sujeito” (VIRILIO, apud GUIMARÃES, 1997, p. 48), ou seja, imortaliza o que é mortal, apesar de serem memento mori. Fotografar, por exemplo, é participar na mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade de uma outra pessoa ou objeto, testemunhando a inexorável dissolução do tempo, precisamente por selecionar e fixar um determinado momento. (SONTAG, 1986, p. 24) Ao selecionar esse momento qualquer, é como se disséssemos a ele: tenha vida eterna! Viva mais do que seu próprio referente, de sua própria emanação primeira. Eis porque o ato de fotografar é dedicar-se à captura da morte: Pois é preciso que a Morte, em uma sociedade, esteja em algum lugar; se não está mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez nessa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida. Contemporânea do recuo dos ritos, a Fotografia corresponderia talvez à intrusão, em nossa sociedade moderna, de uma Morte assimbólica, fora da religião, fora do ritual, espécie de brusco mergulho na Morte literal. A Vida/a Morte: o paradigma reduz-se a um simples disparo, o que separa a pose inicial do papel final. (BARTHES, 1984, p. 138)

Leitura iconofotológica e o poema fotográfico Vê-se, portanto, com o advento da fotografia, a renúncia do monumento empregado pelos antigos para celebrar a morte, ou ainda toda uma visão iconológica cujo tema é exatamente o mesmo, mas os recursos são totalmente diversos. Com a fotografia a morte existe (e reside) a partir do presente perpétuo; nos Seiscentos, por outro lado, é retratada exatamente pelo seu futuro, ou seja, a descarnação total do ser: o esqueleto. Se o século XV havia mostrado uma verdadeira obsessão pela morte, o XVII (...) supera-o e consegue dar uma versão ainda mais temível e impressionante: se na Idade Média a morte é, na arte e no pensamento, uma ideia teológica, e no espetáculo popular das danças macabras se apresenta com um caráter didático geral e impessoal, agora é tema de uma experiência que afeta a cada um em particular e causa uma dolorosa convulsão. (MARAVALL, 1997, p. 268)

Quando Maravall fala em espetáculo, tais palavras podem soar como metafóricas, visto que a tópica do palco do mundo também encontra eco no momento derradeiro, no entanto, não é o que se via nos Seiscentos, segundo Flemming:

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Selbst in den letzten Stunden fühlt das Ich sich nicht allein; stets stehen die anderen als Zuschauer herum, nach deren Beifall man verlangt. So endet das Leben, wie es überhaupt empfunden und geführt wurde: als Schauspiel. Selbst noch im Tode, ja noch drüber hinaus im Grabstein. (FLEMMING, 1937, p. 26)10

Tanto a fotografia quanto a poesia dos Seiscentos acabam tratando, mesmo que não diretamente, do memento mori: uma porque perpetualiza o

momento

(embalsamando-o), outra porque essa própria tópica já faz parte de sua própria Weltanschauung. Assim, na fotografia, é como se olhássemos em um espelho e, de um lado, víssemos refletido nosso presente; e de outro, concomitantemente, o futuro e o passado. Evidentemente, não nos é permitido ver o futuro, dessa forma, temos de restringir esse olhar para o presente, mas enquanto realidade que já passou, pois o nosso é um período posterior àquele verificado e concretizado pela fotografia. Por outro lado, pode-se considerar a poesia como um reflexo especular tanto da linguagem humana – por apresentar os níveis fônico e semântico –; quanto da alma humana – por refletir aquilo de que o homem está impregnado: a totalidade de seu ser, seus pensamentos e emoções. Se se pode, portanto, considerar a poesia como portadora de reflexo especular, que dizer, então, da fotografia que há muito não só reflete o que está diante de uma câmera, como também tem o poder de fixá-lo? Isso já seria suficiente para que pudéssemos começar a cotejar a poesia com a fotografia em relação à especularidade de sua reprodução imagética, afinal a foto além de aprisionar a imagem, que tem diante de si, também revela as minúcias que se querem (ou se queriam) manter escondidas. Há, além disso, o fato de ambas, por sua própria estrutura e emprego, manteremse perenes, eternizadas por meio do papel, algo extremamente frágil e perecível. Que é o homem senão a totalidade de um ser perecível – seu corpo – juntamente com um imortal – sua alma? Mesmo que não exista Deus, nem religião, nem uma alma eterna, o homem já seria eterno, por poder perpetuar-se por meio de sua obra, de sua τέχυη e de seu λόγος e de ter consciência disso. Vê-se, portanto, que o liame que une a poesia e a fotografia não é tão tênue a ponto de romper-se tão facilmente quanto poderia parecer inicialmente. Não é possível dissociar λόγος, είκών e τέχυη, afinal todos fazem parte de uma trindade constitutiva do

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Mesmo em seus últimos momentos, o eu não se sente sozinho; sempre há outros como espectadores a seu lado, que desejam aplaudir. Assim, finalmente termina a vida, como foi sentida e dirigida: como palco. Assim como na morte, assim como fora, na lápide. (tradução nossa)

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espírito 11 do homem que o torna um ser diferente dos outros por meio da ratio que lhe é inerente. Diante disso, não se constituiria um contrassenso chamar um poema de fotográfico, nem uma fotografia de poética, como propomos. Assim, poderíamos chamar de fotográfico um poema, cujo poeta não tenha tido ele mesmo a influência direta da fotografia, mas aquele cujo leitor tenha sofrido a influência dela, já que são as imagens verbais contidas nessa estrutura linguística que revelam, justamente, as imagens fotográficas que permeiam nossa memória, o que chamo de acervo iconofotológico. Esse também nos faz refletir a respeito da própria obra poética e do mundo em que ela está inserida; quando, via contemplação imagética – que não passa de uma atividade orientada para a captura da significação, já que esta não é imanente a obra, mas dependente não de uma única, mas de várias leituras – entendida como um “conjunto de processos de decodificação, de associação com uma série indefinida de mensagens, lembranças, afetos, multiplicidades intensivas ou qualidade existenciais” (LÉVY, apud ALMEIDA, 2006, p. 89), abre a chave da sígnificação por meio da substituição de uma imagem lógica por outra fotográfica, latente em nossa memória, à espera de um estímulo que a faça sair de sua letargia. É inconteste que esse start em nossa memória não se dê somente via imagens visuais, mas também por meio de imagens acústicas – quando determinada música nos faz lembrar de um momento perdido no tempo, mas que está guardado em nosssa inconsciência – ou palativo-olfativas – quando um perfume, a fragrância de uma flor, o cheiro de terra molhada, ou a essência de um determinado tempero produzem-nos efeito semelhante. Para o neurocientista Jean-Pierre Changeux, por exemplo, tanto na contemplação como no que se convencionou chamar prazer estético intervêm processos distintos que vão da a) pura sensação – apreensão da superfície colorida e das formas –; passando pela b) percepção – atividade de reconhecimento de formas e figuras –, que despertará, em ressonância com as imagens internas armazenadas pelo espectador (a memória), uma síntese significatica da obra (compreensão). (ibidem, p. 89) Assim, contemplação e prazer estético implicam em operações e faculdades distintas, recrutando, 11

A alma humana é espiritual e possui três capacidades ou potências: a) a capacidade de entender (a inteligência); b) a capacidade de querer (a vontade); e c) a capacidade de sentir (a sensibilidade). A sensibilidade é que nos permite sentir alegria, tristeza, raiva, simpatia: estes sentimentos da alma estão sempre ligados ao corpo; a inteligência e a vontade são as potências de nossa alma que nos tornam imagens de Deus, por isso são menos dependentes do corpo.

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neurologicamente, tanto estados de atividade do sistema límbico (o cérebro das emoções) como representações mais sintéticas do córtex frontal (relacionado ao raciocínio e à razão). A contemplação, portanto, seria orientada para capturar sentidos sígnicos que não são imanentes à obra12, mas que pressupõem a utilização de nosso acervo iconofotológico, de onde retiraríamos imagens que preencheriam as que vão se formando durante a leitura que fazemos por meio do λόγος (poemas ou romances, por exemplo), a fim de que possamos visualizar o todo proposto pelo autor. É evidente que esse todo será lido de forma subjetiva e nunca corresponderá àquilo que o mesmo concebera originalmente. Quem lê, despretensiosa e mecanicamente, um texto poético qualquer, sem nenhuma dedicação para apreendê-lo, poderá não ter aguçada sua memória fotográfica13, a menos que alguma imagem evocada punja-o e retire-o do texto – servindo-lhe de punctum – e leve-o a procurar seu correspondente em seu acervo iconofotológico; mas, para isso, a imagem precisa ser retirada do meio em que está inserida ou disposta, por meio da supressão daquelas que lhe são contíguas. (BERGSON, 1999) É nesse momento que ocorre a ativação da memória, a ressurreição de um passado que não existe mais, visto que já estava morto: “Desaparecidas a terra de origem e sua língua, é a narração que se torna ela própria uma terra que faz renascer” (GUIMARÃES, 1997, p. 150), assim “os últimos restos, remanescentes e cacos de algo que estava irrecuperavelmente perdido e não poderia mais ser recomposto por nenhum artifício do mundo”. (HANDKE, apud GUIMARÃES, p. 150) Tais cacos, portanto, podem ressurgir, mas de forma sempre individual, por meio da literatura, por meio de poemas fotográficos. Esses são aqueles cujas imagens têm trânsito em diversos tempos, ou seja, aparentemente não demonstram ser somente inerentes a um determinado período. No entanto, como há uma mudança do signo linguístico ao longo dos anos, aquilo que parecia óbvio num determinado momento, não será mais em outro; dessa forma, o que parecia diacronia, não passa de uma ilusão sincrônica.

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Poderíamos dizer também que a contemplação seria algo próximo ao conceito de leitura préiconográfica, seguindo o modelo de Panofsky; ou ainda, ao ler um poema e inteirar-se de suas imagens e conteúdo, algo parecido ao studium de Barthes. 13 Já que é por meio da fotografia quando se inauguram mundos imagéticos escondidos nos pequenos detalhes (Cf. Benjamim, 1991: 222) e que nos faz perceber as minúcias antes escondidas, agora reveladas.

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A leitura de poemas fotográficos, portanto, sempre é iconofotológica, visto que é efetuada a partir da sincronia, desde que as palavras/imagens empregadas pelo poeta sejam de livre acesso temporal, ou seja, perfeitamente perceptíveis em qualquer tempo, por isso os poemas que indicam catástrofes e guerras – inerentes ao todo humano – normalmente são fotográficos. A imagem fotográfica e a construção do modelo iconofotológico Há quase dois séculos, a fotografia revolucionou aquilo que se conhece por imagem. Ela está cada vez mais próxima e acessível a todos e este é seu poder: o de estar em todos os lugares, o de ser ubíquo. Oferece-se a todos, continuamente, para que dela se possa fazer emprego, como a um manancial quase inesgotável. Assim, a individualidade e a opção de escolha faz com que nossa iconofotologia seja sempre diferente da do outro, por mais que vivamos na mesma sociedade e que sejamos, igualmente,

influenciados

infinitude de outras

por

ela

e

pela

imagens que a cercam.

Cabem aqui, por exemplo, os conceitos de punctum e de studium de Barthes, para quem nem todas as fotografias têm a mesma recepção pelo eu individual, ou seja, dá-se atenção mais a algumas, enquanto, simplesmente, se passa de forma rápida por outras.

Fotografia 1 Hasteamento da bandeira vermelha no Reichtag, após a capitulação alemã,

Dependendo do conhecimento individual, bem como da familiaridade com determinado tema, algumas fotografias chamam a atenção em detrimento de outras. Algo as impele para que, ao se passar por elas – via revista, livro, internet –, tenha-se, pelo menos, de deter-se e contemplá-las. É pelo studium que se verá o olhar do leitor cruzar-se com o do fotógrafo, à semelhança da pintura albertiana, quando o pintor forçava-o a buscar o que ele pretendia. “Reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las, discutilas”. (BARTHES, 1984, p. 48)

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Isso quer dizer que, por meio do studium, leem-se, racionalmente, as fotografias que se tem diante de si, analisando-as e buscando encontrar intencionalidades nelas; não há demonstração de prazer ou de pesar, mas curiosidade. Além disso, são dominadas, na medida em que estão a serviço da ratio: podem-se descartá-las quando se quiser. O studium leva à reflexão: essa tomada foi ou não proposital? Essa fotografia é ou não uma montagem? Algo parecido quando se tem, diante dos olhos, uma cena como a fotografia 1, quando se vê a tomada de Berlim pelos soviéticos que hasteiam a bandeira vermelha sobre o Reichstag. Em seu outro conceito, o punctum, Barthes diz: “não sou eu que vou buscá-lo, é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar”. (p. 46) Será o punctum que forçará a reterem-se determinadas imagens em detrimento de outras, visto que, ao sermos atingidos por elas, somos impelidos a permanecer mais tempo diante delas, analisando-as, encontrando a origem da seta que nos atingiu enquanto leitor. Isso, evidentemente, se deve a vários fatores de ordem sociocultural, ou seja, uma pessoa cuja família tem tradição religiosa islâmica, por exemplo, dificilmente se deixaria pungir por uma fotografia de uma missa católica celebrada pelo já debilitado Papa João Paulo II, quando muito se deixaria atrair pelo studium; o mesmo vale para um católico diante de uma fotografia do Muro das Lamentações, ou da Caaba: o efeito, enquanto punctum, seria (em tese) quase nulo. Assim, enquanto as imagens iconológicas, nos Seiscentos, serviam a artistas e a poetas como modelos epistemológicos acabados; hoje, são as imagens fotográficas, das quais se vale como repertório imagético completo. Vê-se que a sinonímia acabado x completo, diferencia-se por uma ser intransitiva, enquanto a outra é transitiva, ou seja, uma está encerrada em si mesma (o modelo iconológico); enquanto a outra, encontra-se aberta (modelo iconofotológico). No texto prosaico, por exemplo, o narrador é o sujeito das imagens: ele é o mediador entre elas e a significação que quer dar. (Cf.: Guimarães, 1997, p. 78) Poderse-ía, também, transferir essa autoridade para o leitor visto que este reordenará as imagens propostas pelo autor, a partir de seu próprio mundo. No entanto, se o narrador/eu lírico apresentar algo para aquilo que não se está preparado, ou que está fora de seu campo de conhecimento, pouco valerá tal indução, visto que o leitor não será capaz de decodificar, conforme o enunciador queria. Iser, citando G. Poulet, diz que

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Embora eles [os livros] desenvolvam os pensamentos de outrem, o leitor se transforma durante a leitura em sujeito desses pensamentos, desse modo desaparece a cisão entre sujeito e objeto, cisão tão importante para o conhecimento e a percepção geral. (ISER, 1999, p. 85)

No entanto, quando isso se dá, ou seja, quando a fusão sujeito x objeto é rompida, é que se permitem as experiências extrapessoais na leitura textual, quando a memória do leitor entra em ação, e seu acervo iconofotológico permeará sua leitura, principalmente de textos não contemporâneos. Verifica-se esse fato de forma clara em um poema, cujo autor está muito distante do receptor, isso porque nos textos hodiernos ainda persistem muitos elementos de contato entre o escritor e o leitor. Dessa forma, para que o start da compreensão imagética seja acionado – não só para uma possível interpretação, mas também para que fosse possível, mesmo num primeiro momento, sua leitura – deve haver um ponto de contato, um elo perceptivo. Este está, exatamente, nas imagens, as mesmas que “ultrapassam a percepção por todos os lados” (BERGSON, 1999, p. 268), mas não aquelas que estão perdidas num passado distante, que fariam com que se tivesse prazer se se dispusesse de seu referencial, mas as que se tem hoje, na memória virtual formada por nosso acervo iconofotológico. Deve-se, hoje, valer-se das palavras de Foucault e de sua proposta de arqueologia em As palavras e as coisas, quando diz que se não houvesse na representação o obscuro poder de tornar novamente presente uma impressão passada, nenhuma jamais apareceria como semelhante a uma precedente ou dessemelhante dela, ou seja, sem imaginação não haveria semelhança entre as coisas. (FOUCAULT, 2007) Portanto, somente por meio de uma representação nova (não no sentido epistemológico que havia nos Seiscentos) seria possível uma leitura de textos e imagens barrocos, devido à inexistência de um referencial acessível, bem como de uma vontade para fazê-lo. Assim, verifica-se ser natural o avizinhar termos, mesmo que não correspondam àquilo que pretendia seu autor; a palavra pérolas, por exemplo, hoje ter de ser lida, simplesmente, como adorno, como joia, não como lágrimas, conforme era, muitas vezes, lida no Seiscentismo. Assim, representar-se-ia o que se lê por imagens que estejam a seu alcance – via imaginação –, para que se pudesse estabelecer outras relações, mesmo que incipientes com o mundo pesquisado, no caso, as artes poética e plástica de um momento específico, conhecido por Barroco. Para Bergson, a representação tem de abandonar algo de si para que possa representar algo. Assim pérola tem de deixar de ser um material orgânico duro,

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produzido por ostras, para que possa se tornar lágrima, como era lida nos seiscentos. Mas, mais do que isso, seria necessário suprimir de uma só vez o que a segue, o que a precede, e também o que a preenche, não observando mais do que sua crosta exterior, sua película superficial, isolando, se fosse possível seu invólucro. (p. 33) Não é necessário muito para que se efetive essa mudança conceitual, esse deslocamento do signo, principalmente por parte do poeta, cujo objetivo maior é, exatamente, jogar com o λόγος. Assim, mais do que isolar o objeto imagem, esse não deve destacar-se nem iluminar-se. Afinal, que é um poema senão “quadros feitos de palavras” (CARONE NETO, 1974, p. 71), os quais se abrem diante de nós para que sejam visualizados e nos causem prazer nos moldes da fotografia? Referências ARISTÓTELES. ΑΡΙΣΤΟΤΕΛΟΥΣ ΤΑ ΜΕΤΑ ΤΑ ΦΥΣΙΚΑ: Aristotelis Metaphysica: Metafísica de Aristóteles. Madrid, Gredos, 1987. ____________. Os pensadores: Aristóteles. São Paulo, Nova Fronteira, 1996. AUERBACH, Erich. Mímese: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo, Perspectiva, 2004. BACCEGA, M.A.. “Comunicação/ Educação: Linguagem e História”. In Anais do Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 28., 2005, Rio de Janeiro. São Paulo: Intercom, 2005. BACELAR, Jorge. ”Apontamentos sobrea história e o desenvolvimento da impressão”. In Biblioteca online de Ciências da Comunicação. Lisboa (?), 1999. BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo, Martins Fontes, 1999. BRANDÃO, Antônio Jackson S. Iconofotologia do Barroco alemão, 2008, Tese de doutorado em Literatura, USP, São Paulo. ______________. “Aspectos da linguagem fotográfica: do Renascimento à era digital”, in Travessias 5, Cascavel, 2009. _______________. “Palavra”. In 2008.

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PROCESSOS DISCURSIVOS DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES POLÍTICAS PELA MÍDIA Camila Cristina Branquinho Barbosa Tozzi [email protected] UNIFRAN Naiá Sadi Câmara [email protected]

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UNIFRAN RESUMO O presente trabalho tem como objetivo verificar como ocorre o processo de construção da identidade de um candidato a um cargo político, por meio da mídia. Para isso, fundamenta-se nos estudos da semiótica desenvolvida por Eric Landowisk que no livro Presenças do Outro, afirma que as identidades estabelecem-se nas relações intersubjetivas e pela força do uso naturalizando as formas e os significados que estão associados a essas identidades. Analisaremos a construção identitária do candidato Fernando Haddad (PT) realizada pela revista Carta Capital, durante o período da campanha eleitoral para prefeito da cidade de São Paulo em 2012. Acreditamos que a análise desses processos permitirá identificar o papel de destinador exercido pela mídia na constituição dos valores e referências que deveram ser seguidos pela sociedade. PALAVRAS-CHAVE: identidade, mídia, política, interação, referência. INTRODUÇÃO De dois em dois anos, nosso país passa pelo período de campanha eleitoral. Sendo eleições municipais ou presidenciais, os eleitores têm que escolher os políticos que irão governar o país, estado e/ou cidade. Esse processo organiza-se por meio de discursos e textos produzidos pelos diferentes atores envolvidos. Estabelecem-se estratégias de marketing nas campanhas eleitorais dos candidatos e todo o processo eleitoral é destacado por diferentes mídias: jornais, televisão, internet entre outras. De um lado, há o discurso dos candidatos que precisam apresentar-se aos eleitores e conquistar deles a adesão de seu perfil, e de outro, o discurso da mídia, sobre os candidatos. Considerando que o ato de enunciar é produtor de estratégias de persuasão que determinam efeitos de sentido diferentes, este artigo pretende apresentar os resultados obtidos em nossa pesquisa de mestrado que objetiva identificar as estratégias discursivas utilizadas pelo sujeito candidato a fim de obter a adesão do seu eleitorado e as estratégias discursivas utilizadas pela mídia na constituição/divulgação das identidades políticas. Nosso corpus constitui-se de textos publicados pela revista Carta Capital, durante o período da campanha das eleições para prefeito da cidade de São Paulo, em 2012. Selecionamos dois candidatos para a análise: Fernando Haddad do Partido dos Trabalhadores (PT) e José Serra do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).

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Partimos do pressuposto que a mídia exerce a função de Destinador social, uma vez que, por meio de seus textos, determinam e veiculam os valores, as formas de vida que organizam as sociedades. Neste artigo, apresentaremos as análises parciais dos textos publicados sobre o candidato Fernando Haddad. Vale ressaltar que o candidato, dia 28-10 foi eleito prefeito da cidade de São Paulo. Selecionamos a revista Carta Capital por se tratar de um periódico semanal, cuja linha eleitoral é predominantemente política. Foi fundada em agosto de 1994, por um jornalista também criador das revistas Quatro Rodas, Veja, Istoé e, do Jornal da Tarde. Publicada pela editora Confiança, inicia-se com uma tiragem quinzenal, tornandose semanal apenas em 1996. Atualmente possui uma tiragem de aproximadamente 75 mil exemplares. O córpus de nossa pesquisa conta com os textos veiculados entre julho e outubro do ano de 2012. Fundamentamo-nos nos pressupostos teóricos da teoria semiótica de base greimasiana, especialmente nas pesquisas realisadas por Eric Landowski sobre os processos de construção das identidades. 1 PROCESSO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA Segundo Landowski, a configuração das identidades, sejam elas individuais ou coletivas, a escolha dos critérios de referência e sua classificação, se estabelecem por diferentes estratégias, nas relações intersubjetivas, pois essas categorizações não surgem de uma necessidade objetiva, surgem da força do uso que “naturaliza os recortes e as significações a elas associadas” Landowski (2012, p. 32). Conforme afirmam Abriata e Câmara (2011), “os sujeitos se apresentam tanto para si mesmos quanto para os outros como pertencentes a sua categoria sócioprofissional, a seu meio étnico ou cultural, a seu grupo linguístico, entre outros”. As autoras afirmam que os critérios de referências com os quais os sujeitos se apresentam tanto para si quanto para os outros, tais como parte de determinada categoria sócioprofissional, meio cultural ou grupo linguístico se sobrepõem e, baseadas em Landowski concluem que esse processo acaba por determinar que alguns sujeitos passem a ser “um pouco mais” sujeitos que os outros, como se ao “cumularem marcas sociais convencionalmente consideradas mais positivas, eles encarnassem por si sós o

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tipo mais acabado do grupo considerado, ao passo que os outros não passariam de imagens falhas, ou mesmo, em negativo desse grupo. Segundo Landowski (2012, p. 32): [...] é no apoio de preconceitos dessa natureza, que tem por efeito valorizar sistematicamente a posse de certos atributos sociais, herdados ou adquiridos, que se baseia mais comumente a consciência e, mais ainda, o orgulho identitário dos grupos que, no âmbito de uma determinada sociedade, consideram-se como os que constituem o “Nós” de referência.

Nesta concepção, esses sujeitos seriam os “únicos detentores do direito de serem plenamente eles mesmos, por oposição aos indivíduos ou às comunidades particulares que suas diferenças assinalam [...]” (LANDOWSKI, 2012, p. 32). Em nosso trabalho, consideramos que, no processo de construção identitária realizado pelo enunciador político, este se apresenta como o sujeito “mais sujeito” que os outros por caracterizar-se com as formas de vida, com os valores considerados os mais positivos pelo grupo social- eleitores e à mídia cabe a função de aderir ou não a esses discursos, auxiliando ou atrapalhando as estratégias persuasivas dos candidatos. 2 IDENTIDADE POLÍTICA Landowski (2012, p. 91-92), a fim de justificar as mudanças que acontecem no processo de construção identitária do ator político, explica que ora o que qualifica positivamente o político são características como o pudor, a distância, a discrição, o “ser verdadeiro”, ora, “ao discurso da contenção” segue-se o do “relançar” a economia, como o do “todo liberal”. Assim, para o autor, as mudanças na política sejam de estilos, de programas, de identidades se justificam pela necessidade de ancoragem à conjuntura, aos problemas do momento. Landowski (2012, p. 92) afirma que: Em suma, dir-se-á, não é de modo algum uma questão de moda se, econômica, social ou politicamente, as circunstâncias impõem a inetrvalos regulares certas mudanças, justificando seja a volta ao poder de forças que foram precedentemente expulsas, seja a aparição de homens novos e de uma linguagem diferente, seja, simplesmente, a definição de uma outra política.

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Aderir a essa mudança, ao diferente, é, mais que assumir a esperança de um mundo-objeto melhor, mas é, sobretudo, estabelecer uma identidade, e escolher uma forma de vida, é “colocar-se em condição de desfrutar o tempo presente” Landowski (2012, p. 93). Considerarmos que o momento das eleições representam o momento da possível mudança, baseada na irrupção de rupturas em relação a uma continuidade proposta. Se, como afirma Landowski, “não se pode subestimar a força da inércia inerente aos funcionamentos sociais, sabendo que o uso congela os comportamentos e os julgamentos e os transforma em práticas estereotipadas (2012, p. 94), como já afirmamos, é por meio da mídia- instância semiótica evidentemente difusa e anônimaque os comportamentos políticos são julgados como aqueles que devem ou não ser seguidos. 3 ANÁLISE DOS TEXTOS Após reflexão teórica, analisaremos algumas reportagens veiculadas na já referida mídia. Ao apreendermos as estratégias utilizadas pela revista Carta Capital no processo de construção identitária do ator Fernando Haddad, identificaremos as formas de vida associadas a esse sujeito, no papel temático de político, candidato a uma cargo e as escolhas axiológicas que neles se manifestam. A primeira reportagem analisada, veiculada no mês de abril de 2012, inicia-se mostrando traços valorizados positivamente pelo grupo social do candidato Fernando Haddad (PT). “O ex-ministro Fernando Haddad está mais longilíneo. E mais confiante.” Segundo Landowski (2012), apresenta-se um papel de sujeito de estado patemizado pela confiança, portanto, seguro enquanto sujeito do fazer, característica figurativizada pelo adjetivo “longilíneo”. Figura que conforme definição do dicionário (de forma longa, afilada e delgada), agrega força, altivez, traços culturalmente axiologizados como eufóricos para a composição do papel temático de líder. Após as exaltações dessas características, a reportagem percorre um caminho em que Haddad é colocado ao lado do ex presidente Luis Inácio da Silva (Lula), para que sua imagem seja associada à daquele, criando assim, uma imagem positiva do candidato. No sábado 14, durante um evento em São Bernardo do Campo, apareceu pela primeira vez ao lado de Lula e Marta Suplicy, fiadores

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de sua campanha (ainda que a senadora continue a não demonstrar empenho e entusiasmo. E tem intensificado os contatos com os eleitores. Seu principal alvo é a qualidade do transporte público (CARTA CAPITAL, abril, n. 694).

Em junho (edição n. 703), em uma de suas edições, há uma reportagem que diz: A eleição será em outubro e, além disso, esse resultado mostra Serra empacado há três meses e, por outro lado, dá sinais de fôlego eleitoral de Haddad, até então equiparado a um “poste”. O porcentual dele mais que duplicou nesse período. O “poste”, como representação depreciativa de candidato novato, sem experiência, contraria palpites eleitorais e, mais uma vez, mostra que se move. Talvez seja conveniente aposentar a imagem desacreditada.

Neste trecho, nota-se que a revista posiciona-se de forma contrária ao papel actancial estereotipado atribuído ao candidato Haddad por meio de figura “poste”, que se configura o papel actancial de sujeito de não poder fazer, afirmando que Serra é quem, naquele momento do processo é que se apresenta com os traços semânticos de “poste”, uma vez que encontra-se “empacado”. Segundo a revista Carta Capital o ““poste”, como representação depreciativa de candidato novato, sem experiência, como aquele que, contraria palpites eleitorais, mostra mais uma vez que se move”, devesse apagar a imagem desacreditada do candidato Haddad. A revista coloca-se em uma posição de favoritismo ao candidato. Em nenhum momento, Carta Capital apoiou o termo usado de forma depreciativa, mostrando assim, seu ponto de vista sobre o ocorrido. Na mesma edição (junho) do exemplo anterior, encontramos outra reportagem sobre o candidato. Nesse texto há uma foto. Se uma imagem vale mesmo por mil palavras, a fotografia em que um Lula desconfortável e um Fernando Haddad deslocado aparecem na companhia de um Paulo Maluf triunfante renderia um dicionário sobre os equívocos políticos de um gesto (CARTA CAPITAL, junho, n. 703).

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Essa imagem traz Lula, Fernando Haddad e Paulo Maluf. Após lermos o trecho inicial da reportagem, foi possível percebermos a posição que a revista coloca sobre esse retrato. Todo o desconforto trazido pela imagem, como a própria mídia relata, deve-se ao fato, de que Paulo Maluf é considerado um político corrupto que faz qualquer coisa para obter vantagens. Desta forma, a revista, apesar de demonstrar que, no processo eleitoral, os sujeitos candidatos estabelecem quaisquer coligações, mesmo que com a oposiçãoinstância semiótica que desempenharia o papel de anti-sujeito, Haddad encontra-se em estado, marca sua posição

favorável ao candidato

apresentando o sujeito

“desconfortável” e “deslocado”. A última edição da revista analisada, do dia 31 de outubro de 2012, logo após o segundo turno, em que Haddad foi eleito prefeito da cidade de São Paulo, cria mais construções positivas da identidade do candidato do PT, por meio do trecho a seguir: Neste ano, o PT registrou crescimento expressivo no fim do primeiro turno em São Paulo, Campinas, Fortaleza e Salvador. Prova que o julgamento do chamado mensalão no Supremo Tribunal Federal teve pouco ou nenhum efeito na escolha do eleitorado, ao contrário do que esperava a oposição. Na capital paulista, Fernando Haddad (PT) começou a campanha com 3% dos votos e só teve a confirmação da sua ida ao segundo turno no momento da apuração. Agora, tudo indica, caminha para uma folgada vitória no domingo 28 (CARTA CAPITAL, outubro, n.721).

Ao dizer que o mensalão não influenciou o eleitorado, a revista mais uma vez, mostra o lado positivo do partido e do candidato, agora eleito. Isso porque, o mensalão que é considerado o maior escândalo político do país, principalmente pela oposição, não teve influência negativa. Os eleitores elegeram Haddad prefeito da capital paulista,

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mesmo o país acompanhando todo o escândalo, em que governantes do Partido dos Trabalhadores (PT), foram considerados culpados por toda corrupção. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme informamos na introdução deste artigo, as reflexões teóricas realizadas e as análises aqui apresentadas constituem parte de nossa dissertação de mestrado. Acreditamos que os exemplos dos textos publicados pela revista Carta Capital comprovam nossa hipótese inicial que a mídia exerce o papel de destinador social, atribuindo valores eufóricos ou disfóricos às identidades dos atores políticos, exercendo, assim um fazer persuasivo significativo sobre os sujeitos eleitores, leitores dessas mídias, ou seja, as instâncias enunciantes da mídia jornalística brasileira ocupam a posição de grupo de referência. Ficou evidente que a mídia, no caso a revista Carta Capital, constrói positivamente a imagem do então candidato pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Pretendemos realizar uma análise dos textos sobre o candidato Serra nesta mesma mídia a fim de comprovarmos nosso ponto de vista. O passo seguinte será comparar os processos de construção identitária realizados pelos candidatos e compará-los ao discurso produzido pela mídia. Referências CAMARA, Naia Sadi; Vera Lucia Rodela Abriata. A construção do ator Dilma Roussef em textos jornalísticos. In: XVI Congreso Internacional de la ALFAL, 2011, Alcalá de Henares. Anais do XVI Congreso internacional de la ALFAL. Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, 2011. v. 1. p. 1-9. CAMARA, Naia Sadi. Mocinhos e bandidos reconfigurados: formas de vida nos desenhos animados. DISCURSOS E LINGUAGENS: OBJETOS DE ANÁLISE E PERSPECTIVAS TEÓRICAS. 1. ed. Franca: EDUNIFRAN, 2011, v. 6, p. 1-12. DATAFOLHA: Haddad 16% X Serra 12%. Carta Capital, São Paulo, n. 703, p. 16, junho. 2012. LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. Tradução Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2012. LANDOWSKI, Eric. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992.

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LIRIO, Sérgio. “Quero humanizar São Paulo”. Carta Capital, São Paulo, n. 694, p. 5255, abril. 2012. LOCATELLI, Piero. MARTINS, Rodrigo. A imagem fala por si. Carta Capital, São Paulo, n. 703, p. 24-29, junho. 2012. LOCATELLI, Piero. MARTINS, Rodrigo. Nada de novo no horizonte. Carta Capital, São Paulo, n. 721, p. 26-27, out. 2012.

A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO TEXTO: RELAÇOES INTERSEMIÓTICAS Camila de Araújo Beraldo Ludovice [email protected] UNIFRAN Juliana Spirlandeli Batista [email protected] UNESP/FCLAr - UNIFRAN RESUMO Sabe-se que toda publicidade é constituída por mensagens que, de variadas formas, persuadem o virtual consumidor, variando segundo as escolhas do emissor, o estilo da publicação e o objeto sobre o qual a campanha incide. Do ponto de vista da relação entre a mensagem e destinatário, os textos publicitários apresentam diferentes características, todas dependentes, outrossim, das condições de leitura dos textos. A partir dessas reflexões, a presente pesquisa busca investigar as manifestações linguísticas presentes no discurso publicitário contido em textos extraídos essencialmente de revistas dirigidas ao público masculino, que descrevem objetosvalores deste referido público, revelam o espaço em que circulam, o tempo em que se passam suas ações, bem como as emoções que experimentam. Centrando-se no pressuposto da teoria semiótica greimasiana de que o texto constrói seu enunciatário, será possível averiguar, como a partir da figurativização do homem nas publicidades, pode-se chegar às formas de vida do homem na atualidade. PALAVRAS-CHAVE: semiótica greimasiana; discurso publicitário; argumentação; modalização; público masculino. 1. O gênero publicitário e a manipulação A presente pesquisa tem como proposta analisar uma peça publicitária contida em uma revista dirigida essencialmente ao público masculino, que descreve objetos-valores deste referido público, revela o espaço em que esses gêneros textuais circulam, bem como o tempo em que se passam suas ações e as emoções que experimentam. Sabe-se que a atividade publicitária representa um imenso poder capaz de condicionar a existência de todos os meios de comunicação de massa, além de ser um dos principais 649

motores da economia e, também, o mais difundido e disseminado dos canais de comunicação. Além disso, a publicidade impõe ao mundo, pela força das idéias, não apenas produtos e mercadorias, mas também palavras, pensamentos e gostos. Enfim, a publicidade é um recurso estético e ideológico de onde se pode extrair a forma de olhar o mundo, de descobrir a beleza, de diversão e, finalmente, de sonhos. Por meio de sua evolução e difusão, a publicidade, nos dias atuais, supera a arte e até a moda, não só em riqueza de meios, mas, sobretudo em velocidade, pois o tempo de vida de uma campanha publicitária é efêmero, porém intenso. Por semanas, a mesma mensagem é reproduzida, milhares de vezes, nos intervalos dos programas de televisão, aparece em cada parede, enche as páginas dos jornais, sendo quase impossível ignorá-la, já que está presente em toda parte, nos mais diversos suportes de comunicação e em qualquer ocasião da vida pública. Então, pela intensidade, a publicidade se desgasta e satura os espectadores, fazendo com que mais uma vez os publicitários criem algo novo e assim sucessivamente. Em linhas gerais, o discurso publicitário distingue-se dos demais discursos que perpassam a vida social pelo seu caráter estratégico, ou seja, pela utilização de imagens, textos escritos e de diversos materiais textuais. Conforme Landowski (2002:127) se a publicidade comercial, ou seja, a publicidade dita “de marca” é eficiente é porque ela é pródiga em visões, ou seja, em imagens e sensações que são, ao mesmo tempo, provocações. De acordo com Landowski (2002:126) uma imagem é por si mesma, presença, independentemente das concepções ou dos preconceitos presentes no seu modo de construção, bem como daquilo que ela representa. Landowski (2002:127) ainda afirma que a publicidade chegou a ponto de renunciar ao desenvolvimento de qualquer tipo de discurso explicitamente persuasivo, em relação a um grande número de produtos, tendo em vista uma estratégia que consiste em povoar o universo humano de simulacros figurativos, assim como instalar um mundo imaginário e pregnante ao redor das pessoas. Ao considerar as composições que a boa imprensa tem a oferecer, pelo prazer dos olhos, no aconchego do lar e que são reencontradas em cada esquina, têm, de acordo com Landowski (2002:127), cada qual por si mesma, uma realidade visual, uma consistência e uma organização; em outras palavras, certas qualidades estéticas próprias. A atividade publicitária age de maneira diferente em relação ao seu objeto, isto é, de maneira indireta e não por meio de uma relação pessoal e direta, graças ao seu sentido, criando um espaço e um tempo artificiais, narrativos, propondo uma imagem 650

fiel da realidade, fornecendo informações sobre o produto, bem como contando histórias, ou, simplesmente, criando impressões sensoriais ou psicológicas sobre o seu valor. Assim, a publicidade necessita de um sistema de comunicação de massas suficientemente maduro, a fim de lhe garantir acesso a um grande número de potenciais consumidores, pois os textos publicitários estão presentes nos mais variados suportes e meios de comunicação, como televisão, cinema, jornais e revistas, espaços urbanos, rádios, dentre outros e é bastante comum encontrar a mesma publicidade nesses diferentes tipos de suporte e a transposição, entre eles, é também, bastante frequente na prática publicitária. Assim sendo, a publicidade, de acordo com Volli (2003:20), é “um tipo de discurso transversal em relação aos meios de comunicação em que se apóia, e com os quais entabula uma relação complexa”. Toda publicidade constitui-se por mensagens que, de variadas formas, persuadem o virtual consumidor, variando segundo as escolhas do enunciatário, o estilo da publicação e o objeto sobre o qual a campanha incide. Então, a maior parte das características da mensagem depende do meio utilizado, por exemplo, um anúncio de rádio e um breve texto sonoro são completamente diferentes de uma página publicitária de uma revista, onde predomina o aspecto visual. Do ponto de vista da relação entre a mensagem e o enunciatário, os textos publicitários apresentam diferentes características, todas dependentes, por assim dizer, das condições de leitura dos textos. Atualmente, a educação para as mídias é uma necessidade inquestionável na sociedade da comunicação e da informação, pois não se pode ignorar a mídia, e é de suma importância fazer uso de suas ferramentas para desenvolver o espírito crítico ante as mensagens veiculadas por diferentes códigos, isto é, voltar-se para uma semiótica sincrética, pois textos publicitários são sincréticos, ou seja, “acionam várias linguagens de manifestação”, afirmam Greimas e Courtés (1983:426) ou diferentes formas de expressão, como verbais, musicais, gestuais, etc. para produzir um único todo de sentido. É importante ressaltar que a primordial função da publicidade é, ou deveria ser, tornar pública, dar a conhecer a existência de certo produto ou mercadoria. Cabe a ela apontar os diferenciais, vantagens, utilidades e levar, por diferentes modalidades de manipulação, o consumidor até o ponto de venda. Assim, a publicidade revela seu fazerfazer, quando leva o potencial consumidor à crença de que o objeto modal para a conjunção dos valores de seu grupo está à sua disposição num ponto de venda próximo. Está ao seu alcance o fazer-ser. Assim, Greimas e Courtés (1983:269), caracterizam a 651

manipulação como uma ação do homem sobre outros homens, impelindo-os à execução de um dado programa, seja ele um fazer-ser ou um fazer-fazer. A manipulação sustenta-se, como afirmam Greimas e Courtés (1983:270), por uma estrutura contratual e ao mesmo tempo por uma estrutura modal. Trata-se, desse modo, de uma comunicação destinada a fazer-saber na qual o destinador-manipulador incita o destinatário-manipulado a uma posição escassa de liberdade a ponto de ser este obrigado a aceitar o contrato proposto. A manipulação joga com a persuasão, articulando o fazer persuasivo do destinador e o fazer interpretativo do destinatário, pois se situa sintagmaticamente entre o querer do destinador e a realização efetiva pelo destinatário-sujeito, do programa narrativo proposto pelo manipulador. Assim, o manipulador exerce seu fazer persuasivo apoiado na modalidade do poder, isto é, propõe ao manipulado objetos positivos, ou seja, valores culturais desejados por ele. Em outros casos persuade o enunciatário graças ao saber, fazendo com que ele saiba o que pensa de sua competência modal sob a forma de juízos positivos. Portanto, de acordo com Greimas e Courtés (1983:270), vê-se que a persuasão segundo o poder caracteriza a tentação, pois um objeto-valor positivo é proposto e, a persuasão segundo o saber, por sua vez, é própria da sedução, pois há a manifestação de um juízo positivo por parte do destinador. Diante do exposto, Greimas e Courtés (1983:271) afirmam que: A ação que o destinatário-manipulado realizará, após a manipulação pelo destinador, torna-se então para ele um simples programa narrativo de uso, sendo seu programa narrativo de base a conjunção com a honra (no caso de uma manipulação no plano do saber) ou com o objeto-valor dado (se a manipulação se apóia no poder). A manipulação inscreve-se, enquanto fazer-fazer, salientam Greimas e Courtés (1983:271), como um dos componentes essenciais do esquema narrativo canônico. O contrato que aí se registra subsume-se em um nível hierarquicamente superior pela estrutura da manipulação. Nesse caso, então, a relação entre o destinador e o destinatário não é de igualdade, mas de superioridade à inferioridade, considerando que a manipulação realizada pelo destinador exigirá a sanção do destinador-julgador, situando, desse modo, as duas operações na dimensão cognitiva, em oposição à performance do destinatário-sujeito realizada na dimensão pragmática. 2. As formas de vida, o belo gesto e a tipologia proposta por Erik Landowski No artigo intitulado “Le beau geste”, parte integrante da revista Recherches sémiothiques. Semiotic Inquiry, apresentada por Jacques Fontanille, Greimas (1993) 652

toma emprestado do grande filósofo Wittgenstein a expressão “forma de vida” a fim de aumentar e redefinir a noção de “estilo de vida”. Ao caracterizar as formas de vida como um inventário cultural aberto, Greimas (1993) explica que elas estão aliadas a um comportamento esquematizável mais profundo e intenso, que não representa o estilo individual, mas uma filosofia de vida de determinado grupo e, cuja ruptura provoca uma mudança radical de forma de vida, como por exemplo o cristianismo, a revolta, a glória, dentre outras. Assim, nas palavras de Greimas (1993:32,33): Isso quer dizer que o indivíduo se inscreve doravante em uma perspectiva de uma nova “ideologia”, de uma “concepção da vida”, de uma “forma”, que é ao mesmo tempo uma filosofia da vida, uma atitude do sujeito e um comportamento esquematizável (e então, diferente dos “estilos de vida” de superfície que, tais como os concebe a sociologia, estariam mais próximos dos estereótipos).

A fim de interpretar essa passagem dos comportamentos individuais às formas de vida, Greimas (1993) nos sugere o espetáculo intersubjetivo do observador, que se trata de um programa narrativo que se desenvolve, que pode ser especificado, e cuja análise libera a ideologia. Além disso, a “forma de vida” se define, para o observador, ao mesmo tempo, por sua recorrência nos comportamentos e no projeto de vida do sujeito, por sua permanência, como por exemplo a paixão, que oferece uma identidade não ao indivíduo como tal, mas à sua pessoa, e pela deformação coerente que ela induz a todos os níveis do percurso de individuação: nível sensível e tensivo, nível passional, nível axiológico, nível discursivo e aspectual. Em sentido amplo, Greimas (1993) ainda salienta que o estudo das “formas de vida” poderia constituir uma contribuição, de um lado à tipologia dos discursos, e de outro, à semiótica das culturas. Do lado da tipologia dos discursos, ela definiria os tipos de “objetos semióticos”, já do lado da semiótica das culturas, ela teria participação, mas, ao invés de se apoiar sobre parâmetros específicos de um nível do percurso gerativo e da significação, faria, por exemplo, a tipologia dos gêneros ou o estudo dos motivos folclóricos, demonstrando uma pluralidade de parâmetros, compreendidos em todos os níveis do percurso gerativo, cujo funcionamento seria reconhecido como coerente e globalmente recorrente. Nesse mesmo texto, Greimas (1993) define o “belo gesto” como uma seqüência de comportamentos particularmente enigmática para o semioticista, conclusiva e inaugural ao mesmo tempo, signo de uma moral, mas também de um cuidado estético carregado de sentido. De fato, desde a primeira abordagem do belo gesto, em sua forma 653

e seus efeitos, como um objeto de análise autônomo, encontra-se rapidamente a questão dos limites e da pertinência: cinismo e generosidade, glória e revolta, por exemplo. Assim, o belo gesto, participando de várias atitudes ou estilos de vida opostos, é, em todos os casos um operador de transformação ética. Greimas (1993) nos incita a refletir sobre o “belo gesto” a partir dos laços que unem a dimensão estética e a dimensão ética, partindo de um pequeno número de observações intuitivas. Assim, o belo gesto é um tipo de afirmação do indivíduo face ao coletivo, e de uma moral pessoal em face de uma moral social. Ele comporta uma parte de teatralização da vida cotidiana, instalando um espetáculo intersubjetivo que se parece muito com as sequências passionais, mas num plano em que o observador seria mais intensamente solicitado. O belo gesto entremeia, de maneira exemplar a estética e a ética, rearticulando e reinventando a função semiótica, isto é, a relação entre o plano da expressão e o plano de conteúdo. Sabe-se, segundo Greimas (1993), que o belo gesto participa de certas “filosofias de vida” e de “formas de vida” muito estilizadas como o dandismo e o espírito cavalheiresco, dentre outros. Assim, é necessário identificar o modo como o ato se transforma em gesto e, como esse gesto se torna belo. Greimas (1993) nos apresenta algumas condições: da mesma maneira que a conversão de uma ação em acontecimento supõe um observador, a conversão de um ato em gesto também o requer; o gesto como o acontecimento é compreendido na totalidade do processo e não somente o resultado ou a transformação que ele produz. Assim sendo, o gesto implica uma figurativização precisa do processo e de suas etapas. Do ponto de vista narrativo, o enunciado detalhado das fases sucessivas, sem modalização particular, é suficiente para suscitar o efeito de sentido do “gesto” ou do “belo gesto”; com a presença operatória do espectador e a figurativização das fases do gesto, percebe-se que o que transforma o ato em gesto é o caráter perceptível de sua construção em processo, ou seja, a existência de um plano de expressão autônomo, próprio do desdobramento da sequência narrativa e moral. Greimas (1993) ainda afirma que o belo gesto é uma invenção por negação, negação de uma moral social fundada na troca, negação de um sistema de valores cuja valência é função das necessidades da coletividade, negação de programas narrativos cujo desdobramento em processos é dessemantizado e dessensibilizado, invenção de uma ética individual não reproduzível, de um universo de valores aberto sobre múltiplos possíveis ainda indeterminados, invenção de formas de vida como o dandismo, o cinismo, a revolta, etc, que se instalam, após a negação fundada, graças a uma nova 654

afirmação que imporá suas determinações. A partir deste ponto de vista, o belo gesto é sem duvida o melhor exemplo, o protótipo, de uma articulação da estética sobre a ética pela qual o valor de uma conduta torna-se possível por meio de uma maneira de ser ou fazer. Tendo em vista os pressupostos acima citados, é válido ressaltar que o discurso publicitário leva à identificação de algumas figuras típicas do homem moderno, conforme tipologia proposta por Landowski (2002:39) que se caracterizam como o homem do mundo, por seu senso de adequação, o esnobe, que apenas tem por aspiração juntar-se à elite social, o dândi, que é disposto a tudo para se disjuntar da sociedade, do camaleão, cuja habilidade consiste em se fazer passar por alguém que já pertence ao mesmo mundo e, enfim, o urso, que é caracterizado essencialmente pela sua solidão, loucura ou genialidade e que, não se desvia de sua trajetória, uma vez traçado seu caminho. Partindo do pressuposto da teoria semiótica greimasiana de que o texto constrói seu enunciatário, será possível averiguar como a partir da figurativização do homem, na publicidade, pode-se chegar às formas de vida do homem na atualidade. A fim de melhor esclarecer essa tipologia, é preciso ressaltar, segundo Landowski (1993), que o esnobe vê na silhueta do gentleman um modelo a seguir e aspira apenas se unir à elite que ele encarna, mas cujos esforços para chegar a ela são extremamente visívieis para não trair sua verdadeira classe social. O dândi, por sua vez, pronto para tudo, inclusive para se demarcar e se separar da mesma sociedade; para o camaleão, o saber-fazer consiste em se fazer tomar por alguém que já pertence ao mesmo mundo embora, na realidade, ele não esteja jamais separado do universo de ele provém e onde, secretamente, ele sabe ou imagina poder um dia retornar. Enfim, o urso, este solitário, este louco ou este gênio, a quem ninguém mais pode indicar o caminho a seguir e que, uma vez a caminho, não se desvia de sua própria trajetória, correndo o risco de romper a maioria dos laços que o unem à esfera a qual ele pertence. Para bem completar essa breve explanação acerca dessa tipologia, é preciso acrescentar que as manobras do esnobe e aquelas do dândi têm por força comum uma vontade de ascender que pressupõe a visão de um espaço social organizado como uma sobreposição de níveis desigualmente valorizados, enquanto que os comportamentos do camaleão e do urso implicam mais a justaposição em um mesmo plano e a comparação de mundos, de formas de vida e, em geral, de morfologias heterogêneas entre elas bem como com relação a uma forma de referência. Dessa forma, o esnobe é um migrante social que, saindo de baixo deve somente se elevar. Mas ele não apenas se elevará até a 655

altura da média, isto é, até ao nível a partir do qual o dândi, assegurando a sequência da operação, seguirá, por sua vez, a ascensão, pois para ele, por orgulho ou vaidade, é preciso se elevar acima do conjunto comum, acima do “belo mundo”, assegurando, dessa maneira, que cada qual permaneça no seu lugar: nem muito abaixo, nem, sobretudo, muito acima. 3. A peça publicitária A peça publicitária selecionada, extraída da revista Maxim Brasil, distribuída mensalmente, é uma publicação da Editora Escala, ano 1, n.1, de agosto de 2008. O texto sincrético é um anúncio de uma página, colorido, e apresenta, no plano visual, ao centro do anúncio, uma jovem mulher sentada no chão, colhendo trigo a fim de compor seu buquê de flores, que se encontra ao seu lado, dentro de uma cesta de vime. O trigo, conforme Chevalier e Gheerbrant, (1993), surge como um presente dos deuses, ligado ao dom da vida e, portanto, alimento essencial e primordial. Essa jovem mulher, com seu vestido cinza, um bolero branco com acabamentos em renda, avental e sapatilhas, com tranças nos cabelos e maquiagem sutil causa a impressão de ser uma jovem casta, ou como no dito popular, “a santinha”. Entretanto, em meio a toda essa rede de figuras que se disseminam para construir o sentido de “santidade” e castidade da jovem mulher, aparece sutilmente em sua coxa uma cinta liga vermelha, confirmando o efeito de sentido de ousadia do produto anunciado, o desodorante AXE VICE, pois o vermelho intenso é a cor da provocação, da paixão, enfim, da sedução. Nas palavras de Chevalier e Gheerbrant (1993) é a cor das embalagens publicitárias e, também a cor da proibição lançada sobre as pulsões sexuais, a libido, os instintos passionais. Na parte superior direita do texto publicitário, encontra-se o objeto detentor do poder de “deixar ousada até a mais santinha”, que é o desodorante AXE VICE, apresentado em duas versões spray e aerossol. Assim, o enunciatário, ao utilizar o produto anunciado, poderá despertar essa ousadia até na “mais santinha” das mulheres. Interessante notar que o espaço do anúncio publicitário é bucólico, pastoril, visto que a jovem mulher se encontra no campo fazendo a colheita do trigo. Esse espaço bucólico corrobora a ingenuidade dos costumes da jovem mulher, bem como seu ideal de vida tranquilo, em contato com a natureza. Referindo-se à natureza, no alto do anúncio, encontra-se um céu azul, típico de outono, sem nuvens, e conforme Chevalier e Gheerbrant, (1993), correspondendo à estação das colheitas, ocasião em que a evolução 656

primaveril já se realizou, e vai dar lugar à involução outonal. Ainda de acordo com os referidos autores no seu Dicionário de Símbolos, a cor azul despoja a terra de seu manto de verdura, desnuda-a e desseca-a, assim como a ousada “santinha” poderá se desnudar para o enunciatário que utilizar o desodorante AXE VICE. Ainda no que tange à natureza, ao centro do anúncio, bem ao fundo, encontram-se diversas árvores, algumas repletas de folhas, outras já quase desnudas delas, dando lugar aos frutos. Nas palavras de Chevalier e Gheerbrant (1993) o tronco erguido em direção ao céu, símbolo de força e poder eminentemente solar, corresponde ao Falo, modelo original do pai, da figura masculina. Dessa forma, constata-se o símbolo da presença masculina no anúncio publicitário, visto que esse enunciatário masculino não se encontra presente no texto publicitário, apesar de ser um produto especialmente desenvolvido para o público masculino. Enfim vale ressaltar que o campo em que se situa o anúncio publicitário, é um espaço Romântico, onde a mulher, anjo ou prostituta, é sempre idealizada. Assim, o texto sincrético evidencia esse conflito entre a mulher “anjo”, idealizada, musa inspiradora, retratada, essencialmente, pela figura das tranças nos cabelos, símbolo da pureza e fruto do desejo masculino e, a mulher “prostituta”, a mulher dos desejos carnais, a mulher sensual, refratada pela cinta liga vermelha postada na coxa da jovem mulher, que ilustra o anúncio publicitário. Ao considerar a tipologia das formas de vida do masculino proposta por Erik Landowski (2002), o texto sincrético, palco da análise em questão, desperta, de maneira mais evidente, as figuras-modelo do esnobe e do dândi, já que eles não vivem senão em função do “Outro”, demonstrando a característica de serem eminentemente “humanos”. Assim, para eles é a formação do parecer que precede o ser e que o constitui. A relação com o “Outro” prima sobre a relação consigo mesmo e é um querer-parecer, cuja definição faz referência a um contexto social preciso, que os determina de um lado a outro. Com base nesses pressupostos, é o esnobe e o dândi que tornariam “ousada até a mais santinha” das mulheres, visto que o dândi toma o cuidado necessário para se tornar inconfundível no seu meio, usufruindo de qualidades específicas para alcançar lugar de distinção no meio a que pertence. O esnobe, por sua vez, não dispõe, de início, dos mesmos atributos do dândi, ou seja, aqueles requeridos para sua integração ao meio ao qual ele visa subir. No entanto, possui outros suficientes para excluí-lo, mas dos quais ele procura se desfazer, pois sua verdadeira aspiração é de um dia chegar naquela

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posição de “homem do mundo”, tornando-se, portanto, conjunto à elite social e deixando “ousada até a mais santinha” das mulheres. 4. Considerações finais Ao postular que a expectativa indissociável de todo trabalho de pesquisa enquanto busca de sentido pressupõe, no mínimo, a aceitação, ou seja, a espera de rupturas capazes de modificar a forma do objeto, mesmo do ponto de vista do observador, e assim, ultrapassar evidências ligadas à normalidade do “parecer das coisas”, Erik Landowski (1995) afirma que essa atitude não envolve uma postura meramente passiva. Pelo contrário, afirma o semioticista que se não houver suficiente intervenção do acaso para produzir os acontecimentos, cabe ao sujeito provocá-las por iniciativa própria. Landowski (1995) refere-se à Greimas aludindo à posição, ou seja, ao fazer do sujeito como o beau geste, isto é, o “belo gesto”. Nesse caso o sujeito atua, ou ao menos enuncia, ao invés de restringir-se a aderir às formas significantes que o encontro com a disposição natural das figuras do mundo lhe impõe. Em outras palavras, esse sujeito entra agora em comunicação com outros sujeitos, “provocando a aparição do improvável sob a forma de miúdos acidentes na cena da sociabilidade quotidiana”, conforme ressalta Landowski, (1995:246). Desse modo, o jogo do sujeito consiste em tentar restituir a presença de algum sentido onde a observação das regras definidas pelo uso social apenas permite relatar comportamentos dessemantizados, articulando dispositivos figurativos inéditos e, assim transformando o sujeito enunciador em “reinventor da função semiótica”, de acordo com Landowski (1995:246). Ainda conforme Landowski (1995) o reconhecimento da beleza como efeito de sentido perceptível, seja no plano figurativo propriamente dito, seja no plano moral, supõe qualquer outro tipo de dispositivo susceptível de provocar a admiração, a presença de algum observador social, que seja competente para pronunciar-se sobre a significação e o valor das performances cumpridas diante dele. Nesse ponto de vista, afirma Landowski (1995) que não se deve excluir a possibilidade do beau geste ser, antes de espetacular e provocativo, ser especular, transparente e probatório. Assim, a fim de cumpri-lo, o sujeito deverá dirigir-se a si mesmo em primeiro lugar, pois aquilo que ele visa, isto é, o que ele quer e o que ele organiza no plano figurativo da discursividade é, sobretudo, a formulação de uma resposta pessoal que não lhe permita desconjuntar-se de si mesmo, ou seja, de realizar seu ser apesar do parecer social e, se preciso, contra ele. Enfim, Landowski (1995) 658

postula que ao se desdobrar em dois atores quase autônomos, um lidando com o contexto social, o outro, na posição de espectador, o sujeito assombra-se de si mesmo antes de surpreender seu público a fim de descobrir por meio da leitura da sua própria ação, a natureza dos códigos que, além das convenções admitidas pela sociedade, regem seu fazer. Isso posto, centrando-se na breve análise desenvolvida durante essa pesquisa, observa-se que a busca pelo sentido no texto selecionado, que se refere ao desodorante AXE VICE, explora de maneira mais intensa a questão do sensível, visto que recorre mais ao plano visual, mostrando a figura feminina tida como a mulher anjo, a idealizada, a musa, apelando mais para a emoção, isto é, para o sensível. Diante do exposto, vale ressaltar que o objeto-valor, ou seja, a busca pela boa aparência está presente no texto em questão. Entretanto, o público masculino, informado e esclarecido, não deseja ser convencido apenas pelo plano visual sensível, mas deseja sim ser convencido por meio de argumentos racionais, no plano verbal, ou seja, são necessários também argumentos da ordem do inteligível. Em outras palavras, são necessários argumentos da ordem do saber científico e tecnológico a fim de que esse referido público confie na eficiência dos produtos e assim, os adquira, fazendo com que a publicidade, mesmo em diferentes textos, atinja seu alvo, que é a venda dos produtos. Referências CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. FONTANILLE, J. Apresentação. Recherches sémiotiques. Semiotic inquiry. Montreal, v.13, p. 5-20, 1993. GREIMAS, A. J. COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Tradução de Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983. ______. Le beau geste. Recherches sémiotiques. Semiotic inquiry. Montreal, v.13, p.2135, 1993. LANDOWSKI, E. O semioticista e seu duplo. In: OLIVEIRA, A. C.: LANDOWSKI, E. (orgs.). Do inteligível ao sensível. São Paulo: EDUC, 1995. ______. Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva, 2002. MAXIM BRASIL. São Paulo: Escala, ano 1, n. 1, de agosto de 2008.

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VOLLI, U. Semiótica da publicidade: a criação do texto publicitário. Lisboa: Edições 70 Ltd., 2003.

POÉTICA E FIGURATIVIDADE: SEMIÓTICA APLICADA A TEXTOS CLÁSSICOS LATINOS III ÉGLOGA DE VIRGÍLIO Caroline Talge Arantes (FAPESP) [email protected] UNESP/FCLAr Márcio Thamos (orientador) UNESP/FCLAr O trabalho de Iniciação Científica procura adentrar a estrutura semiótica da III Égloga, texto latino de autoria de Públio Virgílio Maro, considerado o maior poeta de língua latina e natural de Cremona (70-19 a.C.). Dentre as obras que chegaram até nós, podemos destacar: a Eneida; as Geórgicas; e as Bucólicas, obra constituída por dez poemas pastoris e cujo córpus (III Égloga) se insere. Analisa-se, principalmente, o revestimento figurativo do discurso, sendo depreendidos os temas (abstratos e generalizantes) subjacentes às figuras semióticas (concretas e particularizantes) que o compõem. Para tanto, faz-se necessária a aplicação do instrumental teórico fornecido pela Linguística, a Poética, a Semiótica Literária Greimasiana, enfim, a Estilística em sentido amplo. Além disso, tratando-se de um texto em língua latina, a compreensão integral do poema se deu a partir da análise morfossintática sentença a sentença. Procurou-se depreender o valor de cada elemento da oração, enfatizando-se as oposições entre os casos, já que são elas as responsáveis pela produção de sentido na frase latina. Tal análise morfossintática se fez, portanto, chave para o entendimento sistemático do texto latino e ferramenta para a elaboração da tradução servil que funciona como referência para a leitura do texto original, sem que haja pretensão de expressar em português o equivalente à poeticidade percebida em latim. Essa tradução vem seguida de notas que trazem explicações genéricas acerca de dados de uma cultura tão distante temporalmente à nossa e, assim, necessárias a uma compreensão mais integral do poema.

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Só então se faz possível a investigação de sua estrutura semiótica a fim de descrever-lhe como sistema de significação, pondo em destaque os recursos da figuratividade poética então reconhecíveis. Em todo o processo de investigação semiótica do texto, é importante ter em mente que se trata sempre da análise de uma obra de autor legítimo, isto é, de um falante natural do latim, que teve esse idioma como sua língua materna, e não apenas como um código erudito e anacrônico, artificialmente assimilado. Exemplo de análise apresentado (versos 28 e 29): Damoetas Vis ergo inter experiamur? [...]

nos

quid

possit

uterque

uicissim

(VIRGILE, 2005, p.50)

[tradução literal]: Recorramos a alguém para saber qual dentre nós, um e outro, cada um por vez, é superior em valor. [...] A fala destacada é proferida pelo pastor Dametas, e revela o propósito do texto: trata-se de uma disputa poética travada entre ele e o outro pastor de nome Menalcas, tendo por juiz Palêmon. O trecho destacado traz o momento em que Dametas propõe a Menalcas uma aposta e, ao dizer “um e outro, cada um por vez” já antecipa se tratar de um duelo alternado, ou seja, do canto de um pastor precedido da resposta dada no canto do outro pastor ou, ainda, como coloca Palêmon, o juiz da disputa, no verso 59: “Alternis dicetis: amant alterna Camenae.” (VIRGILE, 2005, p.50, grifos nossos) traduzido como: Direis alternadamente: Camenas1 amam versos alternados. É a Palêmon que os pastores recorrerão para a função de sancionar a aposta, sendo-lhe, portanto, atribuída a função de destinador-julgador. A base de funcionamento de qualquer aposta, de modo geral, dá-se pela transposição de um valor, de uma habilidade ou talento em algo concreto. No caso da III Bucólica, cogita-se, primeiramente, a ideia de se apostar para o título de melhor cantador uma parte do rebanho, mas, com a recusa dessa ideia por Menalcas, surge uma nova possibilidade de materializar o valor de superioridade poética: apostar copos adornados (versos 35 a 47): Menalcas

1

Musas. Antigas divindades das fontes e das águas.

661

[...] Verum, id quod multo tute ipse fatebere maius, (insanire libet quoniam tibi), pocula ponam fagina, caelatum diuini opus Alcimedontis; lenta quibus torno facili superaddita uitis diffusos hedera uestit pallente corymbos. In medio duo signa, Conon, et... quis fuit alter, descripsit radio totum qui gentibus orbem, tempora quae messor, quae curuus arator haberet? Necdum illis labra admoui, sed condita seruo.

Damoetas Et nobis idem Alcimedon duo pocula fecit, et molli circum est ansas amplexus acantho; Orpheaque in medio posuit, siluasque sequentis. Necdum illis labra admoui, sed condita seruo. (VIRGILE, 2005, p.50 – 51, grifos nossos) [tradução literal]: Menalcas [...] Na verdade, tu mesmo reconhecerás isto que é muito maior (pois que agrada-te gastar tolamente) que eu aposte copos de faia, obra feita a primor do divino Alcimedonte2, nos quais uma parreira maleável foi sobreposta com tôrno propício cobre com hera pálida os cachos espalhados. No meio estão duas figuras em relevo, Cónon3, e... quem foi o outro, que desenhou com uma vara para os povos todo a superfície circular, quem foi o ceifeiro, quem foi o lavrador curvado que teria fixado as circunstâncias? Nem aproximei os lábios neles [copos], mas conservo-os guardados.

Dametas

2

Nome provavelmente inventado de artista. Matemático e astrônomo egípcio do séc. III a. C. Deve-se-lhe, por exemplo, o nome dado a uma constelação, a coma Berenicis, isto é, “Cabeleira de Berenice” (homenagem a Berenice, mulher de Ptolemeu). 3

662

E o mesmo Alcimedonte fez dois copos para nós, e foi favorecido por asas com acanto4 flexível; pôs uma representação de Orfeu no meio entre os bosques que o seguem. Nem aproximei os lábios neles [copos], mas conservo-os guardados.

Nível da figuração do discurso Quando os copos são tratados por obra (não é um mero copo), feita a primor, de um artesão divino, utilizando um torno propício, esculpindo figuras em relevo, que tal trabalho artístico designa faz do objeto “favorecido”, com representação de Orfeu, o deus dos bosques, etc., são todos esses elementos concretos, ou seja, são o que chamamos de figuras e, aqui, expressam o caráter valioso do objeto. Nível da iconização do discurso

Foi organizada uma tabela para a equiparação dos copos como objeto de valor: Copos

Menalcas

Dametas

feito por

Alcimedonte

Alcimedonte

adornos

parreira maleável

acanto flexível

figura em relevo

figura em relevo

nunca usado

nunca usado

condição

Vemos, a partir da tabela, que os copos são equiparados: as figuras se equivalem, dão aos dois copos um mesmo valor. E veremos, ao final do poema, que a sanção dada por Palêmon também traz uma comparação de dois elementos que resulta na atribuição de um mesmo valor: no caso, os próprios pastores, já que, realizada a competição, o juízo é dado como empate, tendo sido julgados os cantadores como de igual capacidade poética. É nesse sentido que a passagem destacada se faz significativa, pois observamos existir uma repetição de versos (Necdum illis labra admoui, sed condita seruo.) justamente nesse momento em que estão combinando a disputa, que saberemos ao fim terminar em empate. Parece que, de alguma forma, temos aqui uma fala que antecipa o fim da disputa. O excerto, então, se caracteriza como uma espécie de empate

4

Nome de uma árvore espinhosa do Egito, cujas folhas estilizadas caracterizam, na arquitetura grega, a decoração de ordem coríntica.

663

antecipado, ou então um indício de empate porque os dois se assemelham, detêm copos que se assemelham e que se equivalem. Podemos dizer que nessa comparação dos copos estaria a ideia do valor do canto de cada um: os dois em iguais condições/valor (nem melhor, nem pior). O momento da repetição é muito importante, pois é quando eles falam do que seria aquilo que representaria o valor do canto de cada um. Estão decidindo a disputa, decidindo a aposta, e os dois têm praticamente o mesmo objeto, feito pelo mesmo Alcimedonte, que valem a mesma coisa, e ao descrever tais objetos, o fazem também da mesma forma (com o mesmíssimo verso). É essa representação do conteúdo pela forma que constitui o último nível da figurativização, denominado iconização. Referências CARDOSO, Z. A. A literatura latina. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção biblioteca universal). GREIMAS, Algirdas Julien & COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Contexto, 2008. HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 18a ed. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2001. LIMA, Alceu Dias. Uma estranha língua?: questões de linguagem e de método. São Paulo: Edunesp, 1995. LOPES, Edward. Fundamentos da linguística contemporânea. São Paulo: Cultrix, 2005. MENDES, J. P. Construção e arte das Bucólicas de Virgílio. Dissertação (doutorado), Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas USP, 1982. PEREIRA, M. H. R. Estudos de história da cultura clássica: cultura romana. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. PLATÃO, Francisco & FIORIN, José Luiz. Para entender o texto: leitura e redação. 17ª ed. São Paulo: Ática, 2007. POUND, Ezra. Abc da literatura. 9a ed. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2001. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 25a ed. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2003.

664

TORRINHA, Francisco. Dicionário latino-português. 2a ed. Porto: Porto, 1998. VIRGILE. Bucoliques. Texte établi et traduit par E. de Saint-Denis. Paris: Les Belles Lettres, 2005. VIRGÍLIO. Bucólicas. Tradução e comentário de Raimundo Carvalho. Belo Horizonte: Crisálida, 2005. VIRGÍLIO, Bucólicas. Tradução e notas de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: UnB/Melhoramentos, 1982. VIRGÍLIO. Bucólicas. Trad. Maria Isabel Rebelo Gonçalves. Lisboa: Editorial Verbo, 1996.

HISTÓRIA DE UM PINTOR CONTADA POR ELE MESMO: UMA ANÁLISE SEMIÓTICA Claudia C. Valladares [email protected] UFF/CNPq RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar como se constroem as relações de produção de sentido que se estabelecem entre o texto verbal e o não verbal na obra História de um pintor contada por ele mesmo de Antônio Parreiras (1860-1937). Antônio Parreiras é considerado um dos maiores paisagistas brasileiro e um dos poucos artistas de sua época que escreveu sobre sua própria arte. Além de sua autobiografia intitulada História de um pintor contada por ele mesmo, Parreiras deixou-nos uma quantidade significativa de depoimentos de grande importância, e, acima de tudo, relatos imprescindíveis para se perceber o panorama estético, social, político e dos processos criativos da arte brasileira no final do século XIX e inicio do século XX. O suporte teórico-metodológico mobilizado para desenvolver o trabalho é o da semiótica discursiva, de origem greimasiana, que se volta para a explicitação das condições da apreensão e da produção de sentido, privilegiando a abordagem do texto como objeto de significação, preocupando-se em estudar os mecanismos que o engendram e que o constituem como um todo significativo. O que significa descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz. Para esta análise, especificamente, selecionamos um trecho da obra autobiográfica de Parreiras, constituído pela integração de uma imagem (ilustração) com o texto que a acompanha, como uma espécie de legenda, selecionado pelo próprio artista. Nesse sentido, verbal e não verbal, integrados, do ponto de vista da semiótica discursiva, podem ser tomados como um texto sincrético. Partindo-se da noção de sincretismo, então, procuramos mostrar como se constrói a configuração da memória, entendida como um resgate do passado, tema recorrente na obra autobiográfica de Parreiras, e, em especial, no trecho escolhido como corpus de análise deste trabalho, no qual há a predominância de elementos nostálgicos e saudosistas. PALAVRAS-CHAVE: Memória.

Semiótica

discursiva,

Sincretismo,

Antônio

Parreiras,

665

Temos no gênero autobiográfico a vida de um sujeito narrada por ele mesmo. Nessa escritura, o sujeito recupera, ou tenta recuperar, um momento que já não mais existe no agora, que está ausente do tempo presente. Em se tratando de um gênero que “passeia pelo tempo”, a autobiografia nos seduz com a possibilidade, linguística que seja, de permitir que nos encontremos, por um único instante ao menos, em um momento outro que não o do agora, permite retomarmos por alguns instantes alguns de nossos momentos mais felizes ou mais dolorosos, permite, enfim, que “sejamos de novo” ao retornarmos num tempo. E é a partir dessa sedutora perspectiva de “viagem no tempo”, de tentativa de recuperar algo que já não existe mais, no tempo, que damos início a algumas reflexões acerca da temporalidade da memória. Este trabalho tem por objetivo analisar como se constroem as relações de produção de sentido que se estabelecem entre o texto verbal e o não verbal na obra História de um pintor contada por ele mesmo de Antônio Parreiras (1860-1937). Antônio Parreiras é considerado um dos maiores paisagista brasileiro e um dos poucos artistas de sua época que escreveu sobre sua própria arte. Além de sua autobiografia intitulada História de um pintor contada por ele mesmo, Parreiras deixounos uma quantidade significativa de depoimentos de grande importância, e, acima de tudo, relatos imprescindíveis para se perceber o panorama estético, social, político e dos processos criativos da arte brasileira no final do século XIX e inicio do século XX. O suporte teórico-metodológico mobilizado para desenvolver o trabalho é o da semiótica discursiva, de origem greimasiana, que se volta para a explicitação das condições da apreensão e da produção de sentido, privilegiando a abordagem do texto como objeto de significação, preocupando-se em estudar os mecanismos que o engendram e que o constituem como um todo significativo, o que significa descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz. Para tanto, a semiótica concebe o processo de produção do texto como um percurso gerativo constituído por três patamares: o fundamental, o narrativo e o discursivo, dando ênfase às relações que se estabelecem entre os signos, a partir do processo de significação capaz de gerá-los. Segundo Fiorin ,

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O percurso gerativo de sentido é uma sucessão de patamares, cada um dos quais suscetível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo (FIORIN, 2005, p.20).

Este modelo pode ser assim representado:

Estruturas sêmionarrativas

Estruturas discursivas

Componente Sintáxico

Componente Semântico

Nível profundo

Sintaxe fundamental

Semântica fundamental

Nível de superfície

Sintaxe narrativa

Semântica narrativa

Sintaxe discursiva Discursivização (actoralização, temporalização, espacialização)

Semântica discursiva Tematização Figurativização

Para cada etapa do percurso existe um componente sintático e um semântico. No nível profundo, o das estruturas sêmionarrativas, a significação é identificada através de uma oposição semântica fundamental, de base geral e abrangente. No nível de superfície, a organização narrativa do texto é dada a partir do ponto de vista de um sujeito. As categorias semânticas são assumidas como valores por um sujeito na relação com um objeto e com outros sujeitos, o que pode ser observado na construção de programas narrativos que se encontram hierarquizados em sequências, constituindo o esquema narrativo canônico. A manipulação, a ação e a sanção constituem a organização canônica das narrativas. De acordo com Fiorin (2005, p.27), a narratividade é uma transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes. Isso significa que ocorre uma narrativa mínima,quando se tem um estado inicial,uma transformação e um estado final(FIORIN,2005,p.27-28).

É preciso deixar claro que apesar de todos os textos possuírem narratividade, esta não deve ser confundida com a narração. No nível das estruturas discursivas se dá a transformação da organização narrativa em discurso. A concretização do sentido do texto, no discurso, é possibilitada por procedimentos distintos, que revestem determinada organização narrativa. São os procedimentos de actorialização, temporalização e espacialização, que pertencem ao componente sintáxico do texto; e os procedimentos de tematização e de figurativização

667

que, como apresentados no quadro acima, pertencem ao componente semântico do texto. Barros esclarece que o discurso: é a última etapa da construção dos sentidos no percurso gerativo da significação. É nessa etapa que a significação se apresenta de forma mais concreta e complexa.O discurso pertence,portanto, ao plano do conteúdo dos textos.O texto,por sua vez, distingue-se do discurso por ter conteúdo (o do discurso) e expressão(BARROS,2003,p.209).

Baseado na dicotomia saussuriana (significante/significado) Greimas postula que: Quando um crítico fala da pintura ou da música,pelo próprio fato de que fala, pressupõe ele a existência de um conjunto significante “pintura”, ”música”. Sua fala constitui-se, pois, em relação ao que vê ou ouve, uma metalíngua. Assim, qualquer que seja a natureza do significante ou o estatuto hierárquico do conjunto significante considerado, o estatuto de sua significação se encontra situado num nível metalinguístico em relação ao conjunto estudado. Essa diferença de nível é ainda mais visível quando se trata do estudo de línguas naturais: assim o alemão ou inglês podem ser estudados numa metalíngua que utiliza o francês e vice-versa. Isso nos permite a formulação de um princípio de dimensão mais geral: diremos que esta metalíngua transcritiva ou descritiva não apenas serve ao estudo de qualquer conjunto significante, mas também que ela própria é indiferente à escolha da língua natural utilizada (GREIMAS, 1979, p.23).

O texto é, portanto, uma unidade de sentido e além do texto escrito, uma escultura, um quadro, um símbolo, uma foto, um filme ou uma imagem são considerados textos e são, por isso, objetos passíveis de análise de sua significação discursiva pela semiótica. Para esta análise, especificamente, selecionamos um trecho da obra autobiográfica História de um pintor contada por ele mesmo de Parreiras, constituído pela integração de uma imagem (ilustração) com o texto que a acompanha, como uma espécie de legenda, selecionado pelo próprio artista. Nesse sentido, verbal e não verbal, integrados, do ponto de vista da semiótica discursiva, podem ser tomados como um texto sincrético. Teixeira nos explica que: O conceito de sincretismo, em semiótica, tem origem em Hjelmslev, que o associava ao conceito de neutralização em fonologia. Definia sincretismo como a categoria resultante de uma superposição entre dois funtivos, ou seja, de uma comutação suspensa entre dois termos em determinado contexto. Duas grandezas são definidas como invariantes quando submetidas à prova da comutação (teve / tive, por

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exemplo, é um par que mostra a existência de dois fonemas vocálicos, nas primeiras sílabas, obtidos como tais por comutação em contextos semelhantes). Em outra situação, ou contexto linguístico, as duas unidades podem contrair-se numa superposição, em que elas passam a ser variantes, e o seu sincretismo produz uma invariante (em posição átona final, por exemplo, desfaz-se a oposição e / i). (TEIXEIRA, 2008, p.179).

Dessa forma, a semiótica discursiva define como sincrético um objeto que, “mobilizando várias linguagens que se relacionam e interagem ao produzir sentido, submete-se, como texto, a uma única enunciação que confere unicidade à variação” (TEIXEIRA, 2008, p.180). Mobilizaremos, como já mencionamos, os fundamentos teórico-metodológicos da semiótica discursiva e, dentre as possibilidades ofertadas pela teoria, destacamos as contribuições dos estudos semióticos da enunciação, da semiótica plástica e da semiótica sincrética para a realização do aqui proposto. Em síntese, os objetivos deste trabalho são: examinar as relações entre o texto verbal e não verbal, verificar a construção do tempo como estratégia enunciativa e mostrar como se constrói a temporalidade da memória, entendida como um resgate do passado, tema recorrente na obra autobiográfica de Parreiras, e, em especial, no trecho escolhido como corpus de análise deste trabalho, no qual há a predominância de elementos nostálgicos e saudosistas. ANÁLISE O texto sincrético que iremos analisar, a quinta ilustração da obra autobiográfica História de um pintor contada por ele mesmo de Antônio Parreiras (figura 1), é composto pelo autorretrato do pintor envolto por uma paisagem e uma legenda que o acompanha.

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Ao observamos a cena, o que nos chama imediatamente a atenção, atrai nosso olhar é a figura do pintor que ocupa quase em sua totalidade o lado direito da cena. Ele está sentado sob um rochedo e sua postura está levemente inclinada, projetando-se para frente de seu corpo, tendo à esquerda, o mar. Parreiras está ricamente vestido e tem sob suas mãos um chapéu que displicentemente pende de suas mãos. Algumas relações potencializam a atração imediata que a figura de Parreiras exerce sobre nosso olhar como os contrastes existentes entre o primeiro (rochedo), segundo (a figura do pintor) e o terceiro (mar) planos. O primeiro plano é escuro, com traços fortes, saturados e bem marcados o que nos sugere um sentido de “fechamento”, repouso, interioridade, contensão. O terceiro plano é claro, com traços fracos, diluídos, rarefeitos o que nos sugere um sentido de “abertura/amplitude” para outro espaço, exterioridade, expansão. No segundo plano, temos, além do maior contraste cromático em relação ao primeiro (pela cor clara da roupa) e menor em relação ao segundo plano (pontos escuros no cabelo, barba, gravata e chapéu), a figura do pintor numa posição arqueada, a cabeça, o olhar pendendo para baixo, para “o longe” e em diagonal e pés, um levemente “entortado” e outro “plantado no chão”, as mãos entrecruzadas segurando o chapéu que

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pende, o despojamento da posição de um de seus pés, a rigidez do outro, sua posição que ao mesmo tempo relaxa e tensiona o corpo sugere a entrega do sujeito à lembrança. É importante ressaltar que a tematização da lembrança é sugerida a partir da legenda “Então uma saudade imensa me invade a alma. É a lembrança do passado que volta...” e consolidada na ilustração. A ilustração, neste caso, especificamente, tomada isoladamente, poderia nos guiar por uma outra leitura que não essa. O que vemos no texto plástico é simplesmente um homem sozinho, sob um rochedo, numa paisagem dura, porém, bela, mas que pouco sugere o ato de rememorar. No entanto, quando analisamos, neste sentido, o plástico e o verbal ,sincreticamente, percebemos a tematização da lembrança que é dada pelo texto verbal (legenda), que é ressaltada, confirmada por essa organização figurativa e plástica do visual. Este lugar, que se torna um aqui, presentifica a cena onde os acontecimentos serão lembrados e reforça a ideia de que o sujeito se mantém no aqui, no agora, neste lugar inóspito, lembrando-se do passado. O pintor está num aqui em que sente saudades de um lá. Quando ocorre a figurativização da memória, ou seja, quando o narrador se apresenta lembrando ou esquecendo, temos o que chamamos temporalidade da memória (BARROS, 2009). A figura do pintor está englobada por uma paisagem áspera, dura, isolada de tudo e de todos, que figurativiza o isolamento do sujeito, criando uma ambiência propícia no não verbal (equivalente ao “então” da legenda) para evocar o passado, para a “invasão da saudade”. A linha do horizonte, a cor, a abertura, a amplitude presentes no terceiro plano sugere o movimento para o então, para o lá que está fora da cena, para a saudade. Esse sujeito contido no presente é arrebatado, invadido pela saudade e propicia a conjunção com o passado – “saudade imensa/invade a alma”. A saudade é a percepção da ausência de um outro espaço e tempo já projetados fora da cena. Essa saudade possibilita, então, a presentificação do ato de lembrar, desdobrando o sistema enunciativo em dois tempos: o da enunciação ( o agora do pintor que se retrata na cena) e o da memória: Embora ambos possam ser expressos pelo sistema enunciativo, o tempo de contar e o de rememorar não são exatamente os mesmos, há, ao menos, um breve hiato entre os dois. A narração está sempre um

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pouco “atrasada” com relação ao ato de lembrar , já que o pressupõe. Ela , no entanto, o incorpora. A rememoração só pode aparecer no texto por estar sendo narrada (BARROS, 2009, P.543).

Fiorin já havia apontado anteriormente a existência de duas temporalizações linguísticas possíveis no discurso : uma do enunciado e outra da enunciação. A do enunciado que é a temporalidade em que os acontecimentos narrados acontecem, e a da enunciação que refere-se à temporalidade em que o narrador conta os eventos.A partir dessas considerações, o autor apresenta quatro tipos de operações temporais que são: a debreagem enunciativa da enunciação,a debreagem enunciva da enunciação,a debreagem enunciativa do enunciado e a debreagem enunciva do enunciado (FIORIN,1996,p.290-296). Há na cena a coexistência de duas sequências narrativas. A primeira sequência é a do sujeito que está em conjunção com o presente e uma segunda sequência na qual ele entra em conjunção com o passado. Esta primeira sequência , no entanto, não é totalmente abandonada. A transformação dos estados do sujeito é mostrada em processo, curso, ou seja, ocorrendo. Não há um total abandono da primeira sequência, pois o sujeito não “sai” do presente ao entrar em conjunção com o passado, ou seja, ele não se distancia totalmente de seu presente. A instalação da enunciação enunciada (instância do eu-aqui-agora) manifesta-se, no texto verbal, por meio do pronome “me” que demonstra a instalação da primeira pessoa; assim e, também, na embreagem enunciva realizada pela assinatura e legenda no canto direito e esquerdo respectivamente na cena, o sujeito assume no discurso que fala de si mesmo. O advérbio “então”, na primeira frase, instala um “agora”, um presente ao mesmo tempo em que prepara, introduz” a saudade” na narrativa. Ele estabelece, portanto,uma conexão entre presente e passado,o encadeamento de uma narrativa durativa, que prolonga a cena num presente que é tomado pela lembrança. Na segunda frase, há a instalação de um agora observado pelo uso dos verbos no presente “é” e “volta”. Esta construção sintática expressa a temporalidade da enunciação. Os tempos enunciativos são, geralmente, empregados para se referir à história, para tratar da construção do passado, da memória e da narrativa e estabelecer conexões entre o passado e o presente,

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mostrando principalmente continuidade entre os dois (BARROS, 2009, p.545).

Por sua vez, a tematização da lembrança neste enunciado, configura, no texto verbal, a temporalidade da memória na medida em que a tematização da lembrança, da rememoração é figurativizada no texto plástico, estabelecendo, assim, uma rede relacional. Segundo, ainda, Fiorin: Em todo texto, temos um nível de organização narrativa, que será tematizado. Posteriormente, o nível de organização temática poderá ou não ser figurativizado. O nível temático dá sentido ao figurativo e o nível narrativo ilumina o temático (FIORIN, 2005, p.94).

O que significa dizer que o sentido que atribuímos em nossa análise sobre a temporalidade da memória só nos foi possível, pois o tema “lembrança”, “saudade” é concretizado através das figuras; ou melhor, através da relação entre tema e figuras, através de um percurso figurativo. Considerações finais Percebemos em nossa análise que o efeito de sentido que sugere a entrega do sujeito à lembrança só é possível a partir da legenda que recorta a imagem, fornecendonos, assim, um sentido específico, único, sem o qual teríamos apenas uma vaga ideia de uma possível significação. Dessa forma, podemos afirmar que o efeito de sentido obtido só foi possível pela corelação entre os enunciados, que se completaram de modo a assegurar o efeito de sentido obtido. Os contrastes, interações e relações que mostramos entre a ilustração (texto plástico) e legenda (texto verbal) tomadas e analisadas de forma sincrética reforçou nossa expectativa sobre o sincretismo do trecho analisado e sobra a importância de o analisarmos como tal. Podemos demonstrar, assim, a partir da análise dessa obra sincrética, que há uma total correspondência e reiteração na produção do efeito de sentido tanto no texto plástico como no verbal de uma configuração da temporalidade da memória. As estratégias enunciativas empregadas, no trecho selecionado, foram estabelecidas de modo contratual. Percebemos também que, embora a ilustração possua características de efeito de sentido bem similares com as encontradas em algumas análises de autorretratos, onde 673

também há a predominância do tempo enunciativo, o trecho analisado possui a peculiaridade, talvez por, além de configurar-se como um autorretrato, ser pertencente ao gênero autobiográfico, de ter seu sistema enunciativo desdobrado em dois tempos: o da enunciação e o da memória. O que nos leva a refletir sobre a possibilidade de se estabelecer algumas características temporais pertencentes, especificamente, ao gênero autobiográfico, no que tange a temporalidade, nesta obra. O recorte de análise que ora se apresentou, até por uma questão do tempo, deixa lacunas que precisam ser preenchidas, algumas questões que precisam ser respondidas e outras que precisam ser aprofundadas. E são estas questões que vão direcionar o trabalho daqui por diante. Referências BARROS, Diana Luz Pessoa de. In: FIORIN, José Luiz (org). Introdução à Linguística: II. Princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2008. BARROS, Mariana Luz Pessoa de. Tempo e Memória.Revista Alfa . Disponível em < http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/2130 >>>>. Acessado em 17 de setembro de 2012. FIORIN, José Luiz. Elementos Paulo:Contexto;EDUSP,2005.

de

análise

do

discurso.

São

______. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo:Ática,1996. PARREIRAS, Antônio. História de um pintor contada por ele mesmo. Niterói: Niterói Livros. Fundação de Arte de Niterói, 1999. TEIXEIRA, Lucia. Leituras de textos visuais: princípios metodológicos. In: BASTOS,Neusa Barbosa (org.).Língua portuguesa:lusofonia – memória e diversidade cultural.São Paulo:EDUC;FAPESP,2008. ______. Achados e perdidos: análise semiótica de cartazes de cinema. In: LARA,Gláucia Muniz Proença;MACHADO,Ida Lúcia;EMEDIATO,Wander (org.).Análise do discurso hoje,vol.1.Rio de Janeiro:Nova Fronteira,2008.

PRIMO LEVI E ROBERTO BENIGNI: DOIS OLHARES SOBRE A MEMÓRIA DE AUSCHWITZ Claudia Fernanda de Campos Mauro UNESP/FCLAr

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Este trabalho tem como objetivo apresentar uma breve análise de duas grandes manifestações artísticas relativas à memória do Holocausto. Trata-se da narrativa literária de Primo Levi, aqui representada pelo livro de memória/testemunho Se questo è un uomo, e da narrativa fílmica de Roberto Benigni, marcada pelo filme La vita è bela. O grande fator de aproximação entre as duas narrativas é o tema da memória da experiência dos judeus deportados para os campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Este trabalho pretende traçar um perfil das duas obras, identificando elementos indicadores de semelhanças e de diferenças, no que diz respeito, sobretudo, à releitura do real feita, por um, em nível de testemunho e, por outro, em nível ficcional. Colocando frente a frente o mundo de absoluta fantasia criado por Benigni , através de seu personagem Guido, e o mundo de absoluta tentativa de fidelidade na reconstrução dos fatos, testemunhado por Levi, esta breve pesquisa entra no universo do que os estudiosos da memória do Holocausto chamam de “expressão do inexpressível”, “imaginação do inimaginável”.

Através das formas de expressão

escolhidas , respectivamente, por Levi e Benigni, encontramo-nos diante da questão da memória expressa através do testemunho e da ficção. Enquanto a narrativa de Levi está totalmente envolvida com o acontecimento e, mesmo assim, lúcida e relativamente distanciada, a de Benigni é permeada pelo riso, pela leveza e pelo lúdico. Levi é portavoz, enquanto Benigni é o mago que transforma, diante do público, o universo concentracionário apresentando-o poeticamente, numa antítese (Holocausto poético?) cujo efeito é a inevitável comoção. Comoção também, de certa forma, é o efeito provocado por Levi, mas trata-se de uma comoção advinda da indignação, da impossibilidade de compreensão, da absoluta impotência diante dos fatos e da fraqueza inerente ao ser humano diante das situações extremas. Há quase setenta anos do final da Segunda Guerra e com o inevitável fim do já pequeno número de testemunhas, a ficção é a grande arma , o poderoso instrumento do qual a memória do Holocausto pode, deve e, com certeza, vai valer-se daqui para o futuro. 1-PRIMO LEVI E A REPRESENTAÇÃO DA SHOAH NA LITERATURA DO SÉCULO XX: A RAZÃO SUPERANDO O SENTIMENTO Cesare Segre, em um interessante ensaio intitulado “Il tragico e la Shoah nel romanzo del Novecento”1 discute a ideia, defendida por críticos e não-críticos 1

In: TOFFANO, Piero.Il tragico nel romanzo moderno. Roma: Bulzoni Editore, 2003, p.p. 245-261.

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empenhados neste tema, da impossibilidade de se fazer literatura com o tema do Holocausto pois, segundo esta corrente, o tratamento literário pode deformar a verdade contida nos testemunhos. Segre defende a ideia de que a oposição entre testemunho e literatura só pode valer se não se levar em consideração o fato que a literatura pode transmitir a verdade tanto quanto ou, até mesmo, com mais eficácia que qualquer testemunho, mesmo que abra mão da precisão da vivência e da documentação dos fatos. Deste modo, para o crítico, é perfeitamente aceitável que um escritor, mesmo que não envolvido diretamente com a experiência da Shoah, possa tratar do assunto de maneira séria e que possa dizer sobre o fato verdades importantes, desde que suas fontes sejam seguras e que ele tenha refletido profundamente sobre o tema. Segre chama a atenção para o fato de que, se não for assim, a morte, inevitavelmente próxima dos sobreviventes, isto é, das testemunhas diretas cancelaria qualquer tipo de discurso futuro a respeito do Holocausto. Com relação a Primo Levi, Segre o considera uma exceção, visto que soube dar um testemunho que era, ao mesmo tempo, grande literatura. O estudioso define Se questo è un uomo como a descrição da luta entre executores e prisioneiros; executores que tentam desumanizar sistematicamente o homem e prisioneiros que, quando são capazes de defender minimamente sua dignidade, conseguem sentir-se superiores aos próprios executores. Assim, na visão de Segre, o Lager é , para Levi, “um monstruoso laboratório social”

2

projetado em todos os seus particulares para desfrutar dos

prisioneiros como escravos mas, sobretudo, para destruir os judeus espiritual e fisicamente. Quem montou este laboratório concluiu que, somente enfraquecendo as defesas morais dessas pessoas, é que se poderia justificar a sua eliminação, ou seja, aqueles que viriam a ser mortos não deveriam ser considerados mais homens. Segre considera que o maior horror da Shoah foi a condenação coletiva à morte sem a menor possibilidade de absolvição, uma vez que esta pressupõe a existência de uma culpa e culpa não havia. Finalmente, o crítico conclui seu ensaio com uma forma de critério de leitura relativo aos livros que tratam da Shoah, Não basta que o escritor apele para a compaixão e para a simpatia do leitor; é preciso que este leitor perceba a complexidade do horror e não sinta somente a piedade pelos casos isolados, mas também que use a razão que leva do particular para o geral, do sofrimento de um indivíduo para a tentativa de extermínio

2

Op.cit., p. 257.

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de um povo. Segundo Segre, é esta conexão entre o particular e o geral o elemento marcante na obra de grandes escritores que abordaram o tema entre eles, além de Primo Levi, Cynthia Ozyck, Imre Kertész e Edith Bruck. Segundo Elio Gioanola, em seu ensaio “Diversità della letteratura, letteratura della diversità”3 se, foi Auschwitz a fazer de Primo Levi um escritor, também foi o escritor a fazer de Auschwitz um evento a ser lembrado, transformando uma realidade em uma verdade. Ao lado do alívio, da liberação, próprios do sobrevivente que testemunha, Levi experimentava, com a escritura, um prazer intenso. Com a escritura criativa, o autor assiste à transformação de memorie atroci em riqueza edificante, ao processo alquímico do aurum de stercore. Em Se questo è un uomo, podemos identificar três caminhos percorridos pela memória de Levi: a memória da violência, o complexo do sobrevivente e as causas da sobrevivência. Com relação à memória, Levi muda sua opinião a respeito do caráter de confiabilidade da mesma. Inicialmente, o escritor volta sua atenção para a inconstância, para a instabilidade da memória e, consequentemente, para a necessidade de uma análise rigorosa dos testemunhos, a fim de conhecer e fazer conhecer a experiência do Lager . Em 1983, em sua fala no Congresso Internacional “Il dovere di testimoniare”, Levi manifesta-se de modo severo a respeito dos limites da memória e defende a necessidade de filtrar os testemunhos baseados nela: La memoria umana è uno strumento meraviglioso ma fallace. (...) non avviene quasi mai che due testimoni oculari dello stesso fatto lo descrivano allo stesso modo e con le stesse parole, anche se il fatto è recente, e se nessuno dei due ha un interesse personale a deformarlo.4

Finalmente, Levi reconcilia-se definitivamente com a memória em seu livro I sommersi e i salvati (1986). Admite que a memória impera no livro e que, como se trata de uma memória distante, pode ser vista como uma fonte suspeita e deve, portanto, ser defendida de si mesma. O autor apresenta, em seguida, uma argumentação em defesa da confiabilidade nos fatos trazidos ao presente através da memória:

3

In: IOLI, Giovanna (a cura di). Primo Levi: memoria e invenzione. Atti del convegno di San Salvatore Monferrato 26-27-28 settembre 1991. S.S. Monferrato: Edizioni della Biennale piemonte e letteratura, 1995. 4 “A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falível.(...) não acontece quase nunca que duas testemunhas oculares do mesmo fato o descrevam do mesmo modo e com as mesmas palavras, mesmo que o fato seja recente e que nenhuma delas tenha tenha interesse pessoal em deformá-lo.”

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(...) contiene più considerazioni che ricordi, si sofferma più volentieri allo stato delle cose qual è oggi che non sulla cronaca retroattiva. Inoltre, i dati che contiene sono fortemente sostanziati dall’imponente letteratura che sul tema dell’uomo sommerso (o ‘salvato’) si è andata formando, anche com la collaborazione, volontaria o no, dei colpevoli di allora; ed in questo corpus le concordanze sono abbondanti, le discordanze trascurabili. Quanto ai miei ricordi personali, ed ai pochi aneddoti inediti che ho citato e citerò, li ho vagliati tutti com diligenza: il tempo li ha um po’ scoloriti, ma sono in buona consonanza con lo sfondo, e mi sembrano indenni dalle derive che ho descrito.(LEVI, P., 1986, p. 23)

Desta forma, Primo Levi assume a ideia de que a memória não é história, mas a história precisa e deve poder contar com a memória. Podemos concluir esta questão com as considerações da estudiosa Anna Rossi Doria, que vêm ao encontro da posição de Levi e de Cesare Segre: (...)la storia della deportazione non potrà rimanere separata dalla memoria, ma dovrà trovare i modi e le forme per integrarsi con essa e per garantirne la trasmissione anche a partire dal momento, ormai vicino, in cui saranno scomparsi tutti i testimoni diretti. (...) In questo senso, sembra oggi più che mai auspicabile uma reconciliazione tra storia e memoria, più che mai necessario un nuovo patto tra le due.(DORIA, A.R., 1998, p. 143)

Com relação ao complexo do sobrevivente, está relacionado a um sentimento básico de culpa por ter sobrevivido no lugar de outros. Os ex-deportados, frequentemente, o descrevem como um sofrimento ligado à lembrança do companheiro morto no Lager e à ideia de que os familiares desse companheiro possam vir a pensar que que houve algum tipo de “armação” , por parte do sobrevivente, para se salvar no lugar do amigo. Mesmo reconhecendo que ter sobrevivido é um privilégio, um motivo de satisfação, os que conseguiram voltar dos campos de concentração se sentem atormentados pela memória, que traz para diante deles o amigo morto, e também pela impossibilidade de dar qualquer tipo de conforto aos familiares. Citamos, agora dois trechos que explicam com muita clareza o conceito de complexo do sobrevivente dado pelo próprio Levi; no primeiro , o escritor coloca na boca de uma personagem o peso deste sentimento e, no segundo, ele próprio dá a explicação e o testemunho de quem convive com esse tormento. Vergogna di non esser morti, - disse Francine – ce l’ho anch’io: è stupido ma ce l’ho. È difficile spiegarla. È l’impressione che gli altri siano morti al tuo posto; di esser vivi gratis, per un privilegio che non hai meritato, per um sopruso che hai fatto ai morti. Essere vivi non è uma colpa ma noi la sentiamo come colpa. (LEVI, P., 1992, 117)

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(...) al deportato ... appena rimesso piede in patria invincibile saliva alle guance quando doverosamente avvicinava, per cercare di confortarli, i familiari di un compagno rimasto lassù. Ciò anche con la pura coscienza di non avere da rimproverarsi nessuna azione a danno dei compagni e di non aver goduto di nessun privilegio. Certo essere vivi è uma grande gioia, un’esprimibile felicità offuscata però a momenti e resa amara dal ricordo dei compagni morti in modo atroce e dall’espressione dei parenti in lutto senza una tomba su cui piangere. 5

A terceira estrada percorrida pela memória de Primo Levi conduz às reflexões acerca das causas que permitiram a sobrevivência. Este tipo de reflexão aparece com muita frequencia nos relatos dos ex-deportados. No prefácio a I sommersi e i salvati , Levi faz um elenco de motivos que, para ele, foram responsáveis pela manutenção da vida. São eles: habilidade, sorte, boa saúde inicial, acaso, oportunidades ocasionais e, sobretudo, força e vontade de sobreviver. Segundo ele, todos estes fatores, somados aos conhecimentos relativos à sua profissão de químico, lhe permitiram chegar ao que ele chama de “observatório privilegiado”, representado pelo laboratório de química para o qual foi designado. Em Se questo è un uomo aparece a combinação de todos estes fatores: - a profissão, que lhe permitiu trabalhar em um ambiente estratégico, protegido do frio e um pouco mais bem alimentado; - a recuperação no Ka-Be (enfermaria), que lhe permittiu evitar a marcha de evacuação do Lager, a Marcha da Morte; - a sorte de ter encontrado Lorenzo, o operário civil; - possuir algumas qualidades morais, como o forte sentimento de amizade; - o empenho e a habilidade para organizar e proteger a vida no pavilhão do Ka-Be, onde se recuperava. Deste modo, Levi deixa claro, através de suas considerações, que as causas principais de sua sobrevivência eram o acaso e a sorte. A busca por essa “justificativa” para o fato de estar vivo serve, para o autor, como um fator atenuante para o seu complexo de sobrevivente. No trecho citado, podemos ver a lucidez com que Levi descreve a “culpa” de ter sobrevivido para, em seguida, “perdoar” a si mesmo; sobrepõe-se, então, a razão sobre a vergonha de ter vivido no lugar de outro .

Hai vergogna perché sie vivo al posto di un altro? Ed in specie, di un uomo più generoso, più sensibile, più savio, più utile, piú degno di 5

In: Triangolo Rosso, Torino, n.5/6, maggio-giugno, 1982.

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vivere di te? Non lo puoi escludere (...) È solo una supposizione, anzi, l’ombra di un sospetto: che ognuno sai il Caino di suo fratello, che ognuno di noi (...) abbia soppiantato il suo prossimo, e viva in vece sua. (...) potrei essere vivo al posto di un altro; potri avere soppiantato, cioè di fatto ucciso. (...) Mi sentivo sí innocente, ma intruppato fra i salvati, e perciò alla ricerca permanente di una giustificazione, davanti agli occhi miei e degli altri. (LEVI, P., 1986, p.p.62-64)

2- ROBERTO BENIGNI E LA VITA È BELLA La vita è bella é um filme dividido nitidamente em duas partes. A primeira é harmoniosa e leve: uma fábula, uma deliciosa e hilariante comédia realista. A segunda vira bruscamente em direção à tragédia, o tom muda fatalmente e as cores são aquelas escuras e irreais de um pesadelo. O amor que une Dora e Guido vence os empecilhos que marcaram o início do romance e, principalmente, o aprisionamento no campo de concentração nazista. A estrutura adotada por Benigni, dividida em partes, encurtando os tempos e contando estórias diferentes, anula a obrigação de desatar nós muito complexos da dramaturgia. Nas duas partes de La vita è bella, podemos perceber dois movimentos diferentes: à fluidez da primeira parte, se contrapõe uma segunda mais dilacerada e desconexa. A primeira parte de La vita è bella é leve e espirituosa, acentuando, por contraste, a escuridão e as trevas da segunda. Assim como na vida, há alternância entre a dor e a felicidade – diz o próprio Benigni–, no filme “C’è un (primo) tempo per ridere e un (secondo) tempo per piangere”. Duas partes que se fazem perceber claramente, por serem divididas drasticamente pelo irromper de um trem dentro de um campo de concentração nazista. Duas partes e duas veias, a cômica e a trágica, que se cruzam graças à capacidade do autor em fazer explodir ora uma ora outra desenrolando o delicado fio da comoção. Um momento emocionante de La vita è bella é quando a personagem saúda a sua amada: “Buon giorno, principessa!”. Quem exclama esta frase é Guido ao encontrar Dora, literalmente em cima dele, para imediatamente iniciar a enfeitiçá-la com sua elegância e seus truques de clown ilusionista. Tudo gira em torno do amor entre Guido e Dora, em um redemoinho de perseguições, desencontros, fugas e trocas de pessoa. O fascismo é representado simplesmente através de infinitos retratos de Mussolini e pela estupidez dos burocratas.

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Durante toda a primeira metade do filme, os nossos olhos são os de Guido, uma pessoa justa às voltas com algo terrível. No entanto, é notório que as fábulas possuem um caráter essencialmente universal, e La vita è bella, amarga quanto possível, é fundamentalmente uma fábula e como tal seus ingredientes são príncipes e princesas, cavalos brancos e monstros terríveis. E, como em uma fábula, deslocamentos surreais se acompanham de condensações fantásticas; e exatamente como se estivessem elaborando uma fábula, Cerami e Benigni não sentiram a necessidade de serem realistas, nem tão pouco documentaristas, sublinhando, ao contrário, a emoção e a moral que nascem da sua fabulação. Talvez, para que seja apreciada plenamente, La vita è bella, deva ser visto e revisto exatamente com esta consciência, isto é, com os olhos e os ouvidos do pequeno Giosué diante de um grande jogo , do qual nós despertamos mais maduros e mais conscientes . Chissà se un po’ dello sguardo di Giosué riuscirà a penetrare nello spettatore: certe cose che a forza di nominarle si sono a volte un po’ consumate, come appunto i campi di concentramento e l’orrore dello strerminio degli ebrei, attraverso questo paradosso, attraverso questo gioco dell’irrealtà, potrebbero tornare a stupire, meravigliare, tornare appunto a sembrare, giustamente, impossibili . (BENIGNI, R. e CERAMI, V, 1998, p.X) 6

O expectador ri , porque reconhece em Guido/Benigni, enquanto clown, uma vítima inocente, ou seja, um bode expiatório, que com seu sacrifício, contribuiu para trazer de volta a felicidade do pequeno Giosué, que em um mundo revolvido pelos horrores, ganha o tão almejado tanque de guerra. O olhar de Benigni é o olhar inocente das crianças. O horror da Lager é tão monstruoso e incompreensível que para Guido não é impossível ocultá-lo, nem muito menos fazê-lo parecer fingido. O cômico e o trágico se encontram e se unem, indissoluvelmente, também através do uso da hipérbole. Esta é uma eficaz técnica do gênero cômico, que consiste em uma exageração da realidade até conduzi-la ao absurdo.

6

Talvez um pouco do olhar de Giosué conseguirá penetrar no espectador: certas coisas que de tanto falar, às vezes, se desgastam, como exatamente aconteceu com os campos de concentração e o horror do extermínio dos hebreus, através deste paradoxo, através desta brincadeira da não realidade, poderiam voltar a causar espanto, maravilha, voltar então a parecer, justamente, impossíveis.

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(Giosuè)- Un uomo si è messo a piangere e ha detto che con noi ci fanno i bottonie il sapone. (Guido)- Giosuè! Ci sei cascato un’altra volta. Eppure ti facevo un ragazzino vispo, furbo, intelligente! I bottoni e il sapone con le persone! Ma ci hai creduto! Ci pensi? Domattina mi lavo le mani con Bartolomeo, poi mi abbottono con Francesco... (ride e intanto si stacca un bottone dalla giacca e lo lascia cadere per terra). Guarda qua! Eh, ,’è caduto Giorgio! (raccoglie il bottone e lo mette in tasca). E questo sarebbe una persona? Ma t’hanno preso preso in giro! Ma ci sei cascato ! I bottoni e il sapone! E poi che t’hanno detto? (Giosuè)- Che ci cuociono nel forno!(Guido lo guarda fisso e sta per ridere ancora). Ci bruciano nel forno!” (Guido)- (ridendo) Ci bruciano nel forno? Ma dai! Ma, a te, te te le fanno bere proprio tutte! Il forno a legna l’avevo sentito ma il forno a uomo mai! Oh, mi manca la legna! Prendi quest’avvocato! Oh, non brucia quest’avvocato, è proprio verde verde, eh? Guarda che fumo che fa! 7

Este diálogo que Guido Orefice, o protagonista, mantém com o filho ilustra o modo como Roberto Benigni se coloca diante da Shoah. Tornando absurdo o medo do menino, Benigni desvenda e denuncia uma situação cruel e absurda. Portanto, se as ações de Guido, neste contexto, parecem inverossímeis , mais inverossímeis parecem as ações dos nazistas. Desta forma, o mundo do campo de concentração parece estar em uma posição antitética em relação ao mundo de Guido. É importante observar que a personagem de Benigni não perde nunca a própria identidade e, desta forma, tantas situações vistas na primeira parte do filme acabam se repetindo , de modo idêntico, no interior do campo de concentração com resultado, porém, mais dramático: a recusa de Giosuè em tomar banho, em casa , permite que o garoto se salve, no campo, da “ducha” que o levaria a morte; o esconderijo, representado pelo criado-mudo, no qual Guido deixa Giosuè enquanto vai procurar Dora, será a salvação do menino; a “telepatia” aprendida com o amigo Ferruccio será a última “magia” que Guido fará antes de morrer e serve para afastar os cães de perto do esconderijo do filho; por fim, o famoso e chapliniano passo do ganso, com o qual o pai já tinha aliviado as preocupações do filho ao ver os soldados na primeira parte, é proposto novamente, no campo, para esconder dele a própria morte iminente. Porém, 7

(Giosuè)- Um homem começou a chorar e disse que , conosco, fazem botões e sabão. (Guido)- Giosuè! Você caiu direitinho! Eu imaginava que você fosse espreto, inteligente! Botões e sabão com as pessoas! E você acreditou! Imagine? Amanhã , lavo as mãos com Bartolomeo depois, me abotoo com Francesco.... Olhe aqui! Me caiu o Giorgio! E isto seria uma pessoa? Te levaram na conversa! E você caiu! Botões e sabão! E depois, o que te falaram? (Giosuè)- Que nos cozinham no forno! Nos queimam no forno! (Guido)- Nos queimam no forno? Te fazem engolir de tudo! De forno a lenha eu já tinha ouvido falar mas, de forno a homem, nunca! Oh, me falta lenha! Pegue este advogado! Oh, não queima este advogado; é verde, verde. Olhe que fumaça que faz!

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qualquer que venha a ser a magia realizada por Guido, ela nada mais é do que uma pequena tentativa de não se deixar engolir, juntamente com o filho, pela enormidade do mal que os circunda. Em La vita è bella, a inocência de Giosuè é preservada, é defendida diante da situação à qual é submetida elo destino; o jogo proposto pelo pai sustenta-se, de alguma forma ,

até o final e ao pequeno não resta que gritar de alegria pela vitória. O

expectador vê-se diante de uma emoção/comoção e é levado, ele também, a uma explosão catártica final: Giosué, que em um momento de plena felicidade, abraça a sua mãe e grita: Mamma! Abbiamo vinto! Mille punti! Da schiantare dal ridere. Primi ! Si torna a casa col carro armato... abbiamo vinto !( BENIGNI, R. e CERAMI, V., 1998, p, 189) 8 Benigni ousou muito ao escolher lidar com um tema tabu. Conseguiu, com muita originalidade e delicadeza, abordar uma questão imensamente pesada e carregada de implicações. Certamente, o que causou tanta polêmica com relação ao filme, o que dividiu a crítica e os expectadores foi a presença do riso dentro de uma situação tão dramática. Porém, o viés cômico de Benigni, neste caso, lhe permitiu uma abordagem sensível, delicada e refinada , mostrando que, apesar dos horrores, apesar de tudo, “... siamo condannati poeticamente ad amare la vita per forza: perché la vita è bella”. ( BENIGNI, R. e CERAMI, V., 1998, p. XI) 9 Finalizamos com as palavras do autor que, com a simplicidade das palavras que lhe é peculiar, nos revela o grande segredo contido na herança deixada por Guido Orefice: “Quando la risata sgorga dalle lacrime si spalanca il cielo.” (BENIGNI, R. e CERAMI, V. ,1998, contracapa) 10 e ... La vita è bella. Referências BENIGNI, R. e CERAMI, V. La vita è bella (sceneggiatura). Torino: Einaudi Editore, 1998. DORIA, Anna Rossi. Memoria e storia: il caso della deportazione. Soveria Mannelli: Rubbettino, 1998.

8

“Mamãe!Vencemos!Mil pontos!É para explodir de tanto rir. Primeiros! Voltamos para casa com o tanque de guerra ... vencemos! 9 10

“... estamos condenados poeticamente a amar forçosamente a vida: porque a vida é bela”. “Quando a risada jorra das lágrimas o céu se abre ”

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IOLI, Giovanna (a cura di). Primo Levi: memoria e invenzione. Atti del convegno di San Salvatore Monferrato 26-27-28 settembre 1991. S.S. Monferrato: Edizioni della Biennale piemonte e letteratura, 1995. LEVI, Primo. Se questo è un uomo. Torino: Einaudi, 2005. ______. I sommersi e i salvati. Torino: Einaudi, 1986. ______. Se questo è un uomo/ La tregua. Torino, Einaudi, 1989. ______. Se non ora, quando?. Torino: Einaudi, 1992. SEGRE, Cesare. “Il tragico e la Shoah nel romanzo del Novecento, in TOFFANO, P. Il tragico nel romanzo moderno. Roma: Bulzoni, 2003, p.p. 353-367. ______. “Racconti dal Lager”, in COSTAZZA, A. (a cura di). Rappresentare la Shoah. Milano: Cisalpino, 2005, p.p. 57-67. TOFFANO, Piero.Il tragico nel romanzo moderno. Roma: Bulzoni Editore, 2003

A CANÇÃO ERUDITA SOB A PERSPECTIVA DA SEMIÓTICA FRANCESA – UM ESTUDO DAS CANÇÕES DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E HEITOR VILLA-LOBOS Cleyton Vieira Fernandes [email protected] Antonio Vicente Pietroforte

Introdução: A teoria musical tem sido unânime em desmembrar, para fins didáticos, a expressão musical em três partes: a harmonia, a melodia e o ritmo. Queremos supor, até que tenhamos provas contrárias, que tais elementos são partes integrantes de um sentido único e a análise do todo depende, necessariamente, de cada parte. Curiosamente, as partes citadas ocorrem em simultaneidade temporal dentro da obra musical e isso implica em dizer que, além de relações internas, as partes têm relação com elas mesmas e com o todo e, somente a partir de investigações sobre essas relações poderemos cogitar a sombra de um sentido musical. Além disso, já partia de nossa proposta inicial a análise de uma canção onde, além de um sentido musical, também pudéssemos observar um sentido verbal, poético. O confrontar entre os dois planos de expressão nos daria pistas dos procedimentos 684

técnicos e composicionais empregados, além de por à prova a nossa própria metodologia analítica, fazendo-nos ver a aplicabilidade dos nossos princípios numa expressão sincrética. Voltando aos princípios da teoria musical, a citada tripartição entre harmonia, melodia e ritmo, tem sido questionada há tempos. No âmbito da harmonia, o desgaste de um “sistema tonal”, reinante na música ocidental desde o séc. XVII trouxe aos compositores a dificuldade, por um lado, de estabelecer os limites possíveis desse sistema em processo de desgaste, por outro, de que o mesmo, cada vez mais relativizado, sustentasse a estruturação interna da obra. Então, para evitarmos tal polêmica, melhor será estabelecer que, antes da composição musical, temos como matéria prima da música o som e, portanto, antes do trio harmonia, melodia e ritmo temos, como propriedades do som, a altura, a duração, a intensidade e o timbre. Ora, tratar das propriedades do som antes das propriedades da música nos perece ser, no mínimo, mais adequado aos nossos objetivos, visto que, uma reles discussão sobre o “conceito histórico de melodia”, por exemplo, nos tomaria as próximas páginas desse trabalho, bem como dos seguintes. Perceberemos ainda que, entre os constituintes do som, é a altura quem desempenha o mais fundamental e articulado papel. De partida, podemos considerar a melodia como sendo a altura em seu “estado sintagmático”, enquanto a harmonia configura uma relação “paradigmática” de alturas simultâneas. Essa última rege uma das bases do sentido musical: a relação consonância vs. dissonância. Ora, se teremos no plano de expressão musical uma relação entre consonâncias e dissonâncias que direcionará a foria de uma linguagem harmônica, quer seja ela tonal ou atonal, propomos complementar nossa análise submetendo o poema e, portanto, o plano verbal da canção, ao conceito de missividade analisando o direcionamento do fazer missivo perante as intensidades e extensidades do plano de expressão musical. Nossa pesquisa teve por base, portanto, os princípios semióticos formulados por Claude Zilberberg em seu livro “Razão e Poética do Sentido”1 (Zilberberg, 1998). Apesar dos conceitos formulados datarem de 1988, observaremos a pertinência de alguns princípios que certamente independem de um modismo teórico frágil e

1

Consideramos aqui a data da primeira edição, sendo a tradução brasileira desta obra de 2008

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facilmente superável e se ancoram num sistema de geração de sentidos e, portanto, aplicável independentemente do objeto de análise.

O poema A Cantiga do Viúvo (Carlos Drummond de Andrade) 2

A noite caiu na minh’alma, fiquei triste sem querer Uma sombra veio vindo, veio vindo, veio vindo, me abraçou

Era a sombra do meu bem, que morreu há tanto tempo, me abraçou com tanto amor, me apertou com tanto fogo, me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho, me disse adeus com a cabeça. E saiu, fechou a porta.

Ouvi os seus passos na escada, Depois mais nada, acabou.

2

As Serestas de Villa-Lobos receberam poemas de diversos poetas brasileiros. Carlos Drummond de Andrade, mineiro de Itabira do Mato de Dentro, está entre os mais importantes poetas brasileiros do século XX.

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Se considerarmos no referente poema o prisma da semiótica greimasiana tradicional do plano narrativo do percurso gerativo, encontraremos inicialmente um problema na definição actancial. Parece-nos que o sujeito encontra-se em disjunção em relação a um objeto que não é claramente citado, mas apenas subentendito: uma companheira. A destinação ocorre por uma paixão, e não por um destinador externo e capaz de prover os recursos necessários ao sujeito. O desenvolvimento da ação se dá num simulacro afetivo, interior e pertencente à alma do viúvo. Parece-nos que a ação do sujeito está mais em criar uma situação no interior desse simulacro do que em agir na ordem do mundo material. A situação contraditória mostra-nos um sujeito que não age, mas espera, numa destinação passional rumo a um objeto inatingível no mundo real. Inicia-se então um processo de construção de um discurso metafísico que colocará o sujeito em conjunção com um objeto de ordem transcendente. Em nosso ponto de vista há duas possibilidades de actancialização do poema e a distinção encontra-se na posição da “sombra” designada no 5º verso. Partindo do pressuposto de que essa sombra é a própria representação transcendente da esposa, teríamos nela o objeto do desejo do sujeito, alcançado numa ordem metafísica, espiritualizada. Por outro lado, se considerarmos que o sujeito manipula a figura da sombra em busca de um consolo temporário, teríamos a mesma como um adjuvante, responsável pela aproximação de um objeto não palpável, mas também transcendente e passional. Parece-nos que essa discussão é pouco produtiva. As funções efetivas dos actantes presentes no poema são pouco importantes na medida em que a narratividade do poema sequer lhe confere ação. O sujeito não “se mexe” em busca do objeto e o mesmo, por sua vez, não é delimitado pelo discurso. A sanção não é clara. Portanto, seria o caso de darmos menor importância a uma instância narrativa e tentarmos observar onde se instauram os pontos de tensão e movimentos missivos do discurso. Partindo então para o exercício dessa hipótese, veremos que o poema assim se inicia:

A noite caiu na minh’alma, fiquei triste sem querer

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Temos um sujeito afetado pelo acontecimento e, até então, o mesmo não dava falta do objeto, pois estava ausente o elemento tristeza e o surgimento desta é diretamente associado ao acontecimento. É a relação de causa e efeito problematizada por um sujeito que não queria o efeito e, portanto, também não à causa, mas, nada poderia fazer em contrário. Ora, temos de partida um sujeito vitimado e colocado em disjunção do objeto. Vemos fortalecida a hipótese que apresenta o objeto como um consolo imaginário na ordem do simulacro mental. Se o objeto em questão fosse a esposa, o fato que desencadearia a perda seria a morte da mesma, mas parece-nos que trata-se aqui de um problema do estado emocional. Os próximos versos do poema poderiam seguir em duas direções distintas na resolução da foria: a) o sujeito age b) o sujeito não age. A afirmação obvia anterior carrega o principal problema a ser resolvido nesta análise. Se o sujeito age, desencadeia-se o programa narrativo, é a parada-da-parada, a presença do ardor, do arroubo, da crença e do querer, enfim, os valores emissivos. Por outro lado, se não age, temos o anti-programa, a parada, a stase, a inibição, o dever sem ação, enfim, os valores remissivos. Vejamos o que acontece: Uma sombra veio vindo, veio vindo, veio vindo, me abraçou

Ora, ele espera, enquanto um outro actante age e, portanto, temos a instauração de um fazer remissivo da parte do sujeito viúvo. Mas vejamos, se este outro actante age, é ele quem assume a instância do emissivo. Temos uma gradação no efeito de aproximação da sombra que se aproxima do sujeito e abraça-o. A sombra em questão será identificada como:

Era a sombra do meu bem, que morreu há tanto tempo,

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Vemos então que a esposa perdida não aparece, mas uma sombra, uma imagem não palpável, abstrata. O discurso ancora a perda num tempo remoto, distante, aumentando a sensação da ausência de presença real. Em seguida o que se dá é o encontro com uma presença virtualizada. A conjunção se dá pela lembrança e o ter efetivo é substituído pela conjunção afetiva.

me abraçou com tanto amor, me apertou com tanto fogo, me beijou, me consolou.

Vemos que essa presença virtual é amplificada pelo sujeito na descrição de uma conjunção que ocorre por meio dos verbos “abraçou”, “apertou” e “beijou”. Vemos a presença da pragmática do objeto e encontramos o “amar” na coluna emissiva da tabela montada a partir das considerações de Zilberberg. Podemos dizer que a sensação de conjunção se dá no momento em que o sujeito se sente “consolado”, após ser abraçado, apertado e beijado. É o ápice do programa narrativo. Ocorre que tal conjunção não é permanente. Temos agora um programa narrativo contrário, no sentido do afastamento:

Depois riu devagarinho, me disse adeus com a cabeça. E saiu, fechou a porta.

Parece-nos que agora temos a inversão de um percurso de encontro. O tempo dilatado pela ironia do “rir devagarinho”. O adeus, dito com a cabeça e, portanto, não verbalizado, instaura o discurso numa instância remissiva do ponto de vista do sujeito. Vemos claramente que o sujeito não prevê nada. Ignora e apenas se deixa conduzir pelas ações do actante “sombra”. Podemos sugerir então um sujeito remissivo, um objeto inalcançável que é a esposa, um anti-sujeito invencível que é a morte e um anti/anti-sujeito capaz de promover a conjunção no discurso por meio da imaginação do sujeito.

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O poema ratifica a posição remissiva do sujeito nos últimos versos:

Ouvi os seus passos na escada, Depois mais nada, acabou.

O que temos na esfera temporal e espacial é também a instauração de valores remissivos. Temos a cronopoiese, ou alargamento da instância temporal. O tempo parece que transcorre lentamente. Percebemos isso em expressões como “veio vindo, veio vindo, veio vindo”, “depois riu devagarinho”, ou em recursos gradativos semânticos como abraçou, apertou, beijou e consolou. Por outro lado temos um fechamento espacial, íntimo, da esfera particular do sujeito. Em um esquema narrativo actancial do poema podemos encontrar o seguinte progresso.

A

A noite caiu na minh’alma, fiquei triste sem querer

Instauração da Polêmica

B

Uma sombra veio vindo, veio vindo, veio vindo, me abraçou

Início da ação e aumento da tensão

C

Era a sombra do meu bem, que morreu há tanto tempo,

Apresentação do actante eufórico

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me abraçou com tanto amor, me apertou com tanto fogo, me beijou, me consolou.

D

Momento de ação intensa e conjunção

E

Depois riu devagarinho, me disse adeus com a cabeça. E saiu, fechou a porta. Distensão e afastamento do agente emissivo

F

Ouvi os seus passos na escada, Depois mais nada, acabou. Marcação da posição missiva do sujeito e término

Podemos observar o seguinte movimento tensivo: intenso

D

B

C

E

F A desenvolvimento do discurso

Observamos, por meio das considerações acima, que:

691

 O sujeito do poema é remissivo  O emissivo, sombra, situa-se como anti/anti-sujeito  O nível de intensidade possui uma curva que parte do extenso ao intenso e retorna ao extenso. Parece-nos pertinente agora partir para a análise tensiva do plano de expressão musical para verificarmos a unidade do discurso em seu sincretismo. O Plano de Expressão Musical Estamos diante de uma canção muito mais ligada à tradição européia de câmara do que propriamente à tradição popular brasileira. O acompanhamento pianístico desenvolve contrapontos e articulações rigorosamente conduzidos e grafados na partitura em questão. Os motivos que conferem unidade à canção aparecem espalhados pelas intervenções do duo melódico e harmônico e a importância na construção do sentido musical dividem-se entre o canto e o piano não deixando dúvidas: estamos diante de uma canção de câmara. Dessa forma, partiremos para nossa análise aplicando nosso modelo de análise das dissonâncias e consonâncias aplicadas ao conceito de intensidade e extensidade conforma apresentado em capítulo anterior. Finalmente compararemos a análise obtida no plano de expressão musical ao plano de expressão verbal, obtendo assim uma conclusão comparativa de nosso trabalho. Dissonâncias e Consonâncias vs Intensidade e Extensidade. Aplicaremos tal proposta de análise onde verificaremos o aumento de intensidades em trechos com maior presença de dissonâncias, independentemente das funções harmônicas dos acordes. Observe-se o trecho abaixo, emblemático do ponto de vista da ausência de funções harmônicas tradicionais, pois apenas de conservam acordes diminutos variando em inversões deles mesmos ou em outros acordes diminutos sem conseqüência aparente entre eles:

692

Nos primeiros dois compassos do trecho temos respectivamente, um acorde E diminuto e G diminuto. É sabido que ambos são inversões de si mesmos, então temos: Mi

Sol

Sib

Réb

Acorde Mi Diminuto Sol

Sib

Réb

Mi

Acorde Sol Diminuto Distribuindo-se o acorde com as notas presentes na melodia teremos duas notas pertencentes ao acorde, Sib e Réb, e duas não pertencentes que atuam justamente nas passagens de um para outro compasso como notas de passagem e suspensão, intensificando o efeito tensivo por meio de uma 2ª menor, então teremos: Mib



2ªs menores derivadas da relação melódico-harmônica

Mi

Sol

Sib

Réb

Trítonos internos ao acorde

693

Como vimos, os dois primeiros compassos do trecho em análise portam um alto grau de dissonâncias e conforme a tabela elaborada anteriormente teremos os intervalos de 2ª menor em grau 5 e as 4ªs aumentadas em grau 6.

Observamos que as dissonâncias de 4ª aumentada - pontilhadas - espalham-se pelo trecho enquanto a dissonância de 2ª menor - em seta contínua - concentra-se no ponto de passagem do compasso. Mas ainda, os acordes seguintes deste trecho apresentarão uma sobreposição de dissonâncias, acumulando as dissonâncias internas dos acordes diminutos às dissonâncias causadas pela ausência das notas da melodia nos acordes de base. ou seja: Sib

Réb



Mib

2ªs menores derivadas das relações melódico-harmônicas Lá



Mib

Solb

Reproduzindo a análise dos compassos anteriores aos próximos três compassos teremos:

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Fica clara então a intensificação das dissonâncias tanto de ordem interna aos acordes, como também da relação entre melodia e acompanhamento. Concluímos com isso que As relações de intensidade e extensidade apresentam-se diretamente ligadas ao contorno melódico e este por sua vez ligado ao texto. Conclusão A aplicabilidade de princípios tensivos nos parece muito ampla no âmbito musical. O discurso musical, antes de tudo, trabalha com impressões. Por maior que seja sua coerência e planejamento interno, este só vem à tona por meio da impressão dos sentidos. Daí que, esse desprendimento de uma apreensão inteligível nos coloca face a face com a passionalização. A tensividade apresenta-se como melhor alternativa para soluções que não poderiam ser alcançadas pelo modelo do percurso gerativo. Por outro lado, as constantes continuidades e descontinuidades do discurso musical parecem corresponder, no plano poético, aos embates entre um fazer emissivo que insiste em dar andamento a um programa narrativo enquanto um fazer remissivo freia e passionaliza, num anti-programa criador de tensões. Pudemos também comprovar a ampla aplicabilidade dos processos de análise da canção popular preconizados por Tatit nos modelos de canção erudita. Parece-nos que os elos entre melodia e letra podem ser comprovados em amostras do repertório camerístico e, talvez, esses elos se estendam ao discurso amplo dos acompanhamentos que fazem parte do complexo contrapontístico da música erudita. É fundamental lembrar que, os sistemas musicais podem variar de cultura para cultura e até mesmo de compositor para compositor. Por isso, as ferramentas de análise 695

devem ser usadas sempre a partir de seus princípios e nunca como processos fechados que adaptam a obra de arte a uma “escala” de medição e conclusões previamente estabelecidas. Sobre tal questão, podemos citar Aristóteles:“ Pois as distinções do som e do silêncio estão reciprocamente condicionadas, acontecendo conosco o que ocorre aos ferreiros que, por hábito, já não ouvem a batida de seus martelos.” (Aristóteles, De Coelo). Referências BERTRAND, Denis (2003). ‘Caminhos da Semiótica Literária.’ Trad. Grupo CASA, Bauru, SP : EDUSC. CHEDIAK, Almir. “Harmonia e Improvisação I”; Rio de Janeiro: Lumiar Editora.(2007). _____________. “Harmonia e Improvisação II”; Rio de Janeiro: Lumiar Editora.(2007). FONTANILLE, Jacques e Claude ZILBERBERG (2002). “Tensão e significação.” Trad. LOPES, Ivã Carlos, TATIT, Luiz e BEIVIDAS, Waldir. São Paulo: Discurso Editorial/Humanitas. GREIMAS, Algian Julian e COURTÉS, Joseph. (1983). “Dicionário de Semiótica”. Trad. Alceu Dias, São Paulo: Cultrix. KENNEDY, Michael (1994). “Dicionário Oxford de Música”; Trad. CRUZ, Gabriela e NERY, Rui. Lisboa: Publicações Dom Quixote. LOPES, Ivã C.(?). “Extensidade, Intensidade e Valoração em alguns poemas de Antônio Cícero”. São Paulo. PORRES, Alexandre, FURLANETE, Fábio e MANZÔLLI, Jonatas (2006). “Análise de dissonância sensorial de espectro sonoro”. Brasília: ANPPOM, 16º Congresso da associação nacional de pesquisa e pós-graduação em música. ROEDERER, Juan (2002). “Introdução à física e psicofísica da música”; Trad. CUNHA, Alberto. São Paulo: Editora da universidade de São Paulo. SCHOENBERG, Arnold (1999). “Harmonia”; Introdução, tradução e notas de MALUF, Marden. São Paulo: Editora Unesp. TATIT, Luiz (1996). “O Cancionista, Composições de Canções no Brasil”; São Paulo: Edusp. VILLA-LOBOS, Heitor e ANDRADE, Mario de (1926). “A Cantiga do Viúvo”; Rio de Janeiro, Master Music Inc.

696

ZILBERBERG, Claude (1998). “Razão e Poética do Sentido”. Trad. LOPES, Ivã Carlos, TATIT, Luiz e BEIVIDAS, Waldir. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. ZILBERBERG, Claude (2001). “Tensão e Significação”. Trad. LOPES, Ivã Carlos, TATIT, Luiz e BEIVIDAS, Waldir. São Paulo: Discurso Editorial/Humanitas.

FAZENDO CINEMA E LITERATURA NA TELEVISÃO: A LEITURA DO ROMANCE DOM CASMURRO PELO DIRETOR LUIZ FERNANDO CARVALHO Cristiane Passafaro Guzzi (CAPES) UNESP/FCLAr Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan UNESP/FCLAr O paradoxo das imagens reside no fato de só ser imagem no exato momento de seu começo, na página em branco que permanece quando nada ainda foi revelado em sua superfície. [...] O que faz com que a literatura seja literatura, com que a linguagem escrita em um livro seja literatura, é uma espécie de ritual prévio que traça o espaço consagrado das palavras. Luiz Fernando Carvalho

O cinema funda-se como uma narrativa dilatada. Eleva-se à abertura de suas histórias ao extremo, por apresentar uma porosidade narrativa que permite uma maior exploração do procedimento discursivo da intertextualidade e da interdiscursividade. Por ter um princípio aberto de composição e por atuar com uma plasticidade manipulável, a linguagem cinematográfica dilata sua narratividade. Já o gênero televisivo, por depender de ganchos necessários para a compreensão da totalidade da história pelos seus espectadores, mostra-se, por sua vez, mais voltado para uma tentativa didática, de exposição quase lúdica, do que aconteceu, do que vai acontecer e do que poderia ter acontecido. O espaço narrativo da televisão necessita de um enredo propriamente dito, uma vez que sugestões, impressões e circularidades não avançam o relato e, em consequência, não traduzem um “produto” pronto de história que deve servir aos interesses daqueles que assistem ao gênero para, quase sempre, entretenimento ou lazer. O trabalho televisivo que vem sendo consolidado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho parece romper com essa hegemonia de feitura televisiva comercial, quando

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este se assemelha e se apropria da linguagem cinematográfica e de suas potencialidades dentro da esfera de produção da televisão. Há um princípio aberto de composição em suas feituras que permitem a exploração dessas porosidades narrativas e dos repertórios mobilizados para a transposição de romances literários, com toda carga de tradição retomável e manipulável dentro de um enredo, agora, televisivo. Encontramos,

no

caminho

percorrido

por

Carvalho,

um

verdadeiro

estabelecimento de compromisso, preocupação e conciliação com a educação de seu (tele)espectador. Para ele, os meios de comunicação, como o cinema e a televisão, são, na atualidade, importantes vetores da cultura e ajudam, em parte, a manter o homem em contato com o mundo. Contemporaneamente, porém, a mídia vem manipulando esses mesmos meios com o intuito de “[...] aplacar, de alguma forma, a angústia da população” (CARVALHO, 2002, p. 32), por intermédio do consumo de produções televisivas e cinematográficas que exigem o mínimo de bagagem cultural do público, e que expõem as crianças às diversões dos adultos de forma inconsequente e deliberada. Mediante tal reflexão, Carvalho (2002, p.32) declara que o vem ocorrendo é uma espécie de “regressão dos adultos”, que acabam recorrendo ao apelativo e ao burlesco, acentuando nestes uma certa “infantilidade”; enquanto que as crianças acabam por sofrer uma estimulação precoce. Nesse sentido, na transposição do romance Dom Casmurro (1899) para o suporte televisivo, realizando a minissérie Capitu (2008), verificamos que o enunciado do texto sincrético mostra-se composto e atravessado por tantos outros enunciados já existentes sobre o texto verbal; contudo, o que o diretor Carvalho faz é conseguir escancarar tais diálogos, pelo seu característico modo de exibir o processo de feitura de suas realizações ficcionais. O romance Dom Casmurro, como a literatura canônica em geral, institui-se como uma obra que convoca leituras em continuidade, permitindo ao leitor que se proponha analisar os significados engendrados pelo texto, a partir da autonomia de seus significantes. Cada leitura da obra de Machado considera e redimensiona as leituras anteriores, construindo um paradigma crítico que aponta para novas possibilidades de leituras combinatórias. A minissérie televisiva Capitu, - escrita por Euclydes Marinho, com colaboração de Daniel Piza, Luís Alberto de Abreu e Edna Palatnik, e texto final do diretor Luiz Fernando Carvalho -, apresenta-se como uma transposição aproximada da obra Dom Casmurro. Para Luiz Fernando Carvalho (2008, p. 75), a ideia do conceito de adaptação, em qualquer texto, “[...] é um achatamento da obra, um assassinato do 698

texto original”. Prefere, portanto, o termo “aproximação”, no qual as imagens dominam a cena em detrimento do universo dramático do romance, estabelecendo um diálogo com a obra original. O que podemos observar, na “aproximação” à obra machadiana, é que Carvalho, ao ler o romance, deixou ressoar, por meio dos efeitos de sentido construídos, tanto no plano de conteúdo quanto no plano da expressão, as experiências de Machado de Assis enquanto escritor, poeta, ensaísta, crítico e dramaturgo; preenchendo e atualizando, assim, o texto de Dom Casmurro de novas visibilidades, retomadas, diálogos e interpretações. Desse modo, interessa-nos pensar na maneira como as leituras presentes no texto literário deixam-se contagiar, transparecer e dialogar, criticamente e de modo atualizado, pelas diferentes linguagens mobilizadas e exploradas, por sua vez, pelo modo como o diretor recupera tal percurso imageticamente. Uma narrativa que se apresenta como de atmosfera é elíptica por natureza, uma vez que esta só cresce, só adensa-se, por intermédio dos interditos que são espraiados ao longo do relato. Na história de Dom Casmurro, assim como nas demais obras de Machado, não há trama propriamente dita. Há impressões, recordações, volteios e tentativas de recuperação, pela memória, de um narrador já velho e afetado pelos ciúmes de sua companheira de vida Capitu. A narrativa principal mostra-se precária em ações, fatos e relatos, em contraste com a exuberância de comentários paralelos, digressivos e quase sempre sem um desfecho para os mesmos. A trama de Dom Casmurro só adquire sentido mediante o trabalho digressivo, fragmentário, projetado pelo narrador, e alçado por uma dispersão do tempo, do espaço e das personagens. Se há uma linearidade no contar televisivo, esta se deve à instauração realizada pelo sujeito da enunciação que respeitou, linearmente, a disposição dos capítulos do livro na transposição. Verificamos, apenas, pequenas reordenações para, justamente, assegurar o ritmo vertiginoso da narrativa, favorecido, por sua vez, pelas especificidades do meio televisivo. O plano de narrativa ambiente de Dom Casmurro figurativiza um estado psíquico do narrador-personagem, dramatizando seus múltiplos ensaios, devaneios e sensações. Há, em todo o contar reflexivo, pequenas pausas narrativas, instantes de repouso no falar progressivo, trabalhados por intermédio do recurso da analepse (flashback) e da prolepse (flashforward)1, que apresentam como efeitos de sentido a interrupção no 1

De acordo com as contribuições de Gerárd Genette, em seu livro Discurso da narrativa (1972).

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curso cronológico da narrativa para a apresentação de eventos que aconteceram anterior ou posteriormente na narrativa. Nesse sentido, a minissérie, com os recursos disponíveis pela tecnologia de filmagem, enquandramento e montagem, evidencia tais anacronias no modo como apresenta as personagens da história. Estas são anunciadas por vinhetas de abertura que se inserem por uma voz, em off, mas dotada por tom caricatural, ao estilo de locutores antigos de rádio que narravam, diariamente, os romances-folhetins que circularam nos séculos XVIII e XIX. A manutenção dos títulos, como no romance, a cada plano-sequência equivalente aos capítulos transpostos, anuncia, como uma espécie de corte, as cenas que estão por vir do romance e que se apresentam, muitas vezes, interpoladas, como “narrativas secundárias”, na terminologia de Gérard Genette (1972), ou narrativas de “encaixe”, na terminologia de Tzvetan Todorov (1970). Ainda que secundárias ou encaixadas, essas narrativas, ao longo de toda a história, vão constituindo-se como informações necessárias para o entendimento do todo. Na minissérie, esses capítulos explicativos e funcionais, quase que como resumos explicativos das personagens e suas ações, são reforçados pelos cortes dos planos, denotando uma espécie de truncamento no desenrolar do enredo e do ritmo de filmagem, estabelecendo, como consequência, um tempo prolongado na história contada/filmada. Em Capitu, temos um trabalho de abertura narrativa análogo à narrativa do cinema. As retomadas necessárias para garantir a fidúcia do enunciatário ao narrado configuram-se por intermédio de estratégias manipuláveis e variáveis, como, por exemplo, pela exploração da musicalidade que finda um relato e anuncia, por outra melodia, uma dada história ou outra continuidade. Além disso, temos o trabalho da montagem que produz uma significação de alternância de planos e de ritmo ao material, a partir do ponto de vista de quem recorta, seleciona e combina o que será filmado, anunciando e preparando o telespectador para um desfecho, uma parada ou, até mesmo, uma continuidade na ação plasmada em tela. O romance trabalha com sensações para criar um ambiente envolto em atmosfera densa, perturbada, construída sob as sombras que atormentam a mente do narrador. Tal configuração imprime/exprime uma sensação na/da personagem, que evidencia seu interior perturbado por um tempo e espaço em ruínas. Como o próprio diretor (2008, p. 79) afirma,

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O personagem Dom Casmurro – por mais que ele negue e despiste – está incorporado ao trágico, está ligado de forma indelével a um tempo e um espaço que não voltarão jamais. Logo, trato o tempo como um personagem e não como um elemento narrativo simplesmente, uma época específica, o final do século XIX, não é isso. Este drama, esta tragédia, esta comédia, esta barafunda toda pode acontecer em qualquer lugar com pessoas de todas as idades e sexos.

Há uma desreferencialização de um tempo datado, marcado, de um Rio de Janeiro do século XIX, para criar um efeito de sentido de universalização do tema, da obra. A ênfase dada a um tempo que não pertence mais nem a ele mesmo, uma vez que não volta-se atrás com nada que já foi realizado, possibilita estender sua significação para a consciência de finitude e de transitoriedade das coisas, consolidando, assim, esta atmosfera sombria, mítica, enigmática e trágica que ambienta Bento Santiago.Vale ressaltar, contudo, que apesar de não termos a marcação do tempo cronológico, há, pelo movimento da iluminação utilizada na minissérie, uma separação nítida entre as duas fases do romance retratadas pela minissérie. A primeira, a infância de Bentinho e Capitu, configura-se em tons mais claros, luminosos, de cor branca e sem a interferência de gelatinas artificiais. Já na segunda fase, da maturidade do casal, nota-se o predomínio de cores mais intensas, como o preto, o roxo, o azul escuro, construindo uma imagética densa, que figurativiza os estados de ânimo das personagens em fases distintas. Como temos a história pela câmera do olhar de um narrador, primeiramente ainda não tão afetado pelos ciúmes e pelo rememorar, tal iluminação condiz com um estado de alma aparentemente de tranquilidade. Depois, com a progressão e com a intensidade dos fatos, há, visualmente, pelas cores trabalhadas, a afetação dos ânimos, principalmente, do narrador Dom Casmurro.

FIGURA 1 - Tomadas de cenas retiradas do DVD Capitu (2008)

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Enquanto leitor da narrativa impressionista de Machado, o enunciador sincrético, ao transpor o romance para o suporte televisivo, optou por manter, sim, a imprecisão no narrar, a exploração sinestésica e sugestiva no contar. No entanto, carrega no traço e deforma, estilizadamente, as personagens de modo grotesco, caricaturesco, muito mais próximo de uma atitude dita expressionista do que impressionista. Assim como o escritor Franz Kafka construía seus personagens deformados, isolados num espaço claustrofóbico, desagregados de suas firmezas e perdendo suas próprias referências, o narrador Casmurro da televisão será constituído por uma evidente deformação gradativa que avançará conforme compreenda a falta de identidade e clareza para sua própria vida. O grotesco, trabalhado enquanto solução formal para hiperbolizar tal atitude expressionista, figura-se desde a maquiagem até o posicionar-se em cena do protagonista, que, em muitos momentos, mostra-se arredio, instintivo, impulsionado pela deformação interior que o perturba, dilacera. As ações abruptas, violentas, afetadas pelos ciúmes e pelo descontrolar das demais emoções de Casmurro hipertrofiam, analogamente, ao falar de si progressivo, a expressão. Além do mais, ao optar por uma atitude expressionista na caracterização do narrador sincrético, inferimos uma destruição na realidade convencional dos meios mobilizados e certo efeito de estranhamento produzido com as elucubrações ensandecidas de um narrador. Este quase se cola na câmera, interage dentro da própria cena ocorrida em um passado longínquo e, progressivamente, fala por todos os cantos, dentro de um espaço sombrio, permeado de sombras. Assim, figurativiza-se no espaço exterior a própria fantasmagoria de eu interior atormentado.

FIGURA 2 – Tomadas de cenas retiradas do DVD Capitu (2008)

A escolha pela figurativização do tempo como uma personagem, que pode pertencer a tudo e a todos, presentifica a ideia do tempo como o responsável pelo eterno retorno das memórias, das histórias, ao ser engendrado pela ruína interior da

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personagem Casmurro. O narrador machadiano, por excelência, trata tanto o tempo, quanto o espaço, de forma absolutamente arbitrária. O narrador Casmurro dissolve o tempo no espaço, por intermédio de sua subjetividade exacerbada, misturando os fatos, deslocando-os em suas cronologias, forçando o leitor a acompanhar, minuciosamente, os volteios da imaginação da personagem retratada num lá e num então indefiníveis. Quando não temos a precisão de algo, sentimo-nos órfãos de certas referências que possam balizar o caminhar do sentido. Na minissérie, recuperando essa significação já sinalizada no romance, temos a figurativização dessa consciência do poder que o tempo exerce sobre as pessoas, seja por intermédio da velhice, seja por intermédio da morte. O peso dos fatos rememorados por Casmurro transfere para a ambientação da história o delinear do trágico que, de tão exarcebado, esbarra no cômico, no enaltecido hiperbólico. A suposta frieza e o evidente ceticismo do narrador Casmurro deixam transparecer a (fracassada) tentativa de dissimulação de si mesmo e dos efeitos que tais rememorações causaram em sua mente já absolutamente afetada. A célebre frase, do capítulo CXLVI, “Não Houve Lepra”: “Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro”, ao referir-se à morte de seu filho Escobar, evidencia, como um exemplo, essa tentativa de mentir para si mesmo o arrebatar dos acontecimentos, que, com o decorrer do tempo, começam a pesar de tal modo que tal personagem não consegue mais se livrar dos fatos e do que eles significam para sua própria destruição. A ruína, portanto, do tempo passado e rememorado, para Bento Santiago, deve-se mais ao modo como ele elabora os acontecimentos, progressivamente, tentando contá-los de modo aparentemente sutil, quando, em sua essência, eles significam muito mais do que aparentam ser. E é dessa significação do muito mais que Carvalho parece ter se apropriado. Reforçando a constituição desse narrador dissimulado, temos um modo de contar a história que se faz alternado ao longo de toda trama. Ora ele nos conta todos os pormenores dos fatos, ou ora ele se impacienta, acelerando sua fala e omitindo impressões necessárias para o entendimento do todo. Afetado, portanto, por um tempo que não volta mais, temos, apenas, impressões moldadas e, de certa forma, arruinadas, que figuratizam o andamento convulsivo da memória em funcionamento, quando esta é posta em exercício de rememoração. Incorporam-se, durante o relato, gestos insólitos no contar que mexem e reacendem sinestesicamente às múltiplas recordações vividas por Bentinho e que o ancoram nesse tempo do vivido, do eterno passado plasmado por lembranças sem volta. 703

Temos um contorno, uma espécie de esboço de pensamentos soltos, mas não seu preenchimento, sua consolidação. O registro da memória como matéria do romance sugere uma ausência de verdade no que é contado, fazendo com que as sensações e impressões sejam responsáveis pelo estabelecimento de um juízo de valor à narrativa. Vale ressaltar que esse juízo mostra-se dúbio, ambíguo e permeável a diversas leituras, uma vez que o que o assegura são as inconstâncias do narrar. Desse modo, a percepção do tempo, o ritmo de memória e um contar existencial por meio de lembranças e impressões filia o romance de Machado ao impressionismo, corrente estilística autônoma, que não se enquadra nem na mentalidade neo-romântica do simbolismo, nem nas experiências linguísticas feitas pelas vanguardas lideradas por Mallarmé ou Rimbaud, conforme pontuou José Guilherme Merquior, em seu texto “Machado de Assis e a prosa impressionista” (1996). A prosa impressionista exige certa distância, uma calma necessária ao relato, para se prestar atenção nos detalhes espraiados ao longo da história e que, reunidos, podem constituir uma informação, de alguma forma mais precisa, mais concluída, em meio a tanta sensação dispersada. O impressionismo não carrega na emoção, pois se mostra objetivo diante do que se quer representar: uma dada impressão do objeto em destaque, da narrativa, da personagem ou de algo relevante para o entendimento do todo, como elucidado nas paisagens quase descritivas de Monet ou nos retratos das características a serem postas em evidência nos quadros de Van Gogh. Os artistas desta corrente não tentam recriar, ao pé da letra, a natureza e nem tentam fazer reproduções fiéis delas. O que buscam é explorar, com pinceladas grossas, o que possa sugerir uma ideia da paisagem ou, no caso do romance, um traço que remeta à caracterização necessária para a consolidação daquela personagem, daquele espaço, daquele tempo. Tudo é sugerido, sempre. Nada é definitivo, pois é contorno indireto de algo. O expressionismo não se mostra como uma tendência artística, porém como uma atitude que tende a se metamorfosear. A mudança do narrador faz-se mediante a transformação interna pela qual a personagem passa ao constatar, segundo suas próprias impressões, o que fez de sua vida e o que poderia ter sido, caso enfrentasse seus fantasmas, seus demônios. O registro pela câmera mostra-se predominante, intenso, caótico, desesperado, evidenciando a presença do irracional, do demoníaco e dos impasses presentes no interior da personagem flagrada. Em outro momento do relato, temos o frear de tal ritmo do registro pela câmera, figuratizando, desse modo, o estado apático e melancólico que dominará a personagem de Bento Santiago nas cenas finais. 704

Observamos, assim, um plano de expressão extremamente acelerado, em contrapartida de um conteúdo relativamente desacelerado, uma vez que nada, de fato, acontece em cena, a não ser o curso de seus pensamentos evocados.

FIGURA 3- Tomadas de cenas retiradas do DVD Capitu (2008)

O narrador Casmurro é focalizado com a maquiagem toda borrada, produzindo uma caracterização melancólica, desvairada pelas recordações que o atormentam, dentro de um espaço circunscrito, fechado. Vale lembrar aqui do que emblematicamente nos ensinou, também, Edgar Allan Poe, por intermédio de suas personagens dilaceradas, acorrentadas a elas mesmas. Há pouca variação nos ambientes em que se passa a minissérie, uma vez que, predominantemente, quase todas as cenas foram gravadas no salão central do Automóvel Club do Brasil, localizado no Rio de Janeiro. Contudo, há uma impressão de variação dos cenários produzida por efeito de multiplicação das locações por intermédio da cenografia utilizada, da luz projetada, assim como do posicionamento da câmera que, como o narrador da minissérie, mostra-se inconstante nos mais variados ângulos. Nas imagens abaixo, nota-se o procedimento explorado ao se aproveitar do jogo criado pelos reflexos de luz emitidos por espelhos em contraste com a luz. Tais ressonâncias de iluminação engendram ora clarões para o relato televisivo, ora ofuscam a imagem captada pela câmera. Essa alternância acaba produzindo um efeito de sentido de dubiedade, que se mostra em conjunção com o que, no romance, é evidenciado também: o que ele está nos contando pode ser tomado como clara verdade ou como obscura mentira?

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Figura 4 - Tomadas de cenas retiradas dos Bastidores do DVD Capitu (2008)

Possíveis (in)conclusões... O que se pode notar, ainda que apenas apontado por este artigo, desde a composição dos cenários, a musicalidade escolhida, bem como os arranjos combinados para criar determinados efeitos de sentido para a câmera, é a constituição, pelo enunciador sincrético, de uma estratégia geral enunciativa. Essa estratégia mobiliza diferentes linguagens para obter um efeito de unidade para a narração televisiva, por meio de outros arranjos semissimbólicos2. Não é só da tradição da crítica, portanto, que o enunciador sincrético em questão se ampara para construir sua realização artística3, mas também, das especificidades das linguagens audiovisuais que engendram e instauram, para a consolidação do conteúdo transposto, expressões trabalhadas por diversas camadas de significativas. A própria literatura de Machado, com todo um diálogo alçado na tradição, parecer ter fornecido material teórico e analítico para Carvalho aproximar-se, criticamente, do romance machadiano que, até hoje, causa estranhamento, desconfianças, afirmações e, principalmente, possibilidades de diálogos. Ainda que sem refutar ou sem confirmar, explícita e integralmente, nenhuma das leituras expostas, o enunciador sincrético parece recolher o que cada uma pôde contribuir para uma nova configuração da obra. Desse modo, essa configuração se mostra construída por intermédio da exploração de leituras e citações que ressoam, principalmente, na exploração do plano da expressão que o 2

Um dos mecanismos desenvolvidos pela semiótica para a análise dos textos sincréticos, e talvez o mais difundido, é o semissimbolismo. Na prática, isso representa a busca de correlações entre categorias relevantes do plano de expressão e do plano de conteúdo, contemplando, dessa forma, mais detidamente, os discursos poéticos e não-verbais. 3 Vale ressaltar, inclusive, que privilegiamos o trabalho do diretor enquanto aquele que seleciona, combina, comanda, agrupa, convoca, mobiliza e determina os demais realizadores envolvidos num trabalho grandioso que vem a ser um filme ou uma minissérie. Assim como concebemos as diferentes linguagens envolvidas num texto sincrético como articuladas e resultantes de uma “estratégia global enunciativa”, destacamos seu papel como o de quem reúne e sintetiza a feitura metonímica de cada realizador envolvido na produção como um todo.

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gênero minissérie permite por suas próprias características. Esse movimento dá a ver um processo de adaptação que privilegia a manutenção do conteúdo da obra transposta. No entanto, trabalha, principalmente, com a exploração das escolhas evocadas pelas outras enunciações mobilizadas por um gênero que sincretiza diversas outras linguagens, pensadas como uma estratégia global enunciativa responsável pela continuidade discursiva resultante da textualização em questão. Mais do que um realizador de transposições imagéticas para o cinema e para a televisão, Luiz Fernando Carvalho parece mobilizar e atualizar todo um repertório em torno das obras e em torno de suas próprias leituras, engendrando significações plurais. Dessa maneira, permite, inclusive, que telespectadores de imagens prontas, como é o caso do público, em geral, do gênero televisivo, desacostumados a observar as fabulações de um modo geral, comecem a dialogar com o que cada fabulação traz de invenção e estímulo para a imaginação. Dentro do exagero, da hiperbolização e de um escancaramento do fazer que caracterizaram suas minisséries, encontramos possíveis sutilezas que permitem um estudo aprofundado da obra, da crítica, da tradição e das reverberações que a produção dos escritores selecionados representam na projeção de nossa literatura brasileira. Tais contribuições nos permitem, ainda, cotejá-lo, como um diretor que parece estar firmando, também, seu lugar em nossa arte televisiva, fornecendo-nos, com seu modo de sentir suas produções, um conceito de literariedade pela imagem. Referências ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Apresentação de Paulo Franchetti & notas de Leila Guenther. Cotia: SP; Ateliê Editorial, 2008. CAPITU. A partir do Romance Dom Casmurro de Machado de Assis. Escrito por Euclydes Marinho. Colaboração Daniel Piza, Edna Palatnik, Luís Alberto de Abreu. Texto Final e Direção Geral. Luiz Fernando Carvalho. Distrito Industrial- Manaus: Sistema Globo de Gravações Audiovisuais LTDA, 2009. 2 DVD’S, widescreen, color.Produzido por Globo Marcas DVD e Som Livre. CARVALHO, L. F. Sobre o filme Lavoura Arcaica. Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2002. ______. Diálogo com o diretor. In: ______.Capitu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008, p.75-83. GENETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Ed.Vega, 1972. 707

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MEMÓRIA, ESCRITA E FOTOGRAFIA EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM Daiane Carneiro Pimentel UFMG RESUMO O romance Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, estabelece diálogos diversos com a fotografia. A partir do pressuposto de que há várias possibilidades de se interpretar esses diálogos, pretende-se, neste trabalho, analisar e contrapor as formas como eles têm sido abordados pela crítica literária, procurando sistematizar as pesquisas desenvolvidas sobre o assunto, bem como discutir em que medida elas são consistentes. PALAVRAS-CHAVE: Relações intersemióticas; literatura contemporânea; fotografia; Milton Hatoum. 1. A memória fotográfica Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, inicia-se com o retorno de uma personagem anônima a Manaus para visitar a mulher que a criara: Emilie. Por meio dos sentidos essa personagem tenta reconhecer os cheiros, os lugares e as pessoas de outrora: “A atmosfera da casa estava impregnada de um aroma forte que logo me fez reconhecer a cor, a consistência, a forma e o sabor das frutas que arrancávamos das árvores que circundavam o pátio da outra casa” (HATOUM, 2000, p. 10). Embora possa reviver algumas sensações, como a passagem acima revela, aos poucos lhe vem a percepção de que a Manaus de suas lembranças não coincide com a atual: muitos deixaram a cidade, a paisagem portuária está irreconhecível, as pessoas lhe são estranhas e, o que simboliza todo esse passado esfacelado, Emilie acaba de morrer. Resta então, como forma de resgatar a história de sua família adotiva, a memória. Parece que o passado estava justamente à espera de ser tirado da paralisia, conforme expressa a seguinte passagem: “Na fala da mulher que permanecera diante de mim,

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havia uma parte da vida passada, um inferno de lembranças, um mundo paralisado à espera de movimento” (Ibidem, p. 11). Os objetos de que a narradora dispõe para realizar tal operação são um caderno de diário e um gravador, os quais apontam para o impulso de registrar impressões e lembranças não só pessoais, mas também alheias. Parentes e amigos ajudam-na a realizar a difícil tarefa de configurar as peças que formam a história construída ao redor de Emilie, de modo que Relato de um certo Oriente apresenta quatro narradores – Hakim, Dorner, o marido de Emilie e Hindié Conceição – além da mulher anônima, que é a responsável por organizar as narrativas. Logo na epígrafe do romance, há uma referência à memória: “Shall memory restore/The steps and the shore,/The face and the meeting place;”. Esses versos de W. H. Auden, ao expressarem a vontade de que a memória reconstrua (“restore”) os passos/rastros (“steps”), a praia (“shore”), a face (“face”) e o lugar de encontro (“meeting place”), sugerem que o trabalho memorialista procura recuperar imagens do passado. Ao analisar como a memória opera na ficção de Hatoum, Noemi Campos Freitas Vieira compreende a memória justamente “como uma arte capaz de registrar imagens e de, por meio da linguagem, presentificar essas imagens do passado redimensionadas no presente através do discurso” (VIEIRA, 2007, p. 26). Revelando que o passado, uma vez que é registrado sob a forma de imagem, irrompe como imagem, Hakim, filho dileto de Emilie e um dos narradores do Relato, afirma que a loja de seu pai é “um ambiente que te faz recordar fragmentos de imagens que surgem e se dissipam quase ao mesmo tempo” (HATOUM, 2000, p. 115, grifo nosso). Enquanto o trecho acima evidencia que é característica da memória operar via imagens, outros trechos do romance destacam o fato de que o processo de rememoração não só reconstrói mentalmente imagens do passado, como também pode ser desencadeado por imagens fotográficas, que, com frequência, estimulam personagens do romance a lembrar daqueles que morreram ou que estão vivos mas distantes. Nesse sentido, no relato verbal organizado pela mulher anônima para recuperar a história centrada em Emilie, são muitas as alusões a fotografias, o que, por sua vez, acarreta uma articulação da palavra e da imagem. Vale mencionar que, além dos já citados diário e gravador, a protagonista tem consigo um álbum de fotografias: “Levava comigo apenas um alforje com algumas roupas, um pequeno álbum com fotos, todas feitas na casa de Emilie, a esfera da infância” (Ibidem, p. 165). No que se refere ao recurso à fotografia em Relato de um certo Oriente, a fortuna crítica de Hatoum ressalta exatamente a relação entre fotografia e memória na 709

construção da narrativa. Percebe-se, contudo, que a maioria dos críticos literários não se dedica com exclusividade a essa relação, e sim a insere em uma abordagem mais ampla relativa à memória e/ou à presença de imagens (pinturas, desenhos, fotografias etc.) no romance, embora sejam preponderantes as referências à fotografia. As pesquisadoras Jerusa Pires Ferreira (2007), Estela Vieira (2007) e Marleine Toledo (2006), por exemplo, embora não se aprofundem na interpretação das imagens presentes em Relato de um certo Oriente, não deixam de ressaltar que a escrita sobre o passado da família e dos amigos de Emilie, além de se basear na transcrição de depoimentos orais, articula-se com o visual na medida em que apresenta desenhos e, principalmente, fotografias como objetos memorialísticos. Reiterando a constatação de que na coleção de depoimentos organizada pela mulher anônima há fotografias e que estas contribuem para o exercício da memória, 1 Susana Scramim desenvolve, em três artigos cujas ideias convergem, uma análise da fotografia no romance hatoumiano em questão. Scramim argumenta que no processo de rememoração do Relato, inscreve-se uma série de imagens, que “desencadeiam, mais do que o verbo, a anamnese em homens e mulheres que se ausentaram de sua casa, de sua família, de sua mãe” (SCRAMIM, 2007, p. 52). Da série de imagens, a pesquisadora destaca as fotografias enviadas por Emilie a seu filho Hakim depois que ele se mudou de Manaus: “[Emilie] Nunca me escreveu uma linha, mas trocávamos fotos por correspondência, sabendo ser essa a única maneira de preservar uma idolatria à distância” (HATOUM, 2000, p. 104), informa Hakim. A matriarca procede, assim, a uma substituição do relato verbal da vida de sua família pela linguagem icônica, que estabelece outro jogo na relação amorosa entre mãe e filho: “em vez de metáforas e hipérboles, luz e sombra; ausência e presença” (SCRAMIM, 2007, p. 53). Essa substituição não anula o processo de significação, e sim incita Hakim a compor, a partir das imagens, sua história familiar, de modo que em Relato de um certo Oriente “das imagens formula-se o verbo” (Ibidem, p. 56). O personagem entende, por exemplo, que seu pai morreu, quando recebe uma foto em que Emilie aparece “sentada na cadeira de balanço ao lado da poltrona coberta por um lençol branco, onde meu [de Hakim] pai costumava sentar-se ao lado dela” e usando duas alianças na mão esquerda 1

Nas palavras de Scramim, “Contribuindo para a caracterização do Relato de um certo Oriente como rememoração de uma história coletiva, a narração é organizada a várias vozes. (....) A coleção, organizada de modo caótico, é construída mediante os depoimentos, bem como da leitura que faz de objetos que teve a sensibilidade de selecionar para a coleção, das cartas que recebeu e reuniu e das fotografias que guardou e arrancou dos álbuns de família” (SCRAMIM, 2007a, p. 176).

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(HATOUM, 2000, p. 104). Já outra fotografia, em vez de contar visualmente um acontecimento ocorrido em um passado recente, ativa a memória de Hakim, remetendoo ao dia em que decide partir de Manaus e também às desilusões que marcaram a trajetória da matriarca. Ademais, as lembranças suscitadas pela fotografia são tão expressivas que Hakim, ao mirar a imagem que “enquadrava Emilie no centro do pátio cercado por um jardim de Delícias” (Ibidem, p. 105), materializa a voz e o corpo da mãe, sentindo-se ao lado dela: Ao olhar para a foto, era impossível não ouvir a voz de Emilie e não materializar seu corpo no centro do pátio (...). Se eu não tivesse olhado para aquela fotografia, poderia abstrair todas as outras, fechar os olhos a todos os retratos enviados para mim ao longo de tantos anos, ou simplesmente recordar através das imagens algo fugidio, que escapa da realidade e contraria uma verdade, uma evidência. Porque era a revelação de um momento real e de uma situação palpável o que mais me impressionava na fotografia. Sentia-me ali, juntinho de Emilie, ocupando a outra cadeira de vime, atento ao seu olhar, à sua voz que não me interrogava, que aparentava não relutar que eu fosse embora para sempre (Ibidem, p. 105-6).

Essa passagem de Relato de um certo Oriente apresenta, segundo Scramim, semelhanças com os aspectos da arte de fotografar analisados por Walter Benjamim: técnica e magia. Enquanto tecnicamente, por meio da câmera, a fotografia registra uma cena de forma objetiva, a mesma fotografia desencadeia “todo um processo de construção de imagens de um mundo subjetivo”, de modo a instaurar “a possibilidade de conhecer os aspectos fisionômicos de um mundo figurado” (SCRAMIM, 2007, p. 56). De fato, conforme o próprio Hakim expressa no trecho acima, a partir da fotografia ele recorda não a realidade, e sim algo que dela escapa. Para o personagem, a imagem de Emilie transforma-se no “álbum de uma vida”, que apresenta memórias em páginas pouco concretas (“transparentes”), como se tivessem sido “tecidas durante um sonho” (HATOUM, 2000, p. 105-6). Uma vez diante não apenas de um retrato de sua mãe, mas de um álbum de família, Hakim tenta recuperar alguns episódios de decepção e sofrimento2 que, segundo ele, estão revelados pelo rosto registrado na fotografia. Na concepção de Scramim, a mesma fotografia é, portanto, constituída por dois discursos, o discurso do real e o do imaginário (Cf. SCRAMIM 1997; 2007), sendo este fruto da leitura particular da cena captada pelo fotógrafo.

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Tais episódios relacionam-se sobretudo com a gravidez indesejada de sua irmã Samara Délia, com os primeiros anos de vida da filha de Samara e com a morte prematura da criança.

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Posto que Hakim realiza uma leitura subjetiva das fotografias, é de se esperar que as interpretações dessas imagens mudem de acordo com o observador. Certamente, personagens diferentes teriam leituras diferentes dos mesmos retratos de Emilie, além de o próprio Hakim poder atribuir sentidos variados aos retratos conforme o contexto em que fala sobre eles. Contudo, o romance apresenta as fotografias de Emilie somente a partir do ponto de vista de Hakim, talvez porque se tratava de uma correspondência íntima, a que outros personagens não tinham acesso. Ademais, Hakim se refere à correspondência fotográfica uma só vez e pouco depois de saber da morte da mãe, o que pode justificar o fato de ele ter procurado comparar a imagem de Emilie à imagem das santas, como se tal estratégia divinizasse a matriarca, evidenciando que ela poderia ocupar os “nichos com tampa de cristal” onde as santas são contempladas com devoção semelhante àquela com que o filho admira o retrato da mãe: Era um rosto suavemente maquilado e na sua expressão conviviam a serenidade implacável e a postura soberana dos rostos esculturais das santas embutidas em nichos com tampa de cristal, perfilados nas laterais da nave da igreja cujas portas se abrem para o porto e são iluminadas pelo sol da manhã (HATOUM, 2000, p. 104).

Assim, a concepção de que as interpretações das fotografias se alteram não pode ser comprovada de modo satisfatório por meio dos retratos de Emile, os quais, como se afirmou, são descritos segundo um único olhar. Para se verificar se essa concepção é verdadeira em relação a Relato de um certo Oriente, devem-se analisar retratos de outros dois personagens: Hanna e Emir. No quarto capítulo, em que assume a voz narrativa, o marido de Emilie conta que crescera, no Líbano, lendo as cartas que seu tio Hanna enviava do Brasil, mais precisamente da região amazônica, cujas maravilhas e cujos perigos eram apresentados de modo fantasioso. Após alguns anos de correspondência verbal, Hanna envia à família libanesa “dois retratos seus, colados na frente e no verso de um papel retangular” (Ibidem, p. 72). Com o objetivo de estimular que algum parente decidisse se mudar para o Brasil, os retratos estavam acompanhados por um bilhete com os seguintes dizeres: “entre as duas folhas de cartão há um outro retrato; mas este só deverá ser visto quando o próximo parente desembarcar aqui” (Ibidem, p. 72). O futuro marido de Emilie é o escolhido para “enfrentar o oceano e alcançar o desconhecido, no outro lado da terra” (Ibidem, p. 72), mas, ao chegar a Manaus, já não encontra Hanna vivo. De posse do

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retrato do tio, ele pergunta a um rapaz que estava no porto se conhecia o homem ali estampado e descobre que esse rapaz era seu primo. Enquanto é levado pelo primo ao cemitério onde Hanna estava enterrado, o futuro marido de Emilie examina os dois retratos recebidos ainda no Líbano, como se isso pudesse fazê-lo sentir-se mais acolhido naquela realidade estranha: “Uma espécie de clareira parecia constituir uma interrupção daquele mundo sombrio. Inexplicavelmente fitei os dois retratos de Hanna, examinando cada lado do cartão” (Ibidem, p. 74). Surge, então, a surpresa: As duas imagens, que antes pareciam rigorosamente idênticas, agora diferiam em algo; conjeturei que a causa dessa diferença fosse alguma alteração química durante a ampliação. Pensei: duas ampliações de uma mesma chapa revelam sempre duas imagens distintas. Virava o cartão nervosamente, querendo comparar os dois retratos: a claridade tornava-os ainda mais distintos, ressaltando certas diferenças: a curva das sobrancelhas, a saliência dos pômulos, a textura dos cabelos (Ibidem, p. 74-5).

As imagens, em vez de acalmar o personagem, aumentam seu atordoamento, pois não são mais idênticas. A primeira hipótese para explicar a diferenciação situa-se no âmbito da técnica: “alguma alteração química durante a ampliação” do negativo poderia ter causado o fenômeno. Mas, logo a seguir, o futuro marido de Emilie menciona um elemento relativo à percepção sensorial, a claridade, que também é responsável por tornar os retratos “ainda mais distintos”, não por alterar sua constituição físico-química, e sim por ressaltar “certas diferenças”, perceptíveis conforme a luz incide sobre as imagens, ou seja, conforme o ambiente em que o observador se situa. Deslumbrado com a claridade de Manaus desde o primeiro nascer do sol que presenciou na cidade, o qual lhe revelou uma “paisagem singular” (Ibidem, p. 73), o personagem, no momento em que compara os retratos de Hanna, parece ter seu pensamento iluminado, o que o leva a perceber as diferenças entre as imagens. Semelhante indecisão quanto à maneira de interpretar uma fotografia ocorre quando, depois de chegar ao túmulo do tio, o futuro marido de Emilie verifica o retrato contido entre as duas folhas de cartão, o qual só deveria ser visto em terras brasileiras: “Era um outro retrato de Hanna, ainda jovem, antes de partir; mas parecia também o retrato do seu filho” (Ibidem, p.75). Nessa passagem, evidencia-se como a mesma imagem registrada é passível de receber mais de uma leitura. A asserção de que se trata

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de um retrato de Hanna é imediatamente contestada pelo personagem-narrador, que, tendo conhecido o filho de Hanna, não se decide se vê registrado o tio ou o primo. Mais uma vez, é Susana Scramim quem se dedica às fotografias de Hanna, utilizadas por ela para demonstrar que, em Relato de um certo Oriente, “a imagem que a fotografia veicula não obtém seu sentido dela mesma, mas sim de uma relação que ainda está por fazer-se entre o que vemos e o que nos olha naquilo que vemos” (SCRAMIM, 2007a, p. 187). A partir disso, pode-se concluir que, se o retrato colocado entre o cartão obtivesse seu sentido dele mesmo, o pedido para que ele fosse visto apenas em Manaus seria desnecessário, pois, independente do espaço, do tempo e do conhecimento do observador, a imagem seria sempre idêntica. Todavia, contemplar a fotografia depois de atravessar o Atlântico e encontrar um primo no lugar do tio possibilitou uma interpretação inusitada e ambígua da imagem. Para Scramim, o retrato é inclusive um anúncio da morte de Hanna, na medida em que, apresentando um rosto que é de Hanna ou de seu filho, já que ambos se parecem, sugere a permanência, neste, daquele (o qual morrera); sendo a permanência verificada primeiramente no porto, onde “o parente recém-chegado do Líbano irá reencontrá-lo [Hanna] somente no que resta dele no filho” (Ibidem, p. 188). A pesquisadora também argumenta que a morte de Emir, irmão de Emilie, foi anunciada e apresentada mediante o procedimento fotográfico (Ibidem, p. 187), opinião compartilhada por Rodolfo Mata, segundo o qual o retrato de Emir tirado no dia em que ele se matou “se convierte en símbolo doloroso del presagio desatendido” (MATA, 1996, p. 105). Provavelmente por não ter conseguido se adaptar a Manaus nem se esquecer da mulher por quem se apaixonara em Marselha, um dos portos pelos quais passou durante a viagem do Líbano ao Brasil, o solitário Emir suicida-se no rio Negro. Instantes antes do afogamento, o alemão Dorner, fotógrafo profissional, avistara Emir no coreto da praça e, impressionado com a orquídea que ele ostentava, fotografa-o, sem, contudo, perceber a expressão do rosto do amigo: “Observava a flor entre os dedos de Emir, e talvez por isso tenha me escapado sua expressão estranha, o olhar de quem não reconhece mais ninguém” (HATOUM, 2000, p. 61). Nas horas seguintes ao encontro com Emir, Dorner não consegue se concentrar em seu trabalho, como se sentisse a aproximação de uma tragédia: “Um sentimento esquisito tomava conta de mim, como se eu estivesse impressionado por um presságio, um indício de um acontecimento adverso” (Ibidem, p. 63). O fotógrafo deixa então o laboratório e pergunta por Emir a um soldado, que o informa do desaparecimento do libanês. Confirmada a morte de Emir, 714

resta, além da memória de Dorner, que certamente foi o último a fitar a estranha expressão do suicida, o retrato em que essa expressão foi registrada. Nos capítulos em que é narrador (terceiro e parte do quinto capítulo), Dorner lembra a história do retrato de Emir, a qual se confunde com a história da morte do personagem. Entretanto, Hakim, que ouve o relato de Dorner, salienta que a imagem dizia mais do que as palavras do fotógrafo: “A foto contava o que Dorner não me pôde dizer: o rosto tenso de um corpo que caminhava em círculo ou sem rumo (...)” (Ibidem, p. 60). O retrato derradeiro de Emir desencadeia, assim, a memória do fim trágico do personagem, ao mesmo tempo em que solicita que sentidos sejam atribuídos à imagem nele registrada, os quais não são esgotados pelo discurso verbal. Dessa forma, Emilie, “receosa de que a alucinação do irmão fosse contemplada pelos olhos da cidade” (Ibidem, p.84), exige de Dorner o negativo e todas as reproduções da fotografia, em uma tentativa de guardar para si as interpretações acerca dos “indícios do estranho comportamento de Emir [que] estavam estampados na única imagem do seu rosto naquela manhã que findava” (Ibidem, p. 83-4). Dorner pede a um amigo fotógrafo para fazer as revelações do retrato, pois “seria doloroso ver Emir emergir lentamente da química” (Ibidem, p. 78). Corroborando a ideia expressa pelo marido de Emilie de que “duas ampliações de uma mesma chapa revelam sempre duas imagens distintas” (Ibidem, p. 74), várias ampliações são feitas, com diferentes contrastes, mas nenhuma delas consegue eliminar a angústia de Emir, conforme ressalta Dorner: “Pedi que fizesse outras cópias com menos contraste, mas há sempre um estigma, uma marca inextirpável da angústia que até mesmo a fotografia perpetua” (Ibidem, p. 78). Ao receber as ampliações, Emilie detém-se nos detalhes do rosto do irmão, provavelmente com a intenção de desvendar os mistérios nele escondidos: Ela permaneceu alguns minutos silenciosa e serena, embebida pelas imagens, talvez pensando “por que esse olhar, esse rosto contraído, essa febre intensa que o jogo de luz e sombra deixa transparecer?”. Deixei-a sozinha com os retratos, ao notar que suas mãos pousavam nos olhos de Emir ou encobriam uma parte do rosto, como se ela quisesse mirá-lo por partes para desvendar alguma coisa que nos escapa ao fitarmos o todo (Ibidem, p.78-9).

Emilie repetirá essa atitude até o fim de sua vida, o que significa que a tarefa de traduzir o sentido expresso pelo retrato será sempre inconclusa. Segundo Scramim, Emilie olha tantas vezes a imagem de Emir “em busca de uma explicação para o evento

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da morte do irmão, mas a cada vez que olha para a foto encontra um sentido diferente para o mesmo evento, uma vez que Emir, em seu olhar perdido, olhava para alguém ou alguma coisa” (SCRAMIM, 2007a, p. 187-8). Dessa forma, se não é possível recuperar com certeza o que buscam os olhos de Emir, o sentido da imagem é obtido por meio de uma relação que ainda estar por fazer-se, e que não pode ser completada. Para Scramim, portanto, as fotografias de Relato de um certo Oriente, assim como os demais objetos que compõem a coleção organizada pela protagonista anônima, possuem uma potência de intervir no processo de desvendamento do passado, mas não a executam, pois não conseguem responder com precisão as perguntas lançadas pelos personagens. As fotografias estariam em uma relação dinâmica com o presente, sendo necessário, para entender essa relação, recuperar o duplo significado do termo dynamis: potência e possibilidade (Ibidem, p. 176). De fato, embora as fotografias de família sejam a princípio tomadas como detentoras de uma memória, aos poucos sobressai o caráter subjetivo das interpretações a elas conferidas, interpretações que de tão diversas não oferecem respostas conclusivas, de modo que “os sentidos do mundo particular da família árabe-manaura (...) acontecem na proporção em que se sofre uma privação de potência, privação das sensações que constituem aquele mundo” (Ibidem, p. 177). A estudiosa Vera Maquêa chega a conclusões semelhantes às de Scramim no que se refere à presença da fotografia em Relato de um certo Oriente. Tal como Scramim, Maquêa ressalta que, apesar de ser “uma variante do discurso de memória que se confunde com o discurso dos narradores” (MAQUÊA, 2007, p. 139), a fotografia acaba por atestar a impossibilidade de se recuperar o passado com exatidão, haja vista que ela é passível de revelar informações novas: No capítulo narrado pelo fotógrafo Dorner, momento do romance em que mais a fotografia surge como tradução de sentimentos e lembranças, percebe-se que a fotografia não é uma relíquia simples do passado, um sinal material do que ocorreu, mas ela é viva e guarda informações novas que podem ser reveladas a partir de qualquer momento, pois para Milton Hatoum quem olha também modifica o passado, e mesmo a fotografia mil vezes olhada pode revelar traços novos das experiências já vividas (Ibidem, p. 144)

A narrativa elaborada por Dorner torna-se central justamente por ela se construir a partir da lembrança do retrato de Emir, o qual anuncia algo que vai acontecer, instaurando “uma dupla revelação: ao revelar a foto, revelam-se angústias que os olhos não puderam captar no momento mesmo em que a vida explodia” (Ibidem, p. 139). Esse

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mesmo retrato, assim como outros referidos ao longo do romance, receberá interpretações variadas, o que permite Maquêa afirmar que, ao atuar sobre a fotografia, a memória redefine imagens e confere a elas uma mobilidade que nada mais é do que “uma recusa de um passado invariável e fechado” (Ibidem, p. 229). Ainda na esteira de Scramim, a estudiosa Bridget Christine Arce defende que as fotografias de Relato de um certo Oriente possuem a função da memória, podendo inclusive, como ocorre na correspondência entre Emilie e Hakim, substituir a imagem e, assim, fazer com que a visão complete a comunicação (ARCE, 2007, p. 226). Arce, contudo, não deixa de ressaltar que, embora interajam “com a memória através do isolamento de um momento no tempo” (Ibidem, p. 228), isolamento esse que confere à imagem registrada um caráter estático, as fotografias dos personagens recebem diferentes significados, conforme o contexto em que são miradas: A imagem envolve o espectador individual de forma vária, e significa diversas coisas em diferentes momentos no tempo. A fotografia, como ferramenta da memória que recupera e capta momentos efêmeros no tempo, mantém também uma relação dialógica com o presente, criando novas significações, enquanto cataloga as antigas (Ibidem, p. 228).

Dessa forma comprova-se, mais uma vez, que a fotografia, longe de atuar no Relato como um simples repositório de informações verídicas do passado, possibilita uma multiplicidade de interpretações da imagem captada pela câmera, aspecto observado também por Maria Aparecida Ribeiro. Para demonstrar que “nas fotografias diluem-se os contornos da realidade” (RIBEIRO, 2007, p. 148), Ribeiro cita o seguinte comentário de Dorner: “Pensando também na fotografia de Emir, cogitei que aquela imagem protegida por uma lâmina de cristal pode evocar um morto de Manaus e os do mundo inteiro” (HATOUM, 2000, p. 80). Pelas palavras de Dorner, evidencia-se que, apesar de não haver dúvida de que o homem do retrato é Emir, é possível tomá-lo metonimicamente como representante de qualquer morto, de tão paradigmática e expressiva é sua angústia. Já Sarah Wells apresenta uma abordagem distinta da articulação entre fotografia e memória em Relato de um certo Oriente. Em sua concepção, fotografia e memória são contrastantes, uma vez que esta é repleta de detalhes e aquela é oblíqua: Se as fotografias na obra de Hatoum são também oblíquas, elas são postas em contraste com os ricos detalhes das memórias do narrador, por mais contestadas que possam ser: a fotografia se recusa a revelar,

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mas a memória (e a escrita) se abre a uma certa plenitude (WELLS, 2007, p. 71).

Pode-se contra-argumentar que a memória dos narradores, a partir da qual se elabora o Relato, é tão oblíqua quanto as fotografias. Afinal, são muitos os segredos da família de Emilie que permanecem indecifráveis, como, por exemplo, o porquê de a matriarca ter adotado a protagonista e seu irmão, além de os próprios narradores refletirem sobre a precariedade de sua memória e sobre a ficcionalização do passado, como é verificado, respectivamente, nas seguintes afirmações da protagonista: “Eu procurava reconhecer o rosto daquela mulher. Talvez em algum lugar da infância tivesse convivido com ela, mas não encontrei nenhum traço familiar, nenhum sinal que acenasse ao passado” (HATOUM, 2000, p. 9); “Para me divertir, para distorcer alguma verdade, para tornar a representação algo em suspense, contava sonhos que não tinha sonhado e passagens fictícias da minha vida” (Ibidem, p. 61). Ademais, conforme os outros estudos mencionados ao longo desta seção demonstram, a fotografia é, na verdade, um dos principais recursos que desencadeiam a memória em Relato de um certo Oriente, ainda que conduza a interpretações distintas do passado. 2.

A escrita fotográfica Além de analisar a relação entre fotografia e memória em Relato de um certo

Oriente, alguns críticos literários investigam o modo como as linguagens fotográfica e verbal se articulam no romance. Uma das abordagens da questão diz respeito ao trânsito da imagem em direção à palavra. Conforme se apresentou acima, no Relato são muitas as referências a fotografias, que desempenham um papel importante na construção da narrativa. Entretanto, todas essas imagens não são acessíveis ao leitor de forma direta, pois o romance não as reproduz, e sim as apresenta por meio de palavras, o que leva Scramim a concluir que no Relato “ocorre o trânsito entre a materialidade linguística e a imaterialidade visual de uma coleção de objetos” (SCRAMIM, 2007, p. 46).

Assim, as fotografias que

substituem o discurso verbal e desencadeiam a rememoração adquirem uma visualidade apenas quando são descritas: A narradora encontra-se materialmente em outro tempo que não é o do narrado, contudo, há um imenso desejo de recuperar aquilo que, a princípio, se encontra perdido. Para realizar esse desejo ela se utiliza, entre outros recursos, do procedimento de descrever as imagens

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registradas nas fotografias. Há uma transcodificação de linguagens, passa-se da imagem para a palavra (Ibidem, p. 54).

A partir dos comentários críticos acerca do personagem Dorner, é possível compreender outra articulação entre a linguagem fotográfica e a verbal, a saber: a que parte da palavra em direção à imagem. Combatendo a ideia de que a fotografia apenas mostra diretamente a realidade e não conta histórias, o retrato de Emir tirado por Dorner implica, segundo Rodolfo Mata, “un mundo narrado”, isto é, “un mundo de causas, de ‘antes y después’, de ‘si...., entonces...’” (MATA, 1996, p. 105). O fotógrafo consegue, portanto, conferir narratividade e temporalidade à imagem, características típicas do discurso verbal. Devido a isso, Scramim classifica Dorner como um “narrador silencioso” cujo maior interesse é combinar documentário e ficção (SCRAMIM, 2007, p. 58). A vontade de ser fotografado, expressa por muitos, é comentada pelo personagem com um tom crítico, embora ele próprio ganhasse dinheiro devido a essa vontade. Enquanto fotógrafo, ele preferia definir-se como “um perseguidor implacável de ‘instantes fulgurantes da natureza humana e de paisagens singulares da natureza amazônica’” (HATOUM, 2000, p. 59), instantes esses que organiza em álbuns de fotografias e desenhos. Sobre os álbuns, Hakim afirma: “Sempre que [Dorner] recebia elogios e estímulos, observava com humildade: “Há erros clamorosos nesta ilustração de aventuras, mas creio que todo viajante que procura o desconhecido convive com a hipótese feliz de cometer enganos” (Ibidem, p. 81). A observação de Dorner retomada por Hakim explicita que o fotógrafo, em vez de se preocupar com a exatidão e com o registro documental, entende os enganos de forma positiva, o que parece ratificar a ideia de que, por meio da fotografia, ele constrói histórias ficcionais. Contudo, a certa altura de sua vida, Dorner abandona a profissão de fotógrafo e troca seu laboratório por uma biblioteca: “Pouco tempo depois mandei às favas o laboratório e o material fotográfico. Na verdade, troquei tudo por uma biblioteca com obras raras editadas nos séculos passados, que pertencera a alguns juristas famosos da cidade” (Ibidem, p. 66). O pesquisador Rodolfo Mata interpreta essa troca como prova de que no Relato há um trânsito da imagem à palavra, o qual, no caso de Dorner, significa, ainda de acordo com Mata, a transformação do fotógrafo em leitor (MATA, 1996, p. 104). Conforme observou Scramim, a interpretação de Mata não deve levar à equivocada conclusão de que Dorner, ainda que não se dedicasse aos livros, não realizava leituras enquanto trabalhou como fotógrafo. Dessa forma, a aquisição da biblioteca “não marca a iniciação de Dorner como leitor. Marca sim a alteração do

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rumo do olhar” (SCRAMIM, 1997, p. 500, grifo do autor), o que pode ser comprovado pela seguinte declaração do personagem: “Aos que lhe [a Dorner] perguntavam se realmente havia mudado de profissão, respondia: ‘Apenas alterei o rumo do olhar; antes, fixava um olho num fragmento do mundo exterior e acionava um botão. Agora é o olhar da reflexão que me interessa’” (HATOUM, 2000, p. 83). Quando narra alguns episódios do passado a Hakim, o olhar de Dorner era o da reflexão, ou seja, o personagem já não era fotógrafo de profissão, mas sua linguagem adquire traços fotográficos. A partir do pressuposto de que a fotografia é “a linguagem pela qual Dorner se expressa”, Vera Maquêa demonstra que “as partes do texto por ele narradas são construídas com imagens vivas e vibrantes” (MAQUÊA, 2007, p. 145). Como exemplo do olhar reflexivo/fotográfico de Dorner, a pesquisadora cita a passagem em que ele descreve o rio onde Emir acabara de se afogar, passagem essa que parece absorver a luminosidade da fotografia (Ibidem, p. 145). Uma vez que Dorner não é o único personagem-narrador que recorre à fotografia, embora seja o que o faça com maior frequência, é de se esperar que a apropriação da linguagem fotográfica perpasse todo o Relato. Essa hipótese é confirmada por Maquêa (MAQUÊA, 2007, p.146), que se reporta a uma descrição realizada pelo marido de Emilie para demonstrar que o registro estilístico baseado na fotografia está presente nos capítulos narrados por outros personagens: Ansioso, esperei o amanhecer: a natureza, aqui, além de misteriosa é quase sempre pontual. Às cinco e meia tudo ainda era silencioso naquele mundo invisível; em poucos minutos a claridade surgiu como uma súbita revelação, mesclada aos diversos matizes do vermelho, tal um tapete estendido no horizonte, de onde brotavam miríades de asas faiscantes: lâminas de pérolas e rubis (...) (HATOUM, 2000, p. 72-3).

O argumento de Maquêa, segundo o qual a linguagem fotográfica é comum a todos narradores do Relato, é corroborado por Marleine Toledo, que defende que as referências à morte de Soraya Ângela, neta de Emilie, também são sempre fotográficas (TOLEDO, 2006, p. 32). Em Relato de um certo Oriente, portanto, é expressiva e diversificada a articulação da fotografia e da palavra. Verifica-se no romance tanto o trânsito da palavra em direção à imagem, pois as fotografias apresentam uma narratividade; quanto o trânsito da imagem em direção à palavra, na medida em que, além de haver uma tradução verbal das fotografias, os discursos dos narradores apresentam recursos tipicamente fotográficos. A seguinte declaração de Maquêa confirma essa interpretação: 720

Ora sendo fotografias, ora imagens criadas pela linguagem verbal, o Relato alcança o seu tom poético, a linguagem como imagem. Mais perto das imagens e da fotografia, o texto se torna um campo aberto para o uso de técnicas que se apropriam de várias outras linguagens, sem interdição (MAQUÊA, 2007, p. 154).

Percebe-se que, embora não o afirmem explicitamente, os trabalhos de Susana Scramim, de Rodolfo Mata, de Vera Maquêa e, em menor escala, de Marleine Toledo compartilham de alguns pressupostos dos Estudos Interartes, nos quais se inserem as pesquisas dedicadas à articulação entre literatura e outras manifestações artísticas. Afinal, um dos objetivos dos Estudos Interartes é averiguar como as linguagens artísticas dialogam entre si, e, conforme demonstram os críticos, há em Relato de um certo Oriente um trânsito entre as linguagens literária e fotográfica: se, por um lado, as fotografias contam histórias, por outro, a escrita se torna fotográfica. Referências ARCE, Bridget Christine. Tempo, sentidos e paisagem: os trabalhos da memória em dois romances de Milton Hatoum. In: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (Org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Manaus: Editora da Universidade Federal Amazonas/UNINORTE, 2007. BARTHES, Roland A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (Org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Manaus: Editora da Universidade Federal Amazonas/UNINORTE, 2007. FERREIRA, Jerusa Pires. Das águas da memória aos romances de Milton Hatoum – evocação e transferência de culturas. In: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (Org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Manaus: Editora da Universidade Federal Amazonas/UNINORTE, 2007. FIDELIS, Ana Cláudia e Silva. Entre orientes: viagens e memórias – a narrativa de Milton Hatoum. 1998. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 1998. FRANCISCO, Denis Leandro. A ficção em ruínas. 2007. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários: Literatura Brasileira) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.

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FICÇÃO E HISTÓRIA: A TRANSFIGURAÇÃO DO PASSADO EM NARRATIVAS DE TEOLINDA GERSÃO E MIA COUTO Daniela Aparecida da Costa (CAPES) UNESP/FCLAr Maria Célia de Moraes Leonel UNESP/FCLAr 1.

Breve

contextualização

do

projeto

de

pesquisa

de

doutorado

em

desenvolvimento A pesquisa de doutorado em desenvolvimento (2011-2015), intitulada “Ficção e história: a transfiguração do passado em narrativas de Teolinda Gersão e Mia Couto”, está inserida na linha de pesquisa Teorias e Crítica da Narrativa do Programa de Pós-

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Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara, sob orientação da Profa. Dra. Maria Célia de Moraes Leonel. O tema do estudo são as interações entre literatura e história presentes no corpus da pesquisa constituído de cinco romances: Paisagem com mulher e mar ao fundo, de 1982, e A árvore das palavras, de 1997, da escritora portuguesa contemporânea Teolinda Gersão e Terra sonâmbula, de 1992, Vinte e zinco, de 1999, e O último voo do flamingo, de 2000, do escritor moçambicano Mia Couto. Essas narrativas incorporam em sua urdidura fatos históricos recentes nos dois países (Portugal e Moçambique) que, em muitos aspectos, possuem pontos de intersecção, devido ao colonialismo português na África do século XV ao XX, que teve término somente com a Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974. A tomada da matéria histórica pela ficção é um dos procedimentos primordiais empregados como artifício literário na constituição das narrativas dos dois autores aqui elencadas, como o estudo pretende mostrar. O termo transfiguração é tomado com base na definição cunhada por Maria Teresa de Freitas (1986, p.7; grifos nossos), ao analisar as relações entre literatura e história na obra ficcional de André Malraux: Por meio de um arranjo literário, os elementos históricos vão ser redistribuídos num conjunto fictício, que se transforma em algo diferente do universo social de onde eles foram extraídos ao criar uma história, com personagens e situações dramáticas, o autor tentará passar uma visão pessoal do universo – que não é de forma alguma cópia da realidade, mas sim interpretação dos acontecimentos relacionados à História -, através da qual chegará a uma realidade de natureza distinta daquela que a originou. A transfiguração artística deforma o mundo exterior, e produz uma determinada realidade filtrada pelos preconceitos e pelos anseios do escritor; essa deformação é o que determina o valor estético da ficção.

O que ocorre na incorporação do histórico nas obras literárias de André Malraux, analisadas por Freitas, e nos romances de Gersão e Couto do nosso corpus, é a transfiguração/transformação do que seria a realidade objetiva. A linguagem narrativa cria, portanto, a representação de um cenário, que não é cópia da realidade como pretende o discurso histórico, que se utiliza principalmente da função referencial da linguagem, mas revela, por meio de um posicionamento discursivo que privilegia o poético, um espaço textual singular, em que a história oficial se redimensiona pelo viés subjetivo das instâncias narrativas, afirmando-se como matéria e parte da ficção e não como documento histórico.

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Freitas (1986, p.7) afirma ainda que a transfiguração “[...] é o momento em que a imaginação do autor se liberta das imposições da História e se afirma como criação literária”. Essa colocação faz-nos lembrar as importantes reflexões de Antonio Candido em Literatura e sociedade (2000, p.13), em que o crítico brasileiro afirma que a linguagem literária possui liberdade na incorporação da realidade, podendo deformá-la se for necessário para maior expressividade. Para Candido (2000, p.13), a liberdade “[...] é o quinhão da fantasia, que às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva [...]”, constituindo-se “[...] num movimento paradoxal que está no cerne do trabalho literário e garante a sua eficácia como representação do mundo”. Mas o autor alerta que não “[...] basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la, [pois isso] é correr o risco de uma perigosa simplificação causal” (CANDIDO, 2000, p. 13). Outro aspecto interessante veiculado pelo autor (2000, p.7) na referida obra, é a proposta de uma análise integrada entre texto e contexto; para o crítico, o contexto (o social) deve ser tomado como elemento constituinte da estrutura romanesca operando “como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo” (2000, p.7). Candido (p.18) ressalta ainda que é necessário, para um estudo integrado, a interpretação dialética da literatura e seu meio social, pautada nos seguintes questionamentos: “[...] qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte?” e “[...] qual a influência exercida pela obra sobre o meio?” (p.18). O que buscamos com o estudo das interações entre ficção e história nos romances de Teolinda Gersão e Mia Couto é justamente fugir de uma comparação simplista, da análise da mera transposição do real para o ficcional. O intuito é o de investigar como se manifesta no meio ficcional a incorporação do histórico, quais as deformações operadas pela construção narrativa e como o histórico opera, juntamente com as instâncias narrativas, na formação de novos sentidos e possibilidades de interpretação da realidade objetiva no tecido literário. Vale ressaltar que, para o estudo da ficção de Gersão e Couto, faz-se necessário debruçar sobre o espaço geográfico da escrita, posição defendida pelo crítico Edward Said em “História, literatura e geografia” (2003, p.225-226), quando afirma ser indispensável pensar a literatura do seu espaço geográfico de produção, levando em consideração as mudanças geográficas do mundo pós-eurocêntrico, ou seja, é necessário, de acordo com o autor, refletir sobre o espaço não só textual, mas social para

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a compreensão das diferentes perspectivas construídas no processo de tomada dos fatos históricos e incorporação da história e da memória pela literatura dos dois autores. O corpus literário do estudo, como mencionado, é formado, de um lado, por três romances de Mia Couto, que foram escolhidos por tecerem certa sequência cronológica na tomada dos fatos pela ficção; de outro, por dois romances da escritora portuguesa Teolinda Gersão, que trazem no corpo ficcional questões históricas muito próximas às das narrativas do escritor moçambicano. Vejamos o conteúdo das narrativas selecionadas. De Mia Couto: a) Vinte e zinco, de 1999, é um romance de encomenda, escrito a pedido da Editorial Caminho para integrar a coleção Caminhos de Abril em comemoração aos 25 anos da Revolução dos Cravos. Retrata a presença dos portugueses em Moçambique, por meio da narração dos dias finais de um agente da PIDE, Lourenço de Castro, no período da Guerra Colonial e iminência da Revolução em Portugal e dos movimentos de independência e libertação da colônia. O texto de Couto problematiza de modo irônico e irreverente a presença da empresa colonial em Moçambique e põe em xeque o 25 de Abril português, que não possui o mesmo sentido para os africanos. b) O cenário em Terra sonâmbula, de 1992, primeiro romance do autor, é o da guerra civil que eclodiu no país pós-independência. O horror da guerra é quebrado pelas experiências do menino Muidinga e do velho Tuahir que, ao fugirem de um campo de refugiados, encontram uns cadernos e/ou diários de Kindzu. Nesses escritos, os dois se deparam com uma nova Moçambique: cheia de aventuras, magia e fatos sobrenaturais, fazendo com que a dura realidade vivida por ambos diante de um país devastado pela miséria e pela guerra seja atenuada pelo imaginário. Para Pires Laranjeira (1995, p.198), esse romance de Couto é sobre a capacidade de sonhar e de contar, pois, mesmo diante de tanta desolação, exploram o contar, o sonhar, e, muitas vezes, o sobrenatural. c) Em O último voo do flamingo, de 2000, temos retratadas, pelas memórias do narrador, as ruínas deixadas pela empresa colonial portuguesa, pela guerra civil e os abusos de poder dos movimentos de guerrilha que assumiram a administração do país pós-independência e pós-guerra civil. Trata-se de uma construção narrativa em que ironia o humor formam um falso romance policial, como classificou Carmem Lúcia Tindó Ribeiro Secco (2011). De Teolinda Gersão:

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a) Paisagem com mulher e mar ao fundo, de 1982, segundo romance da autora, é tido pela crítica como o mais político de seus livros. Apresentam-se sobrepostos nessa narrativa vários momentos importantes e dramáticos da história recente de Portugal e de suas ex-colônias, como a opressão causada pelo regime salazarista, os horrores da guerra colonial na África, e, por meio de uma das cenas, uma procissão religiosa em que a imagem do santo padroeiro cai, uma alegoria que nos remete à Revolução dos Cravos. O enredo aparece a nós leitores de forma diluída, por meio das divagações, das lembranças, da manifestação do mundo interior fragmentado das personagens, em especial de Hortense e Clara, personagens que vivem situações-limite, num enredo permeado pela rigidez do sistema ditatorial vigente em Portugal. b) Em a Árvore das palavras, de 1997, o espaço da narrativa é Lourenço Marques, antiga capital de Moçambique, hoje Maputo. O romance retrata, por meio das memórias da menina Gita e depois pela da jovem, o choque entre as culturas (casa preta versus casa branca; Lóia versus Amélia), os dramas humanos e a luta pela liberdade numa narrativa permeada pela memória e pela história. O que podemos depreender de nossas leituras do corpus literário, num primeiro momento, é que cada um dos autores partilha, em espaços geográficos diferentes, de um passado conflituoso, com dimensões e problemas diferentes para cada um dos povos, que metonimicamente são representados em seus romances por meio de dramas individuais. Teolinda Gersão, por exemplo, em Paisagem, analisa criticamente a postura do Estado Novo de enviar os jovens para servir nas colônias na Guerra Colonial, além do drama dos retornados pós-revolução por meio da família de Hortense e Clara. Mia Couto, em Vinte e zinco, retratando os últimos dias de Lourenço de Castro, traz a atmosfera de perseguição, mortes, prisões e torturas em Moçambique ocasionadas pela presença dos portugueses. Cada um em seu espaço e tempo da escritura escreve sobre as mazelas da história, não com o objetivo de retratar fielmente o histórico, mas de transfigurá-lo ou deseroicizá-lo. O que fica em evidência é o olhar crítico da literatura para com a matéria histórica recente, por meio do retrato do choque cultural sob diferentes perspectivas e pelas artimanhas da linguagem. De certa forma, busca-se com a pesquisa de doutorado dar continuidade, no sentido de aprofundamento, aos estudos de literatura e realidade desenvolvidos na dissertação de mestrado Cenários do sujeito e da escrita em Paisagem com mulher e mar ao fundo, de Teolinda Gersão, de minha autoria, defendida em agosto de 2010, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e 727

Ciências Exatas da UNESP de São José do Rio Preto, sob orientação da Profa. Dra. Maria Heloísa Martins Dias. O segundo romance de Teolinda Gersão, Paisagem com mulher e mar ao fundo, é retomado no atual estudo. Um exemplo de como ocorre nas narrativas do corpus a transfiguração da matéria histórica, pode ser visto no romance O último voo do flamingo (2005), de Mia Couto que, via ironia, humor e paródia, mostra-nos as várias faces do passado histórico recente de Moçambique. O discurso narrativo traz situações jocosas e irônicas, que põem em evidência a crítica mordaz ao discurso histórico, como o mistério do falo decepado por uma explosão de mina, ironizando a presença da força de paz da ONU na retirada da minas deixadas pelas guerras de independência e civil no país e também os desmandos da administração local. Ao mesmo tempo, ao lado da crítica ao factual, o romance apresenta-se com poeticidade na composição e apresentação de algumas situações sobrenaturais e personagens misteriosas, como Sulplício, que retira o esqueleto para dormir, e Temporina, corpo de moça e rosto de velha, revelando-se, desse modo, como ficção e não como documento histórico. 1.1 Objetivos O estudo busca, por meio da análise do corpus literário escolhido, confrontar os diferentes olhares sobre o passado recente das duas nações veiculados pelos romances de Teolinda Gersão e Mia Couto. Nossa hipótese é a de que os dois autores utilizam, como primordial técnica de composição narrativa, as interações entre ficção e história de modo a transfigurar a matéria histórica no corpo ficcional. O intuito da pesquisa é traçar convergências e divergências entre a produção de Gersão e de Couto, levando sempre em consideração o contexto histórico-crítico em que essas obras foram produzidas e também a geografia (SAID, 2003, p.225-226) de cada produção e as preferências e tendências marcantes de cada um dos autores, a fim de analisar os procedimentos narrativos na incorporação do discurso da história no espaço da ficção como elemento constitutivo da matéria ficcional (CANDIDO, 2000, p.7), operando a produção de novos sentidos, juntamente com as instâncias narrativas, que buscam discutir, questionar e compreender a própria identidade coletiva. Vale ressaltar, como mencionado, que este estudo não visa analisar a simples transposição do real para o ficcional nos romances, mas o trabalho artístico na incorporação da realidade, já que a literatura não possui o compromisso de documento

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histórico e sim liberdade na incorporação e transfiguração dos fatos do que seria a realidade objetiva. 1.2 Caminhos teóricos Para o desenvolvimento da pesquisa são tomados como embasamento teóricocrítico os seguintes grupos de estudo: a) textos sobre a interação entre literatura e história e o problema da representação da realidade ao longo da crítica literária. Destacam-se o “Livro X” de A república (1973), de Platão e “Poética” (1985), de Aristóteles, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (1988), de Auerbach, Literatura e história: o romance revolucionário de André Malraux (1986), de Maria Teresa de Freitas, Literatura e sociedade (2000), de Antonio Candido. b) textos teóricos dos Estudos Culturais para a compreensão da configuração da literatura em países de independência recente, como é o caso de Moçambique. Destacam-se: “História, literatura e geografia” (2003) e Cultura e imperialismo (2011), de Edward Said; O local da cultura (1998), de Homi Bhabha; Da diáspora (2011), de Stuart Hall. c) estudos teórico-críticos sobre a constituição e principais tendências das literaturas de língua portuguesa, em especial, a produção de Moçambique com Mia Couto e de Portugal pós-Revolução dos Cravos, com destaque para a obra ficcional de Teolinda Gersão. Destacam-se: Literaturas africanas de expressão portuguesa (1995), de Pires Laranjeira; Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária (2002), de Francisco Noa; Mia Couto: espaços ficcionais (2008), de Fonseca e Cury; A voz itinerante: ensaio sobre o romance português contemporâneo (1993), de Álvaro Cardoso Gomes; Teolinda Gersão: o processo de uma escrita (1988), de Inês de Sousa; A palavra do romance: ensaios de genealogia e análise (1986) e Para um estudo da expressão do tempo no romance português contemporâneo (1987), de Maria Alzira Seixo, entre outros textos críticos elencados em nossa bibliografia. d) estudos teóricos para a compreensão dos conceitos de memória, história e ficção. Destacam-se os estudos: Tempo e narrativa (1994-1997) e A memória, a história, o esquecimento (2008), de Paul de Ricoeur; História e memória (2003), de Jacques Le Goff; A ficção (2006), de Karlheinz Stierle.

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e) proposições da Teoria da Narrativa para a análise das categorias narrativas. Para o tempo, narração e focalização, destaque-se Discurso da narrativa (s/d), de Gérard Genette; para o estudo do espaço: Espaço e romance (1985), de A. Dimas e Lima Barreto e o espaço romanesco (1976), de Osman Lins. Referências ANDRADE, L. P. de. Alguns voos em O último voo do flamingo. Revista África e africanidades, ano 1, n.2, p. 1-15, agosto, 2008. AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2008. ARISTÓTELES. Poética. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Intr. Roberto de Oliveira Brandão. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, p.17-52. ARNAUT, A. P. D. Post-modernismo no romance português contemporâneo: fios de Ariadne – máscaras de Proteu. Coimbra: Almedina, 2002. AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BARTHES, R. O efeito de real. In: _____. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1987. BATALHA, M. C. Histórias de guerra, sonhos de paz: a Angola de Manuel Rui e Pepetela. Ipotesi, v.14, n.2, p.179-187, jul/dez 2010. BHABHA, H. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8ª. ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000. CHAVES, R.; MACEDO, T. Caminhos da ficção da África portuguesa. Vozes da África - Revista Entre Livros. São Paulo, edição especial, n.6, p.44-51, 2007. COMPAGNOM, A. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. COSTA, D. A. da. Cenários do sujeito e da escrita em Paisagem com mulher e mar ao fundo. 98 f; Dissertação de mestrado em Letras, Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto, 2010. COUTO, M. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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UM QUIXOTE EM TEMPESTADE: APROXIMAÇÕES ENTRE LITERATURA E CINEMA DE ANIMAÇÃO Daniela Ramos de Lima (CAPES/REUNI) [email protected]

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UFSCAR Josette Monzani UFSCAR O que acontece quando o romance é um grande romance e revela-se essa afinidade pela qual alguém em cinema tem uma ideia que corresponde àquilo que era uma ideia em romance?(...) Eis um belo encontro. (DELEUZE ,1999) RESUMO Pretende-se nesse trabalho abordar o tema do seminário: relações intersemióticas, ao se propor um diálogo entre duas formas de produção artística: o cinema de animação e a literatura. De um lado, Tempestade (César Cabral, 2010), do outro, Dom Quixote de La Mancha (Miguel de Cervantes, século XVII). A contemporaneidade da produção audiovisual muito guarda de correspondências com a figura clássica do cavaleiro errante: a figura lânguida, o amor idealizado, a solidão do errante. O objetivo dessa proposta é trazer um viés de leitura a fim de contemplar a possível tradução intersemiótica (PLAZA, 2010), ancorada nas similaridades existentes entre as aventuras de seus protagonistas, movidas pelo almejado reencontro com a mulher amada. É nesse reflexo de ordem cultural que se procurará apontar pontos de significação e conteúdo criados pelas aproximações e citações plásticas dessas produções. PALAVRAS-CHAVE: cinema de animação- literatura - tradução intersemióticarepresentação quixotesca Introdução Alto e esguio; imponente e solitário; nobre e romântico. São esses predicativos que compõem a personagem que conduz um barco durante perturbadora e enegrecida tormenta, no curta-metragem de animação Tempestade (2009), produzido pela Coala Filmes (Santo André, São Paulo) , cuja direção é do brasileiro Cesar Cabral. É em alto mar e em meio a traquitanas espalhadas num espaço contido de um barco, que se revela a figura desse condutor. Seus trajes denotam uma época remota; seu cabelo em desalinho, a condição da inquietude; e o comando solitário, uma altivez que beira a fidalguia. Há ainda outras orientações visuais: alguns mapas, uma pequena bússola e um insistente traçado cartográfico que o comandante do barco parece refazer a cada olhar que é direcionado a outra imagem desse espaço. Trata-se de uma fotografia. Nela parece se esconder, por detrás de um capuz, uma face cujos finos traços e as claras madeixas emolduram um rosto feminino.

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Assim, Cabral apresenta ao espectador os elementos que configuram a narrativa de uma história de amor. A busca desse altivo comandante, em meio aos perigos do mar, não poderia ser outra: o encontro com a mulher amada. De forma intrigante, ao dedicar-se a um estudo filosófico sobre o amor e suas representações, Furtado (2008) analisa a cultura ocidental e as formas pelas quais o tema passa a ser abordado nas ficções literárias. De tal modo, sintetiza o contexto de suas descobertas ao intitular o capítulo que se destina a esse fim: o amor feliz não tem história. Bem lembrado pelo autor, Tristão e Isolda (Richard Wagner) e Romeu e Julieta (Shakespeare) são marcos da literatura ocidental que celebram "ao contrário do prazer ou da paz de amar, sobretudo o sofrimento de amar" (FURTADO, 2008, p.68). Inserido nesse universo, Cabral parece fazer jus à sua tradição ao inserir suas personagens no mesmo sonho dos amores românticos ocidentais. Ainda mais se há outras considerações, ou melhor, outras correspondências. O viajante solitário de Tempestade indicia viver o drama amoroso ocidental, porque seu amor é também platônico. Ao concatenar os elementos que darão forma à narrativa, isto é, a figura lânguida, o amor idealizado, a solidão do errante, percebe-se a similitude entre o comandante do barco e a personagem de Miguel de Cervantes, Dom Quixote. É dessa forma que a questão deleuziana, que inaugura essa exposição, lança-se ainda mais provocativa: o que leva Cabral a ‘transpor’ aspectos da figura do errante cervantino para o protagonista de sua animação? Quais convenções presentes no gênero literário

foram

transpostas,

descartadas,

suplementadas,

transcodificadas

ou

substituídas? Que resultados tal apropriação pôde conferir à Tempestade? Do “longo grafismo” ao quixotesco romântico: as traduções em Tempestade Tempestade nasceu de um projeto para um festival de curtas-metragens, promovido por um instituto cultural brasileiro – simplesmente conhecido por Cultura Inglesa- cujo intuito é a divulgação da cultura e, especialmente, a língua inglesa. A intenção do festival era promover o conhecimento dessa cultura por meio de produções visuais e audiovisuais cujos pontos de partida fossem obras artísticas originariamente britânicas.

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Para atender aos requisitos previstos no edital desse concurso, Cabral parte da música Eleanor Rigby do grupo inglês The Beatles. A canção traça um paralelo entre a incerteza e o desencontro presentes na vida de duas personagens: a solitária e romântica sonhadora, Eleanor Rigby e o devotado Pastor Mackenzie. A música oferece ao diretor os primeiros elementos para a criação do curtametragem de animação: a solidão e uma possível relação amorosa que não se concretiza. Esses indícios de tradução intersemiótica para Plaza (2010, p.45-46), são justificáveis quando pensados como um “sistema de sinais (...) fundamentais para o intercâmbio de mensagens entre o homem e o mundo”, isto é, uma forma de articulação necessária para se esquematizar o real e materializar o pensamento. Em outras palavras, um diálogo entre os sentidos e as suas relações sígnicas, cuja resposta é a infinidade de outros signos, uma vez que, como assinala o autor, o “próprio homem [, o desencadeador de tais relações, também] é signo”. Ainda lembrando Plaza (2008, p.49), “as qualidade materiais do signo influem e semantizam as relações com seus sentidos receptores, então os caracteres sensoriais, as formas produtivas e receptivas estão inscritas na materialidade do signo”. Efeito do que poderá ser percebido na construção plástica da personagem da animação. Isso quer dizer que, se o amor idealizado se define por uma busca infinda, platônica- como consta na storyline entregue ao festival 1- os idealizadores da animação também compreendem a necessidade dessa correlação sígnica, um exercício de aproximações que busque a figura ideal para viver tal história de amor. Numa

incessante

procura

por

referências

visuais

que

atendessem às

especificidades do concurso (as correlações culturais britânicas) o diretor da animação vai, juntamente com os demais idealizadores, modelando essa personagem ao trazer novas correspondências para essa tradução. Se por um lado, na canção inglesa, é a figura feminina da romântica Rigby que parece destacar-se na narrativa devido à sua trajetória, por outro, na animação, é a história contada pelo viés masculino que se sobressai.

1

A pesquisa nos documentos processuais da animação revela um laborioso trabalho dos roteiristas (Cesar Cabral e Leandro Maciel) para chegar à storyline entregue aos avalistas do festival. Nelas predomina o contexto da solidão e de uma relação amorosa que tende à idealização, ou platônica, como descrevem os próprios idealizadores: “o filme é uma fábula a respeito da solidão e distanciamento e de como ela é necessária para que um amor platônico se estruture” (CABRAL, 2011).

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É bem certo que uma das justificativas para tal escolha recaia no fato de que Cabral, primeiramente, tivesse pensado no cenário dessa aventura, ou seja, o mar. Os efeitos enevoados e difusos das pinceladas do artista londrino William Turner (17751851), a estética romântica que permeia a trajetória do pintor e a recorrência temática ao mar, contaminaram esse encadeamento criativo do animador brasileiro. Opção essa que vem de encontro com os atributos que Gombrich (1999, p.492,494) considerou em Turner: um “encenador soberbo”. Essa habilidade de poder representar com pincel e tinta é o que o crítico aponta como mais expressivo e singular nas obras do pintor romântico, em outras palavras, nas obras de Turner, “a natureza reflete e expressa sempre as emoções do homem”. Talvez, venha daí essa persistência do artista em retratar a instabilidade do mar. (...) o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte. (...) o mar tem a propriedade divina de dar e tirar a vida (...) uns se afogam, outros o franqueiam (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1999, p.592-593).

Para Ernest Hemingway (1899-1961), a natureza do mar é o cenário do desafio, da sorte e da perseverança. A mais célebre obra do literato norte-americano apresenta os dois lados da existência humana: a juventude e a velhice, ou de forma metafórica, a vida e a morte. Para apresentar tais questões, o romance traz a história da relação entre um jovem, chamado Manolin, e um velho pescador, de nome Santiago. Nesse romance não é o jovem aprendiz de pescador que se lança ao mar para desbravá-lo; nem mesmo é intenção do autor deixá-lo acompanhar o velho. Santiago se aventura no mar pensando na possibilidade de iscar um “peixe grande”; mesmo que essa seja sua última tentativa, ele mantém a confiança no seu objetivo. O arriscar-se e as provas da existência, para Hemingway, estão na velhice, “sinal de sabedoria e de virtude” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1999, p.934).

Em Tempestade, essa travessia é vivida também por um homem. Porém, diferente da figura do velho Santiago, o comandante do pequeno barco é ainda jovem, anônimo e de destino incerto. Jovial talvez, porque Eros também o era. Chevalier & Gheerbrant (1999, p.46), referem-se à aparência do deus do Amor quando dizem que “o fato de que o Amor seja uma criança simboliza, sem dúvida, a eterna juventude de todo amor

737

profundo, mas também certa irresponsabilidade: o Amor zomba dos humanos que caça, por vezes mesmo sem os ver, aos quais cega ou inflama”. O mar, em Tempestade, também impõe provas e arma desafios para aquele que busca pelo ser amado. Na mitologia grega, foi vencendo as provocações de Vênus, que Psique torna-se novamente correspondida por Eros. E o universo mitológico greco-romano procurou de muitas formas falar sobre esse sentimento pelo qual o homem é acometido. Deuses e heróis foram os grandes protagonistas dessas histórias, as quais por séculos tornaram-se referências para os clássicos literários2. O anônimo e jovem que conduz o barco na animação não possui os atributos físicos dos deuses, ao contrário, revela a esqualidez e a desproporção corpórea e ainda, os traços faciais, como as longas sobrancelhas e o nariz achatado, são excessos que se desviam do perfil da beleza clássica. Contudo, assemelha-se à melancólica e lúgubre beleza romântica. O que se quer dizer é que tais escolhas, aos poucos, vão emoldurando a personagem do aventureiro solitário, buscando e idealizando a figura do ser amado, num resgate e alusão à outra imagem: o personagem clássico de Miguel de Cervantes, Dom Quixote. É como se o clássico cervantino emprestasse fragmentos de sua constituição ao jovem comandante para atribuir-lhe quixotesca “forma significante”. Ao resgatar a imagem de Quixote, Foucault (1970, apud STAM, 2008, p.54) o evidencia em sua constituição sígnica, como se pudesse pinçar o significado impresso no livro de Cervantes e a partir daí fazer erigir suas marcas significantes. Em suas palavras, Dom Quixote é “como um signo, um grafismo longo e fino, uma letra que acabou de escapar de páginas abertas de um livro”. Sabe-se que a plasticidade do protagonista de Tempestade advém de outra contribuição artística. Cabral buscou nas formas esguias das esculturas do suíço Alberto Giacometti (1877-1966) a estrutura visual para a sua personagem, predileção essa que se evidencia na folha de referências visuais que o animador entrega à comissão avaliadora do festival. Essa proximidade com a personagem literária, ora citada, não se restringe apenas a contiguidade visual, mas ancora-se em outras formas tais como a configuração do amor romântico, a paleta de cores e a ambientação do espaço. Fatores que parecem 2

Pode-se citar aqui que o clássico Romeu e Julieta, de William Shakespeare, muito guarda de semelhanças com o mito grego de Píramo e Tisbe.

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justificar o que René Girard (1961, apud STAM, 2008, p.18) aponta quando diz que “todas as ideias do romance ocidental estão presentes, embrionariamente, em Dom Quixote”. Se Cervantes pôde, com sua obra, criar uma trama de possibilidades de discursos e de espaços para interpretações e apropriações, para Tempestade essa aproximação está naquilo que a obra ainda guarda das reminiscências do romance ocidental e que tem sua origem na própria literatura. Bellemin-Nöel (1978, p.12) diz que é por meio da literatura que "tomamos consciência de nossa humanidade, que pensa, que fala”. Em outras palavras, o que o autor afirma é que a literatura, como forma de expressão humana, é aprendizado privilegiado da linguagem do e para o homem. Nela está contido o "domínio sólido", advindo dos questionamentos do psiquismo humano. Num diálogo com o autor francês, mas de forma simplificada, Stam (2008, p.44) sugere como o arcabouço da tradição se faz presente no processo criador: (...) o artista não imita a natureza, mas sim outros textos. Pinta-se, escreve ou faz-se filmes porque viu-se pinturas, leu-se romances, ou assistiu-se a filmes. A arte, neste sentido, não é uma janela para o mundo, mas um diálogo intertextual entre artistas.

Nesse processo de transcriação, mesmo que inconsciente, Cabral resgata do Quixote essa “afinidade eletiva”3 capaz de sintonizar o seu processo tradutor: da ideia para a personagem e dessa para a mise-en-scène. Na história de Cervantes, “o amor de Dom Quixote por Dulcinéia também era cortês e platônico; nos muitos anos em que ele a amou, ele só a viu três ou quatro vezes, e, ao mesmo assim, nunca lhe dirigiu a palavra” (STAM, 2008, p.50) A fotografia em branco e preto, que as luzes do farol conferem aparência de sépia, assinala na animação essa distância entre as personagens. O retrato feminino que o comandante do barco contempla a cada traçado cartográfico evoca a aparência de alguém que está ausente. O fato de que a fotografia também se transforma, isto é, os enquadramentos vão, paulatinamente, tornando-se mais abertos e a figura retratada se distancia e ganha proporções cada vez menores, reforça a incerteza até mesmo da existência da figura feminina retratada e de seu envolvimento com o personagem. 3

Plaza (2010, p.08) utiliza-se da expressão “afinidade eletiva” para explicar que no processo criativo,de tradução intersemiótica, há um movimento de escolher e de ser escolhido; apesar de tudo diante do tradutor parecer ser traduzível, sua tarefa é selecionar aquilo que lhe interessa, daí a afinidade eletiva, que possibilita a chegada do novo e justifica, no ato criador, o produzir ao invés do reproduzir.

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A foto antiga dialoga com todos os demais objetos da mesa de navegação, tais como os diferentes mapas, a partitura musical, a bússola, o compasso, os relógios. Eles indiciam um propósito de referência ao tempo da narrativa. Soma-se a isso a escolha da paleta usada em Tempestade que, além de reforçar a ideia de tempo, acrescenta poeticidade à animação atribuindo-lhe, nessa leitura, um novo sentido. As sombras acentuadas, as cores cálidas, de preferência os tons castanhos e dourados, que se misturam ao fundo de matiz azul-pálido parecem citar as pinturas românticas da passagem do século XVIII para o XIX, retomando a referência a Turner. Esse romântico pictórico que Cabral mistura à Tempestade vincula-se ao je ne sais quoi (“não sei quê’) cunhado por Rousseau (apud ECO, 2004, p.303), que define no gosto romântico “tudo aquilo que é distante, mágico, desconhecido, inclusive o lúgubre, o irracional, o mortuário”, em outras palavras, uma forma de beleza que não pode ser exprimível com palavras, mas, especialmente, pelo sentimento do espectador. Assim, a animação procura trazer para o ambiente quase claustrofóbico do barco a elegia fúnebre que caracterizou a beleza romântica. Se Cervantes trouxe beleza às terras secas e pobres da Espanha por meio de sua narrativa, Cabral, seguindo esse viés de natureza romântica, procurou transformar uma tormenta num cenário a ser contemplado e propor fascínio. Haja vista, os enquadramentos da animação, os quais muito lembram Turner, onde o pequeno barco, em meio ao enegrecimento céu, quase se perde entre as gigantes ondas azuladas que os clarões dos relâmpagos trazem à tona.

A morte e a Beleza são coisas profundas que contêm tanto azul e tanto negro, que parecem irmãs terríveis e fecundas com o mesmo enigma e igual mistério . (HUGO, 1888, apud ECO, 2004, p.302)

Atraente é o poder da tradução, pois torna capaz de estabelecer o diálogo entre as linguagens, entre os fatos separados no tempo e no espaço, unindo-os, nessa “transmutação de códigos” confere um estado novo às rubricas do passado (SALLES, 2007, p.115). Assim, todo tradutor é também leitor, consciente ou não do percurso do qual resulta sua tradução. Ao dedicar-se à tarefa de contar sobre o solitário trabalho do tradutor, Manguel (1997) revela algumas pistas, como a de o leitor colocar-se no lugar do escritor, tentando evocar uma espécie de empatia com aquilo que é lido, um “estar no lugar de”, 740

e assim originar a sua contribuição. O autor português vê o trabalho do tradutor como via de mão dupla, na qual o ato de traduzir é ao mesmo tempo compartimentar e satisfazer o desejo que motivou a primeira escrita. Trata-se de algo que está além do aprofundamento poético. É na tradução que a inocência perdida depois da primeira leitura é restaurada sob outra forma, tendo em vista que o leitor se defronta mais uma vez com um texto novo e seu mistério concomitante. Esse é o paradoxo inescapável da tradução, e também sua riqueza. (...) A tradução propõe uma espécie de universo paralelo, outro tempo e espaço no qual o texto revela outros significados extraordinários possíveis. No entanto, para esses significados não há palavras [correspondências], uma vez que existem na terra intuitiva de ninguém entre a língua do original e a do tradutor (MANGUEL, 1997, p.306309)

A Literatura construiu inúmeras formas de se falar sobre o Amor, sedimentandonas no imaginário, ora por suas formas narrativas que se aproximam e configuram a ideia de um gênero, ora pelos tipos e motivos que se apresentam de maneiras peculiares, transformando-se em ícones. São as "rubricas" que Bellemin-Nöel (1978, p.53) diz encontrar nas categorias dos fatos literários que, segundo o autor, podem ser chamados de "transliterários", uma vez que formam um universo que tanto os textos quanto os seus escritores valem-se com intensidade original. De forma a conduzir uma leitura mais centrada e precisa, o autor define aonde quer chegar: Eles não são o apanágio nem de uma época, nem de uma língua, nem de um indivíduo, nem de um único escrito; sua origem é interminável, sua invenção não poderia ser atribuída a ninguém precisamente. Numa palavra, diremos que eles pertencem com todas as variáveis possíveis ao fundo simbólico da humanidade (BELLEMIN-NÖEL, p.53).

"Trans", pois não estão na obra em si, mas além dela, isto é, o autor se reporta a uma tradição que é compartilhada pela humanidade, porém se manifesta nas criações artísticas como forças pulsionais que lhe permitem lhe dar forma. Visto por esse ângulo, as várias rubricas que a história da humanidade conferiu ao amor e seus protagonistas nos diversos textos (verbais ou não verbais) são exemplos das investidas humanas acerca de suas próprias tradições. Considerações Finais

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Se Tempestade guarda muito da natureza romântica é porque a narrativa exigiu de Cabral “uma fuga” para o lúgubre e o irracional, não apenas para cumprir uma revisitação das rubricas românticas deixadas pela literatura ou pela pintura, mas porque ambas, em suas formas peculiares de emanar o humano, também procuraram trazer à tona o paradoxo, prazer e dor, que constitui a escolha e a relação com o ser amado. De tal modo, os elementos que perfazem essa “afinidade eletiva” do animador brasileiro (o mar, o barco, a paleta de cores, somente para citar alguns exemplos) condensam esse je ne sai quoi (“não sei o quê”), típico romântico de Rousseau, que se instaura no decorrer da história e não finda na possibilidade de sua compreensão. Há sempre algo mais. Assim, o protagonista em seus trajes de época dispõe-se a viver uma história de amor que não condiz com a cultura instaurada na época de seu criador. E a partir disso, a viagem torna-se aventura para ambos, pois voltar ao passado é descobrir as vicissitudes do presente. O mar e o barco, símbolos da instabilidade da vida e da morte, colocam criatura e criador à prova, já que criar exige a tomada de uma posição e da revelação de uma tendência que se evidencia no decorrer do processo de criação. O amor quixotesco, servil, idealizado, capaz de levar o homem a experimentar momentos em que lhe falta a razão, são exemplos que parecem revelar esse lugarcomum dos amantes. Mas não há como negar o interesse que o mantém. E assim, a ideia platônica do amor se desfaz. Portanto a semelhança do protagonista com Dom Quixote, não é aleatória e faz jus à própria escolha. Inicia-se visualmente, ganha alguns contornos românticos e surpreende em seu desfecho, apesar da fragilidade da perda da amada (o enquadramento que se torna cada vez mais distante), sua atitude ainda é de um nobre comandante: seu mecanismo de defesa opta pelo esquecimento assim, a fotografia e o mapa (os sonhos construídos pela paixão) são arremessados para fora do barco (“ego”). E a experiência dolorosa do amor não poderia ter melhor metáfora que a trazida pelo poeta brasileiro, Gonçalves Dias (1823-1864): Clarão, que as luzes no morrer despedem: Se outro nome lhe dão, se amor o chamam, D'amor igual ninguém sucumbe à perda. Igualmente, são os últimos clarões de Tempestade: a lanterna que dança pelo interior do barco, os relâmpagos que iluminam a mão sôfrega no timão desgovernado, o

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contraste entre a luz e a sombra que delineia a fragilidade da silhueta do condutor, o fogo que queima e põe fim ao relógio que tanto quis registrar um tempo. Referências BELLEMIN-NÖEL, Jean. Psicanálise e Literatura. São Paulo: Cultrix, 1978. CABRAL, Cesar./Online. Re:curta-Tempestade [mensagem pessoal] Mensagem recebida por [email protected] em 01 ago. 2011. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, figuras, cores, números).14.ed.Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1999. DELEUZE, Gilles. O ato de criação .trad. José Marcos Macedo. In: FOLHA DE SÃO PAULO. Caderno Mais!. p.4-5. 27 jun.1999. ECO, Humberto. História da Beleza.Rio de Janeiro: Record, 2004. FURTADO, José Luiz. Amor. São Paulo: Globo, 2008. GOMBRICH, Ernest. História da Arte. 16.ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A.,L, 1999. MANGUEL, Alberto. O tradutor como leitor. In: Uma história da leitura. São Paulo:Companhia das Letras, 1997, p.293-309. PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. 2.ed.São Paulo: Perspectiva, 2010. SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. 3.ed. São Paulo: Annablume, 2007. STAM, Robert. A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

HÉRACLES FURIOSO, DE EURÍPIDES. O RETORNO DO HEROI E SUA LOUCURA Edvanda Bonavina da Rosa [email protected] UNESP/FCLAr RESUMO A tragédia Héracles, de Eurípides, apresenta uma intricada construção de sentido, que evolui a partir da apresentação inicial do heroi como vencedor e salvador, encaminhando-se para sua queda, quando ele é mostrado como vencido e agressor de sua família, até que ele atinja a superação do conflito e o restabelecimento de sua 743

identidade heróica. Essa transformação se manifesta por meio da oposição entre o ser e o parecer, até que no final seja alcançada a reparação do dano e se manifeste a verdadeira constituição do heroi. O cerne do Percurso Narrativo é a loucura que acomete o heroi, levando-o a destruir sua família. Neste trabalho analisamos a construção da figura de sentido de loucura e sua importância na economia da peça e apresentamos a análise da constituição passional do sujeito, enfocando a modalização e pré-modalização do agente da ação. PALAVRAS-CHAVE: teatro grego; tragédia; loucura, semiótica ABSTRACT The euripidean tragedy Heracles presents an intricate construction of meaning that evolves from the initial presentation of the hero as winner and savior, heading to his downfall, when he is shown as a loser and an abuser of his family, until he overcomes the conflict and recovers his heroic identity. This transformation is manifested through the opposition between being and seeming, leading to repairing the damage and manifesting the true constitution of the hero at the end. The crux of the Narrative Journey is the madness that affects the hero, causing him to destroy his family. In this paper we analyze the construction of the sense´s figure of madness and its important in the economy of the play. We present an analysis of the constitution regarding the passionate subject, focusing on modalization and pre-modalization of the action`s agent. KEYWORDS: Greek drama, tragedy, madness, semiotics 1. Introdução Héracles furioso, de Eurípides, peça escrita por volta de 420-15 a. C., tem como protagonista o heroi homônimo, Héracles. Segundo estudiosos, a força e apetite desmedidos de Héracles, bem como suas admiráveis vitórias tornavam-no uma figura mais apropriada ao drama satírico e à comédia do que para a tragédia. Nesta, podemos citá-lo como personagem de Alceste, de Eurípides, na qual não é o protagonista e exerce o papel de libertador, resgatando da morte a rainha, não sendo, portanto, uma personagem trágica. Além disso, figura também em As Traquínias, de Sófocles e na peça de Eurípides, na qual concentramos nossa análise. Héracles furioso é uma criação poética que cria o efeito trágico de forma contundente, pois apresenta ο páthos1 em grau elevado, uma vez que a violência ocorre no interior da philía2, subvertendo-se os laços familiares e atirando na desgraça e no sofrimento o heroi vencedor. Para compor sua peça, Eurípides serve-se do mito de Héracles, o grande heroi do Peloponeso e de toda a Grécia, que realizou grandes feitos civilizatórios, eliminando 1

Termo aristotélico que é normalmente traduzido por patético. O filósofo descreve-o como “ação que causa destruição ou dor” (Poética, 52b9). 2 O termo grego philía significa os laços de compromisso existentes entre pessoas ligadas por parentesco ou não.

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monstros de diferentes regiões do país. Variava o número dos feitos, segundo diversos autores, mas tornou-se consensual que eram doze e que foram realizados por decisão de Hera e sob as ordens de Euristeu, rei de Micenas e primo de Héracles. Estabeleceu-se uma ordem canônica para tais trabalhos, mas Eurípides alterou-a, colocando a descida ao Hades como última tarefa, para atender a seus propósitos poéticos. Dessa forma, é no término glorioso de seus feitos, ao regressar do Hades, que a ação se passa na peça euripidiana. A justificativa mítica para a realização dos Doze Trabalhos é o desejo de vingança de Hera, que mesmo antes do nascimento já perseguia o heroi. Tal perseguição era motivada por seu rancor por ser ele filho de união de Zeus com Alcmena, princesa de Argos. Tal justificativa mítica também é apresentada na peça euripidiana, pois a loucura do heroi, que o leva a matar seus filhos e esposa, é desencadeada por Íris e Lissa, sob as ordens de Hera (cf. v. 824-32 e 1303-10). Contudo, nessa tragédia a construção do efeito de sentido da loucura vai além de sua motivação pelos desígnios de Hera, como pretendemos analisar. Em Héracles furioso o desenrolar da ação se processa em três etapas. A situação inicial consiste no retorno do heroi, que encontra a cidade dominada pela stasis, desordem política, e sua família ameaçada de morte por Lico, o usurpador do trono. Héracles mata o tirano e confirma-se seu estatuto de salvador e vencedor. A seguir desenrola-se a loucura, por intervenção divina, pela qual o heroi, movido pelo desatino, mata sua esposa e seus três filhos. Inverte-se sua figurativização e de salvador torna-se agressor e de vencedor passa a vencido. Finalmente, a peça mostra a superação do desejo de auto-punição graças à oferta de amizade incondicional de Teseu, efetivandose a superação do dano, com o restabelecimento da honra heróica. Neste trabalho, efetuaremos a análise da loucura, causa da desgraça do heroi e, para isso, recorremos à teoria semiótica, servindo-nos das noções expostas por Greimas em sua obra Semiótica das paixões, na qual ele instaura, ao lado da dimensão pragmática e da dimensão cognitiva, uma dimensão tímica autônoma, buscando isolar o funcionamento passional dos actantes e das modalizações do nível sêmio-narrativo. A partir dessa dimensão autônoma, o autor admite a possibilidade de um esquema patêmico canônico, capaz de assumir as diferentes etapas da paixão e organizá-la em "narração". O esquema patêmico proposto por Greimas constitui-se de três etapas: a constituição passional, a sensibilização e a moralização, que exporemos na medida em que formos apresentando elementos destacados do próprio texto euripidiano. 745

2. A constituição passional de Héracles Segundo Greimas e Fontanille (1993), a constituição é a etapa em que se define, previamente, o estilo tensivo do sujeito apaixonado. Esclarecem que, conforme a época, a cultura e os autores, a constituição será interpretada como um "temperamento", um "destino", "o ressurgimento do caos", etc. A constituição determina o ser do sujeito para que ele escolha a sensibilização. Essa determinação do sujeito é anterior a toda competência e toda disposição. No dizer dos dois autores, ela se assemelha a um determinismo social, psicológico, hereditário, metafísico, etc., que preside à instauração do sujeito apaixonado. É com o intuito de verificar a constituição passional de Héracles que o predispõe para tornar-se um sujeito apaixonado movido pela loucura, que apresentamos as reflexões a seguir. Para isso, vamos analisar sua genealogia e sua caracterização como heroi e semideus, guerreiro, vencedor, cidadão e amigo, phílos. Começamos então pela heroicidade3. Embora os termos “heroi” e “semideus” não sejam empregado por Eurípides em sua peça, a genealogia de Héracles, descendente de Zeus, coloca-o no rol dos herois. Além disso, o termo kallínikos, vitorioso (v. 580-2) que lhe atribuem, é o epíteto com o qual é referido em seu culto, fazendo lembrar que se trata de um heroi cultuado em várias regiões do país. Na Grécia, entre os mortais e os deuses, imaginou-se ainda uma outra raça, a dos herois4, alguns dos quais eram também semideuses. Geralmente eram filhos de deuses com mortais, o que lhes assegurava força e coragem acima do comum. Homero, Hesíodo, os Hinos Homéricos, Platão e as tragédias gregas são algumas das fontes que podemos utilizar para apreender algumas características heróicas. Como a épica homérica tão bem expõe em seus cantos, o duro combate era o campo onde o guerreiro podia demonstrar sua nobreza e sua areté, excelência, sem jamais recuar, nem mesmo frente à morte5. Os grandes feitos, erga, por eles realizados eram motivo de celebração pelo canto. Mas não só na guerra o heroi demonstra sua força e coragem. Também enfrentando animais ameaçadores e monstros que possuem traços humanos e maravilhosos ele se distancia dos outros mortais, como acontece com Édipo e a Esfinge, com Odisseu em suas viagens, com Teseu e com o próprio Héracles.

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Para as características do heroi grego, ver Camerotto (2003) e confira também RAGLAN (1934). Em sua obra Os trabalhos e os dias Hesíodo apresenta o Mito das Raças: antes da última que é a de ferro, intercala a quarta raça, a dos herois (v. 156-60). 5 Na Apologia, Sócrates afirma que, se temessem a morte os semideuses que morreram em Tróia seriam desprezíveis, a começar por Aquiles (28b-c) (PLATÃO, 1980). 4

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Uma característica comumente ressaltada pelos relatos míticos e por Homero é a força descomunal do heroi. Na Ilíada, em diversas ocasiões, é ressaltada a força dos guerreiros de outrora, incomparável diante dos homens contemporâneos do narrador6. A força física é um apanágio de Héracles, que o distingue desde a mais tenra infância. Na constituição do heroi grego, em acréscimo ao destemor e à força física, está a capacidade de enfrentar infortúnios. Quantas vezes vemos Odisseu, na Odisseia, ser testado por pelos revezes que sofre, chegando mesmo a derramar lágrimas por suas dores sem conta?7. Também Héracles, na peça que analisamos, é frequentemente referido como aquele que suportou muitos pesares. Um fato constante na vida dos herois é sua descendência divina, como acontece, por exemplo, com Aquiles, Dioniso e Héracles. Burkert (1993, p. 403), no entanto, afirma que a proveniência divina não constitui, por si só, pré-condição necessária para ser um heroi, ressaltando, contudo, que os filhos dos deuses são na maioria das vezes considerados como tal. Por outro lado, ressalta que é uma qualidade extraordinária que faz o heroi8 e que o culto que é prestado a muitos deles é uma resposta ao fato de o heroi ter demonstrado o seu poder9. Se a dupla filiação, humana e divina, por si só não é garantia de heroísmo, atrai, contudo, a fúria dos deuses, por colocar o mortal no limiar entre o humano e o divino, representando uma ameaça à harmonia cósmica. É assim que vemos Dioniso, filho da princesa Sêmele e de Zeus, bem como Héracles, gerado por Alcmena e também Zeus, serem perseguidos pela esposa ciumenta Hera e, ambos igualemte, acometidos pela loucura provocada pela deusa. Héracles, como heroi, reúne todas as características acima referidas: por sua concepção, é filho de uma mortal e de Zeus, o que lhe garante uma força descomunal, desde a mais tenra infância, o que lhe permite livrar-se da ameaça mortífera das serpentes contra ele enviada por Hera, que pretendia causar sua morte, ainda lactante (v. 1266-69). Mas esse foi apenas o início das façanhas que realizou. Com o passar do tempo, outras ainda maiores enfrentou, desvencilhando a terra de seus males e garantindo vida livre aos seus concidadãos e a todos os gregos. (v. 348-450 e v. 12696

Cf. Ilíada, V, 302-6, página 144 (HOMERO, 2001). Além de Homero, também o orador Isócrates se refere a esse aspecto da concepção grega dos herois, assim sintetizando o que considera marca distintiva dos homens semidivinos: For of the demigods the greater number and the most renowned were, we shall find, afflicted by the most grievous misfortunes ... (9.70). Pois dos semideuses, o maior número e os mais renomados, poderemos constatar, são afligidos pelas mais pungentes aflições. (tradução nossa). (ISÓCRATES, 1980). 8 Burkert, 1993, p. 404. 9 Burkert, 1993, p. 402. 7

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77). Héracles é apresentado por diferentes sujeitos da enunciação, como o portador das virtudes ideais de quem é avaliado positivamente no texto. Alguns adjetivos que constituem seu predicado dão ideia dessa valorização positiva: kleinós, ilustre (v. 13); phíltatos, bem amado (v. 490; 514; 531); euergetés, benfeitor v. 877) e esthlós, nobre (v. 1335), mégas ánax, rei grandioso (v. 735). Tão notável é sua areté, excelência, que a esse respeito afirma o Coro: É o filho de Zeus, mas a nobre origem em muito supera pela excelência (v. 696-7). Além de distinguir-se por sua areté, Héracles destaca-se também como um iniciado, tendo descido ao reino dos mortos e voltado incólume. Griffiths (2002) enfatiza essa iniciação, considerando a remoção de Cérbero do Hades a causa da cólera e Hera, tornando-o merecedor de punição, que se efetiva por intermédio da loucura e do assassínio dos filhos. Embora reconheçamos a força dessa análise, não estamos de acordo com o autor. Compartilhamos, ao contrário, dos princípios teóricos de Holmes (2008) que aborda a loucura de Héracles sob a ótica dos sintomas. Afirma que o heroi está sujeito a uma sobredeterminação, que converge para a figura do "sintoma", que a autora define como um espaço vazio (rift) atuante na percepção do eu. Essa noção de espaço vazio Holmes foi buscar em um filósofo classicista belga chamado Eugène Dupréel10, que designou "intervalo" a distância existente entre causas e efeitos na tragédia grega. Para a autora, essa reflexão tornou-se possível graças à intervenção do corpo nos estudos da loucura de Héracles. A posição adotada por Holmes nos permite pensar o comprometimento do heroi com seu ato, questão crucial para a abordagem do gênero trágico. Para refletir sobre a questão do engajamento do heroi trágico em seu ato, é necessário fazer menção ao termo êthos, caráter, que propomos seja compreendido na peça que estamos analisando como os elementos que compõem a constituição passional do sujeito apaixonado "Héracles" e que o tornam um espaço apropriado para o investimento da sensibilização. Em relação ao seu percurso narrativo, enquanto sujeito operador das transformações de "vitória sobre as ameaças", Héracles é a princípio um sujeito nãoapaixonado, pois submete-se às tarefas que lhe são impostas por Hera/Euristeu sem demonstrar descontentamento ou revolta, assumindo-as sem conflito, como seu próprio

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Confira Holmes (2008, p. 243). Dupréel é um filósofo, sociólogo e moralista que viveu entre 1879 e 1967.

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querer. Para enfrentar as ameaças domina o uso do arco, que maneja com maestria (v. 160-206). Para tais tarefas, portanto, é modalizado pelo dever, querer, saber e poder. Para a transformação que se processa em sua constituição passional, consideramos essencial um elemento ao qual se tem dado pouca importância. Trata-se da ênfase dada no texto ao dever de retribuir o bem aos amigos e causar dano aos inimigos (v. 200-3). Em uma cultura marcada pela valorização da honra, submeter-se à violência, à dominação e ao escárnio do inimigo é para o homem grego mais doloroso do que a morte, o que pode ser confirmado pelas palavras de Mégara, esposa de Héracles, diante do abuso de poder e das ameaças de Lico (v. 284-6). Dessa maneira, poder restituir ao inimigo o mal causado é dever de honra. Segundo Dover (1994, p. 182), não era prática entre os atenienses disfarçar o ódio contra um inimigo e uma retaliação bem sucedida era motivo de alegria. Por essa razão, tanto Anfitrião (v. 731-3) quanto o Coro rejubilam diante da morte de Lico perpetrada por Héracles (v. 751-3). Na constituição de Héracles está presente a valorização da prática de amar os amigos e odiar os inimigos, retribuindo-lhes o mal causado 11, o que implica em sua modalização como um sujeito apto para o desenvolvimento de um percurso passional. A máxima antes referida como um dever de honra, é referida na íntegra por Anfitrião, que atribui ao próprio filho a vivência segundo essa norma de conduta:

É de tua natureza, filho, ser amigo dos amigos e odiar os inimigos. Mas não sejas tão apressado. (v. 584-5)12

Héracles dá mostras vísiveis de sua adesão a essa norma. Se por um lado expressa claramente seu afeto por sua família, especialmente pelos filhos (v. 635-6), por outro reage de forma acentuadamente passional à violência cometida por Lico e à sedição dos tebanos, que negaram defesa a sua família (v. 565-73). A constituição passional do heroi opõe, portanto, benevolência /querer-fazer/ bem aos amigos e malevolência /quererfazer/ mal aos inimigos. Assim ele se refere à morte de Lico:

Eu, pois agora é trabalho para minha mão, primeiro irei e derruirei o palácio dos novos tiranos; arrancarei a ímpia cabeça e 11

Esse pensamento que perpassa a concepção popular do homem grego, mereceu o estudo de vários autores, dentre os quais destacamos a obra de Blundell (1989). 12 C.R Franciscato (EURÍPIDES, 2003). Todas as citações dos versos de Héracles serão da mesma autora.

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lançá-la-ei como presa de cães ...(v. 565-68).

Em seguida, sem grandes rodeios ou dificuldades, dá cabo de Lico, no interior do palácio e, junto com sua família se dispõe a purificar o palácio do crime perpetrado. É então que, no meio das alegrias do retorno vitorioso do antigo rei que causou a morte do tirano, se insere a mudança de males, metabolé kakōn, v. 735: sobrevoando o palácio em carros alados o Coro vislumbra uma aparição aterradora. 2. A sensibilização Surgem as divindades Íris e Lissa, filha da Noite e de aparência de Górgona. Elas vêm com a tarefa de fazer guerra contra Héracles (v. 825-6), a mando de Hera. Para garantir a verossimilhança de sua ação, justificam que o término dos Doze Trabalhos fizeram cessar a proteção de Zeus e que, agora, é possível a Hera pôr em prática sua vingança. Segundo os daímones que chegam para destruir o heroi, não há ambiguidade no querer de Hera: ela quer o seu dano, tornando-o maculado pelo sangue dos próprios filhos (v.831-2). Íris atribui essa decisão da deusa a sua cólera, khólos (v. 840), mas não expõe mais aprofundadamente a razão dessa cólera. Não nos deteremos na reflexão sobre a motivação da cólera da deusa, pois este não é nosso escopo13. Griffiths, em sua ênfase no papel que representa a retirada de Cérbero do Hades, afirma que o ciúme "não é mencionada em nenhum lugar da peça". O autor negligenciou o argumento de Héracles para explicar sua derrota, pois ele mesmo afirma que Zeus o gerou como inimigo de Hera (v. 1263-4) e que ela o destruiu por ciúme de Alcmena: A tal deusa (Hera) quem suplicaria? Ela, por causa de uma mulher, com ciúmes do leito de Zeus, o benfeitor da Hélade, em nada culpado, aniquilou. (v. 1307-10)

Acrescenta-se a isso a interpretação do Coro, que em sua prece clama a Zeus, para fazê-lo saber que sua raça vai tornar-se estéril.(v. 886-9). Que necessidade haveria de relacionar a morte das crianças com a raça de Zeus, se não fosse para estabelecer a causa da morte a ascendência divina de Héracles, filho bastardo do esposo da deusa 13

Para a motivação da punição do heroi, ver Franciscato (2003, p. 185, n. 146. Confira também Introdução, p. 27 ss); Griffiths (2002) e Parmentier (1965, p. 54, n. 4.).

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enciumada? Por outro lado, não concordamos com a refutação de Griffiths, que nega o comprometimento de Héracles no desenrolar de sua loucura, pois este é o cerne de nossa reflexão, como pretendemos mostrar. É consensual a abordagem da tragédia grega que enfoca a dupla motivação da ação, atribuindo-a à ação do daímon e ao êthos, caráter, do heroi. Também é inegável que o dano do heroi se atribui a Hera, o daímon responsável pela morte dos filhos e de Mégara. Mas em que consiste nesta peça o outro pólo da responsabilidade, o caráter do heroi? Que papel tem na construção do sentido do texto sua loucura e seus sintomas e como essa loucura se instala? Como referido anteriormente, os sintomas criam uma "fenda" por meio da qual, entre a causa e o efeito trágico se insere a presença do sujeito da ação. A análise da etapa da sensibilização que é um componente do esquema patêmico canônico referente ao sujeito apaixonado "Héracles" nos permite visualizar essa questão com mais propriedade e, assim, entender o envolvimento do heroi em sua ação. Segundo palavras de Greimas na obra Semiótica das paixões, já mencionada, a sensibilização é uma transformação tímica por excelência e opera a transformação do sujeito discursivo em um sujeito que sofre, que sente, que reage e que se emociona. A sensibilização compreende três momentos que são a disposição, a patemização e a emoção. Começaremos com a disposição, que consiste numa programação discursiva. Por seu intermédio, opera-se a convocação dos dispositivos modais que são dinamizados e selecionados para uso. A disposição ativa a aspectualização da cadeia modal e ativa um "estilo semiótico" característico do fazer patêmico. O cerne da ação nessa peça é a morte dos filhos de Héracles, causada por sua loucura. O Dicionário Michaelis, em sua definição de loucura como termo médico, explica que é um "Desarranjo mental que, sem a pessoa afetada estar ciente do seu estado, lhe modifica profundamente o comportamento e torna-a irresponsável". O Petit Robert, no verbete folie, esclarece que na psiquiatria moderna não se emprega mais o termo loucura, substituído por doença mental ou problemas mentais. Explica, contudo, o uso corrente do termo, esclarecendo que loucura significa alteração mais ou menos grave da saúde psíquica, que acarreta problemas de comportamento 14. Nas duas definições apresentadas, há dois elementos comuns: o distúrbio ou alteração da mente e

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ROBERT, Paul (1984, p. 15).

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a mudança de comportamento. A esses dois elementos comuns nas duas definições, acrescenta-se ainda a falta de consciência do sujeito do fazer, presente no Michaelis. Frayze-Pereira (1984, p. 15) afirma que a doença mental, que preferimos denominar transtorno mental, assume a feição de uma entidade natural, manifestada por sintomas, como as alterações do pensamento, da linguagem, da motricidade, da emotividade. Em seguida, explica que os transtornos mentais definem-se conforme o grau de perturbações do funcionamento da personalidade e reúnem-se em duas categorias, a neurose e a psicoses. Para nosso estudo interessa a caracterização da psicose, que consiste num distúrbio da personalidade como um todo e se manifesta como perturbação do pensamento, que não obedece às regras da lógica; como perturbação da afetividade e do humor, quer por uma ausência de contato afetivo, quer por instabilidade emocional acentuada e como alterações da percepção e do senso crítico, da consciência de si e do mundo e, por isso, a experiência delirante tem valor de evidência. Na peça Héracles furioso a intervenção de Lýssa provoca no heroi uma crise que tem vários pontos em comum com essa descrição da psicose. Para efeitos de análise, consideraremos que o lexema loucura é um termo complexo, que engloba alterações como o delírio, a alucinação e alterações afetivas e comportamentais. Os delírios são as alterações do pensamento, por meio dos quais o sujeito cria novas realidades. As alucinações alteram a percepção auditiva ou visual, fazendo com que o sujeito veja ou ouça coisas que não existem. As alterações afetivas provocam o embotamento afetivo ou as emoções exageradas. Por fim, esses sintomas podem expressar-se por meio de comportamentos inadequados, perigosos tanto para o sujeito quanto para as pessoas ao seu redor, que são considerados “anormais”. Esses elementos da loucura estão presentes no texto euripidiano, contribuindo para a criação do efeito de sentido de realidade. A palavra empregada no texto euripidiano para exprimir a alteração da percepção do heroi é manía, que vai provocar a perturbação de seu espírito, phrenôn taragmoús, e causar o assassínio dos filhos, paidoktónous. Assim Íris exorta Lýssa: Mas eia! Retoma teu inflexível coração, virgem filha da negra Noite, e sobre este homem, a loucura [manía], a puericida [paidoktónous] perturbação de espírito [phrenôn taragmoús] e o saltar de seus pés, impele, move. [v. 835-7]

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No dicionário Greek-English Lexicon encontram-se três significados para manía: loucura; entusiasmo ou frenezi inspirado por uma divindade e paixão. Autores como Heródoto (2001)15, Eurípides16 ou Platão (1991)17 permitem-nos perceber que no pensamento grego do século V era comum atribuir-se origem divina à loucura. Contudo, apesar dessa explicação mítica, já havia a noção de que a loucura era uma doença18. O médico Hipócrates, que é contemporâneo de Eurípides, mostra-se totalmente contrário a qualquer interpretação das doenças que as coloque sob o patrocínio dos deuses. Em sua obra A doença sagrada, Hipócrates (1868) diz que a epilepsia, que é conhecida entre os gregos como doença sagrada, nada tem de sagrado, assim como todas as outras doenças. Hipócrates afirma enfaticamente que a doença não provém da divindade mas é hereditária ou deve-se a fatores externos ao doente. Segundo os estudiosos, o pensamento hipocrático pode ter exercido influência sobre Eurípides, que era aberto às inovações de sua época. A descrição que o dramaturgo faz dos sintomas e reações de Héracles segue de perto o tratado hipocrático. Hipócrates descreve crises que, apesar de tratar-se de epilepsia, tem aspectos que coincidem com o acesso de loucura de Héracles. Hipócrates descreve a situação do doente como a perda da fala e da capacidade intelectual; perda do vigor da mãos, acompanhada de contrações e do revirar dos olhos, seguidos de espasmos dos pés, convulsões e sofrimento. Das descrições da doença, importa-nos primeiramente a questão da perda da consciência, pois é a partir da intervenção de Lissa, que interfere na capacidade perceptiva de Héracles, que tem início seu processo de perda de consciência que desencadeará os atos de violência que ele comete.

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História, VI, 75. Heródoto descreve a doença da loucura, maníe nousos, do rei espartano Cleômenes, que cometeu atos terríveis contra si mesmo, morrendo por causa dos graves ferimentos. Sua loucura é explicada como punição divina por atos injustos cometidos por Cleômenes. 16 Em Bacantes, de Eurípides, encontramos a loucura como proveniente de uma divindade e é causa de danos terríveis, mas também pode significar a bem aventurança do iniciado. 17 No Fedro, de Platão, estando Sócrates a discorrer sobre o amor, faz referência à manía, que tem conotação positiva na palavras socráticas. Afirma ele: a verdade é que os maiores bens nos vêm do delírio, que é, sem a menor dúvida, uma dádiva dos deuses. (244a). Sócrates discorre longamente acerca das vantagens da manía divina, distinguindo quatro espécies de manía, conforme a divindade que a suscita: inspiração mântica, suscitada por Apolo; teléstica ou iniciática nos mistérios, devida a Dioniso; poética, devido às Musas e erótica inspirada por Afrodite. Sócrates atribui, portanto, aos deuses a origem da manía. 18 Apesar de atribuir a manía aos deuses, Sócrates também afirma que há dois gêneros de loucura: aquela que por uma ação divina faz sair dos hábitos cotidianos e uma outra, produzida por doenças humanas. (Fedro, 265a)

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Lissa, a divindade que age sobre o heroi, é a personificação da lýssa, a ira e o furor belicoso, e também o delírio ou transporte de cólera provocado por um deus. Como emissária de Hera, sua função é instilar no peito do heroi o desatino, cujo furor só pode ser avaliado recorrendo-se às metáforas da natureza em fúria: as vagas do mar violento, o terremoto e o raio dardejante (v. 861-3). Lissa provocará a destruição do palácio, mas a maior violação cometida contra o heroi é privá-lo da razão:

Romperei o teto e derruirei o palácio após aniquilar as crianças. Ele, ao matar os filhos, não saberá que destruiu aqueles que gerou até livrar-se de meu furor ( lýssa) (v. 865-7).

Como se pode observar, a intervenção de Lissa não respeita nenhuma das etapas usuais da manipulação, em que o dever é proposto ao sujeito, segundo estratégias de sedução, intimidação, provocação e tentação. Não existe manipulação, pois não se estabelece nenhum contrato entre destinador e destinatário, o que se verifica é a imposição do /dever-fazer/, que tem como contraparte o /não-saber/ referente à ação a ser realizada. Essa atuação de Lissa pode, portanto, ser caracterizada como violência, que, segundo o Petit Robert, significa justamente "agir sobre alguém ou fazê-lo agir contra sua vontade, empregando a força ou a intimidação.". Cometer violência contra alguém, forçando-o a realizar um ato contrário ao seu querer significa anulá-lo enquanto sujeito autônomo, dono de sua vontade. Quando não lhe é concedido o direito de escolha, ele só pode ser um indivíduo submisso. É muito complicado falar em vontade na cultura grega, mas o percurso narrativo do texto permite-nos ver que essa questão está na base dos crimes cometidos. Lissa declara francamente que Héracles cometerá os crimes sem saber o que faz. E, após o retorno à sanidade, o extremo desgosto que ele manifesta demonstra que seu desejo era ter sido aquele que salva seus filhos, como todos esperavam, e não seu assassino. Dessa maneira, dotado da modalidade virtualizante do dever e da modalidade atualizante do poder, Héracles age como se fosse um ser incompleto, pois falta-lhe o querer e o saber. Na verdade, opera-se na constituição modal uma reviravolta nas modalizações, já que seu /querer fazer/ bem aos amigos torna-se /fazer mal/ aos amigos e a modalidade que o ajudaria a evitar isso, o /saber-fazer/ torna-se /não-saber-fazer/, que o leva a agir inadvertidamente.

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A base para a modificação modal que se processa na competência do sujeito é a modalidade do querer. Ao desejar fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, tem no universo subjacente de sua constituição passional o /querer-fazer/ bem versus /quererfazer/ mal. A oposição existente no texto entre amigos e inimigos, sendo que os amigos são valorados positivamente e os inimigos negativamente, define a timia de atração e repulsão, figurativizadas como amor, philía, aos filhos, à esposa e ao pai, como se pode ver nos versos a seguir. Esse amor é modalizador para ele, pois lhe confere o dever e o querer: dever de defendê-los até à morte, se necessário, e o querer ocupar-se de seus cuidados, como se patenteia nos versos abaixo: Pois, a quem devo defender mais, senão esposa e filhos e pai? (v. 574-5) Devo morrer por eles, defendendo-os, se, de fato, morreriam pelo pai (v. 577-8)19

Por outro lado, em sentido oposto se constrói sua relação com Euristeu, tirano que governa Micenas. Pouca informação nos dá o texto euripidiano acerca desse rei e de sua ligação com o filho de Anfitrião. No verso 19, Anfitrião informa que a sujeição de Héracles ao tirano de Micenas seria voluntária, para permitir o retorno do pai a Argos, de onde se exilara após ter causado a morte de Electrião, pai de Alcmena, sua esposa e mãe de Héracles. Se os laços que unem os dois homens são frouxamente expostos, é possível, no entanto, ver que o domínio de Euristeu se exerce sobre Héracles (v. 578-81; 830; 1277-8). Euristeu é constantemente mencionado, não sendo permitindo que sua importância seja esquecida. Em todas as situações, rememora-se que os trabalhos foram executados mediante as ordens de Euristeu. E a pretensa morte do heroi durante sua aventura no Hades é um boato que os empregados do rei de Micenas fazem circular, minando as esperanças de seu regresso. Chama a atenção, contudo, o fato de que Héracles, com o poder que tem, não se ter rebelado contra essa dominação. No entanto, ao nos determos sobre a sensibilização do heroi, começa a tornar-se perceptível a emoção negativa reprimida que ele nutre pelo dominador e seu desejo de destituí-lo de seu poder. A força de atração e repulsão contida na máxima "Fazer bem aos amigos e mal aos inimigos" está sempre atuante. Uma primeira referência a esse 19

Cf. também v. 626-8 e v. 632-6.

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desejo de dano contra Euristeu é feita por Mégara, que expõe a intenção de seu marido de apoderar-se dos bens de Euristeu, para dá-los como herança a um de seus filhos (v. 464). Com a chegada das emissárias de Hera, Íris e Lissa ao palácio, tem início a etapa da patemização, em que se opera a transformação tímica do heroi. Desse modo, a constituição passional de Héracles, embasada no /querer-fazer/mal aos inimigos, é o solo fértil a partir do qual vai-se desenvolver seu delírio. A divindade, portanto, não atua sozinha. A ação do daímōn tem no êthos do heroi base para se desenvolver. Com a intervenção da divindade, o furor, lýssa, vai-se processar inexoravelmente e com violência imoderada. O emprego da força física do heroi desprovida do direcionamento da razão possibilita a agressão que destruirá a família, fazendo com que o /poder-fazer/ associado ao /não-saber/ o que se faz aumente de intensidade a reação descontrolada. Lissa, diante do palácio, descreve a transformação que se processa no heroi, e que tem início no interior, mencionando gestos como sacudir a cabeça, girar as pupilas e o descontrole da respiração. O heroi está alienado de seu poder de decisão, destituído da razão e sua força bruta prestes a se manifestar. Perdeu, portanto, os traços da humanidade e é como um animal selvagem que é referido: “não controla a respiração como touro prestes a investir, mas terrivelmente muge. (v. 867-72) O Coro, também do exterior, como um vidente canta o acesso de fúria que se desenrola, usando a metáfora da dança para expressar o furor maníaco, nada semelhante à manía dionisíaca. Vindos do interior, ouvem-se gritos de Anfitrião, alertando as crianças para que se protejam dos golpes.Surge então um narrador, testemunha ocular do que dentro se passou e relata toda a desgraça. 3. A patemização e a emoção A patemização é a etapa da sensibilização em que se processa a transformação tímica. Consideramos que, na peça que está sendo analisada, a patemização coincide com o delírio, a alucinação e as alterações afetivas. Como o delírio, a alucinação e as alterações afetivas são acompanhadas de comportamentos inadequados, torna-se difícil estabelecer uma separação nítida entre a patemização e a emoção, que, segundo Greimas, é o resultado da patemização e se expressa por meio de comportamentos observáveis. Por essa razão, a patemização e a emoção serão consideradas conjuntamente.

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Como é usual na tragédia grega, o horror se passa dentro do palácio, fora da visão do espectador. Mas é dado a conhecer com detalhes o ocorrido, pelo relato minucioso do mensageiro, testemunha ocular que vem para fora trazer notícias do que acaba de acontecer. A cena da loucura se passa diante do altar, onde todos estavam preparados para a cerimônia de purificação do palácio pela morte de Lico. O relato do mensageiro se inicia com a apresentação da transformação pela qual o heroi havia passado, que o separou de sua normalidade e instaurou em seu lugar o outro, o homem atingido pela manía : Ele já não era o mesmo” (v. 931), diz o mensageiro. A primeira transformação ocorrida manifestou-se por sintomas físicos: silêncio e rigidez (v. 930); rolar dos olhos (932); olhos injetados de sangue (v. 933); boca espumejante (v. 934) e riso histérico (v. 935). Tais sintomas são típicos de uma crise de epilepsia e são semelhantes aos descitos por Hipócrates, na obra Sobre o mal sagrado, já antes referida. Mas ainda não se tem a loucura propriamente dita. O heroi preserva intacto um resto de percepção, pois ainda reconhece o próprio pai (v. 936). No entanto, logo a seguir instaura-se a condição mental alterada, na qual se estabelece o “crer-ser”, primeiro pela alteração do pensamento, depois pela mudança da percepção. Inicialmente instaura-se o delírio, por meio do qual o heroi decide matar aquele que agora se apresenta como seu grande seu inimigo, Euristeu. Pelo pensamento delirante cria realidades inexistentes e, sem sair de seu palácio, realiza a viagem que o leva até o palácio de seu rival, imaginando ter atravessado Niso e o Istmo, até chegar em Micenas. O delírio o faz conduzir um carro inexistente (v. 947-9); tomar parte em um banquete fantasioso (v. 955-7); sair-se vitorioso num combate fictício sem nenhum rival (v. 960-1) e vociferar ameaças contra o inimigo imaginário, Euristeu (v. 962-3). A gestualidade que acompanha o delírio se expressa como movimentar-se pelo palácio; conduzir um carro; deitar-se no chão como se reclinado num banquete; despir a roupa como numa luta, deixando atônitos os que presenciavam a cena (v. 950-2). Assim que se imagina diante de Euristeu, seu delírio transforma-se em alucinação e sua percepção visual sofre alteração e o “crer-ser” dirige seu comportamento para o dano. Deixa de perceber Anfitrião como seu pai e vê nele o pai de Euristeu e o repele (v. 965-9). O mesmo se dá com seus próprios filhos e esposa, que mata por ver neles filhos e esposa do inimigo (v. 977-80; 984-94; 994-1000). Desse modo, sem o domínio da razão, dizima de modo cruel seus três filhos e a fiel esposa, cumprindo o que fora determinado por Hera e viabilizado por Lissa. No entanto, para realizar tais feitos serviu-se de sua destreza com o arco e a flecha, de sua 757

força admirável e dos valores que constituem a ideologia à qual adere, de “amar os amigos e odiar os inimigos”, Assim, fiel a si mesmo, cumpriu o que lhe foi destinado pelos deuses. 4. A moralização A moralização é a última etapa do percurso patêmico canônico. Segundo Greimas, trata-se de uma dimensão autônoma do discurso, que instaura um actante observador, responsável pelo julgamento acerca da maneira do fazer ou do ser. Esse é um julgamento ético, incidindo sobre os papéis éticos, estabelecendo uma isotopia da medida, referente ao que é considerado virtude ou vício no texto. A loucura e sua manifestação por meio de ações tidas como inadequadas suscita a reflexão acerca da normalidade e da anormalidade. Se a “anormalidade” consiste na negação da normalidade, o que constitui a normalidade? No texto em análise, a normalidade estaria no auto-domínio e uso da razão e também nos valores culturais em jogo, a benevolência em relação aos amigos e a malevolência não só aceita como elogiada, contra os inimigos. Quando Héracles recupera sua sensatez não se apavora por ter desejado trucidar pessoas inocentes – os filhos e a esposa de Euristeu –, mas por ter inadvertidamente matado os seus familiares. Entre o acesso de loucura e o retorno à “normalidade” há um intervalo em que Héracles está ainda incerto sobre o que acaba de suceder. Seu acesso de fúria foi interrompido por uma pedra lançada pela deusa Atena, que o fez cair em sono profundo. Ao despertar, ele dá mostras de estar ainda numa zona intermediária, entre a razão e a irracionalidade. Anfitrião exerce o papel daquele que o faz retomar o contato com a realidade, fazendo-o saber que ele assassinara os próprios filhos e a esposa, tomado por um acesso de loucura (v. 1137). A demonstração por parte do heroi é de desconhecimento do sucedido e de vergonha (v. 1124; 1160), emoção usual entre os que se têm consciência de sofrer um transtorno mental e das ações cometidas. Avaliando negativamente seu fazer, Héracles é tomado pelo desejo de auto-aniquilação, pensando então em suicídio (v. 1146-52), como forma de afastar de si a infâmia. O texto apresenta Héracles como primeiro observador de seu próprio fazer e, e de seu ponto de vista, a avaliação é negativa. Mas o texto apresenta também um observador externo, Teseu, que refuta todas os argumentos negativos de Héracles, demonstrando-lhe sua amizade e gratidão pelos

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benefícios que dele recebera. A solidariedade do rei ateniense demove-o da intenção de suicídio e o reintegra no patamar heróico dos que realizaram grandes feitos, fazendo-o aceitar o reves sofrido. Por intermédio do sofrimento, estabelece-se um novo código de honra: a valorização da capacidade de permanecer firme após o teste da adversidade. Diz Héracles:

Pois aquele que não resiste às desgraças não poderia resistir à lança de um homem. Enfrentarei a vida: irei para tua cidade e gratidão infinita tenho por tuas dádivas. (v. 1349-52)

5. Conclusão Os sintomas do desvio que atualmente se denomina perturbação mental ou comumente loucura não devem ter variado nas diferentes épocas, expressando-se como delírio, alucinação e alterações afetivas e comportamentais. Diferiu, entretanto, a forma como a loucura tem sido interpretada nas diversas épocas e nas diferentes culturas. Na Grécia antiga, como vimos, a origem da loucura era atribuída aos deuses e podia ser benéfica, quando era, por exemplo, ligada à mântica, ou maléfica, como no caso de Héracles, pois levou à destruição de sua família e quase ao suicídio do heroi. Contudo, a peça nos passa uma visão benevolente da loucura, por meio do restabelecimento da honra do heroi anaítios, não culpado pelo horror que involuntariamente causou. Referências BARROS, Gilda Naécia Maciel. Psiquiatria e Humanismo – sobre a loucura na Grécia Clássica. Filosofia e Educação 5. Org. LAUAND, L. J. 1 ed. São Paulo: FACTASH EDITORA, 2007. p. 07-14. ______ A face grega do irracional. In: Luiz Jean Lauand. (Org.). Filosofia e Educação - Estudos 7. São Paulo: Factash Editora, 2008, v. 07, p. 23-36. ______ O delírio individual como castigo e doença. Exame em Ésquilo e Eurípides. Orestes. In: Filosofia e Educação – Universidade – Orgs. Jean Lauand – Roberto C.G. Castro. S.Paulo:FacTash editora, 2011, pp. 83-97. BLUNDELL, Mary Whitlock. Helping Friends and Harming Enemies: A Study in Sophocles and Greek Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

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SHENIPABU MIYUI: LITERATURA E MITO Érika Bergamasco Guesse (FAPESP) UNESP/FCLAr Karin Volobuef UNESP/FCLAr Introdução Nossa pesquisa tem por objetivo realizar uma análise de um grupo de doze narrativas indígenas de origem mítica, contidas na obra de autoria coletiva dos índios Kaxinawá, Shenipabu Miyui (1995), organizada pelo professor Joaquim Mana Kaxinawá. As histórias que compõem a obra foram narradas pelos mestres da tradição indígena em versões tanto na língua indígena Kaxinawá quanto em língua portuguesa

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(contadas por índios que dominavam a “língua dos brancos”). Obviamente, são as versões em português que formam nosso corpus de trabalho. Desta forma, a pesquisa está organizada de modo a cobrir basicamente três tópicos: discussão sobre a configuração do que poderíamos chamar de literatura indígena contemporânea, para contextualizar a obra a ser analisada; estudo do mito – um levantamento de suas especificidades enquanto matéria cultural e literária – com enfoque nos mitos indígenas e seu processo de migração da oralidade para a escrita, bem como a importância desse processo para as comunidades indígenas e para a manutenção e conservação de suas histórias e costumes. E por fim, análise das narrativas míticas do povo Kaxinawá, considerando esses textos enquanto realização literária, contemplando sua matéria estética, ou seja, um universo composto de expressão de ideias, de criatividade verbal e elaboração da composição narrativa. Resultados parciais: descrição do estágio atual da pesquisa Seguindo a metodologia proposta para o desenvolvimento do trabalho, no primeiro momento da pesquisa, nos dedicamos a verificar como tem ocorrido o “fenômeno da escrita indígena” no Brasil e como essas produções escritas de autoria indígena têm se revestido de um caráter literário. Buscamos investigar como se iniciou o processo de escrita indígena, quais são as características dessa literatura e quais são seus principais representantes. Em primeiro lugar, pesquisamos os direitos legais garantidos aos indígenas essencialmente pela Constituição de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e pelo Plano Nacional da Educação (2001). De acordo com Souza (2003, on-line), a constituição brasileira de 1988 reconheceu oficialmente a existência de línguas indígenas no Brasil e garantiu o direito à educação bilíngue. Como consequência disso, a partir da década de 90, escolas indígenas diferenciadas começaram a ser criadas em nosso país. Com a criação dessas escolas, algumas personagens, antes inexistentes, iniciaram sua atuação no cenário educacional brasileiro. Professores indígenas passaram a ser formados e a lecionar nessas escolas para um público discente composto em sua grande maioria (quando não em sua totalidade) por indígenas. Dessa maneira, um material didático também diferenciado se fez necessário. Além de aprenderem ou aprimorarem o domínio da língua portuguesa escrita, muitas

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tribos indígenas, anteriormente ágrafas, intensificaram o processo de construção de sistemas alfabéticos escritos de suas próprias línguas de origem. São esses professores que assumiram primordialmente a confecção de seus próprios materiais didáticos, fazendo com que suas histórias, cantos, mitos e poesias passassem do âmbito da oralidade para o âmbito da escrita. Eles têm construído, a partir de suas práticas de trabalho, a literatura das suas comunidades: são os chamados “livros da floresta” (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 196-297). Neste processo de solidificação de uma literatura brasileira de autoria indígena, as comunidades indígenas consideram a escrita de seus mitos muito importante (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 233). Sendo assim, como suporte à análise das narrativas do corpus, consideramos necessário dedicar um capítulo ao estudo do mito enquanto material literário e cultural. A partir daí ganhamos subsídios para tratar especificamente do mito indígena, colocando sob a lupa suas peculiaridades, especificidades, seus elementos mais recorrentes, sua simbologia. Atualmente estamos, portanto, desenvolvendo o segundo tópico da pesquisa, que trata do estudo do mito, no qual dedicamo-nos a isolar seus principais aspectos em termos de sua realização enquanto narrativa carregada de dimensão estética. Cabe aqui lembrarmos que “os mitos são tidos como obra de literatura, em virtude de serem obras da imaginação, reconhecidamente anônimas e coletivistas, mas não por isso menos imaginativas” (RUTHVEN, 1997, p.72). Em consequência dessa estreita relação entre mito e literatura, de há muito a narrativa mítica (transmitida oralmente ou em textos considerados sagrados) nutriu e fertilizou a efabulação e criatividade (voltadas a objetivos estéticos): por exemplo, muito do que nos chegou da mitologia greco-romana foi preservado no bojo de tragédias, epopeias e outras formas literárias altamente sofisticadas. Segundo Eliade, o que evitou que os deuses e heróis gregos caíssem no esquecimento após o longo processo de desmitificação ao que foram submetidos após a ascensão do cristianismo foi, principalmente, o fato de as artes plásticas e a literatura terem se desenvolvido em torno dos mitos heroicos e divinos. Diz Eliade: Em última análise, a herança clássica foi “salva” pelos poetas, artistas e filósofos. Desde o fim da Antiguidade – quando não eram mais tomados ao pé da letra por nenhuma pessoa culta – os deuses e seus mitos foram transmitidos à Renascença e ao século XVII, pelas obras, pelas criações literárias e artísticas (1972, p. 137 – grifo do autor).

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Ainda de acordo com o mesmo estudioso, a literatura desempenha um papel importante em relação ao legado mítico dos povos, já que determinados gêneros literários, como a narrativa épica e o romance, por exemplo, em outro plano e com outros fins, prolongam a narrativa mitológica. Assim, nas sociedades modernas, teria sido mais especificamente o romance o gênero que assumiu o lugar da transmissão oral dos mitos e contos das sociedades populares e tradicionais. Seria até mesmo possível identificar estruturas “míticas” em romances modernos, demonstrando a sobrevivência literária dos grandes temas e personagens do universo mitológico. O fator considerado por Eliade como o que mais aproxima a função da literatura daquela das mitologias é a “saída do Tempo” produzida pela leitura. O tempo que se “vive” ao ler um romance não é, evidentemente, o tempo em que o membro de uma sociedade tradicional reintegra, ao escutar um mito. Em ambos os casos, porém, há a “saída” do tempo histórico, pessoal, e o mergulho num tempo fabuloso, trans-histórico. O leitor é confrontado com um tempo estranho, imaginário, cujos ritmos variam indefinidamente, pois cada narrativa tem o seu próprio tempo, específico e exclusivo. O romance não tem acesso ao tempo primordial dos mitos; mas, na medida em que conta uma história verossímil, o romancista utiliza um tempo aparentemente histórico e, não obstante, condensado ou dilatado, um tempo que dispõe, portanto, de todas as liberdades dos mundos imaginários (ELIADE, 1972, p. 164).

Dentre os vários aspectos compartilhados pela literatura e pelo mito estão a metáfora, a dimensão simbólica, a incorporação de valores éticos e de parâmetros de comportamentos sociais e até mesmo uma certa compreensão histórica, podendo-se dizer que em muitos casos a literatura é composta da matéria-prima dos mitos: uma “literatura feita por artesãos que falsificam artisticamente os mitos a fim de criar alguma coisa que – em sua forma estabilizada e codificada – está bastante distante do que o antropólogo encontra em seu trabalho científico de campo” (RUTHVEN, 1997, p. 72). Para Roberto Calasso (2004, p. 119), a constante aliança entre literatura e mito pode “ser considerad[o] um retorno às origens – ou, ao menos, um recuo para aquele recinto de onde os deuses sempre saíram”. Quanto aos mitos indígenas, procuramos apresentar quais são suas principais características narrativas, seus elementos e sua significação simbólica. Acreditamos haver semelhanças entre as narrativas indígenas e outras mitologias de diversas partes do mundo, tendo em vista sua configuração como histórias sagradas, muitas vezes com natureza etiológica ou cosmogônica. No entanto, nosso enfoque principal é averiguar as

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especificidades e peculiaridades da expressão mítica indígena, ou seja, mais do que apresentar os aspectos temáticos compartilhados entre essas expressões e outras, buscamos os elementos diferenciadores, uma vez que, por meio deles, podem ser identificados o caráter único e a dimensão criativa, próprios da forma de expressão de uma cultura específica. Tem acontecido, em várias aldeias brasileiras, uma interação diferenciada entre os mais velhos (considerados mais sábios) e os mais novos, que são os verdadeiros protagonistas desse novo processo educacional e literário. Os mais velhos se dispõem a narrar aos coletores as histórias “verdadeiras” de seus povos, as histórias de um tempo antigo, remoto, de um tempo em que a escrita não existia para dizer que havia histórias falsas. Os coletores, por sua vez, respeitam todo o contexto cultural no qual as narrativas estão inseridas e escrevem/ registram aquilo que ouvem. Configura-se um processo bem complexo de fixação das expressões literárias orais para uma expressão literária escrita, que será editada, publicada e utilizada na formação escolar das crianças da aldeia ou então que será destinada também ao público leitor branco, mesmo que seja em menor escala. A forma mais simples, e talvez a mais clara, de definir o mito é como a representação concreta da concepção do mundo de comunidades humanas. Dessa forma, a tradição mítica de cada povo constitui um esforço no sentido da representação de si próprio, do que é, do que faz, de como vive, e do estabelecimento de toda uma moral, um ritual, uma mentalidade, baseando-se nessa mitologia. A função social do mito, porém, não exclui a sua função poética ou recreativa (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 233).

Podemos perceber que, ao escreverem e publicarem seus mitos, os índios concretizam o universo de sua cultura, seus costumes, suas crenças. O que acontece nos dias de hoje não é um simples processo editorial e literário, mas sim o assumir, por parte dos índios, um novo posicionamento na História e na literatura, um posicionamento mais ativo, coletivo e até mesmo político. Através da escrita de seus mitos, os índios colocam-se como os verdadeiros autores de sua História, segundo Almeida e Queiroz (2004). Podemos dizer que a literatura indígena vinha passando por um processo de folclorização, com o intuito de ocultá-la. O uso dos mitos indígenas nas escolas, por exemplo, trazia as entidades míticas desespiritualizadas. Apenas a escrita desses mitos,

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que possibilita que eles sejam lidos como literatura, reespiritualiza as entidades míticas, na medida em que recompõe graficamente suas formas rituais. Para o estudo do mito e sua relação com a literatura, recorremos principalmente às obras de André Jolles, Roberto Calasso, Mircea Eliade, Raul Fiker, Mielietinski, Ruthven, Campbell, Lévi-Strauss dentre outras. Em relação aos mitos indígenas, fizemos alguns contatos muito proveitosos com a Universidade Federal do Pará, através da professora Sylvia Maria Trusen e da professora Maria do Socorro Simões, sendo essa última membro integrante da coordenação do programa de pesquisa “O imaginário das formas narrativas orais populares

da

Amazônia

paranaense”

(IFNOPAP),



citado

anteriormente.

Conseguimos, por intermédio desse projeto algumas obras que, certamente, contribuirão para o desenvolvimento deste tópico do trabalho. Dentre elas estão: Belém conta..., Santarém conta..., Abaetetuba conta... e Cultura e biodiversidade – entre o rio e a floresta. Além disso, os estudos de Lévi-Strauss, Câmara Cascudo, Sílvia Carvalho, Osvaldo Orico, Sérgio Medeiros e Maria Inês de Almeida também serão bibliografia básica para esta etapa da pesquisa. Bibliografia básica para o desenvolvimento da segunda etapa da pesquisa: ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: As edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: A Autêntica; FALE/UFMG, 2004. BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. Tradução de Carlos Sussekind e outros. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. CALASSO, Roberto. A literatura e os deuses. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CAMPBELL, Joseph, com Bill Moyers. O poder do mito. Organizado por Betty Sue Flowers. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Editora Palas Athena, 1990. CARVALHO, Silvia Maria Schmuziger de. Jurupari: estudos de mitologia brasileira. São Paulo: Ática, 1979. CARVALHO, Silvia Maria Schmuziger de. Orfeu, orfismo e viagens a mundos paralelos. São Paulo: Ed. UNESP, 1990. CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1972. CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

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CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura oral no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1984. CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. Tradução de J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003. (Debates, 50). ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1972. (Debates, 52). ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Trad. José Antonio Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001. FIKER, Raul. Mito e paródia: entre a narrativa e o argumento. Araraquara: Laboratório Editorial da FCL-UNESP / São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2000. GREIMAS, A. J. Elementos para uma teoria da interpretação da narrativa mítica. In: BARTHES et al. Análise estrutural da narrativa. Tradução de Maria Zélia Barbosa Pinto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972. p. 61-109. ITINERÁRIOS – revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Araraquara (UNESP), v. 11 (volume dedicado ao tema “A voz do índio”), 1997. JOLLES, André. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral São Paulo: Cultrix, 1976. KAXINAWÁ, Joaquim Paula Mana e outros (Org.). Shenipabu Miyui: história dos antigos. 2. ed. rev. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Tradução de Chaim Samuel Katz. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução de Maria Celeste da Costa e Souza e Almir de Oliveira Aguiar. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Tradução de Antônio Marques Bessa. Lisboa: Edições 70, 1981. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. MEDEIROS, Sérgio. Makunaíma e Jurupari: Cosmogonias Ameríndias. São Paulo: Perspectiva, 2002. MIELIETINSKI, E. M. A poética do mito. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

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ORICO, Osvaldo. Mitos ameríndios e crendices amazônicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. RUTHVEN, K. K. O mito. Tradução de Esther Eva Horivitz de Beermann. São Paulo: Perspectiva, 1997. (Debates, 270). SIMÕES, Maria do Socorro; GOLDER, Christophe (Coord.). Santarém conta... Belém: Cejup, Universidade Federal do Pará, 1995. (Série Pará Conta; 2). SIMÕES, Maria do Socorro; GOLDER, Christophe (Coord.). Belém conta... Belém: Cejup, Universidade Federal do Pará, 1995. (Série Pará Conta; 2). SIMÕES, Maria do Socorro; GOLDER, Christophe (Coord.). Abaetetuba conta... Belém: Cejup, Universidade Federal do Pará, 1995. (Série Pará Conta; 3). SIMÕES, Maria do Socorro (Org.). Cultura e biodiversidade. Entre o rio e a floresta. Belém: UFPA, 2001. SIMÕES, Maria do Socorro (Org.). Populações e Tradições às Margens do Tocantins. Um diálogo entre a Cultura e a Biodiversidade. Belém: UFPA, 2004. SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. As visões da anaconda: a narrativa escrita indígena no Brasil, 2003. Revista Semear 7. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2010.

A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS EM “OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO DE ERICO VERÍSSIMO”, UMA QUESTÃO FIGURATIVA E TEMÁTICA, DO PONTO DE VISTA DA SEMIÓTICA DISCURSIVA Euzenir Francisca da Silva [email protected] UFMS RESUMO A proposta de análise da obra “Olhai os lírios do campo” de Érico Veríssimo, surgiu do interesse pelo contexto da narrativa, nela é abordada a temática de um casamento, onde o romantismo e o amor não são os elementos condutores do matrimônio entre o médico pobre Eugênio Fontes e a filha de um grande comerciante, Eunice Cintra, mostra o nascimento de uma relação fluída a partir da amizade entre os colegas de trabalho Drª Olívia e Drº Eugênio, dando origem a um triângulo amoroso. A pesquisa busca saber como fora recoberta figurativamente a (s) temática (s) na qual se desenvolve a rede de relações entre os atores no romance. Para efetuar a análise, teremos como base a ciência que estuda como o texto diz para dizer o que diz, denominada Semiótica de Greimas ou Semiótica discursiva. Essa teoria faz uso de três níveis para analisar o texto: o nível fundamental, que aponta as semânticas de base no texto, com o qual localizamos uma relação de contrariedade no discurso, exemplo vida x morte, o nível narrativo, nos permite analisar os programas narrativos efetuados pelos sujeitos para estar conjunto com determinado objeto valor, abordando os enunciados de estado e de fazer dos

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sujeitos, e o nível discursivo, nele os esquemas narrativos são assumidos pelos sujeitos da enunciação, convertendo-se em discursivo, esse se instaura no tempo, no espaço e suas ações são executadas por atores, a discursivização ocorre através da actorização, espacialização e temporalização, nível com o qual executaremos o processo de análise. Quanto à metodologia adotada, recortaremos passagens do romance, para analisarmos o processo de construção de sentidos e a relação entre figura (s) e tema (s), verificando, como esses elementos estão postos de modo a recobrir uma temática, na construção de sentido em ‘Olhai os lírios do campo’. PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Semiótica discursiva, tematização e figurativização 1. Breve apresentação sob a ótica da semiótica discursiva do romance “Olhai os lírios do campo” de Erico Veríssimo. O romance “Olhai os lírios do campo” de Erico Veríssimo, narra à trajetória da formação de Eugênio Fontes, retrata as dificuldades enfrentadas por ele e sua família para mantê-lo estudando, mostra a trajetória de vida, e fatos que marcaram as fases de sua vida: desde a infância, adolescência e a fase adulta, apontando a insatisfação do ator por pertencer a uma classe social de menor poder aquisitivo. Para produção da análise selecionamos a fase em que recém-formado em medicina, decepcionado com a realidade que o cerca, encontrará no matrimônio com Eunice Cintra, o passaporte para estar conjunto com a riqueza e pertencer à classe da rica. No contexto da obra, as questões sociais e econômicas recobrem uma temática maior, a pureza dos sentimentos e a necessidade de retomada de certos valores essenciais à vida. Os atores são postos de modo a representarem sua classe social e seus valores,

Eunice Cintra, lhe oferta os valores materias, sua colega de trabalho,

Drª. Olívia destaca-se no romance por levá-lo a reflexões sobre os valores do que realmente é importante na vida. No decorrer da narrativa, isotopias figurativas, ou seja, desdobramento das categorias semânticas ao longo do discurso, foram utilizados para revestir o campo semântico que faz remissão aos atores, apontando-lhes suas características físicas, psicológicas e o mundo ao qual pertencem, segundo Bertrand (2009, p.187): [...] ela assegura a repetição, pela recorrência, dos elementos semânticos que se repetem numa frase a outra, garantindo a continuidade figurativa e temática do texto (especialmente por meio dos termos de retomada, as anáforas pronominais e nominais). Provê também a progressão, ou seja, o aporte de informações novas por sobre o fundo de continuidade ao longo dos enunciados, quando os

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traços semânticos são selecionados, assumidos e desenvolvidos na alternância e encadeamento dos “temas” e “comentários”.

Essas recorrências podem ser vistas nos atores, o empresário Cintra e no engenheiro Felipe Lobos, aos quais são recobertos por configurações semânticas que os caracterizam como atores empreendedores e ambiciosos, representam o capitalismo e a influência desse sistema no contexto social na vida das pessoas, seus valores são voltados ao consumo e ao lucro, e mesmo no contexto familiar tais valores predominam, como se pode notar na maneira impessoal , técnica e contratual, como o senhor Cintra trata o casamento da filha, e na obstinação de Felipe Lobo em construir um megatérreo, levando-o a deixar a família em segundo plano, ofertando a esposa e filha o que o dinheiro pode comprar, deixando de atuar como pai e marido presente nas questões familiares, ambos valorizam e vivem em prol do conceito de lucro e desenvolvimento capitalista, representando a elite social burguesa, a qual Eugênio ingressara via matrimônio. Na cena abaixo, temos o recorte do momento em que Eugênio decide fazer uso do casamento para prosperar financeiramente: [...] Os homens se cruzavam nas ruas, haviam criaturas encurvadas e pobres como o estafeta. Mas passavam automóveis caros e na fresca sombra de seus interiores acolchoados iam senhoras e cavalheiros de aspectos prósperos. Eugênio parou a uma esquina, cheio de uma súbita resolução. Imaginou-se dentro de um daqueles autos. Dr. Eugênio Fontes, genro de Vicente Cintra... E porque não? Não queria deixar-se vencer pela vida. Não correra atrás de Eunice. O destino os aproximava. Ele não tinha culpa. Foi para casa tomou um banho, trocou de roupa. Era a primeira vez que a procurava para marcar um encontro. Viram-se a noite. No mês seguinte estavam noivos. Vicente Cintra o cumprimentou sem entusiasmo. Com infinita cautela, combinou delicadamente “detalhes materiais”. Dar-lhe ia um lugar na fábrica, coisa simples, assinar papéis, fiscalizar, o senhor compreende. Nomeá-lo-ia também médico dum sindicato, onde tinha influência. (VERÍSSIMO, 1980, P.107).

Nessa passagem, observamos o ator Eugênio distinguindo entre as figuras do mundo que o rodeia, classificando de modo disfóricos os homens que cruzam as ruas encurvados e como eufóricos senhoras e senhores de aspecto próspero, levando a classificação da categoria semântica de base homem primata versus homem moderno, o primeiro destituído de beleza e conforto, representação da classe social menos

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favorecida, e o segundo constituído de beleza e conforto, a representação da elite, os ricos. O termo figura, em semiótica é utilizado para recobrir determinada temática na teoria da significação, refere-se a todo conteúdo de qualquer língua natural ou sistema de representação verbal ou não verbal, que tenha um correspondente perceptível no mundo natural, por exemplo, prédios, hospital, chácara, árvores, etc. Segundo Fiorin (2009, p.91) quando se diz que a figura remete ao mundo natural, pensa-se não só no mundo natural efetivamente existente, mas também no mundo natural construído. Nessa passagem obervamos sob a ótica do nível fundamental da teoria greimasiana a classificação das categorias semânticas contrárias, riqueza versus pobreza. Eugênio avalia como figuras da beleza e do conforto os ricos, denominando-os pelos pronomes de tratamento senhoras e cavalheiros versus depreciação dos homens simples, citados como criaturas curvadas, negando a evolução física e social, por transitarem pelas ruas a pé, olhando para o solo, curvado em estado de submissão diante do mundo, sem olhar para horizonte, seres em estado de miséria e pobreza. No nível fundamental ou profundo, Eugênio observas as figuras que apontam diferenças entre as classes sociais, (homens / criaturas encurvadas e pobres / o estafeta versus senhoras e cavalheiros/ Dr. Eugênio Fontes x Vicente Cintra / Eunice), de espaço (nas ruas / uma esquina versus interiores acolchoados /casa / um lugar na fábrica / num sindicato) e de tempo ( progressão= passavam automóveis x regressão = parou). No nível narrativo, o sujeito Eugênio está disjunto do objeto valor riqueza, executa uma performance para estar conjunto com esse objeto valor, por meio de contrato social, o casamento com Eunice Cintra, desencadeando uma sucessão de programas narrativos, os quais não aprofundaremos nessa análise. Na manifestação discursiva, o ator nota a posição das figuras do mundo, antes de prosseguirmos é importante frisar que, ao entrarmos no mundo literário, entramos automaticamente no mundo figurativo, como já foi dito, a figuratividade é toda forma verbal ou não verbal de representação do mundo natural, assim no contexto literário temos a representação verbal do mundo natural e de suas figuras. Destacando as formas de manifestação discursiva temos a actorização representada pelos componentes das classes sociais citadas, a espacialização, figurativizado pelo espaço interior e exterior, a temporalidade que marca o tempo contínuo e a estagnação, quanto à enunciação é efetuado pelo ator Eugênio. 771

Essas figuras recobrem a temática da ascensão social e cultural, uma vez que a riqueza contribui também para acesso a outras culturas e suas manifestações, tal evolução social é representada sob a visão da classe rica, pelas categorias semânticas que representam o conforto dos interiores acolchoados dos automóveis, são seres evoluídos, dotados de poder, andam confortavelmente em carros de luxo e não demonstram submissão diante dos outros. Na sequência discursiva, a ação de Vicente Cintra com relação ao casamento da filha, representa uma transação comercial com Eugênio, seu futuro genro, pelo uso do termo “detalhes materiais”, atuando como um contratante, que aponta ao contratado os benefícios e os lucros do fechamento desse contrato, no caso, o casamento. Tais benefícios foram postos como uma transação lucrativa, exaltados pelo uso, dos verbos “Dar-lhe-ia” e “Nomeá-lo-ia”, na sequência os objetos de valor exposto ao beneficiário ou contratado: um posto e uma nomeação, representação do alto posto profissional e pela nomeação num sindicato, meios pelos quais Cintra inclui Eugênio na sua classe social. Entende-se que não bastou a Eugênio casar-se com a filha do Cintra foi preciso ajustá-lo e inseri-lo na nova classe social, é preciso ter alto cargo empregatício e ter uma referência institucional. A questão da ascensão social via formação acadêmica remonta a temática do que é lucrativo e rentável, uma vez que no contexto social ser formado e ter uma profissão, faz parte do processo de desenvolvimento intelectual e econômico do cidadão. Algumas carreiras são culturalmente mais respeitadas, reconhecidas como sendo mais rentáveis economicamente, no caso das mencionadas no contexto do romance: a medicina, profissão dos atores protagonistas e a engenharia profissão exercida pelo ator Felipe Lobos, figura mais representativa do desenvolvimento capitalista, no contexto do romance, sua obseção por construir um megatérrio (prédio de 22 andares) o faz indiferente aos sentimentos da esposa e da filha, dando a elas todo o conforto que o dinheiro lhes pode proporcionar, mas não ofertando sua atenção e o carinho. 2. A relação entre tema e figura no processo de construção de sentido em Olhai os lírios do campo. Ao lermos um texto literário entramos imediatamente na figuratividade. Bertrand, 2003.

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Os textos literários são reconhecidos por representarem usando a arte das palavras uma crítica a alguma questão social, onde são inseridos personagens que atuam por uma determinada causa, prevalecendo o contexto de uma relação amorosa, onde um casal encontra obstáculos, sejam eles de aspectos culturais ou sociais que atrapalham o romance, são narradas em determinado espaço físico, em determinado tempo, recebendo a obra coberturas figurativas que caracterizem esse tempo, local e espaço, e pessoas que atuam nesse contexto, para isso fazemos uso da figuratividade e da tematização, segundo Fiorin (2008, p.33), são operações enunciativas que desvelam os valores, as crenças, as oposições do sujeito da enunciação, quanto a função a tematização serve para explicar as coisas do mundo e a figuratização constrói textos concretos, representando as coisas do mundo. Apontada à origem do termo figurativização e tematização, vamos adentrar em outro ponto da análise, na questão da relação entre atores protagonistas Olívia, Eugênio Fontes e Eunice Cintra, cujas características psicológicas são de pessoas realistas avessas a romances. No caso da atora Olívia, não demonstra ou exige de Eugênio uma postura romântica na relação intima que mantiveram, no contexto do matrimonio de Eugênio com Eunice Cintra, o romantismo e o amor não foram os motivos da união conjugal, mas a vaidade e interesses particulares de ambos. Prevalece também a temática da lógica e da ciência, no grupo social no qual são inclusos a família Cintra e seus amigos, onde os valores da cultura e de consumo são visíveis, o poder e o ter são o que sustenta a personalidade e vaidade desse grupo, figurativizados pelos atores: o engenheiro, Felipe Lobo, com sua ambição pela construção do Megatérrio (prédio de 22 andares) deixando sob segundo plano a família, nutrindo-a de bens materiais e deixando os valores afetivos em segundo plano, os valores da cultura são representados por Eunice Cintra, Anselmo Castelo, sempre voltados a discutir sobre artes e ciências modernas, como a psicanálise e filosofia. No grupo do ser são representados pela equipe médica e colegas de trabalho de Eugênio, estão em contato direto com a dor, o sofrimento, a miséria, a ciência é seu instrumento de conhecimento, estando a abstração presente na figura de Olívia, a qual apresenta-se entre a lógica científica e a manifestação de fé. Assim sendo, por que o uso do sermão da montanha no título de um romance composto por atores ligados mais a ciência e a exatidão do que ao sentimentalismo e suas abstrações? 773

Qual tema o romance recobre e quais figuras são utilizadas nesse processo de construção de sentido no romance? Antes de seguirmos é importante compreender o que significa o termo sentido para a teoria da significação. [...] O sentido não é algo isolado, mas surge da relação. Só há sentido na e pela diferença. Assim, os sentidos percebidos pelo falante pressupõem um sistema estruturado de relações. Por conseguinte, a semântica estrutural não visa propriamente o sentido, mas a arquitetura, não tem por objetivo estudar o conteúdo, mas a forma do conteúdo. (FIORIN, 2008, p.16)

Segundo a explicação a “relação versus diferença”, são os elementos geradores de significado no processo de construção de discurso, assim é preciso haver uma relação entre elementos contrários, dessa contrariedade surgem novos sentidos, e por último devolve-se uma rede de relações e significados entre os atores. No contexto do romance percebemos diferenças entre os valores de Olívia versus Eugênio versus Eunice Cintra, como também diferenças entre classes sociais: riqueza x pobreza, no desenvolvimento da narrativa são aos poucos visíveis aos leitores a trama que envolve esses atores e suas questões pessoais que os afligem, assim como a produção de sentidos criadas pelo contexto social em que estão inseridos, seja no campo profissional ou pessoal, a representação da realidade e a representação das dores de seus atores encantam os leitores de várias gerações. Para representar o mundo e suas figuras o discurso utiliza-se das categorias de tempo, pessoas e espaço na narrativa, tal representação se dá pelo uso de figuras do mundo natural, tendo uma abordagem temática recoberta por tais figuras, como por exemplo a intertextualidade do sermão da montanha, que compara a figura do rei Salomão aos lírios do campo, põe em reflexão a ação destes no mundo e avalia como positivamente a vida em estado natural, versus uma vida de luxúria e glória. A figuratividade é responsável por criar o efeito de realidade, de construir simulacros, desta forma representam o mundo, por outro lado, para explicar essa realidade construída classifica e ordena a realidade significante, estabelecendo relações de dependências, sua função é descritiva ou representativa, levando do mundo natural figuras para mundo imaginário, fictício, dando um valor de representação da realidade. Por exemplo, no romance, é figurativizado o espaço hospitalar: salas de cirurgias, pacientes enfermos, a realidade da rotina desses profissionais que executam seu trabalho em hospitais públicos, atendimentos residenciais, nesse nível discursivo para construir o 774

discurso é preciso fazer uso das categorias de pessoa, espaço e tempo e de mecanismos como a embreagem e a debreagem, recursos que explicam como foram abordadas as enunciações. Quanto à definição desses recursos enunciativos, entende-se que:

[...] debreagem é o mecanismo em que se projeta no enunciado quer as pessoas (eu/tu), o tempo (agora) e o espaço (aqui) da enunciação, quer a pessoa (ele), o tempo (então) e o espaço (alhures) do enunciado. (Ibid. p.58) Quando ocorre a projeção do (eu-aqui-agora) ocorre uma debreagem enunciativa, quando há a projeção do (ele-alhures-então) acontece uma debreagem enunciva. (Ibid. 2009, p.58)

Esses recursos são observados no romance, as formas de enunciação ocorrem em certos momentos pela voz do narrado, outros momentos pela voz dos atores. Outro recurso discursivo que ganha destaque no romance, refere-se à questão da temporalidade, uma vez que nesse percurso de transição, o tempo presente e passado são imprescindíveis: uma para as atitudes a serem tomadas, outra para as reflexões das atitudes já tomadas. O romance transita entre o tempo presente imediato e o passado, a estrada, o auto, as paisagens, são elementos que complementam a temporalidade, a figura do carro em alta velocidade representa o correr do momento presente, as paisagens, transformar o presente em passado, tempo cronológico demarca exatidão do presente em movimento como, por exemplo, a vida de Olívia com os minutos contatos. A figura da estrada sugere o tema da direção a tomar, o rumo a uma nova vida, dessa forma o texto dá ao leitor, explicações de como os fatos ocorreram desde o princípio, via retomadas de lembranças. Nessa corrida contra o tempo, os últimos minutos de vida de Olívia levam Eugênio a refletir sobre as ações de uma vida toda e avaliar o peso de suas atitudes e o seu reflexo na vida das pessoas ligadas a ele. Buscando responder a indagação sobre o titulo da obra: “Olhai os lírios do campo”, temos um enunciado que remete ao Sermão da Montanha, o título passa a ter um sentido de conselho ou alerta dado a alguém, partido do reconhecimento do ato de aconselhar como uma manifestação social que visa alertar ou repreender uma ação indevida, tematiza o chamar a atenção de alguém, por meios de figuras que recobrem questões religiosas- éticas, ou morais.

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Em uma carta deixada a Eugênio antes de seguir para realização de sua cirurgia no hospital Metropolitano, ela cita o sermão e aconselha o amigo a ler e refletir sobre o mesmo, conforme podemos ver na cena a seguir:

[...] Quero que abras os olhos, Eugênio, que acordes enquanto é tempo. Peço-te que pegues a minha Bíblia que está na estante de livros, perto do rádio, leias apenas o sermão da montanha. [...] Os homens deviam ler e meditar esse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo que não trabalham nem fiam, e, no entanto nem Salomão em toda sua glória jamais se vestiu como um deles. (VERÍSSIMO, 1980, p.154).

Nessa passagem podemos perceber a função do sermão da montanha no romance, ele recobre a temática da necessidade do homem de não se deixar levar completamente pela ambição e pela matéria, figurativizado por Salomão, o homem em seu estado de sujeito detentor de poder e riqueza que mesmo com todo a luxúria que seu poder pode lhe oferecer, não é comparável a luxo e beleza de um simples lírio do campo, abordando a temática da simplicidade como fonte de vida. Voltando ao contexto do romance, Olívia alerta Eugênio para que retorne ao mundo da simplicidade, a abandonar a riqueza e o luxo e encontrar sua paz interior, mas só consegue atingir seus sentidos tardiamente, sua filha Anamaria será o fio condutor e o motivo do renascimento e reestabelecimento ético de Eugênio, sendo a criança a figura da inocência e da pureza do ser humano.

Abaixo o quadrado semiótico

representa essa relação de diferença entre natureza e cultura:

natureza

simplicidade-mundo natural

Não-cultura

cultura

materialismo- mundo superficial

não-natureza

Recortamos outra cena que dá início a narrativa, nela o leitor depara-se com uma situação tensa, onde a lutar pela vida é tematizada pelas figuras do médico, da enfermeira, do hospital, essas categorias semântica figurativizam a relação entre os

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atores e a profissão que exercem, temos uma representação da rotina de quem exerce a medicina. No contexto literário, temos um romance envolvendo um triângulo amoroso, assim como uma crítica a certos comportamentos sociais, principalmente a obstinação pela riqueza, e aos meio para estar conjunto com ela, assim como a crítica da necessidade de se repensar sobre os valores imprescindíveis a vida, os quais não ligados a valores financeiros:

O médico sai do quarto nº22. A enfermeira vem ao seu encontro. __Irmã Isolda – diz ele em voz baixa- avise o Dr. Eugênio. È um caso perdido, questão de horas, talvez de minutos. E ela sabe que vai morrer... [...] __Ele está na casa família,doutor? ___Não. Telefone para a chácara do sogro, em Santa Margarida. Diga ao Dr. Eugênio que a Olívia quer vê-lo. Talvez ele ainda possa chegar a tempo.... [....] __Alô! Alô! Interurbano? Aqui é do Hospital Metropolitano. As lágrimas lhe escorrem pelo rosto. “...sobreveio uma hemorragia...”___diz a voz velada e distante. Como se tivesse recebido a mensagem de desgraça primeiro que o cérebro, o coração de Eugênio desfalece, sua batidas se tornam espaçadas e cavas. “....O Dr. Teixeira Torres diz que é um caso perdido. Ela sabe que vai morrer....pediu para vê-lo...” (VERRÍSMO, 1980,p.03-04).

Na citação apresentada observamos a relação entre as figuras e o e grupo social ao qual pertencem, assim como o espaço em que estão situados, a narrativa nos apresenta fatos que levam a construção de um enunciado maior, um contexto que aguça a curiosidade do leitor. No nível discursivo temos a manifestação propriamente dita do discurso, onde atores executam uma ação, há o reconhecimento dos espaços, onde essas ações ocorrem e a demarcação do tempo, no caso a temporalização, vejamos no quadro abaixo como podemos detalhar o reconhecimento desses itens no nível da manifestação do discurso:

Enunciado de Estado

Espacialização

Temporalização

Diz

na casa família

questão de horas, talvez de minutos

Avise

chácara do sogro, em Santa

sabe que vai morrer....

Margarida

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Aqui é do Hospital

Sabe

quer vê-lo

Metropolitano. Talvez/ possa chegar a

Está

tempo... Telefone Diga

a voz velada e distante Simultaneidade das partes

lhe escorrem Como se tivesse recebido

“...sobreveio/ diz

primeiro que o cérebro

Desfalece

se tornam espaçadas e cavas

diz que é um caso perdido

pediu para vê-lo...”

sabe que vai morrer....

Sucessividade do discurso

Para representar o ambiente daqueles que atuam no ramo da medicina, são postos na ficção as figuras que fazem parte desse grupo social: os espaços do hospital, salas de cirurgias, pacientes, enfermidades, ambulâncias, as condições de trabalho desses profissionais que executam suas atividades em hospitais públicos e atendimentos residenciais, os detalhes de riqueza dessas figuras para inserir na obra imitando o contexto da realidade, representar a rotina desses médicos, exaltando seus estados de paixões. Concluímos que a teoria semiótica volta-se para o texto literário em seu interior, buscando detalhadamente seu percurso gerativo de sentido, sendo para o analista uma ferramenta enriquecedora e fonte inesgotável de informações. A teoria greimasiana, com o percurso gerativo de sentido, passa por três patamares, do mais simples nível, onde aponta as relações de contrariedade existentes na narrativa, ou seja, o ponto de contrariedade na narrativa, observa o processo de construção de cada personagem, quando aponta seus programas narrativos para estar conjunto com seu objeto valor e por último vale-se de figuras do mundo natural para representar e criar um efeito de realidade no romance, para onde são transportados em um tempo, espaço e ações, que são executadas por atores, que podem receber configurações semânticas para ser reconhecida as características desse ator no decorrer da obra. Finalizamos essa análise, reconhecendo sua superficialidade diante da riqueza de informações desafiadoras, que a análise nos propõe, o objetivo era verificar como foram 778

postos algumas figuras e a temática do romance de Veríssimo, cremos termos chegado próximo das respostas, deixamos o texto com um sentimento de não ter saciado por completo nossa curiosidade, mas em aberto fica a janela do conhecimento para que novas informações adentrem, nessa rede de relações complexa denominado texto literário, o saber é essa busca de sentidos, nessa busca procuramos nos aperfeiçoarmos para estarmos aptos ao conhecimento pleno.

Referências BARROS; FIORIN. José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo, Edusp, 1999. BARROS, Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos: São Paulo: Atual, 1988. BERTRAND, Denis. Caminho da semiótica literária. Bauru, São Paulo: Edusc, 2003. FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 14ª Ed. São Paulo: Contexto, 2006. FIORIN, José Luiz. “O dialogismo”. In: introdução ao Pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006, 144p. VERÍSSIMO. Erico. Olhai os Lírios do campo. 46º ed. Editora Globo. Porto Alegre, 1980.

O PERCURSO DO DESEJO NA OBRA LAVOURA ARCAICA (1975) DE RADUAN NASSAR Fabiana Abi Rached de Almeida

No texto Significante e sujeito: a isotopia do desejo, Beividas (2000), propõe uma leitura isotópica do desejo no discurso do sujeito. A isotopia, dentro da teoria semiótica de Greimas, pode ser definida como a ocorrência de semas ou de categorias sêmicas, que fazem parte de uma mesma instância ao longo da cadeia sintagmática do discurso. Conforme os termos ou os lexemas do discurso perfazem em si uma superposição de semas que se iteram ao longo da sua cadeia sintagmática, o discurso pode ser

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considerado como polisotópico, ou seja, é possível descrevê-lo como uma superposição de isotopias de estatutos diferentes, o que possibilita leituras diferentes e simultâneas. Nesse sentido, isotopia é um mecanismo estrutural de rastreamento de semas de mesma classe que permite ao destinatário uma leitura “dirigida”, fundada na organização sêmica e pertinente, que elege uma ou mais linhas isotópicas de leituras para a significação produzida no discurso. Para Beividas (2000), quando Lacan se afasta da definição genérica de signo de Peirce para enfatizar que um significante sempre representa um sujeito para um outro significante, parece possível que o psicanalista prevê, nas várias isotopias pelos quais o discurso constrói seus efeitos de sentido, uma isotopia conectada à subjetividade e que versa sobre a dialética do desejo. Assim, o aforismo do significante lacaniano não representaria um sujeito lógico no discurso, ou mesmo de um sujeito linguístico, sujeito filosófico ou racional, mas estaria propondo uma linha específica de leitura, um rastreamento isotópico do sujeito do inconsciente, aquele sobredeterminado pelo desejo: “O aforismo estaria assim sugerindo como especificidade da interpretação psicanalítica a extração de uma isotopia fundante para todo o discurso: a isotopia do desejo” (BEIVIDAS, 2000, p.353)1. Em literatura, assim como Machado de Assis ultrapassou as categorias tradicionais da narrativa e os modernistas tenham trazido no bojo a fragmentação do sujeito, a não linearidade espaço-temporal, as novas formas de escrita, talvez Raduan Nassar tenha instaurado como nunca antes o discurso do desejo, isto é, um discurso em que predomina a isotopia do desejo. Isso porque essa obra, dentre outros elementos, remonta a estrutura edípica, levando a cabo o incesto com o amor entre os irmãos, André e Ana. O desejo como imperativo do corpo, pois também é algo acordado pela memória infantil. Duas questões aqui são pertinentes para erigir e fundamentar a análise: a memória e o desejo, sendo que os elementos estão interligados e se perfazem pela linguagem.

1

Beividas (2000) esclarece que o desejo, a isotopia do desejo, justifica-se por ter sido Lacan quem identificou nele a própria natureza da revolução freudiana, o próprio cogito freudiano. Para Lacan, a estrutura metonímica do desejo deveria ser entendida como a própria conexão do significante ao significante. A isotopia do desejo poderia rivalizar com o falo, com a pulsão, com o fantasma e até mesmo com o objeto a como traço de cobertura de tal isotopia. Entretanto, o próprio Lacan define o falo como significante que dá razão ao desejo; o algoritmo do fantasma como a escritura “desejo de” e assim por diante. Isto é, tais formulações concedem uma precedência teórica ao conceito de desejo, de modo que o aforismo lacaniano poderia até mesmo ser escrito como: “um significante representa o desejo para um outro significante”, na leitura psicanalítica de um discurso.

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Em Lavoura Arcaica há um “eu” cindido pela interdição paterna violenta. Uma interdição que está inscrita no corpo, aqui, como texto. Podemos pensar que quanto mais forte e violenta a interdição, maiores as raízes do desejo. A linguagem da mãe, em oposição à fala do pai, marca no corpo vias de gozo, numa relação anterior à da interdição. Assim nasce a linguagem de André, personagem narrador: pelo intenso investimento libidinal da mãe e a forte interdição paterna. Para Lacan, a linguagem é o que subjuga o sujeito. E a função do pai é introduzir o filho na esfera social; sua presença convoca o mundo exterior e suas leis. Lavoura Arcaica remonta a situação edípica. Mas, André, o filho pródigo desrespeita o tabu, o incesto, desafiando o pai e sua horda primitiva. Para Lacan, o Édipo é o que herdaríamos como estrutura de linguagem. Do ponto de vista lacaniano, a proibição é a lei instaurada pelo pai, o Nome do Pai – a ordem da linguagem por excelência - que intervém na relação especular entre mãe e filho, introduzindo a ordem simbólica. É aí que se constituirá o sujeito: no registro do simbólico, que é o acesso do sujeito à linguagem: “Lacan afirma que o mundo do simbólico, da palavra, é o lugar do sujeito” (CHAVES, 2005, p.47). Na ordem do simbólico o que surge “não é mais uma pessoa, nem tampouco um sujeito, mas um sujeito do inconsciente, que se estrutura como efeito de linguagem” (CHAVES, 2005, p. 49). O desejo é da ordem das palavras (simbólico), pois não se satisfaz plenamente, não se realiza, apontando uma ausência (objeto) e uma presença (o ato de desejar). O desejo reproduz o que sucede com as palavras: “O objeto do desejo é constituído por esse objeto elidido pela linguagem” (p.50). Nas palavras de Lacan: “o símbolo se manifesta inicialmente como assassinato da coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo” (LACAN, 1998, p.320). Mesmo que o incesto possa ser consumado, André nunca terá Ana, objeto do desejo eternizado. Mas, ao pensar por meio da isotopia do desejo, alerta Beividas, deve-se levar em conta que se trata de um regime de discurso com “presença negativa”, isto é, denegada pelo sujeito; trata-se, então, de uma significação constante e específica, uma significação recusada do desejo 2.

2

Afasta-se, portanto, da ideia de que Lacan apregoaria um esvaziamento de sentido, como propõe Miller (apud BEIVIDAS, 2000), para a teoria do significante lacaniano, mas antes, como quer Lacan, de uma recusa do sentido.

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A proposição da isotopia do desejo também viabilizaria o entendimento do “gráfico do desejo” 3, proposto por Lacan (1998), como sendo nada mais do que a tentativa de organizar o lugar tópico e estrutural dos demais conceitos psicanalíticos no interior da isotopia do desejo. Beividas (2000) propõe que a distribuição tópica que Lacan monta nesse gráfico para conceitos como “Outro, fantasma, identificação, pulsão, gozo, demanda, castração” poderia ser explorada como estrutura actancial ou estrutura sêmio-narrativa da isotopia do desejo. A interlocução e transposição entre as disciplinas, semiótica e psicanálise, podem ser efetuadas de forma preliminar por meio da comparação entre o quadrado semiótico da teoria greimasiana, proposto como modelo constitucional de articulação do sentido, e o esquema que Lacan propõe como constitutivo da dialética da intersubjetividade 4. Aqui há a tentativa de se traçar um percurso gerativo da subjetividade inconsciente. No entanto, se há uma busca de aproximação entre o quadrado semiótico de Greimas e o quadrado de subjetivação de Lacan, não é possível testá-la apenas a partir da versão formal do quadrado semiótico, mesmo porque o quadrado de Lacan já está investido semanticamente, seja nos seus termos polares (sujeito, outro, Outro, ego), seja nos vetores da sua orientação: “vetor imaginário do outro ao ego; vetor simbólico e vetor inconsciente do Outro ao sujeito” (BEIVIDAS, 2000, p.360). A aproximação deve ser feita, então, a partir da projeção em quadratura que Greimas e Courtés empreenderam para o esquema da veridicção, o que muito provavelmente cabe ao quadrado lacaniano, uma vez que Lacan visa, na subjetivação, o encalço da verdade do sujeito. Isso quer dizer que, no quadrado semiótico, Greimas e Courtés definem a relação entre parecer/não parecer como o eixo da aparência (ou da manifestação) e a relação entre ser/não ser como eixo da essência (ou da imanência). 3

O gráfico está nos Escritos (1998), no texto, Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente A título de ilustração, segue o gráfico, retirado da página: freudiano. http://naturezaemclose.blogspot.com/2011/07/grafico-do-desejo-as-quatro-formas.html :

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O quadrado semiótico e o esquema de Lacan (quadrado da subjetivação) poderão ser visualizados de forma melhor em Beividas (2000, p. 358).

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Posto isso, é possível verificar que o eixo da imanência (essência) poderia ser homologado ao eixo que, no esquema lacaniano, indica a relação da verdade do sujeito, isto é, a relação inconsciente ou simbólica que vai do Outro (A) ao sujeito (S). O eixo da manifestação, por sua vez, poderia se homologar ao eixo da relação imaginária que vai do outro (a’) ao ego (a).

Lançando mão desse quadrado da veridicção, seria possível traçar referências no que concerne à oposição entre o discurso “verdadeiro” (fala plena) e discurso “falso” (fala vazia), como expressa Lacan. No entanto, os metatermos inseridos na segunda geração do quadrado semiótico (segredo, mentira, verdadeiro, falso) não estipulam uma significação para todo metatermo que se articule em outros quadrados de segunda geração, mas se circunscreve nos limites do campo da veridicção. De qualquer forma, a introdução do quadrado de segunda geração pode levar a uma maior aproximação do quadrado lacaniano da subjetivação. Nesse quadro, a dêixis do sujeito (relação de implicação/complementaridade entre o sujeito do inconsciente (S) e o sujeito cartesiano (ego)) instituiria o sujeito barrado tal como Lacan define o sujeito dividido entre o cogito e desidero (querer). A dêixis da alteridade (relação de implicação ou complementaridade entre Outro e outro – A-a’) se definiria como o objeto a. Por fim, S1 e S2 (significante 1 e significante 2) “definem o conjunto mínimo que representa a cadeia do discurso” (BEIVIDAS, 2000, p.366). O teórico alerta que não é tão simples a introdução da cadeia do discurso, na qual os significantes S1 e S2 acabam se posicionando numa estrutura de relação contraditória, ou seja, opondo-se um ao outro numa relação de contradição. No entanto, é possível interpretar que tal contradição encontre paridade na forma com que Lacan concebe o discurso que o sujeito emite como uma mensagem que se recebe do Outro sob uma forma invertida. Essa inversão poderia ser homologada para a noção de contradição. Assim, a isotopia do desejo se colocaria como a face recusada do sentido (da isotopia falaz) pelo sujeito, sem que a notação S1 e S2 representasse exatamente 783

uma contradição entre os dois significantes do discurso, mas sim o aspecto contraditório das duas isotopias, isto é, uma isotopia, a isotopia falaz, nega o regime do inconsciente (recusando e se protegendo dele), nega o desejo; e a outra, a isotopia do desejo, denega, desvelando nos lapsos, atos falhos e demais formações do inconsciente o que a outra isotopia recusa. Dessa forma, negação e denegação constituiriam o arcabouço contraditório da isotopia do desejo. Nesse sentido, S1 representaria a forma invertida da mensagem, ou seja, a isotopia do desejo que retorna do Outro à dêixis do sujeito. O que surpreende nessa bricolagem de teorias, no que se refere ao quadrado da subjetivação lacaniano, é que o esquema proposto é capaz de gerar o próprio algoritmo com que Lacan define a estrutura do fantasma: $ a (BEIVIDAS, 2000, p. 367): A notação losangular da relação entre o sujeito dividido e o objeto a poderia ser considerada como uma notação simplificada, mas que subsume na sua estrutura não apenas o quadrado da ordenação subjetiva, mas também os conceitos que sintetizam em Lacan a cadeia do discurso (S1-S2). Os quatro conceitos, considerados como essências na literatura psicanalítica ($, a, S1 e S2), ganhariam algo mais do que essa simples apreciação [...] e passariam a estar integrados estruturalmente. Uma apreciação que evolua para uma amarração estrutural me parece um ganho teórico nada ruim. (grifo do autor).

Beividas afirma ainda que se fosse possível considerar a fórmula do fantasma como uma segunda geração categorial (derivada do esquema da subjetivação), que se desdobra em matrizes clínicas estruturais, que, por sua vez, notam o modo específico de cada patologia do campo psicanalítico, seria possível estabelecer níveis de profundidade para as estruturações que ocorrem na isotopia do desejo ou mesmo no regime inconsciente como um todo. O quadrado da subjetivação determinaria um nível fundamental de primeiras articulações da subjetivação inconsciente. A estrutura do fantasma definiria um nível de superfície em que essas primeiras articulações receberiam as primeiras articulações modais. A partir daí, as múltiplas formas sobremodalizadas de articulações definiriam o nível discursivo em que se inscreveriam as formas discursivas pelas quais se manifestam as patologias: o discurso da histeria, da psicose, etc. “Haveria assim a possibilidade de teorizar, sob a perspectiva de um percurso gerativo, a constituição da subjetividade inconsciente, a álgebra do sujeito” (BEIVIDAS, 2000, p. 372). Em Lavoura Arcaica (NASSAR, 1975), o gráfico interdisciplinar proposto por Beividas remontaria o Édipo, isto é, como a situação edípica é estruturada na obra, a

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interdição, a entrada no simbólico e, por fim, a própria produção do discurso; e a relação entre os irmãos, o incesto, como a estrutura do fantasma. Esse axioma revela que não existe relação sexual, isto é, não existe ato sexual. No seminário 14 de Lacan, o que vemos é, por um lado, a primazia da lógica fálica e, por outro lado, o objeto a e sua lógica própria, que é a lógica do fantasma: $ ◊ a. Nessa lógica, a mulher em posição de objeto a, causa do desejo, é o que se propõe como paliativo, como suplemento, para a inexistência do sexo feminino, o Outro sexo. Ana, irmã de André, pode ser pensada como objeto a, objeto do desejo, inalcançável. Em Lavoura Arcaica há sempre a busca incessante pela forma, pela figura, pela metáfora. O próprio incesto é metafórico. Talvez aqui o escrito recalque o ato, que está no âmbito do indizível. Não porque pecado, mas por profunda fusão e, ao mesmo tempo, dissociação do eu, sentida, na verdade, como insuportável. O incesto aqui é aquilo que a linguagem não pode descrever como tal. Pois, a fusão torna-se novamente impossível, voltando à incessante busca pela forma. A forma que se busca é uma que contemple o anterior ao interdito, à cultura (o incesto é a própria marca da cisão e da transição para a cultura), um retorno ao natural: um retorno à linguagem do gozo, pura, em completude com o balbucio materno. Referências BEIVIDAS, W. Do sentido ao corpo: semiótica e metapsicologia. Corpo e Sentido. São Paulo: Editora da Unesp, 1996. BEIVIDAS, W. Pulsão, afeto e paixão: psicanálise e semiótica. Psicologia em estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 391-398, mai/ago. 2006. BEIVIDAS, W. Semióticas Sincréticas (o cinema). Edição on line. ISBN: 85-905252-1-X. DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO AGENCIA BRASILEIRA DO ISBN, 2006.

BEIVIDAS, W. Inconsciente et verbum: psicanálise, semiótica, ciência, estrutura. São Paulo: Humanitas/FFLCHUSP, 2000. BERTRAND, D. Caminhos da semiótica Literária. Bauru: Edusc, 2003. FREUD, S. Obras completas (vol. II/ 1969). Trad: Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques Brito e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1996. GREIMAS, A. J. Sobre o sentido. Ensaios semióticos. Trad. Ana Cristina C. Cezar et al. Petrópolis: Vozes, 1975.

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GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, [1985?]. GREIMAS, A. J.; FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma. Trad: Maria José Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993. GREIMAS. A.J. Da imperfeição. São Paulo: Hacker Editores, 2002. LACAN, J. Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 1998. LACAN, J. (1973-1974). Os Nomes-do-Pai. Tradução: André Telles. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2005. NASSAR, R. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. TROCOLI, F. Vertigem e dispersão ou dos modos de gozo em Clarice Lispector e Virginia Woolf. In: LEITE, N. V de A. (Org). Linguagem e gozo. Campinas: Mercado de letras, 2007. VALLEJO, A.; MAGALHÃES, L. C. Lacan: operadores da leitura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.

A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA COMO POÉTICA DAS RELAÇÕES: UM ESTUDO SOBRE O STALKER DE TARKOVSKI E O PIQUENIQUE DOS STRUGATSKI Fabrícia Silva Dantas [email protected] PPGLI – UEPB Luciano Barbosa Justino [email protected] PPGLI – UEPB Em agosto de 1979, Tarkovski lança o filme Stalker que mantém um livre diálogo com a novela Piquenique à beira da estrada (1971) de Arkadi e Boris Strugatski. O cineasta traduz a ficção científica em uma discussão sobre o espírito e a consciência humana, sobre a relação do homem com o mundo que o rodeia, através da revalorização da experiência cotidiana e de uma relação mística com a natureza. Para esse diretor, o cinematográfico lança uma via de mão dupla para outras linguagens e transita de uma às outras a fim de conseguir expressar suas inquietações por meio da arte, mas sempre pensando que o resultado desse diálogo contribui para a autonomia do objeto fílmico produzido e do próprio cinema. Para Tarkovski, “o cinema, ainda incapaz de ‘evocar a vida de verdade’ sem recorrer as ideias literárias, pictóricas 786

ou teatrais, deve, antes de mais nada, visar a uma emancipação total” (AUMONT, 2004, p.140). O filme reclama um espaço próprio, mas esse espaço se compõe na comunicação com outras linguagens. A hibridização entre gêneros e códigos possibilitaria a construção de planos, espaços, personagens, de um ritmo que potencializasse imagens não puramente informativas ou que remetessem a uma relação de similaridade com um suposto original, mas imagens de natureza poética independentes dos originais e, sobretudo, reconciliadoras do homem com a realidade que ele faz emergir da obra de arte a partir dos sentidos que constrói para ela. Nesse caso, a imagem se pretende poética no sentido de possibilitar as mais singulares combinações de elementos – sonoros, visuais, verbais – para alcançar a realidade do sujeito por meio da experiência sensível da vida. Para ele, “há aspectos da vida humana que só podem ser reproduzidos fielmente pela poesia” (TARKOVSKI, 2002, p. 31) e, a nosso ver, através do processo poético tradutório que ele realiza em Stalker, por exemplo. No filme em questão, Tarkovski buscou na tradução da novela dos Strugatski revelar diferentes modos de conceber a vida. Essa discussão levanta também a descoberta do desejo de cada sujeito. A tradução poética lhe permitiu emergir o espaço da Zona e o personagem do Stalker, retomados da novela. Na novela existem seis Zonas e o Stalker recebe o nome de Redrick Schuhart; no filme, há apenas uma região como essa e o personagem principal é chamado apenas de Stalker - sua profissão. Mas no filme, a Zona e o Stalker são colocados de modo diferente: a linguagem usada objetiva problematizar a relação coletivizadora entre o homem e o meio ambiente que o rodeia e provocar uma reflexão consciente sobre a realidade que o cerca através da experiência com o filme, dos sentidos construídos a partir da apreciação deste. Por isso, para Tarkovski a relação entre o espectador e a obra é tão importante; é nessa interação que o filme se prolonga no tempo e não se fecha nas intenções do diretor: Através das associações poéticas, intensifica-se a emoção e torna-se o espectador mais ativo. Ele passa a participar do processo de descoberta da vida, sem apoiar-se em conclusões já prontas, fornecidas pelo enredo, ou nas inevitáveis indicações oferecidas pelo autor (TARKOVSKI, 2002, p. 17).

Talvez nesse sentido, Tarkovski tenha juntado elementos como a água, o fogo, o vento, os poemas recitados, o contraste de cores, um cenário pós-apocalíptico, ao longo das imagens, para nos fazer sentir o mundo, mediado pelo filme, em vez de delimitar

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uma interpretação específica. A esse exemplo, observa-se a seguinte imagem

1

do

Stalker:

Percebemos que a câmera foca o Stalker que está de costas, enquadrado através de uma moldura formada pelo delineamento de duas entradas de portas. Por essa abertura, projeta-se uma luminosidade vinda do exterior da suposta construção, que contrasta com o escuro que permeia o interior. O Stalker está no centro. O ponto de vista chama o espectador a participar da situação, posicionado-o por trás dessas molduras, a observar o Stalker que mira o ambiente da Zona. O Stalker olha para o que está do lado de fora, o que está por vir, como se atraído por essa luminosidade. A nós, é dada a possibilidade de interagir com tudo isso. As molduras tornam afetual a relação do espectador com o texto fílmico posto em cena e o faz observar e vivenciar o que integra o personagem e o que está além do que este vê. A exemplo dessa, a maioria das imagens mostram os personagens centralizados no plano, como se pretendesse deixar o espectador no mesmo nível destes e dar ênfase à interação entre filme e espectador. A narrativa literária Stalker (1971) é composta por quatro partes e tem como protagonista o ajudante de um laboratório de pesquisas extraterrestres de Harmont, Redrick Schuhart. Um primeiro momento antecede a narrativa literária através de uma espécie de introdução intitulada “Excerto da entrevista do Dr. Valentin Pilman por ocasião da entrega do prêmio Nobel de Física em 19..., concedida ao enviado especial da Rádio de Harmont” (STRUGATSKI, 1971, p. 7). Nesse começo, observamos uma entrevista feita ao Dr. Pilman por um representante da rádio local. Nesse diálogo o doutor explica a descoberta científica das Zonas e de onde elas se originaram, deixando claro o impacto extraterrestre. No filme, também há uma espécie de introdução sobre a Zona que remete a fala de um personagem fictício, também ganhador de um prêmio Nobel, o “Professor Walles”. 1

Todas as imagens desse estudo foram retiradas diretamente do filme Stalker (1979).

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A novela dos Strugatski trata da ideia da busca da felicidade, mas essa busca se insere na discussão sobre o lugar do homem frente à situação de não se perceber como único ser no Universo, após a visita de seres extraterrestres. Diferentemente do filme, na novela os vestígios da presença extraterrestre são um fato e um problema evidente. Como demonstram as perguntas feitas ao personagem Dr. Valentin Pilman pelo repórter da rádio de Harmont, transcritas abaixo:

-Talvez seja mais interessante saber o que pensou quando sua cidade natal foi invadida por uma super civilização extraterrestre. - Na verdade, o meu primeiro pensamento foi que se tratava de uma brincadeira. Era difícil acreditar que tal coisa pudesse ter acontecido em nossa velha Harmont. Ainda em Gibi, ou Terra Nova, vá lá, mas em Harmont! - No entanto, no fim de contas, teve de acreditar? - No fim, sim. (STRUGATSKI, 1971, p. 8)

A “visitação” é posta logo na introdução do livro, ao que nos parece ser uma das principais funções desta: a apresentação do problema da presença extraterrestre, das Zonas e dos “Stalkers”. Centros de pesquisas se desenvolveram ao redor das seis Zonas para tentar desvendar seus mistérios. O personagem Redrick é um Stalker, um guia que conduz os que querem procurar os vestígios dos extraterrestres na Zona. Também ele procura esses vestígios, pois são considerados preciosas provas da presença alienígena, vendidos a um alto preço. Numa época anterior, anos antes dos fatos narrados em “Piquenique, seis pontos da Terra, seis Zonas foram marcadas por seres de outro planeta que passaram deixando rastros. Essas Zonas têm em comum um ponto da abóbada celeste, o “Ponto irradiador de Pilman”, de onde se acredita terem partido as expedições alienígenas. Esse ponto foi estudado pelo “Doutor Valentin Pilman”, personagem ganhador do “Prêmio Nobel de Física”, na história dos Strugatski. No trecho seguinte, o Dr. Pilman explica a origem das Zonas e a teoria do radiante de Pilman: O Radiante de Pilman é uma coisa extremamente simples. Imagine que fez girar um grande globo terrestre e desatou aos tiros para cima dele. Os orifícios sob o globo vão dispor-se sob determinada curva suave. Aquilo a que chamam a minha primeira descoberta de vulto é simplesmente isto: as seis Zonas da Visita estão dispostas sobre a superfície do nosso planeta, como se alguém tivesse disparado, a partir da linha Terra-Deneba, seis tiros sobre a Terra. Deneba é a estrela alfa da constelação do Cisne. O ponto da abóbada celeste de onde, digamos assim, partiram os disparos, é o Radiante de Pilman (STRUGATSKI, 1971, p. 7).

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A narrativa literária compara as Zonas de visitação à metáfora dos piqueniques que guardam rastros e objetos da passagem dos seres extraterrestres. Esses visitantes aproveitam o que lhes é conveniente no ambiente e depois vão embora, deixando para trás apenas os restos de sua presença naquele lugar. Por isso foram interditadas e tornaram-se alvos para especulação científica e daqueles que também buscavam entender ou se beneficiar dessas heranças. As Zonas representam uma ameaça ao homem que tenta se firmar com um ser superior e detentor do poder. Em um diálogo com o personagem “Noonan”, o Dr. Pilman explica sua teoria sobre as visitações das Zonas:

- Não, espere, disse Noonan. Sentia-se estranhamente enganado. – Se ignoram coisas tão simples como esta... Bom, deixemos para lá a inteligência. Aparentemente, nem o Diabo resolvia o problema. Mas a Visita? Afinal de contas, o que é que pensa da Visita? - Vou dizer-lhe – pronunciou Valentin. – Imagine um piquenique... Noonan deu um salto da cadeira. - Como disse? - Um piquenique. Imagine uma floresta, uma estrada, uma clareira. Um carro passa da estrada para a clareira, surgem jovens, cestos de comida, raparigas, transistores, máquinas fotográficas e câmeras de filmar... Acendem uma fogueira, montam tendas, ligam os rádios. No dia seguinte, vão-se embora. Os animais, os pássaros e os insetos que, de noite, espavoridos, tinham observado o decorrer o decorrer dos acontecimentos, saem das suas tocas. E o que é que vêem? Em cima da relva manchada de óleo estão a velas gastas, alguém deixou cair uma clave-inglesa... Os guarda-lamas largaram porcarias apanhadas num pântano... e, é claro, restos da fogueira, cascas de fruta, um lenço, um canivete, jornais rasgados, trocos, flores murchas vindas de outras clareiras... - Já percebi. Um piquenique à beira da estrada. - Exactamente. Um piquenique à beira de não sei que estrada cômica. E você pergunta: será que vão voltar, ou não? (STRUGATSKI, 1971, p. 131-132).

A novela é caracterizada por um simbolismo abstrato. Remete a uma ideia de mistério, a um fundo místico relacionado ao caráter alegórico dos ETs e da Zona; uma ficção científica marcada por referências extraterrestres, a contar da presença do “Instituto internacional de culturas extraterrestres” que compõe o título da primeira e terceira partes da novela (p. 11 e 107) e da imagem do físico Dr. Valentin Pilman que desenvolveu uma teoria sobre as Zonas de visitação. Já o filme parte da tradução feita por Tarkovski da ideia da Zona e do Stalker, mas em uma esfera diferente da proposta no livro. Já, ai, uma diferença se impõe: se a novela remete diretamente à ficção científica, o filme não tem relação direta com ela. 790

No filme um evento não especificado dá origem a alterações em um determinado local que depois disso passa a apresentar movimentos estranhos e por isso é interditado e cercado por forças policiais. Ao filme não interessa saber exatamente o que operou tal mudança, o importante é a presença da Zona e a transformação que esta opera nos personagens quando entram seu interior.

A Zona é mencionada logo na abertura do filme. Este tem início com uma cena em um bar, lugar onde, mais tarde, o Stalker vai encontrar personagens como o “Professor” e o “Escritor”. Logo após, a sequência do bar é cortada e num fundo negro, surge, em letras brancas, o texto da entrevista do “Professor Walles” 2, personagem também ganhador de um Prêmio Nobel de Física, como o “Doutor Pilman” da novela. Mas ainda sem diálogos, nem imagens específicas da Zona ou dos personagens. 3

Notamos que a presença dos ícones brancos, em meio a uma tela preta, traduz um

contraste entre o claro e o escuro que, ao mesmo tempo, sugere um tom de profundidade e também traz uma ideia de sobriedade, de algo não adornado, sóbrio. As palavras parecem rolar ou flutuar num meio negro e infinito, conotando uma profundidade que acentua a condição da Zona como um espaço oblíquo que se assemelha às narrativas atemporais, onde os fatos ocorrem em algum lugar distante que não interessa situar objetivamente sua origem. “Fosse como fosse, o milagre da Zona existia”. Desde já atentamos para o quão guardadora de possibilidades a Zona de Tarkovski pode ser e, mesmo sendo um ambiente singular, como ela chama atenção para aquilo que está

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Esse personagem só é citado nesse texto de abertura do filme, ao contrário do Dr. Pilman que aparece em outros pontos da novela. 3 O que foi isto? A queda de um meteorito? Uma visita de seres do abismo cósmico? Fosse como fosse, no nosso pequeno país, surgiu o milagre dos milagres, a Zona. Enviamos tropas para lá. Não voltaram. Cercamos a Zona com cordões policiais e fizemos bem... Aliás, não sei... Da entrevista do “Professor Walles”, na abertura do filme.

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próximo a nós por meio de uma discussão sobre o “lugar do indivíduo na humanidade” (SPINELLI, 2002, p. 115). Essa espécie de introdução antecipa o lugar que abrigará o Stalker e os seus dois parceiros durante uma aventura pelas armadilhas que o percurso lhes impõe, principalmente, àquelas travadas pela própria consciência. No seu interior, existe uma construção antiga que guarda o “Quarto”, uma espécie de sala de acesso difícil. Por isso, o Professor e o Escritor contratam o Stalker para ajudá-los a achar esse espaço de “milagre”. Na novela, o stalker Redrick guia mais que três personagens, a exemplo de “Kirill”, “Tender”, “Artur Barbridge”. A Zona é um lugar insólito para os personagens. Como o tabuleiro de um jogo, é preciso mover as peças com cuidado, respeitando as regras e os limites para se chegar ao final, nesse caso, ao Quarto e obter a vitória ou não. O Stalker ensina a jogar na Zona, a respeitá-la e a não contrariar esse meio ambiente; aconselha atirar porcas, para testar o caminho e saber se há perigo pela frente.

Nessa imagem, os personagens se preparam para jogar uma porca para saber se podem seguir por ali. O Stalker tem mais experiência, sobreviveu às armadilhas da Zona; é um conhecedor de caminhos. Entende que, para encontrar respostas, é preciso tomar cuidado com o rumo a seguir, experimentar o entorno para não se deixar levar por racionalismos ou por atitudes objetivas e unilaterais, como acontece com o Escritor e com o Professor. Os personagens precisam atuar em harmonia com a Zona, há uma lógica própria dela, como sugere o Stalker, a qual não deve ser negligenciada. É preciso “escutar” o que a Zona tem a dizer e considerar princípios alternativos, mais ligados ao contato do que ao individualismo. Há, na Zona, signos “assignificantes” que, contraditoriamente, significam muito e adquirem sentido para os que nela querem adentrar.

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Nesse caso, a Zona figura como um espaço de diálogo, no sentido bakhtiniano de choque e tensão entre discursos e pontos-de-vista, entre os três personagens e o meio ambiente, entre as imagens e o espectador. É um espaço aguçador de sensações. Esse espaço de ruína tem um signo de “Estado”, pode-se dizer “institucional”, restos do velho estado russo e sua concepção de mundo dominante, fortemente racionalista, destruído pela pregnância da Zona. Ou seja, ela é o resultado de uma sociedade individualista e racionalista em demasia e, que por isso mesmo, desperta a reflexão sobre a possibilidade de cooperação entre os sujeitos e tudo que está à sua volta. Nas palavras de Gonçalves Filho, na Zona: Imagens virtuais aparecem e desaparecem em territórios dominados pela aparência pantanosa, lugares abandonados, mas que registram a passagem do homem, como em Stalker, onde os cenários são as ruínas de um mundo que acreditou demais na materialidade (GONÇALVES FILHO, 2002, p. 85).

O universo pós-apocalíptico da Zona é povoado por um desejo de reaproximação entre o ser e o mundo. Para Bachelard (1993) os espaços são re-significados pela presença de quem os habita. Seguindo esse raciocínio, o meio ambiente de Stalker se integra ao sujeito e comunica sua história, sua percepção do mundo; integra o homem ao outro homem e aos objetos. Torna o homem próximo, parte do espaço e de tudo que o habita de algum modo. O espaço íntimo e o “exterior” se encontram a partir da nossa presença e comunicam o que somos: Parece, então, que é por sua “imensidão” que os dois espaços – o espaço da intimidade e o espaço do mundo – tornam-se consoantes. (...) Como é concreta essa coexistência das coisas num espaço que duplicamos com a coexistência de nossa existência! (BACHELARD, 1993, p. 207).

A Zona não é um espaço alheio ao homem. Ela é povoada de história. O que aparenta ser inicialmente desfigurado denota o futuro, uma pós-racionalidade através da integração proposta pelo Stalker e os seus companheiros. Portanto, os espaços são significativos e ajudam a dar sentido ao sujeito, ou seja, adquirem uma dimensão resignificadora e integrativa. Por isso esse espaço humanizado “não é um espaço entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido” (BACHELARD, 1993, p. 19) e, portanto, real e definidor. A Zona no filme é como a própria vida: cheia de desafios, armadilhas, realizações. A ficção científica cede lugar a uma discussão sobre a condição humana num meio

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ambiente de interação. O Stalker, o Professor e o Escritor são figuras que refletem inquietações sobre o homem presente o mundo que vivemos. Como mostra o diretor quando explica a criação do filme: A rigor, apenas a situação básica de Stalker poderia ser considerada fantástica. Ela era mais conveniente porque ajudava a delinear com mais nitidez o conflito moral do filme. Mas, em relação ao que realmente acontece com os personagens, não existe nenhum elemento de fantasia. A intenção do filme era fazer com que o espectador sentisse que tudo estava acontecendo aqui e agora, que a Zona está aqui, junto a nós. As pessoas muitas vezes me perguntam o que significa a Zona, o que ela simboliza, e fazem conjecturas absurdas a seu propósito. Esse tipo de pergunta me deixa desesperado e apreensivo. A Zona não simboliza nada, nada mais do que qualquer outra coisa em meus filmes: a zona é uma zona, é a vida, e, ao longo dela, um homem pode se destruir ou pode se salvar (TARKOVSKI, 2002, p. 240-241).

Arkadi Strugatski (1990) conta que durante o trabalho de criação do roteiro, Tarkovski fora bastante exigente e pedira que ele e o irmão Boris refizessem o roteiro por várias vezes a fim de potencializar aquilo que o diretor ambicionava. Ao longo desse processo, eles conseguiram entender que o diretor queria o Stalker, mas em contexto e discussão diferente da ficção científica, como nos mostra esse trecho das anotações de Arkadi sobre o roteiro do filme Stalker:

"Agora então" disse ele com naturalidade "Volte para o seu Boris em Leningrado, e quero ter o novo roteiro em dez dias. Em duas partes. Não importa o ambiente. Apenas escreva os diálogos e comentários breves. E a coisa mais importante: Stalker deve ser completamente diferente. " [...] "Como deve ser Stalker no novo roteiro?" "Eu não sei, você é o autor, não eu". Sei. Na verdade eu não conseguia ver nada de errado, mas isso era normal. Mesmo antes de o trabalho começar, tinha ficado claro para meu irmão e eu que, se Tarkovski comete erros, são erros brilhantes, e valem uma dúzia de decisões corretas de diretores comuns. Em um súbito impulso perguntei: "Ouça Andrei, pra que você precisa de ficção científica neste filme? Vamos tirar isso fora." Ele sorriu como o gato que comeu o papagaio de seu dono. "Pronto! Você sugeriu isso, não eu! Eu queria fazer isso há tempos, só tinha medo de sugerir achando que você iria se ofender. (STRUGATSKI, 1990, s/p). 4 4

Trecho do texto “Trabalhando com Andrei (Tarkovski) no roteiro de Stalker”, de Arkadi Strugatski. Disponível em: http://capacitorfantastico.blogspot.com/2009/09/arkady-strugatsky-e-o-roteiro-de.html (acesso em 22/01/2011). Esse trecho integra o livro Sobre Andrei Tarkovski, memória e biografia (1990).

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Aqui há uma diferença semiotécnica entre a escrita e o filme: esta tem um realismo, por ser analógica, que retira parte do simbolismo abstrato que está na escrita do livro. Jacques Aumont (2004) diz que “a posição de Tarkovski é exemplarmente equilibrada entre o amor da imagem e o amor da realidade (p. 64)”, por ser fortemente realista, analógico, no sentido de tocar e mirar de frente o real. Logo, no filme não cremos que seja pertinente a ideia de mistério que permeia o livro, nem um fundo místico, no sentido de algo explicável pela crença em seres extraterrestres. Mas em vez disso, o filme guarda uma ideia de interdito, interditado. No filme, a zona não pode ser considerada um “ponto extraterrestre”. Não há ênfase considerável sobre a invasão extraterrestre no filme, ao contrário do livro. Por outro ângulo, o interdito que permeia a linguagem do filme traz um forte realismo, corroborado pelas ruínas que marcam a presença de algo anterior na Zona ou seja, uma historicidade. A etimologia da palavra “inter-dito” alude àquilo que está entre o dizer e o não dizer e que é interno, interior, inerente, ao dito. Portanto, o inter-dito não é o que exclui, proíbe ou impõe, mas, antes, o que comunica, propõe, entrediz. Esse entredito, que não está engessado em um único significado saussureanamente paralisado por uma mente brilhante, dá ao sujeito a possibilidade de recusar ou aceitar determinada ideia; reafirma a liberdade dele. Stalker não é um filme sobre mistério, entre outras coisas, porque está dentro desse conceito de inter-dito. Não coloca as informações de forma simbólica, a definir uma direção exclusiva do raciocínio de quem o vê, como na fé. Mas dá liberdade ao espectador de sentir o que foi exposto no filme pela coloração, iluminação, espaços, gestualidades, e refletir esses elementos como lhe convier. Essas sugestões oferecidas pelas imagens do filme despertam o expectador e apontam uma poiesis do cinema. A poesia propõe caminhos. Por ela, o espectador não decodifica as imagens, mas experimenta-as. A linguagem Stalker parte muito mais de uma teoria do ícone (AUMONT, 2004, p. 63) do que da simbolização expressa pela metáfora e pela alegoria. O icônico e o interdito caminham na direção de construir um ritmo próprio no filme. Acrescentamos que, além do ícone, também o índice tem destaque nessa linguagem. O icônico valoriza a dimensão das qualidades da imagem por meio da valorização dos sentidos no espaço da Zona. Já o indicial, em cooperação com o primeiro, estabelece a dimensão do contato entre o homem e o mundo através da experimentação das situações, do meio ambiente. Esses elementos enfatizam o relacionamento entre os três personagens principais do 795

filme e relação com o espectador. Tarkovski fez um cinema que tentou fugir ao simbolismo e recusar ações mecanicistas. Ele privilegia a criação do corpo, mais sensível ao mundo e, assim, mais próxima da realidade, porque: A imagem é uma impressão da verdade, um vislumbre da verdade que nos é permitido em nossa cegueira. A imagem concretizada será fiel quando suas articulações forem nitidamente a expressão da verdade, quando a tornarem única e singular – como a própria vida é, até mesmo em suas manifestações mais simples. Enquanto observação precisa da vida, a imagem nos traz a mente a poesia japonesa. Nesta, o que me fascina é a recusa em até mesmo sugerir a espécie de significado final da imagem, que pode gradualmente ser decifrado como uma charada. O haicai cultiva suas imagens de tal forma que elas nada significam para além de si mesmas, ao mesmo tempo que, por expressarem tanto, torna-se impossível apreender seu significado final. (TARKOVSKI, 2002, p. 123-124).

Como o haicai o cinema deveria se recusar a revelar um significado para não se fechar em um único pressuposto e encarcerar o relacionamento entre o filme e o mundo. Nesse contexto, em vez de buscar “o que o filme quer dizer” ou a “intenção do autor”, a verdadeira experiência é aquela que torna o objeto único, independente do autor e do original, porque parte do olhar singular do sujeito que faz sempre novas projeções ao mirar o filme. Nesse sentido, Tarkovski nos oferece imagens que remetem àquilo que Daniel Bougneaux (1996), numa perspectiva peirceana, chamou de linguagens analógicas, os ícones e os índices, ao caráter de espontaneidade e materialidade da presença do objeto; a observar mais demoradamente o filme, atentar para cores, nuances, movimentos corporais, alterações de voz, ao universo que compõe a imagem, em vez de tentar sistematizá-la e nos entregar prontamente o filme como produto de um significado intencionalmente fechado. A linguagem de Stalker propõe vazios que provocam o espectador a revisitá-los para tentar preenchê-los por meio de uma nova apreciação. Não se pode restringir a leitura de Stalker a camisas-de-força. Ele sempre consegue ser diferente e trazer novas experiências. Para Tarkovski, a montagem deve estar a favor da construção de imagens que agucem numerosos sentidos a partir de quem as vê. O essencial da imagem cinematográfica não é a montagem, mas o ritmo, fruto do movimento temporal que sobressai das imagens. O papel do diretor é unir as peças temporais e gerar um determinado ritmo – “esculpir o tempo” - para fazer refletir a diversidade da vida (TARKOVSKI, 2002, p. 144).

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Nessa imagem, por exemplo, o inter-dito se revela por um conjunto de elementos que chamam atenção para o personagem principal. Nesse momento, estavam no interior do prédio antigo, perto de chegar ao Quarto. Após uma discutir com o Professor e o Escritor, já cansado da expedição, o Stalker volta-se para uma janela e, encostado, recita um poema “Mais tem de haver mais” de Arseni Tarkovski, pai de Andrei, ausente na novela dos Strugatski. Ao fundo uma luz se insere pela cena, pelo que parece ser a lateral de um corredor. Nessa direção, o que parece o ruído de uma porta batendo (outra suposta janela) se conjuga às palavras do Stalker. Acompanhando o som das batidas, essa luz é interrompida ou liberada. O cenário segue ora iluminado, ora escurecido. O Stalker é enquadrado em plano médio e emoldurado por duas colunas. A parede branca, perto de uma das colunas, em destaque pela luz que vem da outra janela, tem um aspecto enrugado e bolorento, algo parecido com uma infiltração, como se lutasse para romper os limites sólidos de que é feita. O Stalker também tenta romper os limites: rompe a barreira que cerca a Zona; tenta romper com o racionalismo do Professor e do Escritor; rompe com uma sociedade que o marginaliza; parte das ruínas de uma suposta civilização para tentar transgredir a falta de crença no futuro. Nessa direção, um ruído de porta batendo se conjuga às palavras do Stalker. Não sai de perto da velha janela de onde parte pouca luminosidade, embora constante, que contrasta com o tom das paredes e com sua roupa. O Stalker insiste em enxergar o que está à sua frente, em torno de si, anunciado pelo claro, pelo seu olhar em direção ao exterior. Esse ambiente parece ajudar o Stalker a desabafar sua preocupação. O som da porta é repetitivo e até incômodo, assim como a preocupação dele com seus companheiros e a busca do Quarto. Ele parece cansado de tentar mostrar o valor inestimável da Zona, de fazer os companheiros enxergarem que é possível crer no homem e no futuro. Para ele, mais do que o fator financeiro, cada chance de levar uma pessoa à Zona é uma oportunidade de trazer uma mudança benéfica para o futuro.

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Reerguer-se sob os escombros e fundar uma nova civilização, mas pautada na fé e na comunhão uns com os outros e com o meio ambiente. Ele crê que “tem de haver mais”5 além da descrença dos seus companheiros e do individualismo do mundo. Mesmo diante da desilusão demonstrada pelo Escritor e pelo Professor o Stalker segue acreditando que daquele lugar é possível emergir uma esperança, uma alternativa para transpor os destroços daquela situação. Sente o peso de sua difícil missão: Observamos que outra diferença quanto ao livro pode ser estabelecida: no livro, a ficção científica e a referência aos ETs têm caráter alegórico, busca fazer referência indireta a uma situação do presente6, a Guerra Fria, por exemplo. O filme não tem este caráter alegórico, ele parece mais utópico-filosófico. Se o livro é alegórico, sob este e só sob ele, o filme é metafórico. De acordo com Gonçalves Filho: Mais do que uma aventura metafísica em território insólito ou um rocambolesco jogo de cache-cache – como se referiam os críticos franceses ao filme – Stalker é um trabalho apostólico, no sentido mais puro que o termo possa comportar. Tarkovski penetra nas ruínas do livro Picnic on the Roadside, dos irmãos Strugatsky, e as transforma em uma catedral invadida pela atmosfera de um mundo pré-moral (GONÇALVES FILHO, 2002, p. 84).

O Stalker acredita na Zona e nos ensinamentos - a todo momento eles são testados pela Zona. Essa crença é o que o faz se esgueirar pelas armadilhas impostas por ela e levar as pessoas ao encontro do Quarto. Para ele é uma alternativa para o mundo já fatigado de tanto sofrimento. Os três personagens seguem se esgueirando pela Zona e ultrapassam armadilhas. A principal delas é a consciência das consequências da entrada no Quarto para si mesmos e para os outros.

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Trecho do poema recitado pelo Stalker durante o filme. TARKOVSKI, Arseni. Mas tem de haver mais. In: TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 229. 6 A novela dos Strugatski foi publicada em 1977, um momento histórico-econômico-social delicado de Pós-Guerra, marcado pela disputa do poder mundial.

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Essa imagem marca o momento que, tendo chegado ao Quarto, nenhum dos três decide entrar e ficam do lado de fora, refletindo sobre toda a experiência vivida na Zona. A câmera está posicionada dentro do Quarto. Seu olhar foca, parado, os personagens que estão sentados no fundo do plano, como em um ato de cansaço ou desilusão. A cena segue lenta. O enfoque se assemelha à moldura de um quadro. Aliás, vários momentos são flagrados pela câmera-olho sob o enfoque de uma moldura, como já vimos. O jogo claro e escuro, na incidência da luz na água e no aspecto lodoso das paredes, respectivamente, é realçado pela luz que se projeta de cima deles. As paredes deixam a impressão de ameaçar se romperem e desabar, assim como os três personagens que se apoiam sob o próprio corpo, cansados da viagem e da intensa maratona entender o que de fato buscam. Na poça de água se projetam os reflexos dos sujeitos, além de também refletir seus sentimentos de introspecção. Os personagens estão sentados no chão, rodeados por um ambiente úmido e deteriorado, como se estivessem sentados em meio às suas incertezas. Decidem não entrar no Quarto. Quase não falam. Estavam fatigados, mas tinham chegado ao fim da viagem. O silêncio é rompido por uma forte chuva, seguida da execução de um trecho do Bolero de Ravel. A melodia do Bolero anuncia e intensifica o resultado da busca dos personagens e o retorno ao espaço inicial do filme - o bar. Talvez o que procuravam já estava no percurso e não na chegada; talvez, para realizar os sonhos, encontrar a felicidade, precisavam acreditar no que estava no sensível, representado pela figura do Stalker... O Stalker traz a possibilidade de diálogo. Seu nome sinaliza aquele que busca, que guia, que percorre desconhecidos caminhos. O Quarto representa o mito do que nós buscamos - se é que sabemos o que é. Percebemos que a busca pelo Quarto é a busca pelo desejo, pela confiança na raça humana, pela descoberta de algo que está além das aparências. A absoluta falta de controle do desejo torna os seres rígidos como estátuas de pedra. Por isso eles nascem flexíveis. Em Stalker, todos os que estão a um passo de realizar seus desejos mais íntimos recuam diante do medo da sua concretização. Sentem o peso da responsabilidade diante do outro. (...) No quarto de Stalker, território mágico onde desejos se tornam reais, a alternativa para os prisioneiros da consciência é permanecer fora de seus limites (GONÇALVES FILHO, 2002, p. 83).

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Na última parte da novela, os personagens Redrick e Artur Barbridge encontram a Bola Dourada na Zona de Harmont. Nesse momento, Redrick demonstra consciente e racionalmente o valor desse achado, descrevendo-a em suas particularidades:

Só aí Redrick ergueu os olhos e olhou para a Bola. Com prudência. Com receio. Com o medo secreto de que não correspondesse as suas esperanças, de que fizesse nascer no seu interior uma dúvida, de que o fizesse cair do céu onde, conseguira subir, meio afogado na lama. Não era de ouro, talvez de cobre, avermelhada, perfeitamente lisa, e lançava reflexos hesitantes ao sol. Estava pousada no sopé da falésia mais afastada da clareira, confortavelmente instalada no meio de um monte de rocha compacta. Mesmo daqui se via a que ponto era maciça e o peso com que pesava sobre o leito. Não inspirava nada de decepcionante ou de duvidoso, mas também nada que insuflasse a esperança. [...] Estava onde caíra. Talvez tivesse escapado de um enorme bolso e se tivesse perdido, indo rolar para longe, quando do jogo dos gigantes; não estava instalada aqui, mas estava, simplesmente, estava como todo as “ocas”, “argolas”, “baterias” e outros dejectos da Visita (STRUGATSKI, 1971, p. 180181).

Diferente do filme, um dos personagens (Artur) decide tocar a Bola. Já Redrick, parece demonstrar uma certa falta de entusiasmo perante o artefato. Artur fica emocionado ao encontrá-la, toma-a nas mãos e depois de alguns instantes desaparece misteriosamente. Redrick fica a observá-la como se não prescindisse muito dela. Ele senta-se ao seu lado e toma o conhaque que levara para a expedição, depois vai embora, refletindo, inconscientemente, sobre a possibilidade de a Bola realizar seu maior desejo. Silenciosamente, ele pede “FELICIDADE PARA TODOS, GRATUITAMENTE, E QUE NINGUÉM SAIA PREJUDICADO!” 7 (STRUGATSKI, 1971, p. 185). Na novela, a Zona é um símbolo da consciência de um homem que se encontra diante de uma ameaça, que, para transcender tal situação, precisa conviver com a possibilidade da existência de seres de inteligência superior a sua. A obra literária é repleta de indícios do debate sobre a relação entre o homem e o seu lugar no mundo que resulta na esperança de uma vida melhor. Os cientistas lutam para obter cada vez mais informações sobre essa visitação. O Dr. Pilman, representa a batalha da ciência em busca de respostas para os mistérios da Zona. Esse “piquenique à beira da estrada” deixou o ser humano desconfortável com o seu valor e papel para o resto do universo e preocupado com a incerta maneira de agir diante da visitação para alcançar a felicidade. Seriam apenas fornecedores de matéria7

O livro traz esse trecho grafado em caixa alta como que para enfatizar o desejo do stalker Redrick.

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prima ou poderiam desenvolver suas capacidades através do que restou da visitação e aumentar seu poder, equiparando-se ou sobressaindo-se ao outro? O lugar do homem e seu papel no Universo são discutidos ao longo do livro e tornam-se uns dos pontos centrais dessa obra, como confirma o próprio título da novela. No que diz respeito ao filme, Tarkovski buscava, sobretudo, um objeto artístico que potencializasse as relações com o outro, com o meio ambiente compartilhado, com o sensível. Nesse sentido, possui um tom utópico-filosófico, o Stalker é pós um humanismo, individualista e subjetivo, que é próprio do racionalismo praticado muito mais pelo Escritor e pelo Professor. Ele vai em direção de superar esses valores que são de uma suposta modernidade, a mesma que deixou o caminho da Zona em ruína. É por essa via que a função pregnante e simbólica dos espaços contribuem para um aspecto mais coletivo, sensual e, em certo sentido, arquetípico; o stalker possui um projeto pósmoderno, se compreendermos a modernidade como o primado da razão, do progresso e dos indivíduos sobre as naturezas. O filme parte de uma situação construída a partir da novela dos Strugatski, mas ultrapassa essa narrativa ao retomar as ideias da Zona e do Stalker com novos sentidos que contribuem para a construção de um objeto totalmente outro. A novela discute os anseios do homem em crise com a ideia de poder perante a presença de uma civilização mais inteligente. Novela e filme possuem seus espaços bem definidos e existem sem a necessidade um do outro. Pode-se experienciar o filme sem nunca ter lido o livro, ou interpretar este último, sem conhecer ou sentir necessidade de ver o filme. Referências AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas: Papirus, 2004. p. 191. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 242. BOUGNEAUX, Daniel. Linguagens e meio ambiente. In: __. Introdução às ciências da informação. Rio de Janeiro: Vozes, 1996, p. 63-91. GONÇALVES FILHO, Antonio. Tarkovski guia mortais para a zona de Stalker. In: __. A palavra náufraga (ensaios sobre cinema). São Paulo: Cosac & Naif, 2002. p. 83-85. SPINELLI, Egle Muller. Solaris e Stalker : aplicação de jogo entre filme-espectador/ Elge Muller Spinelli. – Campinas, SP : [s.n.}, 2000. Dissertação de mestrado Unicamp. STRUGATSKI, Arkadi e Boris. Stalker. (tradução de Filipe Jarro). Portugal: Caminhos, 1971. p.185.

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TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. (Trad. CAMARGO, Jefferson Luiz). 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. TARKOVSKI, Andrei. Stalker. (Direção de Andrei Tarkovski; roteiro de Andrei Tarkovski, Arkandi Strugatski e Boris Strugatski; fotografia de Alexandr Kniajinski; direção de arte de A. Merkúlov; músicas de Eduard Artmiev, Ravel e Beethoven; elenco composto por Anatoli Solonitsyn, Alexandr Kniajinski, Nikolái Grinko, Alissa Freindlikh e Natasha Abramova). URSS: Mosfilm, 1979. 1 DVD (134’). son., color., leg.

“PEGOU CHÃO, SEM PAIXÃO”: “A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA”. O DIÁLOGO ENTRE O TEXTO DRAMÁTICO E O TEXTO LITERÁRIO Fabrício Floro e Silva [email protected] UNIFRAN RESUMO Este trabalho, que faz parte de nossa pesquisa de Mestrado, analisa o diálogo que se processa entre “A hora e vez de Augusto Matraga”, adaptação teatral do diretor Antunes Filho, e o conto de Guimarães Rosa, do mesmo nome, que pertence ao livro Sagarana. Utilizaremos como arcabouço teórico a Semiótica Francesa e levaremos em conta o percurso gerativo de sentido para recuperar na versão teatral da obra literária, especialmente as figuras e temas ali manifestados e, assim, analisar de que maneira esses elementos da semântica discursiva do texto dialogam com o texto literário rosiano. No conto, o ator protagonista é nomeado de três formas diferentes, como Matraga, Augusto Esteves e Nhô Augusto, assumindo identidades distintas que se associam às diferentes fases de um mesmo sujeito na história. Assim, pretendemos analisar a construção das cenas dos dois textos, o teatral e o literário, em que o ator protagonista, após estar à beira da morte e entrar em conjunção com o dever de penitência, resolve fugir da boca do brejo onde moravam Serapião e Quitéria, os velhos negros que o acolheram e tornaram-se como pai e mãe do protagonista. A cena da viagem de fuga rumo ao Tombador será o foco deste trabalho. Analisaremos, portanto, a relação entre as duas cenas, procurando observar o diálogo entre o texto teatral e o texto literário. PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa; Semiótica; Figuras, Temas, Diálogo.

Guimarães Rosa revela em seu texto a paisagem e o homem do sertão e, partindo do universo arcaico-popular local, atinge a dimensão humana universal.

Sempre

inquieto, o autor abomina o lugar comum, reinventa a linguagem, criando um texto complexo e experimental que Alfredo Bosi (1976, p. 487) denomina mitopoético: A obra de Guimarães Rosa é um desafio à narração convencional porque os seus processos mais constantes pertencem às esferas do poético e do mítico. Para compreendê-la em toda a sua riqueza é

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preciso repensar essas dimensões da cultura, não in abstracto, mas tal como se articulam no mundo da linguagem (BOSI, 1976, p. 487).

Sobre o livro Sagarana, o autor Guimarães Rosa tece o comentário abaixo em carta para João Condé: Assim, pois, em 1937 – um dia, outro dia, outro dia... – quando chegou a hora de “Sagarana” ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no momento a minha concepção-do-mundo. Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela pra mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente. (ROSA, 1984, p. 07).

Guimarães Rosa salienta o fato de que foi nesse livro em que ele pode exercitar sua escrita: “Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. De certo que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira”. (ROSA, 1984, p. 08). Ele demonstra essa afeição à língua e cria uma “obra repleta de vocábulos já existentes na língua portuguesa, ou em outras línguas: elementos eruditos, arcaicos, técnicos, brasileirismos, formas populares, empréstimos”. (NASCIMENTO; COVIZZI, 1988, p. 13). Sobre o conto que tem como protagonista um “[...] herói solar que vindo das trevas ilumina as veredas do Sertão [...]” (MILARÉ, 2010, p. 116), ou seja, A hora e vez de Augusto Matraga, Rosa depõe: “História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir” (ROSA, 1984, p. 11). Guimarães Rosa buscava a precisão na escolha das palavras e essa “necessidade de nomear e descrever viva e exatamente as pessoas, os animais, as coisas, leva o Autor a empregar termos especializados”. O autor afirma: “Eu não escrevo difícil. EU SEI O NOME DAS COISAS” (apud NASCIMENTO; COVIZZI, 1988, p. 13). Diante de texto tão inovador, temos, pois, por objetivo analisar o diálogo que se processa entre A hora e vez de Augusto Matraga, adaptação teatral do diretor Antunes Filho do conto de Guimarães Rosa e o texto rosiano do mesmo nome, publicado na obra Sagarana. Verificaremos a cena onde é evidenciada a performance de penitente do ator Matraga

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Como dissemos, utilizaremos como arcabouço teórico a semiótica francesa que é o instrumental que elegemos para analisar os textos, pois sua metodologia está voltada para o estudo do sentido: “a semiótica se interessa pelo ‘parecer do sentido’, que se apreende por meio das formas da linguagem e, mais concretamente, dos discursos que se manifestam, tornando-o comunicável e partilhável, ainda que parcialmente” (BERTRAND, 2003, p. 11). Ora, se o objeto da semiótica é o sentido, podemos afirmar que seu domínio é vasto e pode ser aplicado em diferentes linguagens que lhe dão forma de expressão (verbal, não-verbal e sincrética). Portanto, a teoria semiótica pode ser aplicada ao discurso dramático. Levaremos em conta o percurso gerativo de sentido para recuperar, no conto de Rosa, especialmente os níveis narrativo e discursivo com a finalidade de analisar de que maneira esses elementos da semântica discursiva do texto de base se manifestam ou não na versão teatral da obra. Analisaremos principalmente os acréscimos e supressões feitos no texto adaptado em relação ao texto rosiano, para compreender a maneira pela qual o enunciador adaptador, enquanto leitor de Rosa, recria e reconta essa história. A hora e vez de Augusto Matraga é o último conto de Sagarana, que marca a estreia de Guimarães Rosa na literatura. O volume é composto por nove textos interligados pelo espaço e pela cultura regional mineira, mas o conto de encerramento é considerado, por muitos críticos, a mais importante produção do escritor no livro. Augusto Matraga, o ator protagonista é nomeado de três formas diferentes pelo enunciador: Matraga, Augusto Esteves e Nhô Augusto; assumindo identidades distintas que se associam às diferentes fases de um mesmo sujeito na história. Matraga, depois de viver como a figura encarnada do mal, muda de comportamento, promovendo uma grande transformação em sua vida. É importante observar que, por uma questão de recorte, em nosso trabalho privilegiaremos o texto verbal dramático adaptado por Antunes Filho e não analisaremos a encenação de seu grupo de teatro. O estudioso de textos dramáticos, Jean-Pierre Ryngaert (1995, p.20), comenta sobre a diferença entre análise do texto e análise da encenação: [...] a análise do texto e a análise da representação são procedimentos diferentes, ainda que complementares. Nenhuma representação explica milagrosamente o texto. A passagem do texto ao palco corresponde a um salto radical. Claro que o espectador experimenta a necessidade e o prazer de voltar ao texto, assim como o leitor de

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assistir a uma representação. Mas os numerosos laços existentes entre o texto e o palco não podem satisfazer-se com a ilusão mecanicista de uma simples complementaridade. (RYNGAERT, 1995, p. 20).

Ao observar as relações intertextuais entre texto adaptado e texto-fonte temos, pois, por objetivo observar o modo como o enunciador do texto teatral dialoga com o texto rosiano. Vale dizer que o conceito de intertextualidade adotado por nós tem em vista a teoria semiótica e baseia-se no que diz José Luiz Fiorin (1994, p. 30-31): “o conceito de intertextualidade concerne ao processo de construção, reprodução ou transformação do sentido”. O autor ainda afirma que a intertextualidade “[...] é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo [...] pelos processos de citação, alusão ou estilização”. Muitos estudos feitos sobre a adaptação fílmica de obras literárias se apoiam no conceito de tradução de Jakobson (1991), pois ele a descreve de maneira ampla e distingue três modos distintos de interpretar o signo linguístico: a) Tradução Intralingual, que é a tradução dos signos verbais por outros signos do mesmo idioma; b) Tradução Interlingual, que é a tradução dos signos verbais em signos de outras línguas; c) Tradução Intersemiótica ou transmutação, que é a tradução de signos verbais em signos não verbais. No Dicionário de Semiótica (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 509), encontramos o verbete transcodificação: Pode-se definir como transcodificação como a operação (ou o conjunto de operações) pela qual um elemento ou conjunto significante é transposto de um código para outro, de uma linguagem para outra. Se a transcodificação obedecer a certas regras de construção determinadas, conforme um modelo científico, poderá equivaler, então, a uma metalinguagem.

Assim, podemos considerar que o diretor Antunes Filho utilizou-se do procedimento da transcodificação ao adaptar a obra literária rosiana para um espetáculo de teatro. Sendo assim, defenderemos a perspectiva da adaptação enquanto processo intertextual que transcodifica o texto primeiro (inspirador). O diretor Antunes Filho é um dos diretores teatrais mais importantes do país e sobre sua notoriedade Carmelinda Guimarães (1998, p. 17) afirma: “Com um longo ciclo de realizações e percalços, Antunes Filho é o diretor brasileiro cujas encenações conquistaram o maior reconhecimento no Brasil e no exterior”.

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Ainda sobre a credibilidade das produções de Antunes Filho, o diretor regional do SESC São Paulo, Danilo Santos de Miranda faz o seguinte comentário na apresentação do livro Hierofania: o teatro segundo Antunes Filho: Quando assistimos à montagem de uma peça teatral sob a direção de Antunes Filho temos a impressão de que algum mistério nos ronda, algo que não podemos divisar com os simples olhos de ver. São estranhamentos que surgem de uma camada de dentro de nós que parecia perdida, esquecida, de tão remota a ancestralidade que nos assalta. Por mais simples que seja a história dramatizada, elementos mitológicos nela surgem para nos lembrar de nossa condição humana de nos mantermos caminhando e nos situarmos no mundo. (MILARÉ, 2010, p. 09)

O crítico Clóvis Garcia teceu um comentário sobre Antunes Filho no Jornal O Cruzeiro em 13 de setembro de 1952: Antunes Filho é um exemplo de progresso pelo esforço e perseverança. [...] Sem qualquer apoio ou orientação, como acontece em nosso meio quando alguém decide dedicar-se ao teatro, Antunes Filho vai progredindo à custa de suas próprias experiências. (apud GUIMARÃES, 1998, p. 21)

O espetáculo A hora e vez de Augusto Matraga estreou no Teatro Anchieta no dia 06 de maio de 1986, com Raul Cortez no papel principal. Com essa montagem o Grupo de Teatro Macunaíma fez uma temporada no Brasil, além de uma turnê que incluiu três países europeus e o Canadá. É interessante observar que: [...] a intenção inicial de Antunes fora a de montar Grande Sertão, embora ele tenha abandonado a ideia ao inteirar-se de que o conjunto de seu trabalho levaria nove horas de encenação. Mas a pesquisa feita pelo grupo foi aproveitada na montagem de Augusto Matraga, na qual o diretor paulista acrescentou elementos de invenção sua e de seu pessoal. (GEORGE, 1990, p. 124)

Dessa maneira, podemos concluir que foi um grande desafio para o diretor adaptar o conto de Guimarães Rosa para o teatro, pois, de acordo com Sebastião Milaré (2010, p. 116): Com os instrumentos da sua poética, Rosa transmutou realidades e suas gentes em pura arte, acariciando com o olhar e a inteligência ávida sertaneja, no cenário em que coisas e criaturas se fundem, desceu ao caos, à região do indiferenciado, onde tudo começa a ser. Desse território só acessível aos místicos e poetas reinterpretou o mundo. Eis o material que verdadeiramente interessava a Antunes Filho trabalhar na esfera cênica (MILARÉ, 2010, p. 116).

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Antunes Filho adentrou o universo de Rosa e teve como meta realizar um questionamento sobre as raízes mais profundas da cultura brasileira através de seus mitos, seus rituais e seu folclore, “demonstrando a dedicação contínua à inovação da arte dramática, cujo resultado é uma linguagem cênica ao mesmo tempo autóctone e universal”. (GEORGE, 1990, p. 123). Fizemos alusão ao papel do diretor Antunes Filho, como adaptador da obra rosiana, pois nos interessa, como objeto de pesquisa, o diálogo que se processa entre o texto teatral e sua adaptação cênica. Para entender as diferenças entre o conto e a adaptação, é importante lembrar que “as grandes categorias de gênero se distinguem [...] conforme privilegiam, em seu modo de enunciação, a embreagem ou a debreagem. O teatro, a exemplo do diálogo, é regido pelo discurso embreado, assim como o monólogo lírico da poesia [...]” (BERTRAND, 2003, p. 93). Desse modo, em A hora e vez de Augusto Matraga, o espetáculo teatral, o enunciador, por meio do processo de embreagem, delega a palavra a atores, simulando a situação de diálogo, e omite a presença de um narrador. Entretanto, na versão adaptada existem inúmeras didascálias (indicações do enunciador), que orientam os atores para a interpretação das cenas, assim como, o enunciatário-leitor/espectador, projetando tempo, lugar, atores e modo como elas devem se processar. Na adaptação teatral temos o “contorno geral da trama de Guimarães Rosa; isto é, a transformação e regeneração, a ‘ressurreição’ do protagonista Augusto Matraga [...] que passa a santo, depois de ser a figura encarnada do mal” (GEORGE, 1990, p. 124). Com isso, encaramos o texto adaptado como um novo texto que, independente, mostra, através das marcas da enunciação, a leitura que o enunciador adaptador (neste caso, o simulacro do autor Antunes Filho) fez da obra, num processo de recriação e atualização de significados do texto de origem. Levaremos em conta o percurso gerativo de sentido para recuperar na versão teatral da obra literária, especialmente as figuras e temas ali manifestados e, assim, analisar de que maneira esses elementos da semântica discursiva do texto dialogam com o texto literário rosiano. Tanto no conto quanto no texto dramático o ator protagonista passa por momentos de dificuldades ao entrar em disjunção com os objetos-valores “família”, “bens” e com o objeto modal “poder”, que ele utilizava arbitrariamente por meio da violência de seus capangas e, portanto, passa por uma transformação de estados. 807

A partir do momento em que ao invés de cometer a violência contra o outro, Nhô Augusto passa a sofrê-la, inicia novo programa narrativo em que busca a sua “hora” e “vez” e se apega à religião, desejando a absolvição dos pecados que cometera. É importante lembrarmos que, nos dois textos, o ator “padre”, dotado do saber religioso, é quem delega a competência ao ator protagonista na busca de seu novo objeto valor: a absolvição dos pecados. Distante de tudo e dominado pelo arrependimento, ele é dominado pelo estado de tristeza. Percebemos pela fala de Nhô Augusto que o

sofrimento torna-o sujeito cognitivo e toma consciência de sua fragilidade. Podemos observar que o ator padre é sujeito Destinador de Matraga na busca do objeto “salvação”, visto que ele o aconselha e orienta sua performance, já que “era mesmo uma brava criatura” (ROSA, 1984, p. 356 ) e, conforme disse Serapião na versão dramática: “O senhor é santo, seu padre. O senhor é santo peregrino” (ANTUNES FILHO, 1986, p. 7). Ele manipula o protagonista por tentação, oferecendolhe o objeto-valor positivo, a salvação. O Programa Narrativo de uso leva o ator Matraga para o Programa de Base, que é a conjunção com o objeto valor “salvação”. PN = F [S1  (S2 ∩ Ov)] Ov = Salvação S1= Padre S2= Matraga

Pensemos no percurso do sujeito “Nhô Augusto” tendo em vista o quadrado semiótico relacionado à modalidade do dever-ser que transcrevemos abaixo:

dever-ser

dever não ser

(necessidade)

(impossibilidade)

não dever não ser

não dever ser

(possibilidade)

(contingência)

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É perceptível que Nhô Augusto passa do /dever-não-ser/ penitente, devido a seu caráter violento e ditador, para o /não-dever-não-ser/, pois depois de quase morrer, sofrer dores físicas e a humilhação moral, surge a possibilidade de ser penitente e, enfim, passa para o /dever-ser/ penitente, visto que essa será a única maneira de conseguir a absolvição de seus pecados, tornando-se assim, uma necessidade para ele. O ator é dotado ainda do objeto modal /saber/ , pois, como sujeito cognitivo, tem consciência das arbitrariedade que cometeu, e sabe ser necessário purgar seus pecados por meio da devoção ao outro. Assim, adquire também a competência necessária para realizar sua performance de penitente. No Dicionário de Semiótica, encontramos o conceito de performance: A performance, considerada um programa narrativo do sujeito competente e em ação (por si mesmo), pode servir de ponto de partida para uma teoria da ação: sabe-se que todo programa narrativo é suscetível de expansão sob quadro de um programa de base. Interpretada [...] como estrutura modal do fazer, a performance é denominada decisão, quando situada na dimensão cognitiva e execução, na dimensão pragmática [...]” (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 364).

A análise dos discursos narrativos faz com que nos deparemos, a todo instante, nas suas dimensões pragmática e cognitiva, com “sujeitos performantes” (quer dizer, realizando sequências de comportamentos programados). Tais sujeitos, para agir, precisam possuir ou adquirir antes a competência necessária: o percurso narrativo do sujeito se constitui, desse modo, de dois sintagmas que têm os nomes de competência e performance. Dessa maneira, o ator Matraga já competente, passa para a fase de performance, ou seja, entra em conjunção com objeto-valor penitência, transformando-se de um sujeito de estado em um sujeito do fazer. Vejamos os trechos em que se evidencia a performance de penitente do ator Matraga no conto: Vejamos a performance de penitente do ator Matraga no conto: Quando ficou bom para andar, escorando-se nas muletas que o preto fabricara, já tinha os seus planos, menos maus, cujo ponto de início consistia em ir pra longe, para o sitiozinho perdido no sertão mais longínguo [...] Antes de partir, teve com o padre uma derradeira conversa, muito edificante e vasta. E, junto com o casal de pretos samaritanos, que, ao hábito de se desvelarem, agora não o podiam deixar nem por nada, pegou chão sem paixão. [...] Trabalhava que nem afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma ganância e nem se importava com acrescentes: o que vivia era

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querendo ajudar os outros. Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando de amor o que possuísse. E só pedia, pois, serviço para fazer, e pouca ou nenhuma conversa. (ROSA, 1984, p. 357- 358).

Na adaptação teatral:

(Iniciam a viagem, levando o carrinho com as coisas dos velhos. Param para descansar. Entram camponeses capinando. Entre eles está uma grávida que começa a sentir as dores do parto. Todos acodem; Matraga se adianta). Matraga – Sai, menina, deixa que eu faço. Mãe Quitéria, pega um pano. (Para a grávida, que grita) – Calma moça, calma... (Ajeita o pano) – Força, moça, agora força... Isso, isso... (Nasce a criança) – Nasceu... Eh, Eh! Minha senhora dona... Um menino nasceu – o mundo torna a começar!... Como é que vai ser o nome dele? Grávida – Vai ser... Vai ser João! Matraga – Eh, João! Traz água, Mãe! Olha o João... (Mostra a criança para a grávida e para os camponeses. Quitéria chega com a água e a derrama na mão de Matraga, que batiza a criança) – Eu te batizo João, em nome do Padre, do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Todos – Amém. [...] (Os camponeses, junto com a grávida vão saindo, comentando o nascimento; a grávida para e volta-se para Matraga) Grávida – Deus lhe abençoe. (Matraga tira um pedaço de pão do bornal e com um gesto pede a Quitéria que leve o pão para a grávida) Quitéria – O pão. Grávida – (Depois de pegar o pão) – Obrigada, moço. O senhor é um santo homem!... (Ouve-se barulho de ‘sinos’; entra um leproso; os camponeses se juntam, receosos) Leproso – Eu careço de ajuda. Tô precisando um de comer. Camponesa – A gente é pobre, não tem nada para ajudar. Matraga – O pão! (Silêncio. Ele vai até a grávida, e insiste) – O pão! (Ela se vira, recusando dar o pão. Matraga, enérgico) – Me dá o pão! (Constrangida, a grávida reparte o pão e dá metade para Matraga, que sorrindo, compreende a moça. Em seguida, ele leva o pão para o leproso). (ANTUNES FILHO, 1986, p. 10).

Verificamos que, no nível narrativo, o protagonista passa de sujeito de estado para sujeito de fazer, portanto, começa agir como penitente. Entretanto, no nível discursivo, pudemos encontrar diferentes figuras nos textos. No excerto do conto rosiano, as figuras “trabalhava que nem afadigado por dinheiro”,

“não tinha nenhuma ganância”, “via era querendo ajudar os outros,

“capinava para si e para os vizinhos do seu fogo”, “dando de amor o que possuísse, remetem ao percurso temático da penitência.

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No excerto da adaptação, o tema da penitência se mantém, como se nota por meio das figuras que o representam: “batiza a criança”, “ajuda um leproso”. Percebemos, portanto, que na versão teatral existe uma fidelidade temática, pois, o tema da penitência está também presente. Assim, a ausência de um narrador na peça não compromete a construção de sentidos estabelecidos na obra literária, ou seja, o eixo narrativo do conto permanece na adaptação. Nos dois textos, o protagonista após ser dotado de competência, torna-se penitente em busca da salvação. No entanto, na cena no conto, o narrador constrói uma isotopia figurativa do trabalho braçal para caracterizar a performance de penitente do protagonista. Já na adaptação surgem as isotopias figurativas da caridade, da religião e do nascimento. Essas diferenças na adaptação são marcas que evidenciam os traços de recriação do enunciador Antunes Filho enquanto adaptador do texto rosiano. Referências ANTUNES FILHO. A hora e vez de Augusto Matraga (adaptação teatral). São Paulo: Acervo Particular CPT, SESC Consolação, 1986. BARROS, D. L. P.; FIORIN, J. L. Dialogismo, Polifonia e intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1994. BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003. BOSI, A. Céu, inferno. São Paulo: Ática, 1976. GEORGE, D. Grupo Macunaíma: carnavalização e mito. São Paulo: Perspectiva, 1990. GUIMARÃES, C. Antunes Filho: um renovador do teatro brasileiro. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 1998. GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008. JAKOBSON, R. Aspectos Linguísticos da tradução. Linguística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1991, pp. 63-72. MILARÉ, S. Hierofania: o teatro segundo Antunes Filho. São Paulo: Edições SESC SP, 2010. NASCIMENTO, E. M. F. S.; COVIZZI, L M. João Guimarães Rosa: Homem Plural Escritor Singular. São Paulo: Atual, 1988. ROSA, J. G. Sagarana. 33 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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RYNGAERT, J-P. Introdução à análise do teatro. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

O TEMA DA ASCENSÃO SOCIAL NO CONTO "O ZELADOR" DE MENALTON BRAFF Flavia Karla Ribeiro Santos (CAPES) [email protected] UNIFRAN INTRODUÇÃO: DOS OBJETIVOS AOS ASPECTOS TEÓRICOS No artigo intitulado “Rumos da Semiótica”, de Diana Pessoa Luz de Barros, a autora afirma que “os estudos da linguagem têm por fim último saber mais sobre o homem. Por isso mesmo, dois tipos mais gerais de estudos têm-se desenvolvido: os que pensam o homem como ser biológico, e os que o vêem como ser social” (2007, p.16). Pensando o homem como ser social, Barros complementa que os estudos semióticos estão se voltando “para o homem na sociedade e na cultura” com o objetivo, dentre outros, de “contribuir para o conhecimento da linguagem” (2007, p.17). Assim, com o fim de depreender os mecanismos de construção de sentido no discurso do homem que integra a sociedade brasileira hodierna, manifestado na literatura brasileira do século XXI, apresentamos neste artigo uma análise do conto “O zelador”, de Menalton Braff. Nessa análise, pretendemos demonstrar como se desenvolve o tema da ascensão social no conto constituinte de nosso córpus à luz da teoria semiótica francesa. De acordo com Denis Bertrand, na obra Caminhos da Semiótica Literária (2003), a semiótica tem como objeto o sentido, mais especificamente o parecer do sentido manifestado nos discursos presentes em diferentes formas de linguagem, seja verbal e ou não verbal. Utilizamos modelos de análise desenvolvidos por A. J. Greimas, ou seja, elementos do percurso gerativo do sentido, para descrevermos os papéis actanciais e temáticos do ator protagonista do conto. Descrevemos os percursos baseados no fazer do sujeito “zelador” em relação ao objeto-valor “promoção”, que revelam isotopias temático-figurativas da ascensão social. Ainda, observamos a figurativização e a tematização que se apreendem no texto tendo em vista seu caráter pluri-isotópico.

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Conforme o Dicionário de Semiótica a pluri-isotopia pode ser entendida como a “(...) superposição, num mesmo discurso, de isotopias diferentes” (GREIMAS; COURTÉS, 2011, p.371), ou seja, as figuras têm um caráter pluri-isotópico quando propõem virtualmente vários percursos figurativos, podendo dar lugar a leituras diferentes e simultâneas (GREIMAS; COURTÉS, 2011, p.371). Nesse sentido, queremos observar, em termos de nível narrativo, o fazer do sujeito “zelador”, como simulacro do fazer do homem que transforma o mundo, assim como os contratos e conflitos que estabelece com um outro sujeito, “Ego”. Para isso, é necessário desvelar alguns conceitos-chave que nos permitirão proceder à análise do texto braffiano. Relembremos, pois, a noção de ator: “uma entidade lexical do tipo nominal que, inscrita no discurso, pode receber, no momento de sua manifestação, investimentos de sintaxe narrativa de superfície e de semântica discursiva” (GREIMAS; COURTÉS, p.44), ou seja, respectivamente papéis actanciais e papéis temáticos. Os papéis actanciais são desempenhados no interior da narrativa pelos “actantes sintáticos – sujeitos do estado, sujeitos do fazer, objeto” –, como preconiza Barros (2001, p.35), e variam “segundo se altere a posição dos actantes no percurso (...) ou de acordo com suas relações com os valores” (BARROS, 2005, p.84). Além disso, conforme Luiz Tatit, (2003, p. 193), pode “um ator do nível discursivo assumir mais de um papel actancial no nível narrativo”. Desse modo, os actantes sintáticos, assumem o papel de sujeito do fazer – que realiza uma ação que leva a uma transformação de estados –, sujeito do estado – que sofre a ação –, e sujeito cognitivo – que analisa e reflete sobre a ação. Por sua vez, o papel temático é tido como o “papel assumido pelos actantes narrativos no interior de um tema ou de um percurso temático, quando então os actantes se convertem em atores discursivos” (BARROS, 2005, p. 84). Analisaremos ainda o contrato de veridicção apreensível no texto, ou seja, os “jogos da linguagem com a verdade que o discurso instala em seu interior” (BERTRAND, 2003, p.433), por meio da observação do modo como se processa a combinação dos valores de ser e o parecer e de suas negações. Assim, [...] quando há coincidência do parecer e do ser num universo de discurso, há “verdade”; a coincidência do parecer e do não-ser define a “mentira”; a do não-parecer e do ser define o “segredo”; enfim, a coincidência do não-parecer e do não-ser define a “falsidade”. (BERTRAND, 2003, p.241).

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Passemos, pois, à análise do texto. O CORPUS O corpus a ser examinado é o último dos vinte contos que integram o livro de contos “A coleira no pescoço”, publicado em 2006 pelo autor Menalton Braff. No conto, um zelador solitário, responsável por cuidar de vilas mal conservadas e inóspitas, objetiva uma promoção e assim passar a fazer parte de outra classe social. No mesmo dia em que recebe determinação para cuidar de uma vila nas mesmas condições daquelas de que sempre cuidou, descobre que não conseguira a promoção almejada. Ao sair do prédio da Zeladoria, conhece um cão com o qual se identifica fisicamente e nomeia-o Ego. Juntos, almoçam em um restaurante, estabelecendo o início de uma relação de companheirismo. No dia seguinte, o zelador e Ego partem juntos para a vila a ser cuidada. No decorrer da viagem, a cada obstáculo vencido a relação de amizade entre os companheiros se fortalece até chegarem a “uma relação de confiança mútua e a um sentimento muito próximo de uma amizade irredutível” (BRAFF, 2006, p.156). A amizade perdura até a terceira vila que visitam juntos. Lá, desaparece a carne que estava na geladeira e que deveria alimentar o zelador durante um mês. Este, acreditando ter sido roubado pelo cão e concluindo que um novo pedido de carne o privaria da promoção à Classe C, executa o amigo como forma de manter a rigidez dos regulamentos que conhecera desde a infância. OS PERCURSOS NARRATIVOS E TEMÁTICOS Um dado relevante que observamos no texto em análise é a forma de manifestação textual, uma vez que o relato apresenta duas formas de desenvolvimento da história. Um primeiro segmento, grafado em caracteres normais, narra a história de amizade entre os sujeitos “zelador” e “Ego” e apresenta isotopias figurativas que remetem ao tema da amizade e a uma despreocupação com o seu status social. O segundo, grafado em itálico, inicia e se insere em meio ao primeiro, encerrando também o conto. Neste último, reiteram-se os estados de alma de cólera do sujeito “zelador” – provocado pela descoberta do roubo da provisão mensal de carne que estava na geladeira empreendida pelo cão Ego – ao perceber que continuaria disjunto do objeto-valor “promoção”. Nesse

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relato, as isotopias figurativas remetem ao tema da ascensão social mediante preocupação com a aquisição do objeto-valor “promoção”. Na situação inicial do texto, estabelece-se o contrato de amizade entre o sujeito destinador “zelador” e o sujeito destinatário “Ego”. O primeiro é o sujeito dotado de autoridade para estabelecer o contrato entre eles e, ao longo do relato, atuar como julgador, ou seja, é dotado do poder de aplicar a sanção ao sujeito destinatário “Ego”. Assim, ao conhecer o sujeito “zelador”, o sujeito “Ego” acompanha-o a todos os lugares já que é manipulado pelo sujeito destinatário por tentação: alimenta-o, afaga-o, cuida de suas feridas. O sujeito “Ego” é modalizado pela competência a ele atribuída do /saber/ e do /poder/ fazer companhia e utiliza em sua performance os sentidos, como olfato e audição, para vencerem os obstáculos da viagem. Ao mesmo tempo, o sujeito “zelador” aceita ser manipulado, também por tentação, pelo sujeito “Ego”, pois se sente protegido na sua presença. Considerando que ambos querem entrar em conjunção com o mesmo objeto-valor, a manipulação é bemsucedida e a sanção, no final, é cognitiva e positiva, pois é estabelecida a amizade e a confiança entre os sujeitos. Já na terceira vila juntos, o sujeito “Ego”, com fome, pois há dias não conseguia caçar, inicia um novo percurso. Como “Há dias ele vinha percorrendo os arredores sem encontrar caça alguma” (BRAFF, 2006, p.139), não consegue se alimentar. Quando o sujeito “zelador”, enquanto destinador do contrato de amizade, esquece a porta da casa aberta, dá ao sujeito “Ego” a competência modal do /saber/ entrar na casa e do /poder/ roubar a carne da geladeira. Manipulado por intimidação, pois /deve/ alimentar-se para manter-se conjunto com o objeto-valor “vida”, “Ego” torna-se sujeito do fazer e rompe o contrato de confiança com o sujeito destinador, roubando-lhe a carne da geladeira. . O sujeito destinatário, então, realiza a nova performance, entra em conjunção com o objeto valor “carne”, saciando sua fome,. Todavia, devido ao rompimento do contrato, “Ego” recebe a sanção cognitiva negativa do sujeito destinatário “zelador”, a perda de confiança. Este último, modalizado pelo /não poder não ser/ intolerante em relação ao não cumprimento das normas, sanciona o sujeito “Ego” pragmaticamente à morte Nenhum daqueles pequenos episódios que foi tecendo, ao longo do tempo, a mútua confiança pôde naquele momento valer ao cão. Educado na rigidez dos regulamentos, o zelador não conhecia a tolerância [...]

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[...] O zelador tomou o cabo pela extremidade e, com o olho da enxada, amassou a cabeça entre as duas orelhas. (BRAFF, 2006, p.159-160)

Assim, no segmento grafado em caracteres normais, observamos o estado inicial de solidão dos sujeitos. Para supri-lo estabelece-se uma relação de amizade entre eles, mas, na sequência, ela é transformada em inimizade e o zelador volta ao estado de solidão na situação final do texto em que se percebe a incompatibilidade entre os valores socioculturais do “zelador” e as necessidades naturais de “Ego”. O sujeito “zelador” é também, na situação inicial do relato, um sujeito de estado em disjunção com o objeto-valor “promoção”. O empregador, assumindo o papel actancial de sujeito destinador, manipula o sujeito destinatário “zelador” por provocação ao informá-lo de que a sua idade o impedira de entrar em conjunção com o objeto-valor, levando-o a /dever/ aceitar o contrato de continuar cuidando das vilas com zelo e seguindo os regulamentos com rigor, para entrar em conjunção com a almejada “promoção”. Ao mesmo tempo, o sujeito destinador “empregador” dá ao sujeito “zelador” as competências do /saber/ – considera-o um profissional zeloso e responsável – e do /querer/ ser promovido – “Seu tempo de serviço na Zeladoria, segundo o regulamento, autorizava-o a nutrir tal aspiração” (BRAFF, 2006, p.143). A performance, ou seja, a transformação de estado de disjunção para um estado de conjunção com o objeto-valor, porém, não ocorre: na terceira vila, o “zelador” descuidase, possibilitando que o cão Ego roube a provisão mensal de carne da geladeira. Esse descuido leva-o a /não poder/ ser promovido, pois provoca o rompimento do contrato estabelecido com o destinador “empregador”. Enquanto sujeito cognitivo, o sujeito “zelador”, conclui que receberá uma sanção pragmática negativa: continuar disjunto do objeto-valor “promoção” e trabalhando em vilas do mesmo nível de todas as vilas onde já havia trabalhado. Tendo em vista as modalidades veridictórias, o empregador parece rígido em relação à necessidade do cumprimento do dever pelo sujeito zelador e revela ser rígido a partir da constatação feita pelo “zelador” de que não seria promovido em razão de seu descuido. Por outro lado, o zelador embora pareça responsável e zeloso, não é, do ponto de vista do empregador. Percebemos também que os sujeitos “zelador” e “Ego” não conseguem manter o contrato de amizade, pois apresentam valores diferentes, no que diz respeito à satisfação pessoal. Conforme assevera Barros, “Não se deixar manipular é recusar-se a participar

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do jogo do destinador, pela proposição de um outro sistema de valores” (2005, p.35). Um ambiciona uma promoção, uma mudança de status, valor sociocultural inerente à constituição daquele sujeito. O outro, apenas segue os instintos de sobrevivência. Assim, como os sujeitos não compartilham os mesmos valores, o sujeito “zelador”, sobrepõe os valores socioculturais aos valores pessoais da afetividade ao executar Ego. Conforme Barros, “os valores assumidos pelo sujeito da narrativa são, no nível do discurso, disseminados sob a forma de percursos temáticos e recebem investimentos figurativos” (2005, p.66). Assim, observamos no texto os percursos temáticos da amizade e da ascensão social, sendo o segundo predominante em relação ao primeiro. Logo, as figuras “amigo”, “companheiro”, “guardião”, “vigilante” “convívio”, “confiança”, “solidariedade” remetem ao tema da amizade entre os atores protagonistas. Nesse percurso temático, os atores apresentam o mesmo papel temático: cuidadores, pois cuidam um do outro, protegem um ao outro, como se observa no trecho Nas diversas viagens que juntos empreenderam, os dois se complementavam. O cão por ter o sono mais leve e alguns sentidos mais aguçados, era o guardião das noites, sempre vigilante, muito responsável. O jovem, detentor das provisões, muitas vezes via-se na contingência de saciar a fome do amigo. (BRAFF, 2006, p.157)

A temática da amizade é espacialmente ancorada no espaço aberto das viagens, e revela ainda a um estado de despreocupação do ator “zelador” com os regulamentos, ou seja, com as normas impostas pelo ambiente citadino:

[...] as normas, que rezavam onde, quando e em que condições poderia um funcionário entregar-se ao sono [...] Permitir que o sono [...] aos poucos voltasse, entorpecendo-lhe os membros e apagando-lhe a vontade, isso já havia sido uma demonstração cabal de sua confiança em Ego [...] [...] Com três, quatro dentadas, Ego engoliu a parte que lhe fora destinada [...] a matula era calculada para alimentar apenas uma boca, durante seis dias [...] Qualquer atraso ou descontrole no consumo era infração que não se permitia. (BRAFF, 2006, p.148-149)

Contudo, além do tema da amizade, identificamos isotopias temáticas da ascensão social no percurso do ator “zelador”. A recorrência das figuras lexemáticas “passar da Classe D”, “passar à classe C”, “aspiração” e “promoção”, figurativiza esse tema e também o papel temático do ator “zelador”: trabalhador. Nesse percurso temático, o ator “zelador", enquanto trabalhador contratado por uma empresa para desempenhar a função de zelador de vilas, representa uma classe social. Ele não tem nome próprio, nem

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características físicas individualizantes, apenas traços figurativos que representam ações inerentes à relação entre empregador e empregado – “Tinha acabado de receber, das mãos do Gerente Geral, a Ordem de Serviço” (BRAFF, 2006, p.140). À medida que tenta passar de sujeito virtual a sujeito realizado, buscando alcançar o objeto-valor promoção, as figuras “passar da Classe D”, “promoção”, “passar à Classe C”, são enunciadas com mais frequência, revelando o intenso desejo do ator em ficar conjunto do objeto-valor e ascender socialmente. Ao concluir que não conseguirá concretizar a realização da performance, a figura lexemática

“promoção” conecta a isotopia da

ascensão social à isotopia figurativa que reitera o papel temático do trabalhador, que continuará exercendo as mesmas atividades de outrora: “tempo de serviço”, “regulamentos”, “relatório”, “tarefa”. Nesse percurso temático, os ambientes fechados são figurativizados por “cidade” e “vilas”, “casas”, “restaurante”, “alojamento”. Nesse ambiente, há maior preocupação do ator “zelador” com a rigidez das regras sociais. Em “Ego, apesar de companheiro e amigo, pertencia ao lado de fora” (BRAFF, 2006, p.140), “os cachorros, em todo o país, estavam proibidos de entrar em restaurantes” (BRAFF, 2006, p.142), “concluiu que os cachorros são mais resistentes ao frio, por isso a porta poderia ficar fechada” (BRAFF, 2006, p.145) as figuras “pertencia ao lado de fora”, “proibidos de entrar em restaurantes”, “a porta poderia ficar fechada” compõem um percurso figurativo que remete ao tema da rigidez do zelador desejoso de cumprir as normas sociais. Essas normas sobressaem-se em relação à despreocupação que o zelador demonstrava durante as viagens que eram temporalmente curtas em relação ao tempo em que passava nas vilas. Ademais, à medida que o ator “zelador” não vê concretizado o seu desejo de ascender socialmente à “Classe C”, no trecho “Educado na rigidez dos regulamentos, o zelador não conhecia a tolerância, vício de aprendera a banir desde criança” (BRAFF, 2006, p.159), que antecede a sanção pragmática negativa a “Ego”, as figuras “educado”, “rigidez”, “regulamentos” reforçam a importância das normas para o ator “zelador” e também compõem o percurso temático da ascensão social visto que sem esses valores, dificilmente o trabalhador poderia conseguir a promoção, como no caso do ator “zelador” que “há anos, vinha realizando cada tarefa com esmero, empenhando-se nos mínimos detalhes para merecer uma promoção” (BRAFF, 2006, p.156). Apresentamos, portanto, o quadro com os temas da amizade e da ascensão social, e os relacionamos aos traços figurativos apreendidos no texto: 818

Traço

Amizade

Ascensão social

Espacial

Aberto: “ponte”, “outeiro”, “estrada”, “mato”, “aba de uma rocha”, “caverna”.

Fechado: “cidade”, “vilas”, “casas”, “restaurante”, “alojamento”.

Isotopias Figurativas

“convívio”, “confiança”, “solidariedade”, “tolerância”, amigo”, “companheiro”, “guardião”, “vigilante”.

“passar da Classe D”, “passar à Classe C”, “promoção”, “aspiração”.

O ator protagonista inicia, pois, seu percurso em estado de solidão solitário e nãoconjunto com o objeto-valor “promoção”. Esse estado patêmico é figurativizado pela ausência de relacionamentos interpessoais com amigos, familiares, colegas de trabalho. O gerente geral apenas entrega a ordem de serviço para o zelador, que viaja sozinho e se comunica com a empresa através de relatórios. Conversa com outras pessoas somente em situações cotidianas como fazer o pedido em um restaurante. Em uma das vilas, chega a não se lembrar do som da voz humana. Embora o zelador tenha a companhia de Ego em suas viagens, o trecho “(...) não se lembrava mais dos sons produzidos pela garganta humana” figurativiza o auge do estado de solidão do ator. Na sequência, o trecho “Não que isso lhe fosse necessário, mas poderia transformar-se em uma deficiência funcional em determinadas circunstâncias” (BRAFF, 2006, p.156) revela que o ator não quer ser solitário e as “determinadas circunstâncias” em que a “deficiência funcional” é negativa, é uma figura que alude à possibilidade de conjunção com o objeto-valor “promoção”. Figuras como “pigarrear”, “ruídos humanos”, “inventava tosse” e “começou a falar” remetem à transformação de estado solitário para acompanhado, visto que é com Ego que fala e em quem confia. Desse modo, as figuras “falar com Ego”, juntos”, “amigo”, “companheiro” remetem ao tema da amizade, que se manifestam quando o ator acredita estar próximo do objeto-valor “promoção”. A sanção pragmática negativa ao companheiro por ter roubado a carne e ser responsabilizado pela manutenção do estado disfórico de não-conjunção com o objeto valor, encerra o percurso do ator “zelador” que volta ao estado patêmico de solidão, figurativizado pelo trecho “e o mundo foi encoberto por um lençol de silêncio. Nem pássaros, vento, nada mais tinha voz” (BRAFF, 2006, p.160). 819

CONCLUSÃO Percebemos que embora os atores “zelador” e “Ego” comunguem da amizade, na situação inicial do texto, também apresentam valores diferentes no que diz respeito à satisfação pessoal, uma vez que enquanto um ambiciona mudança de status social – valor sociocultural constitutivo do papel temático de trabalhador – o outro, apenas segue os instintos e rouba a carne num gesto atávico para saciar a fome. Devemos observar ainda a figura “zelador” que tem um caráter pluri-isotópico no texto e é utilizada de forma irônica pelo sujeito da enunciação. Assim, cumpre notar a plurissignificação da figura. Segundo Ferreira (2010, p. 2190), o zelador é “aquele que zela”, ou seja, que trata alguém com zelo ou desvelo. Nesse caso, é o que o zelador faz com Ego na situação inicial do texto, ao se relacionar afetivamente com o cão. Por outro lado, o zelador é também o encarregado de “administrar diligentemente, tomar conta de algo com o maior cuidado e interesse”. Também é o que o sujeito faz em relação às vilas e casas, no seu papel social. No entanto, no final de seu percurso narrativo e de seu percurso passional o sujeito “zelador” passa à condição de algoz do cão ao mesmo tempo em que se descuida de seu papel social ao, de certa forma, permitir que Ego lhe roubasse a carne. Nesse sentido, pune o cão com a morte. O texto tematiza, portanto, o individualismo do zelador que se revela mais apegado aos valores da ascensão social que aos valores afetivos da amizade. Concluímos, por fim, que o tema da ascensão social sobrepõe-se no texto ao tema da amizade. Referências BARROS, D. L. P. de. Rumos da Semiótica. Revista todas as letras (MACKENZIE. Online), v. 9, p. 12-23, 2007. BARROS, D. L. P. de. Teoria do discurso: Fundamentos semióticos. 3. ed. São Paulo: Humanitas, 2001. BARROS, D. L. P. de. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2005. BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Trad. Grupo CASA. Bauru: EDUSC, 2003. BRAFF, M. A coleira no pescoço: contos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p.139160.

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FERREIRA, A.B. H. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2010. GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et. al. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2011. TATIT, L. Abordagem do texto. In: FIORIN, J. L. (Org.). Introdução à lingüística: I. Objetos teóricos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2003, p. 187-209.

PONTO DE VISTA, FOCO OU FOCALIZAÇÃO? O VERBAL E O VISUAL NA NARRATIVA Franco Baptista Sandanello [email protected] UNESP/FCLAr Wilton José Marques UNESP/FCLAr A recente edição do romance de Henry James Pelos olhos de Maisie, publicada pela Companhia das Letras em parceria com o norte-americano Penguin Group, traz uma opção muito interessante, do ponto de vista da teoria da narrativa, do tradutor Paulo Henriques Britto. A tradução literal do título inglês, que seria algo como O que Maisie sabia (What Maisie knew), é, no entanto, adaptada para o campo perceptivo da protagonista, que passa a funcionar como foco único da narração: assim, é Pelos olhos de Maisie que se tem conhecimento da trama como um todo, ainda que não através de sua voz. A opção é perfeitamente plausível se retomada a idade de Maisie, que beira os oito anos, e o desnível de sua experiência de vida frente às relações familiares que presencia, como a separação dos pais. Não obstante, dois desvios de leitura podem resultar desta escolha inicial. Enquanto em O que Maisie sabia há uma distância temporal entre o ato de narrar e o passado da experiência, e que implica toda uma configuração ulterior da narração, além de um distanciamento do foco de percepção da menina, Pelos olhos de Maisie como que situa ação e narração num mesmo plano, atuando como lente ou espelho para o leitor, que tem de avaliar mesmo o que não sabia Maisie pelo que ela poderia saber. Desta forma, enquanto o primeiro título faz as vezes de uma indicação conteudista, o segundo instaura uma abordagem específica da matéria narrativa, e impõe os limites estreitos de percepção da menina como regra geral.

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É o que se discute logo no primeiro parágrafo do primeiro capítulo: O futuro da menina estava garantido, mas o novo estado de coisas não poderia deixar de ser desconcertante para uma inteligência em formação, com plena consciência de que algo da maior importância havia ocorrido e ansiosa por encontrar os efeitos de uma causa tão momentosa. Esta menininha paciente estava destinada a presenciar muito mais do que lhe seria possível compreender de início, mas também a compreender, mesmo de início, talvez muito mais do que qualquer menininha, por mais paciente que fosse, jamais compreendera antes. [...] Seu pequeno mundo era fantasmagórico, sombras estranhas dançando num lençol. Era como se todo aquele espetáculo fosse representado para ela – uma menininha meio assustada, num grande teatro à meia-luz. (JAMES, 2010, p. 39) Como se pode observar, o narrador incide sobre o caráter limitado da percepção de Maisie avaliando que, embora “destinada a presenciar muito mais do que lhe seria possível compreender de início”, a menina compreendia, “mesmo de início, talvez muito mais do que qualquer menininha” da mesma idade. Ou seja, embora visse tanto quanto outra menina poderia ver, Masie talvez soubesse mais, sem que, por isso, deixasse de ser simultaneamente uma “menininha meio assustada”, vítima do “teatro” da separação dos pais. A postura onisciente do narrador confirma assim o desvio apontado ao situar Maisie dentre os demais personagens e admitir seu foco de percepção como algo relativo, de que se deve tomar alguma distância. Por extensão, e em detrimento das reservas do narrador, o segundo desvio consiste na substituição de um processo gradual de conhecimento por uma percepção imediata, traduzida pelos termos “saber” e “ver”. É o que se pode depreender deste trecho, algumas páginas a seguir: “O que você pensa não tem a menor importância”, retrucou a sra. Farange, falando bem alto, “e daqui para a frente, mocinha, é bom ir aprendendo a não dizer tudo o que pensa.” Isso Maisie já havia aprendido, e era justamente esse seu novo conhecimento que irritava sua mãe. Esta senhora estava desconfiada de que a menina tivesse desenvolvido um terrível sistema crítico, uma tendência a julgar os mais velhos em silêncio – e ela gostava de crianças simples e crédulas. [...] Aproximava-se o dia, e disso tinha consciência, em que ela teria mais prazer em impingir Maisie ao ex-marido do que em negarlhe sua presença; tanto que sua consciência doeu quando um amigo franco e perceptivo comentou que toda essa disputa pela

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criança terminaria em uma situação em que um tentaria onerar o outro com ela (JAMES, 2010, p. 49). O parágrafo indica o quanto Maisie ouviu e viu da conversa com sua mãe, assim como as minúcias do pensamento da sra. Farange, suas desconfianças, gostos e projetos futuros, pouco prováveis de se entrever para Maisie mesmo através dos comentários vagos de “um amigo franco e perceptivo”. Logo, não se trata aqui unicamente do que Maisie sabia, mas também do que Maisie sabia, uma vez que se passa da percepção auditiva da menina às desconfianças íntimas da sra. Farange, e destas, às palavras do seu amigo. As informações não são conferidas, pois, Pelos olhos de Maisie, mas pelo narrador, que trata os personagens (incluindo Maisie) como tais. Esses dois desvios possíveis indicam, para além de uma opção talvez infeliz de tradução (quando na verdade não o é, sendo antes de tudo uma provocação e um convite à leitura), um problema recorrente da teoria da narrativa: o apego exacerbado à percepção visual no estudo do foco narrativo, ou ainda, da perspectiva narrativa – termos desde sempre ligados ao campo da percepção visual. E é importante destacar que, se a apreciação crítica da obra leva à discussão teórica desse apego visual na escrita, James foi também um dos primeiros teóricos da narrativa, secundado e divulgado posteriormente pela obra de Percy Lubbock. As reflexões teóricas de Henry James encontram-se dispersas nos prefácios de seus romances. No prefácio a The ambassadors, James (2003, p. 250) expressa com clareza a base visual de suas idéias: “A arte trata daquilo que vemos, primeiro processa fornecer com abundância esse ingrediente; ela colhe seu material, dito de outra forma, no jardim da vida – qualquer material nascido alhures é deteriorado e intragável”. Há um juízo de valor nessa proposição que invalida todo outro material artístico, e, por conseguinte, para ele, tal como a arte em geral, a arte narrativa deve corresponder a uma apreensão sobretudo visual do mundo. Todavia, se a arte manipula visualmente o “jardim da vida”, o resultado textual não pertence a esse mesmo plano, e o que é narrado não deve corresponder imediatamente ao que é visto: “Para responder a essas questões de modo plausível, para responder a elas como no banco das testemunhas, sob um novo interrogatório promovido pela promotoria, [...] eu próprio tinha de ser dono de todo o material” (JAMES, 2003, p. 251). Inversamente, seria necessário abordar o material narrativo, à maneira do visual, com certa distância (ou parcialidade), e fazer falar o narrador ou locutor indiretamente: 823

[...] nem preciso mencionar que para o desenvolvimento, para a expressão do seu máximo, minha história reluzente deveria, no estágio mais primitivo, ter rompido o fio da conexão com as possibilidades do verdadeiro locutor indireto. Ele ainda continua sendo apenas o mais feliz dos acasos; suas verdades, todas bem definidas, anunciavam toda ordem de possibilidades; sua encantadora incumbência fora apenas a de projetar sobre aquele amplo campo da visão do artista – que sempre está fixada no lugar como a tela branca suspensa para as figuras da lanterna mágica da criança – uma sombra mais fantástica e mais articulável (JAMES, 2003, p. 248, grifo do autor) A comparação utilizada por James é próxima àquela de Pelos olhos de Maisie, e praticamente iguala à compreensão parcial do universo por uma criança o recorte visual da realidade que faz a narrativa. Trata-se, em ambos os casos, de um jogo de luz e sombra, sempre indireto ou negativo, expresso lá por “sombras estranhas dançando num lençol”, e cá por “uma sombra mais fantástica e mais articulável” projetada pela “lanterna mágica da criança”. O narrador reduz-se, pois, a um locutor indireto, que precisa de um anteparo externo para poder existir. Maisie simboliza então, simultaneamente, um problema tanto da crítica quanto da teoria literária, e, presa de sua própria oscilação, antevê um quê de liberdade ao artista, que, “dramaturgo sempre”, observa e projeta (deixa projetar-se) à distância. Posteriormente, esse problema comum foi sistematizado por Percy Lubbock (1976) em seu livro A técnica da ficção, onde eleva as reflexões jamesianas ao patamar de regras de criação e de análise literária. Buscando ampliar, e sempre confirmar, a teoria narrativa de James, o sistema de Lubbock (1976) adquire um caráter binário que praticamente direciona toda a discussão. Após tratar de Guerra e paz, Lubbock (1976) passa a analisar Madame Bovary, e destaca os métodos empregados por Gustave Flaubert: ora a ação é resumida pelo narrador como em um panorama, com traços gerais de ambientes, informações em retrospecto dos personagens etc. (visão distanciada dos fatos), ora é apresentada ao leitor quase de imediato pelo cotidiano de Emma, Charles, Rodolphe, etc., no desenrolar de seus diálogos e conflitos pessoais (visão aproximada dos fatos). Desses elementos, o crítico tira algumas conclusões, em que afirma dois métodos narrativos, duas formas de apresentação e duas formas de tratamento do material narrativo. Os dois primeiros itens dizem respeito aos pontos de vista do narrador. Para Lubbock (1976, p. 49), ou ele “descreve uma paisagem, a bem cuidada região rural em que se decide o destino da moça, o aparecimento e os hábitos dos vizinhos” e, para 824

tanto, usa sua própria linguagem “e seus padrões de apreciação” – em uma palavra, expressa sua própria “visão” de mundo –, ou ele “utiliza os olhos, a mente e os padrões de outrem; a paisagem tem agora as cores que ostenta aos olhos de Emma; o incidente é apreendido pelo aspecto que mais diz com a imaginação dela”. De maneira similar, Lubbock (1976) afirma que o narrador pode estar ao nível do autor ou ao nível dos personagens, mostrando os fatos de forma panorâmica (“sumário”) ou cênica (“cena”), isto é, de maneira mais ou menos distanciada do cotidiano imediato dos personagens. Ao primeiro, corresponde o primeiro método narrativo, e ao segundo, o segundo. E, a par dessa linearidade sistemática, há também para o crítico duas formas de tratamento do material narrativo: pictórico e dramático. Pictórico, quando limitado pelo olhar pontuado do narrador ou de um personagem, com predominância da experiência subjetiva sobre o livre curso das ações e diálogos. Nesse caso, “o leitor não olha realmente para a ocasião, ou só o faz de quando em quando”, mesmo que se trate de uma cena; é o que ocorre no episódio do baile do marquês em Madame Bovary, onde “tudo lá se banha no clima do estado de espírito de Emma [...]. Os fidalgos e fidalgas ficam de longe; a comoção invejosa e maravilhada de Emma enche todo o primeiro plano. A cena é tratada pictoricamente” (LUBBOCK, 1976, p. 50, grifo do autor). O oposto acontece no episódio dos comícios agrícolas de Yonville, ainda que apresentado do ponto de vista de Emma: as falas da protagonista perdem-se em meio às de Rodolphe e ao rumor da multidão (LUBBOCK, 1976, p. 50). “Tudo no romance, tanto os episódios cênicos quanto o resto, em certo sentido, deve ser dramatizado, é para isso que tende o argumento” (LUBBOCK, 1976, p. 81); “Queremos o drama, sempre o drama, como o assunto central, essencial, soberano, seja ele qual for” (LUBBOCK, 1976, p. 90-91); “Nenhuma reflexão, nenhuma descrição, onde for possível o drama vivo – eis aí uma boa regra; não se permita que o herói se interponha entre nós e sua mente ativa [...] a não ser por um motivo muito bom” (LUBBOCK, 1976, p. 93-94). O drama erige-se, assim, em princípio técnico do ponto de vista: valendo-se do ponto de vista dos personagens, que são aqueles logicamente envolvidos na/pela ação ficcional, o narrador deve examinar à distância os mesmos eventos, embora não se desprendendo a ponto de contar apenas segundo seu próprio olhar. Pois aqui, como lá, o que ele [narrador] conta a respeito de si mesmo, por exemplo, não pode ser integralmente válido, não por improbidade sua, mas apenas porque nenhum homem pode objetivar-se 825

integralmente, e um relato crível de alguma coisa precisa parecer destacá-la, libertá-la de todo para que possa ser examinada. (LUBBOCK, 1976, p. 95) Dessa forma, para Lubbock, o problema do ponto de vista equivale diretamente a um problema de verossimilhança, mistura que o faz preconizar o método de James (2003) como o mais próximo da “regra” da ficção, especificando-o nesses termos: “Não caminhar diretamente rumo ao fato e expressá-lo em frases, mas circundá-lo e, assim, destacá-lo intacto – tal é o processo de que se vale Henry James para dramatizá-lo” (LUBBOCK, 1976, p. 111). Apesar da riqueza evidente de seu debate, A técnica da ficção confirma e reitera essa repetição talvez indevida daqueles prefácios, ao indagarse, emblematicamente, sobre a função do crítico: “O autor do livro era um artífice; o crítico precisa descobri-lo em seu trabalho e ver como foi feito o livro” (LUBBOCK, 1976, p. 168). Cabe, pois, antepor à pergunta de Lubbock (1976) uma outra, não limitada ao elemento visual – “[...] la question quel est le personnage dont le point de vue oriente la perspective narrative? et cette question tout autre: qui est le narrateur? – ou, pour parler plus vite, entre la question qui voit? et la question qui parle?” (GENETTE, 1972, p. 203, grifos do autor). Evidentemente, trata-se de separar aquele que vê (personagem) daquele que narra (narrador), e de reconhecer, na contramão das reflexões de Henry James (2003), que, em uma obra literária, deve haver logicamente a predominância da narração, ou do elemento verbal, sobre os demais, sem cuja mediação nada é dado a conhecer. Nesse sentido, cabe falar não em “ponto de vista” ou em “perspectiva” narrativa, termos especificamente visuais, mas em uma “focalização” variável das informações narrativas, termo cunhado anos depois pelo teórico Gérard Genette (1983, p. 49, grifos do autor) em Figures III e Nouveau discours du récit: Par focalisation, j’entends donc bien une restriction de “champ”, c’est-à-dire en fait une sélection de l’information narrative par rapport à ce que la tradition nommait l’omniscience, terme qui, en fiction pure, est littéralement, absurde (l’auteur n’a rien à “savoir”, puisqu’il invente tout) et qu’il vaudrait mieux remplacer par information complète – muni de quoi c’est le lecteur qui devient “omniscient”. L’instrument de cette (éventuelle) sélection est un foyer situé, c’est-à-dire une sorte de goulot d’information, qui n’en laisse passer que ce qu’autorise sa situation: Marcel sur son talus derière la fenêtre de Montjouvain. 826

Deslocando a discussão para as condições de percepção do personagem e para aquilo que autoriza presentemente sua narração, como no exemplo citado de Em busca do tempo perdido, e restringindo o elemento visual a limites estreitamente verbais e textuais, Genette (1972, 1983) como que ultrapassa aquele caráter ideológico de repetição e confirmação do método jamesiano. Para tanto, o crítico deixa de considerar a obra como um bloco uniforme, rigorosamente “dramático” em seu conjunto, como no modelo James/Lubbock, para atentar às nuanças de significação mediante um modelo de análise voltado para a leitura – e não para a criação – da obra literária. Logo, Genette (1972, 1983) não lamenta a falta de verossimilhança de um episódio a partir de uma atenção maior ao narrador ou ao protagonista – que é verbal e narrativamente possível – , mas a falta de coerência com que as ações podem ser enunciadas. Para ele, trata-se de realizar um estudo operatório da narrativa, uma narrato-logia avessa a qualquer dogma: “Ici, comme aillleurs, le choix est purement opératoire. Ce laxisme choquera sans doute quelques-uns, mais je ne vois pas pourquoi la narratologie devrait devenir un catéchisme avec, pour chaque question, une réponse à cocher par oui ou par non” (GENETTE, 1983, p. 49). Dadas essas direções teóricas amplas, e talvez, nas palavras do crítico, frouxas, surge uma nova terminologia, tripartida, em que o processo de focalização pode coincidir ou não com a interioridade de um (ou mais) personagem (ns), sendo: “interna”, “externa” ou simplesmente variável, quiçá inexistente (“zero”) (GENETTE, 1972, 1983). “Interna”, quando se aproxima claramente da visão de mundo de um ou mais personagens; “externa”, quando se limita apenas à exterioridade das ações e ambientes; e variável ou “zero”, quando transita da visão de mundo dos personagens à do narrador. Exemplificando essa terminologia com o trecho citado mais acima a respeito da conversa entre Ida Farange e Maisie, o foco, primeiramente orientado para a percepção da menina, que ouve duas repreensões ditas por sua mãe em voz alta, passa para os pensamentos de Ida, desconfiada da filha, e a seguir, para os conselhos de seu amigo, através de Ida. Há, portanto, três momentos distintos que, vistos em separado, são exemplos de “focalização interna”, mas que, no trecho, são tratados muito sumariamente pelo narrador, e indicam focalização variável ou “zero”. A nítida vantagem da proposta de Genette (1972, 1983) é a de não antepor as respostas às perguntas, dispondo os termos conforme (e segundo) sua necessidade em conjunto. Por outro lado, sua desvantagem é a de manter a discussão num termo ainda “visual” – “focalização” –, como bem nota Mieke Bal (1997) em Narratology: 827

introduction to the theory of narrative, obra em que fornece uma alternativa para a definição genetteana do termo. Bal (1997, p. 144), logo de início, reconhece a natureza visual do termo para além de seu caráter operatório – “It is a term that looks technical. It is derived from photography and film; its technical nature is thus emphasized. [...] ‘Technicality’ is just another tool, but a strategically useful one” – e em pouco define focalização menos como um processo que como uma ação, envolvendo um “focalizador” e algo ou alguém “focalizado”: “Focalization is the relationship between the ‘vision’, the agent that sees, and that which is seen. This relationship is a component of the story part, of the content of the narrative text: A says that B sees what C is doing” (BAL, 1997, p. 146). E, ao comentar especificamente What Maisie knew a seguir, Mieke Bal (1997, p. 147) é categórica quanto ao funcionamento de sua mecânica narrativa (apesar de ressalvar, brevemente, a variabilidade da focalização empregada): In Henry James’ What Maisie knew, the focalization, whenever it is character-bound, lies almost entirely with Maisie, a little girl who does not understand much about the problematic relations going on around her. Consequently, the reader is shown through the limited vision of the girl, and only gradually realizes what is actually going on. But the reader is not a little girl. S/he does more with the information s/he receives than Maisie does, s/he interprets it differently. Where Maisie sees only a strange gesture, the reader knows that s/he is dealing with an erotic one. [...] James is perhaps the most radical experimenter whose project was to demonstrate that, in the terminology of this book, narrator and focalizer are not to be conflated. Distinguindo narrador de focalizador, Bal (1997) como que cria um espaço à parte para Maisie dentro do romance, mesmo sabendo que o narrador nem sempre se atém ao olhar da menina. Sua argumentação, porém, logo deixa sugerir algo de impreciso. Pois se aquele que vê não é aquele que narra, como evidenciado por Genette (1972, 1983), aquele que narra ainda é determinante para o que é informado. Todavia, ela diz: “Narration and focalization together determine what has been called narration – incorrectly, because only the narrator narrates, i.e. utters language [...]. The focalizor [...] is an aspect of the story this narrator tells. It is the “colouring”of the fabula” (BAL, 1997, p. 19). Assim, o focalizador, da ordem do conteúdo narrativo, e não da narração, reduz o narrador à única função de “emitir linguagem”, ou seja, de estar

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presente e deixar as ações correrem por si só; os personagens falam, vêem e interagem entre si, “colorindo” à distância. Retroativamente, essa distinção acaba por reproduzir, numa ordem mais técnica, a posição dogmática de Lubbock (1976): na estrutura da narrativa, incorpora-se aquela exigência anterior de uma dramaticidade sem fronteiras. Nesse sentido, é curioso ressaltar que a autora utilize, como primeiro e único exemplo de “focalizador”, não uma narrativa verbal, mas sim uma narrativa não-verbal – um desenho – que representa um asceta em posição de meditação, um gato imitando-o, e vários ratos rindo de sua imitação (exemplo utilizado ainda em um artigo ferino de Bal (1983) contra a definição genetteana de focalização). Como reagir, então, perante esse retorno (extremo) da crítica ao elemento visual? É assim que, de uma maneira cíclica, o diálogo entre as teorias desses quatro autores fecha-se em si mesmo, partindo e chegando ao elemento visual a partir/através do verbal. De tanto refletir sobre o ponto de vista narrativo, a teoria chega ao conceito de focalização e, por fim, às figuras desenhadas. Em todo caso, o percurso de um ao outro certamente contribui para um maior esclarecimento da não obrigatoriedade narrativa do elemento visual. Além de indicar, em se tratando do romance de Henry James (2010) e de sua tradução, que se pode discutir com naturalidade What Maisie knew, o que sabia Ida etc., transferindo-se o canal da informação ora para Maisie, ora para Ida (como no original inglês), mas que nele não se observa unicamente Pelos olhos de Maisie (como na opção do tradutor): Maisie é aquela que vê, ou melhor, aquela que percebe e experimenta algumas das ações narradas, e não seu conjunto. Implicar o oposto, como faz Paulo Henriques Britto, equivale a, de alguma forma, considerar a obra como um bloco único e, assim, concordar com o método particular de James, caminho específico e válido, embora limitado. À guisa de conclusão para este vai e vem teórico, que não avança sem recuos, sirva uma nota irônica de Gérard Genette (1983, p. 51) a respeito de sua discussão e a de Mieke Bal: “La question est maintenant, bien sûr, de savoir qui est ici Ptolomée –, et chacun se croit Copernic”. Bibliografia BAL, M. Narratology: introduction to the theory of narrative. 2 ed. Toronto: University of Toronto Press, 1997.

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______. The Narrating and the Focalizing: A Theory of the Agents in Narrative. In: Style, DeKalb, n. 17-2, p. 234-269, 1983. GENETTE, G. Figures III. Paris: Seuil, 1972. ______. Nouveau discours du récit. Paris: Seuil, 1983. JAMES, H. A arte do romance. São Paulo: Globo, 2003. ______. Pelos olhos de Maisie. São Paulo: Companhia das Letras; Penguin, 2010. LUBBOCK, P. A técnica da ficção. São Paulo: Cultrix, 1976.

INCLUSÃO ESCOLAR NOS BLOGS: ENUNCIAÇÃO DE UMA PROFESSORA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL Gabriela Alias Rios [email protected] Fernanda Massi [email protected] RESUMO A rede mundial de computadores tem sido cada vez mais utilizada como fonte de (in) formação e interação social. O advento da internet, bem como a expansão do número de pessoas com acesso à banda larga, contribuiu para que mudanças ocorressem no âmbito da comunicação, impactando diretamente no comportamento das pessoas, nos mais diversos grupos sociais. Nesse contexto, inserem-se os blogs, que permitem que qualquer indivíduo produza e distribua informação. No que se refere à educação, os blogs têm sido um importante recurso utilizado por professores para compartilhar experiências, ideias e divulgar sua prática docente. Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo descrever e analisar o que tem sido veiculado na internet, mais especificamente em blogs de professores da educação especial, acerca da inclusão escolar dos alunos público-alvo da educação especial, em que se incluem os alunos com deficiência, transtorno global do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Para tanto, foi inicialmente selecionado um blog de uma professora da educação especial, e posteriormente, elencado um texto, escrito pela própria professora acerca de sua prática pedagógica. Foi aplicada a teoria semiótica greimasiana, analisando-se o percurso gerativo de sentido, sendo analisado somente o plano de conteúdo, uma vez que os blogs são uma espécie de diário de campo pessoal e não há uma preocupação com a linguagem, que está no plano da expressão. Finalmente, foi realizada uma comparação entre o discurso divulgado no texto analisado com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, verificando-se a prática da professora autora do blog e o que deveria ser feito de acordo com as políticas públicas, tanto por parte da professora, quanto dos órgãos a que competem dar subsídios para a educação especial. PALAVRAS-CHAVE: Semiótica discursiva. Blogs. Educação Especial.

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Introdução A sociedade contemporânea é caracterizada pela velocidade da transmissão de informações, que se deve à globalização e à revolução tecnológica. De acordo com Kenski (2008), as várias tecnologias são tão antigas quanto a espécie humana. O uso do raciocínio e a engenhosidade garantiram ao homem a criação de novos equipamentos, recursos, produtos, ferramentas, ou seja, tecnologias. Durante toda a história da humanidade, constata-se que tecnologia é sinônimo de poder. Seja esse poder para dominar, afugentar animais e garantir a sobrevivência, como era na Idade da Pedra com o fogo, seja para a dominação de outros povos, como nas guerras. Tal relação não mudou no contexto da sociedade contemporânea. Conhecimento, poder e tecnologias são elementos que perpassam a história da humanidade e estão presentes nas relações sociais atuais, não mais na forma de fogo, ou armamento bélico, mas incrustadas nas informações que são divulgadas e veiculadas a todo tempo. Como afirma Kenski (2008), enciclopédias, dicionários, livros, revistas e jornais, por exemplo, são criados em contextos definidos e apresentam informações da ótica de seus autores e editores. Assim, entende-se que as informações veiculadas pela mídia na atualidade, seja em programas televisivos, rádio, sites e blogs, estão longe de serem consideradas totalmente imparciais. Um assunto polêmico pode ser julgado positiva ou negativamente, conforme o posicionamento de um autor acerca do tema e o modo como redige e veicula a informação. Nesse contexto, a Internet é um meio de comunicação que merece destaque. Essa rede mundial de computadores tem sido cada vez mais utilizada como fonte de (in)formação e interação social. De acordo com pesquisa realizada pela FecomércioRJ/Ipsos, o percentual de brasileiros conectados à internet teve um crescimento de 27% para 48%, entre os anos de 2007 a 2011 (ANTONIOLI, 2012). De acordo com a pesquisa realizada e publicada pelo Grupo IBOPE (www.ibope.com.br), em abril de 2012, o número de brasileiros conectados a internet alcançou 79,9 milhões, um crescimento de 8% em relação ao ano anterior, sendo tal aumento atribuído à expansão do número de pessoas com acesso à banda larga – a parcela da população que utiliza ativamente a internet com mais de 2Mb de conexão cresceu mais de 300%. Dessa forma, com o advento da internet, a comunicação mudou, impactando no comportamento das pessoas nos mais diversos grupos sociais (SILVA, 2009). Nesse contexto, inserem-se os blogs. A palavra blog é uma contração da expressão weblog– 831

web (do inglês, teia, vocábulo também empregado para abordar o ambiente virtual da internet) e log (do inglês, diário de bordo) - e, portanto, consiste em um tipo de diário online, em que o conteúdo é disponibilizado em ordem cronológica. O conteúdo a ser disponibilizado fica a critério do autor, chamado “blogueiro”, que pode postar textos, imagens e vídeos. Bresolin (2011) esclarece que as postagens são o espaço onde os mais variados gêneros circulam. Komesu (apud Bresolin, 2011) acrescenta que o foco dos blogs tem mudado, e atualmente se voltam para atividades profissionais e marketing pessoal. Os blogs não são mais tão parecidos com os diários, como eram há algum tempo. A possibilidade de agregar todo e qualquer gênero textual faz com que os blogs tenham características de sites pessoais, em que o responsável o alimenta com conteúdos a sua escolha. (PRIMO; SMANIOTTO, 2006) Silva (2009) esclarece que com o surgimento dos blogs, um fenômeno de massa, houve uma significativa mudança na comunicação, já que eles permitem que o cidadão comum se transforme em uma testemunha participativa, produzindo e distribuindo informação. De acordo com Silva (2009), os blogs anteciparam a TV e o rádio, transformando-se na principal fonte de informação, com imagens que não eram vistas pela mídia, de modo que se pode dizer que o blog revolucionou o jornalismo. De acordo com Silva (2009), a blogosfera, termo utilizado para se referir aos blogs como uma comunidade ou rede social, tem crescido exponencialmente. O Technorati (www.technorati.com), um serviço norte-americano especializado no estudo da blogosfera e indicado como a maior autoridade no assunto (SILVA, 2009) identificou os 30 temas mais comuns de blogs, entre eles notícias, educação, tecnologia e negócios. Lopes (2010) afirma que os blogs têm servido como ferramenta no espaço acadêmico, uma vez que são utilizados para mediar diálogos, entre alunos e professores. De acordo com o posicionamento do autor de um blog acerca de determinado assunto, o discurso pode impactar positivamente ou negativamente no que se refere à formação de opinião. Para Bakhtin (2003), o texto apresenta peculiaridades do homem, ou seja, se ele exprime a si mesmo, enuncia, cria um texto. Partindo do pressuposto que todo texto possui uma intencionalidade comunicativa, pode-se dizer que o discurso veiculado em determinado website reflete diretamente na formação de opinião do leitor. (FIORIN; SAVIOLI, 1997) Blogs no contexto escolar

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É uma tendência da escola incorporar as tecnologias da informação e comunicação. Perrenoud (2000) esclarece que a escola não deve ignorar o que acontece no contexto mundial, apropriando-se, assim, das TIC, que transformam a maneira de comunicar, trabalhar, decidir e pensar. Machado (2008) ainda pontua que o significativo crescimento das redes, o surgimento de novos recursos, criatividade dos professores e grande interesse e facilidade de acesso dos alunos à rede mundial de computadores corroboram para a adoção das tecnologias em sala de aula. As tecnologias começaram a ser utilizadas no século XX (BARDY, 2010) e, mesmo recentes, influenciam na escola. No caso dos blogs. Lopes (2010) afirma que eles têm servido como ferramenta no espaço acadêmico, pois são utilizados para mediar diálogos, entre alunos e professores. Dessa forma, os processos educacionais devem ser repensados, considerando todos os envolvidos – alunos e professores. Os blogs, pela estrutura que oferecem, propiciam a criação de uma rede de colaboração com leitores e escritores, considerando os mais diversos pontos de vista e experiências. (BRESOLIN, 2011). As novas tecnologias da informação, onde se inserem os blogs, são formas de conhecimento, uma vez que ao utilizá-las uma nova linguagem é criada, bem como novos conteúdos plásticos dos processos mentais. Além disso, uma rede de computadores pode impactar no modo de pensar de professores e alunos. Objetivos O presente trabalho tem como objetivo descrever e analisar o que tem sido veiculado na internet, mais mais especificamente em blogs de professores da educação especial, acerca da inclusão escolar dos alunos público-alvo da educação especial, em que se incluem os alunos com deficiência, transtorno global do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Metodologia Para alcançar os objetivos traçados neste trabalho, foi realizada uma pesquisa do tipo exploratória. Para selecionar o texto que foi analisado, foi realizada uma busca a

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partir do site de buscas Google (www.google.com), com filtro “Pesquisa de Blogs” ativado, com o descritor “sala de recursos multifuncional”. Para que o texto pudesse ser selecionado, os blogs foram analisados de acordo com a ordem dada pela busca. Foi selecionado o primeiro texto encontrado, que atendeu aos seguintes critérios: (a) pertencer a blog nacional, (b) com postagens frequentes – pelo menos uma a cada mês; (c) o autor do blog ser um professor que atuasse em alguma sala de recurso multifuncional (SRM), o que foi verificado pelo perfil do blogueiro; (d) ser escrito pelo próprio professor-blogueiro, (e) relatando sua prática pedagógica. Textos de autoria do professor, mas que não versaram acerca do seu trabalho como docente da SRM foram descartados. Resultados O texto escolhido para análise é intitulado “Instituto Benjamin Constant”1, como mostra a Figura 1.

Figura 1 – Texto para análise 1

Disponível em: http://www.lucianepradodv.blogspot.com/2011/10/instituto-benjamin-constant.html.

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Neste trabalho, foi analisado somente o plano de conteúdo, considerando que os blogs são uma espécie de diário de campo pessoal, em que não há uma preocupação com a linguagem, que está no plano da expressão. Nível Fundamental O nível fundamental é a etapa mais simples e mais abstrata, e também a mais profunda, em que o sentido do texto se dá por uma oposição, chamada de “oposição semântica mínima”, que são os dois valores que caracterizam o conteúdo geral do texto. Neste texto, os valores que garantem o sentido geral do texto são: identidade vs. alteridade. Atrelados a esses dois valores está a oposição teoria vs. prática, sendo a teoria relacionada à alteridade e a prática à identidade. A identidade, portanto, remete à prática da professora, que precisou recorrer a uma instituição, no caso, o Instituto Benjamin Constant (IBC), de um Estado diferente do seu, para conseguir material de apoio importante para o seu trabalho. A alteridade refere-se ao que os outros professores fazem, ou seja, à teoria, ao que é dito nas políticas no que se refere à garantia do atendimento educacional especializado. Partindo do pressuposto que é assegurado pela Constituição, entende-se que todo o material necessário para o trabalho deveria ser garantido, o que o discurso da professora mostra que não acontece. Nível Narrativo O nível narrativo é a segunda etapa do percurso gerativo de sentido. No texto em exame, há um sujeito que altera a relação dos outros sujeitos presentes no texto com o objeto-valor, ou seja, esse sujeito transforma estados. A partir da leitura do texto, depreende-se os sujeitos (S) e objeto-valor (Ov):  S1 – enunciador, no caso a imagem que a professora autora do texto construiu de si;  S2 – a imagem que o enunciador construiu dos alunos da SAAI da EMEF Jorge Americano;  Ov – material didático adequado para o trabalho com alunos cegos e de baixa visão.

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Percebe-se que a busca do S1 pelo Ov só se dá com a ajuda do ator ‘Instituto Benjamin Constant’. O “Instituto Benjamin Constant” forneceu o objeto-valor que as professoras desejavam – o material em Thermoform. A transformação se deu na diminuição (ou eliminação) da dificuldade do trabalho realizado, e na influência no interesse dos alunos. Estes, de acordo com a enunciação da professora, não tinham interesse inicialmente, mas depois de ter contato com o material em Thermoform, ou seja, de entrar em conjunção com o objeto-valor, passaram a gostar mais das aulas e participar. Nível Discursivo A terceira e última etapa do percurso gerativo de sentido é o nível discursivo. É nesse patamar que se examina o texto como discurso e a narrativa se torna espacializada, actorializada e temporalizada. O espaço que marca o texto analisado é a Sala de Acompanhamento e Apoio à Inclusão da EMEF Jorge Americano – trabalho que realizo na EMEF Jorge Americano. A temporalização é marcada pelo passado (relação de anterioridade ao agora), comentei, não nos levou a cruzar os braços, conseguimos e, pelo presente, o trabalho que realizo. Quanto à actorialização, os actantes deste texto são professor e alunos. Os atores são a professora da SAAI da EMEF Jorge Americano, e os alunos, os que recebem o material em Thermoform. É nesse nível também que se examinam as figuras e os temas que recobrem o discurso. Os temas que podem ser depreendidos da leitura do texto são: a) Falta de material necessário para o desenvolvimento do trabalho com crianças cegas e de baixa visão; b) Luta das professoras para desenvolver o trabalho, mesmo sem o apoio da prefeitura. A partir da leitura abstrata dos temas, depreendem-se as figuras que permeiam o texto:  Materiais adaptados;  Alunos cegos e de baixa visão;  Criatividade;

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 Materiais em Thermoform. A partir da análise do texto, depreende-se que houve uma sanção positiva no texto, já que o enunciador agradece o Instituto Benjamin Constant por ter fornecido o material adequado para o seu trabalho. A professora, que precisava do material em Thermoform para desenvolver seu trabalho com êxito busca apoio do IBC, o qual fornece o material didático. Assim, o Instituto é sancionado positivamente. Considerações finais A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva tem como objetivo garantir o acesso, participação e aprendizagem dos alunos público alvo da educação especial – estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento. Além disso, orienta os sistemas de ensino para promover respostas às necessidades educacionais especiais, garantindo, dentre vários outros elementos, a acessibilidade na comunicação e informação. Os temas depreendidos da análise do texto – falta de material necessário para o desenvolvimento do trabalho com crianças cegas e baixa visão, e a luta das professoras para desenvolver o trabalho, vêm de encontro ao que preconiza o documento. Referências ANTONIOLI, L. Estatísticas, dados e projeções atuais sobre a Internet no Brasil. Disponível em: http://www.tobeguarany.com/internet_no_brasil.php. Acesso em 24 de abril de 2012. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARDY, L. R. Objetos de aprendizagem em contextos inclusivos: subsídios para formação de professores. 225f. Dissertação (Mestrado em Educação Especial). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2010. BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: 2008. BRESOLIN, A. R. O professor de línguas em formação: uma experiência reflexiva com blog. 2011. 148 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem). Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2011. FIORIN, J. L. SAVIOLI, F. P. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1997. 837

KENSKI, V.M. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informação.Campinas: Coleção Papirus Educação, 2008. LOPES, L. R. O blogueiro e suas práticas – corpos carnavalizados e interações multifacetadas.2009. 118 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2010. MACHADO, J. L. A. Escolhendo a pílula vermelha: Blogs na formação de professores. 2008. 144 f. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2008. PERRENOUD. P. Dez novas competências para ensinar. Tradução: Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artmed, 2000. PRIMO, A.; SMANIOTTO, A. M. R. Comunidades de blogs e espaços conversacionais. Revista Prisma.com, v. 3, p. 1 – 15. 2006. Disponível em: http://www6.ufrgs.br/limc/PDFs/insanus.pdf SILVA, F. M. O leitor de blog: um estudo com base nos blogs mais acessados do Brasil. 2009.158 f.Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa). Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2009.

A SEMIÓTICA GREIMASIANA: UM NOVO OLHAR CRÍTICO SOBRE A PUBLICIDADE TELEVISIVA (INTERDISCURSIVIDADE ENTRE SEMIÓTICA, PERSUASÃO E DISCURSO PUBLICITÁRIO) Gabriela Aparecida dos Santos UNESP/FCLAr Maria de Lourdes O. G. Baldan UNESP/FCLAr

INTRODUÇÃO Esta sessão propõe expor o projeto de pesquisa, em que se parte do pressuposto específico do gênero de discurso propaganda enquanto um complexo semiótico composto por elementos persuasivos e retóricos, e não tão somente um veículo de informação. O presente trabalho apresenta-se como parte do projeto de iniciação científica, através do qual objetiva-se, a partir do referencial teórico da teoria semiótica de Algirdas Julien Greimas, analisar sua funcionalidade, de forma interdiscursiva com entre argumentação e o discurso publicitário – bem como seus artifícios - enquanto

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instrumento intrínseco na composição da publicidade em chamadas comerciais televisivas. Considera-se que o conceito de propaganda foi difundido com maior força devido ao desenvolvimento desencadeado através da Revolução Industrial, apoiado pelas relações comerciais sobre a população que era significantemente influenciável.A definição que, sucintamente, melhor lhe cabe e, ao mesmo instante, contextualiza historicamente, seria a apelação “ao sentido moral e social dos homens, aos sentimentos nobres e as suas virtudes”. Esta definição se interrelaciona à publicidade, à qual definese enquanto apelação “para o instinto de conservação, os sentimentos, prazer, e conforto etc”.Pode, ainda, ser definida por alguns especialistas como “uma expressão de opinião ou ação por parte de indivíduo ou grupos, deliberadamente destinada a influenciar opiniões

ou

ações de

outros indivíduos

ou

grupos relativamente a

fins

predeterminados”.E, para outros, “a propaganda baseia-se nos símbolos para chegar a seu fim: a manipulação das atitudes coletivas”. DELIMITAÇÃO DO TEMA No estudo das relações intersemióticas, que se apresentam de forma multifacetada, é admissível uma leitura das produções de mídia - particularmente, o gênero discursivo de propaganda enquanto um complexo semiótico composto por elementos persuasivos e retóricos, e não tão somente um veículo de informação. A análise da propaganda da linha de produtos cosméticos Natura segue sob um viés das várias manifestações ou multifaces em que o discurso midiático e publicitário se apresentam, de modo a explorar a estrutura do significado em que consiste todo o caminho até que ocorra a pretendida persuasão e a interpretação dos significados no plano da expressão e do conteúdo; desde a escolha dos atores ao plano de fundo e slogan. OBJETIVOS Como resultado efetivo deste projeto a ser apresentado, obter-se-á plena capacitação no processo de ressemantização do discurso midiático e domínio de elementos

argumentativos

que

poderão

compor

contextos

publicitários

e

propagandísticos ou meramente divulgar fatos em veículos de comunicação em massa. Enfim, cabe analisar a estrutura de propagandas em chamadas comerciais televisivas, desde uma visão mais sucinta e superficial ao olhar crítico indispensável

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para sua produção, tanto em seus respectivos extratos sonoros e visuais bem como às intenções sobre as quais são constituídos em linguagem verbal e não verbal (linguagem sincrética), de modo a atingir enfaticamente o telespectador. JUSTIFICATIVA A relevância deste projeto volta-se para a unidade discursiva enquanto proposta de construção de sentido e orientação argumentativa a partir de relações intersemióticas relacionadas a elementos persuasivos desenvolvidos no gênero propaganda, que se enquadra na comunicação pública, por dirigir-se a um público anônimo, apesar da abordagem ao telespectador como ser único e especial. A partir do referencial teórico da teoria semiótica de Algirdas Julien Greimas, constata-se sua funcionalidade, de forma interdiscursiva com a argumentação e o discurso publicitário – bem como seus artifícios - enquanto instrumento intrínseco na composição da publicidade em chamadas comerciais televisivas. HIPÓTESES É plausível o conceito de que para uma produção textual eficaz e eficiente, de qualquer cunho, é necessária a manipulação adequada do discurso de forma a atingir o leitor alvo, para que então seja possível persuadi-lo ou argumentar acerca do contrato fiduciário. Logo, para a exploração do objeto desta pesquisa, ou seja, a propaganda Natura UNA, recorrente em chamadas comerciais televisivas, antes de analisar os elementos argumentativos e persuasivos no gênero jornalístico em particular é necessário compreender, primeiramente o texto, partindo de um vértice amplo e geral para um mais específico. Devido ao conceito de propaganda difundido com maior força (desenvolvimento desencadeado através da Revolução Industrial, apoiado pelas relações comerciais sobre a população que era significantemente influenciável), a definição que, sucintamente, melhor lhe cabe e, ao mesmo instante, contextualiza historicamente, seria a apelação “ao sentido moral e social dos homens, aos sentimentos nobres e as suas virtudes”. Esta definição se interrelaciona à publicidade, à qual define-se enquanto apelação “para o instinto de conservação, os sentimentos, prazer, de conforto etc”.Pode, ainda, ser definida por alguns especialistas como “uma expressão de opinião ou ação por parte

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de indivíduo ou grupos, deliberadamente destinada a influenciar opiniões ou ações de outros indivíduos ou grupos relativamente a fins predeterminados”.E, para outros, “a propaganda baseia-se nos símbolos para chegar a seu fim: a manipulação das atitudes coletivas”. É relevante considerar, que esta pesquisa inicialmente se fundamentou na denotação de publicidade enquanto arte de exercer uma ação psicológica sobre o público, com fins comerciais e/ou políticos. E de propaganda, em sua denotação de coisas que devam ser propagadas. A partir destas considerações, foi possibilitada, ao máximo, uma correlação entre a origem do objeto de análise, a teoria discursiva greimasiana e os questionamentos para a instauração de hipóteses sobre o poder persuasivo do destinador sobre o telespectador. Ademais, também é considerável a política de consumo e de necessidade, que coíbem intrinsecamente para que ocorra o contrato e a sanção durante os comerciais televisivos. A propaganda da linha de cosméticos Natura, enquanto portadora de narratividade complexa, é estruturada nas quatro fases canônicas: a manipulação, a competência, a performance e a sanção. Partindo dos propósitos mais sucintos presentes num plano superficial de análise do discurso, a ressemantização de elementos num plano mais profundo, que revelam propósitos argumentativos e persuasivos induz o destinatário a acreditar e aceitar a promessa proferida pelo destinador. Neste corpus se faz uma leitura crítica do processo de desnudamento e reconstrução de mecanismos sintático-semânticos – responsáveis pela produção de sentido e compreensão das vozes eminentes no discurso midiático e sincrético, bem como da intenção de persuasão subtendida em seu todo sincrético. Ademais, considerando o texto publicitário enquanto universo pleno de significação, uma vez que são relevantes enquanto coeficientes na constituição de sua especificidade, os elementos indispensáveis no percurso gerativo de sentido: os aspectos eufórico e disfóricos; além dos níveis fundamental, narrativo e discursivo. Partindo do objetivo de Greimas, procura-se apreender a significação em sua globalidade, e não se restringir apenas à estrutura do texto (como ocorre na análise semântica), mas considerar, primordialmente, o sujeito e o contexto sócio cultural no qual está inserido e através do qual pode ser acessível e convencido pela emoção. Assim como o teórico belga propõe, o objetivo é a conexão direta entre ideologias e valores (ou axiologias) – enquanto níveis de organização e de significação do discurso, que, socializados, revelam-se como códigos; e a compreensão e capacidade de 841

manipulação do sentido enquanto possibilidade de transcodificação ou decodificação, mesmo que seja de um nível da linguagem a outro. Em propagandas publicitárias é comum que as categorias semânticas básicas do texto (parcialidade vs. totalidade) estejam inscritas na concepção de modelo e anti modelo e trajetória de conquista do objeto apreciado. O orador busca sua credibilidade diante do auditório (que neste caso - das propagandas - na maioria das vezes, é particular) e da persuasão do caráter do telespectador, que por meio da emoção se inscreve num embate entre o que de fato é e o que deseja tornar-se. A propaganda da linha de cosméticos Natura, enquanto portadora de narratividade complexa, é estruturada nas quatro fases canônicas: a manipulação, a competência, a performance e a sanção. Partindo dos propósitos mais sucintos presentes num plano superficial de análise do discurso, a ressemantização de elementos num plano mais profundo, que revelam propósitos argumentativos e persuasivos induz o destinatário a acreditar e aceitar a promessa proferida pelo destinador. ANÁLISE Propaganda Natura UNA – Linha de cosméticos O método de persuasão varia conforme o público, gênero, idade, ocupação e classe social ao (s) qual (s) o consumidor possa pertencer; enquanto o texto comunica significado através da materialização do código, que, por sua vez, tem sua função expressiva, diretiva, informacional, metalingüística e interacional; e as imagens são vinculadas um texto verbal, devido à propensão de ambiguidade. As propagandas direcionadas ao auditório feminino, particularmente, impõem como argumento excepcional de todo o processo de persuasão a representação do modelo e antimodelo de modo que a enunciatária seja levada a projetar-se no modelo “perfeito” de mulher que ilustra a propaganda e utiliza os produtos anunciados.

No

caso de propagandas de produtos de beleza, o modelo acompanha o princípio de que a mulher torna-se atraente, bela, perceptível e “mulher” a partir do momento em que se apodera dos produtos, como elementos mágicos. Contudo, a Natura projeta um pseudoposicionamento de antipropaganda, uma vez que, remetendo à marca e aludindo àquilo que é natural, não procura convencer a telespectadora a apropriar-se da maquiagem para ser notada como mulher e atrair olhares de outras mulheres e homens desejáveis, mas de que a vontade de “se pintar” é 842

inerente à sua essência e instintos naturais; assim como a mulher ideal em que se projetam todas as axiologias e concepções filosóficas. Há, portanto, uma sugestão de que a natureza está embutida no produto. Além do fato de que a marca desempenha um empréstimo de papel - pois não se apresenta como propaganda, mas como um elogio à natureza feminina e seus instintos naturais (que podem ser tencionados através do acesso aos produtos cosméticos da linha UNA). A mercadoria atrai o consumidor graças à imagem da propaganda – por isso, a importância da significação em várias perspectivas: a do produto, do consumidor, do slogan, da propaganda em si, das ideologias e axiologias instauradas, etc. Este argumento fundamenta-se a partir das imagens projetadas de mulheres de origens distintas e da produção musical que acompanha a enunciação (que deve ser considerado como discurso, inerente à propaganda e seus objetivos) que aludem ao percurso de evolução da mulher – desde as tribos primitivas à mulher que utiliza a linha de maquiagem anunciada. Todos estes elementos são inerentes à fase de manipulação – são argumentos mascarados como ícones publicitários que deliberam o poder do destinador sobre o auditório; e também correspondem à competência de um sobre o outro, uma vez que, neste contexto, há um processo de transformação, em que, como que por mágica, a maquiagem torna o antimodelo em modelo – com propósitos aparentes e ideológicos edificados. A fase da performance, bem como as sanções são desveladas no trailer evolutivo proposto pelas ilustrações, que induz o auditório a projetar-se no produto e percorrer de um estado a outro que, no nível discursivo concerne a concretude da conjunção entre a forma como a enunciatária é e a promessa de recompensa oferecida pelo enunciador. A partir da debreagem enunciativa e interna, na projeção da enunciação que é apresentada com efeito de real como se o discurso o imitasse e da ancoragem, a destinatária se identifica com o objeto desejado e reafirma suas características ideológicas e axiologias; além de se reconhecer como ser potente de auto realização (emotiva), efeito este, que ocorre devido à utilização de recursos de figurativização através do qual foi possível o reconhecimento do tema e produzida a ilusão referencial – que conduz a enunciatária ao reconhecimento das figuras de mundo e a crer na verdade delegada pela propaganda. Devido à persuasão pela emoção, há demasiado consideração pelos efeitos de sentido enquanto paixões, devido à complexidade do discurso e à modalização do 843

querer-ser e pelo valor desejado, definido por Greimas como estado de espera, em que o destinatário concerne à confiança ao destinador, de forma que seus objetivos e valores sejam alcançados. O anúncio preenche a carência de identidade de cada telespectadora, onde ocorre o processo de significação. Nesta fase, transforma-se, ao final, a carência da identidade em carência do produto – devido ao fato de a propaganda comprovar, inevitavelmente, a monotonia da vida cotidiana e oferecer fantasias para preencher o suposto vazio no ego da telespectadora, que vive, (assim como todos os seres), numa contradição entre o que é e o que gostaria de ser. Desta forma, nota-se que a propaganda apresenta-se como um mecanismo ideológico. O discurso propagandístico altamente elaborado e manipulador constroi um universo imaginário – no qual a telespectadora consegue materializar os desejos insatisfeitos de sua vida cotidiana. Além disso, a busca da felicidade e a realização pessoal foram reconhecidas como direito universal; fato que contribui com a aceitação da promessa e realização do contrato, pois o destinatário tem essa noção internalizada em seu subconsciente. A propaganda vai muito além da venda do produto: leva o sujeito a aderir, mas também, a um determinado modo de vida ou a incorporar alguns padrões de necessidade, que aludem à uma pseudo realidade. Enfim, com aparato na perspectiva greimasiana, apresentam-se como aspectos específicos, os mecanismos de análise e o processo de desvelamento da estrutura discursiva de propagandas em chamadas comerciais televisivas - desde uma visão mais sucinta e superficial ao olhar crítico indispensável para sua produção, bem como em seus respectivos extratos sonoros e visuais e intenções através das quais se atinge enfática, emocional e definitivamente ao telespectador Referências BARROS, D. L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo:Atual, 1988. BARROS, D. L. P. de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990. DELEUZE, G. Lógica do sentido. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1988. FIORIN, Jose Luiz. Elementos de Analise de Discurso. São Paulo; Contexto; 2006.

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A PRODUÇÃO ROMANESCA DE JOSÉ LINS DO REGO E A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO Isabella Unterrichter Rechtenthal (CNPq) UNESP/FCLAr Maria Célia de Moraes Leonel UNESP/FCLAr O presente trabalho - resultado da pesquisa desenvolvida ao longo do primeiro semestre do curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - visa relacionar os romances de José Lins do Rego a partir da observação da construção do espaço nas obras do escritor. Tomando-se o romance Água-mãe como corpus principal da pesquisa - narrativa em que o escritor paraibano sai do cenário do Nordeste e representa um espaço do Rio de Janeiro, as margens da lagoa de Araruama e a própria lagoa - pretende-se analisar a construção do espaço literário nesse romance para levantar e analisar semelhanças e diferenças na maneira como essa categoria narrativa é trabalhada em Água-mãe e em outras obras de José Lins do Rego. Para a análise, parte-se da leitura e fichamento de três tipos de textos: a) proposições teóricas sobre o espaço na literatura, como as de Osman Lins (Lima Barreto e o espaço romanesco, 1976), Iuri Lotman (A estrutura do texto artístico, 1978), Mieke Bal (Del lugar al espacio, 1987) entre outros; b) estudos sobre a produção reguiana e o regionalismo no Brasil, como os de Antonio Candido e José Aderaldo Castello (Presença da literatura brasileira, 1968), de Luis Costa Lima (A literatura no Brasil, 1970) e de José Aderaldo Castello (José Lins do Rego: Modernismo e regionalismo, 1961); c) estudos específicos sobre Água-mãe, como os de Olívio Montenegro – “O novo romance de José Lins do Rego” -, de Roberto Alvim Corrêa – “Reflexões à margem de Água-mãe” - e de Manuel Anselmo – “Um romance de José Lins do Rego”, que integram o título José Lins do Rego da coletânea Fortuna Crítica, organizada por Afrânio Coutinho (1991). 845

Definido pela crítica como um escritor regionalista – corrente literária que se destacou nos anos 1930 no Brasil e trazia como temática as realidades social e cultural de determinadas regiões do país -, José Lins do Rego produziu romances que possuem, segundo Luís Costa Lima (1970, p. 304), caráter documental, pois fixam o comportamento de figuras afetadas pela situação socioeconômica de certa área, a zona da mata nordestina. Além disso, as obras reguianas são marcadas por um tom memorialista e têm como contribuição fundamental a nostalgia em relação à terra dos tempos de infância e adolescência do escritor, que deixa transparecer, em grande parte da obra, o testemunho dos “últimos lampejos” (CANDIDO; CASTELLO, 1968, p. 251) de uma sociedade fundamentada na produção dos engenhos de açúcar, cuja substituição pela usina, em meados de 1930, determina um processo de revolução de toda a estrutura social e econômica da paisagem do Nordeste (CASTELLO, 1961, p. 71). José Lins do Rego dá a essa produção o nome de ciclo da cana-de-açúcar, ao qual correspondem os romances Menino de engenho, de 1932, Doidinho, de 1933, Banguê, de 1934, O moleque Ricardo, de 1935, Usina, de 1936 e Fogo morto, de 1943. Ambientados também no Nordeste são os romances Pedra Bonita, de 1938 e Cangaceiros, de 1953, que diferem dos acima mencionados por se passarem não mais na zona da mata, mas sim na zona sertaneja da região. Por fim, integram a produção regionalista do escritor os romances Pureza, de 1937 e Riacho Doce, de 1939, chamados por Candido e Castello (1968, p. 253) “produções independentes” por não possuírem a carga telúrica das obras anteriores. Além da produção ambientada no Nordeste, José Lins do Rego produziu dois romances que se passam no Rio de Janeiro e são considerados, portanto, obras não regionalistas pela crítica. Trata-se de Água-mãe - publicado em 1941 - e Eurídice publicado em 1947 - que, segundo Luís Bueno (2006, p. 465), são deixados na sombra, ofuscados pelo sucesso e pela importância do ciclo da cana, principalmente. Tratados como um grupo separado, ambos os romances possuem poucos estudos específicos e justifica-se, assim, a proposta de aprofundar a análise referente ao romance corpus da pesquisa. A narrativa de Água-mãe (1976) é ambientada na representação das margens da lagoa de Araruama, no Rio de Janeiro, e traz como tema o mistério e o terror do sobrenatural que as personagens sustentam pela chamada Casa Azul, habitação majestosa do lugar. A história de Água-mãe conta a vida e as relações de três famílias distintas, que residem nas margens da lagoa: a do Cabo Candinho, a da Dona Mocinha e 846

a dos Mafra. As duas primeiras – de Dona Mocinha e de Cabo Candinho – são naturais da região e pertencem a segmentações econômicas próprias do lugar – Cabo Candinho é o chefe de uma família de pescadores de camarão e Dona Mocinha é a dona da salina da Maravilha, que retira da lagoa a matéria prima da produção. Habitantes de longa data, as personagens centrais do romance partilham, junto às personagens secundárias – padeiros, outros pescadores, mercadores etc – do mesmo temor que predomina no lugar: o medo da Casa Azul, da qual acredita-se vir malefício. O leitor toma conhecimento, por meio do narrador, que esse elemento espacial é majestoso e belo, atrai os olhares dos viajantes e encontra-se abandonado na primeira parte do romance – intitulada “A Casa Azul”. Conta-se que os proprietários anteriores haviam se mudado e posto a casa à venda após diferentes acontecimentos trágicos dos quais ela havia sido palco, como mortes inesperadas, enlouquecimentos e suicídios dos familiares. Acontecimentos anteriores a esses, como falências, acidentes e aparições sobrenaurais também são contados nos primeiros capítulos do romance e reforçados no decorrer de toda a narrativa, mantendo-se assim o temor de todos os habitantes sobre a Casa Azul. Na segunda parte do livro – intitulada “Os Mafra” – a casa é comprada, reformada e passa a ser a morada de verão dos Mafra, família rica do Rio de Janeiro que passa as férias no lugar e retoma a vida na Casa Azul. Com o desenrolar da narrativa, os novos moradores chamam a atenção dos habitantes da lagoa de Araruama, que começam, aos poucos – principalmente os mais novos, filhos de Cabo Candinho e de Dona Mocinha -, a se relacionar com a casa e quebram os preconceitos que tinham a ela. Por outro lado, as personagens mais velhas – pais e cidadãos – mantêm sua opinião sobre o lugar e preferem não se relacionar com os moradores de lá. Com o passar do tempo, entretanto, o temor da Casa Azul é amenizado – “[…] aos poucos, a Casa Azul foi vencendo o terror dos pobres.” (REGO, 1976, p. 70) –, para ser retomado após a primeira desgraça – a morte de Lourival, filho do casal Mafra – à qual se seguem outras mais, mantidas até o final da narrativa. Cresce, assim, a crença de que a responsabilidade pelos acontecimentos é, de fato, da Casa Azul, que volta a ser evitada após as tragédias que recaem sobre aqueles que se relacionam com ela. Dada a Casa Azul como principal elemento de Água-mãe, faz-se necessário o estudo da construção do espaço para que se analise, entenda e avalie a importância dessa categoria para a constituição do tema da narrativa. É necessário, ainda, que se observe o modo como a casa é tratada pelo narrador e pelas personagens para a criação da atmosfera de mistério que envolve o romance. 847

Para a análise do espaço de Água-mãe parte-se, principalmente, das proposições teóricas de Osman Lins, reunidas em Lima Barreto e o espaço romanesco (1976), estudo no qual o teórico (LINS, 1976, p. 70) propõe o conceito de ambientação, definido como o “conjunto de processos utilizados pelo escritor para criar um determinado ambiente” que repousa sobre três tipos básicos: as ambientações franca, reflexa e dissimulada. A ambientação franca se dá pela introdução pura e simples do narrador, enquanto a reflexa necessita que as coisas sejam relatadas pelo ponto de vista de determinada personagem. Já a ambientação dissimulada exige uma personagem ativa que, conforme se locomove por determinado espaço, faz surgir objetos que a cerca, tornando visível o local em que se encontra. Em Água-mãe, tem-se a apresentação do espaço a partir das ambientações franca e reflexa, pois o narrador começa por descrever a lagoa e a Casa Azul de um ponto de vista externo para, no segundo capítulo, adotar o ponto de vista de diferentes personagens, revelando assim tanto o que elas veem - a lagoa, a Casa Azul, as salinas - quanto o que elas pensam sobre esses lugares. É desse modo, portanto, que o leitor toma conhecimento do apreço que todos sentem pela lagoa e do terror que sentem pela Casa Azul, optando sempre por manter a distância desse lugar. A disposição dos elementos espaciais no cenário de Água-mãe contribui também para a valorização e temor voltados à Casa Azul. Sabe-se que essa se encontra sobre uma elevação e em posição centralizada, situando-se entre as casas de Cabo Candinho e de Dona Mocinha e opondo-se, sobretudo, à lagoa de Araruama. Mieke Bal afirma, em “Del lugar al espacio” (1987), que “A menudo, un espacio será opuesto al otro.” (BAL, 1987, p. 104, grifo nosso) e pode atuar como “[…] marco [que] ostenta una función altamente simbólica.” (BAL, 1987, p. 102, grifo nosso). Em Água-mãe, a oposição entre o espaço da Casa Azul e o espaço da lagoa marca não só uma diferença física, como também representa conceitos opostos, tais como o mal e o bem, o silêncio e a agitação, a tristeza e a alegria e, principalmente, o infortúnio e a sorte. Embora seja a lagoa o espaço que mais privilegia as personagens, a quem essas possuem sentimento de gratidão, é em relação à Casa Azul que todos se unem e partilham do mesmo sentimento, optando sempre por respeitá-la e por manterem-se afastados, a fim de evitar os males que acreditam provir do lugar. Esse elemento atua, portanto, como símbolo destinado a reunir a todos os moradores em um mesmo propósito, aproximando-os e mantendo, assim, a ordem nas margens de Araruama.

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À simbologia do espaço proposta por Mieke Bal pode-se associar aquilo que Iuri Lotman chama, em “O espaço do texto artístico” (1978), de “modelização espacial de conceitos”, a possibilidade de utilizar a “[…] linguagem das relações espaciais […] para dar conta do real” (LOTMAN, 1978, p. 359), ou seja, valer-se de espaços distintos – como alto-baixo, interior-exterior – para representar valores variados, como válido-não válido, bom-mau, os seus-os estranhos etc. No caso de Água-mãe, os valores distintos concentram-se nos espaços da lagoa e da Casa Azul e fazem surgir aquilo de Lotman (1978, p. 373) chama de fronteira, conceito que separa, segundo o teórico, espaços e tudo aquilo que lhes é próprio, como seres bons de seres ruins, naturais de estrangeiros, pobres de ricos etc. No caso de Água-mãe, é nítida – embora não explícita – a fronteira que divide, primeiramente, o espaço da Casa Azul do resto do território da lagoa e, consequentemente, o mal proveniente da Casa da população de Araruama. Ao ultrapassar essa fronteira, as personagens do romance acabam por descompor a ordem pré-estabelecida e sofrem, portanto, as consequências por terem invadido o espaço maléfico representado pela Casa Azul: as mortes e desgraças que recaem sobre todos no final do romance. Com base nos resultados apresentados, observa-se que a construção do espaço em Água-mãe baseia-se, principalmente, nos seguintes aspectos: 1) a história passa-se em um microcosmo - nas margens da lagoa de Araruama; 2) há uma construção – a Casa Azul – que se destaca nesse microcosmo, sendo a responsável por manter, direta ou indiretamente, a ordem do lugar; 3) essa construção abriga, em geral, personagens possuidoras de grau mais elevado de instrução ou financeiro; 4) a construção opor-se-á ao resto do ambiente, sendo notável também a fronteira entre esta e o resto do espaço, opondo valores e, por vezes, estando em pontos mais elevados no lugar. A partir das observações, pode-se propor a aplicação dessa tipologia espacial às demais obras reguianas, como observado ao pensarmos em Menino de engenho (1970) e Banguê (1943). Em ambos os romances, a história passa-se nos limites do engenho do Santa Rosa, comandado pelo coronel José Paulino, avô de Carlos de Melo, personagem central do romance. Seguindo a tipologia encontrada com a análise de Água-mãe, temse o microcosmo no próprio engenho, sendo a construção de maior importância a casa principal, habitada pelo coronel José Paulino e seus familiares. São essas personagens – sobretudo o coronel - os responsáveis pela administração da produção da cana-deaçúcar e detêm, portanto, o poder no lugar, organizando e sobrepondo-se aos demais moradores do engenho, trabalhadores do cultivo da cana-de-açúcar. A casa principal 849

representa, assim, o local que concentra o poder financeiro e administrativo, opondo-se ao resto do ambiente e estabelecendo a fronteira entre ricos e pobres, escolarizados e analfabetos e patrões e empregados. A distribuição espacial de ambos os romances torna clara, portanto, a pirâmide social da região do final do século XIX e início do XX, acentuando a participação de José Lins do Rego na retratação da economia e da sociedade nordestina daquele momento. Conclui-se, portanto, que Água-mãe, embora siga temática distinta da maior parte da produção reguiana e fuja do cenário comum às demais narrativas do escritor, apresenta pontos em comum com as obras de cunho regionalista. É clara no romance a influência do espaço sobre as personagens, mas aqui, diferentemente das obras ambientadas no Nordeste, a influência é simbólica e indireta, distanciando-se da participação direta do ambiente na economia e na distribuição social observada na maior parte dos romances de José Lins do Rego. Referências ANSELMO, M. Um romance de José Lins do Rego. In: COUTINHO, E. F. (Org.) José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 379-384 BAL, M. Del lugar al espacio. In:_____. Teoría de la narrativa (una introducción a La narratologia). Madrid: Cátedra, 1987. p. 101-107. BUENO, L. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp, 2006. CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A. José Lins do Rego. In:_____. Presença da literatura brasileira III. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968. p. 250-276. CASTELLO, J. A. José Lins do Rego: Modernismo e regionalismo. São Paulo: Edart, 1961. CORRÊA, R. A. Reflexões à margem de Água-mãe. In: COUTINHO, E. F. (Org.) José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 373-377. LINS, O. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. LOTMAN, I. O problema do espaço artístico. In:_____. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 358-375. MONTENEGRO, O. O novo romance de José Lins do Rego. In COUTINHO, E. F. (Org.) José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 365-370. REGO, J. L. Água-mãe. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

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_______. Banguê. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943. _______. Cangaceiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. _______. Doidinho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. _______. Eurídice. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. _______. Fogo morto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. _______. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. _______. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. _______. Pedra Bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. _______. Pureza. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. _______. Riacho Doce. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. _______. Usina. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

DANTE XXI: O DIÁLOGO COM A DIVINA COMÉDIA EM UM DISCO CONCEITUAL DA BANDA SEPULTURA Jânder Baltazar Rodrigues UEMS

RESUMO O trabalho ensaia uma aproximação entre o poema A Divina Comédia, de Dante Alighieri, e o álbum conceitual Dante XXI, da banda de rock Sepultura, levando em conta aspectos estéticos e, principalmente, ideológicos dos dois objetos. Introdução Este texto constitui um desenvolvimento parcial de outro mais amplo, cujo objeto é uma comparação global – realizada no âmbito de um trabalho de Iniciação Científica, vinculado a um projeto de pesquisa do professor Ravel Giordano Paz, na UEMS – entre o poema A Divina Comédia, de Dante Alighieri, e o álbum conceitual Dante XXI (1998), da banda de trash metal Sepultura. Neste texto, centramo-nos principalmente nas questões ideológicas – e, no caso da Commedia, necessariamente teológicas – implicadas no trabalho comparativo.

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Ao longo da travessia do Inferno, na Commedia de Dante, é possível notar diveras alusões a imagens de pontes quebradas; por exemplo, quando da passagem de um fosso ao outro dentro do oitavo círculo, Malebolge – que é dividido em dez fossos –, onde se punem os fraudulentos. Rumo à saída do Inferno, Dante e Virgílio têm de lidar com pontes arruinadas e passagens difíceis, e ainda com intervenções cerceadoras por parte dos demônios e dos fenômenos infernais. Adiante, no Purgatório, haverá o clamor das almas, o clamor de Dante, pela expiação dos pecados, em face de seus ofuscamentos perante os emissários de Deus, os anjos; algo que é ainda mais intenso e desnorteador da percepção do poeta quando guia e discípulo chegam ao Paraíso. Tudo isso nos leva a refletir acerca das questões relacionadas às dificuldades das transposições na Divina Comédia. Essas questões são particularmente interessantes no âmbito de um estudo comparativo da obra de Dante com um trabalho que constitui uma espécie de transposição da Commedia para a realidade contemporânea, como é o caso do CD Dante XXI. Antes disso, porém, é importante perguntar quais fatores, presentes na concepção poética, ‘filosófica’ e/ou teológica da Divina Comédia, podem estar relacionados a esses empecilhos e desnorteamentos do poeta que perambulava na “selva oscura”. E por meio desta pergunta pretenderemos relacionar literatura, história e sociedade, para enfim chegarmos a Dante XXI e interrogá-lo a respeito de seus próprios percalços estéticos, ideológicos e histórico-sociais. 1. Entornos dantescos Ao longo de nosso estudo, mostrou-se importante, tendo em vista que o fito é elaborar comparações estéticas e históricas das representações literárias, observar o caráter religioso – mais propriamente cristão – imanente aos objetos. Pois segundo Momigliano: Os maiores documentos do pensamento cristão, nesse período de transição da literatura romana para a literatura italiana, pertencem aos séculos XI e XII, e são representados pelas obras dos filósofos escolásticos – mas também estrangeiros. À escolástica, que no século XIII produzirá São Tomás de Aquino, cinge-se, como a uma das suas raízes vitais, o poema de Dante, que nos mestres da filosofia irá buscar, não somente o acervo do seu pensamento como também atitudes mentais características. (MOMIGLIANO, 1948, p. 7)

De fato, mesmo no que se refere às situações políticas é possível reconhecer a necessidade de se observar os motivos religiosos na Divina Comédia. Basta comparar

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vários de seu versos com trechos bíblicos, ou ainda algo do que nos chegou dos Padres do Deserto. Não apenas muitas imagens são semelhantes, mas também muitos aspectos da maneira de pensar, o que atesta a ideia de Momigliano de que Dante recebe e sintetiza a experiência de seus precursores. De acordo com o pensamento cristão, os pecados podem ser punidos pelo menos de duas maneiras: a primeira é em vida, onde o sujeito recebe maldições por desrespeitar os mandamentos de Deus (o fenômeno mais recorrente é a lepra); a segunda é no mundo dos mortos, seja no Inferno (eternamente) ou no Purgatório (apenas durante a expiação, que dará depois passagem ao Paraíso). O que há de comum nas formas de pensamento recorrentes tanto em Dante, na Bíblia e em Tomás de Aquino é a ideia de que as ações terrenas têm uma consequência, não derivada diretamente das próprias ações (causa e consequência), mas aplicada por um ser supremo e criador, Deus. É importante lembrar que, ao tempo de Dante, os novos ricos burgueses começavam a ocupava o poder dos antigos monarcas. Segundo Cristiano Martins, em prefácio à sua tradução da Commedia, em determina época o poeta florentino pretendia (...) intitular-se a um posto de relevo – compatível com seu talento e condição – na administração da República. Era, entretanto, requisito da lei florentina que os cargos e funções públicas só podiam ser exercidos por cidadãos inscritos no registro profissional das artes e ofícios mantido pelo Estado – as famosas Corporações. A democrática Florença ambicionava excluir de seus quadros dirigentes os fidalgos ociosos, isto é, que não pudessem apresentar outros títulos que não os da pura ascendência nobiliárquica. (MARTINS, in ALIGHIERI, 1979, p. 52.)

Esse contexto é importante para entender diversos episódios da Commedia, como o Canto XXI do Inferno, no qual Dante descreve o local onde os corruptos eram punidos. Assim, a princípio é sob a influência cristã1 que se aparentam desenvolver as questões políticas da Divina Comédia. Os retos, ou seja, os homens de boa fé e boa ação pública são destinados ao Paraíso ou ao Purgatório – os pecadores não arrependidos, para o Inferno. A partir daí, pode-se demonstrar que o universo religioso e político quase não possuem distinção um do outro na Divina Comédia. A virtude que, por várias vezes, cega Dante no Paraíso, lhe ensina a fé cristã, e, para o poeta, tal fundamento guia não apenas ao bem estar e paz espiritual, mas à competência administrativa da cidade e do mundo cristão. O que não significa devoção ao papa, pois Dante por seguidas vezes 1

Dissemos “a princípio” porque também é preciso sublinhar as referências à mitologia grega (entre outros elementos) na Comédia, possivelmente usando como base As Metamorfoses de Ovídio.

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condena a Igreja por descaminho, pondo papas no Inferno, assim como sacerdotes corruptos que ocupam de cargos importantes do clero. Se no mundo, embaixo lá, pusesse a mente na, que Natura deu, distribuição, e a acompanhasse, boa seria a sua gente. Mas vós torceis para a religião um que nasceu para se cingir da espada, e tornais rei quem apto é pra sermão; e é o nosso rumo assim fora da estrada.2 (ALIGHIERI, 2001, p. 148).

Este pode não parecer um dos trechos mais expressivos da Comédia, mas a partir de duas frases do primeiro terceto – “al fondamento che natura pone” e “avria bona la gente” – pode-se demonstrar que a distinção atual entre fé e política não é de todo válida para Dante (o que, como veremos, é fundamental na comparação com o álbum Dante XXI). Antes de chegar a esse terceto, Dante discorre sobre o livre arbítrio e a perfeição. A partir da fala de Carlos Martel a respeito de como um mau filho pode derivar de um bom homem, o poeta reflete sobre o livre arbítrio: Deus destinou a cada ser as propriedades virtuosas em plenitude; no entanto, através do livre arbítrio o homem tem a possibilidade de se afastar de tais virtudes. Desse modo, Dante conclui que deve ser essa dádiva – o livre arbítrio – deve ser mais negada do que aceita pelos homes, para satisfazer a Deus e encaminhá-los à retidão. O que poderia fundamentalmente produzir bons reis e sacerdotes, pois estariam todos cumprindo aquilo que foi criado em estado de perfeição e recusando o pecado original. Contudo, Dante se vê algo distante de tal modelo. Ele não está na Terra, e não por acaso o encontramos perdido na selva oscura, arriscando o sono dos parvos. Dante não é capaz de fitar prolongadamente o semblante dos anjos, pois é incapaz de compreender a Divina Graça da Providência em sua perfeição, assim como suas revelações – que receberá ao contemplar rapidamente uma leve sombra imersa no fulgor da luz, na qual imperava a Trindade – no mais alto círculo celeste, após a Rosa dos Beatos. 2

No original (transcrito na edição biíngue): “E se'l mondo là giù ponesse mente / al fondamento che natura pone, / seguendo lui, avria bona la gente // Ma voi torcete a la religione / tal che fia nato a cingersi la spada,/ e fate re di tal ch'è da sermone: // onde la traccia vostra è fuor di strada.”

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Se dissemos que Dante tinha ofuscamentos ao contemplar a Graça de Deus, assim como dificuldade em constatá-la, também é preciso notar, para além da limitação humana perante o sobrenatural, que o poeta adentra no Inferno, e ainda no Paraíso, carregado de pecados, conforme se vê no canto décimo segundo do Purgatório, onde se purificam os orgulhosos e onde ele mesmo deveria purgá-los, quando o peso sobre suas costas da cornija o torturasse após sua morte. Desses breves sobrevoos, o importante é tentar fixar de que forma a alegoria religiosa parece atuar nos versos dantescos. O poeta da Commedia, resgatando um passado histórico e literário supostamente grandioso, sintetiza elementos da teologia de São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Ovídio, Virgílio, dentre outros. Como resultado desta síntese cremos que, uma vez montado seu plano ideológico e estético, Dante intenta, além de denunciar a lupanar Florença decadente, transcendê-la. Assim, a via de saída da selva escura e do Inferno é a purificação no Purgatório e, em seguida, o recebimento da revelação divina no Paraíso. Algo como a máquina do mundo em Camões, porém de outra forma: de certo modo, entendida como compreensão do mundo e domínio (político) do mesmo. Desse modo, n’A Divina Comédia podemos encontrar algo semelhante à Trindade, sendo esta, porém, no poema, estabelecida ente os homens, suas ações e Deus, na forma do seguinte esquema: os homens, filhos de Deus, foram criados, como todas as coisas, segundo a perfeição da Providência; porém, recebido o livre arbítrio, coube aos homens decidir entre seguir ou não os mandamentos do criador. As consequências dessas escolhas e o que lhes afeta em vida ou no outro mundo cabe ao domínio de Deus, que aos homens tutela e julga. 2. Sondagem ao sepulcro Tendo em vista o que tratamos anteriormente, podemos traçar alguns comentários ligeiros sobre o álbum Dante XXI. Um primeiro elemento a ser levado em consideração – mas ao qual não nos dedicaremos extensamente aqui – é o teor altamente significativo dos arranjos musicais, incluindo os vocais guturais, no estilo trash metal, ao qual pertence a banda Sepultura, sobretudo por sugerirem uma ambientação negativa ou infernal. Nesse sentido – e levando-se em conta, é claro, as letras da banda –, é possível situar histórica e esteticamente a produção do Sepultura na tradição da poesia negativa estudada por Hugo Friedrich em seu conhecido trabalho sobre a lírica moderna.

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Embora, como veremos, um dos conceitos-chave de Friedrich – o de “transcendência negativa” – seja aqui mais problemático, é muito sugestiva, nesse caso, a ideia de dissonância que Friedrich aplica à lírica europeia do século XX, particularmente aos escritos de Rilke, Trakl e Apollinaire: Sua obscuridade o fascina, na mesma medida em que o desconcerta […] Essa junção de incompreensibilidade e fascinação pode ser chamada de dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade. (FRIEDRICH, 1978, p.15).

As letras de Dante XXI traçam um painel caótico do mundo contemporâneo, cuja configuração política e social pode ser comparada mas de forma alguma identificada com a do tempo e espaço de Dante Alighieri. Daí a ideia de ‘atualização’ contida na especificação XXI, obviamente aludindo ao século atual. “Dark Wood of Error”, a primeira letra do álbum, aborda a falência das ditas instituições burguesas modernas, que na época de Dante apenas iniciava seu desenvolvimento. Assim, o que se tem são duas realidades históricas que comportam crises sociais e políticas, embora de configurações opostas: uma de ascensão burguesa e outra (na visão do Speultura) de decadência capitalista. Uma breve comparação entre “Dark Wood of Error” e o canto primeiro do Inferno deixa claro como o Sepultura não apenas resgata como reconstrói elementos da Commedia dantesca: I've lost my way In a dark wood of error In a crisis, inside deep terror With fear in my mind… (SEPULTURA, 1998)

Da nossa vida, em meio da jornada Achei-me numa selva escura Tendo perdido a verdadeira estrada” (ALIGHIERI, 2001, p. 22).3

Percebe-se, nesses dois inícios, uma semelhança construtiva; entretanto, na continuidade da letra do Sepultura percebemos que os demônios – as “bestas” – de

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No original: “Nel mezzo del cammin di nostra vita/ mi ritrovai per una selva oscura/ ché la diritta via era smarrita.”

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Dante XXI não são seres tidos como reais (como na Commedia), e sim metáforas de instituições políticas modernas:

The beast from the UK The beast from the US The human beast was unleashed To solve the problems in the world, but they don't! (SEPULTURA, 1998)

Em consonância com isso, a ideia de “salvação”, em Dante XXI, não corresponde ao Paraíso, como fica claro a última canção do álbum, “Crown and Miter”: “I had learn, salvation / To find my place in the world we live” (SEPULTURA, 1998). Assim, no disco do Sepultura não se almeja nem uma transcendência metafísica como na Divina Comédia nem a “transcendência vazia” referida por Hugo Friedrich em relação à lírica negativa. Em Dante XXI, as ações humanas são responsáveis pelas próprias consequências, sem o intermédio de Deus ou do sobrenatural, de modo que a única saída possível (“There is a way out”, como afirma, ainda, “Crown and Miter”) é uma transcendência social e histórica. Referências ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 2001. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: da metade do século XIX a meados do século XX . São Paulo: Duas Cidades, 1978. MARTINS, Cristiano. “A vida atribulada de Dante Alighieri.” In: ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. São Paulo: EDUSP, 1979. MOMIGLIANO, Attilio. História da Literatura Italiana: das origens até os nossos dias. São Paulo: Editora Ipê, 1948. SEPULTURA. Against. [Compact Disc] Roadrunner Records, 1998.

MÁRIO E PESSOA: FORMAS DE VIDA DA SAUDADE E DA AMIZADE Jéssica Cristina Celestino (CAPES-INEP) [email protected] 857

UNIFRAN Matheus Nogueira Schwartzmann [email protected] UNIFRAN RESUMO: O presente artigo tem como objeto de estudo dois poemas (“Horae subcessivae” e “SáCarneiro”) escritos pelo poeta Fernando Pessoa, inéditos até o lançamento da “Correspondência com Fernando Pessoa”, organizada por Tereza Sobral Cunha, que reúne o conjunto completo de cartas que Mário de Sá-Carneiro enviou a Pessoa. Os textos, que até hoje restam pouco conhecidos pela crítica, destacam-se do resto da obra do poeta Fernando Pessoa pela inusitada particularidade de tratarem, especificamente, da figura de seu companheiro de geração. Assim, além de lançar luz sobre essas produções de Pessoa, o objetivo deste trabalho é apresentar o modo como, nesses dois poemas, é figurativizada e tematizada a saudade, afeto caro à obra dos dois modernistas portugueses, e, em um segundo momento, como a imagem da amizade entre os dois poetas – retomada até mesmo pela edição das cartas – é neles construída. Para isso, vamos nos valer dos preceitos teóricos propostos pela Semiótica francesa, focando-nos, principalmente, nos processos de figurativização e tematização, na hierarquização das isotopias, nas paixões e formas de vida. PALAVRAS-CHAVE: Fernando Pessoa; Sá-Carneiro; semiótica; identidade; formas de vida. INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo analisar dois textos distintos de Fernando Pessoa e apontar o modo como o poeta português constrói neles a sua ideia de saudade e amizade ao mesmo tempo em que discorre sobre o fazer poético. Os textos escolhidos como integrantes de nosso córpus são os dois poemas “Horae subcessivae” e

“Sá-Carneiro”,

dedicados direta ou indiretamente

ao

poeta

contemporâneo e amigo de Pessoa, Mário de Sá-Carneiro. Desse modo, nossa pesquisa também buscará mostrar a face desse Sá-Carneiro que surge nos textos do amigo saudoso, envolto em laços de profunda amizade e poeticidade. Acreditamos poder contribuir para que se conheça uma nova faceta de Fernando Pessoa, tão lido, analisado e conhecido, já que analisar a sua visão sobre Mário de SáCarneiro a partir de seus textos literários pode revelar aspectos ainda não conhecidos da sua escrita e do seu estilo. Esta análise justifica-se também pelo fato de, graças às tão conhecidas cartas de Sá-Carneiro, conhecermos uma imagem de Pessoa arquitetada sob o ponto de vista do

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amigo suicida, mas não o contrário. Ou seja, a pesquisa debruça-se sobre um campo pouco explorado, ainda que estes dois já tenham sido muito estudados. Vale ressaltar ainda que a pesquisa pode contribuir para os estudos pessoanos por mostrar um raro momento artístico de Fernando Pessoa em que o autor, aparentemente, revela uma forma de intimidade ortônima (a grande amizade, o amor pelo amigo), ao falar sobre a poesia, sobre a amizade, entre outros temas. Logo, nosso trabalho pretende, ainda que não de forma exaustiva e adotando um tom mais ensaístico, lançar luz a textos de Fernando Pessoa pouco conhecidos do grande público leitor; expandir a visão sobre sua obra, que ainda hoje permite novas abordagens, e também, reconstituir, a partir dos seus textos, a imagem de um SáCarneiro retratado como gênio da Literatura. É assim que partimos na direção da descrição do universo figurativo da saudade pessoana, buscando evidenciar como esse conceito está estritamente ligado à noção de amizade, arquitetando a imagem de SáCarneiro sob o ponto de vista de Pessoa. Para a execução do trabalho, empregamos como metodologia a teoria semiótica francesa desenvolvida por Algirdas Julien Greimas, focando-nos, principalmente, nos conceitos de figuras e temas, isotopia, formas de vida e paixões, sem, no entanto, excluir do nosso campo de trabalho leituras de fortuna crítica e de outros teóricos que tratam da poesia e do fazer literário. 1 ELEMENTOS DE TEORIA Utilizaremos os pressupostos teóricos da semiótica francesa, como preconizados por Algirdas Julien Greimas, atentando-nos aos conceitos de figura, tema, isotopia, formas de vida e paixão. Para isso, partiremos do percurso gerativo de sentido, estruturado por três níveis, no que concerne ao plano de conteúdo. Os níveis constituintes do percurso gerativo de sentido são: 1. o nível das estruturas fundamentais, responsáveis pela oposição semântica de base e a delimitação dos valores no texto; 2. o nível das estruturas narrativas, que simula a história do homem em busca de valores, apresentando, assim, as relações transitivas entre sujeitos de fazer e de estados e seus respectivos objetos; e, 3. o nível das estruturas discursivas, onde são examinados os recursos aplicados no discurso e as relações entre enunciador e enunciatário.

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A teoria semiótica tem suas raízes nos conceitos saussurianos (GREIMAS; COURTÈS, 2008, p. 329), pois busca o sentido a partir das relações de diferenças presentes num texto, sejam diferenças semânticas, sejam transformações narrativas. Já o texto é tomado, pela teoria, como um objeto de significação em que se analisa a construção do sentido por um viés imanente, tomando-o como um “todo de sentido” organizado que se dá à apreensão. Partimos assim da concepção de texto como objeto de significação que compreende o sujeito da enunciação como os sujeitos do dizer: enunciador e enunciatário. Sendo assim, torna-se imprescindível compreender o percurso gerativo de sentido, pois tal procedimento identifica e classifica as diversas manifestações linguísticas, aplicando os três níveis que o compõem. Estes, além de permitirem a apreensão do conteúdo em várias etapas e permitem que o analista, segundo o texto analisado, determine quais níveis melhor conduzirão a análise. Segundo Greimas e Courtès (2008, p. 234) o nível das estruturas fundamentais é considerado o mais profundo e abstrato: profundo por abstrair do texto, através da leitura e interpretação, as oposições semânticas que o fundamentam, e abstrato porque essas categorias semânticas opositivas não estão explícitas. Vista também como simples, as estruturas fundamentais, apresentam o ponto de surgimento de sentido, pois determinam o mínimo de significação a partir da relação de diferença entre termos, ou seja, é o mínimo de sentido em que o texto se ergue. Dessa forma, define-se apenas a estrutura elementar de significação que ordena os diferentes conteúdos do texto, e resulta em uma oposição fundamental de base, geralmente, representada por substantivos abstratos que possuem algum traço em comum, como por exemplo, vida versus morte; opressão versus liberdade, entre outras. Ainda no nível fundamental identificamos uma classificação axiológica, conjuntos de valores investidos nas categorias de oposição semântica (GREIMAS; COURTÈS, 2008, p. 233-234). Estas, por sua vez, podem ser eufóricas (positivas) ou disfóricas (negativas) segundo a construção valorativa do texto. Com isso, as atribuições valorativas das categorias depreendem os valores do sujeito. Para ordenar essa rede de valores, pode-se recorrer ao quadrado semiótico que representa as relações entre as categorias opositivas ou, de uma maneira mais ampla, representa os resultados da análise. O quadrado semiótico esquematiza as relações entre termos contrários, contraditórios e complementares, permitindo que a partir dessas noções reconhecemos as mudanças de estado dos sujeitos. 860

O nível intermediário, das estruturas narrativas, além de se apresentar como princípio organizador do discurso (GREIMAS; COURTÈS, 2008, p. 328), simula a história e o fazer do homem, como também, representa os contratos e conflitos que marcam as relações humanas, por isso, surge aqui dois sujeitos, um do fazer e outro do estado. Nesse sentido, esse nível trata das transformações de estados dos sujeitos, ou seja, da narratividade, característica pertencente a qualquer texto, pois própria dos discursos. Para explicar as relações entre os sujeitos, as estruturas narrativas, estabelecem subdivisões dependentes entre si. Primeiro, de forma mais abrangente identificamos o esquema narrativo, em que descobrimos o sujeito destinador (que faz fazer) e o sujeito destinatário (quem faz a ação). Em segundo lugar, temos o esquema narrativo canônico responsável pela organização do percurso de cada sujeito. Nele encontramos um processo composto, conforme pode-se ler no verbete “Narrativo (esquema)”, no Dicionário de semiótica (2008, p. 330-4), por quatro fases: 1) manipulação, que motiva o sujeito a agir levando-o a um querer e/ou um dever-fazer; 2) competência, em que um sujeito cognitivo torna-se competente através da aquisição de um objeto modal possibilitando-o a agir por meio de um saber e/ou poder-fazer; 3) performance, o fazer do sujeito gera a transformação de disjunção para conjunção com o objeto valor ou viceversa; 4) Sanção, é a fase do julgamento do sujeito pelo seu fazer, ela pode ser positiva ou negativa. Esse processo resume-se na relação entre um sujeito que faz fazer e o outro que aceitando a manipulação estabelece um contrato de confiança (fiduciário) com o primeiro que se deixa manipular. Dessa forma, o manipulador atribui qualificações que modalizam o sujeito. Cada uma dessas fases pode ser então chamada de “programa narrativo” o qual explicita as relações de transitividade entre actantes (sujeitos atuantes na narrativa). Cada sujeito tem seu próprio percurso, e os programas narrativos (PN) são expressões esquematizadas das ações e transformações ocorridas na trajetória desse sujeito. Desse modo, um programa narrativo indicará uma função (F) em que um sujeito de fazer (S1) transforma (→) um sujeito de estado (S2) levando-o a conjunção (∩) ou disjunção (U) do seu objeto valor (Ov). Assim, temos a seguinte expressão: PN: F: S1→ (S2 ∩/U Ov). Tais modificações podem levar a estados afetivos, dos quais surgiriam as paixões e seus efeitos de sentido. As paixões, se as tomamos em uma perspectiva narrativa, são formas afetivas que regulam os estados de alma do sujeito, afetando o percurso do ser. Toda vez que um 861

sujeito expõe sensações, corporais ou comportamentais, ele explicita uma paixão, por isso, o conceito de paixão está diretamente ligado à organização das modalidades: querer/poder/saber/dever/crer. As paixões podem ser simples (efeitos de sentido de uma única relação modal), ou complexas (resultantes de um encadeamento de percursos passionais). Como veremos, o poder e o querer serão os agentes modais centrais da organização patêmica dos sujeitos nos poemas, já que responsáveis pela euforização e pela disforização da ausência e da presença do objeto amado. No nível das estruturas discursivas, examinam-se os mecanismos que permitem a organização do mundo em termos linguísticos. As figuras investidas no texto remetem sempre a um elemento do mundo natural – buscando criar um efeito de realidade – enquanto os temas são investimentos semânticos de natureza conceitual que não remetem ao mundo natural, mas categorizam e organizam o mundo. Quando se tem um encadeamento figurativo ou temático, tem-se uma isotopia, que é a recorrência de figuras ou temas que dá coerência ao texto. Cada isotopia pode ser considerada como uma “grade” de leitura do texto, possibilitando certa polissemia, ou seja, duas ou mais formas de ler um único texto que se apoiam nesses encadeamentos. Vale dizer, no entanto, que embora múltiplas leituras possam ser possíveis, sempre serão limitadas: várias, porém não infinitas. Normalmente a pluriisotopia está apoiada em um conector de isotopia, isto é, um termo polissêmico (um tema ou figura) que permite duas leituras distintas. Em um dos textos de Pessoa que analisamos, a “viagem” é uma forma de conector de isotopia, pois liga a isotopia férrea (ligada a /comboio/, /gare/) à isotopia de morte (ligada à /morte/, /paisagem sepulta/). Em relação à sintaxe discursiva Diana Luz Pessoa de Barros explica: As estruturas narrativas convertem-se em estruturas discursivas quando assumidas pelo sujeito da enunciação. O sujeito da enunciação faz uma série de “escolhas”, de pessoa, de tempo, de espaço de figuras e conta ou passa a narrativa, transformando-a em discurso. O discurso nada mais é, portanto, que a narrativa enriquecida por todas essas opções do sujeito da enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona com o discurso que enuncia (BARROS, 1990, p. 53).

Ao produzir o discurso, o enunciador pode criar um sentido de objetividade e distanciamento da enunciação (debreagem enunciva) projetando no enunciado um “ele, “lá”, e “então”. Ou, pode provocar sentido inverso, de subjetividade e aproximação (debreagem enunciativa) por meio da projeção de um “eu”, “aqui” e “agora”, no

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enunciado. Essa relação à pessoa, tempo e espaço também pode ser neutralizada com a denegação do enunciado (embreagem). Nas poesias analisadas, como veremos, a subjetivação da linguagem será sempre grande, algo frequente na tradição desse tipo de texto. 2. A AMIZADE DE PESSOA E SÁ-CARNEIRO: HISTÓRICO

Tanto Fernando Pessoa como Mário de Sá-Carneiro nasceram em Lisboa, o primeiro em 1888 e o segundo em 1890. Fernando Pessoa passou sua infância na África do Sul vivendo com a mãe e o padrasto, pois ficou órfão de pai aos cinco anos. Estudou o ensino regular em inglês e em 1905 regressou a Lisboa matriculando-se na Faculdade de Letras e Filosofia, cursando-a por pouco tempo. Pessoa colaborou com a revista A Águia (1912) e coordenou a Orpheu (1915), época em que conheceu Mário de SáCarneiro. Dois anos mais novo que Pessoa, Sá-Carneiro, ficou órfão de mãe aos dois anos, filho único, concluiu o curso liceu e foi viver sozinho em Paris. Matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Paris, que cursou irregularmente. Ambos os poetas trocavam correspondências, Sá-Carneiro confidenciava ao amigo suas poesias, compartilhavam ideias e vivências. Pessoa e Sá-Carneiro eram os poetas que se destacavam dentre os orphistas, por apresentarem a consciência da grandeza de ser poeta e, talvez, por isso, aproximaram-se numa relação de compreensão e carinho mútuo. A morte do poeta, que neste trabalho será discutida por meio de sua apreensão por Pessoa, por um processo de estetização da vida, segundo o que dizem muitos críticos, teria ocorrido, na época em que Sá-Carneiro passava por problemas financeiros, graças à sua incomum sensibilidade, sua introjeção, e a megalomania e o egocentrismo a ele imputado. Tudo isso teria então o conduzido à loucura e ao suicídio. Cleonice Berardinelli, por exemplo, indica que, por essa razão, pela loucura, chegou avisar a seu amigo por carta que se suicidaria, tendo cumprindo a promessa em 1916, no dia 26 de abril, aos 26 anos. No entanto, outras leituras dessa relação de Sá-Carneiro são possíveis. E justamente recorrendo aos textos do conjunto epistolar de Sá-Carneiro, uma segunda leitura, menos marcada por um romantismo fora de época torna-se possível. É o que afirma Matheus Schwartzmann (2009, p. 225), ao dizer que em uma das últimas cartas de Sá-Carneiro, ele aponta para Pessoa “a sua ‘doença moral’ como a razão de seu destempero, avisando, ainda, que o ‘dinheiro’, a sua eterna questão, já ‘não é tudo’,

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ao menos não como o era em carta do mês anterior”. Na referida carta, a razão do suicídio seria “a questão ‘mesquinha’ da falta de dinheiro (ou seja, o sustento do corpo, da vida cotidiana, das coisas banais e inferiores)” (SCHWARTZMANN, 2009, p. 225), o que indicaria, ao contrário do que afirma Berardinelli, a lucidez do poeta frente às dificuldades da vida, e não a sua loucura, já que pode ainda, na hora última da vida, explicar-se e encontrar razões e lógica para os seus atos. Com a morte do amigo, esperada e sentida à distância, Pessoa (BERARDINELLI, 1958, p.7) perde o entusiasmo e deixa de realizar atividades coletivas. Isola-se. Se SáCarneiro teve a coragem de por um fim à vida que o angustiava, Fernando Pessoa buscou nas máscaras que se colaram à sua cara, na heteronímia, uma solução para a sua angústia existencial. 3. A AMIZADE COMO CONSTRUÇÃO DISCURSIVA Embora recorramos à teoria semiótica, já explicitada anteriormente, seguiremos uma abordagem aqui que, se um por um lado pode ser arriscada, parece dar conta dos anseios de um artigo científico. Influenciados ainda pela crítica, é no tom ensaístico, e por meio de uma análise global, ainda que sob uma reflexão de base linguística, que damos continuidade às nossas análises. 3.1. O Sá No enunciado de abertura do poema Sá-Carneiro escrito em 1934, “Nesse número de Orfeu que há de ser feito/ Com sóis e estrelas em um mundo novo”, vemos a introdução das figuras “sóis e estrelas”, e “um mundo novo” que marcarão as isotopias eufóricas do poema, na ideia de reencontro futuro. Percebemos esse aspecto futuro marcado pela locução verbal “há de ser feito” que indica circunstâncias de um tempo não real, mas que tem a possibilidade de vir a ser, indicando um claro programa narrativo de reencontro virtual, potencial, mas não realizado. Se tomarmos a ideia de epígrafe como base já da leitura desse poema, veremos que as duas acepções nos dadas pelo Houaiss fecham bem a isotopia central de leitura: “inscrição (‘palavra ou frase que se grava’)” e “título ou frase que, colocada no início de um livro, um capítulo, um poema etc., serve de tema ao assunto ou para resumir o sentido ou situar a motivação da obra; mote”. Na inscrição temos a abertura de uma pluriisotopia que remete à lápide, já que uma inscrição é também algo que se grava de maneira perene, na pedra, em

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medalhas e monumentos, como se as palavras aí postas fossem já as palavras últimas, in memoriam de um Sá-Carneiro que já se foi. Tal leitura é possível pelas ideias que circulam no texto: “morte”, “eternamente”, “infecundo” e “triste”. A noção de epígrafe como mote justifica ainda mais a tomada do tema da morte como o tema central do poema: morte vs vida, firmam-se aqui como a oposição semântica de base. No entanto, a figura “mundo novo” pressupõe uma ruptura com o “velho”, e como temos um discurso que fala sobre o “fim”, o término, poderíamos pensar que o “mundo novo” refere-se a um recomeço, como no verso que virá depois, “Nessa ida que afinal é um regresso”. Tem-se assim a euforização do percurso da morte, já que se cria uma noção de vida post mortem. É interessante observar o uso da debreagem actorial, espacial e temporal enunciativa, em que o sujeito da enunciação projeta-se em primeira pessoa “Nunca supus”, e cria, assim, o efeito de sentido de subjetividade, de aproximação da enunciação, como também, estabelece um espaço “aqui” e um tempo “agora”: nesta “prisão fechada que é o mundo”. Mas o eu enunciador traça uma linha discursiva em que as figuras “novo” e “velho” trazem, respectivamente, o futuro e o passado. Dessa forma, futuro (novo) e passado (velho) são construídos pelo uso dos tempos verbais: a) passado: “supus”, “Tivesse”, “Seguisses”; b) presente, onde se cria a expressão de presentificação temporal: “chamam”, “manda”, “tem”, “segue”, “vou”, etc; c) e, futuro: “darão”, “Encontrarei”. No passado havia vida, no presente há morte e no futuro haverá vida outra vez: um movimento circular de renovação. No discurso, há recorrência de traços semânticos de recordações afetivas que nos permitem uma leitura do tema amizade, como por exemplo: “Café Arcada” que configura um cotidiano dessa amizade. Outro tema, a saudade, é percebido pela falta que o sujeito sente do objeto: “Sei que falho de ti, estou um a sós”, “desejo de termos companhia”. Inferimos, aqui, a ligação da amizade e da saudade com o amor: “O amigo enorme que a falar amamos”, essa bem querência do sujeito apresenta significativa profundidade, tanto que se estende para o futuro: “No terminus de tudo, ao fim lá estou” em um “Mundo Novo”, aqui percebemos, por meio das figuras, que a afetividade é incondicional e que ultrapassa a fatalidade, daí a relação com o amor. Ainda tratando desses temas, observamos as figuras: “lei certa”, “falsa sorte”, que reafirmam a fatalidade, pois se consideramos “lei” algo imutável e “falsa sorte” um destino mentiroso, temos a morte como algo certo, mas a maneira com que se deu tal acontecimento não é verdadeira: “Morto? Não sei que pensamento/ Te ponha ao lado de 865

morreres”, assim, o texto trata da morte mesmo que indiretamente como um falso destino do amigo. Com isso o tema da tristeza também aparece representado pela figura “paisagem sepulta” e nos seguintes trechos: “coração é inerte e infecundo”, “sonho que está triste”. Desse modo, a incompletude do sujeito, toda a ausência sentida, é bem marcada no seu discurso: “Seguisses, e adiante do em que vou”, “Éramos como um diálogo numa alma”, “falho de ti”. É justamente nesse sentido que identificamos uma enunciação da saudade e da amizade. Como sabemos, a isotopia é o desencadeamento de unidades semânticas, sejam temas ou figuras, que agem como fios condutores da coerência. Vimos anteriormente recorrência de figuras e seus respectivos temas. A partir das figuras que tematizam a saudade, surge uma isotopia temática da própria saudade. Como foi analisado inicialmente, a figura “mundo novo” que se refere ao recomeço, estabelece uma isotopia temática do reencontro, pois se pressupõe que após a morte é possível “viver” em outra dimensão e o próprio sujeito acredita nessa possibilidade “No terminus de tudo, ao fim lá estou/ Nessa ida que afinal é um regresso”. Mas há também, na poesia “Sá-Carneiro”, uma isotopia mais figurativa, a isotopia férrea, identificada por um campo semântico relacionado à estrada de ferro. Percebemos tal isotopia a partir de figuras como: “Comboio”, “terminus” (palavra ambígua, pode ser entendida como fim ou terminal), e “gare” (estação). Mantendo-nos na isotopia férrea, que pode ser entendida como uma metáfora da vida tomada como viagem, temos também uma referência intertextual ao seu próprio fazer literário, já que tal isotopia é cara a Pessoa, se nos lembrarmos de “Autopsicografia”, poema metalinguístico (O poeta é um fingidor) em que o poeta discute o fazer literário também valendo-se de certa figuratividade férrea: “E assim nas calhas de roda/ Gira, a entreter a razão,/Esse comboio de corda/Que se chama coração”. Seguindo na trilha do fazer literário, somando a isso a epígrafe, teríamos a eternização do amigo Sá-Carneiro na sua própria literatura que com ele não morreu. E no exercício de futurologia pessoano – “ao fim lá estou/Nessa ida que afinal é um regresso” – o ponto de encontro dos poetas, no futuro, é a grande literatura, que os porá, lado a lado, na eternidade. No nível das estruturas narrativas, temos a sintaxe que ordena os conteúdos do texto, a partir da qual identificamos dois enunciados, os enunciados de fazer e os enunciados de estados. Há então dois tipos de junção, conjuntiva e disjuntiva: a primeira 866

é definida como a relação de aquisição do objeto valor, e a segunda, a relação de privação do mesmo. Os enunciados de fazer empregam os enunciados de estado para que se deem as relações funcionais (junção e transformação) dos sujeitos de estado. Dessa forma, é possível identificar dois enunciados nas poesias: a) de estado: o sujeito “Fernando Pessoa” em conjunção com o objeto “amigo”; b) de fazer: o sujeito “morte” transforma a relação do sujeito “Fernando Pessoa” com o objeto “amigo – Sá-Carneiro”. Com a função de eternização, é possível reconhecer um programa narrativo de base que nos apresenta um sujeito destinador, “Amizade”, que transforma o sujeito destinatário “Fernando Pessoa” e o faz conjunto com o objeto valor “amigo”. Em outro programa narrativo temos o sujeito “morte” agindo sobre o sujeito de estado, passando-o da conjunção à disjunção. Na transformação, percebemos, inicialmente, que o sujeito estava conjunto do objeto e acreditava em sua duração. Essa crença é pressuposta no enunciado “Nunca supus que isto que chamam morte/ Tivesse qualquer espécie de sentido”, pois por nunca supor o sentido da morte, o sujeito enunciador revela um não reconhecimento do fim da vida, que implica a duração da conjunção com o “amigo”. Nos dois programas narrativos identificamos um programa de aquisição e outro de privação. A partir da privação, surge um terceiro programa, cuja função é o entristecimento, em que o sujeito do fazer “solidão” transforma o sujeito “Fernando Pessoa” colocando-o em conjunção com o objeto “tristeza” gerando um programa de aquisição. Como vemos, os objetos e os estados do sujeito nos poemas são puros afetos. E as paixões relacionam-se com a intensidade dos afetos. Para identificá-las num texto, é necessário observar se há manifestações corporais do sujeito de estado ou se tratam de formas de vida. As paixões, como foram mencionadas anteriormente, são divididas em duas categorias: as paixões simples e as paixões complexas. Aquelas são caracterizadas pelas relações objetais, enquanto estas ocorrem por meio das relações intersubjetivas, ou seja, o querer não depende somente da ação do sujeito do querer, mas do outro sujeito que é desejado. As paixões complexas têm como estado inicial a espera e como principio fundamental o crer. Dessa maneira, quem espera não faz, e só espera por crer em algo, ainda. Nas poesias em questão, o modo de existir do sujeito está marcado pelo afeto ao “amigo”. E através da enunciação depreendemos dos elementos linguísticos o clima passional presente nos textos, como por exemplo, a esperança (espera) do sujeito 867

“Fernando Pessoa” de reencontrar o “amigo”: “No terminus de tudo, ao fim lá estou”, “em um mundo novo”; e a manifestação física da bem querência: “rememoro”, “E dentro de mim, abstrato choro”. Assim o sujeito quer (estar conjunto), mas encontra-se em um “não-poder-ser”. Por isso, apresenta-se como um sujeito obstinado: “É como se esperasse eternamente/ A tua vinda certa e combinada”. Considerando os conceitos do esquema passional canônico (BERTRAND, 2003, p. 374), percebemos que ao compreender o sentido da morte, o sujeito, reconhece a transitoriedade da vida. Num primeiro momento, ele se encontra na configuração da amizade e acredita em sua conjunção duradoura, mas com o despertar da paixão o sujeito torna-se disposto e passa a reconhecer o sentido da vida. Essa disposição é a perda ou rememoração gerada pela fatalidade da morte: “(...) desde que saíste/ (...) Meu coração é inerte e infecundo/E o que sou é um sonho que está triste”; “As longas noites rememoro/ De vã conversa e ocioso estudo”. Do sentimento de perda desencadeia-se a frustração do sujeito: “Não mais, não mais, e desde que saíste”, e surge, então, o descontentamento: “Meu coração é inerte e infecundo/E o que sou é um sonho que está triste”; “E dentro de mim abstrato choro”. Na moralização o sujeito sente saudade: “Por que há em nós (...) Um desejo de termos companhia - / O amigo enorme que a falar amamos”. 3.2. SAUDADE E AMIZADE

As poesias “Sá-Carneiro” e “Horae Subcessivae” têm como categoria semântica fundamental vida vs morte. Essas oposições estão manifestadas nos textos e subjazem às noções de (1) presença (porque a conjunção realizada): “Éramos como um diálogo numa alma”, “Café Arcada”, “alma tão querida”. Esses trechos configuram a rotina do sujeito explicitam os supostos hábitos de tomar café e conversar com o amigo; e (2) ausência: “Nunca supus que isto que chamam morte/ Tivesse qualquer espécie de sentido...”, “Seguisses, e adiante do em que vou”; “Ah, meu maior amigo, nunca mais”; “desde que saíste”; “Morto?”. Aqui ocorre uma ruptura daquela rotina. Nas categorias fundamentais há classificações como euforia (positiva) ou disforia (negativa). A saber, a presença é eufórica, está relacionada à dêixis da vida, pois possui valor positivo e leva o sujeito à conjunção com o objeto, e, a ausência é disfórica, tem valor negativo, está ao lado da morte e é símbolo da privação do sujeito em relação ao objeto. Assim o texto passa da presença (amizade) eufórica à ausência (saudade)

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disfórica, da seguinte forma: primeiro temos a oposição vida (euforia) versus morte (disforia), uma relação entre contrários, desta, surge outra oposição em que se nega a primeira: não-morte versus não-vida. A partir desses termos podemos erigir o seguinte quadrado semiótico em que visualizamos o trajeto do sujeito: o sujeito parte da presença - conjunção com a amizade - (euforia) e pelo reconhecimento da transitoriedade da vida passa-se a não-presença (não-euforia), porque perde-se a conjunção com o amigo, e por último a morte (disforia), o lugar da saudade, porque não mais se tem a conjunção com o amigo, a ausência. Esquematicamente temos o seguinte trajeto do sujeito: Presença → Nãopresença → Ausência, que redunda na seguinte esquematização do quadrado semiótico:

/vida/ presença

/morte/ ausência

/não morte/ não ausência

/não vida/ não presença

CONCLUSÃO Como pudemos mostrar, as recorrências de figuras trouxeram os temas da amizade e da saudade. Com a análise do quadrado semiótico entendemos como essa ideia de amizade está profundamente instaurada nos textos, porque além de constituir a oposição semântica (amizade versus saudade), ainda configura o esquema passional canônico e nos conduz à compreensão do estado de alma do sujeito modalizado por um querer-não poder-fazer. Nas poesias, o sujeito enunciador traça uma linha discursiva temporal entre passado (lembrança, tempo da conjunção e da amizade), presente (saudade, tempo da disjunção) e futuro (organização da conjunção ainda buscada), em que a amizade é construída de forma atemporal (assim como a própria poesia pessoana), mas a ruptura dessa continuidade gera a saudade manifestada pela incompletude do sujeito. Por essa razão, se dá o discurso apaixonado que, inclusive, é marcado sofisticadamente nos seguintes trechos: “Ó companheiro que um momento/ Roubou a mim, roubou a seres”; “Éramos como um diálogo numa alma”; entre outros. Desse modo, saudade e amizade apresentam-se inter-relacionadas a uma forma de amor profundo, indissociáveis. A partir desta análise podemos demonstrar, segundo os

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preceitos semióticos, que assim como as tão conhecidas cartas de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa revelaram a afetividade de um poeta ao outro, aqui também, invertendo-se o ponto de vista, temos um enunciador que ao produzir o texto enunciado, revela sua ligação direta com o sujeito enunciatário. Saudade, amizade e poesia surgem assim como temas intrínsecos ao percurso desse sujeito, fomentando a criação das próprias poesias, em uma ambiência marcada pela memória e pela admiração. Referências BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Atica, 1990. BERTRAND. Denis. Caminhos da semiótica literária. Trad. Grupo CASA. Bauru-SP: EDUSC, 2002. CASAIS MONTEIRO, Adolfo. Estudos sobre a poesia de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Agir, 1958. CUNHA, Teresa Sobral. Notas. In: SÁ-CARNEIRO, Mário de. Correspondência com Fernando Pessoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 407-456. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Contexto, 2008. Dicionário Eletrônico Houaiss. Versão 1.0. Editora Objetiva, 2001. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 30ed. São Paulo: editora Cultrix, 1999. MOISÉS, Massaud. Guia prático de análise literária. 2ed. São Paulo: editora Cultrix, 1970. MOISÉS, Masssaud. Presença da literatura portuguesa, modernismo. 8ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. PESSOA, Fernando. Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. Prefácio e notas de João Gaspar Simões. 2ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982. SÁ-CARNEIRO, Mário de. Correspondência com Fernando Pessoa. Edição de Teresa Sobral Cunha. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. SCHWARTZMANN, Matheus Nogueira. Cartas marcadas. Prática epistolar e formas de vida na correspondência de Mário de Sá-Carneiro. 2009. 293 p. Tese. (Doutorado em Linguística e Língua portuguesa) – Faculdade de Ciência e Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista, Araraquara. SIMÕES, João Gaspar. Vida e Obra de Fernando Pessoa. Lisboa: Bertrand, 1950.

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PESSOA, Fernando. Horae Subscessivae. In. SÁ-CARNEIRO, Mário de. Correspondência com Fernando Pessoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 405.

DEA LOHER: A MODERNIZAÇÃO DO TEATRO ÉPICO EM MEIO À EXPRESSÃO CINEMATOGRÁFICA TRADICIONAL Júlia Mara Moscardini Miguel UNESP/FCLAr Elizabete Sanches Rocha UNESP/FCLAr Nada é tão importante para a perfeita compreensão do teatro do século XXI quanto a obra de Brecht, tanto suas peças quanto sua obra teórica" (BRECHT, 2005, p.11). Assim Aderbal Freire-Filho se refere à práxis teatral do grande dramaturgo alemão do século XX, Bertolt Brecht (1898-1956), no prefácio da tradução do livro Estudos sobre Teatro, do próprio artista em questão. Por volta dos anos 30, com o surgimento do cinema, aconteceu uma queda da arte teatral, já que aquele ganhou espaço na representação dramática fazendo uso de recursos e maquinário tecnológicos. Para alguns, o teatro foi perdendo espaço; no entanto, alguns outros autores resolveram enriquecê-lo com as novas possibilidades na tentativa de salvar o drama. Nesse contexto, Bertolt Brecht começa a criar, dando vida a um palco renovado, diferente do que faziam seus antecessores, teorizando um teatro didático que pudesse ser usado a favor da revolução marxista, que desse voz aos oprimidos e que refletisse os problemas sociais mais urgentes de seu tempo. Nasce o teatro épico brechtiano nos anos 20, trazendo uma nova atitude cênica que ia contra as peças-bem-feitas e burguesas que causavam fascínio catártico no público. O teatro épico de Brecht é narrativo e opta por contar o fato ao invés de mostrá-lo, a mimese dá lugar à diegese, recursos como a ironia, a paródia, o cômico e o grotesco, o coro, cartazes e projeções e ainda um narrador são inseridos na peça para distanciar o espectador do drama, agora não mais vivido, mas contado pelo personagem. São os famosos efeitos de distanciamento brechtianos elaborados para colocar sobre o palco a sociedade e a necessidade de modificá-la sem a ilusão do teatro burguês, reduzindo os efeitos catárticos a fim de levar a plateia a uma reflexão: “O que se pretende fazer é elevar a emoção ao raciocínio”1. O

1

ROSENFELD, A. O Teatro Épico, 1965, p. 148.

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objetivo desses recursos era buscar uma investigação científica e objetividade através de um narrador diante do mundo narrado. O distanciamento brechtiano faz com que a plateia abandone a posição, segundo Brecht, alienada que o teatro “dramático” lhe proporciona ao apresentar no palco cenas nas quais o espectador se reconheça e se projete, assim, no personagem. Ao invés disso, Brecht quer tornar estranho, quer desfamiliarizar a cena de forma a levar o espectador ao choque de não se identificar com os personagens e, dessa forma, poder desenvolver a crítica sobre a matéria apresentada no palco. Vários dramaturgos surgiram depois de Brecht dando continuidade ao seu trabalho épico. Na Alemanha, país com longa trajetória no teatro político e engajado, lugar onde ainda ecoa traços épicos brechtianos, surge no final do século XX e começo do século XXI uma dramaturga cujo objetivo assemelha-se ao de seus antecessores, ou seja, um teatro de esclarecimento das massas. Trata-se de Dea Loher (1964- ), nascida na pequena e hostil cidade de Trausntein, cujo clima opressivo e intolerante tornar-se-ia referência em sua práxis teatral. Com formação em letras germânicas e filosofia em Munique, Loher se decepcionou com o curso por julgá-lo distante da realidade e, com o término dos estudos, veio para o Brasil nos anos 90 onde encontrou referências para sua primeira peça, Olgas Raum (1990), monólogo sobre a militante judia Olga Benário. De volta à Alemanha, decide cursar dramaturgia em Berlin, sendo Heiner Müller (19291995) um de seus professores. Seu objetivo é reavivar o teatro político de esquerda aproximando-se do teatro épico de Brecht não como cópia dos efeitos de distanciamento, mas um teatro crítico que foca os menos privilegiados mostrando possibilidades de ações, observando as estruturas políticas da sociedade. Essa estética política gera uma atitude crítica no espectador, mas que não resulta na colagem fragmentada pós-moderna e também não significa uma volta ao teatro burguês do século XIX, mas uma retomada ao teatro épico com uma adaptação à demanda da sociedade atual a favor de um teatro político, reflexivo e engajado. Tomemos uma das peças mais tardias e uma das mais complexas de Loher, Inocência (2003), para estabelecer elementos comparativos de como a autora retoma elementos brechtianos, mas modernizando-os com o objetivo de colocar o público em uma distância reflexiva. A peça em questão retrata o cotidiano de pessoas comuns inseridas na sociedade pós-moderna. São grupos de histórias nas quais as personagens parecem não se relacionar; mas no decorrer da peça, Loher faz com que os destinos se cruzem como uma teia de caminhos trágicos e conflitos de um cotidiano banal através 872

de uma dramaturgia dolorida e ao mesmo tempo carregada de poesia. A peça começa com Elisio e Fadoul, imigrantes ilegais da África que testemunham um suicídio de uma moça ruiva que se lança ao mar. Os imigrantes não fazem nada para deter a moça temendo serem deportados, negligência esta que gera uma culpa a qual vai ser carregada pelos dois a peça toda. Elisio inicia uma busca por notícias da moça ruiva, como um conforto para a culpa que sente e em seu caminho encontra a Senhora Habbersatt, mulher que perdeu um filho ainda bebê e por isso finge ser a mãe de um assassino em série e passa a visitar a família das vítimas como se para ela fosse melhor ter um filho assassino do que um filho morto. A Senhora Habersatt leva Elisio até a casa do jovem casal Rosa e Franz já que este é um agente funerário que poderia dar notícias da jovem afogada da primeira cena. Este casal passa por uma crise quando a mãe de Rosa, a diabética Senhora Zucker se muda para a casa deles. Ela é uma mãe dominadora e insensível que ao oprimir a filha encontra uma forma de tangenciar o seu amor pela mesma. Enquanto isso Rosa sonha em ter um filho, sonho que fora adiado pelo desemprego do esposo que finalmente encontra trabalho, mas sonho este que se vê obrigado a ser adiado mais uma vez agora com a presença da senhora Zucker na casa. Franz, o marido, trabalha como agente funerário e começa a levar os corpos abandonados para a sua casa e passa a dar mais atenção a eles do que a Rosa, deixando de ver a esposa e se dedicando com devoção aos cadáveres. Rosa é ruiva como a jovem que se suicidou na primeira cena, sendo que ambas devem ser, segundo as didascálias da peça, interpretadas pela mesma atriz; por isso, Elisio, ao ver Rosa, a reconhece como a suicida. A própria Rosa se reconhece na foto que Elisio traz da moça afogada e se choca com a imagem enquanto Franz não faz o mesmo reconhecimento. Na última cena da peça, que inclusive recebe o mesmo título da primeira, Rosa repete as ações da jovem ruiva, mas ao invés de se lançar ao mar, ela parte para o futuro. Segundo Birgit Haas2 (2006), trata-se um suicídio antecipado e redobrado, já que não fica claro para o espectador se Rosa e a moça ruiva são a mesma pessoa. Enquanto isso, o outro imigrante negro, Fadoul, encontra com Absoluta, uma jovem cega e stripper que havia esquecido embaixo do banco do ponto de ônibus sua sombrinha e seu livro em braile. Ao tentar encontrar os pertences da moça, Fadoul encontra uma bolsa com dinheiro que acaba sendo usado por ele para financiar uma 2

Birgit Haas foi uma pesquisadora alemã especialista nas obras de Brecht e Dea Loher traçando um paralelo entre ambos dramaturgos no livro Das Theater Von Dea Loher: Brecht und (k)ein Ende, 2006.

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cirurgia para recuperar a visão de Absoluta, como forma de compensar a culpa que sente pelo suicídio da jovem ruiva. Fadoul brinca de ser Deus ao querer devolver a visão a Absoluta, mas a cirurgia falha provando a "Desconfiabilidade do mundo", livro lido por Absoluta e escrito pela filósofa Ella. Ella e seu marido Helmut não se relacionam diretamente com as demais personagens e o discurso monológico da filósofa funciona como um metacomentário da peça cujo assunto principal é a busca do sentido da vida nos dias de hoje. Ella é uma filósofa que envelhece ao lado do marido joalheiro e que não mais acredita que as ciências naturais possam dar respostas para uma sociedade movida pelo capitalismo tardio, pelas leis do mercado econômico e pela biologia genética. Ella monologa em suas três cenas na peça enquanto o marido trabalha em silêncio com adornos de ouro e circulares; segundo Haas (2006), uma metáfora para o caráter cíclico da peça e da vida. O tema do suicídio aparece também em outras três cenas com personagens anônimos, sendo distribuídos do ponto de vista de dois suicidas (Cena 6), da perspectiva de um conhecido (Cena 11) e do coro de motoristas zangados com um suicida que ameaça se jogar de um prédio e está impedindo o trânsito (Cena14). Um outro elemento de extrema importância na peça é uma televisão com imagens distorcidas e sem som do Presidente. A TV está presente em várias cenas e é a parte mais importante do cenário funcionando como uma alusão às críticas aos meios de comunicação de massa e ao discurso político que é totalmente destituído de sentido com a projeção das imagens destruídas e com o som desligado. As peças de Loher são elaboradas nos mesmos pilares do pensamento de Brecht no que diz respeito aos efeitos de distanciamento. Em Inocência (2003) a dramaturga os usa para anular a ação dramática e se sujeitar à narrativa para intensificar a sensação de perda pela qual todas as personagens passam. Há uma frequente interrupção do diálogo por comentários narrativos. Na primeira cena, por exemplo, Elisio e Fadoul alternam o discurso ora em primeira, ora em terceira pessoa concedendo artificialidade à cena e colocando os africanos como indivíduos, mas também como membros de um grupo tipificado fazendo com que os espectadores não se identifiquem com as personagens no palco, buscando um teatro anti-ilusionista.

"ELÍSIO Disse o Fadoul, e se calou. Elísio, ao contrário, é por natureza um otimista. Nascido muito longe daqui. Lá onde o sol fica mais alto. Muito novinho tinha sentido na boca as mais doces tetas da ovelha mãe com as mais repletas ubres. Pausa. Mas por amizade ao Fadoul, para não parecer desagradável a ele em sua autopiedade, ele também se calou.

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Silêncio. Elísio acerta Fadoul.. FADOUL Vou te dizer o que eu estou vendo. Estou vendo o céu, e podia ser o céu sobre o deserto; mas o céu sobre o deserto é alto e claro e amplo e deixa espaço para o teu pensamento chegar até as estrelas."(LOHER, D. Inocência, Cena 1, 2003, tradução de Rodolfo Garcia Vázquez 3).

A artificialidade desejada pela dramaturga já pode ser evidenciada pelas primeiras didascálias da peça: "Se os personagens de Elísio e Fadoul forem atribuídos a atores negros, que o seja pela excelência técnica de ambos, e não para forçar uma autenticidade que seria inadequada. Também não se deve pintar “cara negra”; é preferível destacar o artificial dos meios teatrais usando máscaras ou outros elementos similares". (LOHER, D. Inocência, 2003).

A segunda cena também traz o uso dos comentários narrativos. A senhora Habersatt visita uma família cuja filha foi vítima de um assassinato. Enquanto a Senhora Habersatt fala, as personagens identificadas como Homem e Mulher vão narrando as impressões que têm e tecendo comentários críticos que julgam a visita invasiva daquela mulher. O objetivo da autora, segundo Haas (2006), é ir desenvolvendo no público uma postura crítica através de personagens-narradores que levem o espectador a ver os eventos sob múltiplas perspectivas, como faz o cinema:

"SENHORA HABERSATT Rompe todo o asfalto da rua, a luz do seu sensor de luz, ali. Pausa. Posso entrar um minuto? Dá licença. Pausa. O tic tac do seu relógio soa alto demais. MULHER a mulher simplesmente entrou em nosso hall. e depois na sala. Como é que eu poderia dizer: deslizou pelas paredes. E o meu marido, que tinha ficado sem palavras, ia atrás dela com os braços estendidos, como se quisesse agarrar uma galinha, ou espantá-la. Mas não ousaria tocá-la." (LOHER, D. Inocência, Cena 2, 2003).

Além da inserção do elemento narrativo para quebrar a ilusão teatral e conceder postura crítica ao espectador, outros recursos brechtianos aparecem na peça como o coro na Cena 7, "Coro dos sobreviventes da matança de um assassino enlouquecido" e o coro na Cena 14, "Coro dos motoristas de carros". O coro coloca ênfase nos 3

A peça Inocência na versão traduzida para o Português não consta nas páginas de referências por se tratar de uma obra não publicada. O texto traduzido por Rodolfo Garcia Vázquez utilizado neste trabalho foi gentilmente cedido pelo grupo de teatro “Os Satyros”.

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comentários distanciando mais uma vez o espectador das personagens. Outro recurso brechtiano é o uso de títulos para as cenas. Todas elas recebem títulos que antecipam o conteúdo e dividem a peça em episódios que são narrados lado a lado paralelamente até que o espectador vá aos poucos construindo as ligações entre as personagens. O cômico também aparece, a começar pelo título, Inocência, de uma peça que mostra personagens imersos em culpas existenciais e personagens que buscam o favorecimento próprio. Como exemplo, temos Elisio que rouba um livro em braile de uma cega e Fadoul que fica com dinheiro encontrado embaixo do banco do ponto de ônibus e o usa para recuperar a visão da cega. O imigrante faz tal doação como forma de aliviar a culpa que sentia por ter ficado com o que não lhe pertencia e também por ter negligenciado ajuda a uma jovem que se suicidava. As cenas são construídas de forma a criar um paradoxo da culpa e inocência que permeiam as ações das personagens. Há também um jogo linguístico que causa comicidade e ocorre com as palavras Gott e Geld, em português Deus e Dinheiro. Fadoul troca as palavras quando diz para Absoluta e Elisio o que tem dentro do saco que ele encontrou e ora diz que é Deus que está no saco, ora diz que é dinheiro e a Cena 8 intitulada "Deus se envia a si mesmo em uma bolsa" segue com esse jogo de palavras. Os nomes das personagens também revelam certa ironia já que uma senhora diabética recebe o nome de Frau Zucker, em português, Senhora Açúcar; a jovem Absoluta, palavra sinônima de independente, inteiro, incondicional, imperioso, supremo, único, é uma stripper cega e solitária que busca encontrar o amor. A Senhora Habersatt tem seu nome ligado à expressão alemã ich habe es satt, que significa estou farto, cansado. A personagem é uma mulher solitária que percorre casas de famílias de vítimas de crimes violentos e busca o perdão por esses crimes que ela não cometeu. Pode ser uma forma de criticar o estar farto de tantos crimes, o estar farto de procurar culpados, assim como a exaustão da senhora que busca o filho bebê que perdeu. Todos estes exemplos mostram como Loher usa de maneira livre os recursos imortalizados por Brecht. Como foi dito no início, a teoria do teatro épico mudou o panorama do teatro dentro de um contexto que apontava para a decadência da sociedade burguesa do século XX. O objetivo de Brecht era criticar a sociedade capitalista da época apontando os problemas e direcionando seu público para refletir acerca de possíveis soluções para os dramas da época, e para isso rejeitou as antigas formas de representação a favor de um teatro de crítica social. Haas (2006) aproxima Loher deste objetivo de confrontar formas teatrais clichês: enquanto Brecht ia contra o teatro burguês, Loher já no século XXI se opõe às montagens pós-modernas, às novelas e a 876

"psicologização do realismo na TV" que segundo a autora se baseiam em formas estereotipadas, tabus, na descentralização do pensamento e em um certo psicologismo artificial. É justamente para negar esse tipo de teatro que Loher reativa os efeitos de distanciamento épicos, não como uma mera cópia, mas modernizados e remodelados. Enquanto Brecht era defensor do ideal marxista e usava suas peças com objetivo didático de educar socialmente um público, Loher tem um outro discurso político, um ponto de vista ideológico, cultural e histórico diferente. É evidente que o contexto no qual a dramaturga está inserida é diferente da época de Brecht, portanto há um escopo ideológico também diferente que faz com que Loher não acredite mais na revolução comunista a partir do teatro. Não existe mais um mundo maniqueísta e o embate ocidente versus oriente deixou de ter sentido na Alemanha, portanto Loher não encontra mais sentido em usar os efeitos de distanciamento com os mesmos propósitos de Brecht. A exemplo disso, encontramos em Inocência (2003) o escopo político presente na personagem Rosa e em sua mãe, enquanto ex-participantes do grupo terrorista de guerrilha urbana comunista e anti-imperialista de extrema esquerda, RAF. Rosa enquanto ex-comunista esboça os sonhos de qualquer cidadã, o sonho de ser mãe, o sonho de ser rica e dormir em um hotel, o desejo de ser olhada pelo marido, ou seja, somos todos iguais em busca de sonhos e de sentido para a vida: "ROSA Achei que você ia olhar para mim. [...] ROSA não quero que você fique de frente para mim, cuidado, isso não consigo esperar. Só quero que você olhe para mim. [...] ROSA e talvez você me dissesse, hoje você está com o cabelo tão bonito... [...] ROSA (...) Se eu tivesse dinheiro, se eu tivesse muito dinheiro de verdade, então uma vez por mês ia dormir em um hotel, desses hotéis onde a gente entra no quarto e na televisão está escrito “Bem vinda, Rosa”, a cama está preparada, e na almofada encontro uma..." (LOHER, D. Inocência, Cena 9, 2003).

Ao colocar o espectador em uma posição distanciada, o objetivo da escritora não é ensinar política, mas fazer com que a plateia tome consciência de si contra o princípio do politicamente correto e contra uma postura artificial, concedendo ao individuo a liberdade de discutir. Ao compararmos Inocência (2003) com as peças de Brecht notamos os recursos épicos já narrados anteriormente aqui, mas não é possível identificar o caráter didático, o final aberto para que o público decida o que é certo e o que é errado e o que fazer para mudar a sociedade. O que encontramos em Loher é a

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retomada do teatro épico que não foca nas emoções, para evitar atitudes moralizantes. Ao inserir os comentários narrativos nas cenas, ela distancia a personagem para que o espectador perceba as diferentes perspectivas que circundam a situação e, assim, deixe de julgar moralmente e passe a refletir acerca dos problemas apresentados no palco que são retratos dos problemas que afetam a sociedade contemporânea. A peça de Loher não apresenta um modelo de sociedade, não traz uma descrição exata do mundo. Analisando sob uma perspectiva filosófica podemos incluir Brecht no que Gianni Vattimo 4 (1936- ) chamou de pensamento forte e a obra de Loher, pelo cotexto histórico no qual está inserida, representaria o conceito de pensamento fraco que constitui o enfraquecimento das categorias ontológicas acentuando uma visão niilista da hermenêutica de Heidegger 5. O filósofo italiano, em Fim da Modernidade (1996), aponta o fim da modernidade e o começo da pós-modernidade como o fim da metafísica e surgimento do pensamento fraco, ou seja, há um enfraquecimento do sujeito que passa a ser um sujeito sem essência e construído pela linguagem e pela visão de mundo, portanto, um sujeito enfraquecido. Em Inocência a filósofa Ella materializa o pensamento fraco ao mostrar sua descrença no mundo, nas ciências naturais, no coletivo: "Não quero nenhuma vista de cima, não quero uma visão panorâmica, não quero uma declaração de inter-relações sem vazios, odeio os sistemas, me dedicarei totalmente ao fragmento, ao que tem vazios, ao imperfeito, à ruptura, ao resto, ao incompreendido, O sedimento, o que se decompõe, a mínima quase nada individual. Esse é o desafio. Essa é a vida. Esse é o desafio da vida. A desconfiabilidade do mundo." (LOHER, D. Inocência, Cena 18, 2003).

Para que Loher consiga concretizar o objetivo de desvelar a sociedade capitalista pós-moderna, ela retoma e moderniza o teatro épico de Brecht revelando, através de

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Gianni Vattimo é um filósofo italiano ligado a questões do pós-modernismo. Seu principal trabalho está ligado ao niilismo de Nietzsche e à filosofia de Heidegger para explicar o enfraquecimento do ser pósmoderno trabalhando com a relação dicotômica pensamento fraco/ pensamento forte, o primeiro sendo uma forma de niilismo e o segundo englobando os sistemas ideológicos como o marxismo, e iluminismo e outros. 5 Martin Heidegger (1889 – 1976) foi um filosofo alemão do século XX que apontou novos aspectos acerca da questão ontológica. Filósofo existencialista, Heidegger foi responsável pela conceituação do ser-ai (Dasein) e trabalhava com a hermenêutica, no sentido de interpretar o que, na maioria das vezes, não é manifestado e se encontra oculto.

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recursos narrativos, a motivação interna dos personagens. Junto a esta estética, ela lança mão de recursos cinematográficos para justamente tornar visíveis as múltiplas perspectivas que uma cena pode conter. No inicio da peça Inocência (2003), tudo está congelado, a Cena 1 com o nome "Diante o horizonte do mar I" mostra Elisio e Fadoul contemplando a grandeza do oceano e acidentalmente testemunham o suicídio da jovem ruiva. A partir daí, começa a interação entre as personagens e o que inicialmente estava congelado começa a se dissolver em um emaranhado de histórias e de destinos que vão se cruzando aparentemente por acaso, mas ao analisarmos a fundo, percebemos que se trata de uma aproximação proposital para que as cenas se desencadeiem a partir da relação entre pessoas solitárias e descrentes. Para conseguir esse efeito, Loher trabalha com uma estrutura desenvolvida como filmes, com cenas curtas e cortes duros para redobrar a perspectiva. A Cena 1 descrita anteriormente termina com uma discussão de Fadoul e Elisio por terem deixado a jovem se afogar. Há um corte e a Cena 2 se inicia com uma das visitas da Senhora Habersatt a um casal que perdera a filha em um crime bárbaro. A inspiração vem de uma expressão cinematográfica que buscava retomar valores tradicionais do cinema. Trata-se do movimento Dogma 956 dos cineastas dinamarqueses Lars Von Trier (1956- ) e Thomas Vinterberg (1969- ) criado em 1995 como um manifesto baseado em regras que buscavam resgatar valores tradicionais no enredo, na atuação e nos recursos usados, excluindo o uso de efeitos especiais e tecnologia. Eles pregavam a desistência de luz artificial, o uso de câmera de mão e som original, o descarte de adereços e das modificações artificiais. O que Loher traz deste movimento cinematográfico para a peça é justamente o uso dos cortes bruscos, as quebras e lacunas que conferem certa insegurança para a peça, mas ainda assim sem desistir de uma estrutura de fábula que é o fator principal que a distancia das obras pós-dramáticas7. Os cortes mostram os olhares limitados de cada personagem que ao serem descaracterizados em narradores abrem um leque de perspectivas para o espectador a fim de desfazer uma impressão unilateral e moralista. Os cortes que interrompem uma cena e dão início a uma outra, o ritmo da mudança, os diálogos repetitivos e as posições 6

Movimento cinematográfico criado a partir de um manifesto escrito em 13 de maio de 1995 em Copenhague na Dinamarca. O movimento buscava resgatar a tradicionalidade do cinema contra a exploração comercial e industrial do mesmo, abolindo a tecnologia. Foram elaboradas dez regras que deveriam ser seguidas pelos diretores adeptos ao grupo. 7 Conceituação do crítico e professor de teatro alemão Hans-Thies Lehmann para uma nova estética teatral da segunda metade do século XX, na qual aparecem uma estrutura textual fragmentada, tecnologias em cena e a tentativa da construção de uma arte total. O termo e sua designação aparecem na obra do próprio Lehmann Postdramatisches Theater, publicada em 1999 na Alemanha.

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narrativas promovem uma troca de perspectivas e fazem com que o público não perceba o que está acontecendo no total, mas acompanhe o desenrolar das histórias como participantes da ação. Segundo Haas (2003) os cortes entre as cenas determinam a posição que o espectador deve ocupar, cortes estes obtidos a modelo dos cortes de câmera de von Trier e pelos artifícios de quebra brechtianos. A história de Rosa é um exemplo de como os cortes podem mudar a perspectiva do espectador causando inclusive uma dúvida sobre o que realmente aconteceu. A primeira e a última cena ("Diante do horizonte do mar I" e "Diante do horizonte do mar II") funcionam como espelho já que a primeira traz o suicídio de uma jovem ruiva que se lança ao mar e a última traz Rosa, também ruiva e representada pela mesma atriz da primeira cena, repetindo as ações do início da peça. Com os cortes que há na peça não podemos afirmar com certeza que as cenas se encontram em ordem cronológica, não há como delimitar se o suicídio da mulher ruiva aconteceu de fato no início ou no final. Na Cena 17 intitulada "Reconhecimento", há apenas um narrador onisciente que narra a visita de Elisio à casa de Franz e Rosa e reconhece assustadoramente a semelhança física de Rosa e da mulher afogada. Elisio segura uma foto da ruiva e ao mostrá-la a Rosa, esta se apavora porque também se reconhece. O colapso espaço-temporal é evidenciado com este reconhecimento: "Este senhor aqui está procurando uma mulher. Dá um sinal a Elísio para mostrar a foto; Rosa a toma e a olha. Rosa: Mas essa sou eu! A boca de Elísio faz um ruído estranho, um tss ou kchch, enquanto seus ombros se levantam e a sua cabeça quer concordar. Mas Franz permanece calmo: Não, essa se suicidou, estava no primeiro dia na câmara refrigerada, quando comecei na Berger, você não pode conhecê-la. E mesmo assim, Rosa parece uma morta, e uma morta poderia parecer-se com a Rosa; Rosa toca a sua garganta, Rosa tenta falar ainda, Rosa pode falar, Rosa diz: Se suicidou. Diz como se fosse necessário que alguém demonstrasse, como se não estivesse certa, mas Franz sabe muito bem: Isso, se jogou na água, perto do porto. O Franz não gosta de falar destas coisas em casa, queria que os mortos lhe pertencessem, e Elísio não diz mais nada. Elísio só consegue ter o coração palpitando. E Rosa deve afirmar de novo: Mas se parece comigo! Olha Franz, que não lhe devolve o olhar, a Elísio, a quem não conhece e nunca antes tinha visto, e do que não sabe como conseguiu sua foto: Mas essa sou eu!" (LOHER, D. Inocência, Cena 17, 2003).

Há um enigma proposto para o espectador: teria Rosa mesmo morrido no início e as cenas ocorridas na casa do casal estariam sendo contadas em flashback? Isto é possível já que Rosa se relaciona apenas com o marido Franz e com a mãe, não tendo nenhum contato com os demais personagens. Outra possibilidade é a de Elisio ter

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provocado o suicídio com a sua visita, a busca da identidade da afogada faz Elisio chegar até Rosa e incitá-la indiretamente ao mesmo final da ruiva da foto. Haas (2006) mostra que, com esse exemplo, as coordenadas de espaço e tempo são inicialmente confiáveis, mas vão se diluindo no decorrer da peça e isso é possível graças aos cortes fílmicos de cena para cena. À guisa de conclusão, podemos afirmar que Loher retoma os efeitos de distanciamento brechtianos, mas não tem a intenção de dar uma exata descrição de mundo, até porque ao proporcionar múltiplas perspectivas e incluir o espectador na peça, ela faz com que o público tenha uma forte influência na visão do assunto abordado. Não cabe ao espectador o papel de julgar as personagens e suas ações pela veia moral, mas sim entender os vários lados de uma história e o que motiva as pessoas a cometerem certos atos. Essa é a reflexão proposta por Loher e é dessa maneira que ela visa engajar seu público, evidenciando a verdade e propondo relações de causas e efeitos das várias perspectivas mostradas. Nas palavras da própria Loher, "a expressão de dor [que perpassa a peça] tem a ver com a busca do sentido da vida. Como poderia fazer melhor? Cada ação implica uma reação, um efeito físico ou espiritual sobre si e sobre o outro8". Ademais, para atingir esse efeito, Loher busca os recursos do teatro épico, reintegrando-os à cena contemporânea de forma remodelada assim como traduz para o palco técnicas de uma expressão cinematográfica cujo objetivo era resgatar a tradicionalidade do cinema. Dessa forma constitui-se Inocência (2003), uma ciranda de culpas, niilismo, falta de compaixão e ao mesmo tempo uma busca incessante por sentido. Referências BARILLEY, B. Une fable cruelle et merveilleuse. Projet dirigé par Brigitte Barilley / Cie Les Travaux et Les Jours. Disponível em: . Acesso em: 04 jun. 2012. BATISTA, G. S. Nietzsche, Heidegger e o Fim da Modernidade - um estudo sobre Gianni Vattimo. Revista Perspectivas online, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 28-32, 2008. Disponível em: < http://www.sumarios.org/sites/default/files/pdfs/52640_6160.PDF>. Acesso em: 01 fev. 2012. BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos; Lisboa: Edições 70, 1995. Tradução de Artur Morão. 8

Dea Loher em entrevista à sessão Teatro Jornal – Leituras de Cena do jornal Folha de São Paulo publicada em 19 de outubro de 2006.

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BAUMAN, Z. A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. _______. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. _______. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. Tradução: Mauro Gama e Claudia Martinelli Gama. BENJAMIN, W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: ADORNO et al. Teoria da Cultura de massa.. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 221-254. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. BHABHA, H. The location of culture, Londres: Routledge, 1994. BORNHEIM, G. Brecht: a estética do teatro. São Paulo: Graal, 1992. BRECHT, B. Diário de trabalho. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, 2v. _______. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. HAAS, B. Das Theater von Dea Loher: Brecht und (k)ein Ende. Bielefeld: Aisthesis Verlag, 2006. _______. History through the lens of the uncertainty: Dea Loher’s Leviathan. The Journal of the Midwest Modern Language Association, Universidade de Iowa, v. 39:1, p.73-88, 2006. HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005. Coleção Pensamento Humano, 15ª edição. Tradução de Márcia Sá Cavalcanti Schuback. JAMESON, F. Método Brecht. São Paulo: Vozes, 1999. KOUDELA, I. D. Brecht na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2001. LOHER, D. _______. Tatuagem/ Inocência. Lisboa: Cotovia, 2008. _______. Unschuld. Das Leben auf der Praça Roosevelt. Frankfurt am Main: Verlag der Autoren, 2004. PAVIS, P. Dicionário de teatro. Tradução sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999. ROSENFELD, A. História da literatura e do teatro alemães. Campinas: Ed. da UNICAMP; 1993. _______, A. O teatro épico. São Paulo: São Paulo Editora S.A. Coleção Buriti, 1965. SANTOS, V. Dea Loher retoma dramaturgia social. Folha de São Paulo. São Paulo, 19 out. 2006. Teatro Jornal – Leituras de Cena. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2011.

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SEMIÓTICA E TEXTO TEATRAL: A MODALIZAÇÃO DO FAZER EM ESTAÇÃO VITÓRIA, DE HAROLD PINTER Júlio César Souza de Oliveira UFJF, Nupes/UFRJ Apresentação Segundo Umberto Eco, todo texto é uma máquina preguiçosa que exige do leitor um grande trabalho de colaboração para o preenchimento dos espaços do não dito. O texto teatral, devido à sua dependência ao espetáculo, é, além de preguiçoso, “furado como um queijo suíço”. Isto obriga o leitor de qualquer obra dramática a pressupor o uso de uma constelação de signos ou elementos de comunicação que estão além do alcance e mesmo do interesse do dramaturgo: gestos, movimentos de corpo, maneiras de olhar, pausas, hesitações, entre outros componentes, que se agregam às palavras. Na narrativa literária, o narrador descreve os cenários, os figurinos, a atmosfera e pode invadir a subjetividade das personagens, apresentando, até mesmo, suas intenções, por mais ocultas que sejam. O narrador do texto teatral, diferentemente, não desvela do mesmo modo as intenções das personagens; oculta-as na maneira de falar ou silenciar das personagens, na sua maneira de perceber e na sua maneira de reagir. Segundo Araújo (2006), muitas informações estão, se não ocultas, subentendidas nas falas das personagens. E “empenhar-se em desentocá-las, trazê-las à luz e entendêlas é o objetivo da leitura de uma peça”. Araújo lembra que, no singelo exercício de descortinar uma curta fala, “pode-se perceber o quanto o diálogo teatral oculta intencionalmente informações importantes para se entender as circunstâncias em que as personagens estão metidas, as necessidades e emoções que impulsionam a ação” (p. 4546) e as razões para agirem de determinada maneira. Face às peculiaridades inerentes ao texto dramático, a atividade de leitura deste gênero textual revela-se, em geral, mais árdua que a leitura dos gêneros literários narrativos inseridos nas propostas de letramento escolar e de aprimoramento das competências leitoras.

Tal dificuldade aumenta quando o objeto da leitura é

representante da escrita cênica pós-moderna, caso da obra escolhida como objeto de análise no presente trabalho: Victory Station, peça em um ato escrita pelo inglês Harold Pinter, traduzida para o Português Brasileiro pelo carioca Alexandre Tenório1, um dos 1

Agradecemos ao ator e diretor teatral Bruno Rocha, pela cessão do texto para a realização do presente trabalho.

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grandes estudiosos da obra do dramaturgo inglês no Brasil, responsável pela tradução de dezenas de textos daquele autor ainda não publicados no país. Diante das dificuldades impostas à leitura pelo objeto de análise do presente trabalho, recorremos à Semiótica do Texto, em sua formulação clássica (Greimas, 1975; Greimas e Courtés, 2008), uma vez que o trabalho da Semiótica, como teoria da significação, consiste em “explicitar, sob forma de uma construção conceitual, as condições da apreensão e da produção do sentido” (Greimas e Courtés: 2008). Fiorin (2008a) reforça as pretensões da teoria, ao ressaltar que a Semiótica “procurará determinar o sistema estruturado de relações que produzem o sentido do texto”. (p. 20) I – A “ausência de sentido” em Harold Pinter Falar de Pinter é falar de uma das mais marcantes ramificações do chamado teatro pós-moderno ocidental – o teatro do absurdo; é falar de uma poética dramática pautada pela consciência do vazio de sentidos da existência e pela impossibilidade de solucionar esse impasse; é falar de uma dramaturgia que se aproxima do ilógico e do irracional, consagrada em textos marcados pela quebra da linearidade e da causalidade, bem como pela apresentação de ações cujos motivos ou explicações são deliberadamente omitidos. O teatro do absurdo, segmento no qual Harold Pinter (1930-2008) figura como um dos grandes expoentes, ao lado de Eugène Ionesco (1909-1994), Samuel Beckett (19061989) e Fernando Arrabal (1932), teve seus primeiros textos divulgados no início dos anos 50 do século XX, na esteira dos desatinos deixados pela Segunda Guerra Mundial. Para que reconstruir as casas e as vidas diante do temor de um novo conflito? Nessa época, autores como Albert Camus e Jean-Paul Sartre criam teorias existencialistas que têm o pessimismo como leitmotiv. As peças do teatro do absurdo são, portanto, parte de uma realidade manifesta, a qual se revela por uma linguagem ambígua e de difícil decifração, desdobramento daquele cenário de perplexidade e dúvida. Para Pinter, a linguagem é um recurso comunicativo extremamente ambíguo. Assim, frequentemente, nos seus textos, sob as palavras ditas, está a coisa notável e não dita. A minuciosa reprodução da linguagem cotidiana, a qual assoma em ações estranhamente triviais, acentua a vagueza e superficialidade da comunicação humana e a ausência de sentido da existência.

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A fraqueza do componente pragmático identificada na peças teatrais de Harold Pinter tem afastado o público brasileiro dos espetáculos produzidos a partir de seus textos – encenações quase sempre ascéticas, que procuram ressaltar a excelência da dramaturgia pinteriana.

Em entrevista à revista Digestivo Cultural (2009), Denise

Weinberg (atriz e diretora teatral carioca, estudiosa da obra de Pinter) e Alexandre Tenório (diretor teatral, tradutor e pesquisador da dramaturgia do autor) tentam explicar o desinteresse, entre nós, pela obra do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2005:

Alexandre – É uma dramaturgia da qual as pessoas saem e dizem “nossa, que difícil!”. Poxa vida, passaram 40 anos e ainda está difícil entender! Tem alguma coisa errada... Digestivo Cultural – O público está pronto para ele? Denise – Não, não... Dá pena... (...) É uma lavagem cerebral, as pessoas só entendem novelinhas, historinhas com começo, meio e fim, cartesianas. As pessoas não têm mais abstração, ou é preto ou é branco.

O trabalho aqui apresentado erige-se sobre a crença na possibilidade de encontrarmos, em teorias do discurso, como a Semiótica, a fundamentação necessária para mudarmos o quadro apresentado pelos dois entrevistados, aproveitando, ao máximo, nas atividades leitoras escolares, o potencial cognitivo e social dos textos teatrais pós-modernos. A seguir, fazemos a descrição do nosso objeto de análise. II – A peça teatral Escrita no início da década de oitenta do século XX, Estação Vitória consiste em um diálogo travado, por telefone, entre o controlador de uma central de táxi (identificado, nos seus turnos de fala, apenas como “Controlador”) e um motorista da central (identificado, em cada turno de fala, como “Motorista”, e, nos diálogos, pelo seu número, 274). O motorista, segundo ele mesmo informa à central, encontra-se parado em um estacionamento escuro, próximo ao Palácio de Cristal, em Londres, supostamente à espera de instruções. É acionado via telefone pelo controlador, que o instrui a dirigir-se à Estação Vitória para apanhar um cliente que está prestes a chegar de Boulogne, no expresso das 10:22, e conduzi-lo a Cuckfield.

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Estranhamente, o motorista parece não entender a ordem.

A partir daí,

desenvolve-se um curioso diálogo entre os dois homens – o controlador tentando convencer o motorista a ir ao encontro do passageiro, na Estação Vitória, e o motorista perdendo-se em evasivas, sem esboçar qualquer reação para atendimento da ordem. À medida que a conversa avança, o alheamento do motorista faz crescer a irritação do controlador, o qual chega ao paroxismo do desespero, produzindo-se um efeito de humor decorrente de sua frustração com o insucesso da comunicação. Ao longo do texto, são feitas algumas revelações que, conforme a receita do teatro do absurdo, não recebem as devidas explicações: a certa altura, o controlador, ao ser notificado pelo motorista de que este se encontra estacionado em frente ao Palácio de Cristal, informa-o da destruição do Palácio, em um grande incêndio ocorrido há muitos anos; o motorista, por seu turno, revela-se apaixonado (segundo ele, pela primeira vez) por uma passageira que se encontra inerte no banco de trás de seu táxi, embora, posteriormente, afirme ser casado com uma mulher que o aguarda em casa, juntamente com sua filha. Um clima de expectativa e tensão instaura-se nas páginas finais do texto, quando o controlador, no auge de sua cólera, após vociferar ameaças e impropérios ao motorista, muda repentinamente de comportamento, passando a exibir uma docilidade inesperada e revelando o desejo de ir ao encontro do motorista, supostamente para cumprimentá-lo pessoalmente por haver encontrado o verdadeiro amor de sua vida. Nos dois turnos finais, acentua-se a expectativa, sem que fiquem claras as reais intenções do controlador: CONTROLADOR – Não saia do lugar. Fique exatamente onde está. Eu já estou indo. MOTORISTA – Eu não vou sair do lugar. (Silêncio.) Vou estar aqui. (Blackout no escritório. O motorista fica parado. Blackout no carro.) FIM

III – Estação Vitória: uma leitura semiótica O texto de Harold Pinter, ilustra, com bastante propriedade, uma modalidade de “peças teatrais absurdas” marcadas pela reiteração de ações banais e monótonas aparentemente injustificáveis. Tal qualidade confere a textos como este a aura de

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“difíceis”, impondo barreiras à compreensão dos leitores que, por caminhos vários, deles se aproximam. O nível do percurso gerativo do sentido dotado de recursos mais eficazes para a leitura proficiente de textos revestidos de tais características é, certamente, o nível narrativo. Barros (1995) apresenta os desenvolvimentos da sintaxe narrativa, desde os primeiros trabalhos, dedicados ao estudo das ações do homem no mundo. Naturalmente, essa “teoria da performance dos sujeitos” ajusta-se mais adequadamente a textos dotados de um componente pragmático mais forte, nos quais diferentes sujeitos almejam o mesmo objeto, o que não é, evidentemente, o que encontramos em Estação Vitória. Para a interpretação de materiais como esta obra de Pinter, convém recorrer às contribuições do modelo de sintaxe narrativa que se seguiu ao anterior. Nesta segunda fase, as investigações semióticas afastam-se da ação, passando a focalizar os antecedentes da ação, ou seja, a manipulação e a competência dos sujeitos. Atenta-se para o fato de que o fazer exige condições prévias, conforme destacado por Fiorin (2008b: 115): “Só pode realizar uma ação o sujeito que quer e/ou deve, sabe e pode fazer. É isso que se chama competência modal do sujeito.” Desta feita, para a interpretação de textos de componente pragmático tão fraco, como Estação Vitória, deve-se proceder à descrição da modalização do fazer dos sujeitos da ação (ou inação). A modalização do fazer dá-se quando um predicado do fazer é sobredeterminado por um predicado modal (querer/dever/saber/poder). Este novo recurso da sintaxe narrativa permite fornecer explicações satisfatórias para uma tipologia mais variada de textos, além dos textos de ação. De fato, Estação Vitória pertence a uma modalidade de textos teatrais cujo sentido assenta não nas ações dos sujeitos, e, sim, nas manipulações malogradas do sujeito destinador (o controlador) sobre o sujeito principal (o motorista) e nas sucessivas recusas deste às investidas daquele, conforme atestam os fragmentos a seguir, retirados de dois diferentes momentos da peça:

CONTROLADOR – 274? Onde você está? (Luzes no motorista, no carro.) 274? Onde está você? (Pausa) MOTORISTA – Alô? CONTROLADOR – 274? MOTORISTA – Alô? CONTROLADOR – É o 274?

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MOTORISTA – Sou eu. CONTROLADOR – Onde você está? MOTORISTA – O que? (Pausa) CONTROLADOR – Estou falando com o 274? Certo? MOTORISTA – Está sim. Sou eu sim. O 274. E quem é você? (pausa) CONTROLADOR – Quem sou eu? MOTORISTA – É. CONTROLADOR – Quem você acha que eu sou? Eu sou a sua central. MOTORISTA – Ah, sim. CONTROLADOR – Onde você está? MOTORISTA – Dando uma volta. CONTROLADOR – Como é que é? (pausa) Olha, filho, tenho uma corrida aqui pra você. Se estiver na área. Onde você está? MOTORISTA – Só dando uma volta. CONTROLADOR – Pois pare de dar volta. Ninguém mandou você ficar dando volta. Pare de ficar dando essa porra de volta. (pausa) 274? MOTORISTA – Alô. Sim, sou eu sim. CONTROLADOR – Quero que vá até a Estação Vitória. Quero que pegue um passageiro que está chegando de Boulogne. É isso que eu quero que você faça. Tá me entendendo? O que eu preciso saber é onde você está. E não me venha com essa história que está dando volta. Quero saber é se está perto da Estação Vitória. MOTORISTA – Estação o que? (pausa) CONTROLADOR – Vitória. (pausa) Será que pode fazer isso por mim? MOTORISTA – O que? * * * CONTROLADOR – (...) Olha, 274. Tudo me leva a crer que você está dirigindo um Ford Cortina. Eu gostaria muito que você fosse à Estação Vitória. Mas não quero que vá a pé. Quero que vá de carro. Certo? MOTORISTA – Tudo que você diz tá certo. Esse aqui é um Ford Cortina. CONTROLADOR – Ótimo. Muito bem. E você está sentado dentro dele enquanto estamos tendo essa nossa conversa, não está? MOTORISTA – Exatamente. CONTROLADOR – Onde? MOTORISTA – Em frente a um parque. CONTROLADOR – Em frente a um parque? MOTORISTA – É. CONTROLADOR – Que parque? MOTORISTA – Um parque escuro. CONTROLADOR – Escuro por que? (pausa) MOTORISTA – Essa não é uma pergunta fácil. (pausa) CONTROLADOR – Não? MOTORISTA – Ah, não. (pausa) CONTROLADOR – Lembra daquele passageiro que te falei? Aquele que vai chegar na Estação Vitória? Bem, ele vai estar muito interessado que você o leve até Cuckfield. Tem uma tia velha

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morando lá. E algo me diz que ela vai deixar uma fortuna pra ele. Ele está indo a Cuckfield para demonstrar seu afeto pela velha. Vai estar de bom humor. Se souber jogar o laço, quem sabe consegue faturar algum também? Que tal? (pausa) 274? MOTORISTA – Sim? Estou aqui. CONTROLADOR – Vá à Estação Vitória. MOTORISTA – Não sei o que é isso. CONTROLADOR – Não sabe o que é? MOTORISTA – Não. O que que é? (silêncio) CONTROLADOR – É uma estação de trem, 274. (pausa) Nunca ouviu falar? MOTORISTA – Não, nunca. Que tipo de lugar é esse? (pausa) CONTROLADOR – Nunca ouviu falar da Estação Vitória? MOTORISTA – Nunca. Não. CONTROLADOR – É uma estação que todo mundo conhece. MOTORISTA – Bem, honestamente não sei o que tenho feito todos esses anos. CONTROLADOR – O que que você tem feito todos esses anos? MOTORISTA – Bom, eu honestamente não sei.

Embora modalizado pelo poder e pelo saber – e, portanto, dotado da competência necessária à execução da performance (ir à Estação Vitória para pegar o passageiro indicado pelo controlador e levá-lo ao seu destino) –, bem como pelo dever, o motorista não é modalizado pelo querer. Este sujeito coagido (o qual deve, mas não quer realizar a ação) impede que a narrativa evolua para a sequência da performance, enfraquecendo o componente pragmático da peça de Harold Pinter. Isto confere ao leitor pouco afeito a essa tipologia de texto a sensação de que simplesmente nada acontece e de que a história acaba abruptamente. Entretanto, a inatividade presente no texto, bem como sua formatação sobre uma sequência narrativa incompleta, ajusta-se inteligentemente aos significados evocados pela peça (inércia existencial face às indefinições do mundo moderno), promovendo um perfeito isomorfismo entre expressão e conteúdo. Eis aí, flagrada com o auxílio dos recursos da Semiótica, a engenhosidade do texto de Harold Pinter. Referências ARAÚJO, Alcione (2006). Dramaturgia, educação e cidadania. In: VÁRIOS. Leituras compartilhadas. Leitura ampla: a construção do olhar. Rio de Janeiro: Leia Brasil, v. 5, p. 43-46. Fascículo especial. BARROS, Diana Luz Pessoa de (1995). Sintaxe narrativa. In: OLIVEIRA, A. C.; LANDOWSKI, E. Do inteligível ao sensível. Em torno da obra de Algirdas Julien Greimas. São Paulo: EDUC. p. 81-97.

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LITERATURA E PINTURA: DIÁLOGO ENTRE GRACILIANO RAMOS E CÂNDIDO PORTINARI Larissa Cristina Arruda de Oliveira UFSCAR Tânia Pellegrini UFSCAR “O universo das palavras anda muito perto do universo das imagens” (Arlindo Daibert)

RESUMO O presente estudo pretende mostrar como as obras de dois grandes artistas brasileiros – Graciliano Ramos e Candido Portinari - estão próximas, não apenas enquanto conteúdo social e temático, mas também enquanto forma, recursos técnicos e estilo. Para isso faremos uma análise comparativa entre as obras literárias, São Bernardo (1934) e Vidas Secas (1938), e as obras pictóricas, Lavrador de café (1934), Café (1935) Retirantes (1944), Criança Morta (1944), cada uma respeitando as particularidades da linguagem literária e visual. A proposta é realizar uma interpretação dialética baseada nos conceitos de Antonio Candido e Frederic Jameson. Introdução

Brasil, década de 30. Um país em pleno surto de industrialização pode ter dificuldade em aceitar, como sua expressão mais verídica na arte, um retrato de miséria e subdesenvolvimento, de seca e de vida quase primitiva. E, contudo, como negar que os romances São Bernardo e Vidas secas, de Graciliano Ramos, e os quadros Café, Lavrador de café, Retirantes e Criança Morta, de Cândido Portinari, representam a realidade do nosso país?

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Correspondência A imagem do nordestino arrasado e do trabalhador, que persegue Graciliano encontra sua representação na arte de Portinari. O escritor Antonio Callado, na biografia Retrato de Portinari (1979), afirma estar certo de que a razão da sólida amizade que o uniu a Graciliano Ramos é que ambos foram levados ao comunismo por um estranho desejo de justiça social. Esse anseio pode ser percebido na correspondência entre eles: “ (...) Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo as deformações e a miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram. O que às vezes pergunto a mim mesmo com angústia, Portinari, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejaríamos que realmente elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças? Dos quadros que você me mostrou quando almocei no Cosme Velho pela última vez, o que mais me comoveu foi aquela mãe a segurar a criança morta. Saí de sua casa com um pensamento horrível: numa sociedade sem classes e sem miséria seria possível fazer-se aquilo? Numa vida tranquila e feliz, que espécie de arte surgiria? (...)”1

Essa carta revela a importância da realidade social para os dois artistas, o que os tornam realistas críticos. Nos seus últimos anos de vida, Graciliano presenciou um debate literário que inflamou todo um grupo de escritores. Discutia-se o chamado realismo socialista em oposição ao realismo crítico. O realismo crítico ou social, segundo Abdala Jr (1981), aponta para a situação histórico-específica de cada país, é uma expressão consciente das realidades sociais. Para Annateresa Fabris (1990), é um tipo de arte pública, dirigida ao proletariado, centrada no trabalhador e na esquálida realidade, o que implica uma crítica a realidade social circundante. Já o realismo socialista, de acordo com Ernest Fischer (2002), se refere claramente a uma atitude, e não a um estilo, e enfatiza a perspectiva socialista e não um método realista, implicando uma concordância com o mundo socialista. Tratava-se ainda de exalta a arte revolucionária em um misto de exaltação aos feitos bolcheviques e culto a Stálin. Não seria nenhuma revelação dizer que Graciliano e Portinari são por excelência realistas críticos. Sua crítica incidia sobre a realidade cotidiana e sua arte exprimia a exploração do homem pelo homem, desumanamente. Os personagens dos romances de Graciliano revelam isso: Paulo Honório, o explorador, e Fabiano, o explorado. Assim como os quadros, Lavrador de café e Café, evidenciam as condições do trabalhador 1

MORAES, Denis. O velho Graça, uma biografia de Graciliano Ramos. RJ: José Olympo, 1992. (trecho da carta que Graciliano enviou a Portinari em 15 de fevereiro de 1946).

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mostrando pés e mãos inchados pelo excesso de trabalho, carregadores de café sentados no chão devido ao cansaço, enquanto o capataz em posição altiva dá as ordens e as obras da série de retirantes denunciam a miséria humana. Por isso, o realismo, enquanto postura diante da realidade parece ser a perspectiva que melhor se enquadra aos artistas, ou seja, uma postura expressa especialmente na característica de observação crítica: Enquanto postura e método, o realismo desde o inicio negou que a arte estivesse voltada apenas para si mesma ou que representar fosse apenas um ato ilusório, debruçando-se agora sobre as questões concretas da vida das pessoas comuns, representadas na sua prosaica tragicidade. (PELLEGRINI, T. Realismo postura e método p. 137146.).

Outro ponto em comum entre Graciliano Ramos e Candido Portinari foi a acusação de serem artistas oficias, ou seja, “se venderem” ao Estado porque trabalhavam em órgãos, publicações e projeto culturais do governo. De fato, as relações da elite intelectual brasileira com o regime foram marcadas pela ambiguidade. A dependência econômica expunha a fragilidade de boa parte da intelectualidade face ao assédio do poder, abria brechas para a colaboração no interior do aparelho do Estado. Essa colaboração se confundia com adesismo e cumplicidade político-ideológica. Graciliano adquiriu o rótulo de “oficial” devido a sua longa permanência na revista Cultura Política, controlada pelo DIP. Portinari trabalhou para o Estado Novo, aceitou numerosas encomendas, entre elas os 12 murais sobre os ciclos econômicos no antigo Ministério da Educação atual Palácio Gustavo Capanema. O que caracterizou o período do Estado Novo foi a política trabalhista de Getúlio Vargas que pode ser vista sob dois aspectos: o das iniciativas materiais e o da construção simbólica da figura de Getúlio Vargas como protetor dos trabalhadores. O trabalho passa a ser exaltado de todas as formas possíveis, dos discursos oficias ao sambas carnavalescos o trabalho aparece não só como fonte de felicidade, mas sobretudo como conquista de status. A interpretação da realidade feita por Portinari nunca foi a oficial, assim como a de Graciliano. Eles colocam em primeiro plano o homem do povo, o homem comum. A expressão “oficial” carrega a ideia de adesismo, de cooptação, de submissão interesseira à ideologia dominante; não foi o que ocorreu com eles. Basta analisar suas obras e veremos que não há qualquer ligação entre eles e o populismo.

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No governo populista o trabalho é transformado no principal homogeneizador social, os trabalhadores são igualados e contrapostos a uma única categoria, os não trabalhadores. Na arte de Portinari não existe essa homogeneização: há identificação do trabalhador com o negro, agigantado e do capataz com o branco, diminuído; há deformação expressiva de pés e mãos, símbolos da capacidade produtora do povo. Os Retirantes desmascara a política populista e faz uma reflexão critica do momento histórico. Os murais mostram trabalhadores em algum instante de labuta, carregando sacos de café, incisando seringueiras, defumando em rolos a borracha, colhendo o fumo ou o algodão. Como sempre agigantados os músculos dos braços, os pés, as mãos, que representam tensões, esforços, e a ligação intensa do homem com a terra. Do todo se depreende uma sensação de dignidade. Porém dignidade não quer dizer ufanismo. Não há como não falar de pintura engajada, de denúncia. Mesmo nas obras feitas por encomenda do Estado, Portinari consegue introduzir uma visão crítica de uma realidade social brasileira onde do trabalho nada tem de triunfante.2

Sobre a denúncia à realidade na obra de Portinari, o crítico de arte Carlos Zílio afirma: “Portinari consegue a proeza estilística de ser um artista oficial sem abandonar os princípios de uma arte social” (ZILIO,C. Da Antropofagia à tropicália, p.16). O mesmo se aplica aos romances de Graciliano, pois segundo Fabris (1990) Temos na literatura do novo realismo social, um referente que aponta para a situação históricosocial específica de cada país. O que significa que esse realismo seria ao mesmo tempo uma expressão consciente das realidades sociais e parte integrante do combate que modificará essas realidades. O caráter de protesto e/ou denúncia inerente a maioria das manifestações do realismo social, explica a escolha de certos modos expressionistas de figuração. A linguagem expressionista, pela força emotiva e psicológica de sua deformação, parece ser realmente a mais adequada à expressão do pensamento social de Portinari e Graciliano. O Expressionismo é um fenômeno que surgiu na Europa, como uma arte engajada, que tende a incidir profundamente sobre a situação histórica. “O Expressionismo se opõe como antítese ao Impressionismo, mas o pressupõe: ambos são movimentos realistas que exigem a dedicação total do artista à questão da realidade [...]. O Expressionismo nasce não em oposição às correntes modernistas, mas no interior 2

ARAUJO, Olivio. Pequeno ensaio Pró Portinari. p. 132.

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delas, como superação de seu ecletismo” (ARGAN, 1996, p. 227). Argan (1996) também argumenta sobre a deformação expressionista: A deformação expressionista que em alguns artistas chega a ser agressiva e ofensiva, não é deformação ótica: é determinada por fatores subjetivos (a intencionalidade com que se aborda a realidade presente) e objetivos (a identificação da imagem com uma matéria resistente) (ARGAN, 1996, p. 240)

A deformação expressiva é o veículo de que se serve o artista para afirmar o caráter positivo do trabalhador em oposição à dimensão alienada do trabalho. A denúncia de uma realidade opressora está no gigantismo, nas cores, na linguagem seca e ríspida. Essa arte social aparece tanto em Graciliano quanto em Portinari como uma vontade de reagir, ou pelo menos, resistir a uma realidade profundamente hostil, que nos mostra todo o tempo a humanidade alquebrada pela dor. Uma de interpretação dialética Há várias denominações para o mesmo tipo de abordagem sobre o texto literário: crítica cultural materialista, crítica dialética, crítica literária marxista, análise sociológica. Porém, todas com um mesmo ideal: conjugar a informação sociológica sobre o contexto histórico com um conhecimento preciso do estatuto do discurso analisado, para fugir da tendência de ver a obra como mera ilustração da realidade. Segundo Luiz Costa Lima (2002) a análise sociológica se volta para a área do discurso, frequentemente com o propósito de ilustrar, exemplificar ou comprovar uma interpretação de caráter bem mais abrangente: a interpretação de certa sociedade. Sua tendência será a de ver as obras literárias e artísticas como epifenômenos do tecido social, como “documentos da realidade”, capazes por si de dizerem desta. Do mesmo modo, a proposta da crítica dialética, é realizar a descrição das estruturas significativas imanentes à obra e a relação entre essas estruturas e a realidade social brasileira, relação estabelecida através da mediação de uma visão de mundo, a qual, por sua vez, é a expressão conceitual e efetiva do máximo de consciência possível de determinado grupo social. Enquanto instrumento de descoberta e interpretação da realidade sócio-histórica, a crítica dialética encontra na literatura um objeto fundamental de estudo. De acordo com Jameson (1985), o domínio fechado da literatura, a situação experimental que ela constitui com seus problemas característicos de forma e conteúdo, e da relação da

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superestrutura com a infra-estrutura, oferece um microcosmo privilegiado para se observar o pensamento dialético em operação. Entre os críticos brasileiros, a obra de Antonio Candido inaugura a crítica sociológica como um trabalho de sondagem da realidade social. Em seus estudos ele mostra as relações entre realidade sócio-histórica e literatura através da dialética forma e conteúdo: Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas [texto/contexto]; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CANDIDO 2006, p.8-9)

O método marxista de interpretação literária proposto por Frederic Jameson, em O Inconsciente Político (1992), parte de uma análise imanente do texto, de um desmantelamento ou desconstrução de suas partes e de uma descrição de seu funcionamento ou mau funcionamento para resgatar no texto seu conteúdo político inconsciente. Isto é, admitir a própria forma como conteúdo, não apenas elencar elementos sócio históricos do texto, mas aceitar que o texto é produto de uma cultura determinada historicamente. Neste sentido ele apresenta três momentos do processo de interpretação, para inteligibilidade do texto literário. Em seu modelo, há uma sequência ordenada de níveis dentro da obra, ou seja, uma série consecutiva de momentos no processo interpretativo.

O primeiro nível ou momento do processo de interpretação é nomeado ato simbólico. A literatura ou o quadro, isto é, o objeto de estudo, é entendido como ato simbólico, ou seja, apreendida como uma estrutura determinada de contradições reais. A forma, seja ela estética ou narrativa, deve ser vista como ato ideológico cuja função é dar soluções inventadas ou formais para contradições sem solução. Em nosso objeto de estudo há duas grandes contradições reais a serem analisadas: a ambígua relação entre os intelectuais (Graciliano Ramos e Cândido Portinari) e o Estado; e a contraditória realidade do Brasil na época, uma sociedade regida por estruturas patriarcais vivendo a chegada do Modernismo e do Capitalismo.

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No segundo nível de interpretação, deve-se demonstrar o “ideologema”, ou seja, “a menor unidade inteligível dos discursos coletivos essencialmente antagônicos das classes sociais” (JAMESON, 1992, p.69). Nesse sentido, o horizonte de interpretação amplia-se para incluir a ordem social. As classes sociais devem ser definidas como antagônicas, de modo que seja sempre a oposição entre uma classe dominante e uma classe trabalhadora. O núcleo central do romance São Bernardo é o conflito que opõe por um lado as forças que reduzem o homem a uma vida mesquinha e miserável no interior da alienação do pequeno mundo burguês, e por outro, as que impulsionam o homem a descobrir um sentido para a vida na fraternidade e na solidariedade com seus semelhantes. Essa mesma oposição de classes está presente em Vidas Secas, através das personagens Soldado Amarelo e o patrão, representantes da classe dominante, e Fabiano, o trabalhador. Do mesmo modo que em Café temos o capataz diminuído e os trabalhadores agigantados em oposição na mesma tela. No terceiro nível interpretativo, a leitura deve considerar o conceito de ideologia da forma. A análise da ideologia da forma deve revelar formas de estruturas arcaicas e recentes de alienação. Desse modo, dar visibilidade a formas de alienação pode ser uma maneira de resistir a reificação, o que vincula a reestruturação do texto à História. Sabemos que a sociedade capitalista é a sociedade em que a alienação assume claramente as características da reificação. A reificação como fenômeno econômico é o processo pelo qual os valores de uso passam a ser vistos como valores de troca e, portanto, mercadorias. Em uma sociedade capitalista, esse processo deixa de ser um componente exclusivo das forças econômicas e passa a penetrar na vida dos indivíduos, provocando uma descaracterização das relações: “A velha Margarida mora aqui em São Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu.” (RAMOS, 2008, p.16) Desde o início do romance somos introduzidos no “pequeno mundo” de Paulo Honório, um mundo reificado, um mundo já capitalista, que se curva à sua vontade. É em Vidas Secas, porém, que vamos ter, talvez mais forte do que em qualquer outro livro seu, a imagem da solidão como contingência fatal de condição humana alienada e reificada: a alienação do homem em relação à espécie humana, a redução do humano à satisfação das necessidades animais, com sacrifício das necessidades especificamente humanas. 897

Essa alienação pode ser vista nos quadros da maneira como os trabalhadores são reduzidos à seu trabalho. Em Lavrador de café, os pés, as mãos e sobretudo a enxada, tomam por completo o primeiro plano da tela, assim como os sacos de café que escondem os rostos do trabalhadores em Café chamam a atenção do expectador. Em Criança Morta a tragédia está presente não apenas nos rostos dos retirantes e no drama humano que tematiza a obra, mas é acentuada pelo tratamento formal: cores fortes, textura densa. Em Retirantes (1944) a natureza dá o tom trágico: carcaças, cactos, urubus, ossadas formam o cenário junto a família de sertanejos deformados pela miséria. Conclusões As obras, tanto os quadros como os livros, citados foram interpretados em três níveis de leitura, como sugere a interpretação sociológica de Jameson e Cândido, priorizando a dialética forma e conteúdo. A partir do conteúdo manifesto identificamos as contradições do Brasil da época e as soluções formais encontradas pelos artistas. Revelamos as estratégias de contenção e a ideologia contida na forma para recolocarmos essas obras na totalidade da História e apreendermos seu inconsciente político, suas narrativas ocultas. Tanto para Graciliano como para Portinari, a arte é um ato de consciência crítica e sua função é mostrar os aspectos negativos da sociedade em que vivem. É principalmente através dos narradores e das figuras em destaque nos quadros, representantes das classes sociais em que estão inseridos, que essa crítica acontece. O nível mais profundo da obra desses dois artistas é a denuncia social dessa realidade do trabalhador brasileiro, de atraso social e suas consequências. Esse é o conteúdo essencial que está reprimido devido as condições e a época em que os artistas produziram essas obras mas, que pode ser resgatado através de uma análise dialética entre forma e conteúdo. Anexos

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Lavrador de café, 1934

Café 1935

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Criança

Morta

1944

Retirantes, 1944. Referências ABDALA Jr, Benjamin. A escrita neo-realista: análise sócio-histórica dos romances de Carlos de Oliveira e Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1981. ARAUJO, Olívio Tavares. Pequeno ensaio pró-Portinari. In: Portinari Devora Hans Staden. Editora Terceiro Nome. Deutische Bank, SP, 1998. ARGAN, Giulio. Arte moderna: do ilusionismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. BUENO, Luis. Uma história do romance 30. São Paulo: Edusp, 2006.

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CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão, ensaios sobre Graciliano Ramos. 3ª.edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. COUTINHO, Carlos Nelson. Análise estrutural dos romances de Graciliano Ramos. Revista Civilização Brasileira. número 5/6, 1969. FABRIS, Annateresa & FABRIS, Mariarosaria. A função social da arte: Cândido “A função social da arte: Cândido Portinari e Graciliano Ramos”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo: SP, n 38, p. 11-19, 1995. FABRIS, Annateresa. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1990. JAMESON, Frederic. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. Valter Lellis Siqueira (Trad.). São Paulo: Ática, 1992 ______________. Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX. São Paulo: Hucitec, 1985 PELLEGRINI, Tânia. Realismo postura e método. Letras de Hoje. Porto Alegre, v.42, n.4, dez, 2007. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 87 ed, Rio de Janeiro: Record, 2008. ________________. Vidas secas: 70 anos. Edição especial comemorativa ilustrada. Rio de Janeiro: Record, 2008. (ilustrado pelo fotógrafo Evandro.

(IM)PRECISÕES SOBRE (ORF)EU: O POETA DA MORTE E A MORTE DO POETA (?) Leonardo Vicente Vivaldo [email protected] UNESP/FCLAr Antônio Donizeti Pires UNESP/FCLAr a Lyra Soares de Almeida, In Memoriam (aqui o fado encontrará por ironia triste eco derradeiro doutra lira) I) Sobre este trabalho Antes de qualquer coisa, a despeito do título deste trabalho que, claro, fez-se voluntariamente ambíguo, mas, preciso é, portanto, explicitá-lo: partilharemos aqui algumas modestas precisões sobre a poesia de Augusto dos Anjos (1884-1914) (estando

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“precisões” no sentido de resultados de nossa pesquisa que, acreditamos, tomam um rumo final – mas não, obviamente, o de palavra definitiva sobre a crítica do poeta) das quais vão acompanhadas de algumas outras imprecisões (interpretações nossas) acerca de uma despretensiosa leitura que, essa sim, ainda iniciamos sobre a figura/mito do Orfeu/Orfismo no universo poético de Augusto dos Anjos. Além disso, foi por dentre esse jogo de precisões e/ou imprecisões 1 que acreditamos termos encontrado mais um caminho possível para a compreensão da poesia do “poeta da morte”, como também passou a ficar conhecido em nossas Letras Augusto dos Anjos, que tocaria na tensão fatal de um niilismo latente que estaria enraizado na alma do final do século XIX, início do século XX, e que emanaria de sua poesia – o que acabaria por custar, como veremos, além de uma poética voltada para o Nada, também a “morte do Poeta” – no caso, de Orfeu (fato que, de certa maneira, colaboraria para sustentar a nossa tese: a do niilismo em Augusto dos Anjos). II) Niilismo, Nietzsche e Augusto dos Anjos Isso posto, em primeiro lugar, o que seria, portanto, niilismo? Grosso modo, segundo o filósofo Italiano Franco Volpi, podemos tentar resumir o niilismo como “o pensamento obcecado pelo nada” (VOLPI, 1999, p. 9). Portanto, de certa maneira, não é apenas o surgimento do termo em si (que ocorreu nas controvérsias que marcaram o nascimento do idealismo alemão, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX – mas sendo popularizado somente depois, através dos literatos russos: Turguêniev e Dostoiévski), mas determinadas particularidades que já pareciam precedê-lo nas mais variadas épocas e que tinham a questão do Nada (seja como início; seja como fim) reverberando como tema filosófico central e que, aí sim, no final do século XIX, conquistou mais força e acabou por alcançar seu diagnóstico mais preciso com o filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844–1900) – que, segundo Volpi, seria “o maior profeta do niilismo” (VOLPI, 1999, p. 102). E é justamente o niilismo pontuado por Nietzsche que nos interessou para contrastar com um possível niilismo em Augusto dos Anjos. Mas por quê? Afora toda a citação de biólogos, pensadores, literatos e outros filósofos, é justamente para “Frederico” Nietzsche que Augusto dos Anjos dedica um soneto 1

Que, apesar do que já fora dito, não podem ser levadas como estruturas rígidas demais, pois permutam, entre si, as ambiguidades de seus próprios sistemas – e talvez daí, para nosso desespero e prazer, as insolúveis questões filosófico-literárias.

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(ANJOS, 1995, p.468) – o que denunciaria, no mínimo, o conhecimento, e admiração, do filósofo alemão por parte do poeta paraibano. Contudo, acreditamos que não apenas isso. É, principalmente, para nós, a proximidade cronológica entre Nietzsche e Augusto dos Anjos que talvez reforce a ideia de que ambos sentiram, cada qual ao seu modo, os sintomas do niilismo que provinha do final do século XIX – e isso, de alguma forma, é o que tem norteado nosso trabalho. (Portanto, para nós, o niilismo – mas, sobretudo, o sistematizado por Nietzsche – é visto, em suas facetas e ambiguidades, como um fio condutor, dentre vários outros possíveis, que nos permite percorrer o tabuleiro poético de Augusto dos Anjos e através dele sentirmos pulsar o que fervilhava da alma de seu tempo). III) Augusto dos Anjos e o Orfismo (?) A relação entre Augusto dos Anjos e orfismo parece, de modo geral, ter passado despercebida pela crítica. É possível, evidentemente, encontrarmos uma ou outra aproximação, mas que, na maioria dos casos, parece mero expediente utilizado para realçar a poesia e/ou fazer poético. Em outros dizeres, é uma tentativa de se falar que aquelas palavras(estranhas, no caso de Augusto dos Anjos) eram realmente poesia – algo como, metonimicamente arriscar, que todo poeta é órfico, pois “portador da lira”. Sendo assim, esta parte da crítica não nos interessa aqui – pois apenas “adjetivar” uma poesia como órfica, sem explicar-lhe, por mais problemática que seja a questão do porque ela deve receber tal alcunha, pouco, ou nada, acrescenta ao tema 2. Pensando nisso, e nos últimos movimentos que tivemos feito em nosso estudo sobre Augusto dos Anjos, que além da questão do niilismo coube uma revisão bibliográfica de todos os textos críticos que fazem parte da edição da Obra completa de Augusto dos Anjos – organizada pelo poeta Alexei Bueno – onde encontramos, todavia, além das disseminações do Nada/niilismo que nos interessavam mais imediatamente, importantes observações sobre Orfeu/Augusto dos Anjos no texto “A poesia científica de Augusto dos Anjos” de José Escobar Faria (publicado pela primeira vez na Revista do Livro do Rio de Janeiro, em 1956). Esse texto em especial nos chamou a atenção, pois, muito provavelmente, seja o primeiro escrito em que realmente há um interesse em 2

É o caso, por exemplo, daquela crítica impressionista, em que vida e obra do autor se confundem – e que, por questões cronológicas, foi a primeira crítica sobre a poesia de Augusto dos Anjos (por volta de 1912 até meados da década de 40). Nessa primeira crítica, persistiu sempre uma tentativa, uma ânsia, de justificar, de alguma forma, a poesia de Augusto dos Anjos buscando sucessivamente injetar-lhe momentos de beleza ou ocultismo que, com certeza, não lhe são a regra, mas a exceção.

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entender o orfismo como problema, ou solução, na poesia anjosiana – e não mero adjetivo. Além disso, não deixa de ser no mínimo curioso que tal relação com o orfismo surja em um texto que pretende tratar do cientificismo(!). Enfim, de toda forma, ainda um pouco contaminado pela crítica “impressionista”, Faria procurou justificar a tese de uma poesia cientificista no poeta paraibano, além de uma crença monista, via Spencer e Haeckel. E nisso, diz Faria: Sem que percebesse, era um dualista com simpatias pelo monismo, nada mais, e a ciência confundindo-lhe o espírito menos científico do que órfico. Mas não diríamos Augusto litúrgico e dogmático, e sim um órfico aberto aos planos espirituais. (FARIA, 1995, p.143)

Faria supõe que esse Augustodos Anjos, confusamente monista, prostrara em seu altar os dogmas científicos, embora a vertente de sua poesia fosse órfica – pois, talvez, a necessidade órfica de harmonia, se recuperasse, apenas, pela catalogação fria da ciência? E é justamente esse embate (ciência x orfismo) que cria uma tensão na poesia de Augusto dos Anjos, onde reflete Faria: Ora, é incompreensível que um monista pudesse afirmar com certeza ter em si os atributos divinos da alma e do Criador. Não que Augusto se aproveitasse das ideias científicas em voga ao tempo, a fim de utilizá-las como temática do Eu. Estamos certos de que o poeta realmente as aceitou, como Dante aceitou a teologia católica adaptando-se à poesia e à ciência da era em que viveu. (FARIA, 1995, 144, grifo nosso)

Faria acerta em sublinhar na poesia de Augusto dos Anjos a atmosfera de deslumbramento que esse havia compartilhado da “Poesia Científica”, ou da chamada “Escola do Recife”, contudo, não concordamos de todo com sua ideia de mera aceitação da ciência como organizador do canto do poeta paraibano, pois acreditamos que Augusto vai além do cientificismo e a comparação com Dante, ainda que interessante, talvez seja um pouco exagerada, pois há na Commedia dantesca toda uma arquitetura teológica, além de uma unidade abissal, que poeta algum obtivera. Não é possível acreditarmos que a ciência tenha sido a espinha dorsal da poesia de Augusto dos Anjos, ao menos como fora a teologia católica para Dante. Do mesmo modo, há que lembrar-se que a teologia católica, ou qualquer teologia em si, pressupõe uma coerência, uma integração unívoca de dogmas, verdades absolutas, que podem servir de terreno hábil para a construção de um Todo: seja uma religião, um rito, uma igreja, ou mesmo um poema. Por outro lado, a ciência,

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necessariamente instável, não admite verdades eternas, é feita da interminável mudança e seu terreno é inseguro, podendo – e talvez até feito para – desabar a qualquer instante. E sim: tal instabilidade é campo propício para o cultivo do niilismo, e não de um sistema organizador (como poderíamos supor de uma vertente órfica). A grande questão, talvez, seja que a “Cientificidade” e a “Arte” de Augusto, soando profeticamente, não estão preocupadas em apenas descrever a máquina (caótica) do universo, e muito menos em harmonizá-la, como podemos entender ser a de um canto órfico, que permite a criação de um novo mundo por meio da crença no poder restaurador da palavra, mas, pelo contrário, espera-se mesmo desmontá-lo, destruí-lo, desintegrá-lo com todo seu furor num atômico “Apocalipse” (nome de um soneto de Augusto aos quais sãos os comentários a seguir de Faria): Eis um soneto onde algo se verá até mesmo da desintegração atômica pelas bombas, numa guerra, afetar todo um sistema – “... federações sidéricas quebradas...” –, se atentarmos às advertências de que poderosas explosões nucleares indiscriminadas desviarão o eixo deste louco planeta, com imprevisíveis catástrofes para todo o sistema de que é a unidade! O poeta, em sua “divinatória Arte”, observa a derrota da força integérrima da Massa, é dizer, que o homem alcançará dissociá-la; e hoje aí estão os colossais desintegradores a bombardear e alterar a constituição da matéria, isto é, dos átomos que a compõem. No “Apocalipse”, Augusto vaticina: “É a subversão universal que ameaça/ A Natureza [...]/ E põe todos os astros na desgraça” (FARIA, 1995, p. 146)

Não é apenas a crença visceral na matéria, na realidade crua, mas a própria aniquilação da matéria que clama a poesia anjosiana. É a “derrota na atual força”. Parece não haver nenhum monismo que sustente essa desintegração – seja ela física, quântica ou espiritual – não há “astros” nem “Federações sidéricas” que de suporte: os primeiros estão “na desgraça”; e as segundas “quebradas”. Tudo ali geme, explode, rebenta na dor de um eu, e de um universo, “agonizante”. Há que se possa argumentar que mesmo a destruição é necessária para a criação – e até mesmo para a criação do órfico. Contudo, nos parece, que em Augusto dos Anjos, a destruição é total e não visa nenhum sentido demiúrgico de criação que não o do próprio fazer poético que, diferente do canto órfico, não vem para reconstruir, mas apenas destruir novamente – em suma, uma aniquilação sem fim, eterno retorno da falta de sentido que nos assola (e que, justamente por conta dela, se faz necessário a destruição/desconstrução constante – mas nunca amena, sempre dolorosa, quebrada, arfante).

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E é logo após disso Faria entra definitivamente na discutível aproximação de temas órficos em Augusto dos Anjos – onde o cientificismo aparece, mais uma vez, transmutado em “Orfismo moderno” (pois, novamente, seria o mais próximo de um “canto organizador”, e até “encantador”, de nossa época). Há, finalmente, o sentido órfico da poesia de Augusto dos Anjos. Não sendo um dualista, não crendo, pois, na realidade do imponderável, ele nos oferece, entretanto, uma concepção órfica da existência [...] o desprezo à matéria em função da participação integral do espírito no Todo, caracterizado pelo sentido órfico [...] “Subi talvez às máximas alturas, / Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras/ É necessário que eu inda suba mais!” (“Solilóquio de um visionário”) [...] “Queixas Noturnas”: “As minhas roupas quero até rompê-las! Quero, arrancado das prisões carnais,/ viver na luz dos astros imortais/ Abraçado com todas as estrelas!”. Não faltou, aqui, nem mesmo o velho soma-sema do orfismo grego, em que é o corpo o cárcere da alma... (FARIA, 1995, p.148).

Contudo, vale-se ater que mesmo nesta incessante quaere superius de que fala Faria no poema “Solilóquio de um visionário”, já resvalaríamos no “materialismo” do, por exemplo, primeiro quarteto do mesmo poema (portanto, nem precisamos ir muito longe): “Para desvirginar o labirinto/Do velho e metafísico Mistério,/Comi meus olhos crus no cemitério,/Numa antropofagia de faminto!” (ANJOS, 1995, p.232). Desta forma, em se tratando de ascensão, o sagrado e os mistérios da essência universal, com certeza no poema são, no mínimo, um exemplo “contaminado” – como são, para nós, todos os outros deste tipo. Além disso, o desprezo pela matéria, pela carne, não se alia, em Augusto dos Anjos, a uma preferência ao espírito, ao metafísico, pois esses são simplesmente desacreditados. Confiamos que na poética anjosiana não existiu volta do Hades. Ou, melhor, muito menos existiu ali um Hades – espiritual ou metaforicamente falando. Além do disso, e ainda mais interessante, no segundo poema citado por Faria, “Queixas Noturnas”, encontramos algumas marcas mais sintomáticas, ao menos para nós, do, grosso modo, niilismo em detrimento do orfismo – ou da simbiose entre ambos. Já a partir do nome do poema, “queixas”, do latim vulgar quassiáre, que tem a ideia de algo que se move, abala (portanto, não em si harmonioso), e que também é, ao seu modo, algo íntimo, como o canto, mas, ainda sim, um canto feito de aflição, lamúria, desgosto – potencializado pelo adjetivo “noturnas”. E na primeira estrofe do poema já até temos uma aproximação de temas órficos “Andam monstros sombrios pela estrada/ E pela estrada, entre estes monstros, ando!”, mas que, aqui, não existe apenas o

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apaziguamento dos monstros, mas mesmo a identificação (ou confusão) do eu com os próprios monstros3 – pois o eu anda junto, entre, os monstros. Algumas estrofes em seguida, e exatamente depois dos versos citados por Faria, encontramos como o abraço a todas aquelas estrelas, por mais órfico que tenha parecido, foi, sobretudo, fatal, pois: A Noite vai crescendo apavorante E dentro do meu peito, no combate, A Eternidade esmagadora bate Numa dilatação exorbitante!

E muito antes de Orfeu é Hércules quem “dá as caras”: mas assim como tudo no universo poético de Augusto dos Anjos, Hércules também é uma figura falida, que até desponta com a sua força lendária, mas que aqui ela é apenas um joguete de forças ainda mais poderosas (natureza? Cosmos?) que esmagam a vida e suas representações:

É natural que esse Hércules se estorça, E tombe para sempre nessas lutas, Estrangulado pelas rodas brutas Do mecanismo que tiver mais força.

Esses mecanismos invencíveis de um universo completamente imparcial esmaga até mesmo o mais forte dos semideuses. Depois, talvez, surge mais um suposto sintoma órfico nos versos:

Não sou capaz de amar mulher alguma Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

Mas aqui, se é que encontramos sombras do orfismo, é justamente num dos mitemas mais trágicos da figura de Orfeu: já tendo perdido Eurídice, e desiludido por isso, acaba por rejeitar todas as outras mulheres – inclusive, deusas e ninfas (Orfeu, posteriormente, também instituiu os mistérios órficos, que serão vedados às mulheres). Logo após, dando sentido a poética niilista que ora defendemos, a harpa (lira) é enterrada e a voz também é abafada – nada consegue escapar do Nada:

Vou enterrar agora a harpa boêmia Na atra e assombrosa solidão feroz Onde não cheguem o eco duma voz E o grito desvairado da blasfêmia!

3

E não dirá também em “Psicologia de um vencido”: “Eu, monstro de escuridão e rutilância”?

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E, por fim, se nada escapa deste niilismo cósmico, porque escaparia Orfeu?: Seja esta minha queixa derradeira Cantada sobre o túmulo de Orfeu; Seja este, enfim, o último canto meu Por esta grande noite brasileira!

A noite, brasileira, sim, mas com certeza, também, universal: uma noite que se estendeu do canto para os espaços, para o eu, para o poema, e até para o poeta por excelência: Orfeu – ele que é a marca da poesia não poderia escapar da sanha terrível que assola toda a poética de Augusto dos Anjos e em que a morte é não uma fuga possível do corpo, mas uma certeza terrível e fatal acompanhada do nada eterno que nos espera. O canto de Orfeu, que ameniza a ferocidade dos animais, a natureza e o próprio destino trágico ao qual o mítico músico é submetido, possui, sempre, um resultado transformador. Seja como aquele que encanta ou como o amante que sofre, o motor de seu canto é o desejo de paz ou consolo; é o querer – este impulso de vida, causa da primeira inspiração –, força constante a nortear esta espécie de arquétipo dos cantores e poetas (ainda que nem todos o devam merecer). Orfeu é mortal, mas seu canto, ressoando o sofrimento da busca fracassada, deveria enfrentar e resistir à morte – portanto, ao Tempo. Mas aqui, em Augusto dos Anjos, não: Orfeu não tem nem mesmo o derradeiro canto da cabeça decepada, mas apenas o silêncio do túmulo e da voz. IV) Conclusão A alcunha “poeta da morte” se popularizou através do ensaio de mesmo nome de Antônio Torres, contemporâneo do poeta, e feito no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, em 27 de Dezembro de 1914 (apenas alguns dias depois da morte de Augusto – que morrera em 12 de Novembro do mesmo ano, vítima de pneumonia). Contudo, o que pouca gente a época notou foi que Torres havia retirado o título de alguns próprios versos de Augusto, que diziam:

“Nunca mais! Sê, porém, forte. “O poeta é como Jesus! Abraça-te à tua Cruz “E morre, poeta da Morte!” (ANJOS, 1995, p.297 – “Barcarola”)

908

Mas das dúvidas que tais comparações com Jesus possam suscitar, o próprio Augusto respondeu alguns versos a frente – e que justificaria não apenas o seu niilismo, mas o próprio enterro que preparou para Orfeu:

Vista de luto o universo E Deus se enlute no Céu! Mais um poeta que morreu, Mais um coveiro do Verso! (ANJOS, 1995, p.299)

Referências ANJOS, Augusto dos. Augusto dos Anjos – Obra Completa. Org. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. BRUNEL, P. (Org.). Dicionário de mitos literários. 4.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2005. FARIA, Escobar. A poesia científica de Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Augusto dos Anjos – Obra Completa. Organização Alexei Bueno. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p. 141-149. PIRES, A. D. O obscuro e ‘renomado Orfeu’ & problemas iniciais do orfismo. In: VOLOBUEF, K. (Org.). Anais do I Colóquio Vertentes do Fantástico na Literatura [2009]. Araraquara, SP: Laboratório Editorial, 2009. p.341-368. VOLPI, Franco. O Niilismo. Trad. Aldo Vannucchi. São Paulo, Edições Loyola, 1999.

FILMES COMERCIAIS CONTEMPORÂNEOS MAIS VISTOS: O SINCRETISMO AUDIOVISUAL EM FAVOR DA CONSTRUÇÃO DE EXPECTATIVAS. Levi Henrique Merenciano (CAPES) [email protected] UNESP/FCLAr Renata M. F. C. Marchezan UNESP/FCLAr RESUMO Os filmes hollywoodianos são um fenômeno de bilheteria. Mesmo o sendo, parece haver pouco interesse – por parte da academia – pelo estudo de sua organização discursiva e pela descrição das estratégias que os tornam objetos de significação tão procurados. Com o fito de realizar um estudo da estrutura desse tipo de texto audiovisual, propõe-se descrever os elementos semióticos (no que tange o plano de

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conteúdo e de expressão), a fim de lançar hipóteses sobre a estrutura fílmica e a construção de seu espectador. Pretende-se examinar os filmes mais consumidos na última década, segundo a fonte Box Office Mojo (www.boxofficemojo.com). Inicialmente, pensando nos resultados do levantamento, será analisado o filmes de maior bilheteria, entre 2001 e 2010: Avatar (2009). 1. A pesquisa de graduação. Durante a graduação e o mestrado, pesquisei a relação dos livros mais vendidos com o leitor brasileiro contemporâneo. Ao examinar os mais vendidos nas últimas décadas (relacionados nos rankings da revista), desenvolvi hipóteses sobre os motivos que levaram o leitor – projetado no discurso – a se identificar com esses textos de massa. Nesse projeto de I. C., examinei a organização discursiva dos livros mais vendidos nesse período, nas listas "ficção", de Veja. A partir dos rankings, organizei um corpus que pôde dar uma visão global dos livros mais vendidos nas últimas décadas no Brasil. Observei que o conteúdo dos mais vendidos refletiam as escolhas do leitor, pois alguns livros relacionavam-se aos fatos históricos de então ou dialogavam com tendências de comportamento da época em que foram escritos. Nesse caso, sugeri um perfil de leitor para os anos 70 e outro, para a década seguinte. De acordo com a recorrência das narrativas, os mais vendidos em exame tendiam a ser cada vez mais intimistas, sobretudo no final dos anos 80. Com isso, refletiam a escolha dos leitores e, desse modo, a busca social pela literatura que envolvia assuntos de realização pessoal e dicas práticas para o dia a dia. Assim, o tipo de livro mais consumido nas duas últimas décadas do século XX no Brasil (tendência que segue até hoje), segundo as listas de Veja, foi o da categoria autoajuda. 2. A pesquisa de Mestrado. Segundo os resultados obtidos com a pesquisa da graduação, estudei no Mestrado os livros de autoajuda mais consumidos a partir dos anos 90. Nesse trabalho, formulei hipóteses para explicar como a sua organização discursiva agradava o leitor e, dessa maneira, também dizer como poderia ser construída no interior da autoajuda uma imagem do leitor-enunciatário. Em resumo, a autoajuda constrói a imagem de um leitor carente, que, a partir da relação de fidúcia com o destinador do texto, deve construir a

910

própria competência (obtendo autoconhecimento), a fim de conseguir o bem-estar físico e mental (MERENCIANO, 2009a). O exame final da organização narrativa e discursiva dos mais vendidos levou-me a indicar os componentes semióticos recorrentes na maioria dos livros examinados. Isso ajudou a entender a sua estrutura, bem como suas estratégias discursivas, com vistas à doação de competências específicas ao leitor, projetado como enunciatário. A dissertação

de

mestrado

pode

ser

consultada

online

em:

. Os resultados desse trabalho também podem ser observados em um artigo em que analiso os três livros de autoajuda mais vendidos no período 19912006,

publicado

na

revista

do

GEL:

. 3. O projeto de Doutorado: contemporaneidade, cultura e cinema de massa. Após esse estudo do perfil de leitor brasileiro, constituído em textos verbais, passei a refletir sobre o texto sincrético audiovisual (continuando no contexto da cultura de massas), mais especificamente, sobre a linguagem do cinema comercial. A partir do seu estudo, objetivo explicar a construção da imagem discursiva do seu espectador – como se dão as identificações –por meio do exame dos filmes mais vistos (de 2001 até 2010), de acordo com levantamento em site especializado. Após consulta no site www.imdb.com, segue o corpus com os filmes mais vistos anualmente de 2001 a 2010, de acordo com valores totais de arrecadação:

Filmes hollywoodianos mais vistos de acordo com a bilheteria, de 2001 a 2010 Fonte: www.boxofficemojo.com

Ano

Título

Salas exibidas

Estúdio

Arrecadação total

2001

Harry Potter e a pedra filosofal

3672

WB

U$ 317.575.550

2002

Homem-aranha

3615

Sony

U$ 403.706.375

2003

O Senhor dos anéis: o retorno do rei

3703

NL

U$ 377.027.325

2004

Shrek 2 (3)

4223

DW

U$ 441.226.247

2005

Star wars: episódio 3 – a revolta dos Sith

3663

Fox

U$ 380.270.577

2006

Piratas do Caribe: o baú da morte

4133

BV

U$ 423.315.812

2007

Homem-aranha 3

4324

Sony

U$ 336.530.303

911

2008

Batman: o Cavaleiro das trevas (2)

4366

WB

U$ 533.345.358

2009

Avatar (1)

3461

Fox

U$ 749.766.139

2010

Toy story 3

4028

BV

U$ 415.004.880

4. A leitura de um mundo de significações Ler um mundo de sentidos implica qualificar a leitura, inicialmente, como processo de reconhecimento de letras e sua concatenação em enunciados. Por extensão, a noção de leitura pode ser ampliada, no sentido de traduzir diferentes formas de expressão (ou linguagens). Enquanto reconstituição do significante textual, a leitura é essencialmente uma semiose (GREIMAS & COURTÉS, 1979, p. 251), portanto, uma decodificação de signos, sejam lingüísticos ou não. No que diz respeito à sociedade contemporânea, saber ler de diversas formas é relevante tanto à interpretação do atento analista quanto ao olhar despretensioso do cidadão, em seu dia a dia. No interior da cultura contemporânea, é possível analisar, semioticamente, como se constituem segmentos de público específicos, bem como as formas como são representados no interior de suas práticas discursivas. Vários são os tipos de público, a quem se destinam os diversos produtos de massa, como o leitor de romances, o telespectador de novelas, o ouvinte de rádio, o espectador de cinema, entre outros. Esses diversos objetos de significação podem ser considerados “textos”. Segundo Greimas e Courtés (1979, p. 251), eles estão vinculados a diferentes procedimentos de leitura, pois o ato de ler (em sentido lato) vai além da interpretação do escrito. Enquanto manifestação de sentidos, um texto pode ser organizado por diferentes linguagens, a exemplos dos textos sincréticos pictórico do tipo: publicitário, audiovisual, da charge, etc. Nesses casos, imagem, som e texto estruram-se por meio da aglutinação de elementos pertencentes a diversos (PEÑUELA CAÑIZAL, 2008, p. 147). Enquanto formas de representação, os textos também podem ser estudados dentro de sua estrutura e de sua historicidade, permitindo maneiras de leitura ligadas a um determinado contexto e a sujeitos situados historicamente, fato que demanda estabelecer as relações entre os discursos e a história. Em torno desses alcances, as teorias do discurso descrevem a forma como os textos (verbais ou sincréticos) organizam-se e produzem significação. Buscam também

912

compreender a relação entre textos, tanto imersos no contexto em que são produzidos, como para quem o são. Como a prática de ler, neste estudo, possui uma direção semiótica, ela abrange a compreensão dos objetos culturais em geral, sendo um processo de decodificar diferentes manifestações de sentido. No contexto dos estudos semióticos, Fiorin diz que essas manifestações podem ser interpretadas à luz de teorias gerais da significação. Nessa direção, observa que as semióticas modernas analisam as diferentes manifestações do sentido, não estando alheias a nenhuma forma de exprimi-lo (FIORIN, 2008, p. 78). Por isso, o estudo semiótico de um determinado discurso oferece suporte para a compreensão de seu sentido, da relação que mantém com sua forma de expressão e, enfim, com outros textos. 5. Relevância do tema O meu interesse pelos filmes comerciais foi impulsionado, inicialmente, pela história da repercussão da cultura de massas na sociedade, assunto que abordo em um dos capítulos do mestrado, ao discutir socialmente a constituição da autoajuda. Dentre os trabalhos sobre o audiovisual, pesquisadores brasileiros como Peñuela Cañizal (2004) e Balogh (1996; 2002) analisam diferentes objetos sincréticos. O primeiro estuda filmes do segmento mais “Cult”, como Buñuel e Bergman. Balogh examina produções relacionadas à tevê no Brasil e a seus subprodutos (séries, novelas, etc). Afirma Cañizal (2004, p. 19) que a diferença entre o cinema poético e o comercial reside em que o primeiro constrói-se em função de rupturas inerentes ao processo poético, enquanto o segundo prioriza a obediência às normas de continuidade exigidas pela lógica de concatenar enunciados narrativos, relegando o poético para o segundo plano (isso não quer dizer que todo filme feito para multidões não possua veio poético). De acordo com as referências que venho pesquisando via internet e literatura impressa, observo que há uma carência de estudos que tratam do cinema comercial quanto ao seu conteúdo linguístico e expressivo relacionados à imagem criada do espectador. O fato de estudar cinema hollywoodiano já parece despertar uma certa curiosidade sobre a validade desse objeto de estudo. Mascarello (2006, p. 334-5) alerta sobre a inevitabilidade de estudar o cinema de Hollywood sem recorrer a aproximações negativas:

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Entre as consequências da abordagem segregativa do cinema hollywoodiano na universidade brasileira, está o seu descompasso para com a evolução internacional dos chamados “estudos de Hollywood”, ocorrida ao longo dos últimos 25 anos [...]. Em particular, a estratégica área de pesquisa do cinema hollywoodiano contemporâneo, tão privilegiada desde então, segue desconhecida no país (ibid. p. 334).

Afinal de contas, o cinema é uma mídia oscilante entre os campos de sua constituição ontológica e da indústria do cinema, o que parece tornar difícil reconhecer um campo de estudos homogêneo para ele (LYRA, 2002, p. 116). Assim, ao estabelecer um critério para os objetivos, Lyra (idem, p. 116) sugere que a natureza das análises do cinema deve passar: pelo processo de produção tecnológica; pela sua história; pela estrutura do código fílmico; e pela relação com o espectador. De acordo com esses critérios, será preciso contextualizar o cinema atual e as suas tendências por meio de uma breve descrição de como funciona essa indústria, a sua produção de massa, o seu mercado e os possíveis fatores que influenciam o comportamento do público espectador no âmbito das mídias de massa e da comunicação. O foco nos fatores socioculturais e midiáticos é importante, pois explica culturalmente como esses objetos são difundidos e recebidos e serve para sustentar as análises pretendidas da organização discursiva dos mais vistos. A proposta principal é a de investigar o porquê da tamanha procura pela linguagem audiovisual, materializada nas telas do cinema comercial. Estudarei a organização de conteúdo e expressão dos filmes selecionados, para, assim, definir e explicar as estratégias discursivas e expressivas do cinema, responsáveis por atender as expectativas do enunciatário-espectador. O objetivo será, portanto, lançar hipóteses sobre um perfil de espectador de cinema pop contemporâneo, partindo do exame da organização do conteúdo e da expressão dos filmes selecionados, por meio de uma abordagem semiótica do discurso e do plano da expressão, segundo Greimas & Courtés (1979), Fontanille (2007), Floch (1985; 1990; 1995) e Pietroforte (2004; 2007). 6. Metodologia: Semiótica plástica e exame do texto sincrético O sincretismo audiovisual constitui-se por meio do que Peñuela Cañizal (2008) designa como signo analógico. A sua unidade expressiva estrutura-se por meio da aglutinação de elementos pertencentes a diversos códigos (o visual, o sonoro, o verbal, etc.). Para explicar seu efeito de sentido mais autêntico, que reside na justaposição desses códigos (e não no significado isolado de cada um), o exame da organização 914

desses elementos da expressão depende de uma gramática dos textos visuais (PEÑUELA CAÑIZAL, 2008, p. 147-8). Estudando a articulação do sentido nos textos visuais (ou textos plásticos), Floch (1985) busca delimitar o campo de atuação da semiótica plástica. Explica que a semiótica visa a dar conta de todas as linguagens, pois o cerne delas está nos sistemas de relações. A partir do modo como se articulam as relações, a finalidade da semiótica é a de elaborar modelos de análise que explicam a geração dos sentidos nos discursos. Assim, é necessário compreender as condições de produção e, sobretudo, a intencionalidade de um certo tipo de relação entre um significante (visual) e um significado (sentido) (FLOCH, 1985, p. 13). Em resumo, a expressão pertence ao domínio do significante, enquanto o conteúdo pertence ao do significado. Baseado nos estudos de Floch (1985; 1990), Antonio Pietroforte (2007, p. 27-28), professor da USP, explica haver, em suma, três categorias plásticas: eidéticas, cromáticas e topológicas. Por meio de relações entre essas categorias, pode-se determinar como é articulada a expressão visual Na imagem do disco New directions?, de Jack DeJohnette, é possível entender como se articulam as diferentes categorias da expressão, configurando o universo do estudo dos textos plásticos.

Figura 1: Capa do álbum New directions (PIETROFORTE, 2007, p. 20). Imagem colorida obtida de: http://images.amazon.com/images/P/B000026FJ5.01._SCLZZZZZZZ_.jpg

Veja-se que a categoria topológica (direcionamento e disposição dos elementos da imagem) articula a relação “Horizontal vs. Vertical”. A categoria eidética (distribuição dos traços e formas, em quantidade e qualidade) articula outra relação: “Homogêneo vs.

915

Heterogêneo”. Por sua vez, a categoria cromática (relação entre cromatismo, variado, contínuo, intenso) é estabelecido por meio da relação “Monocromático vs. Colorido”. Assim, Pietroforte (2007, p. 28) apresenta a esquematização das relações, considerando que produzem sentido – ao projetar relações de oposição – por meio da articulação das categorias da expressão com as do conteúdo:

Plano de expressão

Plano de conteúdo

Categoria eidética

homogêneo vs. heterogêneo

Categoria cromática

monocromático vs. colorido

Categoria topológica

horizontal vs. Vertical

Figuras do discurso

Portão vs. Músicos

Explicando as relações, há um primeiro contraste entre os homens, em pé, e o portão fechado. De acordo com as categorias eidéticas, a regularidade das linhas homogêneas do portão faz oposição à heterogeneidade presente nos contornos variados e definidos dos músicos de pé. O cromatismo está presente no portão monocromático1, em oposição ao colorido das vestimentas. Por fim, as categorias topológicas configuram a direção horizontal do portão vs. a verticalidade dos corpos dos músicos. De um lado, as categorias homogêneo, monocromático e horizontal ligam-se à figura discursiva do portão, enquanto as categorias heterogêneo, colorido e vertical relacionam-se, pois, à figura do discurso “músicos”. 7. Análise de Avatar Avatar é a superprodução que mais rendeu bilheteria na história, nunca houve outro filme com gastos tão exorbitantes, mesmo após Titanic e Matrix 3. Seu diretor, James Cameron, já dirigiu outras superproduções de tema tecnológico e futurista, como O segredo do abismo e Exterminador do futuro 2. A história de Avatar gira em torno do interesse da empresa RDA em explorar um minério lucrativo em uma das luas de Polifemo, chamada Pandora (planeta semelhante à Terra), e a vontade de um fuzileiro (Marine), Jake Sully, em recuperar sua habilidade de caminhar, pois é um paraplégico que tem de atuar na função do seu irmão gêmeo, 1

O rumo da análise deve estar relacionado às recorrências e predominâncias das formas do conteúdo e expressão. O monocromatismo do portão não é absoluto, e sim produzido pela ocorrência do branco no todo do portão, uma vez que também existem traços pretos (finos e horizontais) no seu desenho. Esse fato não impede de considerar o portão, no todo, como branco (um observador, no mundo natural, o consideraria um portão branco), enquanto na organização das formas dos músicos interpreta-se uma predominância de cromatismos diversos, resultando, portanto, na recorrência da heterogeneidade cromática.

916

cientista morto em um latrocínio. O chefe da exploração, Parker (o oponente), recruta ex-fuzileiros como mercenários e também cientistas para lidar com o povo nativo, chamado Na’vi. Além do dever com a força do exército, comandado pelo General Miles, Sully tem que se relacionar com os cientistas, que obedecem à doutora Grace (a adjuvante). Por meio de um avatar, uma figura moldada à imagem do seu usuário (personalizada), Sully deve assumir as funções desse corpo (uma mistura de DNA nativo e humano, com esqueleto de fibra de carbono), a fim de fazer a função diplomática em meio aos nativos. A finalidade da diplomacia está em compreender a natureza desse planeta, cujas plantas são interligadas (química e eletricamente), semelhante às sinapses do cérebro humano. Quanto aos aspectos ideológicos presentes no filme, parece clara uma primeira leitura voltada ao tema histórico do Neocolonialismo. Mesmo que essa leitura seja de cunho sociológico, a narrativa aponta de fato a colonização – no futguro – de um planeta, mediante uma população nativa potencialmente hostil, fato que rende uma interpretação histórica de seu conteúdo, já que o motivo principal seria obter matériaprima: o minério Unobtainium. Outra leitura possível diz respeito à própria contemporaneidade (frente àquela leitura não recente), ao tratar da união tecnológica (a projeção da consciência em outro corpo, a capacidade de produzir máquinas de exploração espacial, etc.) com outros temas em voga na atualidade: a inclusão de pessoas com limitação, o desenvolvimento sustentável (ou como não fazê-lo sustentavelmente), as tecnologias de informática e robótica. Ao lado do plano de conteúdo, que diz respeito à forma como o discurso se organiza em forma de estruturas (fundamentais, narrativas, discursivas), as categorias da expressão refletem esses componentes internos do discurso, reforçando ou acrescentando sentidos à produção fílmica. Veja-se que nem sempre as categorias da expressão remetem a conteúdos – confirmando relações de semissimbolismo – como presente nesta imagem:

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Figura 2: Figuras do discurso e ideologias

Pode-se notar que a circularidade da forma da expressão das “bolas de baseball” – bem visíveis na imagem – não dizem respeito à atuação da nave ou sua maneira de ser nesse discurso fílmico. São simplesmente figuras que remetem “coincidentemente” à forma de bolas de baseball no mundo natural, com a finalidade – além da interpretação semiolinguística – de que o público as identifiquem como tal. Ou, em direção a um interpretação ideologizante, refletem a visão de mundo da instância que produziu esse tipo de discurso visual, marcando na forma da expressão um elemento que faz parte da sua cultura: o jogo de baseball.

Figura 3: Sully nas câmaras de criogenia

Veja-se que de acordo com a figura 3, a falta de habilidade de andar de Sully é anulada pelo espaço sem gravidade, a sair da criogenia. Nesses contextos de afirmação de sua habilidade (ou de igualdade do seu fazer frente aos “seres normais”), a expressão está vinculada ora aos tons de azul (categoria cromática) ora ao posicionamento da objetiva da câmera na altura dos seus ombros (categoria topológica), com finalidade

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subjetiva, que diz respeito ao seu ponto de vista, projetado também esse efeito de sentido a quem assiste:

Figuras 4 e 5: Afirmação da habilidade de Sully

Figura 6: Negação da habilidade de Sully

O efeito de sentido é invertido exatamente quando aparece o componente verbal no filme (tradução do idioma Na’vi, na conversa da doutora com Spellman, que diz na legenda, em inglês: “mas há muito para aprender”), momento em que Sully faz um menear de cabeça que atesta sua incapacidade provisória em advogar a favor da ciência. Nesse caso, a categoria topológica não está na altura de seu ombro, mas acima dele. Outros momentos parecidos atestam conteúdos narrativos de incapacidade, como neste: 919

Figura 7: Projeção da câmera, de cima para baixo, negando habilidade de Sully

A hostilidade da sua futura adjuvante, doutora Grace (frente ao desconhecimento científico de Sully: não ser P.H.D como seu irmão, morto), também está relacionada à projeção da categoria topológica da imagem em plano superior ao do personagem Sully. O cromatismo também está vinculado aos diferentes momentos da narrativa. Nas ocasiões em que é focado o modo de vida dos nativos, as categorias cromáticas apresentam heterogeneidade cromática (colorido), intensa e luminosidade (cores fortes, tons do verde-claro ao azul e roxo):

Figura 8: Projeção da categoria cromática, relacionada ao fazer de Sully

Por outro lado, o ambiente oposto à natureza (da cabine de comando do exército, do quartel, das máquinas), enquanto opositores dos fundamentos diplomáticos da ciência, é mostrado por meio do cromatismo menos heterogêneo (pouca variação de cor), pouco intenso e com sombras mais marcadas (cores pertencentes ao cromatismo do amarelo-terra, cinza e negro):

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Figuras 09, 10 e 11: Ambientes artificiais

Para finalizar esta breve análise, as narrativas hollywoodianas também tendem a destinar um percurso narrativo específico para o sujeito predestinado, o protagonista. Certas imagens desses sujeitos tendem a remeter a figuras ora mitológicas ora referentes à simbologia cristã:

Figura 12: Representação do elemento-símbolo da iconografia cristã

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Trabalhar com as representações inscritas no imaginário do público também é um dos meios de uma produção fílmica convencer seu espectador. De braços abertos, em um momento crucial de sua destinação, Sully é mostrado de braços abertos, recebendo o dom de lidar com as forças naturais que governam aquele planeta e ser aceito pela tribo Na’vi. Referências AUMONT, J & MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução de Eloisa A. Ribeiro. Campinas (SP): Papirus, 2003. AVATAR. Direção: James Cameron. Estados Unidos: Twentieth Century Fox, 2009. 1 DVD (171 min), color., sonor. BALOGH, A. M. Conjunções, disjunções, transmutações: da literatura ao cinema e a TV. São Paulo: Annablume, 1996. BALOGH, A. M. et al (Org.). Mídia, cultura, comunicação. São Paulo: Arte e Ciência, 2002. BATMAN. Direção: Christopher Nolan. Estados Unidos: Warner Bros, 2008. 1 DVD (152 min), color., sonor. DROGUETT, J. Estética da recepção cinematográfica – sobre os efeitos receptivos da produção midiática. Comunicação & Inovação, São Caetano do Sul, v. 8, n. 15, jul. a dez. 2007, p. 2-10. ______. Vertigem pendular e mídia – cultura dos meios de comunicação. In: In: BALOGH, A. M. et al. Mídia, cultura, comunicação. São Paulo: Arte e Ciência, 2002, p. 23-29 EADES, C. L’ombre du 11 septembre sur les images contemporaines. In: BALOGH, A. M. et al. Mídia, cultura, comunicação. São Paulo: Arte e Ciência, 2002, p. 57-75. FIORIN, J. L. Semiótica e comunicação. In: DINIZ, L. V. P. & PORTELA, J. C. (Orgs.) Semiótica e Mídia: textos, práticas, estratégias. Bauru: Unesp/FAAC, 2008, p. 75-92. ______. O éthos do enunciador. In: CORTINA, A.; MARCHEZAN, R. C. (Orgs.). Razões e sensibilidades: a semiótica em foco. São Paulo: Laboratório Editorial/Cultura Acadêmica, 2004a. p. 117-138. ______. O pathos do enunciatário. Alfa. Revista de Linguística, São Paulo, v. 48, n. 2., p. 69-78, 2004b.

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PISTAS ACROBÁTICAS: UM ESTUDO SOBRE A SIGNIFICAÇÃO DO COMERCIAL Lucas da Silva Roberto UFES Adriana Rosely Magro UFES RESUMO O texto “Pistas acrobáticas: um estudo sobre a significação do comercial”, tem por preocupação estudar o discurso da mídia do ponto de vista de sua capacidade de “significar” e de “fazer-significar”, transformando, na maior parte dos casos, as relações entre os parceiros lingüísticos envolvidos. Desse modo, o discurso não é entendido como um suporte de mensagens que circulam entre emissores e receptores quaisquer, o que se busca é captar as interações discursivas efetuadas entre os “sujeitos” individuais e coletivos que nele se inscrevem e que de algum modo nele se reconhecem. Portanto, esse texto tem como aporte teórico-metodológico a semiótica discursiva, esta, propõe a análise do plano de expressão e do plano de conteúdo de forma individualizada. A análise do plano de conteúdo é concebida a partir do percurso gerativo de sentido proposto por Greimas. A partir daí estamos analisando apenas o seu discurso, ou seja, o conteúdo imerso no texto. Dentro do percurso são estabelecidas três etapas onde cada

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uma é descrita independentemente, mas o sentido do texto depende da relação entre as três etapas ou níveis, que vão das estruturas mais simples às mais complexas. O primeiro é chamado de nível fundamental, o segundo é denominado de nível narrativo e o terceiro é chamado de nível discursivo. No plano de expressão (visual, verbal ou sincrético) o texto volta a ser rediscutido em seu processo de significação e observado como objeto de comunicação. Neste momento perceberemos como a significação é expressa pela materialidade, cor, formas no espaço de maneira a comunicar a mensagem. A análise do plano da expressão acontece à medida em que se dá a descrição dos seus elementos constituidores, e a eles, aplicamos as categorias da plásticas que são: cromático, eidético, topológico e matérico. Tendo como base esse aporte, o texto procura lançar um olhar sobre as significações do comercial Pistas Acrobáticas G force Hot wheels em diálogo de significação com o público a que se destina esse produto. PALAVRAS-CHAVE: Semiótica discursiva, mídia, imagem INTRODUÇÃO Este texto foi produzido no segundo semestre de 2011 e apresentado à disciplina Fundamentos da Linguagem Visual na Educação, ofertada ao 3° período de graduação licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo. A proposta inicial consistia na produção de uma pesquisa teórica-prática que, junto aos conhecimentos adquiridos, dialogando com alguns teóricos que tratavam a importância da leitura de imagem e sua análise crítica quando inseridas no ambiente escolar. Em suma, não havia pretensão de transforma-lo numa pesquisa para além dos limites da disciplina acadêmica, porém as leituras foram se aprofundando e o objeto sendo mais clarificado pela teoria que sustentava a análise, desse modo, o que se apresenta aqui são as reflexões/analises referente somente à análise do objeto com base na semiótica discursiva. 1. PISTAS ACROBÁTICAS: UMA ANALISE SEMIÓTICA Pistas Acrobáticas G force Hot wheels é um produto da multinacional Mattel, destinado ao público infantil. Trata especificamente de uma pista de corrida para carros de brinquedo e um dos meios exercido por esta empresa para promoção das vendas deste lançamento foi a publicidade audiovisual. No Brasil, este comercial foi transmitido pela mídia em horários cujo publico infantil concorria para ser o espectador em potencial, ou seja, horários próximos a programas infantis e geralmente pela manhã, algo de se esperar tratando de um tempo/espaço em que se pode estabelecer uma

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comunicação direta com o possível publico consumidor. Como sabemos os pequenos não trabalham ou não deveriam trabalhar, não possuindo, em vias de regras, renda própria conforme o artigo 60 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD) referente ao direito à profissionalização e à proteção no trabalho: “Art. 60. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz.” Os reais compradores são os adultos. É necessário então, com esta publicidade, tornar a criança um consumidor e assim criar meios que ela possa persuadir seus pais ou responsáveis a efetuar a compra do produto anunciado. Nesta perspectiva, a publicidade que tem noção do enorme poder de convencimento que pode e quer exercer, investe maior parte de seus recursos para atingir estes objetivos e metas. Ao fazer uma análise do macro discurso do comercial (sua globalidade), observase que ele é apresentado em uma espécie de bombardeio de informações, por seu aspecto dinâmico e acelerado, como um compasso musical Allegro dois por quatro repleto de semifusas. A produção é sincrética, pois reúne estratégias discursivas diferentes compreendendo o plano de expressão: sistema imagético; sistema verbal escrito; sistema auditivo, sendo este apresentado em verbal oral e musical. Estes sistemas apresentam-se quase simultaneamente em harmonia, e mesmo possuindo atributos que os diferem entre si, o arranjo dificulta identificá-los isoladamente em primeiro contato. Há uma linearidade no plano de expressão correspondendo às ideias do plano de conteúdo. A primeira informação apresentada é a logomarca da Hot Wheels (figura 1) com uma frase oral impactante e provocativa: “Hot Wheels, vai encarar?” As cores que compõe a imagem são quentes, amarelo e vermelho, que simulam fogo e contrastam com o fundo em cor fria, um azul primário que é queimado a partir do canto inferior direito da imagem, tornando se quase um preto nas outras áreas superiores.

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Figura 1 Após a apresentação da logomarca, diversas cenas dinâmicas editadas em “cortes secos1” são lançadas ao enunciatário. As imagens são do próprio produto em questão. A dimensão cromática quase não varia em todo o texto, predominando o azul, amarelo, vermelho, verde azulado, que é nada mais que a junção da cor amarela com o azul do fundo e a cor laranja, que é a junção do vermelho com o amarelo. Na realidade, estas cores são arranjadas junto às formas para remeter, no plano de conteúdo, ao fogo, e o fogo ao vigor, e o vigor a masculinidade, virilidade, força e até mesmo a ideia de "ser radical" que são efeitos de sentido esperados pelo publico alvo desta publicidade. O produto é um brinquedo, uma pequena pista com loop 2, onde se coloca os carros em miniaturas para que possam transitar sobre ela, deslocando-se usando a força da gravidade, tendo em vista o inicio da pista ser elevado e haver um declive logo após, possibilitando o ganho e aumento de velocidade . A imagem do produto aparece por vezes em diagonal, e somando às suas formas sinuosas trazem a ideia de movimento (figura 2). Atrás da pista acrobática há um fundo que faz lembrar águas, mar e ventos. A imagem é capturada bem próxima dos carros em miniaturas, mostrando que tem uma dimensão física muito maior do que possui realmente (figura 3) e a velocidade com que os carros trafegam na pista é tão grande que promovem abalos visíveis. Todo este desencadeamento produz algumas perguntas, será que realmente o produto é assim,

1 2

Passagem de uma cena para outra sem haver efeitos especiais na transição Volta vertical de 360° na pista

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como apresentado? Isto é uma ilustração ou uma imagem feita da atividade normal/real do brinquedo?

Figura 2 O enunciador ao utilizar o artifício da narração verbal descreve não as cenas, mas expressa um conjunto de palavras que qualifica o produto, com voz de alguém que está bastante eufórico, animado, como se fosse um detentor de boas novas que há muito se espera, e somado às imagens, os efeitos sonoros e musicais objetivam a provocação (no inicio do texto ele pergunta: “Hot Wheels, vai encarar”?) isso trata de manipulação e persuasão. É narrado frases em rimas. Uma espécie de poesia, letra de um rap, hip hop, estilos musicais populares bastante veiculadas pela mídia por/aos jovens brasileiros. Não é engraçado o emprego deste artifício aqui?

O narrador diz: “Hot wheels,

velocidade animal / Adrenalina e emoção / A corrida é radical / É tudo ou nada, pise fundo nesta pista / Acelere pra valer, é sua chance não desista.” A musica é agrupada a uma paisagem sonora composta de “frenagens/travamento da roda/pneus”, sucessão de sons e silêncios em ritmos acelerados, sons de hélices acionadas de helicópteros, remetendo ao enunciatário um ambiente de caos (grandes cidades), local que necessita de locomoção com boa fluidez, trânsitos rápidos, um verdadeiro cenário de filme de ação, ambiente de desafios a serem vencidos. A mídia áudio visual contemporânea mostra o uso de aeronaves, muitas vezes helicópteros, carros, dentre outros veículos diversos, em rápidas locomoções nas situações de resgate

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e salvamento de pessoas vitimadas por infortúnios, quando não em perseguição policial e as vezes em corridas automobilística. Rapidez e velocidade é a proposta do produto e a musica junto com os diversos dispositivos sonoros, promove a manutenção desta ideia. Os sons preenchem, podendo assim dizer, todos os fundos e vazios da composição. Ao analisarmos esta mesma produção sem o áudio, é perceptível que não produz o mesmo efeito, apesar de notar-se ainda uma grande dinamicidade provocada pelas imagens, pois cada discurso, apesar de comporem um único texto, são independentes entre si (o discurso sonoro, discurso verbal escrito e o discurso imagético).

Figura 3 Aos treze segundos, a frase dita no início é repetida: “Hot Wheels, vai encarar?” Depois de ter sido apresentado a “letra do rap” e o produto, nada há mais provocante do que perguntar: vai encara? Aos quinze segundos duas formas diferentes aparecem. Apresenta-se a figura de duas crianças, uma com blusa de cor preta e branca e calça branca, outra com blusa de cor vermelha, brincando com o produto enunciado. O menino de blusa vermelha põe no inicio da pista um “carrinho” de cor preto. Logo após aparece estas duas figuras de crianças pulando, transmitindo alegria, como se estivessem comemorando uma grande conquista. Nesta parte, o narrador faz o discurso final:

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“Chegou a pista acrobática G force Hot Wheels, acelere, pegue o loop, dê um salto irado. É isso ai, você conseguiu. Pista acrobática G force Hot Wheels” Quando o locutor diz “você conseguiu” aparece a imagem do produto embalado, talvez predizendo uma possível aquisição da mercadoria pelo enunciatário. Ao fazer a pergunta, se realmente o produto é assim, como apresentado ou as imagens são apenas ilustrações, um ponto é digno de nota. Aos dezessete segundos aparece uma frase, um discurso verbal escrito no canto inferior esquerdo com o seguinte texto: “Cenas aceleradas.” Logo aos vinte e um segundos outra informação aparece no mesmo local: “Cenas desaceleradas”. Tais informações têm por objetivo validar, tornar real todo conteúdo da produção do texto. Como se o enunciador deixasse bem explícito o que é real e o que é efeito técnico, um “bom moço” que não quer, ou não pode enganar. Porém a frase é posta em um local totalmente desfavorecido no enquadramento geral do texto (figura 4e 5).

Figura 4

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Figura 5 Com duração de aproximadamente dois segundos, estes discursos são postos nos momentos que exige do telespectador maior atenção, pois é a parte onde o “carrinho” passa pelo loop, o momento “interessante do produto” se recordarmos o conselho do narrador dita aos 18 segundos da produção: “...pegue o loop...”. Será que a mensagem desta frase é recebida/identificada pelo enunciatário? O “bom moço” acredita realmente que uma criança consegue visualizar, ler, entender e aceitar o sentido destas palavras? Dois “carrinhos” estão presentes no discurso do macro texto (figura 3). A presença deles mostra a possibilidade do produto ser utilizado por mais de uma pessoa, uma diversão mais ampla que promove/matem as relações interpessoais. Mas a inserção destes dois objetos serve apenas de ilustração, pois a aquisição da mercadoria só garante um carro. Esta informação está no texto, entretanto em um local/momento que a torna invisível, no final (figura 6): “A pista G force acompanha um carrinho Hot Wheels”. Será que uma “criança” ao abrir o produto não ficará assustada em ver apenas um carrinho, afinal, ala viu dois na propaganda? Uma ultima observação. Abrangendo quase a totalidade do texto vemos o produto composto por uma pista de grande dimensão (figura 2), e com “faixa dupla”. As

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repetições visuais de diversos fragmentos da mercadoria ampliam ainda mais a sua proporção real. No final do texto (figura 6) observamos na embalagem a imagem do produto diferente do que nos foi apresentado, mais simples, composto apenas por um declive e logo após um loop e terminando com um aclive. Como será realmente o produto?

Figura 6 CONCLUSÃO Quando o semioticista propõe analisar uma obra pré-entende que a significação a ser buscada está dentro (e unicamente) das fronteiras do texto. Evidentemente existem relações que podem levar o observador a outras referências analítica que originam/originaram fora, caso de intersemioticidade e de interdiscursividade, mas que servem para dar substancialidade à enunciação, ou seja, se circunscrever dentro do enunciado posto e somar na significação global. Em posse disto temos que cada discurso possui a significação em si e de si mesmo, pois além do ponto de vista do enunciador, há as intenções e objetivos, o “para quem” e “para que” intrinsecamente na composição. Ou seja, cada enunciado, mesmo que proponha falar/significar algo,

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sempre será diferente do algo. Tanto o texto quanto o algo (de quem o texto fala) possuem significações próprias e independentes. Pistas Acrobáticas G force Hot wheels propaganda é diferente de Pistas Acrobáticas G force Hot wheels produto (brinquedo a ser vendido). Na realidade são dois produtos distintos com objetivos diferentes. A propaganda objetiva levar o enunciatário a “comprá-la”, mostrando/criando qualidades do/para objeto narrado, do ponto de vista do enunciador, sendo que a aquisição do “brinquedo” é a moeda a ser usada nesta troca (para ambos os lados). O brinquedo possui o objetivo de ser objeto lúdico de diversão a ser comprado. Em suma, ao analisarmos a propaganda vemos o discurso de vendedor, e não informações das características reais do objeto. E ao refletirmos o objeto vemos um discurso de propor lazer, que para o cliente terá um significado outro, tendo referencia o texto da propaganda. Referências ECRIAD. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLECENTE. Disponível em: . Acesso em: 4 out.2011 Hot Wheels Vídeo, Informações sobre. Disponível http://www.youtube.com/watch?v=px0CtOHPZTU>. Acesso em: out.2011

em:

<

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A COR DO SOM: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES PARA UMA ABORDAGEM TENSIVA Lucas Takeo Shimoda (CNPq) DL/FFLCH/USP Embora o parentesco entre cores e timbres tenha sido apontado por inúmeros autores, os resultados pouco conclusivos de tais comparações refletem a dificuldade de tratá-los sistematicamente. De maneira geral, as definições utilizam a comparação com o domínio cromático como um atalho cômodo para caracterizar a grandeza complexa

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que é o timbre1. Apenas para ilustrar essa associação entre som e cor, apresentamos alguns exemplos de definições de timbre retirados de dicionários de música: “Uma das propriedades do som, que melhor se define pela noção aproximada de cor” (BORBA&GRAÇA, 1956, p. 628), “Qualidade (ou cor) do som característico de um instrumento ou de uma voz” (COSTA, 1994, p. 166). Em língua inglesa, a relação entre timbre e cor é explicitamente marcada já nos termos utilizados nesse idioma para designar a identidade sonora. Embora a palavra timbre esteja registrada, as expressões tone colour ou tone quality são muito mais frequentemente empregadas. A entrada colour do The Concise Oxford Dictionary of Music traz a seguinte explanação: “ (...) é comum falar de ‘colorações’ ou ‘cor do som’ quando variações do timbre ou do som são produzidas por diferentes intensidades de sobre-harmônicos do som”2 (KENNEDY, 1996, p. 153). O seguinte comentário de Scholes no The Oxford Companion to Music não deixa dúvidas sobre a associação imperiosa entre esses dois domínios sensoriais: “Timbre significa qualidade de som – rústico ou suave, ressoante ou mais subitamente penetrante, ‘escarlate’ como o do trompete, ‘marrom rico’ como um violoncelo, ou ‘prateado’ como o da flauta. Essas analogias de cores ocorrem naturalmente a todas as mentes...” (Scholes, 1970; apud Howard&Angus, 2006, p. 217)3:

A afinidade entre esses dois elementos também se encontra explicitamente marcada no termo correspondente em língua alemã: Klangfarbe. Esta palavra resulta de uma justaposição morfológica de Klang (em português, som) e Farbe (em português, cor), a qual foi retomada no Brockhaus Riemann Musiklexikon para tratar o timbre como um “colorido específico” (cf. DAHLHAUS& EGGEBRECHT, 2001, p. 296-298). Outra maneira de definir o timbre consiste em afirmar sua propriedade de delimitar a identidade de um dado som abstraindo-se os parâmetros de altura, duração e intensidade. Em geral, é essa a perspectiva presente em dicionários não especializados em música: “Qualidade que distingue um som, independentemente de sua altura ou intensidade” (Dicionário Caldas Aulete), “Qualidade que distingue sons de mesma altura e intensidade, originados por emissores distintos, resultante da combinação dos 1

A título de curiosidade, notemos que a presença de um capítulo intitulado “Falsa analogia entre as cores e os sons” no Ensaio da origem das línguas de Jean-Jacques Rousseau parece indicar que essa relação era corrente e desgastada já no século XVIII. 2 Tradução livre do original: “(...) it is customary to speak of ‘colouring’ or ‘tone-color’ where variations of timbre are produced by different intensities of the overtones of sounds.” 3 Tradução livre do original: “Timbre means tone quality – coarse or smooth, ringing or more subtly penetrating, ‘scarlet’ like that of a trumpet, ‘rich brown’ like a cello, or ‘silver’ like that of the flute. These colour analogies come naturally to every mind...”

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sons harmônicos presentes e de suas intensidades relativas ao som fundamental” (Dicionário Houaiss). No domínio de língua francesa, a definição do Dicionário Le Petit Robert quase não apresenta diferenças: “Qualidade específica dos sons produzidos por um instrumento, independente de sua altura, sua intensidade e sua duração”. Para a língua alemã, a formulação do Digitales Wörterbuch der deutschen Sprache traz uma versão mais lacônica da mesma ideia: “maneira característica de algo que soa”. A concepção de timbre enquanto “impressão digital” do som não está circunscrita a descrições leigas, mas é também observada por especialistas da acústica. De acordo com o American National Standards Institute, “timbre é um atributo da sensação auditiva em termos dos quais um ouvinte pode avaliar como dessemelhantes dois sons apresentados semelhantemente e tendo a mesma intensidade e altura” (HOWARD&ANGUS, 2006, p. 216)4. O Harvard Concise Dictionary of Music também traz em sua definição de tone color essa propriedade distintiva: “A qualidade (‘cor’) de uma altura conforme produzida em um instrumento específico, enquanto distinta de outra qualidade diferente da mesma altura quando tocada em um outro instrumento” (RANDEL, 1998, p. 512513). Além da caracterização como um “colorido particular”, o timbre também é descrito como um produto da combinação dos harmônicos da frequência fundamental do som. Não obstante a árdua empreitada de mapear os formantes acústicos que constituem o timbre, os especialistas hesitam diante do duplo obstáculo posto pela ausência de unidades de medida e de um vocabulário descritivo estabelecido para esse parâmetro sonoro. Não raramente, o impasse é atribuído a um uso supostamente indevido de termos sinestésicos, tomados de empréstimo sobretudo do campo da visão e do tato. O caráter fluido do timbre coloca embaraços àqueles que procuram decifrá-lo observando sua constituição física, como pode-se reconhecer no seguinte trecho extraído de uma obra dedicada à acústica musical: “O timbre é a mais complexa das características do som e talvez por ser extremamente difícil de quantificar está muito menos ‘esclarecida’ fisicamente que as sensações de altura e intensidade. Além da inexistência de uma teoria satisfatória sobre o timbre, não existe uma nomenclatura uniforme e consistente para identificar e classificar os timbres. (...) Tentando resolver esta questão, os músicos usam expressões que criam determinadas analogias com outras sensações, nomeadamente tácteis e visuais: sons quentes, aveludados, metálicos, 4

Tradução livre do original: “Timbre is that attribute of auditory sensation in terms of which a listener can judge two sounds similarly presented and having the same loudness and pitch as being dissimilar”

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escuros, brilhantes, doces, etc.” (HENRIQUE, 1988, p. 871-872, grifos nossos)

Ao discutir aspectos psicológicos da percepção de timbres e a dificuldade de fazer uma descrição semântica destes, Juan Roederer expressa sua reserva frente à falta de precisão dos termos normalmente empregados para qualificar os sons. “Com exceção das amplas denominações que vão de ‘opaco’ ou ‘abafado’ (poucos harmônicos superiores) a ‘nasal’ (principalmente harmônicos ímpares) e a ‘brilhante’ ou ‘metálico’ (muitos harmônicos superiores realçados), a maior parte das qualificações dadas pelos músicos invoca uma comparação com sonoridades instrumentais (‘como flauta’, ‘como cordas’, ‘como madeira’, ‘como metal’, ‘som de órgão’, etc.).” (ROEDERER, 1998, p. 219)

É interessante notar a insistente presença de termos pertencentes aos domínios sensoriais da tatilidade e da visualidade, conforme já observado anteriormente por Luís Henrique. Há razões suficientes para crer que essas ocorrências não resultam de uma mera escolha idiossincrática, mas sim devem apresentar um fundamento de natureza semiótica. Ao contrário do que ocorre com o musicólogo e com o engenheiro acústico as intersecções entre esses domínios sensoriais não devem intimidar o semioticista já habituado a se aventurar nos movediços territórios como o da estesia e do afeto. A íntima ligação entre visão e tato já foi observada por Greimas em dois momentos de Da imperfeição. No primeiro deles, o semioticista lituano discute uma passagem do conto “O guizzo” de Ítalo Calvino em que o personagem Palomar é subitamente arrebatado pela visão dos seios de uma moça a tomar sol: “Palomar não pára aí: seu olhar avança – e o avanço é, como se sabe, a forma figurativa do desejo – ‘até aflorar a pele estendida’, prolongando assim a isotopia da visualidade pela tatilidade. Pois o tato é algo a mais do que a estética clássica dispõe-se a nele reconhecer – sua capacidade para explorar o espaço e levar em conta os volumes: o tato se situa entre as ordens sensoriais mais profundas, ele exprime proxemicamente a intimidade optimal e manifesta, sobre o plano cognitivo, a vontade de conjunção total. A visualidade de Calvino, prolongando-se assim, desce delicadamente alguns graus em direção ao toque, forma figurativa da conjunção.” (GREIMAS, 2002, p. 3536)

Fazendo referência a esse trecho, Claude Zilberberg observa em seu estudo intitulado Synesthésie et profondeur que a dimensão espacial da profundidade opera a articulação entre o domínio visual e o tátil (2005, p. 90-91). O segundo ponto digno de nota se encontra nas reflexões de Greimas sobre a relação entre forma, luz e cor em um

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breve excerto de “Elogio da sombra” de Junichiro Tanizaki (2002, p. 47-53). Embora fosse desejável uma retomada do conjunto global das reflexões de Greimas sobre o sensível, ela exigiria um desdobramento maior do que os limites deste trabalho podem comportar. No entanto, gostaríamos de destacar a reincidência do papel decisivo desempenhado pela profundidade e a espessura na transformação da escuridão em matéria tátil, conforme mostra o seguinte trecho extraído do próprio texto de Tanizaki: “(...) atrás desse biombo que delimitava um espaço luminoso de cerca de duas esteiras, caía, como que suspensa do teto, uma profunda obscuridade, densa e de cor uniforme, na qual a claridade indecisa da vela, incapaz de penetrar a sua espessura, ressaltava como numa parede preta” (GREIMAS, 2002, p. 48, grifos nossos)

Assumindo a legitimidade de tais relações, é possível entrever meios de semiotizar a constatada predominância de termos do tato e da visão para descrever o timbre. Antes tido como uma incômoda manobra para contornar a inexistência de unidades de mensuração, o recurso às metáforas se apresenta agora como um campo repleto de quantificações determinadas subjetivamente e passíveis de sistematização através da análise de suas cifras tensivas subjacentes (cf. TATIT, 2011). É interessante notar o papel fundamental do sujeito em tais avaliações. Agindo como um “termômetro semiótico”, o corpo do sujeito é o lugar onde são calculados com precisão os aumentos e diminuições, os excessos e esgotamentos. Nesse aspecto, a intervenção do sujeito enquanto instância avaliadora é vista como proveitosa para uma abordagem semiótica de inspiração fenomenológica, conforme nos mostra Herman Parret: “Em segundo lugar, a atribuição dos termos fonéticos é rigorosa, explícita e universal, ao passo que a atribuição de termos impressionistas é dependente de convenções da linguagem ordinária bem como de intuições individuais, o que as torna menos comunicáveis e menos eficazes. É entretanto essa terminologia ‘impressionista’ que interessará à abordagem fenomenológica da qualidade vocal” (2005, p. 121)5

Quando o semioticista tem em vista tais princípios, ele vê desaparecer de sua frente as imprecisões dos termos metafóricos e das sinestesias que obstruem o olhar dos estudiosos da physis sonora. O exemplo dessa abordagem que norteará a análise do timbre provém das reflexões do semioticista Claude Zilberberg acerca de componentes 5

Tradução livre do original: “En second lieu, l’attribution des termes impressionnistes est dépendante des conventions du langage ordinaire tout comme des intuitions individuelles, ce qui les rend moins communicables et moins efficaces. C’est pourtant cette terminologie ‘impressionniste’ qui intéressera l’approche phénoménologique de la qualité vocale”.

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da visualidade conforme manifestados em textos literários. Retomando a análise de Greimas sobre Tanizaki em Éloge de la noirceur, Zilberberg mostra que é possível traduzir semioticamente a luminosidade em função de suas variações no eixo da intensidade e propõe um gradiente tensivo em que os termos sobrecontrários são ocupados pelo “obscuro” e pelo “brilhante”, enquanto os termos subcontrários são nomeados como “sombrio” e “claro” (2003a, p. 43-45). Em Portrait de la rondeur (2003b), esse semioticista analisa a figura da pérola em um poema de Claudel e demonstra haver uma concordância tensiva entre sua morfologia figurativa (a rotundidade) e sua morfologia figural, articulada em termos de fechamento vs. abertura e triagem vs. mistura. As reflexões mais fecundas para a problemática do timbre aqui tratada podem ser encontradas nas análises da família cromática do rosa apresentadas em Causerie sur la sémiotique tensive (2008). Ao demonstrar que a cor rosa pode ser compreendida como um acréscimo de palidez à cor vermelha, o autor depura seu espectro contínuo lançando mão do cruzamento de valências da intensidade e da extensidade, associadas nesse caso respectivamente à força do impacto e ao grau de palidez. Ainda nesse mesmo estudo, Zilberberg mostra de que maneira as operações de triagem e mistura (no caso do “rosa sujo”), da aspectualidade (no caso do “rosado” e do “rosa desbotado”) e da espacialidade (no caso do “calor rosa”) podem ser aplicadas para analisar as sutis nuances dos tons de rosa. A análise da fórmula sinestésica “calor rosa” retirada de um poema de Claudel oferece pistas elucidativas para deslindar as metáforas sensoriais que descrevem o timbre. Projetando o gradiente das sensações térmicas sobre um eixo tensivo, Zilberberg coloca o “quente” e o “frio” na posição dos subcontrários ao passo que o “fervente” e o “gélido” ocupam os termos sobrecontrários. O autor destaca também a relação direta entre termoestesia, tatilidade e espacialidade, inegavelmente reconhecível nos extremos de intensidade como no “frio penetrante” e nas sensações de ardência6. Assim como esse semioticista traduz tais espectros contínuos de díficil discretização em função de suas configurações tensivas, pretendemos demonstrar a viabilidade de aplicar o mesmo procedimento para o universo dos timbres. Para essa tarefa, selecionamos como escopo de análise a descrição dos sons dos instrumentos de cordas friccionadas conforme apresentada por uma obra de divulgação (BENNET, 6

Embora tenhamos selecionado esses artigos para fazer referência, é importante recordar que tais reflexões de Claude Zilberberg se encontram espalhadas em diversos pontos de seu trabalho.

938

1985, p. 16-26). Antes de tudo, é preciso fazer algumas ressalvas. Em primeiro lugar, a abordagem proposta aqui não se aplica à natureza física do som, mas sim a um julgamento cultural apreciativo fixado em uma descrição verbal. O respaldo a esta abordagem pode ser encontrado nas seguintes palavras de Hjelmslev sobre a relação entre substância e uso: “Não é pela descrição física das coisas significadas que se chegaria a caracterizar o uso semântico adotado em uma comunidade linguística e pertencente à língua que se deseja descrever, mas, muito pelo contrário, pelas avaliações adotadas por essa comunidade, pelas apreciações coletivas, pela opinião pública” (Hjelmslev, 1991, p. 63)

Em segundo lugar, os resultados obtidos por esse método não podem ser generalizados e aplicados a todas as ocorrências dos timbres aqui analisados. Ao invés disso, as reflexões apresentadas neste trabalho pretendem apenas sugerir um modo de proceder diante do timbre e caberá a cada analista avaliar de que maneira esse parâmetro sonoro é posto em discurso em seu objeto de estudo (cf. FONTANILLE, 2007, p. 242-243). Os termos descritivos utilizados para cada instrumento foram alistados na Tabela 1, partindo do mais agudo ao mais grave. É interessante notar a convergência entre, de um lado, visualidade e tatilidade e, de outro lado, o campo das alturas. Para descrever os sons mais agudos, são utilizados predominantemente termos associados à luminosidade. À medida que se passa para as regiões mais graves, observa-se o abandono gradativo do campo da luz em direção ao domínio das formas e do tátil. Além de corroborar a filiação do tato e da visão ao domínio da espacialidade, essa coincidência de parâmetros não pode ser tomada como fortuita. Ao invés disso, ela reflete o dado consensual de que a família das cordas friccionadas é mais coesa do que as demais (BENNET, 1985, p. 31).

Tabela 1 – Termos descritivos para a família das cordas friccionadas Instrumento

Descrição do som

Violino

agilidade, poder, brilho

Viola

mais escuro, menos brilhante, intenso, escuro, rico

Violoncelo

som cheio, penetrante, gloriosamente intenso e rico

Contrabaixo

som áspero, seco e rascante

939

Em primeiro lugar, observemos os termos empregados para descrever o som do violino. Ao instrumento mais agudo da família das cordas são atribuídos os traços de andamento acelerado (“agilidade”) e alta tonicidade (“poder”). A definição dada pelo Dicionário Houaiss para o vocábulo “brilho” registra igualmente ambas cifras tensivas: “3. sentido figurado: intensidade, vibração”; “4. caráter ou condição daquilo que esbanja luxo, opulência, esplendor, magnificência”; “8. vivacidade, alegria”. Uma rápida consulta ao adjetivo derivado “brilhante” confirma a presença da alta tonicidade: “que emite luz forte, viva; fúlguroso, luminoso”. Quando se passa para a descrição da viola, instrumento muito próximo ao violino que abrange uma tessitura pouco mais grave do que este, nota-se claramente um percurso de atenuação na sintaxe intensiva (Zilberberg, 2006, p. 180-186), o que pode ser atestado pelo uso dos advérbios moduladores atribuídos aos traços luminosos em “mais escuro” e “menos brilhante”. Essa correlação obedece ao princípio de reversibilidade segundo o qual um acréscimo de tonicidade corresponde a uma diminuição de atonia e vice-versa (Zilberberg, 2006, p. 175-176). Paralelamente, o emprego dos adjetivos “intenso” e “rico” parece ter um papel ambivalente. Por um lado, pode-se interpretar que sua função é manter inalterada a alta tonicidade do valor tímbrico da viola. Por outro lado, observa-se que esses termos parecem prenunciar a próxima

operação

sintáxica

que

levará

ao

recrudescimento

verificado

em

“gloriosamente intenso e rico” que descreve o som do violoncelo. Essa interpretação implica aceitar que, embora o adjetivo “intenso” porte em si a cifra tensiva de um “mais mais” de energia, ele ainda não é suficiente para atingir o patamar de “somente mais” conquistado pelo som “brilhante”. Ainda no que diz respeito ao timbre do violoncelo, vale a pena chamar a atenção para a emergência da tatilidade ocasionada pelos traços de espacialidade implícitos nos adjetivos “cheio” e “penetrante”. Sobre o primeiro, o Dicionário Caldas Aulete não deixa dúvidas quanto a sua relação com o espaço: “1. Em que não há lugar para mais nada; cujo espaço interno está completamente (ou quase) ocupado”; “5. Que é volumoso e tem formas arredondadas”. Para o segundo termo, a mesma referência nos dá respaldo: “1. Que penetra, entra em algum lugar”. As possíveis dúvidas que possam restar sobre esta relação podem ser dissipadas com uma consulta às definições do verbo correspondente “penetrar”: “Adentrar, introduzir-se” (Caldas Aulete), “passar através ou para dentro de” (Houaiss). Em um primeiro momento, as definições apresentadas pelos dicionários parecem ter pouca pertinência com o domínio do tátil, conforme se pretende 940

argumentar aqui. Para entender melhor essa relação, seria interessante relembrar a tópica somática proposta por Jacques Fontanille. Segundo essa esquematização, a fronteira entre o eu (Soi) e o mundo exterior é delimitada por um envelope, em que todas as sensações de contato tomam lugar. Após ter ultrapassado essa membrana sensível, a sensação se interioriza e passa a ocupar o domínio denominado campo íntimo, como ocorre com os sabores e os odores penetrantes (Fontanille, 1999, 44-51). Tendo em mente essa organização topológica, pode-se reinterpretar os dados obtidos pela consulta aos dicionários traçando um paralelo entre a passagem do espaço externo ao espaço interno registrada por suas definições e a excitação do envelope corporal provocada pelo toque. Nesse ponto da análise do vocabulário descritivo do timbre, vemos a luminosidade até então predominante dar lugar aos poucos à tatilidade. Passando para o degrau mais grave, nota-se que todos os termos utilizados para o som do contrabaixo estão relacionados ao tato: “seco”, “áspero” e “rascante”. No percurso de minimização da luz e recrudescimento do tato, a chegada ao sobrecontrário oposto pode ser constatada sem grandes esforços. Bastará uma consulta rápida sobre o termo “rascante” para trazer os seguintes dados reveladores: “2. Diz-se do som áspero, que arranha” (Caldas Aulete), “2. diz-se de vinho que deixa certo travo na garganta, por excesso de tanino”, “4. diz-se do som áspero, que parece arranhar” (Houaiss). Os resultados obtidos para a definição do verbo correspondente “rascar” ratificam a relação entre contato e sons graves: “1. tirar alguns fragmentos de uma superfície com auxílio de um instrumento”, “2. tirar lascas de”, “3. fazer fricção, provocar atrito, arranhar”, “4. causar sensação de fricção incômoda” (Houaiss). Vale a pena destacar que a definição destes termos faz referência igualmente a apreciações gustativas, pertinentes já ao campo íntimo do corpo próprio do sujeito. Por sua vez, a definição do verbete “áspero” vem confirmar explicitamente a pertinência do traço da tatilidade: “Que tem superfície desigual, incômoda ao tato” (Caldas Aulete). Entre as definições disponíveis para o substantivo correlato “aspereza”, podemos encontrar formulações esclarecedoras como “4. característica do que fere ao gosto” (Houaiss). Se a tatilidade do som cheio e penetrante do violoncelo ainda se situa em uma zona comedida, no registro do contrabaixo, ela se recrudesce até atingir a região extrema em que o corpo não tolera mais o contato, avaliado como excessivo. Em consonância com esse dado, a minimização da tonicidade é registrada pelo adjetivo

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“seco”, o qual é definido pela falta e pela privação em quinze das dezesseis acepções registradas no Dicionário Houaiss. Em um primeiro momento, a condução dessa análise parece não atender convincentemente a homogeneidade necessária para construir os gradientes tensivos. O senso comum tende a separar visão e tato como ordens sensoriais distintas que concernem respectivamente ao olho e à pele. No entanto, é preciso ultrapassar essa concepção simplista de canais sensoriais e buscar o sistema de valores que transforma esses estímulos em significação (Fontanille, 1999, p. 14-19). As relações complementares entre visualidade e tatilidade já foram notadas pelo próprio Claude Zilberberg, que faz referência às considerações de Riegl e Goethe: “Não há conflito entre os valores táteis e visuais, mas convergência, colaboração, a fim de gerar progressivamente a profundidade: os valores propriamente cromáticos permitem modular o intervalo entre os valores táteis (...)” (2011, p. 119). No estudo já citado aqui dedicado à profundidade, esse semioticista constroi uma correlação inversa entre toque e visão e não deixa dúvidas quanto ao íntimo parentesco entre eles: “(...) assim, a audição e a visão, ‘experts’ em matéria de distância, esperam pelo toque, ou, como tem sido frequentemente indicado, o espaço óptico ‘exige’, atualiza o espaço dito ‘háptico’ (...)” (2005, p. 93). Com esses dados em mãos, torna-se possível esquadrinhar o valor tímbrico dos instrumentos de corda de acordo com o cruzamento de suas subvalências (Zilberberg, 2006, p. 185-187). Assim, propomos assumir com Greimas e Zilberberg que tato e visão podem ser traduzidos em termos de proximidade e afastamento e, portanto, podem ser projetados sobre a subvalência da espacialidade. Tomando por critério o grau de contato com o corpo próprio do sujeito, o eixo da extensidade será articulado em um gradiente que vai do “íntimo” ao “afastado”. Nas etapas da atenuação e da minimização, as grandezas denominadas respectivamente “interno” e “íntimo” dão conta das propriedades gustativas do som “rascante” do contrabaixo e do movimento de penetração do violoncelo. Por sua vez, as operações de restabelecimento e exacerbação recebem as denominações – sempre provisórias, vale lembrar – de “externo” e “distante” e explicam as “atuações à distância” implicadas nas variações luminosas do som “mais escuro” da viola e do som “brilhante” do violino. Ao eixo da intensidade será atribuído o papel de medir a tonicidade, entendida aqui como componente figural do quantum de energia manifestado no plano figurativo dos lexemas que descrevem o timbre. Nas etapas da atenuação e da minimização, as 942

grandezas denominadas respectivamente atonização e extenuação dão conta do escurecimento do timbre da viola e do ressequimento do timbre do contrabaixo. Em contrapartida, as operações de restabelecimento e exacerbação podem ser denominadas tonificação e avultação, que descrevem com precisão o som “gloriosamente rico” do violoncelo e o caráter energizante embutido no timbre “brilhante” do violino. Não é demasiado relembrar que os nomes atribuídos às regiões do gradiente tensivos são apenas provisórios.

Gráfico 1 – Curva tensiva do timbre dos instrumentos de cordas friccionadas

Por conceder lugar de privilégio à sintaxe, o quadrante tensivo se mostra como uma alternativa eficiente para organizar a gama contínua de timbres. Apesar de se mostrar proveitosa para construir inventários fechados de unidades mínimas (como o faz a prova de comutação, por exemplo), a abordagem paradigmática se mostra ineficaz diante de fenômenos da ordem do contínuo (HJELMSLEV, 1991, p. 57), como as nuances de cores e sons. Considerando que, tanto no campo cromático quanto no campo sonoro, as variações graduais podem gerar um número virtualmente infinito de elementos, podemos entender um e outro enquanto valores semióticos determinados pela articulação de valências (FONTANILLE&ZILBERBERG, 2001, p. 22). É por sua propriedade de transformar limiares em limites que as valências podem calcular nuances tímbricas, mesmo aquelas que não possuem uma lexicalização bem estabelecida. Esse expediente metodológico resolve convenientemente determinados problemas que cercam a discretização de timbres. A descrição em termos tensivos contorna o problema de descrever um timbre simplesmente fazendo referência à sua fonte sonora, o que nada mais é do que uma etiquetagem algo ingênua de figuras do mundo. Para além

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das dificuldades impostas pelo reconhecimento de timbres (como é o caso do violino e da viola), tal nomeação não é adequada para distinguir registros timbrísticos diferentes produzidos por um mesmo instrumento. Ainda que se possa apelar para uma nomenclatura extremamente especializada (por exemplo, fazendo referência ao modo de articulação), pouco é revelado dessa forma sobre os sentidos produzidos pelo timbre. É inegável que a seleção de material timbrístico tem participação na construção do nível figurativo de um texto musical (e, consequentemente, sua associação com temas). No entanto, elas ainda apresentam o inconveniente de constituir um inventário aberto. Um importante passo em direção à sistematização é dado quando se passa a considerar o timbre como produto do cruzamento de valências, e não mais como uma figura do mundo ou como produto da acumulação de semas (cf. ZILBERBERG, 2011, p. 51). A despeito das opções analíticas assumidas por este trabalho, é preciso reconhecer a legitimidade do tratamento do timbre em termos de isotopias figurativas e temáticas, cujas implicações teóricas e analíticas merecem ser discutidas mais profundamente em momento oportuno. Outro benefício do recurso ao quadrante tensivo consiste na inscrição do sujeito da percepção na instauração dos valores semióticos. Conforme observado nos momentos iniciais da presente investigação, o sujeito ocupa lugar de privilégio no estabelecimento do vocabulário impressionista que descreve o timbre. Removido do papel passivo de mero receptor de estímulos sensoriais, o sujeito agora assume a posição de árbitro na construção das condições de significação: “A inscrição do sujeito observador na organização da categoria, e na seleção de seu protótipo, é aqui considerada, de imediato, como resultante das propriedades perceptivas das valências (propriedades intensivas e extensivas), já que, para nós, sua orientação em ‘profundidade’ depende de um sujeito perceptivo que lhes impõe sua deixis” (FONTANILLE&ZILBERBERG, 2001, p. 23)

É importante destacar a essa altura que o estatuto desse sujeito é dado sempre em termos semióticos. Isso implica rejeitar determinações apriorísticas calcadas em idiossincrasias psicologizantes de um indivíduo. Por estarmos tratando de fenômenos de discurso, é necessário sempre levar em conta as condições de circulação desses sentidos em uma dada comunidade semiótica. Sendo assim, o sujeito não tem plenos poderes para deliberar sobre a construção dos mecanismos tensivos; ao invés disso, suas escolhas devem passar pelo crivo de uma sanção coletiva. O material analisado aqui registra, na forma de uma descrição fixada pela escrita, uma avaliação socialmente 944

cristalizada, uma vez que ela integra um conjunto de outros dados de ordem social e histórica (por exemplo, anatomia do instrumento musical, história de seu desenvolvimento, papel desempenhado em movimentos estéticos etc.). Ainda que o poder de atuação do sujeito não seja ilimitado, seu papel central na atribuição de valores semióticos aos timbres vem relativizar, ao menos em parte, o investimento de autoridade conferido aos resultados numéricos obtidos por pesquisas da acústica musical e da psicoacústica. É particularmente significativo que um destacado estudioso da questão do timbre como Pierre Schaeffer já tenha posto em xeque a legitimidade das descrições quantitativas praticadas pelas análises espectrais, conforme se atesta nessas instigantes palavras: “Vê-se bem uma corda vibrar, a relação não é muito evidente entre esse fuso, que a estroboscopia analisa para o olho, e a unidade sonora tão convincente que se anuncia à nossa orelha. De um gongo, de um trompete, não se vê nada” (2002, p. 161)7. Entre os semioticistas, as intuições de Herman Parret se coadunam com a postura do compositor francês: “Dir-se-ia que o timbre da voz é o território de poetas e amantes mais do que de foneticistas” (2005, p 126) 8. Isso nos impele inevitavelmente para a necessidade de articular as propostas aqui traçadas com as questões de ordem fenomenológica de que se tem ocupado a semiótica em uma de suas atuais frentes de trabalho, com especial destaque para a discussão sobre o papel da linguagem e da subjetividade enquanto instrumento recriação do mundo sensível (cf. BEIVIDAS, 2006, 2008). Entretanto, conduzir essa discussão em profundidade exigiria maior fôlego, o que extrapola os limites deste trabalho. Por ora, será suficiente assumir a primazia do sujeito enquanto instância avaliadora das descrições impressionistas do timbre. Nesse ponto da investigação, há embasamento para afirmar de que as dificuldades impostas pelo timbre decorre da premissa falaciosa de que seu estudo possa se apoiar exclusivamente ora sobre dados da physis sonora, ora sobre avaliações psicologizantes de difícil comprovação. Somente no ponto de encontro dos “estados de coisas” com os “estados de alma”, operacionalizada pelo quadrante tensivo, é possível apreender o timbre enquanto produtor de sentidos. Ao fim desta breve discussão, cremos ter contribuído para retirar o véu inefável que recobre esse objeto fugidio mensurado subjetivamente porém reconhecível 7

Tradução livre do original: “On a beau voir une corde vibrer, le rapport n’est pas très évident entre ce fuseau, que la stroboscopie analyse pour l’oeil, et l’unité sonore si convaincante qui le signale à notre oreille. D’un gong, d’une trompette, on ne voit rien.” 8 Tradução livre do original: “On dirait que le timbre de la voix est le territoire des poètes et des amoureux plutôt que des phonéticiens.”

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socialmente. Para além das remissões meramente referencialistas, a semiótica deve ser capaz de reconhecer os sentidos do sensível no timbre, conforme relembram as reflexões de J. Fontanille sobre os modos do sensível: “Se o contato sensorial com o mundo fosse apenas uma inferência indexical (do tipo Se eu avisto um predador, eu fujo) não haveria lugar para falar de um universo semiótico do sensível” (1999, p. 66)9. Conduzir a missão semiótica até o vasto continente do timbre – e da sonoridade em geral – se torna uma jornada menos temerária quando o analista toma por bússola a posição central do sujeito enquanto controlador dos aumentos e diminuições responsáveis pelas infindáveis nuances que povoam nossos olhos e ouvidos. Referências BEIVIDAS, Waldir. “Reflexões sobre o discurso: a linguagem como recriação do mundo”. In: Lingua(gem), texto, discurso. Entre a reflexão e a prática. Rio de Janeiro: Lucerna; Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006, p. 117-135. ______. “Reflexões sobre o conceito de imanência em semiótica”. Cadernos de Semiótica Aplicada, vol.6 n.2, dezembro de 2008. BENNET, Roy. Instrumentos da orquestra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BORBA, Tomás; GRAÇA, Fernando Lopes. Dicionário de música. Lisboa: Cosmos, 1956. DAHLHAUS, Carl; EGGEBRECHT, Hans Heinrich. Brockhaus Musiklexikon. Oldenburg : Atlantis Musikbuch-Verlag, 2001. 3. ed., vol. 2.

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Tradução livre do original: “En d’autres termes, si le contact sensoriel avec le monde n’était qu’une inférence indexicale (du type ‘Si je repère un prédateur, je fuis’), il n’y aurait pas lieu de parler d’univers sémiotique du sensible.”

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GREIMAS, Algirdas Julien. Da imperfeição. São Paulo: Hacker Editores, 2002. HENRIQUE, Luís. Instrumentos musicais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. HJELMSLEV, Louis. Ensaios lingüísticos. São Paulo: Perspectiva, 1991. _______. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2006. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. HOWARD, David; ANGUS, Jamie. “Hearing timbre and deceiving the ear”. In: ______. Acoustics and psychoacoustics. Oxford: Focal, 2006. KENNEDY, Michael. The Concise Oxford Dictionary of Music. Oxford : Oxford University Press, 1996. NOUVEAU PETIT ROBERT: Dictionnaire alhpabétique et analogique de la langue française. Dictionnaires Le Robert, 2001. Versão digital. PARRET, Herman. “Vin et voix: vers une inter-esthésique des qualités sensorielles”. Visible, Limoges: Pulim, n° 1, p. 117-130, 2005. RANDEL, Don Michael. Harvard concise dictionary of music. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 1998. SCHAEFFER, Pierre. Traité des objets musicaux: essai interdisciplines. Paris: Éditions du Seuil, 2002. TATIT, Luiz. “Quantificações subjetivas: crônicas e críticas”. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Linguagens em diálogo. n° 42, p. 35-50, 2011. ZILBERBERG, Claude. “Éloge de la noirceur”. Protée, vol. 31, n° 3, p. 47-55, outono 2003a-2004. ______. “Portrait de la rondeur”. In: PAROUTY-DAVID, Françoise; ZILBERBERG, Claude. Sémiotique et esthétique. Limoges: Pulim, p.99-112, 2003b. ______. “Causerie sur la sémiotique tensive”. 2008. Disponível em http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/cursos/zilberberg2008/cz-causerie.pdf. Acessado em: 15 de Julho de 2012. ______. “Valeurs sémiotiques et valeurs picturales”. Tópicos del Seminario, n° 8. Puebla, p. 113-143. ______. “Présence de Wölfflin”. Nouveaux Actes Sémiotiques, n°23-24. Limoges: Pulim, 1992.

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AS LITERATURAS DE MULTIDÃO E A SOCIOSSEMIÓTICA Luciano Barbosa Justino UEPB Embora pensando nas novas questões abertas pelos acordos que construíram a chamada “Zona do Euro”, a sociossemiótica de Eric Landowski nos diz muito sobre a literatura brasileira contemporânea, sobretudo sobre aquelas obras que problematizam as relações de proximidade entre sujeitos e grupos sociais cujas diferenças de diversa ordem, culturais, afetivas, de classe, acabam por gerar relações de tensão e de luta e que chamo de literatura de multidão. O autor parte do “primado epistemológico da relação”. Ele vai buscar em Saussure o princípio segundo o qual “só se podem identificar unidades pela observação das diferenças que as interdefinem” (LANDOWSKI, 2002, p. 1). Para ele, identidade e alteridade são “diferenças posicionais” (p. 12) e não podem ser definidas “substancialmente”. Em outras palavras, não devemos pensá-las numa perspectiva ontológica, mas eco-lógica, o outro é uma questão de espaço e de posicionamento. O que dá forma à minha própria identidade não é o que me defino para mim mesmo, num ato a um só tempo narcísico e ensimesmado, mas transitivamente a partir do conteúdo que atribuo à alteridade do outro e à diferença que o separa de mim, nas palavras de Landowski, “a emergência do sentido de ‘identidade’ parece passar necessariamente pela intermediação de uma ‘alteridade’ a ser construída” (p. 4). O outro é o que falta, o suplemento indispensável, aquele cuja invocação cria em nós uma incompletude ou um impulso semiósico, “porque sua não-presença atual nos mantém em suspenso e como que inacabados, na espera de nós mesmos” (p. XII). Na sociossemiótica do autor, a única coisa que “realmente” pode estar presente é o sentido, não há objetos que não afetem, pois nunca há presença na insignificância.

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Nenhuma diferença é suportável ou insuportável por si mesma, mas pelo que significa. Ou, dito de outro modo, pelo que o grupo de referência a faz significar. Para que o mundo faça sentido, ele precisa aparecer para nós como um universo articulado, como um sistema de relações (p. 3). Ou seja, eu e outro só podemos estar presentes num quadro de nós. O que dá forma à minha própria identidade não é só a maneira pela qual, reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir) em relação à imagem que outrem me envia de mim mesmo; é também a maneira pela qual, transitivamente, objetivo a ‘alteridade do outro’ atribuindo um conteúdo específico à diferença que me separa dele. Assim, quer a encaremos no plano da vivência individual ou da consciência coletiva, a emergência do sentimento de ‘identidade’ parece passar necessariamente pela intermediação de uma ‘alteridade’ a ser construída (LANDOWSKI, 2002, p. 4).

Um método: 1) colocar em primeiro lugar o regime do não ser, da alteridade; 2) só a partir de onde se pode ir ao encontro do si, aquele que se diz eu, inclusive para si mesmo; 3) para em seguida fazer surgir o terceiro, que não poderá ser um “ele” pensado à distância, mas aquele que envia ao sujeito sua própria imagem. Ele parte de 2 problemas: 1) quais as configurações intelectuais e afetivas a partir das quais o si constrói sua identidade? 2) quais as opções do outro rotulado quantos aos modos de gestão de si? Convém diferenciar um princípio que parte do outro como constitutivo e uma metodologia na qual o outro possui um estatuto de fundamento do si mesmo, como propõe a sociossemiótica. Ter o outro como constitutivo do si não implica dizer que este outro seja apreendido em sua densidade diferencial não estereotipada, mas que ele pode, enquanto constitutivo mesmo, estar presente a si como diferença subalternizada, assimilada pelo narcisismo do eu. O estereótipo é a ausência de profundidade do outro para o si, nele a profundidade do outro não interessa à construção do eu-mesmo. O caráter de fundamento do outro implica que a formação do eu enquanto referência nasce de um processo de significação deste outro que antecede a minha própria constituição. A alteridade não só me constitui, ela me antecede e é dela a língua que falo. O que quer dizer que não existe presença surgida de um nada para um nada, um acontecer fora de tempo e espaço, na raça, na tradição, na nação, na família. Ela participa de uma relação cujo campo do acontecer está carregado de outras propriedades que tornam possível seu existir no sentido.

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Na perspectiva de um nós de referência hipostasiado, de uma identidade concebida como homogênea e legítima, a alteridade só pode aparecer como uma ameaça vinda de fora, mesmo quando o outro habita o espaço ao lado, por vezes mesmo quando freqüenta o espaço do um, como o “empregado”, o “limpador”, o “catador”, ele não partilha a mesa, sua diferença se dá em 3 grandes dimensões: no modo de vida (viés econômico), na diferença étnica (viés racial), no saber (viés cultural). Neste caso, a diferença

posicional,

não

essencial,

transforma-se

em

oposição

substancial

(LANDOWSKI, 2002, p. 12), em diferença “pertinente”, no sentido linguístico do termo. As palavras de Landowski me leva a crer que a produção de identidade só é possível na companhia dos muitos. Os muitos devem ser pensados como individuações do universal, do genérico, do indiviso. E assim, simetricamente, pode-se conceber um Uno que, longe de ser um porquê concludente, seja a base que autoriza a diferenciação, que consente a existência político-social dos muitos enquanto muitos (VIRNO, p. 9).

Para Paulo Virno, a semiose própria da multidão é o “lugar-comum”, ao qual recorrem os muitos. Os lugares-comuns vinculam, tornam exterior e coletiva a vida. O vínculo não é um movimento centrípeto e homogeneizador. A multidão que produz o comum é também centrífuga, daí ser a localidade - favela, perifa e seus derivados -, tão importante e tão problemática, pois os deslocamentos são ininterruptos. Mas não deixa de estar atada aos lugares e às suas demarcações na ordem urbana e social. A “partilha” desigual dos espaços da cidade funciona como uma espécie de memória do presente, memória de curto prazo?, que, de acordo com a situação, reforça, reconfigura, reinventa identidades e pertencimentos estratégicos. É a presença ou a prevalência do comum como vinculante que levanta um grande problema para a tradição literária moderna. As narrativas em que um tal devir do comum opera, chamo literatura de multidão. A multidão é um conceito aberto e abrangente que tenta apreender a importância das recentes mudanças na economia global. Hoje em dia a produção já não pode ser concebida apenas em termos econômicos, devendo ser encarada de maneira mais ampla como produção social, não apenas a produção de bens materiais, mas também a produção de comunicações, relações e formas de vida (HARDT; NEGRI, 2005, p. 13).

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Narrativa de multidão é para mim aquela que demonstra que o outro, os outros, não é o exo-tico, que eu delimito harmoniosamente num estigma e que está fora da utopia de minha própria identidade e de meu grupo de referência. Ele agora “se instala automaticamente entre nós”. No Brasil do pós (pó e após), a narrativa dos muitos conta a coexistência de modos de vida produzindo o comum na experiência cotidiana. A multidão difere da massa, que submerge todas as diferenças, é cinzenta e se move em uníssono, não tem singularidade e no limite é improdutiva (Cf. SLOTERDIJK, 2002). E do povo, que é essencialista, unidade inventada na origem do Estado-nação, etnolinguístico e etnocêntrico. Nem um nem outro dá conta da produtividade cotidiana semiotizada na narrativa de multidão. A multidão é produzida por uma “quantidade infinita de encontros” e pressupõe horizontes dialógicos e contraditórios. Por isso que a literatura de multidão expande o número de personagens na trama e os seus percursos pela cidade - seus personagens são sempre andarilhos. Alimenta-se do direito à liberdade e por inclusão, dos quais nasce boa parte da violência (Cf. YOUNG, 2002). Contudo, a multidão não pode entendida como um fim, o resultado lógico da expansão do capitalismo tardio e de suas contradições e sua utopia democratizadora, em tudo ingênua, conforme nos mostrou Beatriz Sarlo (2002). Ela é uma premissa, um ponto de partida, não de chegada, a partir de onde podemos dar conta das operações, pensá-las em seu vir a ser num espaço que é necessariamente de conflito. Considero, hipótese de base, que as literaturas de multidão são narrativas de alteridades e representam, como poucas, o modo das relações individuais e coletivas contemporâneas. Elas nos mostram que os outros não estão mais fora (se é que um dia estiveram), eles nos habitam entre nós (perdoai o pleonasmo e a má sintaxe). Para Landowski, estamos vivenciando um novo estatuto da alteridade: Tudo indica que este Outro que pressupõe a auto-identificação do Si está hoje, socialmente falando, mudando de estatuto. Outrora ainda distante, ele se instala atualmente entre nós. Não mais entender ou mitificar a cultura – o exotismo – do outro, imaginado à distância sob os traços do “estrangeiro”; agora é preciso viver, na imediaticidade do cotidiano, a coexistência com os modos de vida vindos de outros lugares, e cada vez mais heteróclitos (LANDOWSKI, 2002, p. 4).

Para o caso brasileiro e sua singularidade, penso como exemplos fortes disso narrativas como Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes; Cabeça de

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porco, de Luiz Eduardo Soares, Mv Bill e Celso Athayde; O invasor de Marçal Aquino; Manual prático do ódio, Capão pecado e Ninguém é inocente em São Paulo, de Ferréz; Falcão: meninos do tráfico e Falcão: mulheres e o tráfico, de Celso Athayde e Mv Bill; Cidade de Deus, de Paulo Lins; Letras da liberdade, de autores diversos e editado por Wagner Veneziani Costa; Inferno e O matador, de Patrícia Melo; Contos negreiros e Angu de sangue, de Marcelino Freire, Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, Cem histórias colhidas na rua, de Fernando Bonassi etc etc., que tem como marco fundador, na literatura brasileira, O cortiço, de Aluísio Azevedo. Elas contam situações de rua, de vizinhança, de local de trabalho, em espaços preferencialmente públicos ou passíveis de se publicizar as muitas demandas dos muitos. Diferentes em vários aspectos, encenam os modos de vida nas grandes cidades brasileiras, inclusive em seus casos extremos. Várias delas são narrativas de casoslimite. Na literatura de multidão, o outro, os “estrangeiros” e os excluídos, são inalienáveis. Ela nos mostra que, embora juridicamente tidos como iguais perante a lei, nas práticas e nos modos de vida os sujeitos não o são, pois as diferenças posicionais, as “diferenças pertinentes”, que são diferenças na distribuição dos capitais cultural, econômico, de gênero e étnico, mantém a diferença na cotidianidade, ou seja, a marginalidade permanece como “alteridade concretamente vivida” (LANDOWSKI, 2002, p. 61). De conquista narrativa moderna que culmina no romance, o realismo se transformou no pacto estruturante destas narrativas. Ele cresce a partir de um duplo movimento: da tradição dominantemente realista da narrativa literária brasileira e latinoamericana, ela mesma contemporânea do chamado período moderno; e de uma pulsão realista inerente à modernidade tecnológica, cujo marco foi a fotografia e sua técnica de captação da imagem. Em outras palavras: de utopia tecno-científica e de busca de construção de uma identidade latino-americana, o realismo é hoje a maneira dominante dos lugares-comuns. Na abertura de Inferno, lê-se: Sol, piolhos, trambiques, gente boa, trapos, moscas, televisão, agiotas, sol, plástico, tempestades, diversos tipos de trastes, funk, sol, lixo e escroques infestam o local. O garoto que sobe o morro é José Luís Reis, o Reizinho. Excluindo Reizinho, ninguém ali é José, Luís, Pedro, Antonio, Joaquim, Maria, Sebastiana. São Giseles, Alexis, Karinas, Washington, Christians, Vans, Daianas, Klebers e Eltons,

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nomes retirados de novelas, programas de televisão, do Jet set internacional, das revistas de cabeleireiras e de produtos importados que invadem a favela (MELO, 2000, p. 9).

Além das referências à cultura de massa, a um “cosmopolitismo do pobre”, para usar a expressão de Silviano Santiano, ao protagonista e a sua diferença que se anuncia, ao estatuto do “local”, aos usos dos espaços, aos “sujeitos” e a seus assujeitamentos, interessa-me a densidade humana em relação. Não estou preocupado no grau de inovação estética destas obras ou no seu contrário, sua função-clichê, nem na sinceridade de alguns de seus testemunhos. Não tenho na violência seu princípio temático mais importante, embora seja prudente não negligenciá-lo. Creio ser preciso desencadernar a obra, colocá-la de ponta cabeça, ser dela um leitor não pressuposto, fazendo sobressair o que é menos importante, os “chistes” de autoria, a secundariedade de certo personagem frente ao protagonista, leitura que esquece o código que lhe é próprio e encontra o que assignifica. Dar crédito a personagens que aparecem para dizer poucas palavras e viver pequenas e insignificantes ações, mas capazes de dar pertinência ao relato, basilar sua “superestrutura”, sem o que nem a verdade do protagonista e do narrador, nem a “moral” da forma fazem sentido. Proponho fazermos delas leituras “impertinentes”. Conforme o Aurélio: “que não vem a propósito, estranho ao assunto de que trata, descabido, incoveniente, inoportuno, ofensiva”. Ir além-aquém dos movimentos de sentido que a narrativa quer fazer sobressair e aos quais dá primazia, não cair nas armadilhas ideológicas da “comunidade discursiva” da obra travestida de narrador e de personagem principal. Quero lê-las à revelia delas mesmas, pelo que trazem de exemplar deste comum, politizando a centralidade que dão ao ato violento dos “bichos-soltos” e, sob certo aspecto, retirando-lhe o foco e a supremacia de geração de sentido da obra. Enfim, para fazer um trocadilho peirceano, tenho como princípio metodológico de análise a primeiridade dos segundos. Dou mais atenção a personagens secundários, que mal falam ou aparecem, para os quais o enredo da obra e a ideologia do narrador (e por extensão do autor) dão uma relevância pequena ou lateral. Os personagens secundários, os figurantes, são os muitos que me interessam. Episódios fortuitos que a ideologia da obra quer remeter a uma ação do personagem principal ou a um “caso exemplar”. Estes muitos que não mais aparecerão na obra estão para mim cheios de significância.

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Aliás, narrador e personagens principais são os lugares onde é visível tal ideologia, que condiciona e ordena um certo horizonte de interpretação e de expectativa. Não é neles que devemos encontrar a multidão e a produção do comum. A ação do personagem principal e o discurso do narrador só produzem protagonismos. O comum produzido pelas alteridades em contato é melhor encontrado na proliferação de personagens secundários, duplamente marginais, que a narrativa de multidão vai encontrar nos desvãos das grandes cidades brasileiras. O episódio envolvendo Claudino, “um mulato barrigudo”, amigo de Anísio, o jovem contratado por Alaor e Ivan para assassinar o sócio em O invasor é ricamente significativo. Claudino quer abrir um bar na periferia, mas não tem dinheiro. Solidário, Anísio promete-lhe um empréstimo na corretora. O episódio desencadeia um diálogo perigoso entre os três, na presença do “mulato [que] permanecia sentado de cabeça baixa. Parecia constrangido com a situação”, abre uma nova temporalidade na narrativa e redefine o papel dos protagonistas na trama. Claudino não diz uma única palavra ao longo do episódio e da narrativa, na qual não aparece mais. Ele não dura mais que 1 página. Seguir o caminho dos 3 protagonistas, um deles o próprio narrador Ivan, é uma das leituras possíveis da narrativa. Claudino abre um outro flanco, ou melhor, permite ver em outra base não só o que une Ivan, Alaor e Anísio, as muitas demandas que os envolvem e os pressionam. Claudino, não sendo protagonista, sendo a semiotização mesma do subalterno e do “homem comum”, tem para mim mais peso na narrativa do que os protagonistas, pois é signo de/dos muitos. Ele é a representação cabal da subalternidade e da multidão por estar fora daquilo que Gayatri Spivak (2010, p. 31) chama os dois sentidos da representação: 1) falar por e 2) re-presentar. Talvez seja por isso mesmo que um outro aspecto do realismo na literatura de multidão é a dominante semiótica da voz. Ela faz retornar a legitimidade da voz nas culturas cujo acesso ao letramento tem sido historicamente problemático e torna evidente um certo ethos, “voz indissociável de um corpo enunciante historicamente especificado” (MAINGUENEAU, 2008, p. 17), que impregna todo discurso e torna possível um “ser-aí” que não abre mão de seu posicionamento na enunciação. Chamo atenção para o tema do amor num diálogo entre Cosme e Fernanda, dois personagens secundários de Cidade de Deus, sincopado, oralizante, pulmonar, cheio de lacunas e expressões dêiticas (a língua como um todo se “deitifica”).

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Parceiro de bandidagem e de tráfico do marido da “morena gostosa”, Silva, Cosme não tira os olhos de Fernanda, até que um dia não resiste e canta a mulher do amigo, cujas conseqüências será o assassinato por amor (por amor?), do parceiro e a promessa de uma vida de “otário”, de marido responsável e fiel, respeitado e respeitoso: - Preciso te dar uma idéia. - Tem que ser jogo rápido que eu já estou atrasada. - Pô, mina, aí: tô paradão na tua. Sabe qualé? Dormi até agora e sonhei com você à pamparra. Eu tô pra te mandar essa letra há um tempão, mas não tive oportu... - Qualé, meu cumpádi? Que papo torto é esse? Não tô nem entenden... - Se amarro na tua há uma etapa, morou? Se tu largar o Silva, eu colo contigo na moral. - Tá vendo só como são esses malandro! Parceiro do meu marido e me cantando na maior! - Eu não queria piranhar ele, não. Gosto às pampa dele, tá sabendo? Mas meu coração tá birimboladão. Vou te mandar uma letra que nunca mandei pra mina nenhuma pra tu levar mais fé ni mim. - Que letra? - Te amo! ... - Eu te dou uma vida sem essa de ficar limpando arma antes de dormir, de ficar esquentando munição no forno, de matar os outros, de ficar trocando tiro com os samangos... Eu tô a fim de ser otário, trabalhar. Não tô a fim de fazer a vida em cima de baralho, dolinha de maconha e papelzinho de cocaína, não... Eu juro por essa luz que nos alumia, pela força de Ogum, que nada vai faltar. O arroz e o feijão eu garanto com o suor do trabalho... um monte de vez eu pedi a Oxalá que matasse essa coisa que eu tenho por você. – As lágrimas se desentocaram de uma só vez. – Me dá uma oportunidade nesta vida! ... - Tudo bem! Agora eu acredito em você! Vamos sair fora agora. (LINS, 2002, p. 112).

O amor que culmina na gratuidade (gratuidade?) do assassinato e na promessa de uma outra moralidade, em muitos aspectos moralista, é o caso-limite da utopia e dos impasses do intercultural nas contemporâneas sociedades em que vivemos? Deixo a palavra com o próprio Eric Landowski que, embora tratando de outra coisa, sintomaticamente se aproxima: Evidentemente, semelhante atitude implica primeiro um gesto de abertura, de aceitação, de curiosidade, talvez de “amor” pela diferença que faz com que o Outro, justamente, seja outro. Geralmente objeto de desconfiança, se não de repulsa, o Outro se torna um polo de atração para o qual nos voltamos em razão de sua própria alteridade.

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Entretanto, como muitos outros fenômenos de atração, um movimento desses comporta em germe seu próprio fim. Com efeito, de tanto os parceiros se aproximarem, empurrados para isso por sua “simpatia” recíproca, de se conhecerem melhor e de melhor se entenderem, de tanto descobrirem que o que os diferencia e, à primeira vista, os opõe, os torna ao mesmo tempo complementares e lhes abre novas possibilidades de ação, chegará quase inevitavelmente um momento em que eles, primeiro distintos e separados, mas que entram desse modo em relação e logo em contato, aspirarão fundir-se e tenderão a confundir-se numa nova totalidade. Compreender-se-á nessas condições que, quando as unidades em questão têm o estatuto de sujeitos autônomos, e se apegam a sua respectiva identidade tendo-se mutuamente em estima pelo que são, elas possam ter preocupação, e, às vezes, interesse em retardar o momento dessa pequena ou grande catástrofe (no sentido matemático do termo) que constituiria sua fusão. Porque, se se trata de fazer viver, entre Si e o Outro, uma relação efetiva de Sujeito a Sujeito, será preciso, de ambas as partes, não ceder nem ao desejo de um total abandono de si mesmo perante o Outro – o que equivaleria a renunciar à própria identidade, com o risco de logo ser para o outro apenas um objeto – nem ao desejo de uma posse total do Outro, que do mesmo modo só poderia chegar a coisificá-lo, despojando-o daquilo que o faz verdadeiramente outro – ao mesmo tempo autônomo e diferente -, isto é, precisamente, daquilo que o torna “atraente” (LANDOWSKI, 2002, p. 23).

Abramos o caminho, na esteira de Edouard Glissant, para a oralização da literatura, rumo a uma outra constituição da produção do comum e dos novos projetos coletivos que têm a literatura como objeto de disputa e espaço de constituição de alteridades e modos de vida novos no Brasil da era do pós. Oralizar a literatura é tirar dela o privilégio de uma certa escrita e de seus modos de exclusão e de manutenção do literário nas mãos dos poucos. Oralizar a literatura é colocá-la como patrimônio dos muitos, com todas as suas ambiguidades e ambivalências, limitações e potências. Referências HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005. LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva, 2002. MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Orgs.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008. SARLO, Beatriz. Épica de la multitud o de consolación por la filosofia. Punto de vista, 73, Buenos Aires, ago. 2002. SLOTERDIJK, Peter. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. 956

SPIVAK, Gayatri C.. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: UFMG, 2010. YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Rio de Janeiro: Revan, 2002. VIRNO, Paulo. Gramática da multidão: para uma análise das formas de vida contemporâneas. Disponível em: http://pt.scribd.com/patylicia/d/19683449GRAMATICA-DA-MULTIDAO

ORFISMO E CRISTIANISMO NA LÍRICA FINAL DE JORGE DE LIMA Luciano Marcos Dias Cavalcanti UNESP/FCLAr Uma importante característica presente em Invenção de Orfeu é a estreita relação da poesia com o mito. Em uma investida mitopoética, através do verbo, o poeta busca recompor o mundo, desarticula a linguagem que procura imitar o real, volta-se para o irracional e para o mágico em busca da linguagem primordial do homem, em que a metáfora, o mistério e o sagrado são privilegiados. Numa de suas fortes marcas, o poema busca uma espécie de “memória profunda” da cultura, trazendo para o presente um passado mítico perfeito. De acordo com essa perspectiva, é pela poesia que se deseja vivenciar os momentos de um mundo inicial. Esse aspecto é notado não só pelo desejo de reencontrar o passado, mas também pelo próprio ritmo do poema, entregue à inspiração livre, e por suas imagens. O poeta busca atingir as camadas mais profundas do ser através da correspondência entre o mundo edênico do passado mítico e seu texto. Invenção de Orfeu representa uma tentativa de criar um novo mundo verbal e um novo mundo real melhor e mais humanizado, uma “ilha”. Mas uma ilha do eterno movimento, transmutável a todo o momento e caracteristicamente órfica por definição, em que a necessidade da criação é privilegiada integralmente. A palavra poética atinge alto grau de valorização, próximo do encantamento, do virtuosismo, da abstração rítmico-sonora. Neste poema, o poeta encarna a figura do visionário, tenta reorganizar o caos em novo mundo, em um momento utópico e cristão, caracterizado pelo desejo do reencontro do homem com o éden perdido. Orfeu sempre esteve associado ao mundo da música e da poesia. Sua voz e o som de seu instrumento eram dotados de poder mágico que abrandava o coração dos homens e das feras. Cumpre notar que, além da harmonia divina de sua música e de seu canto, revelava aos homens os mistérios de uma nova religião. Orfeu é o cantor do começo dos tempos, em um sentido amplo, a arte órfica é concebida como criação livre e não como 957

imitação. Marcel Detienne classificou-a como caracteristicamente inventiva e polifônica. “Os órficos buscavam a idade de ouro, a sua grande divindade oracular é a noite recebedora do saber mântico mais alto.” (DETIENNE, 1991, p.88). O mito de Orfeu chega até a poesia moderna reinterpretado por grandes poetas. Nesta lírica, Orfeu, o primeiro poeta, leva à poesia os seus significados característicos: do canto, do ritmo e da melodia, o que está intrinsecamente ligado à sua origem mitológica. Jorge de Lima reservou um canto inteiro de seu poema a Orfeu, denominado “Audição de Orfeu”. A sua primeira estância é uma metáfora metalinguística que nos apresenta Orfeu a partir de uma linguagem sofisticada, quando aconselha o seu leitor a ler as entrelinhas do texto. Este canto mostra, principalmente, a linguagem poética do poema limiano, caracterizado por meio da figura de Orfeu. O soneto que abre o Canto mostra como se deve lê-lo: a partir da transcendência e da imanência da linguagem poética. O sentido de sua poesia está “além” e “aquém” do campo denotativo das palavras, isto é, ocupa um lugar indeterminado ou total. A linguagem parece outra mas é a mesma tradução. Mesma viagem presa e fluente, e a ansiedade da canção. Lede além do que existe na impressão. E daquilo que está aquém da expressão. (I.O., 1958, p.791).

A figura de Orfeu será amplamente associada à de Cristo. É bem provável que o seu vínculo inicial ao pensamento cristão provenha indiretamente de Ismael Nery, artista múltiplo e amigo de Murilo Mendes, fundador do Essencialismo. Fora ele que divulgara sua nova concepção do cristianismo ao seu amigo mineiro e, por conseguinte, a Jorge de Lima (também amigo íntimo de Murilo, os quais ofereceram seu livro conjunto a Ismael Nery). De acordo com a visão apresentada por Murilo Mendes, o Essencialismo era uma filosofia para ser vivida no dia-a-dia e se assemelhava ao cristianismo primitivo, na medida em que o homem deveria se indignar com as 958

injustiças presentes no mundo. Basicamente a doutrina essencialista é fundamentada na abstração do tempo e do espaço, “na seleção e cultivo dos elementos essenciais a existência, na redução do tempo a unidade, na evolução sobre si mesmo para a descoberta do próprio essencial, na representação das noções permanentes que dão à arte a universalidade” (MENDES, 1996, p.65). Outra característica importante do sistema essencialista é perceptível na concepção de um Cristo encarnado e modelar para os homens. Dessa forma, o catolicismo presente no Essencialismo era uma negação da religiosidade autoritária do Antigo Testamento, no qual Deus se apresenta como um juiz pronto para nos vigiar e nos punir, aproximando-se da concepção do Deus do Novo Testamento, especialmente na Encarnação de Cristo estendida à Igreja e aos homens. Nessa concepção, Cristo não se apresenta apenas como divindade, mas também em seu aspecto humano, modelo a ser seguido pelos poetas e artistas. Em Invenção de Orfeu, notamos a preocupação de Jorge de Lima com a desarticulação do tempo e do espaço tradicionais, somados à multiplicidade do poeta que encarna as figuras de Cristo e Orfeu, orientadores e inspiradores de sua “epopeia”. Em sua concepção, a poesia, antes de tudo é um dom que se manifesta por meio do poder divino e/ou órfico. Junta-se a isso, a preocupação social do poeta que trabalha de modo a valorizar a geografia e a cultura pobre do Nordeste infantil, negro e religioso. Um dos recursos utilizados por Jorge de Lima, que revela como ele concebeu Invenção de Orfeu, pode ser notado por meio da estreita relação que o poeta estabeleceu entre o mito de Orfeu e o misticismo cristão. De acordo com Dante Tringali, são inúmeros o contato, a influência ou analogias entre ambos os movimentos. A filosofia grega teria penetrado no cristianismo através do orfismo. Defende-se a tese de que São Paulo teria sido órfico antes de se converter ao cristianismo. Qual o significado da representação da figura de Orfeu nas catacumbas cristãs? É que, sem dúvida, os cristãos viam nele uma prefiguração de Cristo, um profeta iluminado que teria participado da revelação mosaica! (...) Entre ambas as religiões se faz presente o mesmo ideal de salvação e de purificação servidas por uma estrutura eclesiástica. (TRINGALI, 1990, p. 22).

O mito de Orfeu foi revisitado por Jorge de Lima numa tentativa de recuperá-lo em seus múltiplos significados na modernidade. O poeta procura explorar e transcender algumas possíveis significações, recriando-o ou simplesmente concordando com sua origem antiga. Em uma nova escritura, Jorge de Lima traz para a modernidade suas reflexões sobre o sentido do mito e a respeito do próprio Orfeu, numa espécie de

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revalorização de concepções necessárias ao mundo moderno, que no momento da criação do poema apresenta uma série de conflitos provenientes dessa “modernização”: o apagamento do eu, o rompimento com a estética tradicional, a guerra, revoluções, etc. Desse modo, a figura de Orfeu está presente de forma constante no poema, seja de forma explícita (pelo próprio mito) ou de maneira metafórico–simbólica (pelo significado do mito na sua representação figurada). É exemplar a presença de Orfeu na estância XI, do Canto Segundo em que o citaredo, comparado a Cristo e sua crucificação, aparece exilado, e o seu exílio representa o mundo sem o seu guia e sem a poesia. A mão de Orfeu enorme destra abateu-se no peito, funda ausência, tão suave inexistente mão; foi delação das coisas, inibida mão, ecos martelando-a, ecos que são cruéis e inexoráveis como as sublevações que retornaram e retornaram quando o deus construía; (...) a mão êxul de Orfeu, os retinidos ecos temperados de cor, eram dele, de Orfeu deus sonoro e terrível, hoje vago, vago tão vago como sua vaga destra; (...) funda submersão desse deus, agora com seu deão de cerimônias inventando-lhe os gestos, conduzindo-lhe a mão ao seio dos infernos, contando-lhe até cinco apenas dedos fiéis à delação desse deão que aponta a aparência de Orfeu. (O.C., 1958, p.687).

É importante notar que Orfeu, poeta inventor e condutor da poesia de Jorge de Lima, também é considerado o primeiro poeta de todos os tempos e se, como acreditamos, Jorge de Lima pretende com seu poema reconquistar o tempo inicial da criação, nada mais justo que a eleição de Orfeu como condutor dessa busca. A ausência da força criadora de Orfeu e Cristo, guias do poeta em sua aventura épica, e o seu exílio do mundo certamente significaria uma estagnação ou retrocesso de sua construção por meio da beleza e da magia órfica, aludindo até mesmo a sua esterilidade. Assim mostra o poema com Orfeu sendo conduzido ao inferno. Outra perspectiva que o poema revela é a insatisfação do poeta com o mundo vivenciado por ele, que se caracteriza justamente pela imagem da negação de Orfeu/Cristo e seus possíveis significados: harmonia, beleza, inspiração, poesia, etc. 960

As figuras de Orfeu e Cristo estão presentes em vários momentos de Invenção de Orfeu. Nas estâncias XXIII e XXIV do Canto Terceiro, vemos a relação direta do poema com o mito, sendo que na primeira estância Orfeu se associa claramente à figura de Cristo (vida, paixão e morte) e à morte (a extinção de seu canto). Orfeu e o estro mais forte dentro da curta vida a taça toda fruída, fronte que já não pensa canção erma, suspensa, Orfeu diante da morte. Vida, paixão e morte, _ taças ao fraco e ao forte, taças vida suspensa. Passa-se a frágil vida, e a taça que se pensa Eis rápida fruída. Abandonada, fruída, Esvaziada morte, Orfeu já não mais pensa, calado o canto forte em cantochão da vida, cortada área, suspensa lira de Orfeu. Suspensa! Suspensa! Área fruída, sextina antes da vida ser rimada na morte. Eis tua rima forte: rima que mais se pensa. (O.C., 1958, p. 723).

Na segunda estância, o mito nos remete à figura de Eurídice comparada a Eva, estreitando ainda mais a relação entre as mitologias órfica e cristã. Retomando o mito de Orfeu que busca libertar Eurídice do Inferno (na concepção bíblica Cristo veio libertar a humanidade após a Queda “causada” por Eva), o poeta descreve a sua procura pela poesia (Eurídice) e pela libertação do homem. A volta à mitologia no poema aponta para a captação do essencial do drama humano através do mitológico, que pode ser utilizado como “tema”, “motivo de enriquecimento estético”, “meio de materialização referencial” e “elemento criativo e divulgador”. Além desses elementos, o poeta ao recorrer aos mitos de Eurídice e Eva está, na verdade, em busca de um elemento intemporal e exemplar para representar o drama do homem no seu tempo. Nesse sentido, os mitos atingem o leitor do poema principalmente através da memória coletiva, veiculado por meio da tradição clássica

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(Eurídice) e/ou arcaica (Eva) dos povos primitivos que são transpostos para forma do poema, o que possibilita a sua permanência, seu desenvolvimento e sua atualização. A sextina começa de novo uma área espessa, (sextina de procura!) Eurídice nas trevas, Ó Eurídice obscura, Eva entre as outras Evas. Repousai aves, Evas, que busca recomeça cada vez mais obscura da visão mais espessa repousada nas trevas. Ah! difícil procura! Incessante procura entre noturnas Evas, entre divinas trevas, Eurídice começa a trajetória espessa, a trajetória obscura. Desceu à pátria obscura em que não se preocupa alguém na sombra espessa e onde sombras são Evas, e onde ninguém começa, mas tudo acaba em trevas. Infernos Evas, trevas, lua submersa e obscura. Aí a área começa, e não finda a procura entre as celestes Evas a Eva da terra espessa. Eurídice, Eva espessa, musa de doces trevas, mais do que todas as Evas _ musa obscura, Eva obscura: sextina que procura acabar, e começa. (O.C., 1958, 724).

Além da relação flagrante entre Eva e Eurídice, situação que revela a inspiração literária e cristã no poema, é relevante notar a impressionante quantidade de musas mortas presentes em Invenção de Orfeu. Em geral, são iniciáticas e ligadas ao reino dos mortos: Eurídice, Lenora, Ofélia, Beatriz, Inês, Mira-Celi e Celidônia. Esta marca das musas limianas parece conter o pressuposto básico da falta para ato criador, que nos

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remete ao caráter órfico de Invenção de Orfeu – o poeta canta, como Orfeu, a falta de sua musa, caso contrário a sua “viagem” (o poema/o seu canto) não existiria. É importante notar o percurso trilhado pelo poeta em Invenção de Orfeu: ele recebe ajuda das musas e também divina (além da dos poetas Camões, Virgílio, Dante, Rimbaud, Lautréamont, etc.) para compor seu poema. De acordo com Curtius, a literatura ocidental após privilegiar o canto e as musas, passa sequencialmente a invocar os césares para depois chegar à invocação de Deus e, finalmente, à invocação do próprio espírito do poeta. No que se refere à invocação divina a poesia propriamente dita passa a associar-se a poesia cristã, como parece ser o caso de Jorge de Lima, que dialoga com esta tradição. Desse modo, como aponta Curtius “além de invocar as Musas, a poesia antiga também cultivava a invocação de Zeus, o que permitiu à poesia cristã estabelecer correlações: o paraíso é equiparado ao Olimpo e Deus a Júpiter.” (CURTIUS, 1996, p.297). Somado a isso, o declínio do paganismo revela a razão da rejeição, pela poesia cristã, do culto às musas. A partir de então, os poetas passam a pedir ajuda ao Espírito Santo ou propriamente a Cristo identificado a Orfeu. Assim declara Curtius, a partir das considerações de Paulino de Nola, Em lugar de Apolo e das Musas, deveria ser Cristo o estimulador e entoador da poesia (XV, 30). Os poetas pagãos proferiram mentiras, o que não assenta bem num servo de Cristo (XX, 32 e 55). Além do protesto contra as Musas pagãs, Paulino desenvolve também uma teoria cristológica da inspiração e uma concepção de Cristo como músico universal que lembra a especulação alexandrina sobre Cristo identificado com Orfeu. (CURTIUS,1996, p.299).

É pertinente notar estas nuanças na história da poesia, mas como sabemos Jorge de Lima nunca se incomodou, como outros poetas modernistas, em se relacionar com a tradição literária de modo a tirar proveito dela. É por esse motivo que vemos presente em Invenção de Orfeu, poema muitas vezes paradoxal, elementos que aparentemente se opõem. Assim, Jorge de Lima se utiliza das musas (o mundo pagão) – reabilitando-as, como fizeram os humanistas – e do divino (o mundo religioso cristão, muitas vezes associado à figura de Orfeu). Jorge de Lima compõe Invenção de Orfeu no período do pós-guerra, em um momento extremamente delicado para o mundo e, nessa perspectiva, o poema, apresenta ao leitor, através de uma série de imagens perturbadoras, um retrato do tempo presente. Contra esse mundo caótico é que Invenção de Orfeu, como a própria escolha do mito de Orfeu demonstra, se rebela e busca transcender e recriar o mundo e a poesia. Nesse

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momento, compreendemos bem o papel de Orfeu no poema de Jorge de Lima. Ele é a divindade mítica, comparada a Cristo, que pacifica o mundo conturbado com seu canto, que como em seu sentido original pacifica e harmoniza o homem com a natureza. Jorge de Lima mostra a situação perturbadora em que se encontra o homem do século XX, com a presença de duas grandes guerras mundiais e pela iminência de seu desaparecimento. Num constante avanço o mundo se mostra ao homem através de grandes modificações de valores e conceitos, a ciência passa a reavaliar suas teorias, regimes políticos com forte caráter ideológicos se firmam (em combates vigorosos) e cometem atrocidades, o progresso da técnica e o automatismo contribuem para despersonalização do homem. Nesse sentido, Invenção de Orfeu canta o homem (herói) moderno que vive um drama apocalíptico e deseja recompô-lo ao tempo original na tentativa de resgatar valores primordiais. Pasma néscio o pastor que o ruído escuta; e os filhos do Grão-Maro se enternecem. Contai aos filhos meus como é tão grato morrer-se pelejando (à mente ocorre), com os anjos vãos, com os fementidos numes! Ah! Musa, que é da Pátria? onde o motivo que a essa ilha combusta a guerra sopras e vertes batalhões; e ufana ateias as gargantas e, ruas pejas de armas? O gume de aço agudo (pólen ácido), e Andrômedas de abisinto, logo abatem nas portas os primeiros marechais. Foram-se todos; morramos pelas armas, morramos. Salvação para os vencidos. Mas ninguém logra salvação nenhuma. Isto atiça os contrários quais rapaces lobos ardidos de faminta raiva entram por campos órfãos, como demos, de goelas secas, são Lusbéis decerto. Quem poderá contar a cinza e o fogo? Quem dessa noite as fúnebres tragédias, ou lágrimas terá que a dor igualem? A soberana antiga insula doce baqueia; e de cadáveres sem conto, ruas, casa, vestíbulos sagrados, tudo é luto e pavor, braseiro é tudo, multiplicando a morte em vária forma. E também no ar a mesma negra sanha, os tremendos guerreiros de Astarot refervem como fogos de fornalha, e fogo, ar, terra desagalham.

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(...) traves descose, ferros e aços funde e cava ampla aflição. O interno fogo aparece, e átrios longos escancaram-se. Aparecem do Inferno os capitães. Mansões de grão-Beliais; e um monstro exangue cobre o limiar. A ilha é um pranto imenso, pranto, pranto; as abóbadas ululam com pânico gemido atormentado, que as fontes secam. Desgrenhadas andam mães pelas vastas galerias. E ofertam beijos aos missais que abraçam. Bafos de bombas, hálitos de infernos sete vezes rodeiam os oceanos. E que direis dos signos escutados? Insula em ruínas, naves conspurcadas, a orfandade das flores seviciadas. (O.C., 1958, p. 784).

É relevante frisar que o sentimento religioso de Jorge de Lima também provém do catolicismo popular do Nordeste brasileiro, caracteristicamente supersticioso, primitivo, sincrético, mágico e enraizado em uma herança medieval, como demonstra a carga mítica provindas dos cultos afro-brasileiros presente em sua obra. O poeta se filiará a um catolicismo voltado para a solidariedade, em privilégio dos pobres; para posteriormente, na sua fase final, partir para a reflexão metafísica. Dessa forma, Jorge de Lima tem uma atitude poética expressa pela transcendência, ligada ao mistério das coisas e aos valores inerentes à vida. Como disse Roger Bastide, Jorge de Lima desejou “‘criar uma língua sagrada’ através da transformação da experiência mística (‘os símbolos correntes’) do poeta convertida em experiência poética, por meio da criação de seus próprios símbolos”. (BASTIDE, 1997, p. 129-30). A missão do poeta é resgatar a palavra original degradada pelo decorrer do tempo histórico, juntamente com a degradação do homem. Desse modo, como é anunciado em seu canto primeiro, o poeta é um ser assinalado por Deus, que cumpre seu destino de ininterruptamente (noite e dia) amar e louvar a poesia “que é de aquém e de além-mar/a ilha que busca e o amor que ama.” Assim, Invenção de Orfeu apresenta-se com o poder revificador e libertador do mundo que se mostra hostil, elevando-o de uma realidade mortal para um mundo liberto da temporalidade e da espacialidade, o mundo da ubiquidade. Jorge de Lima, como os poetas da antiguidade clássica com a recitação de seus cantos cosmogônicos, busca pela força da palavra renovar e restaurar a vida, pelo poder de fazer o mundo e o tempo retornarem à sua matriz original “e ressurgirem com

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o vigor, perfeição e opulência de vida com que vieram à luz pela primeira vez. (...) tal o poder e impacto que a força da palavra tinha sobre o ouvinte.” (TORRANO, 1995, p. 20). É este poder ontopoético que o poeta busca trazer para Invenção de Orfeu, o poder de instaurar uma realidade própria à poesia, de iluminar o mundo que sem ela extinguiria. O poeta está em busca da transcendência e é através do poema que ele tenta superar as contradições do mundo moderno. Este sonho do poeta só pode se realizar através da arte, pois é a partir da representação artística que ele tenta reordenar este mundo e passar sua mensagem cristã de esperança futura. Referências ARAÚJO, Jorge de Souza. Jorge de Lima e o idioma poético afro-nordestino. Maceió: EDUFAL, 1983. BASTIDE, Roger. Jorge de Lima. In: Poetas do Brasil. São Paulo: EDUSP; Duas Cidades, 1997. CARPEAUX, Otto Maria. Organização e Introdução. Obra Poética - Jorge de Lima. Editora Getúlio Costa: Rio de Janeiro, 1949. CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. Trad. Teodoro Cabral e Paulo Rónai. São Paulo: HUCITEC/EDUSP, 1996. LIMA, Jorge de. Obra Completa (org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: EDUSP; Giordano, 1996. TORRANO, Jaa. Estudo e tradução. In: HESÍODO. Teogonia – A origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1995. TRINGALI, Dante. O Orfismo. In: CARVALHO, Sílvia M. (org.). Orfeu, Orfismo e Viagens a Mundos Paralelos. São Paulo: Edunesp. 1990.

A QUESTÃO DA AUTORIA NA CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM DOIS ROMANCES HISTÓRICOS CONTEMPORÂNEOS Ludmila G. Ribeiro de Mello UNESP/FCLAr Wilton J. Marques UNESP/FCLAr

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Introdução Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos. (TELLES apud COELHO, 1993, p.14)

Ao se deparar com essa afirmação de Lygia Fagundes Telles, e usada aqui como epígrafe, sobre a emancipação literária feminina, pode-se questionar se realmente existe hoje liberação das mulheres, como personagens ficcionais, dos estereótipos pertencentes principalmente à ótica masculina. E se tal libertação passou a existir, como a literatura reflete esse processo, ou seja, como as personagens femininas seriam representadas nas narrativas ficcionais e, mais especificamente, se essa representação se daria de forma diferente quando feita por autores ou autoras. Por meio da literatura que produzem, as mulheres vêm tentando resgatar sua própria história, reivindicando para si a condição de sujeito. Desse modo, assumem uma função política implícita, na medida em que procuram, por meio das mais diferentes formas de representação, desconstruir noções estereotipadas de sexo e gênero, reconstruindo, revalorizando e revitalizando aspectos que são sempre escamoteados pelas estruturas sociais conservadoras (Pellegrini, 2008). Se a mulher escritora “invadiu” de forma ampla apenas recentemente o meio literário, pois elas aparecem na historiografia literária somente a partir do século XX, todas as representações femininas deixadas pela literatura ao longo da história foram criadas por olhares masculinos, então, é importante entender qual a diferença na representação que homens e mulheres dão à questão. Primeiramente, se essa diferença realmente existe e quais são suas características escritas nos textos. Por essa razão, buscou-se estudar e comparar as representações femininas entre escritores de sexos distintos. Dentre as marcas que podem ser citadas é a da própria experiência feminina transfigurada esteticamente que funciona como base nos textos femininos. Toda representação do mundo feita pelas mulheres se faz, necessariamente, a partir de ótica feminina, portanto, de uma perspectiva diferente da masculina. Nesse sentido, cabe determinar como a mulher representa a si mesma e como vêm sendo representadas as personagens femininas na ficção de autoria masculina e estudar se efetivamente há um olhar feminino sobre a personagem mulher, diferente do olhar masculino. E, além disso, é importante ressaltar como seriam esses olhares na contemporaneidade.

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Pretende-se, portanto, contribuir, por meio do confronto de dois textos de autores canônicos da literatura brasileira contemporânea, para o entendimento das coordenadas históricas e sociais que engendraram a construção do “sujeito mulher”, enquanto personagens ficcionais, em todas as suas implicações e se pode ser constatada alguma diferença na escritura. Para atingir tais objetivos, buscou-se verificar como se dá a representação das personagens femininas nos romances históricos Videiras de Cristal (1990) de Luiz Antonio de Assis Brasil e Amrik (1997) de Ana Miranda, analisando-os por meio da arquitetura narrativa e do tratamento que cada um dos autores dá ao tema, baseando as análises nas teorias feministas de duas correntes críticas desse campo de estudo, a anglo-americana e a francesa, utilizando dessas, seus aspectos mais relevantes; bem como, usou-se das teorias que envolvem a análise histórico-literária. Foram analisados os aspectos referentes às linhas teóricas que envolvem este trabalho, fazendo uma breve explanação sobre as teorias feministas e as especificidades do romance histórico, bem como questões do âmbito da autoria, questionando, a partir desses conceitos, se realmente existe hoje liberação das mulheres, enquanto personagens ficcionais, dos estereótipos pertencentes principalmente à ótica masculina, pois se “excluídas do processo de criação cultural, as mulheres estavam sujeitas à autoridade/autoria masculina” (TELLES, 2006, p. 408). Se tal libertação passou a existir, discutiu-se como a literatura reflete esse processo, isto é, de que forma as mulheres são representadas nas narrativas ficcionais e se essa representação mudou com a mudança dos tempos. Até o momento, apenas o romance Videiras de Cristal foi completamente analisado, estudando seus aspectos históricos, as fontes utilizadas pelo autor, o tipo de narrador (ou narradores) que se apresenta, uma vez que nesta obra prevalece a terceira pessoa enquanto em Amrik o narrador é homodiegético, além, é claro, de uma ampla análise das personagens femininas criadas (ou reinventadas, pois se trata de um romance histórico) por Assis Brasil. As personagens femininas de Assis Brasil “Se historicamente estivemos ao lado dos homens na construção do mundo, por que não podemos nos sentar à mesma mesa, quando chega o momento de usufruir?” (BRASIL, 1997, p. 239)

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A partir desse pequeno trecho do discurso de Luciana de Abreu, transformada em personagem de breve passagem na obra Videiras de Cristal, é que se iniciará a discussão sobre a construção das personagens femininas do autor Assis Brasil. Luciana Maria de Abreu foi escritora e educadora gaúcha no final do século XIX, contemporânea, portanto, ao episódio mucker. Foi a primeira mulher a subir em uma tribuna para defender a emancipação feminina na Sociedade Partenon Literário, para a qual foi convidada como membro. Ela foi, assim, uma precursora na luta pelos direitos da mulher no Rio Grande do Sul. O trecho transcrito na epígrafe foi retirado das páginas do romance de Assis Brasil, no qual a escritora, enquanto personagem, aparece discursando na tribuna do já citado clube literário. Diante da “contundência da fala” de tal mulher muitos dos homens presentes “olhavam para o friso das próprias calças” (p. 239), pois, afinal, o conteúdo da explanação ia de encontro aos próprios cavalheiros. O narrador homodiegético, que neste momento é o Dr. Fischer, afirma, após a transcrição da fala da escritora, que Luciana é ouvida por esse punhado de senhores para que eles possam comprovar seus “ideais libertários”, ou seja, não acreditavam na escritora ou respeitavam as ideias dela, mas sim, toleravam-na para provarem serem verdadeiros Liberais. Esse paradoxo entre pensamentos e ações fica claro na narrativa desse episódio feita por Christian Fischer em uma de suas cartas ao tio que vive na Alemanha, isto é, quando a plateia aplaude o discurso de Luciana de Abreu, o médico percebe que a escritora é tolerada pela sua necessidade na causa dos presentes, mas não reconhecida pelas ideias dela própria. Essa situação pode ser vista como uma metáfora para a situação feminina na região Sul do Brasil, uma vez que, a mulher era vista como “um mal necessário”, pois, embora normalmente desprovidas de autoridade, elas eram essenciais em uma terra na qual os homens passavam grande parte do tempo fora das estâncias, por exemplo. No Rio Grande do Sul, fatores como as guerras e as disputas de território, permitiram à mulher uma maior liberdade. Como podemos verificar na afirmação da pesquisadora Joana Maria Pedro: A existência de inúmeros conflitos e batalhas realizados neste território deu aos homens destaque nas atividades políticas e nas guerras. Entretanto, a ausência masculina no lar exigiu que as mulheres assumissem a direção dos empreendimentos e mantivessem

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a sobrevivência da família, transpondo assim os limites das tarefas definidas usualmente para seu sexo. (PEDRO, 2006, p. 280)

No entanto, sua vida pública, como a participação nos âmbitos culturais e políticos, ainda era restrita. Aquelas que conseguiam permear tais lugares eram comumente taxadas de promíscuas, um estereótipo recorrente, como Assis Brasil muito bem transporta à ficção no romance em análise: Karl Von Koseritz me disse ao ouvido que Luciana de Abreu é famosa em toda a Província por suas idéias. Muitos a consideram uma prostituta, lamentam a sorte do marido. (BRASIL, 1997, p. 239)

Se isso ocorria nas grandes cidades, entre cidadãos que se enxergavam como revolucionários, como representado em Videiras de Cristal, o que esperar dos homens comuns, dentro de pequenas comunidades, como é o caso da colônia de Padre Eterno. Durante todo o processo de colonização, no qual famílias inteiras chegavam ao Brasil, as mulheres passaram a ter, em muitos casos, papel central.

A economia

pecuária do Rio Grande do Sul levava os homens da casa a tornarem-se nômades em busca de pastagem ou transportando gado para a venda, assim, a manutenção e o cuidado com a estância ficavam exclusivamente em mãos femininas. Em outros casos, mesmo na presença dos homens, cabia às mulheres, além dos afazeres domésticos, também parte do trabalho considerado produtivo, como é possível constatar em estudos históricos sobre aquele período: Inúmeras cartas de colonos para a Alemanha apontavam a importância dessas mulheres. O próprio coordenador da Colônia indicava: “... o imigrante que trabalha na terra, necessita do auxílio de uma mulher e boa dona de casa [...] uma esposa aqui é tão necessária como o pão de cada dia”. Além disso, procurava alertar os emigrantes: “... procurem trazer uma esposa com prendas domésticas e que não seja muito habituada a cidades grandes”. (PEDRO, 2006, p. 288)

As mulheres tornaram-se essenciais nesse contexto em que a ausência masculina era constante e no qual o trabalho doméstico era imenso e o único conforto da família. Sua importância dentro da propriedade era tanta que não raro eram consultadas pelos maridos antes de tomadas de grandes decisões, embora sua vida pública fosse controlada e vigiada. Contudo, para atingir tal status, a alemã deveria possuir como características: se fazer respeitar, ser boa mãe e boa filha, ter uma sexualidade restrita ao casamento, bem como ser econômica e comedida (PEDRO, 2006, p. 289); mas, é claro, que esse ideal feminino-alemão não era observado em todas as imigrantes, era apenas a

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regra, o esperado; contudo, havia as exceções. Entre essas poderíamos citar Jacobina Maurer, nascida Mentz, que ao final deste mesmo século iria liderar uma seita messiânica dentro da colônia alemã de Padre Eterno. Jacobina, nascida em 1841/42 (?), era filha de André Mentz e Maria Elisabeth Müller e neta de Libório Mentz e Madalena Ernestina Lips, que chegaram ao Brasil em 1824, com a primeira leva de imigrantes alemães, fugidos de Tambach, na Turíngia, devido a perseguições que sofriam por terem abandonado junto com outras famílias a Igreja e formado uma comunidade de culto independente. (SCHULTZ, 2003, p. 8)4 Informação que nos é pertinente, pois em 1870, no morro do Ferrabrás, na colônia de Padre Eterno, Jacobina, casada com o curandeiro João Jorge Maurer, iniciaria suas reuniões para leitura da Bíblia, fundando ali uma seita. É a história dessa mulher que será retratada na ficção de Assis Brasil. Há várias versões sobre o episódio Mucker, bem como sobre a líder deles, o autor da obra Videiras de Cristal optou por uma das interpretações feitas sobre Jacobina Maurer e é exatamente esse ponto que nos interessa mais profundamente, ou seja, ao transportar um fato e uma personagem históricos para a ficção, o autor também escolheu de que maneira faria isso, dessa forma, Jacobina seria representada como mártir ou aliciadora? A obra possui em sua maior parte um narrador heterodiegético e este apresenta a história ao narratário através de focalizações diferentes, ora com os representantes dos “impuros”, o padre e o pastor; ora com o representante mucker, Jacó-Mula. Assim, a visão que se tem de Jacobina Maurer ou é dada pelos seus opositores ou por um adepto que possui problemas mentais. Poucos e escolhidos são os discursos diretos da personagem e mesmo esses foram baseados em textos históricos deixados por seus oponentes. Dessa forma, o que a obra permite conhecer de Jacobina é apenas uma das versões que se tem sobre ela e justamente a visão da História oficial, ou seja, aquela que se lê nos livros didáticos e nos manuais de História: Jacobina foi uma mulher adúltera, transgressora e manipuladora. No início do romance, quando temos a apresentação de Christian Fischer, ainda na Alemanha, em uma conversa com o tio, ele comenta sobre “a ignorância [dos médicos] do verdadeiro mal” no que se refere à histeria: (...) os homens, por não conhecerem as mulheres, imaginam filtros, convulsões vaporosas e um total mistério, tudo isso provindo do útero, que não é senão o órgão feminino da reprodução humana. (BRASIL, 1997, p. 17)

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A primeira descrição de Jacobina que temos no romance de Assis Brasil, feita pelo narrador heterodiegético, é a de uma mulher fisicamente frágil e debilitada, porém de personalidade incisiva, como se verifica neste excerto: Frau Maurer tinha um perfil suave e pálido, e estava deitada sobre a cama ao centro do quarto, os braços caídos sobre o lençol, os olhos fixos no teto. [...] Frau Maurer trazia os cabelos aparados muito baixos, em caracóis dourados que se colavam ao crânio e às têmporas. A lividez do rosto não esmaecia a força dos olhos, brilhantes, azuis e temerários. Ana Maria recuou por instinto. (BRASIL, 1997, p. 24)

Essas características de Jacobina manter-se-ão ao longo da história, a mulher aparentemente fraca e doente, mas cujas ordens nunca eram questionadas dentro do Ferrabrás. Os surtos de Jacobina tornam-se frequentes e, enquanto ela os atribui ao Espírito Natural, os opositores de sua seita taxam-na como louca, histérica ou ainda de bruxa e embusteira. Percebe-se, portanto, que o fato de uma mulher assumir funções tipicamente masculinas faz dela uma insana natural ou então alguém ligado ao mal. Assim, o fato de o narrador ter apresentado páginas antes a deficiência dos médicos em bem diagnosticar as doenças mentais, faz o leitor refletir sobre a “doença” atribuída a Jacobina. Não sendo ela louca nem histérica, poderia então ser uma falsa profeta ou ainda estar falando a verdade, pelo menos no ponto de vista dela, e ser uma profetiza. Essa possibilidade, no entanto, não permanece em aberto ao longo do romance, pois o leitor vai tomando ciência dos fatos através da focalização múltipla que o leva a acreditar na tese do embuste, já que fica claro que Jacobina manipula seus adeptos para que esses façam aquilo que ela deseja, em uma clara necessidade de buscar atenção e prestígio, como é possível lermos no discurso indireto do “pastor” Klein, cunhado de Jacobina e que acompanhava de perto suas pregações: Ela não o ouvira, deixando-se cada vez mais enredar-se pelos delírios pagãos do Espírito Natural, consumindo-se em um amor abjeto e adúltero, mandando seus fiéis à luta, sem consideração pelas vidas humanas que punha em risco. (BRASIL, 1997, p. 368)

Observemos que no início da obra, ela se vê como veículo do Espírito Natural, ou seja, da ação de Deus, mas com o passar do tempo narrativo, ela começa a se denominar como reencarnação do próprio Cristo, isso dá as suas ordens um caráter divino e inquestionável, como se observa nos trechos da obra que seguem:

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Porque o senhor falava a Jacobina e Jacobina falava a Ele; uma comunhão perfeita entre o Espírito e a Carne, entre a Divindade e o Homem. Ela, Jacobina, não era nada, ninguém, uma pobre-coitada como todos os que se ajoelhavam e sofriam naquela sala. Mas por um especial dom, só compreensível pela extrema generosidade de Deus, ela ouvia de Deus tudo o que Ele queria dizer aos homens; confiassem nela, ainda que sua presença e sua voz de mulher parecessem tão fracas. (BRASIL, 1997, p. 98-99) O apóstolo Mateus abriu os braços, os olhos suspensos em Jacobina: - Jacobina, você é Jesus Cristo! - Sou o que você diz que eu sou. [...] (BRASIL, 1997, p. 152)

Essa é a versão do autor da obra: Jacobina é uma mulher perspicaz e manipuladora que convence a todos de seus poderes sobrenaturais, os quais eram reais aos “insanos” que a seguem de maneira cega, como se pode ver através do discurso direto e da narrativa do ponto de vista de Jacó-Mula que seguem:

“[...] Onde você acha que vai acabar isso?” Tio Fuchs coçou a barba branca: - “Onde você quiser, Jacobina. Sua voz é muito mais forte do que imagina. Esse povo que você vê aqui seguirá você para onde você mandar. Inclusive eu”. (BRASIL, 1997, p. 131) Como um arrepio, Jacó-Mula percebeu que a mulher não pousava mais no piso, alçava-se num movimento suave e contínuo em direção ao teto estranhamente aberto [...]. E ela sorria, desejosa de abandonar este mundo pecador e perverso. [...] Dentre as nuvens então soou a voz grave e antiga do Senhor, vinda desde a eternidade das eras: ESTA É MINHA FILHA MUITO AMADA, NELA EU PUS TODA MINHA BENEVOLÊNCIA. (BRASIL, 1997, p. 157) Entre todas as versões históricas sobre Jacobina, apenas duas não a colocam como bruxa, embusteira ou prostituta: As santas prostitutas (1984), de Augusto Fagundes e Conflito Social no Brasil: a revolta dos Mucker (1978), de Janaína Amado, que veem na líder dos muckers uma mulher à frente de seu tempo, com carisma e capacidade de liderança. Esse pensamento é endossado pela também pesquisadora do episódio mucker, Elma Sant’ana (1985, p. 23): É claro que os adversários a brindarão com outra espécie de nomenclatura, acusando-a de tara, prostituição, devassidão e o que mais se pode dizer de uma mulher, semi analfabeta, que em vez de estar em casa, cuidando dos filhos e cozinhando, resolve assumir o papel de agente divina na terra. Jacobina incomodava porque também fugia aos padrões da colona da época.

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A obra de Janaína Amado, usada como material de consulta pelo autor, descontrói, por exemplo, a tese do adultério de Jacobina e das orgias no Ferrabrás, bem como apresenta uma líder social maior que a suposta líder dos conflitos. Não cabe a este trabalho julgar as bases históricas das pesquisas dessa autora e nem afirmar se são mais ou menos verídicas do que outras apresentadas, mas sim apresentar as possibilidades de leitura do episódio que chegaram às mãos do autor de Videiras de Cristal, ou seja, Assis Brasil não usa esse material de estudo como base na construção da personagem Jacobina contando, por exemplo, uma versão a partir do fato de ela ter sido mais vítima do que mentora da guerra, apresentando-a como uma mulher com ideias inovadoras para a época. Ele apresenta Jacobina como fizeram a maioria dos livros de História e outros escritores que o antecederam: como uma mulher manipuladora e embusteira. A obra em análise apresenta dados novos como personagens fictícios e discursos diretos, por exemplo, mas mantém a linha narrativa ligada à historiografia conservadora dos autores que simplesmente condenaram Jacobina, dando a ela a mesma “voz” que a História oficial reservou, isto é, Assis Brasil não consegue ver o episódio que narra através da “experiência feminina” como pregam as teóricas feministas sobre a questão da autoria. Ou como afirmariam as críticas brasileiras Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão: A personagem feminina, construída e produzida no registro do masculino, não coincide com a mulher. Não é sua réplica fiel, como muitas vezes crê o leitor ingênuo. É, antes, produto de um sonho alheio e aí ela circula, nesse espaço privilegiado que a ficção torna possível. (CASTELLO BRANCO, 2004, p. 11)

Ao encontro dessa perspectiva aparecem duas outras personagens femininas que se tornam relevantes na história de Videiras de Cristal, Ana Maria Hofstätter e Elisabeth Carolina Mentz, criada pessoal e cunhada de Jacobina, respectivamente. Ambas terão destino típico das mulheres “monstros” do cânone da literatura, ou seja, a transgressão punida com a loucura e/ou a morte prematura. Ana Maria é escolhida por João Jorge para cuidar de Jacobina, agora que seus surtos tornavam-se frequentes, e de seus três filhos, além de cuidar da casa do casal, ela perscrutou a intenção do pai, que não poderia ver com bons olhos o fato de a filha tornar-se uma criada, mas cedeu à premência de dinheiro e à circunstância [...] de que ela partilharia a intimidade de

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uma casa cujo chefe se notabilizava em toda a colônia. (BRASIL, 1997, p. 19)

A partir daí, Ana Maria deixa definitivamente a casa dos pais para dedicar-se à família de Jacobina, o que selaria seu destino. Ana Maria torna-se uma criada muito dedicada no cuidado com os filhos de Jacobina e com a própria Mutter. Tamanha dedicação leva a criada a nutrir um amor incondicional por sua Frau Maurer, a ponto de ela esvaziar-se enquanto indivíduo para se converter em uma extensão de Jacobina, prestativa e submissa. Como é possível ler no excerto a seguir: Sentiu uma imediata onda de frio, um suor à raiz dos cabelos: percebia bruscamente a extensão de seu amor pela Frau Maurer, um novo afeto que tomava conta de suas ações, dominava sua vida por inteiro. (BRASIL, 1997, p. 57)

As palavras de Jacobina tornam-se verdades indiscutíveis aos olhos de Ana Maria. Assim, quando as pregações da Mutter começam a incomodar as autoridades locais e muitas pessoas afastam-se do Ferrabrás temendo essa repercussão, Ana Maria enfrenta e abandona seus pais para permanecer ao lado de sua senhora, pois acredita firmemente que o Espírito Natural age através de Jacobina, como se lê no trecho que segue: (...) o pai a chamara para o lado e dissera-lhe que ela estava no mau caminho, envolvida com os Maurer [...] o pai não lhe deu oportunidade de falar: disse que era escolher, ou ficava com Jacobina de vez ou retornava logo para casa [...] Voltou para o Ferrabrás com o coração em tiras, mas achando que fizera o que deveria ter feito. (BRASIL, 1997, p. 94)

A partir dessa decisão, o rumo da personagem Ana Maria passaria a ser outro. Até o momento em que esteve junto a Jacobina como sua criada pessoal, seu destino parecia ser o mesmo de sua melhor amiga Ana Sehn: casar e constituir uma família dentro dos costumes alemães e da religião da família, como fizeram seus pais. Ana Sehn, que não era próxima à Mutter, embora participasse dos seus cultos, casa-se com Guilherme Gaelzer e com ele tem um filho que, inclusive, sobreviverá ao massacre que está por vir, como um símbolo do amor “sagrado e puro” entre eles. Quanto a Ana Maria, após escolher permanecer ao lado de Jacobina quando a “guerra” se instala no Morro do Ferrabrás, passa a ter uma vida cheia de dor e desilusões, como uma metáfora do que aconteceria aos adeptos da nova seita.

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A criada de Jacobina é estuprada por dois homens justamente quando voltava de uma tentativa de visitar seus pais, que não a recebem. Esse acontecimento parece um castigo por sua escolha, abandonar sua família e seguir a Mutter. Até o local onde a violação acontece é simbólico, pois foi embaixo de uma cruz na qual estava escrito: “Mann, rette deine seele”1 (BRASIL, 1997, p. 136). A perda de sua virgindade coincide com a perda de sua ingenuidade, principalmente, em relação aos acontecimentos no Ferrabrás e às ações de Jacobina, como é possível depreender do trecho que segue: (...) ali se iniciava uma nova existência. Com a inútil virgindade, ia-se também a infância e a juventude, entrava à força no mundo áspero e sem sonhos das pessoas vividas. (BRASIL, 1997, p. 136)

A partir de então, Jacobina desmistifica-se aos olhos de Ana Maria, que começa perceber os jogos de manipulação da Mutter e, aos poucos, passa a desconfiar de uma relação adúltera entre Frau Maurer e Rodolfo Sehn. Ana Maria apaixona-se por Haubert, um jovem que vive como tio, um dos “apóstolos” de Jacobina, no Morro do Ferrabrás. Tendo seu amor correspondido, a criada volta a sonhar com uma “vida digna” novamente, ou seja, a salvação de uma mulher está nas mãos de um homem, principalmente quando esse aceita se casar com ela. Contudo, o jovem, que é órfão, volta a viver por ordem da justiça, com seu tutor legal, entre os “ímpios”, e passa a contar às autoridades sobre as reuniões no Ferrabrás, falando inclusive sobre a relação de Jacobina e Rodolfo. Com um pedido indireto, mas claro, Jacobina ordena a morte de Haubert, o que leva Ana Maria a odiá-la e a jurar, em silêncio, vingar-se de sua senhora, ao mesmo tempo em que questiona sua própria cegueira: Onde ela estava que se submetera à vontade dos outros, sem pensar, sem levantar a voz? Ah, senhora! Ah, senhora que tece com seus amoráveis fios uma teia de destruição à sua volta: quem lhe deu esse direito? (BRASIL, 1997, p. 334 – grifos nossos)

De forma interessante, Assis Brasil, apresenta nesse trecho, por meio dos pensamentos de Ana Maria, duas metáforas recorrentes na literatura feminina: a da voz e a do tecer. A voz que à mulher foi negada durante séculos (seja na literatura, seja socialmente) e a ideia do tecer, ação que vinha dar à mulher justamente o poder que sua fala não possuía, pois pela costura e pelo bordado as mulheres podiam expressar-se. A

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Homem, salve sua alma. (tradução nossa)

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partir disso, pode-se imaginar que Ana Maria tomaria as rédeas de sua vida, escolhendo seu próprio caminho; contudo, não é o que acontece. Ela vai percorrer exatamente o mesmo percurso de outras personagens femininas que ousaram transgredir alguma regra ou o esperado, chamadas na crítica feminista de “mulher monstro”. Assim, Ana Maria assumia o destino da “transgressora”, ou seja, aquela que ao “escolher” fugir aos padrões esperados para sua época e/ou sociedade passa a ser alguém que precisa ser punido. Tal mulher, segundo Virginia Woolf, é normalmente levada ao suicídio, à exclusão ou à loucura, como resultado por sua insubordinação. A criada de Jacobina não foge a este final, segue a Mutter até o fim e, após vingar-se dela matando Leidard, a filha da fé, morre pelas mãos dos soldados do Império que dizimavam a seita do Ferrabrás. Final ainda mais trágico espera por Elisabeth Carolina, outra personagem feminina bastante relevante dentro da obra de Assis Brasil. Casada com Henrique Mentz, irmão de Jacobina, Elisabeth Carolina mantém um romance extraconjugal com João Lehn, inspetor de quarteirão. Apresenta-se como uma mulher corroída pela culpa, que aumentará ao longo da obra e fará com ela se entregue a um final punitivo típico dado na literatura às adúlteras: a morte. Logo no início da obra, João Jorge descobre o envolvimento amoroso de Elisabeth Carolina e João Lehn, flagrando os dois, que se encontravam no meio da mata, entre a casa de Elisabeth e Jacobina. A partir daí, a culpa e o remorso que sentia passam a dominá-la e nada que faça parece diminuir esses sentimentos, que são agravados pela humilhação que sente em ter que se submeter a outro homem, como é narrado no trecho bastante simbólico, que segue: Elisabeth Carolina experimentou mais uma vez a repugnante ação de prostar-se aos pés de um homem, agora em agradecimento comovido. E ao beijar os sapatos grossos, aspirando o odor de couro e das folhas podres do chão, desejou morrer. O desespero, o rancor, a paixão e o medo eram demasiados para a sua pequena existência. Ao erguer-se pelo braço forte de João Jorge, tinha uma certeza: daqui por diante, não era mais dona de sua vida. (BRASIL, 1997, p. 35 – grifos nossos)

Por medo e por culpa, muito mais do que pelo seu desejo enquanto mulher, Elisabeth Carolina decide romper com João Lehn, no entanto, ela continua sofrendo com o remorso, pois sente o julgamento nos olhos de todos que a cercam, como é possível observar:

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Os olhos deles, porém, são ferros candentes que rompem as pupilas e rasgam as entranhas. Todos sabem do meu pecado, devem saber. E quem não sabe, imagina; talvez multipliquem por dez, por mil, as vezes que traí. (BRASIL, 1997, p. 227)

Há outra passagem da obra também bastante interessante do ponto de vista das teorias feministas, Elisabeth Carolina é hostilizada por outras mulheres, julgada e condenada por adultério por aquelas que deveriam compreender seu mundo e seus motivos. Ela é salva pelo Pe. Münsch, que impede que a machuquem mais, como Jesus fez na famosa cena Bíblica do apedrejamento de Madalena, acusada de prostituição: -Você não é a esposa do Henrique Mentz? É sim, eu conheço você. – A outra riu e depois disse, as mãos na cintura: - Claro, é a amante de João Lehn. –E ficando séria: - Uma puta. – Rápida, deu-lhe uma bofetada. Elisabeth Carolina dobrou o corpo, soltou um gemido. (BRASIL, 1997, p. 422)

A única pessoa que aceita Elisabeth Carolina e a perdoa é Jacobina. Nesse caso, o autor leva o leitor a creditar isso ao fato de Frau Maurer ser amante de Rodolfo Sehn. Embora ninguém tenha coragem de verbalizar isso dentro da seita, ou mesmo de julgar as atitudes de Jacobina, o fazem a todo momento com sua cunhada, provando mais uma vez o poder que aquela exercia sobre seus fiéis. Contudo, quando Henrique Mentz descobre a traição da esposa, ela não suporta seu desprezo e, corroída pela culpa, Elisabeth Carolina vai “ao encontro de seu Destino”, como coloca Assis Brasil, ou seja, ao suicídio: Seu corpo, o que foi seu corpo? Um precário engenho de fazer filhos, trabalhar na roça, amassar o pão, lavar a roupa na tina e, em momentos de fantasia, doar-se ao prazer fortuito e sem amor dos homens (...). Seu corpo, podre, inútil, ansiando por desfazer-se. Cabe a ela levá-lo ao encontro de seu Destino. (BRASIL, 1997, p.469)

Quando a luta armada se instala no Ferrabrás, Elisabeth Carolina busca o perdão através do Pe. Münsch, que diz que não pode lhe confessar, pois ela não é católica. Levada ao desespero pela dor, decide lutar na fronte contra as tropas imperiais, entregando-se aos tiros que a libertarão: (...) ela sabe que apenas uma bala virá repor a ordem do Mundo. E sabe que, neste exato momento, esta bala dorme no tambor de algum revólver. Imagina a forma do projétil, o volume, a cor do chumbo, e essa idéia a conforta. Só mais um pouco de paciência, nada mais. (BRASIL, 1997, p. 469)

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(...) uma figura de mulher corporifica-se dentre neblinas da capoeira, agarrando a cabeça, gritando como uma louca. Um tiro a atinge, ela arqueia-se para frente, solta um grito de dor, cai. Quando acha forças para arrastar-se pelo barro, um novo tiro a imobiliza. (BRASIL, 1997, p. 475)

Conclusão Segundo a crítica feminista, a mulher, enquanto personagem ficcional ao longo dos séculos, é um construto criado e difundido pela ambivalente visão masculina sobre o ser mulher, essa ou é "anjo" ou "monstro", ou segue os padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal ou está fora dessa. Muitas são as personagens femininas que, na literatura canônica, que se lê também como literatura feita pelos homens, encontram sua punição ou “redenção” pelo adultério através do suicídio e/ou da morte prematura, tais como, Emma Bovary, de Flaubert ou Luísa, de Eça de Queirós. O que Assis Brasil não alterou na criação de suas personagens. Portanto, para esses autores, o único “final feliz” possível para uma “mulher monstro”, como Ana Maria, Elisabeth Carolina e Jacobina, por exemplo, é o fim trágico. Os escritores realistas, assim como Assis Brasil, não conseguem propor uma saída para essas mulheres que não essa, que aparece muito mais como punição do que como fuga do conflito que as cerca, com isso, a mulher continua sem outras possibilidades de “destino”: ou segue os padrões estabelecidos pelos homens para elas, ou são “apedrejadas” até a morte. Referências BARBOSA, Fidelis Dalcin. Os fanáticos de Jacobina (Os Muckers). Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1976. BARRETO, Eneida Weigert Menna. Demônios e Santos no Ferrabrás: uma leitura de Videiras de Cristal. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2001. BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 65-70. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética – a teoria do romance. Equipe de tradução do russo Aurora Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Hucitec Annablume, 2002. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Fatos e mitos (vol. 1). Tradução Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.

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ANÁLISE DA IMAGEM EM MANUAIS DE LÍNGUA INGLESA Luiz Carlos Pedrosa Torelli [email protected] RESUMO

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O presente trabalho tem como objetivo investigar, sob o instrumental teórico e metodológico da Semiótica visual de origem greimasiana, as principais funções exercidas pelos textos pictóricos em dois manuais de língua inglesa. Assim sendo, análises serão empreendidas a fim de evidenciar que o uso de recursos imagéticos pelo discurso didático visa, mais do que auxiliar os aprendizes brasileiros no conhecimento gramatical da língua alvo, reforçar os supostos atributos do objeto de valor em questão, a própria língua inglesa, reforçando nos alunos a aceitação do contrato proposto e implícito à situação da sala de aula. Por meio da ênfase no caráter funcional e estético do idioma e da adoção de temas recorrentes, direcionados exclusivamente a um público delimitado, constata-se que as imagens assumem um papel motivador, apelando para o lado sensível e passional dos enunciatários, ao mesmo tempo que engendram a construção de visões estereotipadas e ideais do falante de inglês. PALAVRAS-CHAVE: semiótica visual, imagem, manuais, língua inglesa. Primeiras Considerações A grande quantidade de recursos visuais presentes nos atuais livros didáticos de inglês como segunda língua chama a atenção daqueles que se debruçam sobre este rico objeto de estudo. Ao contrário do que se praticava até décadas recentes, quando os manuais apresentavam formatos rígidos, essencialmente pautados pelo método gramatical-tradutório, e faziam uso majoritário do sistema verbal como forma de apresentação de seus conteúdos, hoje, na tão aclamada sociedade da imagem, as estratégias de apresentação dos tópicos são outras e o apelo do discurso educacional, muito mais intenso. A fim de atrair a atenção, seja consciente ou inconscientemente, de jovens cada vez mais inseridos em contextos de letramento multimodal, os manuais se viram obrigados a ampliar seu escopo; passaram a considerar a eficácia, já reconhecida, que os textos em outros suportes semióticos podem proporcionar. Não à toa, quase todos os manuais dedicados ao ensino de inglês no Brasil vêm hoje acompanhados por CDs de áudio e vídeo e são ricamente ilustrados por fotos e desenhos. A este último fenômeno, de caráter visual, dedicar-se-á a pesquisa neste estudo. Tomando como ponto de partida a célebre afirmação de Greimas de que “a figuratividade nunca é inocente”, almeja-se discutir o papel desempenhado pelas imagens em dois manuais de língua inglesa adotados por duas diferentes escolas de idiomas no município de Ribeirão Preto, apontando de que modos seu emprego vêm corroborar a intenção dos autores, no sentido de servir como elementos manipuladores que condicionam e direcionam o fazer interpretativo dos alunos, focando pontos cognitivos específicos no processo de ensino-aprendizagem.

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Materiais analisados e imagem do enunciatário Para este estudo, dois manuais de língua inglesa foram escolhidos como fonte de dados: “CNA Gold 1: student’s learning pack”, de Marcelo Augustus de Souza Barros (2010) e “That’s All About Fame”, da Editora Wise Up (2006), dos quais foram selecionadas algumas imagens consideradas mais representativas para fins de análise.

Figura 1. Capa do livro CNA Gold 1: student’s learning pack.

Embora o senso comum diga que não se deve julgar um livro pela capa, pode-se, neste caso particular, contrariando o dito popular, levantar breves considerações iniciais a respeito dos dois livros supracitados. Um olhar rápido sobre o primeiro deles (figura 1) nos revela um título altamente sugestivo, Gold, escrito em letras cursivas na cor dourada, em nítido contraste com a figura em preto e branco abaixo disposta, uma mulher de aspecto jovial, com traços bem delineados e um largo sorriso de satisfação estampado no rosto. Observa-se, ainda, o logotipo da escola em questão, colocada em suas cores habituais, e duas faixas douradas na parte inferior da imagem envolvendo a mulher representada na capa do livro. Se considerarmos que as figuras recobrem, no mínimo, um tema, podemos afirmar que, neste caso, o tema subjacente à imagem da capa, colocado em cena como um valor,

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é a riqueza; riqueza esta que se apresenta diretamente associada ao produto ‘comercializado’ pela escola, a língua inglesa, promovida como um bem de consumo que garantiria vantagens ao comprador. Como na área econômica, também na área educacional verifica-se a instauração de um contrato entre enunciador e enunciatário, no qual uma das partes é levada a aderir ao discurso da outra com a promessa de ganhos e benefícios. De forma sintética, poder-se-ia dizer que a categoria cromática utilizada na imagem opõe um sujeito em preto e branco, representando um ser anônimo qualquer, generalizável na figura de aluno, ao sujeito dotado de um saber-fazer, responsável pela transferência de competência (a escola), presente por meio de sua logomarca; esta, por sua vez, em cores vivas. As duas faixas douradas simbolizariam, neste raciocínio, a presença e assimilação da língua inglesa pelo sujeito aluno, propiciando-lhe a prosperidade financeira figurativizada na palavra Gold (ouro) e na cor dourada. Desse ponto de vista, a língua inglesa é colocada, já num primeiro momento, como um objeto de valor em si, fim último do sujeito aprendiz no ambiente da sala de aula (microcosmo) e como um objeto modal que se lhe prestaria como mediador para a obtenção de outros objetos ao longo da vida (macrocosmo). O segundo manual tomado para análise neste trabalho caminha em direção similar. O título, igualmente insinuante, deixa entrever, de certa forma, o que encontraremos no interior do livro. That’s all about fame traz em sua capa (figura 2) seis personagens distintos, todos bem vestidos e aparentemente bem sucedidos profissionalmente, que protagonizam a maior parte das histórias e situações presentes na obra.

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Figura 2. Capa do livro That’s all about fame.

Pode-se verificar que o fundo azul das extremidades da capa é substituído por um fundo laranja no espaço destinado ao título do livro, acentuando-lhe o realce. A logomarca da escola, a exemplo do que se constata no livro anteriormente citado, também se faz presente aqui, evidenciando o sujeito responsável pela doação de competência e, consequentemente, pelo sucesso das personagens retratadas. O éthos mobilizado por ambos os livros é o de um agente altamente competente e qualificado, capaz de oferecer um ensino de inglês de primeira qualidade e de assegurar aos alunos valores como sucesso, riqueza e fama. O contrato entre enunciador (manuais didáticos) e enunciatário (alunos) se instaura desde o início do processo de ensino-aprendizagem, sendo incorporado pelos alunos a partir do momento de sua inserção no ambiente da sala de aula. O livro That’s all about fame chega inclusive a dedicar uma página inicial, intitulada ‘Welcome’, à glorificação da língua inglesa, afirmando que “crescer profissionalmente, acessar informações e entrar na disputa por uma carreira internacional só é possível com o domínio do idioma”. Tal estratégia manipuladora é sutil e assaz comum em manuais

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deste tipo; no entanto, segundo Barros (2005, p. 65), ela só será eficaz se o sistema de valores em que se assenta for compartilhado pelo manipulador e pelo manipulado. Sabendo disso, os manuais de língua inglesa se estruturam tendo como referencial um destinatário específico, na maioria dos casos jovens de classe média, público majoritário desse tipo de instrução. A fim de diminuir a distância entre os sujeitos da comunicação, elaboram-se temas comuns ao universo dos alunos, que serão posteriormente concretizados por figuras com alto potencial de referencialidade. Apelase para o lado sensível e passional do enunciatário por meio da recorrência de temas familiares nos manuais; mundo dos negócios/sucesso profissional, festas, consumo, viagens internet, cinema e música são alguns dos tópicos mais abordados. Verifica-se, assim, que o páthos, ou estado de alma, dos alunos é profundamente explorado pelos autores na elaboração dos manuais de língua inglesa, posto que, como afirma Fiorin (2008, p. 84-85), “a imagem do enunciatário constitui uma das coerções discursivas a que obedece o enunciador”. Vale, contudo, lembrar que tal imagem construída acerca do enunciatário representa uma abstração idealizada, um simulacro ao qual se deseja ligar, harmonicamente, a imagem do enunciador, com vistas a uma maior eficácia do ato persuasivo. Para auxiliar nesta verdadeira tarefa manipuladora, entram em cena as imagens, que atuarão de modo direto sobre os alunos, reforçando a relação fiduciária pré-estabelecida por meio da renovação constante de sua duratividade. As funções da imagem Uma imagem vale mais que mil palavras. Dito popular

Admitindo que as imagens constituem o suporte físico (plano de expressão) por meio do qual se materializam significados e valores (plano de conteúdo), cabe, doravante, destacar de que modos os sentidos construídos nestas manifestações visuais se alinham ao projeto pedagógico dos manuais ora analisados. Além das já conhecidas funções de ancoragem e de etapa, apontadas por Roland Barthes, pode-se identificar também a presença de uma função estético-topológica, que visa unicamente inserir quebras no ritmo cansativo de leitura das páginas dos livros, e de uma função motivadora ou estimulante, cujo fim essencial é acentuar no enunciatário o desejo (querer-fazer para querer-ser), levando-o a uma maior conjunção com o objeto de valor (língua inglesa). Nos casos em que uma única imagem desempenha mais de

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uma função, haverá, necessariamente, o estabelecimento de uma hierarquia entre elas, a exemplo do que se observa com as já conhecidas funções da linguagem. Valendo-se, igualmente, da tipologia formulada por Floch (1995) no que concerne aos diferentes modos de valorização nas propagandas (prática, utópica, lúdica e crítica), pretende-se, no decorrer deste estudo, analisar semioticamente algumas textualizações imagéticas mais expressivas presentes nos manuais.

Figura 3. Página 66 do livro That’s all about fame.

Figura 4. Página 94 do livro That’s all about fame.

Nas figuras acima, é possível visualizar a construção de uma imagem idealizada de mulher, proposta pelo manual; trata-se da apresentação de um perfil de mulher contemporânea desejado e difundido pelos autores do livro That’s all about fame.

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Na figura 3, uma mulher bem vestida profissionalmente aparece sentada, falando ao celular, com uma caneta em mãos. Há também uma caneca sobre a mesa, contendo o que aparenta ser cerveja, ao lado de um objeto semelhante a uma pasta ou maleta preta. Tais indicações poderiam sugerir, desde já, uma categoria semântica mínima sobre a qual poderíamos assentar nossa análise: trabalho vs. lazer. Esses valores encontram-se reunidos e organizados harmonicamente pela personagem retratada, uma moça que certamente atende aos atuais padrões estéticos de beleza, e que personifica a imagem da mulher moderna, independente e bem-sucedida. Dado que não há textos relacionados a esta imagem na página do livro em que se insere, pode-se dizer que a função desempenhada, neste caso, é de caráter motivador, mobilizando no enunciatário (em especial nas alunas) uma imagem subjetiva já culturalmente aceita no seio de sua sociedade. De modo semelhante, a figura 4 apresenta a imagem de outra bela mulher, desta vez desfrutando do conforto de sua banheira de mármore branco, cheia de espuma e pétalas de rosa, cercada por velas. Enquanto relaxa, a personagem fala ao celular e exibe um sorriso de prazer. A valorização lúdica se faz predominante e concretiza os valores luxo e refinamento através dos objetos acima descritos. Verifica-se, novamente, a predominância da função motivadora, posto que a imagem não se liga a nenhum texto verbal presente nesta página do livro. A perspectiva da imagem, por si só, determina o lugar do enunciatário, restringindo-o a uma posição exotópica (fora da banheira) de mero observador. O apelo a um símbolo altamente conotado por noções de luxo (banheira de mármore) e tão pouco acessível à grande maioria dos brasileiros vem atuar diretamente sobre o lado sensível dos alunos, agindo, mesmo que inconscientemente, sobre seu imaginário. A ideia subjacente a estas imagens é a de que com o conhecimento da língua inglesa, todos os valores figurativamente reproduzidos nas imagens seriam alcançados e incorporados ao cotidiano dos alunos. O mesmo caráter manipulador do discurso didático pode ser identificado nas figuras 5 e 6, que descrevem visualmente homens jovens aparentemente bem sucedidos. A simples opção por retratar personagens vestindo terno e gravata já reflete uma posição axiológica do enunciador, uma vez que, segundo afirma Pietroforte (2007, p. 68), “as roupas são a expressão de conotações sociais que definem um papel social para quem as veste”.

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Neste sentido, as vestimentas revestem noções de elegância e sucesso profissional e servem como elementos de referência imediatamente reconhecidos pelo enunciatário (neste caso, o apelo é maior entre os alunos do sexo masculino).

Figura 5. Página 226 do livro That’s all about fame.

Figura 6. Página 75 do livro CNA Gold 1.

Considerando, como já se disse previamente neste estudo, que o público alvo dos manuais analisados é majoritariamente composto por jovens, ainda não inseridos ou prestes a ingressar no mercado de trabalho, as imagens, ao abordar este tema, agem diretamente sobre as aspirações e anseios do enunciatário, modalizando sua existência no âmbito do querer. Insinua-se que, com o conhecimento linguístico da língua inglesa, o sucesso no mundo profissional estaria garantido. Enquanto ambas as imagens exercem a função motivadora e se encontram no modo referencial, posto que há sobre elas a projeção das categorias de pessoa, espaço e

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tempo,

fortemente

ancoradas em

elementos do

mundo

natural,

analisadas

separadamente elas revelam suas particularidades. A figura 5, tomada do livro That’s all about fame, está topologicamente disposta abaixo do seguinte enunciado no topo da página “two colleagues at work talking about their boss” (dois colegas, no trabalho, conversam sobre o chefe), o que evidencia a presença da função de ancoragem; o texto verbal explica, neste exemplo, o que se passa na ilustração, delimitando sua polissemia. Já na imagem 6, extraída do livro CNA Gold 1, pode-se observar que a imagem está propositadamente fora de enquadramento no layout da página. A foto retangular encontra-se meio inclinada, assim como a personagem retratada no sofá, que exibe uma postura pouco recomendável. Deve-se atentar, ainda, para o paletó desabotoado do homem, que veste calça jeans e opera, de forma descontraída, seu notebook. Por se tratar de um material elaborado e destinado, quase exclusivamente, aos jovens, o enunciador optou, neste caso, por uma descrição visual mais descolada e irreverente, bem ao estilo dos adolescentes. Transmite-se a ideia de que o trabalho, atingido com êxito por intermédio da língua inglesa, pode ser algo natural e prazeroso, não necessariamente pautado pela rigidez e formalidade. Constata-se, nitidamente, a presença de uma adequação deliberada do modo de dizer do enunciador ao páthos dos enunciatários em questão, visando, com isso, garantir a correta e eficaz recepção do texto visual pelos alunos, evitando qualquer eventual ruído na comunicação estabelecida entre eles. A mesma adequação discursiva é posta em ação nas figuras 7 e 8, que se valem de elementos facilmente reconhecíveis pelo enunciatário, sejam eles uma premiação do Oscar ou uma simples menção ao consumismo típico dos dias atuais. No primeiro caso, três imagens aparecem estritamente relacionadas ao texto verbal do exercício que as acompanha, cujo título é “And the Oscar Goes to...”. Trata-se de uma ancoragem que, pela concretização de actantes e coordenadas espácio-temporais, reafirma seu caráter veridictório entre os jovens aprendizes brasileiros, grandes consumidores dos filmes que adotam a chamada estética ‘hollywoodiana’. Propõe-se, nesta página do livro, um exercício de conscientização fonológica (Phonological Awareness) por meio de diálogos apresentados pelo professor em sala de aula. O glamour ostentado anualmente nas premiações do Oscar surge, neste exemplo, diretamente associado à língua inglesa, tida como ‘chique’ e funcional. A evocação às produções cinematográficas anglófonas contribui para a construção de uma imagem positiva do idioma, favorecendo e

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potencializando nos alunos o desenvolvimento de variáveis como afetividade e identificação, aproximando-os de seu objeto de valor.

Figura 7. Página 202 do livro That’s all about fame.

A figura 8, por sua vez, que fecha a última unidade do livro CNA Gold 1, articula o título na lateral da página (Social Choices) a duas imagens muito cobiçadas pelos brasileiros. Tanto a beleza personificada pela modelo em primeiro plano quanto a potência figurativizada pelo carro (aparentemente uma Ferrari vermelha) em segundo plano, enfatizam a valorização utópica, ao apresentarem tais valores como determinantes para a construção da identidade do enunciatário.

Figura 8. Página 97 do livro CNA Gold 1.

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O cromatismo, enquanto propriedade plástica, opõe, nesta figura, as cores claras e suaves da pele e blusa da modelo, conotando delicadeza, às cores fortes do veículo ao fundo (vermelho e preto), reforçando noções de força, num equilíbrio topológico significante (a modelo em primeiro plano na vertical e o carro em segundo plano na horizontal). Verifica-se, também, a predominância da função motivadora da imagem que, incidindo sobre o caráter volitivo dos sujeitos aprendizes, coloca a língua inglesa como objeto modal altamente euforizado, capaz de auxiliar diretamente na constituição identitária dos jovens, ainda em formação. Considerações Finais Após as reflexões desenvolvidas sucintamente neste trabalho, fica patente a presença de isotopias temáticas e figurativas em todas as imagens analisadas, as quais evidenciam, por sua vez, quais são os valores selecionados e difundidos pelo discurso dos manuais de língua inglesa, ferramentas axiológicas por excelência do campo didático. Constatou-se, assim, que, além de auxiliar os alunos no ensino da língua inglesa, por meio da elucidação visual dos conteúdos propostos e da criação de um horizonte determinado de leitura, o acervo imagético também se configura como veículo ideológico, por meio do qual se constroem representações mentais idealizadas do falante de inglês. Ao privilegiarem o aspecto funcional e estético da língua inglesa, as imagens, sempre enfatizando os supostos atributos do idioma, deixam entrever um percurso temático-figurativo glorificante do sucesso e da riqueza, canalizando, desta forma, o desejo dos enunciatários, em sua maioria jovens, a fim de efetivar mais diretamente sua conjunção com o objeto de valor posto em cena. O que se verifica, pois, é que essa verdadeira função motivadora exercida pelas imagens atua como lembrete ao contrato previamente estabelecido entre os sujeitos da comunicação, endossando-o a cada página dos manuais. O efeito patêmico forjado pelas imagens constitui-se, certamente, numa das estratégias persuasivas mais eficazes empregadas por este tipo de material didático, não se restringindo, de modo algum, ao ensino de língua inglesa. Um vasto campo de estudo se desvela aos que se interessam pela análise semiótica destes ricos objetos significantes, que tentam, num esforço contínuo, se adaptar às exigências e demandas impostas pelas novas gerações.

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Referências BARROS, D. L. P. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2005. CORACINI, M. J. Um fazer persuasivo: o discurso subjetivo da ciência. 2. ed. Campinas: Pontes, 2007. FIORIN, J. L. Semiótica e comunicação. In: DINIZ, M. L. V. P.; PORTELA, J. C. Semiótica e mídia: textos, práticas, estratégias. Bauru: UNESP/FAAC, 2008. p. 75-92. FLOCH, J.-M. Visual identities. Trad. Pierre Van Osselaer and Alec McHoul. New York: Continuum, 2000. ______. Petites mythologies de l’œil et de l’esprit: pour une sémiotique plastique. Paris: Hadès; Amterdam: Benjamins, 1985. ______. Sémiotique, marketing et communication. 2. ed. Paris: PUF, 1995. GREIMAS, A. J. Sémantique structurale: recherche de méthode. Paris: Larousse, 1966. LANDOWSKI, E. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992. MELANÇON, J. The semiotics of didactic discourse. 1983. Monograph – Victoria University, Toronto Semiotic Circle, Toronto. PIETROFORTE, A. V. Semiótica visual: os percursos do olhar. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2007.

METÁFORA E COMPARAÇÃO: UMA ANÁLISE DA TRAGÉDIA OS PERSAS DE ÉSQUILO1. Marco Aurélio Rodrigues2 UNESP/FCLAr Ao contrário do que o senso comum idealiza, a Grécia clássica durante muito tempo foi um lugar puramente agrícola que, apenas com o apogeu do poderio ateniense, passou a desenvolver-se, a criar estátuas e pensar em sua arquitetura. A cidade onde Ésquilo cresceu, no final do século VI a.C., possuía na agricultura sua principal fonte de subsistência e, é nesse ambiente, que o tragediógrafo grego, um dos três remanescentes 1

Comunicação apresentada no XIII Seminário de Pós-Graduação em Estudos Literários “Relações Intersemióticas” e I Seminário Internacional de Semiótica da UNESP. 2 Doutorando e bolsista Capes do programa de Pós Graduação em Estudos Literários (Teorias e Crítica do Drama) da Universidade Estadual Paulista – UNESP/FCLAr. Orientando do Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos.

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do período clássico, perdeu o irmão Cinegiro em uma das batalhas das guerras contra os Persas. Além disso, ele próprio lutou na batalha de Salamina. Sendo assim, Ésquilo estava intimamente ligado aos eventos de seu tempo e à construção da nova Atenas, surgida com o final e vitória nas Guerras Médicas. O reflexo do momento em que Ésquilo viveu está presente em toda sua obra. Não é para menos que sua peça Os Persas é a única que restou cujo mote não é mítico. A tragédia é inteiramente baseada na Batalha de Salamina, o embate decisivo entre gregos e persas, no ano de 490 a.C. Tido como o “criador da tragédia”, não em termos arqueológicos, mas pelo importante papel que representou em seu período, como explica Murray (1968), Ésquilo teve função significativa no processo de desenvolvimento da tragédia na Grécia. Segundo Aristóteles (Poetica, 1449a, 15-17), o tragediógrafo foi quem introduziu um segundo ator em cena e reduziu a importância do coro, aspectos que alterariam consideravelmente o drama trágico. Para Romilly (1984, p. 75) além das alterações, é em Ésquilo que o duplo alcance da tragédia, religioso e coletivo, é mais freqüentemente caracterizado. Ao menos em suas peças remanescentes, o tema recorrente aborda os conflitos humanos e a justiça divina. O homem está intimamente ligado aos deuses e suas atitudes devem sempre estar de acordo com o equilíbrio que existe na relação entre humanos e divinos:

[...] a interferência entre mundo divino e mundo humano é permanente. Os dois universos refletem-se um no outro. Não há conflito humano que não traduza um conflito entre as forças divinas. Não há tragédia humana que não seja também uma tragédia divina. (Vidal-Naquet, 2008, p. 229)

Entretanto, além dos aspectos morais, a relação de Ésquilo com a cidade tornarse-á evidente. No drama de Ésquilo, os aspectos sociais, culturais e a política democrática não apareceriam de forma objetiva, como em Sófocles ou Eurípides, mas, tampouco deixariam de estar presentes. É evidente que, engajado em sua sociedade, Ésquilo coloca em cena o debate político da sociedade grega, todavia, como ressalta Romilly (1984, p. 79), o debate é, antes de mais nada, moral. O fato é que, para uma sociedade que dava seus primeiros passos democráticos, os aspectos religiosos, morais e sociais estavam indissociáveis dos aspectos políticos. 995

A cidade, agora, é parte importante da vida dos atenienses. Sendo assim, o teatro também assume sua função didática e torna-se o meio dos cidadãos influentes da cidade transmitirem suas mensagens. Ésquilo não cria personagens incomuns, desde a função dos Anciãos de Os Persas (470 a.C.), alusão aos conselheiros e Assembleia da cidade, como a presença de Hefesto em Prometeu Acorrentado (450 a.C.), alusão ao papel do artesão, profissão que o próprio Ésquilo exerceu, o homem vê-se representado nas tragédias, o que não torna difícil compreender uma possível empatia do público pela situação de Xerxes em Os Persas, mesmo sendo bárbaro, mas, antes de mais nada, um ser humano que fez escolhas e julgamentos errados para os padrões gregos. Contudo, achar que a obra de Ésquilo apenas se pauta na política da cidade ou no desejo divino é um grande erro. Os dramas, pelo menos os que restaram, passam por pelo menos três estágios aos quais o autor concentra suas preocupações: o político, através da proposta social às quais os heróis esquilianos estão sujeitos, ao moral, responsável pela ordem, sem a qual o homem grego não consegue conduzir sua vida coletiva e ao religioso, base da vida humana na terra que depende da vontade divina para conduzir seu caminho. Quando a rainha Atossa inicia sua explanação sobre um presságio concebido em sonho, o público provavelmente sentiu o alívio de não ser ele a passar por aqueles momentos de angústia, mas também, através das palavras do tragediógrafo Ésquilo, pôde ter se impressionado com o relato e desespero da rainha-mãe. Este aspecto seria um dos muitos pontos fortes que norteiam e transformam Os Persas em uma peça de tamanha importância para o estudo da tragédia grega. A tragédia expõe, a partir do olhar dos próprios persas, os momentos finais das Guerras Médicas e as conseqüências que a guerra causou aos vencidos. Logo de início, no párodo (ÉSQUILO, Os Persas, 1-154), o coro de Anciãos formado pelos chamados “Fiéis”, conselheiros e vigias do reino deixados pelo próprio rei, questionam a demora dos combatentes em retornar e começam a pressentir um mau agouro sobre eles: "[...]Ao pensar no regresso do rei e do multiáureo exército, já um maligno pressago ímpeto sobressalta íntimo, pois toda força nascida da Ásia se foi, e por jovem marido uiva. Nenhum mensageiro, nenhum cavaleiro chega à cidade dos persas.[...]”

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(ÉSQUILO, Os Persas, 8-15)3

O coro de “Fiéis” continua sua exposição sobre a glória dos persas, suas vitórias, suas riquezas, aspectos de suas vidas e, também, já coloca os possíveis motivos que levaram, embora ainda sejam apenas presságios, a perderem a Grande Guerra. Quando o coro anuncia a entrada da rainha Atossa, tem-se o início do Primeiro Episódio (ÉSQUILO, Os Persas, 155-531). Mulher aclamada como esposa e mãe de Deuses, Dario e Xerxes, a matriarca inicia um diálogo de questões relativas aos dois países, à guerra e relembra aspectos da antiga batalha (Maratona) outrora travada pelo marido. Ao dialogar com o coro sobre as qualidades dos helênicos, Atossa questiona sobre a presença das riquezas nas casas deles. Este fato pontua claramente, a preocupação da rainha com os aspectos materiais, principal motivo pelo qual os persas entravam em uma batalha e um dos motivos da hybris4 de Xerxes. A entrada do mensageiro é acompanhada da dura realidade da guerra e a confirmação dos presságios. Além disso, ele é quem conforta a rainha Atossa, trazendo a notícia de que Xerxes ainda vive. Muito dos momentos narrados pelo mensageiro podem ser encontrados nos relatos de Heródoto, como o procedimento de ataque preparado pelos persas aos gregos. Para Murray (1968, p. 121) um dos grandes aspectos que qualificam Os Persas como uma das maiores tragédias gregas é a relação que ela estabelece com sua época. No primeiro estásimo (ÉSQUILO,Os Persas, 532-597) o coro lamenta o infortúnio e coloca a culpa em Zeus, responsável pela destruição do exército persa. Ao mesmo tempo, o coro inicia uma série de acusações a Xerxes, que conduziu erroneamente o exército, comparando-o ao seu pai Dario. É Dario, em seu papel de repreender Xerxes e confortar seu povo sobre o destino da guerra, quem aparece para confirmar a punição divina e pontuar a punição pela hybris. Por fim, orienta, como um bom governante, quais medidas devem ser tomadas por sua esposa, única a poder consolar o filho, e como deve agir o coro diante da chegada do rei. No terceiro estásimo (ÉSQUILO, Os Persas, 852-908) o coro de Anciãos relembra os grandes feitos de Dario em tom de profundo lamento. Para Torrano (2009, p. 48) o lamento de agora contrasta com o canto de louvor e glória ao antigo rei. Dessa 3

A versão e a tradução utilizada de Os Persas é de autoria de. Jaa Torrano. ÉSQUILO. Os Persas. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2009. 4 A hybris, conceito particular do pensamento grego, traduzido por soberbia por Jaa Torrano, é mais comumente conhecido como desmedida, excesso.

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forma, Xerxes passa, nas palavras dos anciãos, a não ser apenas aquele que foi derrotado pelos gregos, mas o rei cujo governo nada tem a ver com o de outrora. O Êxodo (ÉSQUILO, Os Persas, 909-1076) inicia-se com a entrada de Xerxes, e o diálogo entre ele e o coro estreita-se, o coro cobra de Xerxes notícias de todo o exército que pereceu em batalha. Por fim, o coro une-se ao rei em lamentações. Por se tratar de um teatro estático, em que a ação dá espaço a diálogos extensos e grandes pausas dramáticas, o tragediógrafo inclui momentos inesperados ao espectador, como a aparição do espectro de Dario. De fato, inúmeros são os mecanismos dos quais Ésquilo faz uso para criar a tragédia. Dentre estes, a metáfora é algo intrínseco à obra de Ésquilo. O poeta utiliza-a porque, para Moreau (1985, p. 07), ela serve de suporte para o mito, é a forma que a linguagem encontra de dialogar com o mito. A princípio, essa ligação pode parecer apenas estilística mas, na obra de Ésquilo, essa construção de imagens serve para exemplificar uma instância da vida, uma paisagem, uma situação e, até mesmo, dar indicações da potencialidade dos heróis trágicos: “[...] Brilhando negro nos olhos o olhar de mortífera víbora e de muitas mãos e de muitas naus, instigando o carro sírio conduz o hábil arqueiro Ares contra ínclitos lanceiros. [...]” (ÉSQUILO, Os Persas, 81-86)

É perceptível, na passagem, que Ésquilo cria a imagem de Xerxes em seu carro sírio, diante dos combatentes gregos, em relação ao deus Ares, como sendo uma mortífera víbora com muitos braços, uma imagem aterrorizante que dialoga diretamente com a mitologia. Entretanto, de todas as metáforas que aparecem em Os Persas, a metáfora agrícola é a mais evidente em toda a obra. É por intermédio da metáfora envolvendo a agricultura que o autor fala aos espectadores sobre a principal lição que é transmitida em toda a tragédia: a prudência do homem e o comedimento em relação aos deuses. Lopes (1986, p. 19) afirma que, desde a antiguidade, o homem procura compreender as figuras de linguagem que compunham as mais variadas obras e as funções representativas em cada uma delas. Dessa forma, sua análise discursiva

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encontra as duas figuras e a posição que elas exercem nos enunciados, no caso, a comparação e a metáfora. Para Aristóteles (Poética, 1457b, 6-10), a metáfora é a transposição de um nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por via de analogia. O termo grego metaphorá era, segundo Bailly (2002, p. 566), primeiramente, utilizado para designar as mudanças (fases) da lua, mais tarde adquirindo o sentido de transposição, transporte de sentido. Dessa forma, sua primeira noção está intimamente ligada à criação fantástica, ao processo literário de construção de imagens e situações que transmitam ao espectador as sensações e sentidos que o mito, por si só e sua oralidade, não são capazes de transmitir. Ricoeur (1975) considera a metáfora não apenas como uma figura de estilo, mas, principalmente, como mecanismo lingüístico que é indispensável para a renovação da linguagem e para a descoberta incessante de novos valores estéticos e existenciais. Tal aspecto é importante para compreender os motivos que fizeram durante tantos anos os estudiosos se ocuparem da metáfora dentro do campo da Retórica. Assim, Lopes (1986, p. 25) enfatiza que a Retórica antiga definia a metáfora como uma abreviação, um discurso elíptico da comparação, o que possibilitou a interpretação de que a comparação era uma figura mais clara e, por conseguinte, menos obscura que a metáfora. A proximidade com a poesia torna-se, dessa forma, evidente: Com efeito, não é apenas a linguagem poética que se vale de metáforas. Sendo as línguas naturais sistemas de signos através dos quais nos utilizamos de alguma coisa (B) para dizer outra (A), é da sua essência serem metafóricas: não pode haver nenhum sistema semiótico que não contenha a propriedade metalingüística, que não possa produzir as paráfrases que são necessárias para declarar o sentido de uma expressão, a nível sintagmático ou paradigmático; e as metáforas são apenas paráfrases paradigmáticas desviadas. Assim, sempre que traduzirmos um dado segmento discursivo por meio de um paradigma inesperado, pouco familiar, utilizando-o no lugar do paradigma esperado, programado em nossa memória, estaremos produzindo uma metáfora (que poderá ser interpretada, subseqüentemente, pelo destinatário, como um erro ou uma licença; mas isso não destrói o mecanismo metafórico em si).

No teatro de Ésquilo, a metáfora é o suporte da transposição mítica, na qual o tragediógrafo faz uso de seu histórico de vida, suas relações sociais e o mundo que conhecia para construir as imagens que atingissem nitidamente os espectadores. Esse aspecto corrobora a afirmação de Savioli e Fiorin (2006, p. 114) acerca dos planos de conteúdo no significado denotativo de todas as palavras. Logo, para os autores, a

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conotação que se constrói reflete os valores sociais e impressões psíquicas às palavras. Dentre os diversos exemplos que podem ser citados, Ésquilo parece compreender de forma clara a diferença entre a supressão da partícula comparativa (como, tal que, tal como...) e a construção da metáfora. Isso é perceptível pois a comparação não é excluída pelo autor, da mesma forma que, ao relacionar um aspecto central da obra Os Persas com a colheita, ele sabe que essa figura não poderia ser concebida e encarada pelo espectador como comparação, mas como a própria conotação.

[…] Primeiro a torrente do exército persa resistia, mas como muitos navios atulhavam o estreito, não se davam recíproco auxílio, uns com outros colidiam suas brônzeas proas, quebravam todo o renque de remos; e os navios gregos, não sem perícia, em círculo ao redor, vulneram e reviram cascos de navios, não mais se via o mar, coberto de naufrágios e de morte de mortais, pontais e recifes estavam cheios de mortos, remavam em fuga sem ordem todos os navios, quantos pertenciam ao exército bárbaro. Como se fossem atuns ou redada ou de peixes, com lascas de remos e pedaços de paus golpeavam, espetavam, e a lamentação clamorosa cobria a planície do mar, até que o olho da noite negra removesse.[...] (ÉSQUILO, Os Persas, 411-428)

No exemplo acima, os versos “[...]Como se fossem atuns ou redadas ou de peixes, com lascas de remos e pedaços de paus golpeavam [...]” trazem a comparação, que é nítida: os persas (A) são como atuns (B). Dessa forma, constrói-se o padrão clássico de metassemema: Sujeito (Persas) + Verbo (ser) +Atributo (atuns). Fica claro, assim, que a intenção de Ésquilo é justamente comparar os homens mortos (persas) com a forma como os atuns eram abatidos nas praias gregas. Todavia, para criar a ligação áte (erronia) e hybris (soberbia), elos fundamentais da tragédia, pois o erro é o resultado da soberbia de Xerxes, Ésquilo não cria uma comparação, mas uma metáfora:

“[...] Pilhas de mortos, até a terceira geração, sem voz falarão aos olhos dos mortais que mortal não deve ter soberbo pensar. A soberbia, ao florescer, produz a espiga de erronia, cuja safra toda será de lágrimas.[...]" (ÉSQUILO, Os Persas, 818-822)

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O termo, por exemplo, traduzido por Jaa Torrano como “terceira geração” (τριτοσπόρῳ) adjetivo singular masculino dativo de τριτόσπορος significa “semeado pela terceira vez”, ou seja, os erros de Xerxes ecoariam por muitas safras. Dessa forma, a soberbia e a erronia são incorporadas à produção agrícola como partes integrantes a ela. Esse aspecto confirma, assim, o que Lopes (1985, p. 35) discorre acerca da função da metáfora de afirmar algo, mesmo que no plano humano essa criação possa parecer improvável, não podendo ser interpretada ao “pé da letra”. Jackobson, segundo Lopes (1985, p. 25), já exprimia a preocupação em se generalizar o emprego da metáfora exclusivamente ao fazer poético mas, em se tratando dos clássicos, é preciso também considerar que a tragédia era um gênero em formação e o uso da metáfora cumpria exatamente o papel para o qual a figura propunha-se também no gênero poético: transportar o leitor, no caso do teatro o público, para uma outra esfera, uma esfera enigmática, mítica. Mítica ou não, a metáfora já em Aristóteles possuía um caráter enigmático, que persiste até mesmo na máxima do filósofo, que em sua explicação, fazia referência direta à imagem ambígua da esfinge: “As metáforas são enigmas velados” (Retórica, 1406b, 25-26). Referências ARISTOTELE. Poetica. Trad. de Guido Paduano. 8. ed. Bari: Editori Laterza, 2009. BAILLY, A. Abregé du dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 2002. ÉSQUILO. Tragédias. Tradução e Estudo Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2009.

FIORIN, J. L., SAVIOLI, F. P. Para entender o texto: leitura e redação. 16a ed. São Paulo: Ática, 2006. LOPES, E. Metáfora: da Retórica à Semiótica. São Paulo: Atual, 1986. MOREAU, A. Eschyle: la violence et le chaos. Paris: Les Belles Lettres, 1985. RICOUER,

P.

A

metáfora

viva.

Portugal:

Editora

Rés,

1975.

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A POLIFONIA NA OBRA DOSTOIEVSKIANA: UM ESTUDO SEMIÓTICO DO ROMANCE CRIME E CASTIGO1 THE POLYPHONY IN THE DOSTOYEVSKY’S WORK: A SEMIOTICS ANALYSIS OF NOVEL CRIME AND PUNISHMENT Marcos Rogério Martins Costa (FAPESP) [email protected] FFLCH – USP RESUMO Nosso estudo prevê ressaltar os elementos constitutivos do conceito bakhtiniano de polifonia no romance Crime e castigo, do autor russo Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski e para, além disso, promover um estudo qualitativo dos textos literários desse autor, objetivando constituir um corpus consistente para o estudo da constituição do efeito de polifonia no gênero romance polifônico. Para tanto, utilizamos, de um lado, o instrumental teórico da semiótica narrativa, proposta por Greimas e Courtés (2008) e, de outro, a semiótica tensiva, desenvolvida por Zilberberg (2011, 2006) e Fontanille (2008). PALAVRAS-CHAVE: Polifonia, Semiótica, Círculo de Bakhtin, Interdisciplinaridade. ABSTRACT This study provides emphasize the elements of the Bakhtin’s concept of polyphony in the novel Crime and Punishment, by the Russian author Fyodor Mikhailovich Dostoyevsky, and also promote a qualitative study of literary texts of this author, aiming to provide a consistent corpus for the study the constitution of the effect of polyphony in the polyphonic novel genre. We used the one hand, the theoretical tool of semiotic narrative proposed by Greimas and Courtés (2008) and on the other tensive semiotics, developed by Zilberberg (2011) and Fontanille (2008). KEYWORDS: Polyphony, Semiotics, Bakhtin Circle, Interdisciplinarity. INTRODUÇÃO O termo polifonia tem muitas concepções. Temos preceituações teóricas que tratam a polifonia como fenômeno que possibilita ao locutor apresentar diferentes pontos de vista em um determinado enunciado, como propõe Ducrot (1987); ou ainda, prismas psicanalíticos de linha lacaniana que concebem esse termo como caracterização do inconsciente. Dentre essas perspectivas, a concepção de polifonia que esse trabalho

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Texto apresentado no XIII Seminário de pesquisa do programa de pós-graduação em estudos literários “Relações intersemióticas” e I Seminário internacional de semiótica da UNESP, em Araraquara-SP, e, no Rio de Janeiro-RJ, no 4º Colóquio Internacional de semiótica –Linguagens, códigos e tecnologias.

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versará será a proposta do filósofo da linguagem russo Mikhail Mikhailovitch Bakhtin (1895-1975): A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falarmos de vontade individual, então é na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento. (BAKHTIN, 1997, p. 21)

Esse acontecimento é o fato estético dado na esfera literária, no âmbito dos romances, em específico nas obras do autor russo Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) – alvo da análise bakhtiniana e também da nossa. Como se apreende, polifonia é uma metáfora utilizada pelo filósofo da linguagem para interpretar a peculiar construção romanesca do gênero romance polifônico. Ressalta-se que essa metáfora não é aleatória. No vocabulário musical, o termo polifonia distingue um estilo que se originou na Idade Média em oposição ao canto monódico da Igreja, conhecido como canto gregoriano2. Segundo Roman (1992, p.209): A polifonia era uma linguagem dinâmica e mutável, flutuante e ativa, apropriada, portanto, para expressar a percepção carnavalesca do mundo, que possuía o homem medieval, oposta a qualquer idéia de acabamento e perfeição, que caracterizava o canto gregoriano.

Nota-se, ainda, que a partir da chamada Escola de Notre-Dame de Paris, na passagem do século XVII para o XVIII, desenvolve-se uma forma polifônica de grande expressão, o moteto (do termo francês mot: “palavra”), gênero de composição em que as palavras determinam linhas melódicas. Nesse gênero musical, as vozes passam a se distinguir rítmica e melodicamente, permitindo, assim, que melodias diversas convivam no mesmo campo musical. Dessa maneira, pode haver uma voz que louva a Virgem Maria, enquanto outra elogia a exuberância de uma meretriz. Tem-se, então, politextualidade e linguagens distintas se entrecruzando em um confronto entre o erudito e o popular, o sacro e o profano.

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Contudo, ressalvamos que tanto o canto gregoriano quanto a polifonia são cantos modais. Os modais são reiterativos, repetitivos e monótonos. Seu desenvolvimento é circular em torno de uma tônica fixa. Dessa maneira, nessa circularidade estática, em torno de um eixo harmônico também fixo, a melodia modal caminha, como comenta Wisnik (1989, p.36), para “um tempo circular do qual é difícil sair, depois que se entra nele, porque é sem fim”. A diferença consiste no arranjo das vozes, no caso polifônico, por exemplo, temos uma equipolência entre as vozes o que não ocorre no canto gregoriano.

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O termo polifonia, na teoria bakhtiniana, desse modo, surgiu a partir de um empréstimo do vocabulário musical, que, naquele contexto, distinguia um tipo de composição melódica, na qual várias vozes ou melodias se sobrepunham simultaneamente. O filósofo da linguagem Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, ao construir uma investigação sobre a linguagem e sua situação concreta de realização (o que supõe o dialogismo constitutivo do sujeito e seu discurso), utilizando, em especial, como corpus, as obras do autor russo Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881), atribuiu ao vocábulo polifonia um novo sentido. Assim, o termo polifonia passou a significar, no campo dos estudos da linguagem, uma multiplicidade de diversas vozes, que dialogam em equipolência entre si, podendo concordar ou não com a voz do autor dentro de uma determinada esfera literária. Se, “toda palavra dialoga com outras palavras, constitui-se a partir de outras palavras, está rodeada de outras palavras” (FIORIN, 2006, p. 19), o conceito de polifonia é parte primordial do estudo do texto, posto que, em um mesmo texto incidem distintas vozes que se expressam e sendo todo discurso formado por diversos outros discursos, a constatação da polifonia é o grande exemplo da coexistência dessas vozes, desses discursos e do entrelaçar equipolente possível entre esses pontos de vista. Além disso, nota-se que as noções de dialogismo e polifonia se avizinham: aquele é constitutivo de todo e qualquer discurso; esta é privilégio da composição romanesca, em especial dos romances dostoievskianos, como propõe Bakhtin. Portanto, aqui se concentra a nosso foco de análise: o romance dostoievskiano e o desvelo do efeito de polifonia. Seguindo esse foco de análise, entende-se que em um gênero romance polifônico não há uma palavra conclusa sobre os personagens. A voz do autor não mais dá o veredito final na avaliação do herói. Antes, a voz do herói está ao lado da voz do autor, congrega-se a ela e às dos outros personagens, cujas vozes igualmente são plenivalentes. O autor, antes soberano e de voz suprema – modo monológico de criação estética –, agora age e pensa de modo diferente, já que é posto no vórtice das identidades dadas na ordem do inacabamento, que são os atores do enunciado construído no modo da polifonia. Esse, então, é outro pilar preservado pelo desenvolvimento de nosso estudo: verificar como e por que um ator do enunciado romanesco é fundado polifonicamente.

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Para tanto, nesse estudo verificaremos o caso do personagem Raskólnikov, protagonista da obra Crime e castigo3, corpus de nossa análise. Ressaltamos, ainda, que para esse estudo contribui a semiótica de tradição greimasiana, que pensa o ator como um conjunto de papéis temáticos, um efeito de individualidade dado no discurso. Com efeito, pensaremos a polifonia semioticamente, isto é, cotejada na relação expressão/conteúdo dos textos, sendo o último observado segundo um percurso gerativo de sentido. Para Bakhtin, Dostoiévski é distinto dos demais autores de sua época, pois é um orquestrador das vozes, porém, de vozes equipolentes. Em Problemas da poética de Dostoiévski4, Bakhtin (1997, p. 5) atribui ao conterrâneo Dostoiévski a alcunha de “criador do romance polifônico”, pois observou que em suas obras as diferentes vozes, muitas vezes contraditórias, coexistiam em pé de igualdade com o próprio narrador. É bom esclarecer que a noção de voz remete, em nosso estudo, seja ao posicionamento social, histórico e ideológico do ator, seja a um dos perfis do caráter do enunciador, quer este diga respeito ao enunciador primeiro, projeção do autor, quer este diga respeito ao interlocutor, o ator do enunciado, o personagem que assume o turno da voz e fala com a voz delegada pelo narrador. Neste último caso se insere nosso herói, o ator eleito como prioridade até este momento: Raskólnikov. Examinaremos como, segundo o pensamento bakhtiniano e segundo os parâmetros da semiótica, se dão os mecanismos de construção do sentido concernentes às tramas polifônicas, regidas pela função estética, definidora do campo literário, do qual emerge o conceito de polifonia, e consequentemente de gênero romance polifônico, depreendido por Bakhtin a partir da obra de Dostoiévski. Para tanto, utilizaremos as ferramentas da Semiótica Narrativo-Discursiva de Greimas e Courtés (2008). Analisamos, para isso, o que o texto diz, por que diz e como diz, considerando o plano do conteúdo tripartido em: nível fundamental, narrativo e discursivo. Agregamos também a nossa análise os estudos da semiótica tensiva desenvolvidos por Zilberberg (2011) e Fontanille (2008), observando a polifonia como um efeito de sentido que não escapa de um campo de presença tensiva, na relação intensidade vs. extensidade.

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Seguimos a tradução do original russo (Prestuplenie i Nakazanie) feita por Paulo Bezerra, Editora 34, 6ª edição, 2009. 4 Esta obra foi editada primeiramente em 1929 com o título de Problemas das obras criativas de Dostoiévski, sendo reeditada em 1963 com o título acima.

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Dessa forma, nossa pesquisa, ainda em andamento – sendo este artigo os resultados parciais de nossa investigação –, remete aos borrões dos contornos no corpo dos atores envolvidos na estética do romancista russo. Assim sendo, investigar as bases discursivas do conceito de polifonia, possibilita-nos confirmar o romance em pauta como uma totalidade, a qual, por sua vez, remete a outra: a totalidade polifônica na obra dostoievskiana. 1. Crime e Castigo sob um olhar semiótico 1.1. O percurso gerativo de sentido de uma obra polifônica Como a semiótica5 trata a polifonia? Essa pergunta engendrou nossa curiosidade. Desde então, o que propomos é um olhar empírico que não subestime as estruturas da narrativa e nem subjugue as habilidades do autor a uma análise psicologizante ou socializante. É por isso que escolhemos a semiótica, em especial a de linha francesa, como teoria para esta análise, porque ela se interessa pelo parecer do sentido que se apreende por meio das formas de linguagem e, mais concretamente, dos discursos que o manifestam, que trata, segundo Bertrand (2003, p. 21), de uma “abordagem relativista de um sentido, se não sempre incompleto, pelo menos sempre pendente nas tramas do discurso”. Dessa forma, este arcabouço teórico não se esquiva das pendências referentes ao autor-criador, enunciador do texto, nem de suas criaturas, interlocutores dos vários discursos e sujeitos da narrativa, sendo, então, uma teoria bastante adequada, sob nosso prisma, para tratar um texto tão peculiar como o de Dostoiévski. Assim, diferentemente de engessar uma análise – como faz a análise psicologizante que pressupõe a obra Crime e castigo como ato supostamente responsivo ao perfil psicológico do autor Dostoiévski –, a Semiótica, a partir do percurso gerativo do sentido, proposto por Greimas e Courtés (2008), procura explicar as relações lógicas que o discurso manipula a fim de produzir efeitos de sentido. Em outras palavras, se a Semiótica oferece modelos (enunciativos, narrativos, figurativos e passionais) para a

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O nome desta ciência, que surgiu no século XX, vem da raiz grega semeion que significa “signo”, desse modo, semiótica é a ciência dos signos, das linguagens. Sendo a ciência geral de todas as linguagens, ou seja, de toda uma gama incrivelmente intrincada de formas sociais de comunicação e de significação quê inclui a linguagem verbal e a não verbal. Santaella (1983, p.15) salienta que “a Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido”.

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análise, esses modelos não são dados de uma vez por todas, definitivamente, antes, porém, convocados ou revogados pelo exercício concreto do discurso. Por conseguinte, o que esta teoria prima, assim como nosso estudo, não é delimitar o campo de investigação sobre Dostoiévski, através de uma teoria que englobe o autor, mas, sim depreender por meio das estruturas do texto desse autor o percurso que engendra o sentido, agregando valores às oposições semânticas, no nível mais abstrato e profundo, permitindo assim estabelecer, nas sequências lógicas do nível semionarrativo, as relações lógicas cabíveis de serem apreendidas. A semioticista Diana Luz Pessoa de Barros (2005) comenta que a semiótica concebe o plano do conteúdo sob a forma de um percurso gerativo para construir o sentido do texto6. A noção de percurso gerativo do sentido é de extrema importância para a teoria semiótica. Barros ressume esta concepção nos seguintes termos: a) o percurso gerativo do sentido vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto; b) são estabelecidas três etapas no percurso, podendo cada uma ser descrita e explicada por uma gramática autônoma, muito embora o sentido do texto dependa da relação entre os níveis; c) a primeira etapa do percurso, a mais simples e abstrata, recebe o nome de nível fundamental ou das estruturas fundamentais e nele surge a significação como uma oposição semântica mínima; d) no segundo patamar, denominado nível narrativo ou das estruturas narrativas, organiza-se a narrativa, do ponto de vista de um sujeito; e) o terceiro nível é o do discurso ou das estruturas discursivas em que a narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação. (BARROS, 2005, p. 13)

De acordo com esses pressupostos, compreendemos um percurso gerativo do sentido da obra Crime e castigo, em específico sobre os elementos constitutivos do efeito de polifonia, encontramos em nossa investigação os seguintes resultados. No nível fundamental da obra em análise, sustentava-se uma peculiar mobilidade da orientação fórica, na qual se permite a cada membro expor diversas determinações axiológicas, não havendo, portanto, uma categoria fundamental fixa como eufórica ou disfórica durante toda a trama, ou seja, não há um polo negativo ou positivo que domine

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Segundo, Greimas e Courtés (2008, p. 96), “o plano do conteúdo corresponde, para Hjelmslev, a um dos planos da linguagem (ou, mais amplamente de qualquer semiótica) – sendo o outro plano o da expressão –, cuja reunião permite explicar a existência dos enunciados “providos de sentido”. O termo conteúdo, deste modo, é sinônimo do significado global de Saussure. A diferença entre os dois lingüistas só se salienta na maneira de conceber a forma linguística: enquanto para Saussure esta se explica pela indissolúvel união entre o significado e o significante, que produzem uma forma linguística única, Hjelmslev distingue, para cada plano da linguagem, uma forma e uma substância autônomas, sendo a união das duas formas, a da expressão e a do conteúdo - e não mais de duas substâncias -, que constitui, sob esta perspectiva, a forma semiótica”

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todos os caminhos da narrativa dostoievskiana. Com efeito, o que se apresenta é uma movimentação de valores que são impulsionados segundo uma ordem própria dos agentes da narrativa e não numa sequência mecânica ou pré-existente de valores sociais ou ideológicos definidos a priori. Exemplo que comprova esse fato é a não definição eufórica ou disfórica do protagonista Raskólnikov, que não pode ser definido nem como herói ou anti-herói, nem como vilão, sendo, portanto, um ator complexo. Isso ocorre, porque esse ator envolve em sua construção estética tanto elementos disfóricos (e.g. réu confesso de um duplo assassinato seguido de roubo), quanto eufóricos (e.g. auxilia financeiramente a família de Marmieládov; salva um criança de um prédio em chamas etc.), mantendo uma relação de equipolência entre os discursos que professa. O que não permite a euforização ou disforização permanente desse ator, nem de seus atos, corroborando, assim, para o engendramento do efeito de equipolência das vozes do discurso – no nível discursivo – desde as estruturas profundas do texto dostoievskiano. No nível narrativo, vários programas narrativos se soltam em polêmica. Como se pode observar com relação ao protagonista Raskólnikov, que não se perpetua nem como um sujeito da aquisição de um objeto-valor, nem como um sujeito concernente à aquisição de um objeto-valor. Ele é tudo simultaneamente. Há, portanto, no concernente a Raskólnikov, em especial, um sincretismo actorial, visto que um mesmo ator assume diferentes papéis temáticos e figurativos, bem como funções actanciais. Além disso, existem outros programas narrativos, que, em muitos casos, também possuem um sincretismo de papéis actanciais. O que permite dizer que, no nível discursivo, apesar de o foco narrativo estar projetado para jogar luz sobre o sujeito Raskólnikov (narrativa dita em terceira pessoa), temos, na tessitura de Crime e castigo, outras tramas relativas a outros sujeitos-personagens (Marmieládov, Razumíkhin, Svidrigáilov etc.), que cruzam a trama de Raskólnikov; este último, então, é invadido então pelo outros, que assim obtêm voz e vez na tessitura discursiva e no foco narrativo da obra. No nível do discurso, no qual, realmente se constata a realização concreta da polifonia, uma vez que os pontos de vista e seus valores são investidos pelas categorias de pessoa, tempo e espaço, notamos, em meio a um emaranhado de vozes sociais, temas e figuras que se entrechocam e que não são comandados por uma voz soberana. Esses temas e figuras têm a possibilidade, segundo a trama nuclear, de participar do grande diálogo polifônico promovido pela arquitetura dostoievskiana, o que corrobora para 1008

uma multiplicidade de possibilidades interpretativas, visto que há atores do enunciado – em especial Raskólnikov – que borram as fronteiras entre o limite e o limiar, fato que colabora com a não determinação desses atores, isto é, sua não euforização e não disforização, como salientamos no nível fundamental. Esse deslizamento da estética verbal dostoievskiana, que oscila entre o limite e o limiar, é resultante da construção de personagens polifônicos como Raskólnikov. Os atores polifônicos são composto temáticos e figurativos complexos, porque podem acumular papéis e programas narrativos contrários e contraditórios, os quais convivem em seu cerne de forma equipolente. Daí a não determinação dos atores (mobilidade fórica) e de suas atitudes (programas narrativos complexos) na arquitetônica discursiva de uma obra dita polifônica. Desse modo, como podemos apreender nessa análise, o percurso gerativo de uma obra polifônica é peculiar e possui uma organicidade própria, posto que o efeito de sentido de polifonia se configura a partir de mudanças estéticas infiltradas na configuração dos atores do enunciado – a exemplo o protagonista Raskólnikov – desde as camadas mais profundas do texto, nível fundamental, até a sua manifestação no patamar mais superficial do texto, nível discursivo. 1.2. Os desdobramentos tensivos de um romance polifônico Na análise do percurso delineado acima mostramos, no todo, como se articulam as etapas do percurso gerativo do sentido e como a semiótica greimasiana dele se serve para ler o texto dostoievskiano. Do mesmo modo, nos serviremos agora da gramática tensiva, proposta por Zilberberg (2011, 2006), para dar sequência a nossa investigação semiótica das estruturas da narrativa polifônica de Dostoiévski. Ao analisar a obra dostoievskiana, segundo a gramática tensiva de Zilberberg (2006), seguiremos os seus três postulados: (i) estrutura tensiva - no qual há a relação do o eixo da intensidade vs. eixo da extensidade; (ii) sentido - no qual há a relação ascendente vs. decadente, no que diz respeito às grandezas da significação envolvida; (iii) devir - no qual se observa a velocidade no campo tensivo, para que se depreenda uma voz mais acelerada ou menos, de acordo com o campo de presença projetado. Em síntese a semiótica tensiva, conforme Zilberberg (2006), consiste em misturar duas dimensões: a dimensão da intensidade, do sensível, e a da extensidade, do inteligível.

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Sob esses postulados, observamos, em uma leitura global da obra Crime e castigo, que o romance dostoievskiano tende a emparelhar-se a uma maior extensidade, à medida que diminui sua intensidade, ou seja, constata-se uma correlação inversa, na qual quanto maior a inteligibilidade, menor será a tonicidade. Esse cenário tensivo se observa pela própria constituição da obra, visto que o romance possui sete segmentos (seis partes e o epílogo) e logo no primeiro já ocorre o crime, o duplo homicídio seguido de roubo cometido por Raskólnikov, que é o ponto fulminante de intensidade, uma vez que com aquele ato o jovem rapaz sofre um grande choque emocional, como se pode observar no trecho “o pavor se apoderava dele [Raskólnikov] cada vez mais, principalmente

depois

desse

segundo

assassinato

totalmente

inesperado”

(DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 94, grifo nosso). Todavia, esse estado passional não pode se sustentar por muito tempo e então, depois de sua fuga, com o seu raciocínio lógico sendo testado a todo o momento pelos interrogatórios do juiz de instrução, Porfíri, há um relaxamento da intensidade e um desenvolvimento contínuo da extensão, que é marcado pelas reflexões introspectivas de Raskólnikov, culminando em sua confissão: “Fui eu que matei com um machado a velha viúva do funcionário e sua irmã Lisavieta e a roubei” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 539). Desse modo, em um primeiro momento, há uma tomada de posição explosiva (o máximo da intensidade), e, em seguida, um processo de relaxamento tensivo, que é a exploração cognitiva – embora haja oscilações passionais nesse intermédio – dessa primeira tomada de posição, no caso, o crime. Pode-se observar essa conjuntura tensiva na seguinte figura:

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Assim temos uma curva descendente, em que se nota a passagem de um contexto que privilegia a triagem − no qual se estimam menos primordialmente os valores do universo, para privilegiar os de absoluto − para um que legitima a mistura − onde se observam, com privilégio, os valores de universo. Enquanto o narrado se destina à construção do impacto e do suspense, temos o eixo da intensidade, em que o sobrevir é dado no modo ascendente (mais tensão, mais impacto, mais tonicidade e celeridade), conforme expõe Zilberberg (2011). Enquanto o narrado se desdobra nas ações decorrentes do crime, temos o previr, o agir, que redunda na condenação. Contudo, esse mesmo esquema tensivo não se sustenta nos segmentos altamente polifônicos examinados, como os três interrogatórios de Raskólnikov feitos pelo juiz de instrução Porfiri (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 258-276; 342-364; 457-471), as conversas de Raskólnikov com Sônia Semeónovna (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 415-431) e o trecho da leitura da carta de Pulkhéria Raskolnikovna, mãe de Raskólnikov a este (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 46-55). Em todos esses exemplos, o que notamos é a configuração de uma curva conversa: há um máximo de intensidade das emoções corresponde a um máximo de extensidade das informações. Assim sendo, ao abalo sentido pelo ator Raskólnikov, o que é da ordem do sobrevir, se correlaciona a racionalidade de ter de prever o que pensar, como ocorre no caso dos interrogatórios, nos quais o herói tem de pensar o que juiz de instrução (Porfiri) pode usar ou não contra ele em um possível inquérito, enquanto as emoções explodem e raptam o próprio Raskólnikov. No caso das conversas com Sônia a mesma equipolência entre os eixos de intensidade e extensidade: Raskólnikov se sente atraído de certo modo pela beleza de Sônia – aí a intensidade do impacto cresce em graus de intensidade. Correlativamente, Raskólnikov pensa em seu crime e nas suas conseqüências, recuperando tal crime em detalhes cognitivamente preservados, no relato feito a Sônia, então, ao expor a teoria dos homens extraordinários enquanto faz o relato, temos o mais do mais da extensidade. Na leitura da carta de Pulkhéria, como disse Bakhtin (1997), observamos um jogo no qual Raskólnikov digladia com as vozes de sua mãe e de sua irmã e do possível pretendente à mão de sua irmã Dúnia, Pieotr Pietrovitch Lújin. Observamos que durante esta leitura, o eixo da intensidade é alimentado pela revolta de Raskólnikov mediante a situação precária, miserável de sua família e os vaticínios de um possível sacrifício de Dúnia, enquanto o eixo da extensidade se robustece por meio da teoria sustentada por 1011

Raskólnikov para possível solução deste lastimável contexto: a teoria dos seres ordinários e extraordinários. Portanto, nestes três casos, como pretendente a ser extraordinário, Raskólnikov, sujeito do sobrevir, desliza num crescendum no eixo da intensidade; já como aquele que tenta convencer Sônia, aplicar sua teoria em benefício próprio (salvar a família da miséria e alavancar seus estudos) ou escapar dos percalços criminais, num exercício fino de persuasão inteligível, conceitual por excelência, Raskólnikov desliza pelo eixo da extensidade. Assim, podemos apreender que a curva conversa é compatível com os discursos altamente polifônicos, já que não há uma dominância entre as vozes, se de um lado há maior intensidade, de outro há uma maior extensidade, ou seja, a correlação conversa sustenta a tese de polifonia, uma vez que confirma a equipolência entre as vozes, através da equipolência entre os eixos da intensidade e da extensidade. Estrutura tensiva que apresentamos no seguinte gráfico tensivo:

Assim sendo, há uma alternância de estados nessa obra, a qual se encontra ora em um processo de triagem das vozes discursivas, montando um esquema tensivo descendente, ora em processo de mistura das vozes, compondo uma estrutura tensiva ascendente. Esses estados tensivos corroboram com a mobilidade fórica atestada no nível fundamental, fato que confirma os resultados obtidos no estudo do percurso gerativo do sentido.

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Desse modo, apreendemos que os trechos polifônicos e sua estrutura tensiva peculiar e distinta da leitura global da obra – uma vez que esta configura um gráfico descendente – comprova a polifonia como um efeito de sentido que não escapa de um campo de presença tensivo, que, como constatamos, pode ser depreendido do enunciado e estudado de forma sistemática e específica – resultado que justifica esse estudo. 2. Os arredores discursivos do romance polifônico: a incompletude do narrado e a maximização da heterogeneidade O que observamos até o presente momento demonstra que a construção do efeito de polifonia, no tabuleiro romanesco, coloca em xeque uma concepção monológica do discurso, visto que dispõe, na tessitura discursiva, uma multiplicidade de vozes distintas e plenivalentes, compondo o que Bakhtin intitula como o grande diálogo do romance polifônico. Assim, o dialogismo, essência da teoria bakhtiniana da linguagem, mostra-nos que os sujeitos constituem-se na e pela interação, sendo o discurso construído a partir do discurso do outro. Todo texto é composto de vozes, de intertextualidades, mas o peculiar do discurso polifônico é sua equipolência. Essa característica mostrou-se atuante quando observamos a mobilidade fórica e os termos complexos no percurso gerativo de sentido das obras analisadas, visto que estas evidenciaram uma igualdade entre as forças constituintes dos seus termos, o que possibilitou sua combinação, bem como evitou que a foria se perpetuasse em um dos termos, o que consequentemente viabilizou a mobilidade fórica. Se atentarmos aos arredores discursivos que rondam o conceito de polifonia, teremos constatações além dessas que concernem a imanência do efeito de sentido de polifonia, portanto, avante aos arredores discursivos da polifonia. Como sabemos, Bakhtin (1997) estabelece a polifonia como o traço marcante que diferencia a obra do escritor russo da de grandes romancistas europeus e mesmo de conterrâneos a este como Tolstói e Turguêniev. Ao contrário dos autores de seu tempo, que comporiam romances psicológicos ou de tese, de organização monológica, cuja figura do narrador possui um amplo controle da narrativa, sendo este, em última instância, o representante da visão do próprio escritor, a qual plainaria acima das concepções de mundo das personagens; Dostoiévski possibilita às diversas vozes um estatuto plenivalente na composição narrativa. Essa espécie de liberdade estética dada aos atores do enunciado permitiu que estes fossem “capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele” (BAKHTIN, 1997, p. 4).

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Esse novo tipo de ator do enunciado são os personagens polifônicos, que, como já salientamos, possuem características e um modo de construção estético próprio. Entretanto, não devemos pressupor daí que não se destaca a visão políticoideológica do próprio escritor russo. O fato de sua escrita ser dialógica está relacionado à forma estética, o que não impede que o escritor deixe sua visão de mundo. Posto que, conforme explica Bakhtin (2008), o eu único se compõe sempre como produto e produção desta relação com o outro, de forma que o discurso do ser é sempre de caráter social. Para abordar o processo de formação de um eu, Bakhtin formula três categorias: o eu-para-mim (exotopia do eu); o eu-para-os-outros (exotopia do tu); o outro-paramim, e, por meio dessas relações, o diálogo será criado, seja ele manifestado ou não, isto é, seja interior ou exterior. Assim sendo, observa-se que “tudo se reduz ao diálogo, à contraposição dialógica enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é um fim. Uma só voz nada termina, nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida” (BAKHTIN,1997, p.257). Portanto, entendido que o autor possui esse excedente de visão sobre suas personagens que permite que suas vozes não coincidam e assim não se efetue um discurso monológico (nem autobiografizante), percebemos a manifestação de um dialogismo exacerbado nas obras dostoievskianas. Isso porque, em paralelo a esse dialogismo, temos a maximização da heterogeneidade no discurso, possibilitando uma desconcentração identitária entre os sujeitos do enunciado e da enunciação, o que potencializa o dialogismo. Apreendemos isso observando o foco narrativo dentro da construção estética dostoievskiana, pois o narrador dostoievskiano sempre está ao lado do personagem, nunca a sua frente, nem atrás dele. Desse modo, não há a antecipação de fatos nem a descrição ipsis litteris do perfil das personagens e de seus pensamentos e atos. Temos, sim, a construção em ato do agir e do pensar da personagem, ratificando assim a equipolência das vozes no discurso literário do autor, bem como a sua maior independência com relação às rédeas do narrador. Outro fator que contribuiu para esta formação dostoievskiana tão peculiar é o inacabamento do narrado. Como assinalamos em nossa análise, a incerteza e o paradoxo são tonalidades estilísticas importantes em sua narração. Portanto, é a partir da incerteza que Dostoiévski cria a grande força de suas tramas, uma vez que a exatidão, os limites bem consolidados e os casos de causa-efeito são escassos em sua formação discursiva. O que vislumbramos em suas obras, principalmente na tríade em destaque, são versões 1014

narrativas conflituosas, nas quais pelo menos duas forças díspares se confrontam com tal empenho e potência, que o resultado é incerto e multifacetado. Não há fim em Dostoiévski. Sua obra é uma espiral de dúvidas e tormentos, nela temos o homem em sua forma mais humana. Portanto, o que verificamos em nosso estudo dos arredores discursivos é que os resultados obtidos na análise anterior são compatíveis com a construção dialógica arquitetada por Dostoievski. Além disso, compreendemos que o dialogismo em suas obras encontra-se em um grau mais acentuado, devido à maximização da heterogeneidade corroborada pela incompletude do narrado, que juntas compõem uma práxis enunciativa multifacetada e plurissignificativa, contribuindo, assim, com a formação do conceito bakhtiniano de polifonia. Considerações finais A polifonia colocou em xeque o discurso autoral, visto que dispôs no tabuleiro da ficção romanesca uma multiplicidade de vozes distintas e plenivalentes. Quando dizemos distintas, referimo-nos à diversidade de posicionamento ideológico, bem como à diversidade de um perfil afetivo; lá, incorporamos a semiótica narrativa e discursiva; cá, a tensiva. Desse modo vimos um jogo de xadrez sem rei ou rainha, menos ainda peões; um jogo de damas, no qual nunca há formação de uma dama. Porém, em todos os casos, as peças continuam a digladiarem. Reina apenas a equipolência entre as vozes. Em nossa análise, Crime e castigo evidenciou que o texto dostoievskiano apresenta polifonia no nível discursivo, no entanto, esse efeito de sentido é corroborado pela manifestação, no nível fundamental, de um mobilidade fórica e, no nível narrativo, de programas narrativos complexos e de sincretismos actoriais – principalmente no concernente a construção estética do protagonista da trama, Raskólnikov. Além de notarmos, há uma arquitetônica estética que possui um dialogismo exacerbado que colabora com a constituição do conceito de exotopia por parte do autor, isto é, a consciência de uma consciência, na qual uma não domina ou superpõe a outra. Elementos esses que transparecem no nível discursivo como uma estrutura dialógica arraigada pela inconclusibilidade e pela heterogeneidade. Como um todo, notamos que, no plano do conteúdo, ainda no nível discursivo, que, embora Raskólnikov, o protagonista, esteja no núcleo dos acontecimentos, nem sempre é ele o centro da ação, ou seja, encontramos no desenvolvimento da narrativa

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não um ou dois protagonistas que encenam, sendo os demais apenas e somente coadjuvantes da narrativa, mas, antes, um conjunto de atores ativos, que, imersos em uma narrativa tensa e altamente dialógica, são viabilizados segundo a tessitura do enredo. Fato que auxilia nosso herói a exercer a voz e vez no modo da ambiguidade de posicionamentos e emoções, vista a não centralização da obra, isto é, a não convergência para o centro, mas sim, a dispersão no vórtice da polifonia. Sendo assim, não pudemos esgotar todos os temas e figuras, o que seria incompatível com o princípio da inconclusibilidade. Verificamos, entretanto, como e por que se deu a equipolência dentre as vozes, de modo a ser corroborada a tese de polifonia. Constamos um percurso gerativo de sentido de uma obra polifônica e seus desdobramentos tensivos. Dessa forma, verificamos que as vozes no romance analisado não se inclinam a um centro único; elas têm a oportunidade de se expressar segundo a soltura e o inacabamento. A equipolência de vozes verdadeiramente prevaleceu. Assim a polifonia das vozes dostoievskianas na obra Crime e castigo foi confirmada por meio das análises desenvolvidas: pudemos depreender uma recorrência do modo dostoievskiano de dizer, a qual remete ao modo polifônico de ser do ator da enunciação, apoiado nos atores do enunciado, que resultam não como criação passiva, já que estão no âmbito da polifonia, mas sim, de uma criação estética peculiar, que, por ora, confirmamos pela análise semiótica de seus elementos constitutivos: mobilidade fórica (nível fundamental), programas narrativos complexos e sincretismo actorial (nível narrativo), atores do enunciado complexos (nível discursivo). Referências BARROS, D. L. P. Teoria Semiótica do Texto. 4.ed. São Paulo: Ática, 2005. BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. ______. Questões de literatura e estética (a teoria do romance). Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec/ Editora da UNESP, 2008. BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Tradução do Grupo CASA. Bauru: EDUSC, 2003. DOSTOIÉVSKI, F. M. Crime e castigo. Tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Ed. 34, 2009.

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FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. Trad. Alceu Dias et al. São Paulo: Contexto, 2008. SANTAELLA, L. O que é Semiótica? São Paulo: Brasiliense, 1983. ZILBERBERG, C. Elementos de Semiótica Tensiva. Trad. Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011. ______. Síntese da gramática tensiva. Significação-Revista Brasileira de Semiótica. São Paulo, v.1, n.25, p. 163-204, jun. 2006.

O PONTO DE VISTA NA TEORIA LITERÁRIA E NA SEMIÓTICA Maria Goreti Silva Prado (FAPESP) [email protected] UNESP/FCLAr Jean Cristtus Portella A extensão da metalinguagem natural à metalinguagem técnica atesta com propriedade a importância crucial dessa noção: não há enunciado, qualquer que seja sua dimensão, que não esteja submetido à orientação de um ponto de vista. (BERTRAND, 2003, p.113)

Introdução A expressão “ponto de vista” além de denominar um conceito teórico comum a algumas disciplinas é também de uso corrente na linguagem natural. No Dicionário Houaiss (2001) recebe acepções como:



ponto eleito por um artista plástico para melhor observar o objeto que deseja reproduzir artisticamente, especialmente quanto a questões de perspectiva;



ângulo do qual algo ou alguém é observado, ou considerado; perspectiva;



lugar alto de onde se avista, de uma só mirada, uma vasta paisagem.

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No uso cotidiano também encontramos a expressão sendo usada no sentido de “opinião”. No Dicionário Houaiss, no verbete “opinião”, uma de suas definições aparece como: 

posição precisa, ponto de vista que se adota em um domínio particular (social, religioso, político, intelectual etc).

Notamos que o núcleo sêmico comum que a expressão apresenta é: posição de onde alguém se coloca para melhor observar algo. A “posição” pode ser interior (considerar) ou exterior (ver), mas sempre sob uma condição modal “para melhor observar”. A grande abrangência semântica do uso cotidiano pode ser considerada a causa das divergências teóricas, como acontece principalmente na Teoria Literária e na Semiótica. A seguir apresentaremos, resumidamente, como essas duas disciplinas tratam a questão teórica do ponto de vista. Ponto de vista na Teoria Literária As tipologias literárias que versam sobre a problemática da instância narrativa remontam ao final dos anos 1940 e começo dos anos 1970. Elas foram pioneiras na abordagem desse fenômeno de que a Linguística e a Semiótica, à sua maneira, iriam se ocupar anos depois. Buscando traçar um panorama das reflexões literárias sobre o assunto, apresentaremos sucintamente os estudos desenvolvidos por Jean Pouillon (1970), Norman Friedman (2002), Tzvetan Todorov (1971) e Gérard Genette (2007)1. Pouillon (1970) trata da questão da instância narrativa ao abordar os “modos de compreensão” na obra Tiempo y novela. O autor postula três possibilidades na relação narrador-personagem, tais como: (i) visão “com” – nela o autor elege uma personagem a partir da qual os fatos são narrados, ou seja, com ela “vemos” os outros personagens e “vivemos” os fatos relatados, o narrador diz aquilo que a personagem sabe; (ii) visão “por trás” – o centro da visão agora não é mais a personagem, mas o narrador como se fosse um espectador que conhece de antemão o que vai acontecer, ele sabe mais que a

1

Visando situar cronologicamente os estudos citados, relacionamos aqui o ano da primeira publicação de cada obra: Jean Pouillon, Temps et Roman, 1946; Norman Friedman, Point of view in fiction, 1955; Tzvetan Todorov, Les catégories du récit littéraire, 1966; Gérard Genette, Discours du récit, In: Figures III, 1972.

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personagem; e, (iii) visão “de fora” – o narrador não mostra explicitamente a personagem, limita-se a descrever sua conduta, sabe menos do que a personagem. A tipologia do narrador de Friedman (2002) baseia-se na distinção entre o conceito de “cena” (mostrar) e “sumário narrativo” (contar). A “cena” é constituída no momento em que surgem detalhes específicos dos elementos da narrativa como: tempo, lugar, ação, personagens e diálogos. É uma característica predominante nas narrativas modernas. O “sumário narrativo” é um relato generalizado de uma série de acontecimentos, em um determinado tempo e em vários lugares, característica que predomina nas narrativas tradicionais. Além de se basear na distinção entre esses dois conceitos, Friedman (1955) também procura responder a quatro questões: (i) Quem conta a história? (ii) De que posição ou ângulo a história será contada? (iii) Que canal de informação será usado? (iv) Qual a distância entre a história e o leitor? Sua tipologia organiza-se em: autor onisciente intruso, narrador onisciente neutro, “eu” como testemunha, narrador-protagonista, onisciência seletiva múltipla, onisciência seletiva, modo dramático e câmera. Na passagem de um tipo para o outro vai ocorrendo certa objetivação do material da história com a eliminação do autor e de qualquer espécie de narrador, a história vem diretamente da mente das personagens, isso significa que a tipologia de Friedman (2002) parte da onisciência total (presença do narrador) até o apagamento do narrador. Além dessas oito tipologias de narradores, o autor distingue três recursos muito usados no romance do século XX conhecidos como técnicas narrativas para acessar a mente das personagens. São eles: análise mental, monólogo interior e fluxo de consciência. Tzvetan Todorov (1971) trata “aspecto e modo” da narrativa como duas categorias que se relacionam com a imagem do narrador. Retomando a formulação proposta por Pouillon (1970) sobre os “aspectos da narrativa”, que correspondem à maneira pela qual os fatos são percebidos pelo narrador, Todorov (1971) reconhece e classifica três principais tipos:



narrador > personagem: narrador sabe mais que seu personagem, gênero muito utilizado nas narrativas clássicas;



narrador = personagem: narrador sabe tanto quanto as personagens, tipo propagado principalmente na época moderna; 1019



narrador < personagem: narrador sabe menos que as personagens, as narrativas desse tipo são mais raras que as outras.

“Modos da narrativa” é a maneira pela qual o narrador expõe os fatos aos leitores, isto é, enquanto um narrador “mostra”, outro só faz “dizê-las”. O autor classifica esses dois modos em:

representação – que se identifica com a fala das personagens; narração – correspondendo à fala do narrador.

Todorov (1971, p.246-247) destaca também a relação narrador/leitor utilizando as expressões “imagem do narrador” e “imagem do leitor”. Para ele, A imagem do narrador não é uma imagem solitária; desde que aparece, desde a primeira página, ela é acompanhada do que se pode chamar . [...] Os dois encontram-se em dependência estreita um do outro, e desde que a imagem do narrador começa a sobressair mais nitidamente, o leitor imaginário encontra-se também desenhado com mais precisão. [...] Esta dependência confirma a lei semiológica geral segundo a qual e , o emissor e o receptor de um enunciado, aparecem sempre juntos.

Gérard Genette (2007), outro teórico da literatura, elaborou uma tipologia narrativa baseada em três categorias: tempo, modo e voz. Segundo Mieke Bal (1977), a principal originalidade da teoria de Genette (2007) consiste na distinção entre “perspectiva” e “instância narrativa” que o autor classifica em: modo (quem vê?) e voz (quem fala?), respectivamente. Limitando-nos ao tema proposto para essa apresentação, abordaremos apenas a categoria de modo. De acordo com Genette (2007), o conceito de “modo” diz respeito à regulação das informações narrativas, e as noções de perspectiva e distância são suas modalidades. O interesse pela problemática da distância entre o narrador e o mundo narrado existe desde a época dos filósofos gregos. É dessa época que vem os termos: mimese (imitar), referente às falas diretas, semelhante ao drama; e diegese (narrar), que corresponde à narrativa pura. Com base na oposição entre mimese e diegese, o autor distingue dois tipos de narrativas: narrativa de falas e de acontecimentos.

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Na narrativa de acontecimentos, a mimese define-se por um máximo de informação e um mínimo de informador; a diegese, ao contrário, por um mínimo de informação e um máximo de informador. Na narrativa de falas, apesar de ser tida como pura imitação, também há graus de mimese. De acordo com a fala da personagem, temos três estados de discurso:

1.

Discurso relatado ou reportado: a forma mais mimética e mais próxima do discurso, na qual o narrador finge ceder a palavra à personagem. Essa técnica é conhecida como monólogo interior ou discurso imediato;

2.

Discurso narrativizado ou contado: é o estado mais distante e mais redutor do discurso, próximo ao puro acontecimento;

3.

Discurso transposto: entre os dois extremos, ou seja, entre mimese e diegese do discurso encontra-se o discurso transposto, nele o narrador integra as falas da personagem em seu próprio discurso.

O segundo modo de regulação da informação é a perspectiva, que Genette (2007), buscando evitar o sentido especificamente visual que “ponto de vista”, “campo restrito” “aspecto”, “visão”, etc (termos adotados por outros teóricos da literatura) têm em comum, opta por chamar “focalização”. Genette (2007, p.190, tradução nossa 2) explica que, O que chamamos, nesse momento e por metáfora a perspectiva narrativa – isto é, o segundo modo de regulação da informação que procede (ou não) de um «ponto de vista» restritivo -, é questão que foi, de todas as que consideram a técnica narrativa, a mais frequentemente estudada a partir do fim do século XIX [...]

Partindo dos estudos já desenvolvidos por vários estudiosos, alguns dos quais apresentamos acima, o autor estabelece um consenso entre as tipologias, classificandoas em três termos:

2

No original: «Ce que nous appelons pour l’instant et par métaphore la perspective narrative – c’est-àdire ce second mode de régulation de l’information qui procède du choix (ou non) d’un «point de vue» restrictif -, cette question a été, de toutes celles qui concernent la technique narrative, la plus fréquemment étudiée depuis la fin du XIX ͤ siècle [...]» (GENETTE, 2007, p.190).

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

narrativa de narrador onisciente – dois primeiros tipos elaborados por Friedman, visão por trás (Pouillon), narrador > personagem (Todorov), reúnem-se em um mesmo grupo;



narrativa de ponto de vista - “eu” testemunha, narrador-protagonista e narrativa com onisciência seletiva simples ou múltipla (Friedman), visão com (Pouillon), narrador = personagem (Todorov), formam o segundo grupo;



narrativa objetiva – modo dramático e câmera (Friedman), visão de fora (Pouillon), narrador < personagem (Todorov), constituem o terceiro grupo.

A partir desses agrupamentos, Genette (2007) elabora sua tipologia da focalização, classificando-a em:



Narrativa não focalizada ou de focalização zero: equivalendo ao primeiro grupo;



Narrativa de focalização interna: que se subdivide em fixa, variável e múltipla – correspondendo ao segundo grupo;



Narrativa de focalização externa: relacionada ao terceiro grupo.

Para melhor entendimento da proposta de Genette (2007) quando comparadas às dos demais teóricos da literatura, abaixo apresentamos um quadro com as tipologias aqui inventariadas, cujo contraponto o próprio Genette (2007, p.190-194) o faz ao tratar da noção de perspectiva:

Autores

Grupos

1º grupo: (narrativa de narrador onisciente)

JEAN POUILLON

NORMAN FRIEDMAN

TZVETAN TODOROV

GÉRARD GENETTE

Narrador>personagem

Não-focalizada ou focalização zero

Autor onisciente intruso; Visão por trás

Autor onisciente neutro

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Eu-testemunha; Eu-protagonista; 2º grupo: (narrativa de ponto de vista)

Visão com

Onisciência seletiva múltipla;

Narrador=personagem

Focalização interna (fixa, variável, múltipla)

Narrador
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